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PROLEGOMENA

PHILOSOPHICA
Postulado I. - O Ser é, o não-Ser não é.

I. Informalmente, devemos dizer que algo existe, e seria necessário que invocássemos o mais fervoroso
dos céticos clássicos gregos para negá-lo. Se essa premissa é verdadeira, é falso o Nada, aquilo que é
absolutamente não-algo, a ausência de algo; em palavras mais compreensíveis, isto que descrevemos seria
o não-existir absoluto de nada no universo, que parece ser falso, pela existência de algo, e.g. este teclado
o qual uso para escrever, meu corpo, a cadeira ou cama na qual estamos sentados ou deitados, e outros
infinitos exemplos. O Nada, absoluto, a completa ausência de tudo, é contrário a um nada relativo (notem
aqui que os termos tudo e algo são intercambiáveis, pois o tudo é o conjunto de todo algo, e aqui estou
utilizando deles para opor a ausência de um algo, isto é um nada).
Por exemplo, pode não haver nada em algum determinado algo e, ao mesmo tempo, este algo existir, mas
isso não acontece com o Nada, que exclui o algo necessariamente. Assim, defino o que quero dizer com
não-Ser: refere-se ao absoluto, ao máximo, não só quantitativamente mais do que um "nada", mas
qualitativamente - Nada (por isto a letra maiúscula). Procurarei fundamentar a premissa que leva à
conclusão de que o Nada Absoluto é impossível a seguir. Mas perceba que a posição foi colocada somente
informalmente. Digo isso porque "existir" vem do vocábulo latino existere, que apresenta o sufixo ex -,
indicando proveniência. Chegaremos em um momento no porquê isso é problemático para um vocábulo
que denota o próprio existir. Antes, tornemo-nos a transitividade e intransitividade verbal. Como deveis
haver aprendido, um verbo transitivo é um verbo que, sozinho, não tem sentido completo, o que significa
que ele tem que transitar para um elemento que o complete, (e.g. comeram meu bolo). Ora, quem comeu?
Bolo do quê? Já os verbos intransitivos são aqueles que não apresentam tal relação de dependência.
Aplicaremos essa noção à noção informal de existência.

II. Aqui pressuponho as divisões semióticas dos medievais¹, nomeadamente, as seguintes: (1) que
signos, sejam simples (como "a") ou compostos (como "azul") denotam convencionalmente um algo e
que (2) esse algo existe realmente no mundo. Digo convencionalmente porque é por mera convenção que
a palavra "azul", por exemplo, indica a noção de azul, o que é facilmente demonstrado pelos equivalentes
blue e caeruleum em inglês e latim, respectivamente, que indicam a mesma noção, sob termos diferentes,
assim como que por meio de signos diferentes. Esclareço isso porque a noção à qual me refiro é o próprio
conceito de existência, e estamos fazendo essa volta toda porque quero indicar que justamente o signo
composto "existência" é problemático, pela questão supracitada envolvendo o sufixo. É isso que quero
dizer com "informalmente", no caso, informalmente exprimir a noção de existência, e não que seja
possível representar informalmente a palavra "existir".
Dito isto, percebamos que, assim como descrevi uma distinção entre um mero nada, como em "não havia
nada dentro da caixa", e o próprio Nada, como quando não há nada no universo, também descrevamos
uma distinção entre ser e Ser; entre o ser, que é transitivo, como em "quero ser médico", e o Ser, que é
instransitivo, isto é, não depende de um referencial, este que é o conjunto infinito, ilimitado de todas as
coisas que existem, podem existir, existiram e existirão. Entraremos no porquê deve ser ilimitado em
breve. Permita-mo-nos continuar a explicitação do Ser, infinito, e do ser, transitivo. O "ser" é um verbo
que indica um ser alguma coisa, algo que os escolásticos cunhavam de cópula (no sentido de ser aquilo
que conecta o sujeito com o predicado da proposição) relativa, ou meramente copulativa, em oposição a
uma asserção judicativa². Fica evidente, pois, que esse ser é em relação a algo; agora, o Ser ao qual me
refiro é absoluto: É por Si mesmo, absolutamente.

III. Tendo lidado com as relações gramáticas das noções de Ser e ser e seus significados, prodemos
entrar agora no campo propriamente filosófico. Percebam que até agora não nos comprometemos a dar
uma definição senão descritiva do Ser. Isso acontece porque o conteúdo da palavra ser não é definível.
Para dizer o que é ser, precisamos de certo modo desse conceito: ser é aquilo que é. Em palavras mais
simples, antes que algo possa ser algo, como, por exemplo, uma bola ser branca, este algo precisa ser,
simplesmente, donde o Ser é aquilo cuja descrição mais própria é ser. Assim, por definição, Ser é aquilo
que é, ou é algo, e não-Ser é aquilo que não é, ou que não é algo, não é nada. Como exemplo de não-ser é,
por exemplo, um círculo quadrado, cuja própria definição inclui uma contradição. Ora, um círculo é uma
figura geométrica sem lados, e um quadrado é uma figura geométrica com 4 lados. Para que algo seja um
círculo, por definição, não pode ser um quadrado, e vice-versa, logo, etc.
Percebemos que em relação a um ser e a um não-ser, é cabível a demonstração. Um exemplo de
demonstração seria o clássico silogismo aristotélico "Todo homem é mortal, Sócrates é homem, portanto,
Sócrates é mortal", ou "Todo A é B, C é B, portanto, C é A". Perceba que o ser mortal foi demonstrado
do ser Sócrates, a partir do ser homem. Um silogismo inverso também é legítimo no caso de demonstrar
um não-ser; "Nenhum homem é imortal, Sócrates é homem, portanto, Sócrates não é imortal", ou
"Nenhum A é B, C é B, portanto, C não é A".
Agora, em relação ao Ser e ao não-Ser os absolutos que contém os citados anteriores, só podemos mostrá-
los, não demonstrá-los. Acerca dessa distinção, diz-nos Mário Ferreira dos Santos: "O conceito de
demonstração (de-monstrare) implica o conceito de mostrar algo para tornar evidente outra proposição,
quando comparada com a primeira. A primeira certeza tem naturalmente de ser mostrada, já que a
demonstração implica algo já dado como absolutamente certo. Para provar-se a validez de algo, basta,
assim, a mostra, que inclui os três elementos imprescindíveis para a certeza. O axioma alguma coisa há e
evidente de por si, e mostra a sua validez de por si, independentemente da esquemática humana, pois esta
pode variar ..."³. Ele continua, e ainda apresenta um argumento não-demonstrativo, mas mostrativo a
favor da posição que fundamentaremos aqui: "a demonstração exige o têrmo médio, pois é uma operação
que consiste em comparar o que se pretende provar a algo já devidamente provado. A mostração segue
uma via intuitiva. A evidência do que se mostra impõe-se por si mesma, pois a sua não aceitação levaria
ao absurdo. Tambem se pode fazer uma demonstração direta pela mera comparaçao acima citada; ou
indirecta, como a reductio ad absurdum, como no segundo caso. Podemos exemplificar da seguinte
forma: se alguma coisa não há, teríamos o nada absoluto, o que é absurdo: logo alguma coisa há. Esta é
uma demonstração indireta de que há alguma coisa"⁴.

IV. Ocupemo-nos agora de notar como não existe gradação no Nada. Isso é evidente a partir do ponto
de partida, pois mais do que Nada é algo⁵. Agora, como veremos posteriormente, é admitida uma
gradação no Ser, embora não no ser. O Ser, evidentemente, é muito mais extenso que o mero ser, assim,
há determinadas propriedades transcendentais que encontraremos naquilo que participa do Ser, naquilo
que é. Já no ser, não há mais na questão a ser considerado além de uma bidimensionalidade; ou é, ou não
é, em relação àquele determinado aspecto. Por exemplo, quando consideramos um livro estar em cima da
mesa ou não, não há nada sendo considerado além do estar ou não em cima da mesa. Evidentemente, isso
está relacionado justamente ao que estamos considerando precisamente. Caso estivéssemos considerando
o livro estar em cima da mesa em algum ponto do dia, poderíamos, sim, responder um sim e um não;
estava em cima da mesa às 14:24, mas já não estava mais às 15:00. Mas nesse caso não estaríamos mais
tratando do mesmo aspecto, precisamente. Assim, fica evidente que algo não pode ser e não ser sob o
mesmo aspecto ao mesmo tempo, como iconicamente diz Aristóteles⁶. Esse princípio, chamado princípio
de não-contradição, é suposto por todos os filósofos, tendo como únicos negacionistas os notórios
Heráclito (pelo menos lhe é atribuído)⁷ e George Wilhelm Friedrich Hegel⁸. Este último pragmaticamente
aceitava o princípio, conquanto o negasse ontologicamente. Mas veremos os argumentos de ambos no
decorrer desta exposição, por enquanto veremos outras coisas.

V.

VI. Por último, tratemos diretamente do postulado e mostremo-no. Notório é o cogito de Descartes,
apresentado em seu Discurso do Método, do qual toda filosofia moderna procede, e no qual é
fundamentada. Menos conhecido ao público geral é o fato de que o próprio Santo Agostinho de Hipona
apresenta um cogito praticamente idêntico ao de Descartes em seu Solilóquios. De qualquer maneira, nos
não me proporei cá a apresentar uma formalização exata da qual se apresenta nestes autores, mas uma que
toca no ponto central.
O argumento é o seguinte: caso procuremos colocar em dúvida tudo que há, não poderemos colocar em
dúvida nossa dúvida, pois é por meio dela que colocamos todo o resto em dúvida. Logo, pelo menos, a
dúvida é real, donde penso, logo, existo. Em uma formalização mais próxima da lógica matemática,
podemos dizer que uma premissa do argumento é a seguinte: "para toda dúvida x, a dúvida deve ser tal
que x pode ser colocado em dúvida". Ora, a dúvida que Descartes apresenta não pode ser colocada em
dúvida, como estabelecemos. Logo, a conclusão que se segue é evidente. É necessário notar que, embora
tenha uma estrutura argumentativa, que é comum em demonstrações, este argumento não é uma
demonstração direta, porque a conclusão não foi derivada diretamente, mas a proposição contrária da
conclusão foi reduzida ao absurdo e mostrada de ser falsa. Portanto, estamos em conformidade com o que
disse Mário Ferreira, que foi citado anteriormente. Ora, se algo existe, o Nada que descrevemos não é
possível. Assim, solucionamos o primeiro postulado.

Postulado II. - Ente é o que participa do Ser.

Postulado II. - O Ser necessariamente é continuamente.


Postulado III. - Ente é o que participa do Ser.
Postulado IV. - O ente pode ser real ou meramente lógico.
Postulado V. - Do ente são captadas confusamente suas propriedades.
Postulado VI. - Um, algo, verdadeiro e bom são propriedades do ente.
Postulado VII. - As propriedades do ente são conversíveis analogamente.
Postulado VIII. - Todo ente é ou potência pura, ou potência, ou ato.
Postulado IX. O ente que é ato é mais perfeito do que o que não é.
Postulado X. - Todo ente é ser em-si ou ser em-outro.
Postulado XI. - O ser-em outro se divide univocamente em 9 categorias.
Postulado XII. - Há determinados pós-predicamentos em algumas das 9 categorias.

¹HISPANUS, Petrus, Summulae Logicalis, t. 1.


²MARITAIN, Jacques, Lógica Menor, p. 100.
³FERREIRA, Mário dos Santos, Filosofia Concreta, p. 32.
⁴Ibid.
⁵FERREIRA, Mário dos Santos, Filosofia Concreta, p. 52.
⁶ARISTÓTELES, Metafísica, Livro IV, 1050b1, 15.
⁷ARISTÓTELES, Metafísica, Livro IV, 1005b.
⁸HEGEL, George Wilhelm Friederich, A Ciência da Lógica, V. 1, L. 1, Divisão geral do Ser.
⁹DESCARTES, René, Discurso do Método, 4p.

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