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Aquinas: a Begginer's Guide (Edward Feser)

Reconhecimentos

Por comentários úteis em um rascunho mais recente deste livro, eu agradeço Christopher
Kaczor, meu editor Mike Harpley, e um árbitro anônimo. Como sempre, eu agradeço minha
amada esposa Rachel e nossas queridas crianças Benedict, Gemma, Killian e Helena pela sua
paciência e amor. Agradecimentos especiais são devidos ao meu pai Edward A. Feser, que
me aconselhou há mais de vinte anos que eu deveria ler Aquino. Você estava certo, pai; eu
queria que tivesse lhe escutado mais cedo. Eu dedico este livro a você.

Sistema de citações

CT - Compendium theologiae. Traduzido por Cyril Vollert como Light of Faith: The
Compendium of Theology (Sophia Institute Press, 1993). Referências são por parte e número
de seção.

DEE - De ente et essentia. Traduzido por Robert P. Goodwin como "On Being and Essence",
m Robert P. Goodwin, ed., Selected Writings of St. Thomas Aquinas (Prentice-Hall, 1965).
Referências são por capítulo.

DPN - De principiis naturae. Traduzido por Robert P. Goodwin como "The Principles of
Nature", em Robert P. Goodwin, ed., Selected Writings of St. Thomas Aquinas (Prentice-Hall,
1965). Referências são por capítulo e número de parágrafo.

In I Cor - Super Epistolam Primam Pauli Apostoli ad Corinthios. Comentário à primeira carta
de São Paulo aos Coríntios, excerto traduzido por Timothy McDermott em Timothy
McDermott, ed., Thomas Aquinas, Selected Philosophical Writings (Oxford University Press,
1993).

In DA - Sententia super De anima. Traduzido por Kenelm Foster e Silvester Humphries como
Commentary on Aristotle's De Anima (Dumb Ox Books, 1994). Referências são por livro,
palestra número e número de parágrafo.

In DC - Sententia de caelo et mundo. Traduzido por Fabian R. Larcher e Pierre H. Conway


como Exposition of Aristotle's Treatise On the Heavens, em dois volumes (College of St.
Mary of the Springs, 1964). Referências são por livro e número de palestra.

In DH - Expositio in librum Boethii De hebdomadibus. Traduzido por Ralph McInerny como


“How are Things Good? Exposition of On the Hebdomads of Boethius,” em Ralph McInerny,

1
ed., Thomas Aquinas, Selected Writings (Penguin Books, 1998).

In Meta - Sententia super Metaphysicam. Traduzido por John P. Rowan como Commentary
on Aristotle’s Metaphysics (Dumb Ox Books, 1995). Referências são por livro, número de
lição e número de parágrafo.

In NE - Sententia libri Ethicorum. Traduzido por C. J. Litzinger como Commentary on


Aristotle's Nicomachean Ethics (Dumb Ox Books, 1993). As referências são por livro, número
de aula e número do parágrafo.

In PA - Sententia super Posteriora Analytica. Traduzido por Richard Berquist como


Commentary on Aristotle's Posterior Analytics (Dumb Ox Books, 2007). Referências são por
livro e número de seção.

In Phys - Sententia super Physicam. Traduzido por Richard J. Blackwell, Richard J. Spath, e
W. Edmund Thirlkel como Commentary on Aristotle's Physics (Dumb Ox Books, 1999).
Referências são por livro, número de palestra e número de lição.

QDA - Quaestiones disputatae de anima. Traduzido por John Patrick Rowance como The
Soul (B. Herder, 1949). Referências são por número de artigo.

QDM - Quaestiones disputatae de malo. Traduzido por Richard Regan como On Evil, ed.
Brian Davies (Oxford University Press, 2003). Referências são por número de questão e
número de artigo.

QDP - Quaestiones disputatae de potentia Dei. Traduzido por Lawrence Shapcote como On
the Power of God (Newman Press, 1932; reimpresso por Wipf and Stock, 2004). Referências
são por número de questão e número de artigo.

QDV - Quaestiones disputatae de veritate. Traduzido por Robert W. Mulligan, James V.


McGlynn, e Robert W. Schmidt como Truth, em três volumes (Henry Regnery Company,
1954; reimpresso por Hackett Publishing Company, 1994). Referências são por número de
questão e número de artigo.

SCG - Summa contra gentiles. Traduzido por Anton C. Pegis, James F. Anderson, Vernon J.
Bourke, e Charles J. O’Neil como On the Truth of the Catholic Faith, em cinco volumes
(Doubleday, 1955–1957; reimpresso como Summa Contra Gentiles pela the University of
Notre Dame Press, 1975). Referências são por livro, capítulo e número de parágrafo.

SENT - Scriptum super libros Sententiarum. Comentário às Sentenças de Pedro Lombardo,


excerto traduzido por Timothy McDermott em Timothy McDermott, ed., Thomas Aquinas,
Selected Philosophical Writings (Oxford University Press, 1993).

ST - Summa theologiae. Traduzido pelos Pais da Província Dominicana Inglesa como The
Summa Theologica, em cinco volumes (Christian Classics, 1981). Referências são por parte,
número de questão e número de artigo.

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"Se queremos estudar Tomás de Aquino, devemos tratar tão importantemente o que ele
considerava importante. Estudar Tomás de Aquino como Tomás de Aquino é, no máximo, um
elogio ruim, pois ele mesmo pouco se importava com Tomás de Aquino, enquanto ele se
importava com Deus e com a ciência." — C. F. J. Martin, Thomas Aquinas: God and
Explanations, p. 203.

Uma abordagem para o estudo da história da filosofia é situar os grandes pensadores do


passado dentro dos contextos históricos em que trabalhavam e determinar quais
circunstâncias sociais, políticas, culturais e filosóficas influenciaram suas ideias. Essa
abordagem certamente tem seu valor, especialmente na medida em que pode nos ajudar a
entender corretamente o que um filósofo quis dizer nisso ou naquilo. Se perseguida com
muita determinação, no entanto, ela pode nos distrair daquilo que os próprios pensadores
consideravam importante. Os filósofos do passado não escreviam para refletir seus tempos
ou para fornecer informações para futuros historiadores. Seu trabalho pretendia apontar
além para outra coisa - para a verdade sobre as coisas - e o que importa, em última análise,
é se eles conseguiram. Como o próprio Tomás de Aquino uma vez escreveu, “o estudo da
filosofia não é sobre o que os indivíduos pensam, mas sobre o jeito que as coisas são” (In DC
I.22). Este é o ponto da observação de Christopher Martin citada acima. O principal valor de
estudar o que Tomás de Aquino ou qualquer outro pensador disse sobre Deus, ciência ou
qualquer outro tópico é descobrir se o que eles disseram é verdade, ou se pelo menos nos
leva mais perto da verdade. Como Martin acrescenta, estudando um pensador do passado,
especificamente, tem valor na medida em que pode nos ajudar a determinar se o que
levamos por inequívoco no presente é verdadeiro: Se queremos saber sobre a existência de
Deus ou sobre a natureza da ciência, devemos ler Tomás de Aquino, não apenas os
escritores deste século ... O grande benefício a ser derivado da leitura dos autores pré-
modernos é perceber que, afinal, nós [modernos] podemos ter nos enganado. Que o
trabalho de Tomás de Aquino deve ser lido como um desafio para nós hoje - e um desafio,
como veremos, não apenas para nossas conclusões, mas para muitas de nossas premissas
também - é um tema central que iremos abordar. Quer alguém pense que, em última
análise, o desafio seja bem-sucedido ou não, é importante tratar Tomás de Aquino como,
neste caso, um autor vivo, ao invés de uma 'peça de museu'. A referência de Martin à
"ciência" pode parecer estranha para alguns leitores. Não era Tomás de Aquino filósofo e
teólogo, em oposição a cientista? E dado a sua preocupação com Deus e outros assuntos
religiosos, suas opiniões não eram questões de fé, em oposição a razão e ciência? No
entanto, as suposições por trás de tais perguntas são exatamente do tipo que Santo Tomás
desafia. Para Tomás de Aquino, uma ciência é um corpo organizado de conhecimento dos
fatos sobre alguma área de estudo e suas causas ou explicações (Sententia super Posteriora
Analytica I.4); e embora isso inclua os campos normalmente considerados hoje como
paradigmaticamente científicos (física, biologia etc.), também inclui metafísica, ética e até
teologia. Além disso, essas últimas ciências são tão racionais quanto as quais estamos

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familiarizados hoje. Para ter certeza, uma parte de teologia (que é geralmente chamada de
“teologia revelada”) baseia-se no que Tomás de Aquino considera verdades que nos foram
reveladas por Deus. Nessa extensão, teologia é baseada na fé. Mas "fé", para Tomás de
Aquino, não significa acreditar irracionalmente em algo para o qual não há evidências. É , na
verdade, uma questão de crer em algo com base na autoridade divina (ST II-II.4.1), onde o
fato de que aquilo realmente foi revelado por Deus pode ser confirmado pelos milagres
realizados por quem Deus os revelou (ST II-II.2.9). De qualquer forma, há outra parte da
teologia (conhecida como “teologia natural”) que não depende da fé, mas diz respeito a
verdades sobre Deus que podem ser conhecidas apenas pela razão. São esses argumentos
puramente filosóficos da teologia natural com os quais nos preocuparemos por aqui,
juntamente com as visões de Tomás da metafísica, ética e psicologia (que inclui o estudo da
mente humana, mas vai muito além disso, como nós veremos).

Vida e obras de Tomás de Aquino

Tomás nasceu por volta de 1225 em Roccasecca, perto da cidade de Aquino, no sul da Itália,
de onde derivou o nome de sua família aristocrata (daí o apelido de "Aquino"). Aos cinco
anos, ele foi enviado pelos pais para ser educado na abadia beneditina de Monte Cassino,
na esperança de estabelecer ele no caminho para eventualmente alcançar a posição de
prestígio do abade. Mas enquanto estudava em Nápoles quando adolescente, Tomás de
Aquino ficou sob a influência da nova Ordem dos Frades Pregadores, também conhecidos
como dominicanos, em homenagem ao seu fundador, São Domingos de Gusmão. Atraído
por sua dedicação ao estudo e ensino, ele juntou-se à ordem aos dezenove anos, para
grande desgosto de sua família, cujas ambições mundanas não coincidiam com a vida
dominicana de pobreza e simplicidade de Tomás. Na esperança de fazê-lo mudar de idéia,
seus irmãos o sequestraram e colocaram-no em prisão domiciliar no castelo da família em
Roccasecca por cerca de um ano, embora ele tenha passado o tempo todo comprometido
com a memorização da Bíblia inteira e os quatro livros das Sentenças de Pedro Lombardo
(escritos teológicos então amplamente utilizados). Notoriamente, eles até foram foram
longe o suficiente a ponto de enviar uma prostituta para o quarto de Tomás em uma
ocasião, mas ele perseguiu-a e afastou-a com uma vara flamejante puxada da lareira, que
ele depois usou para fazer o sinal da cruz na parede. Como conta a história, ele ajoelhou-se
diante da cruz e orou pelo dom da castidade perpétua, que ele recebeu nas mãos de dois
anjos que cingiram seus lombos com um cordão milagroso. Eventualmente, seus irmãos
cederam e ele foi autorizado a voltar para os dominicanos. Enquanto aluno no que se
tornaria o centro de estudos da ordem em Colônia, Tomás de Aquino adquiriu o apelido
pouco lisonjeiro "o Boi Burro", devido ao seu caráter taciturno juntamente com sua
corpulência considerável. A primeira característica devida em grande parte a uma humilde
relutância em chamar à atenção para si mesmo, e apesar de sua 'portabilidade', é dito que
Santo Tomás comia apenas uma vez por dia, para dedicar mais plenamente ao seu trabalho.
De qualquer forma, sua genialidade não demorou muito tempo para tornar-se evidente,

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levando seu mentor Alberto, o Grande (c. 1200–1280) a prever que o "berro" do boi seria
um dia ouvido em todo o mundo. As obras de Aristóteles (384-322 a.C.) durante o século
anterior tornaram-se, mais uma vez, disponíveis para estudiosos do ocidente latino, o que
levou a um renovado interesse em sua filosofia, e Alberto era na época o principal pensador
desse ressurgimento aristotélico. Tomás de Aquino se tornaria o proponente mais influente
de Aristóteles, e foi-lhe sugerido por Alberto em 1252 uma posição como professor na
Universidade de Paris, onde Tomás de Aquino foi um grande sucesso. Aparentemente,
durante esse período, ele compôs curtos tratados "Sobre os Princípios da Natureza" e
"Sobre o Ser e a Essência", que estabeleceram suas ideias metafísicas básicas. Este período
também deu origem ao tratado muito mais extenso das questões disputadas "Sobre a
Verdade". Depois de 1259, Tomás de Aquino retornou à Itália e produziu a gigantesca Suma
Contra os Gentios (Summa Contra Gentiles), um tratado dedicado à defesa das
reivindicações do cristianismo ortodoxo contra uma ampla variedade de objeções
apresentadas por judeus, muçulmanos, pagãos e hereges. Depois disso, ele começou a
trabalhar na ainda mais massiva (e nunca concluída) Suma Teológica (Summa Theologiae),
um tratamento sistemático de todas as principais questões teológicas organizadas em torno
do tema de como as coisas derivam, acabam e estão destinadas a retornar a Deus, sua
primeira causa e último fim. Ao longo do caminho, ele lida com uma ampla variedade de
tópicos em metafísica, ética, psicologia e outros assuntos. Essas duas Sumas são geralmente
consideradas como as obras-primas de Santo Tomás de Aquino. No decorrer do trabalho na
segunda, ele iria também produzir muitos outros trabalhos, aparentemente destinados em
parte como tratamentos preliminares de certos tópicos a serem tratados na Summa
Theologiae. Estes incluíam tratados de questões controversas "Sobre o poder de Deus" e
"Sobre a Alma" e uma série de comentários sobre as obras de Aristóteles. Este último
projeto de comentário também tinha outro propósito, um para o qual o eventual retorno de
Tomás de Aquino à Paris pode estar relacionado.O uso da filosofia de Aristóteles em expor e
defender a doutrina cristã foi altamente controverso nos dias de Tomás. Aristóteles havia
tomado várias posições (como a visão de que o universo não teve começo, por exemplo)
que pareciam incompatíveis com as reivindicações do cristianismo. O mesmo aconteceu
com os seguidores de Averróis (1126-1198), o filósofo muçulmano cuja interpretação de
Aristóteles foi considerada por muitos como autoritária. Os Averroístas sustentaram, por
exemplo, que a raça humana compartilha um único intelecto, o que parece incompatível
com a noção de que cada ser humano tem uma alma imortal individual. Os teólogos
tradicionais consideravam o aristotelismo como teologicamente perigoso, e preferiam, em
geral, a tradição neoplatônica e o agostinismo em particular, como mais adequado às
necessidades da teologia cristã. A controvérsia entre defensores e críticos do aristotelismo
foi particularmente feroz no Universidade de Paris e Tomás de Aquino estava determinado a
mostrar que, quando entendida, a filosofia de Aristóteles não era apenas compatível com o
cristianismo, mas o melhor meio de expô-la e defendê-la. Com efeito, ele tomou uma
posição intermediária entre o Averroísmo e o Agostinismo, procurando evitar os extremos
do primeiro, mostrando que os elementos-chave da tradição do último poderia ser
incorporada a uma visão de mundo amplamente aristotélica. O resultado foi uma síntese
única que desde então passou a ser conhecida como tomismo (após "Tomás", o nome pelo

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qual Aquino era conhecido durante sua vida). Em 1272, Tomás voltou mais uma vez à Itália.
Enquanto fazia a missa em Nápoles um dia, em 1273, ele entrou em transe e
aparentemente teve uma experiência, após a qual não conseguiu retomar o trabalho na
Summa Theologiae. Famosamente, ele explicou que depois do que tinha visto, tudo que ele
havia escrito agora parecia-lhe "palha". Convocado para participar do Segunda Conselho de
Lyon, ele aparentemente bateu a cabeça em um galho de árvore baixo durante a viagem e
sofreu uma lesão grave. Ele foi levado para a abadia cisterciense em Fossanova, onde
recebeu cuidados dos monges, mas morreu em 7 de março de 1274.

Além de sua profunda humildade, os traços de caráter mais notáveis pelos quais ficou
conhecido Tomás de Aquino foram sua profunda piedade e uma capacidade espantosa de
pensamento abstrato sustentado. Dizem que ele era tão obstinado em sua devoção a Deus
que ele sairía da sala se a discussão mudasse para algum assunto não relacionado. Ele
poderia se tornar tão absorvido em oração ou em uma cadeia de raciocínio, filosófico ou
teológico, que ele às vezes esquecia onde estava, deixando de perceber as pessoas ao seu
redor, e até (como um conta) não percebendo a chama de uma vela que ele estava
segurando enquanto ela queimava a mão dele. De acordo com outra história famosa,
enquanto jantava com Rei Luís IX da França e pensava na heresia maniqueísta, atingiu a
mesa exclamando "Isso refuta os maniqueus!" e pediu ao seu secretário para anotar o
argumento que acabara de lhe ocorrer. De repente, percebendo onde ele estava, Tomás de
Aquino pediu desculpas e explicou aos outro convidados, surpreso, que ele pensava que
estava sozinho em seu quarto. Relacionado à essa tendência, a abstração parece ter sido
uma extraordinária inflexibilidade. Anscombe e Geach contam uma história segundo a qual
Tomás encontrou "uma freira sagrada que costumava ser levitada em êxtase". A reação dele
foi comentar o tamanho dos pés dela. "Isso fez ela sair de seu êxtase em indignação com
sua grosseria, ao que ele gentilmente aconselhou-a a buscar maior humildade.”

Metafísica

Mesmo entre os filósofos contemporâneos que não estão familiarizados com seu trabalho,
é bem sabido que Tomás de Aquino sustentava que a existência de Deus, a imortalidade da
alma, e o conteúdo e força vinculativa da natureza à lei moral poderia ser estabelecido
através de argumentos puramente filosóficos (em oposição a um apelo à revelação divina).
Mas esses argumentos em si são, em geral, muito mal compreendidos por aqueles que não
são especialistas em Tomás de Aquino. A razão é que a maioria dos filósofos
contemporâneos tem pouca ou nenhuma consciência do quão radicalmente diferente as
suposições metafísicas fundamentais de filósofos antigos e medievais eram, em geral, das
suposições tipicamente feitas pelos primeiros filósofos modernos e seus sucessores. Há uma
concepção distinta de causalidade, essência, forma, matéria, substância, atributo e outras
noções metafísicas básicas subjacentes a todos os argumentos de Tomás de Aquino em
filosofia da religião, filosofia da mente e ética; e é uma concepção muito contraditória com

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os tipos de pontos de vista encontrados em Descartes, Locke, Hume, Kant e outros
fundadores da filosofia moderna. Embora a maioria dos filósofos contemporâneos
provavelmente não identificam-se como cartesianos, lockeanos, humeanos, kantianos ou
similares, seu pensamento sobre os conceitos metafísicos que observaremos, no entanto,
tende, inconscientemente, a confinar-se dentro dos limites estreitos estabelecidos por esses
primeiros pensadores modernos. Por isso, quando se deparam com um filósofo como
Tomás de Aquino, impensadamente, lerão seus argumentos filosóficos como pressupostos
modernos que ele teria rejeitado.

Ato e potência

Até agora, isso tudo pode parecer bastante direto, mas há mais na distinção entre ato e
potência do que aparenta haver. Primeiro de tudo, alguns filósofos analíticos
contemporâneos podem objetar que algo é "potencialmente" quase tudo, de modo que a
distinção de Aristóteles é desinteressante. Por exemplo, pode ser dito por esses filósofos
que podemos “conceber” um “possível mundo”, onde as bolas de borracha podem saltar
daqui para a lua, mover-se por si mesmas e seguir as pessoas, ameaçadoramente. Mas as
potencialidades das quais Aristóteles e Santo Tomás de Aquino têm em mente são aquelas
enraizadas na natureza das coisas como elas realmente existem, e não incluem qualquer
coisa que possa ser "possivelmente", em algum sentido expandido e solto, envolvendo
nossa concepção. Portanto, enquanto uma bola de borracha tem o potencial de ser
derretida, no sentido aristotélico, ela não tem o potencial de saltar para a lua ou seguir
alguém por si só. Segundo, e como já indicado, embora as potências de uma coisa sejam a
chave para o entendimento de como é possível a mudança, elas são meramente
necessárias, e não uma condição suficiente para a ocorrência real de mudança. O fator
externo adicional também é necessário. "Pegajosidade" em potência, por exemplo,
precisamente porque é meramente potencial, não pode se atualizar sozinha; somente outra
coisa que já está em ato (como calor) pode realizar o trabalho. Considere, também, além
disso, que, se uma mera potência pudesse se elevar ao ato por si mesma, não haveria como
explicar o por que de isso acontecer algumas vezes e outras não. A bola derrete e fica
pegajosa quando você a aquece. Por que o potencial de ser pegajosa se tornou ato
exatamente nesse ponto? A resposta óbvia é que o calor era necessário para atualizá-la. Se
a potência da "pegajosidade" pudesse ter se atualizado sozinha, isso já haveria acontecido,
já que o potencial já existia. Portanto, ser e não ser não são os únicos fatores relevantes
aqui; também há potencialidades de uma coisa. Ou, para usar o jargão escolástico
tradicional, além das diferentes maneiras pelas quais uma coisa pode estar “em ato” ou
realmente ser, existem várias maneiras pelas quais ela pode ser "em potência" ou
potencialmente. Aqui está a chave para entender como a mudança é possível. Se a bola ficar
macia e pegajosa, não pode ser a "pegajosidade" em si que causa isso, visto que ela ainda
não existe. Mas, que a "pegajosidade" é inexistente, não é (como Parmênides assumiu) o
fim da história, pois um potencial ou potência de pegajosidade existe na bola, e isso,
juntamente com alguma influência externa, (como o calor) que atualiza esse potencial - ou,

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como diriam os escolásticos, que reduz a potência a ato - é o suficiente para mostrar como a
mudança pode ocorrer. Mudança é apenas a redução de alguma potencialidade; ou, como
diz Santo Tomás , “movimento é a atualização de um ser em potência”, (Sententia super
Metaphysicam IX.1.1770) onde movimento deve ser entendido aqui no amplo sentido
aristotélico de mudança e de movimento geral e não apenas deslocação de um lugar para
outro.

Até agora, isso tudo pode parecer bastante direto, mas há mais na distinção entre ato e
potência do que aparenta haver. Primeiro de tudo, alguns filósofos analíticos
contemporâneos podem objetar que algo é "potencialmente" quase tudo, de modo que a
distinção de Aristóteles é desinteressante. Por exemplo, pode ser dito por esses filósofos
que podemos “conceber” um “possível mundo”, onde as bolas de borracha podem saltar
daqui para a lua, mover-se por si mesmas e seguir as pessoas, ameaçadoramente. Mas as
potencialidades das quais Aristóteles e Santo Tomás de Aquino têm em mente são aquelas
enraizadas na natureza das coisas como elas realmente existem, e não incluem qualquer
coisa que possa ser "possivelmente", em algum sentido expandido e solto, envolvendo
nossa concepção. Portanto, enquanto uma bola de borracha tem o potencial de ser
derretida, no sentido aristotélico, ela não tem o potencial de saltar para a lua ou seguir
alguém por si só. Segundo, e como já indicado, embora as potências de uma coisa sejam a
chave para o entendimento de como é possível a mudança, elas são meramente
necessárias, e não uma condição suficiente para a ocorrência real de mudança. O fator
externo adicional também é necessário. "Pegajosidade" em potência, por exemplo,
precisamente porque é meramente potencial, não pode se atualizar sozinha; somente outra
coisa que já está em ato (como calor) pode realizar o trabalho. Considere, também, além
disso, que, se uma mera potência pudesse se elevar ao ato por si mesma, não haveria como
explicar o por que de isso acontecer algumas vezes e outras não. A bola derrete e fica
pegajosa quando você a aquece. Por que o potencial de ser pegajosa se tornou ato
exatamente nesse ponto? A resposta óbvia é que o calor era necessário para atualizá-la. Se
a potência da "pegajosidade" pudesse ter se atualizado sozinha, isso já haveria acontecido,
já que o potencial já existia.

Então, como Santo Tomás diz: “a potência não se eleva para o ato; ela deve ser elevada
para o ato por algo que já está no ato.” (SCG I.16.3). Essa é a fundação do princípio
aristotélico-tomista de que “tudo o que é movido é movido por outro” (Sententia super
Physicam VII.2.891). (O princípio é verdadeiro, aliás, mesmo para animais que parecem, à
primeira vista, se mover ou mudar a si mesmos; para quê isso sempre equivale a realmente
apenas uma parte do animal sendo alterada por outra parte. Um cão "se move" em volta de
uma sala, mas apenas na medida em que o potencial de movimento nas pernas do cão é
atualizado pela flexão dos músculos da perna, e seu potencial de flexão é realizado pelo
disparo de neurônios motores, e o potencial para os neurônios motores é disparado é
atualizado por outros neurônios; e assim por diante.) Terceiro, enquanto ato e potência são
tornados inteligíveis para nós em relação a cada um deles mesmos, por outro lado, existe
uma assimetria entre eles de tal forma que o potencial é anterior à potência” (SCG I.16.3).
Um potencial é sempre um potencial para um certo tipo de realidade; por exemplo, a

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"pegajosidade" potencial é apenas o potencial para ser realmente pegajoso, ou pegajoso em
ato.

Aliás, a potência não pode existir por si só, mas apenas em combinação com o ato;
portanto,"pegajosidade" em potencial não existe por si só, mas apenas em algo como uma
bola de borracha real. É incoerente falar de algo como existente e sendo puramente
potencial, sem nenhuma atualidade. Mas não é incoerente falar de algo como sendo
puramente ato, sem nenhuma potencialidade. (De fato, como veremos, isso é precisamente
o que Deus é: actus purus em latim ou, "puro ato".) Então, enquanto para entendermos o
ato e a potência, precisamos contrastá-los com o outro, no mundo real fora da mente, a
atualidade pode existir por si mesma enquanto a potencialidade não pode. Como ficará
evidente, a distinção entre ato e potência forma a base de toda o sistema metafísico de
Santo Tomás; e, como se tornará igualmente evidente no final deste canal, as repercussões
dessa distinção fundamental se estendem muito além da metafísica. Não é à toa que a
primeira das famosas vinte e quatro teses tomistas afirma que: “potência e ato dividem o
ser de tal maneira que seja o que for, é puro ato, ou, necessariamente, é composto de
potência e de ato, como princípios primários e intrínsecos". (Isso ecoa a própria afirmação
de que “potência e ato dividem o ser e todo tipo de ser” [ST I.77.1].)

Hilemorfismo

Dado o que foi dito até agora, Tomás de Aquino, seguindo Aristóteles, conclui que “em tudo
que é movido, há algum tipo de composição a ser encontrado” (ST I.9.1), em particular, uma
composição de ato e potência. Possivelmente um pouco mais conhecido pelos leitores
modernos, essa é uma doutrina aristotélica relacionada ao efeito de que os objetos comuns
de nossa experiência são compostos de forma e matéria - uma doutrina conhecida como
hilemorfismo (às vezes “hilomorfismo”) após as palavras gregas hyle (“matéria”) e morfe
("forma"). Por exemplo, a bola de borracha do nosso exemplo de antes é composta por um
certo tipo de matéria (borracha) e um certo tipo de forma (a forma redonda, vermelha, e
saltitante). A questão por si só não é a matéria, pois a borracha pode assumir a forma de um
pneu, uma borracha escolar ou qualquer outro número de coisas. A forma por si só também
não é a bola, pois você não pode quicar a "vermelhidão", a "redondeza", ou até a
"quicanteza" pelo corredor, sendo estas meras abstrações. Somente a forma e a matéria
juntas constituem a bola. A diferença entre a distinção ato/potência e a distinção
forma/matéria é de generalidade. Qualquer coisa composta de forma e matéria é, também,
composta de ato e potência, mas existem compostos de ato e potência que não tem
matéria (a saber, anjos, como veremos mais adiante). Ser compostos de forma e matéria é a
maneira específica pela qual as coisas de nossa experiência cotidiana são capazes de sofrer
mudanças. Às vezes, essas alterações dizem respeito a algum recurso não essencial, como
quando a bola vermelha é pintada de azul, mas continua sendo uma bola. Às vezes, envolve
algo essencial, como quando a bola é derretida em uma poça de gosma e, assim, não pode
mais ser considerada uma bola. Tomás de Aquino se refere ao primeiro tipo de mudança

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como uma mudança de acidentes, e a este último como uma mudança de substância, e
correspondente a cada um, é um tipo distinto de forma: "O que faz algo existir
substancialmente é chamado de forma substancial, e o que faz algo existir acidentalmente é
chamada forma acidental” (DPN 1.3).

Para uma bola apenas mudar de cor, é uma questão de perder uma forma acidental e
assumir outra, mantendo a forma substancial de uma bola e permanecendo assim, a mesma
substância, ou seja, uma bola. Para uma bola ser derretida em gosma, é perder uma forma
substancial e assumir outra, tornando-se assim um tipo completamente diferente de
substância, a saber, uma poça de gosma. Agora, a gosma em si pode ser dividida em
componentes químicos mais básicos. Mas o que isso envolveria é a questão subjacente à
gosma assumindo formas substanciais ainda diferentes. Para ter certeza, Tomás de Aquino
nos diz que “o que está em potência para existir substancialmente é chamado de matéria
prima (ou matéria primeira)" (DPN 1.2), ou seja, podemos distinguir entre matéria que não
tem forma alguma (matéria prima) e as várias formas substanciais que ela tem o potencial
de assumir. Mas essa distinção é puramente conceitual. Na realidade, de qualquer forma
que matéria for transformada, ela sempre terá alguma forma substancial ou outra e,
portanto, conta como uma substância de um tipo ou outro; estritamente falando, “como
toda cognição e toda definição são feitas através da forma, segue-se que matéria prima
pode ser conhecida ou definida, não por si só, mas através do compósito” (DPN 2.14). A
noção de matéria prima é apenas a noção de algo em pura potencialidade em relação a ter
qualquer tipo de forma, e portanto, com relação a ser qualquer tipo de coisa. Como isso
indica, o hilemorfismo é tudo menos uma posição metafísica reducionista (isto é, uma
alegando que alguns fenômenos aparentemente diversos ou complexos, na realidade,
consistem em “nada além de” alguns mais uniformes, ou de um conjunto mais simples de
elementos).

Certamente, está em desacordo com o materialismo contemporâneo; a sugestão de que "a


matéria é tudo o que existe" torna-se simplesmente incoerente em uma concepção
hilemórfica da matéria, já que a matéria por si só sem qualquer outra coisa (incluindo
qualquer forma) seria apenas inexistente. Além disso, enquanto o hilemorfista sustenta que
as substâncias de nossa experiência são compostas de forma e matéria, forma e matéria em
si, por sua vez, não podem ser entendidas, exceto em relação a todas as substâncias das
quais eles são componentes. Portanto, o relato hilemórfico é holístico e, de forma
nenhuma, uma “redução” de substâncias até a sua forma e matéria juntas. Isso também
indica que a concepção de "forma" de Aristóteles e Tomás de Aquino é diferente da de
Platão. Na análise hilemórfica, considerada à parte as substâncias que os possuem, forma e
matéria são meras abstrações; Não há nenhuma forma da bola, além da matéria que essa
forma tem, e, não importa para a bola nada além da forma que a torna especificamente
uma bola. Em particular, a forma de bola não existe em um “céu platônico” de objetos
abstratos fora do tempo e do espaço. Mesmo assim, Aristóteles e Tomás de Aquino são,
como Platão, realistas sobre universais: quando compreendemos "humanidade",
"triangularidade" e coisas do gênero, o que apreendemos não são meras invenções da

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mente humana, mas fundamentações nas naturezas reais de seres humanos, triângulos, etc.

Além disso, embora (contra Platão) não exista outra forma além de algumas substâncias
individuais específicas que a instanciam, nem todas as formas existem em uma substância
material. Podem haver formas sem matéria e, portanto, substâncias imateriais -
nomeadamente, para Aquino, anjos e almas humanas 'post-mortem'. Isso recapitula uma
assimetria observada anteriormente: "assim como o ato pode existir sem potência, mesmo
que a potência não possa existir sem ato, também a forma pode existir sem matéria,
mesmo que a matéria não possa existir sem forma" (De ente et essentia 4). Em qualquer
evento, no que se refere à forma e à matéria, enquanto estão implicados na explicação de
como as coisas acontecem e passam, elas não são, elas mesmas, os tipos de coisas que
acontecem e passam. Como Tomás de Aquino argumenta, "devemos notar que a matéria
prima e até a forma não são geradas nem corrompidas, na medida em que toda geração é
de algo para algo. Aquilo de onde a geração surge é matéria; aquilo para o qual procede é a
forma. Se, portanto, matéria e forma fossem geradas, haveria uma questão de matéria da
matéria e uma forma da forma ad infinitum. Portanto, propriamente falando, apenas
compósitos são gerados." (DPN 2.15). No entanto, como veremos adiante, isso não implica
que a existência de forma e matéria não precisem de explicação.

As quatro causas

Falando de explicação neste contexto naturalmente nos leva à mais famosa das doutrinas
metafísicas aristotélicas, a doutrina das quatro causas - causa material, formal, eficiente, e
final - uma doutrina com a qual Tomás de Aquino era totalmente comprometido (DPN 3.20).
Volte novamente à bola de borracha do nosso exemplo anterior. A causa material ou o
material subjacente de que a bola é feita é a borracha; sua causa formal ou a forma, padrão
ou estrutura que exibe, compreende características como esfericidade, solidez, elasticidade,
etc. Em outras palavras, as causas material e formal de uma coisa são apenas sua matéria e
forma, consideradas como dois aspectos de uma explicação completa sobre isso.

Em seguida, temos a causa eficiente, aquela que atualiza uma potência e, assim, cria algo.
Nesse caso, seriam as ações dos trabalhadores e/ou as máquinas na fábrica em que a bola
foi feita, visto que eles moldaram a borracha na bola. Por fim, temos a causa final ou o fim,
o objetivo ou propósito de uma coisa, que no caso da bola pode ser a diversão para uma
criança, por exemplo. Em combinação, essas causas fornecem uma explicação completa de
uma coisa. Isso não significa que, no caso da bola, por exemplo, você não teria mais
perguntas a fazer sobre ela, como de onde a borracha veio ou quem fez a fábrica. Mas as
respostas a essas perguntas serão, todas, apenas instâncias mais aprofundadas da causa
material, formal, eficiente e final. As quatro causas são completamente gerais, aplicando-se
à toda a natureza do mundo, e não apenas aos artefatos humanos. Os órgãos biológicos
fornecem os exemplos mais óbvios. Por exemplo, para entender o que é um coração, você

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precisa conhecer sua causa material, ou seja, que é feito de tecido muscular de um certo
tipo. Mas existem muitos músculos no corpo que não são corações, então você também
precisa conhecer sua causa formal e, assim, coisas como o músculo e o tecido serem
organizados em ventrículos, átrios e similares. Depois, há a causa eficiente, que neste caso
seriam os processos biológicos que determinaram que certas células embrionárias
formariam um coração em vez de digamos, um rim ou um cérebro. Finalmente, há a causa
final do coração, a saber: serve a função de bombear sangue para as diversas partes do
corpo.

Mas órgãos e processos biológicos não são, de maneira alguma, os únicos tipos de
fenômenos naturais que exibem causalidade final, e é um erro supor (como costuma ser
feito) que falar de causas finais é simplesmente outra maneira de falar sobre funções ou
objetivos. Todas as funções são exemplos de causalidade final, mas nem toda causalidade
final envolve ter uma função, se por “função” nós queremos dizer o tipo de papel que um
órgão corporal desempenha na vida de um animal ou o papel de uma parte mecânica
desempenha no funcionamento de uma máquina. Para o aristotélico, causalidade final ou
teleologia (para usar uma expressão mais moderna) é evidente sempre que algum objeto ou
processo natural tende a produzir algum efeito particular ou uma gama de efeitos. Um
fósforo, por exemplo, gera, de maneira confiável, chama e calor quando acendido, - por
assim dizer - e, nunca (digamos) gera gelo e frio, ou o cheiro de flores, ou trovões.

O fósforo, por inerência, "aponta para" ou é "direcionado a" esse intervalo especificamente,
e dessa maneira manifesta exatamente o tipo de direção final ou objetivo característico da
causalidade final, mesmo que o fósforo não (ao contrário de um coração ou um carburador)
funcione como parte orgânica de um sistema maior. A mesma orientação para um
determinado efeito específico ou gama de efeitos é evidente em todas as causas que
operam no mundo natural. Quando os aristotélicos dizem que a causalidade final permeia a
ordem natural, eles não estão fazendo a alegação implausível de que tudo tem uma função
do tipo de órgãos biológicos, incluindo pilhas de sujeira, bolas de pelo e fiapos. Pelo
contrário, eles estão dizendo que orientação à meta existe sempre que causas regulares e
padrões de efeitos existem. Daí que Tomás de Aquino diz que “todo agente age para um
fim: caso contrário, uma coisa não seguiria mais do que a ação do agente, a menos que por
acaso” (ST I.44.4). Por "agente" ele quer dizer não apenas seres pensantes como nós, mas
qualquer coisa que produza efeito. Seu argumento é que, a menos que uma causa fosse
inerentemente direcionada a um certo efeito ou uma variedade de efeitos - isto é, a menos
que esse efeito ou intervalo de efeitos sejam a própria causa final da causa - não haveria
razão para que isso provocasse exatamente esse efeito ou esses efeitos. Em outras palavras,
não podemos entender uma causalidade eficiente sem causalidade final. Elas andam de
mãos dadas, assim como as causas material e formal de algo andam de mãos dadas no
sentido de que a matéria não pode existir sem forma e, de qualquer maneira, no caso
comum, a forma não existe sem matéria.

Ao mesmo tempo, assim como a forma é, em última análise, anterior à matéria (e, mais
geralmente, o ato é anterior à potência), as causas finais são anteriores, ou mais

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fundamentais que as causas eficientes, na medida em que elas tornam as causas eficientes
inteligíveis (DPN 4,25). De fato, para Tomás de Aquino, a causa final é “a causa das causas”
(In Phys II.5.186), aquilo que determina todas as outras causas. Para que algo seja
direcionado a um determinado fim implica que ele tenha uma forma adequada à realização
desse objetivo e, portanto, uma composição material adequada para instanciar esse
formulário; uma faca, por exemplo, para cumprir sua função de corte, deve ter um certo
grau de nitidez e solidez e, portanto, ser feito de algum material capaz de manter esse grau
de nitidez e solidez.

Assim, a existência de causas finais implica a existência de de causas materiais e formais


também. De maneira mais geral, para algo ter alguma característica potencialmente,
envolve um tipo de direcionamento para a atualização desse potencial; como diz Tomás de
Aquino, “uma ordem ou tendência a um ato pertence a uma coisa existindo com potência
para esse ato” (In Phys III.2.285). Daí a existência de causas finais também implica a
distinção ato/potência. Implícito na noção de final, a causalidade é, portanto, todo o
aparato metafísico aristotélico. É importante entender (novamente, ao contrário de um
equívoco comum) que a maior partes das causalidades finais são consideradas pelos
aristotélicos como totalmente inconscientes. Como escreve Tomás de Aquino, “embora
todo agente, seja natural ou voluntário, pretenda um fim, devemos perceber, no entanto,
que não se segue que todo agente conhece ou delibera sobre o fim” (DPN 3.19). O fósforo é
"dirigido para" a produção de fogo e calor, a lua é "direcionada para" o movimento ao redor
da terra e assim por diante. Mas nem o fósforo nem a lua estão cientes destes "objetivos".
O fósforo não está pensando em "preciso gerar calor" e a lua não está pensando "eu devo
dar a volta na terra", pois é claro que nenhum deles está pensando em nada.

Para os aristotélicos, nossos processos de pensamentos conscientes são apenas um caso


especial do fenômeno mais geral de direcionamento de fins ou causalidade final, que existe
no mundo natural de uma maneira principalmente divorciada de qualquer mente ou
inteligência consciente. 'Pretender um fim', no sentido que Tomás de Aquino tem em mente
na passagem citada não é necessariamente tomar uma decisão consciente de buscar algum
objetivo, mas apenas “ter uma inclinação natural para algo” (De Principiis Naturae 3.19).
Pretendemos um fim como ir ao supermercado após deliberação consciente, mas o fósforo
"pretende" o fim da geração de calor, o coração "pretende" o fim da circulação o sangue e a
lua "pretende" o fim de se mover pela terra, tudo de uma maneira totalmente inconsciente
e não deliberativa. Como nas causas finais, a noção aristotélica de causalidade eficiente é
muito comumente incompreendida pelos leitores contemporâneos. Das quatro causas, é
dita ser a que mais se aproxima das noções filosóficas modernas de causalidade, mas isso é
enganoso, na melhor das hipóteses. Como já foi observado, para o aristotélico, causas
eficientes não podem ser entendidas além das causas finais, e ainda os filósofos modernos
(por razões que iremos examinar) tendem a negar até mesmo a própria existência de causas
finais.

Esta parece ser a razão pela qual os filósofos modernos têm, pelo menos desde David Hume
(1711-1776), uma tendência a pensar ser 'concebível' a proposição de que qualquer causa

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possa produzir, ou qualquer efeito, ou nenhum. Por exemplo, quando um tijolo é jogado em
direção a um janela, naturalmente esperamos que a janela se quebre, mas, (dizem) pelo
menos em teoria, é possível que o tijolo possa se transformar em um buquê de flores, ou
desaparecer completamente. Causas e efeitos são, nas palavras de Hume,"soltos e
separados", sem "conexão necessária" entre eles. Por isso (continua o argumento
humeano), pode ser que seja apenas a "conjunção constante" de tijolos lançados e janelas
quebradas em nossa experiência que nos leva a esperar o último na presença do primeiro. A
necessidade com a qual pensamos que um produz o outro pode ser apenas um projeção
dessa expectativa, decorrente da subjetividade de nossas tendências psicológicas, e não por
qualquer característica objetiva própria das causas e dos efeitos. Aristóteles e Tomás de
Aquino teriam achado tudo isso ininteligível, em parte porque, para eles, nada conta como
causa eficiente em primeiro lugar, a menos que seja inerentemente ordenado para a
geração de um certo tipo de efeito ou gama de efeitos como sua causa final. Análises
humeanas de causalidade, juntamente com os enigmas filosóficos aos quais elas
notoriamente dão origem, somente são possíveis se alguém rejeitar a noção aristotélica de
causalidade final, e, portanto, rejeitar a noção aristotélica de causalidade eficiente junto
com ela.

Aristóteles e Tomás de Aquino também ficariam confusos com a tendência moderna de


pensar na causalidade essencialmente como uma relação entre ordem temporal de
eventos, uma tendência subjacente à suposição humeana de que é pelo menos concebível
que o tijolo jogado possa resultar em algo diferente da janela quebrada. O tijolo é jogado;
esse é um evento. A janela se despedaça; esse é outro evento. Obviamente, o segundo
evento segue o primeiro no tempo, e é, portanto, distinto disso. Portanto, parece
igualmente óbvio que aquele poderia, em princípio, existir sem o outro, e assim (o filósofo
moderno conclui) que um efeito pode deixar de seguir o seu habitual causa. Mas do ponto
de vista aristotélico, isso é simplesmente um erro na maneira de caracterizar a situação
causal. Para Aristóteles e Tomás de Aquino, as causas são as coisas, e não os eventos; e a
causa eficiente imediata de um efeito é simultâneo a ele, e não temporalmente anterior,
como o humeano julgaria ser.

"Deveria ser entendido em falar de causas reais que, o que causa e o que é causado devem
existir simultaneamente, de modo que, se um existe, o outro também" (DPN 5.34). No caso
da janela quebrada, o ponto chave na série causal seria algo como o empurrão do tijolo em
direção ao vidro e o vidro cedendo. Esses eventos são simultâneos; de fato, o tijolo sendo
empurrado e o vidro cedendo são realmente o mesmo evento considerado sob diferentes
descrições. Ou (para dar um exemplo frequentemente utilizado para ilustrar a concepção
aristotélica de causalidade eficiente) poderíamos pensar em um oleiro (aquele que faz
cerâmica) fazendo um pote, onde o oleiro posicionando sua mão apenas de tal maneira, e o
pote assumindo tal e tal forma são eventos simultâneos e, novamente, o mesmo evento
descrito de duas maneiras diferentes. Em exemplos como esses, simplesmente não é
plausível sugerir que as causas e os efeitos são "soltos e separados", ou que não possuem
nenhuma "conexão necessária". É difícil ver como seria "concebível" que o tijolo,
arremessado ao vidro, pode não ser acompanhado pela destruição do vidro, ou que a mão

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moldando a argila pode ocorrer sem que a argila seja moldada.

As causas e os efeitos são distintos, - o tijolo e sua ação não são iguais ao vidro e sua reação,
e a posição da mão do oleiro não é igual a forma do pote - mas como eles existem em um e
no mesmo evento, não há como recorrer a uma distinção entre eventos para motivar a
alegação de que causa e efeito podem se desfazer. E, quando consideramos o detalhes
específicos da situação causal imediata - falando precisamente, por por exemplo, do tijolo
atravessando o vidro e do vidro cedendo, e não (mais vagamente) de tijolos jogados sendo
seguidos por janelas quebradas - é difícil ver o que poderia significar a sugestão de que essa
causa pode não ser seguida por esse efeito. Hume, notoriamente, também afirma que algo
poderia, em princípio, vir a ser, sem qualquer causa eficiente. Tomás de Aquino negaria isso,
argumentando, como vimos que ele faz. Visto que "a potência não se eleva ao ato" e,
portanto,"o que quer que seja movido é movido por outro", a vinda à existência de algo é
apenas uma instância de movimento ou a atualização de uma potência. De maneira mais
geral, “tudo aquilo cujo ato de existir é diferente de sua natureza [deve] ter seu ato de
existir a partir de outro” (DEE 4). Em outras palavras, o que quer que seja contingente, não
tendo sua existência em virtude de sua própria natureza, deve ser causado a existir por
outra coisa.

Uma consequência disso é que “os efeitos precisam ser proporcionais à suas causas e
princípios" (ST I-II.63.3), tais que “qualquer perfeição que exista em um efeito deve ser
encontrada em sua causa efetiva” (ST I.4.2), visto que uma coisa não pode dar aquilo que
ela não tem. Às vezes, o que existe no efeito existe na causa da mesma maneira que existe
no efeito; isto é, “a forma da coisa gerada pré-existe no gerador de acordo com o mesmo
modo de ser e de maneira semelhante, como quando o fogo gera fogo, ou o homem gera o
homem" (In Meta VII.8.1444). Às vezes, ele existe na causa “nem de acordo com mesmo
modo de ser, nem em uma substância do mesmo tipo", como quando "a forma de uma casa
pré-existe... na mente do construtor” (In Meta VII.8.1445). Às vezes, está na causa “mais
excelentemente, pois o calor está no sol mais excelentemente do que no fogo" (ST I.6.2). E,
às vezes, está na causa “virtualmente, mas não de fato”, como “quando o calor é causado
pelo movimento, o calor é presente em um sentido no próprio movimento, como em uma
potência ativa" ou quando "a forma de dormência está na enguia que deixa a mão
adormecida” (In Meta VII.8.1448-9). Portanto, para usar o jargão escolástico, mesmo que o
efeito nem sempre esteja contido na causa "formalmente", ele ainda estará contido nela
"eminentemente", ou "virtualmente". Este passou a ser conhecido na tradição escolástica
como o 'princípio da causalidade proporcional'. Qualquer coisa que quer que venha a existir,
e, mais geralmente, qualquer coisa contingente, deve ter uma causa. (Esse passou a ser
conhecido como o princípio da causalidade). O famoso ditado de Tomás de Aquino de que
"todo agente age para um fim” é conhecido como o princípio da finalidade.

Esses três princípios são centrais à metafísica geral de Tomás de Aquino e, como veremos, à
seus argumentos a respeito da existência e natureza de Deus em especial. Como nossa
discussão até agora implica, o princípio da finalidade é, em certo sentido, o mais
fundamental deles, dado que a causa final é “a causa das causas"; pois, novamente, na visão

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de Tomás de Aquino, uma causa eficiente pode trazer um efeito somente se for
"direcionada" a esse efeito; e é finalmente nesse sentido que o efeito está "contido" na
causa eficiente. No entanto, como eu tenho dito, os filósofos modernos tendem a rejeitar e
até mesmo dispensar a própria noção de causalidade final; e (sem surpresa, dada essa
circunstância) eles também tendem a rejeitar, ou pelo menos suspeitam, dos outros dois
princípios bastante. No entanto, não está de forma alguma claro que realmente existem
boas razões por essas atitudes, e os três princípios são, em todo caso, eminentemente
defensíveis. Antes de vermos por que, no entanto, vamos concluir nossa pesquisa sobre a
estrutura metafísica tomista, examinando alguns de seus componentes que mais
claramente constituem desenvolvimentos de ideias aristotélicas, além do ponto em que o
próprio Aristóteles as deixou.

Essência e existência

Vimos que Tomás de Aquino, ao contrário de Platão, não considera que as formas das coisas
existam independentemente das substâncias individuais das quais estas são as formas, mas
também, que ele é um realista sobre os universais, e que ele pensa que é possível que
algumas formas existam sem matéria (matéria prima, ou matéria primeira). Para entender
essas doutrinas, precisamos, agora, examinar a doutrina metafísica da essência de Tomás de
Aquino e suas relação com a existência. A essência de uma coisa é exatamente aquilo que a
torna o tipo de coisa que ela é, “aquilo através do qual algo é um certo tipo de ser” (DEE 1).
Isso é também aquilo através do qual uma coisa é inteligível ou capaz de ser apreendida
intelectivamente. Portanto, compreender a humanidade é compreender a essência do ser
humano - aquilo que nos torna humanos - e assim entender o que ser humano é;
compreender a triangularidade é compreender a essência dos triângulos - aquilo que os
torna triângulos - e assim entender o que é um triângulo; e assim por diante. A essência de
uma coisa também pode ser chamada de "natureza", ou “forma” (embora, como veremos,
“forma” às vezes tenha um sentido mais restrito, em que se refere apenas a uma parte da
essência de uma coisa, em oposição à essência propriamente dita). A doutrina de que (pelo
menos algumas) coisas têm essências reais (em oposição a essências meramente
convencionais) é chamada de essencialismo.

Faz parte da essência de um triângulo que ele tem três lados retos, mas não faz parte da
essência dele que ele seja desenhado com a cor azul; vermelho; ou qualquer outra cor, por
exemplo. É por isso que um triângulo permanece um triângulo, seja qual for a cor, mas não
pode continuar a existir, se perder um dos lados. Esse tipo de consideração levou alguns
filósofos analíticos contemporâneos a pensarem na essência de alguma coisa como
definível, em termos de quaisquer recursos que exibisse em todos os mundo possíveis, onde
um "mundo possível" é um processo de descrição completo e logicamente consistente de
como as coisas poderiam ter sido. Triângulos teriam três lados em todos os mundos
possíveis em que existissem, mas não seriam azuis em todos os mundos; e isso (a teoria em
questão sugere) é o que significa dizer que a trilateral é parte da essência de triângulos,

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enquanto a cor azul, não. É importante enfatizar que essa forma contemporânea de
essencialismo, associada a filósofos como Saul Kripke e Hilary Putnam, é (como os tomistas
contemporâneos David Oderberg e Gyula Klima apontaram) muito diferente da forma
aristotélica de essencialismo adotada e desenvolvida por Santo Tomás. Do ponto de vista
aristotélico-tomista, a análise da essência dos mundos possíveis assume as coisas às
avessas: precisamos saber qual é a essência de uma coisa primeiro, antes que possamos
saber como ela seria em vários mundos possíveis; ao falar de mundos possíveis, - se é que
legítimos - devem ser explicados em termos de essência, não essência em termos de
mundos possíveis.

Além disso, a análise de mundos possíveis elimina uma distinção muito importante,
bastante enfatizada no essencialismo aristotélico. Considere a racionalidade de Sócrates e
sua capacidade de aprender idiomas (emprestando um exemplo do filósofo Christopher
Shields). Sócrates tem isso em todos os mundos possíveis em que ele existe, e assim,
(conclui o essencialista contemporâneo, que) ambas as características são essenciais para
ele. Entretanto, do ponto de vista aristotélico, a capacidade de Sócrates de aprender
idiomas, embora um de seus recursos necessários - para ele perdê-lo implica que ele deixa
de existir - não é, no entanto, tão essencial à ele quanto a sua racionalidade é. O motivo
para isso é que a sua capacidade de aprender idiomas deriva de sua racionalidade; sua
necessidade, embora real, é, portanto, uma necessidade derivada. São somente aquelas
características de algo que não são derivadas desta maneira, que podem, do ponto de vista
aristotélico, contar como parte da essência de uma coisa. Essas características decorrentes
da essência, como a capacidade de Sócrates de aprender idiomas, são chamadas de
"propriedades", pois são adequadas de uma maneira que suas características puramente
contingentes (como Sócrates estar em Atenas, ter sido um soldado, ou estar deitado, por
exemplo) não estão. ("Propriedade" tem uma conotação diferente na metafísica aristotélica
do que entre filósofos mais modernos e contemporâneos, que o usam como mais ou menos
um sinônimo do que Tomás de Aquino chamaria de "acidente", aquilo que existe apenas
como um atributo de uma substância, como por exemplo a cor vermelha, que existe apenas
nas coisas vermelhas.)

Dizer que humanidade é aquilo que faz de todos nós seres humanos implica que essa
essência é algo compartilhado por todos nós, que todos os humanos tem a mesma essência;
e, em geral, que a essência de uma coisa é algo que ela compartilha com outras do mesmo
tipo. Nesse sentido, a humanidade constitui um tipo natural ou espécie, tradicionalmente
definida como pertencente ao gênero animal e diferenciada de outras espécies desse
gênero, em virtude de seus membros serem racionais. (Mais simplesmente: os seres
humanos são, por natureza, animais racionais.) Levando isso em consideração, no entanto,
a humanidade existe, não no mundo fora da mente, mas como um conceito. “A personagem
'espécie' está incluída entre os acidentes que se seguem [de uma essência ou natureza]
conforme ela existe no intelecto. As personagens 'gênero' - ou genus - e 'diferença' também
pertencem à natureza” (DEE 3). Entretanto, Santo Tomás de Aquino não era, de forma
alguma, um conceitualista da classificação Lockeana; ele não considerava que as espécies
fossem simplesmente convencionais, ou que fossem "feitas pelos homens", como Locke

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mais tarde consideraria. Embora a humanidade e similares universais existam apenas no
intelecto, "tais concepções têm uma base imediata na realidade” (SENT 2.1.3). Para ter
certeza, aquilo que é universal para os seres humanos não existe fora da mente, aparte dos
próprios seres humanos; A humanidade de Sócrates, por exemplo, não existe nele à parte
daquelas de suas características com as quais ele não compartilha com nenhum outro, e que
distinguem-no de outros seres humanos. Mas isso não necessariamente implica que a
humanidade não existe em Sócrates, em George Bush, e em outros seres humanos, por
exemplo, mas apenas que ela não existe neles da maneira abstrata em que existe no
intelecto, ou seja, divorciada de todas as características individualizantes. Tomás de Aquino
é, portanto, um realista, embora do tipo aristotélico, ou "moderado" (em oposição ao
realismo "extremo", representado pela Teoria das Formas de Platão). “Diz-se que a natureza
está presente em uma coisa na medida que há algo, fora da alma, que corresponde à
concepção da alma” (SENT 2.1.3, conforme traduzido por Pasnau e Shields na p. 78 de sua
'Phylosophy of Aquinas'). Então, o que está fora da mente é apenas a natureza humana
como ela existe concretamente em seres humanos individuais: a humanidade de Sócrates, a
humanidade de George Bush, e assim por diante. O que existe dentro da mente é
considerado humanidade abstratamente, como um universal que pode ser aplicado a
muitos indivíduos. Mas a humanidade como tal não é universal nem particular, nem uma
nem muitas; e também não poderia ser, pois "cada um é extrínseco à noção de
humanidade, e qualquer um pode acontecer a ela" (DEE 3). Se a universalidade ou
"multiplicidade" fizesse parte da humanidade como tal, então a humanidade nunca poderia
existir em uma coisa específica, pois, obviamente, (por exemplo) existe Sócrates. Se
particularidade ou "unicidade" fizesse parte da humanidade como tal, então a humanidade
nunca poderia ser compartilhada por múltiplos indivíduos distintos, como, obviamente, é
compartilhada por (por exemplo) Sócrates e George Bush. Portanto, "o universal, como tal,
existe apenas na alma; mas a própria natureza, universalmente concebível, existe nas
coisas" (In DA II.12.380).

No que diz respeito às coisas materiais, "o termo 'essência' significa o composto da matéria
e da forma” (DEE 2), e não apenas a forma; "visto que, se não, não haveria diferença entre
definições em física e em matemática” (DEE 2). O que ele quer dizer é que quando
entendemos o que é uma coisa material, o que entendemos é diferente do tipo de coisa
que entendemos quando estudamos geometria e coisas do gênero, na medida em que não
é uma abstração pura, mas algo concreto. Você pode ignorar a estrutura material de um
círculo, quadrado ou triângulo específico ao aprender um teorema geométrico, mas você
não pode ignorar a estrutura material de rochas particulares, árvores ou animais ao estudar
geologia ou biologia. Portanto, a matéria faz parte da essência dos objetos deste último
tipo. Ao mesmo tempo, para Tomás, a matéria é o “princípio da individuação” entre
membros de uma espécie de coisas materiais, ou seja, aquilo que as torna coisas distintas,
mas do mesmo tipo" (DEE 2). Então, como a matéria pode fazer parte da essência das
árvores (ser comum à todas as árvores) e, ao mesmo tempo, ser aquilo que distingue uma
árvore de outra? A resposta é que devemos fazer uma distinção entre matéria em geral, e
esta ou aquela parcela específica de matéria. É a primeira o "assunto comum", que faz parte

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da essência das árvores, e a última a "matéria designada", que individualiza uma árvore da
outra.

Todas as árvores são materiais, mas o que torna essa árvore diferente daquela, apesar do
fato de que elas têm a mesma essência, é que esta é composta de um pedaço particular de
matéria, e aquela é composta de outro pedaço particular de matéria distinto. Com o que
Aquino chama de "substâncias separadas" - isto é, realidades imateriais, como a alma, os
anjos e Deus - as coisas não são tão diretas. A alma, como veremos depois, deve, na visão
de Tomás de Aquino, estar associada, conjunta ao corpo em algum momento de sua
existência, mesmo que possa existir além da morte do corpo. Consequentemente, não há,
em princípio, dificuldade em explicar como uma alma pode ser individualizada de outra,
mesmo que isso exija uma qualificação para a tese de que a matéria é o princípio da
individuação. Deus, como veremos, é necessariamente único em qualquer caso, de modo
que a questão da individuação não pode surgir. Mas e os anjos, que deveriam ser ambos
distintos um do outro e ainda completamente imateriais? Um anjo, diz Santo Tomás, é uma
forma sem matéria e, portanto, sua essência corresponde particularmente à sua forma (DEE
4). Todavia, precisamente porque não há matéria para distinguir um anjo de uma espécie de
outra, “entre essas substâncias, não pode haver muitos indivíduos da mesma espécie. Pelo
contrário, existem tantas espécies quanto há indivíduos” (DEE 4).

Isso, por acaso, significa que um anjo, como uma forma pura, também é puro ato,
desprovida de potência? De jeito nenhum. Mesmo um anjo tem que ser criado, e assim
passar da potência para o ato. Mas, como os anjos são imateriais, isso simplesmente não
envolve matéria assumindo uma certa forma. O que está envolvido é a forma ou a essência
sendo associada ao que Tomás de Aquino chama de actus essendi, ou "ato de existir". A
matéria está “em potência”, ela é apenas potencial em relação à forma, e é isso que atualiza
a matéria. Mas em relação ao ato de existir, tanto a forma pura (como em um anjo) quanto
um composto de forma e matéria (como em um objeto material) estão em potência, ou são
apenas potenciais. Daí, até mesmo anjos, assim como as coisas materiais, são compósitos
de ato e potência, na medida em que são compostos de uma essência com um actus
essendi (DEE 4). Aqui chegamos, finalmente, à famosa doutrina de Aquino sobre a distinção
entre essência e existência. Para voltar novamente ao nosso exemplo de humanidade, “É ...
evidente que a natureza do homem é considerada absolutamente abstrata de todo ato de
existir, mas de tal maneira, no entanto, que nenhum ato de existir seja excluído por meio de
precisão" (DEE 3). Ou seja, não há nada em nossa compreensão da essência da humanidade
como tal que poderia nos dizer se algum ser humano realmente existe, se já não
soubessemos que eles existem. Em geral, “Toda essência pode ser entendida mesmo sem
entender o ato de existir. Eu posso entender o que é um homem ou uma fênix, e mesmo
assim, não saber se eles existem ou não na natureza das coisas” (DEE 4).

O exemplo da fênix é, talvez, mais instrutivo que o da humanidade: alguém que não tem o
conhecimento de que a fênix é inteiramente mítica, talvez saiba que sua “essência” é a de
um pássaro, este que se transforma em cinzas, das quais uma nova fênix surgirá, sem saber
se realmente existe uma criatura assim. Mas nesse caso,"é evidente que o ato de existir é

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diferente da essência ou quididade”, visto que “o que é estranho ao conceito de quididade,
é adventício, e forma uma composição com a essência” (DEE 4). Ou em outras palavras, se é
possível entender a essência de uma coisa sem saber se existe, seu ato de existir (se houver)
deve ser distinto de sua essência, como um componente metafisicamente separado da
coisa.

O significado da distinção entre essência e existência é indicado por outro argumento que
Tomás de Aquino defende. Se essência e existência não fossem distintas, seriam idênticas; e
elas poderiam ser idênticas apenas em “algo cuja essência é seu próprio ato de existir ... de
tal maneira que seria a própria existência subsistente” (DEE 4). Ou seja, algo cuja essência é
sua existência não dependeria de mais nada (por exemplo, matéria) para sua existência, já
que seria apenas existência ou ser em si. Mas só poderia haver uma de tal coisa, pois não
haveria como, em princípio, distinguir mais do que um. Nós não podemos apelar
coerentemente a alguma forma única, que tal coisa tem, para distinguí-la de outras de seu
tipo, "porque, então, não seria simplesmente um ato de existir, mas um ato de existir, em
adição a alguma certa forma”; também não poderíamos associá-la a alguma parcela
específica da matéria, "porque, então, ela não seria existência subsistente, mas existência
material", isto é, dependente de matéria para o seu ser (DEE 4).

De fato, na visão de Santo Tomás, existe um ser no qual essência e existência são idênticas,
Deus; e a identidade de sua essência e sua existência implica (entre outras coisas) que Deus
é um ser necessário, um que não pode possivelmente não existir. Mas tudo isso mostra que
em tudo que não seja Deus, essência e existência devem ser distintas. Ora, no caso de
objetos materiais (por exemplo), há mais de um membro de cada tipo, e nenhum deles
existe de maneira necessária, mas apenas contingentemente; e isso não seria assim se
essência e existência fossem, nessas coisas, idênticas. Teremos mais a ver sobre as
implicações teológicas das leis de Aquino sobre essência e existência no futuro. Por
enquanto, podemos notar que sua concepção de Deus como aquele no qual essência e
existência são idênticas se encaixa perfeitamente com a noção aristotélica mais antiga de
Deus como ato puro. De fato, a noção de anjos como compósitos de forma e ato de
existência se encaixa naturalmente com a idéia aristotélica (embora também neoplatônica)
de uma hierarquia de ser, estendendo-se do ato puro no topo à matéria prima (ou matéria
primeira) na camada mais inferior, com maiores graus de potência, caracterizando cada
degrau abaixo da escada. A matéria prima não pode existir por si mesma precisamente
porque é pura potência. As substâncias materiais podem existir por si próprias, porque,
além da matéria, elas têm forma e, portanto, algum grau de ato.

Os seres humanos têm um grau mais alto de ato e, portanto, um menor grau de potência,
porque (por razões que examinaremos futuramente) suas almas são subsistentes, capazes
de existir à parte do corpo. Anjos, sendo desprovidos de matéria por completo, têm um
grau ainda maior de ato, entretanto, até mesmo eles estão longe do cume da realidade,
Deus, pois, ao contrário dEle, os anjos são (como vimos anteriormente) ainda compostos de
potência e ato. Distinções entre os anjos, mesmo que sejam de espécies diferentes, são
possíveis, na visão de Tomás de Aquino, apenas na medida em que também diferem em

20
grau de potência ou ato, em particular no que diz respeito a um poder imaterial, como a
inteligência. Portanto, “uma inteligência superior mais próxima do primeiro ser teria mais
ação e menos potência; e assim por diante com os outros, este termina na alma humana,
que detém a nota mais baixa entre substâncias intelectuais” (DEE 4).

Os Transcendentais

Santo Tomás de Aquino, seguindo o filósofo, Aristóteles, considerava a metafísica como a


"ciência que considera o ser enquanto ser e as competências que lhe competem enquanto
tal", em vez de (como as outras ciências fazem) estudar algum tipo particular de ser entre
outros (In Meta IV.1.529). Por esta razão, os metafísicos da tradição tomista costumam
preferir o rótulo "ontologia" - do grego ontos, ou "ser" - como um nome adequado para sua
doutrina. Ato e potência, forma e matéria, essência e existência, substância e acidente, e
coisas do gênero são meramente aspectos do ser e seu estudo nos dá uma maior
compreensão dele. Ainda assim, estritamente falando, não podemos definir o ser da
maneira como podemos definir uma espécie, como os humanos, por meio da citação de um
gênero ele cai em uma diferença específica que o diferencia de outras espécies no gênero.
Ser é o conceito mais abrangente que temos, aplicando-o faz com tudo o que existe, de
modo que não há como incluí-lo em algo mais geral. Além disso, o ser nem sequer pode ser
considerado adequadamente como um gênero sob o qual tudo se encaixa, pois a qualquer
gênero algo pode ser "adicionado" de certa forma, enquanto ao ser não pode. Por exemplo,
sob o gênero animal, podemos distinguir as espécies vertebradas das invertebradas. (Aqui
estamos usando “gênero” e “espécie” no sentido lógico, não no sentido biológico
moderno.) Mas precisamente desde que ''animal'' inclui vertebrados e invertebrados, ele
próprio não é nem vertebrado nem invertebrado; pois ele próprio não pode ser os dois (sob
pena de contradição) e, se fosse um e não o outro, não seria capaz incluir o outro como
espécie. Portanto, para obter o conceito de vertebrado, ou invertebrado, precisamos
adicionar algo ao conceito animal. Por contraste, diz Tomás de Aquino, “nada pode ser
acrescentado ao ser como se fosse algo não incluído no ser - da maneira que uma diferença
é adicionada a um gênero ou acidente para um sujeito - pois toda realidade é
essencialmente um ser” (QDV 1.1). Assim, embora “ser” não seja um termo equívoco -
diferentemente de “cachorro” aplicado a um animal e a uma constelação, não chamamos
coisas diferentes de "seres" em sentidos completamente diferentes - nem é um termo
unívoco, pois sua aplicação é tão absolutamente geral que nem todas as coisas às quais se
aplica podem possivelmente ser consideradas "seres" exatamente no mesmo sentido. Ser é,
na verdade, o que Tomás de Aquino chamaria de noção análoga, em que a analogia
constitui um meio termo entre o uso equívoco e unívoco de termos (In Meta XI.3.2197).

Por exemplo, pode-se dizer que acidentes e substâncias têm ser, mas os acidentes carecem
da existência independente que as substâncias possuem; pode-se dizer que as coisas
materiais e os anjos existem, mas as coisas materiais são compostas de matéria e forma
enquanto anjos são formas sem matéria; as coisas criadas e Deus têm ser, mas nas coisas

21
criadas a essência e a existência são distintas e em Deus não são; e assim por diante. O ser
de um acidente é análogo ao de uma substância, o de uma coisa material é análogo ao de
um anjo, e o de uma coisa criada é análogo ao de Deus; isto é, não é completamente
idêntico, nem absolutamente incomparável. Ser é também o que se chama na filosofia
tomista de transcendental, algo acima de todo gênero, comum a todos os seres e, portanto,
não restrito a qualquer categoria ou indivíduo. Os outros transcendentais, segundo Tomás
de Aquino, são 'coisa', 'um', 'algo', 'verdade' e 'bondade', e cada um é “conversível” com ser
no sentido de que cada um designa a mesma coisa - a saber, ser - sob um aspecto diferente
(QDV 1.1). (Para colocar o argumento em termos feitos familiares pelo lógico Gottlob Frege,
os transcendentais diferem em sentido, mas não em referência, referindo-se à mesma coisa
sob nomes diferentes, assim como "Super-homem" e "Clark Kent" referem-se à mesma
pessoa sob nomes distintos.) Isso pode ser mais claro nos casos de 'coisa' e 'algo', visto que
uma "coisa" é apenas um ser de um tipo ou de outro, e "algo" conota, ou um ser entre
outros seres, ou um ser, em oposição ao não-ser ou a nada. Um (para simplificar um pouco
demais) significa mais ou menos o primeiro desses sentidos de "algo", como conotando um
ser distinto de outros. A ideia da conversibilidade é, para os leitores modernos, a mais difícil
de entender nos casos de 'verdade' e 'bondade', uma vez que a verdade é geralmente
entendida pelos filósofos contemporâneos como um atributo confinado a crenças e
proposições subjetivas, e bondade é considerada por muitos como uma questão de "valor"
ao invés de "fato". Com relação à verdade, é útil entender o que Aquino está dizendo,
pensando em "verdadeiro" como no sentido de "real" ou "genuíno". Uma coisa é
verdadeira na medida em que está em conformidade com o ideal definido pela essência do
tipo ao qual ela pertence. Portanto, um triângulo desenhado desleixadamente em um
ônibus em movimento não é um triângulo tão verdadeiro - ou tão genuíno - quanto um
desenhado devagar e com cuidado, com uma caneta própria para isso e uma régua, pois,
como os lados do triângulo serão menos retos, ele instanciará menos perfeitamente a
essência da triangularidade; um esquilo que, devido a lesão ou defeito genético, perdeu a
cauda ou o desejo de reunir nozes para o inverno, não é um esquilo tão verdadeiro - ou tão
genuíno - quanto aquele que ainda tem cauda, instintos normais e quaisquer outras
características que fluem da essência de esquilos; e assim por diante. Agora, como vimos,
para Aquino essas essências, quando considerados universais, existem apenas no intelecto;
e seguindo St. Agostinho, Tomás de Aquino considera que esses universais existem antes de
tudo, no intelecto divino, como os arquétipos segundo os quais Deus cria o mundo (ST
I.15.1).

Assim, de certa forma, "a palavra 'verdade' ... expressa a conformidade de um ser com o
intelecto” (QDV 1.1), caso um intelecto humano compreenda um universal ou (em última
análise) o intelecto divino em que o universal existe eternamente. Portanto, algo está sendo
o tipo de coisa que é precisamente na medida em que é uma instância verdadeira desse
tipo, conforme definido pela essência universal existente no intelecto; e nesse sentido, o ser
é conversível com a verdade. Isso também nos dá uma pista de como 'bondade' é
conversível com o ser. Filósofos na tradição clássica (em oposição à moderna), como Platão,
Aristóteles, Agostinho e Aquino tendem a pensar no bem em termos de conformidade com

22
o ideal representado pela natureza ou essência de uma coisa. Para pegar o exemplo do
triângulo novamente, é natural descrever o triângulo bem desenhado como não apenas um
triângulo verdadeiro, mas também como um bom triângulo, e os triângulos mal desenhados
como ruins". "Bom" ou "ruim" devem ser entendidos aqui no sentido em que descrevemos
algo como uma amostra boa ou ruim ou exemplo de um tipo de coisa; e, como isso deixa
evidente, os termos estão sendo usados em um sentido que é mais amplo do que (embora,
como veremos, também abranja) o senso moral de "bom" e "ruim", portanto, não entramos
na 'querela' da moralidade objetiva ou subjetiva. Assim como acontece com a verdade, algo
é bom na medida em que ela existe como, ou tem sido como, uma instância de seu tipo.
Como Santo Tomás diz: “tudo é perfeito, na medida em que é real. Portanto, é claro que
uma coisa é perfeita, o tanto quanto existe; pois é a existência que faz de todas as coisas,
reais.” (ST I.5.1).

Agora, também é verdade que “a essência da bondade consiste nisso, em que é de alguma
forma desejável"; mas "uma coisa é desejável apenas na medida que é perfeita" e, portanto,
na medida em que é real ou que existe (ST I.5.1). “Portanto, fica claro que bondade e o ser
são, realmente, iguais. Mas a bondade apresenta o aspecto da ambição (visto que é
desejável), que o ser não apresenta” (ST I.5.1). Esta última parte do argumento pode ser mal
mal compreendida se não for posto em mente que, por "desejável", Santo Tomás não quer
dizer aquilo que conforma a algum desejo que nós temos contingentemente, nem mesmo,
necessariamente, qualquer coisa desejada de maneira consciente. Aqui, como em outros
lugares, é a noção de causa final - o fim ou objetivo para o qual uma coisa é direcionada pela
natureza - essa é a chave (ST I.5.4). Como vimos, a causa final de uma coisa e, assim, o que
ela “deseja” (no sentido relevante), pode ser algo do qual ela é totalmente inconsciente,
como no caso de objetos e processos naturais inanimados; em criaturas com intelectos,
como nós mesmos, pode até ser algo que conscientemente (se irracionalmente) tentamos
evitar realizar. Mas, desde que a realização do bem de uma coisa é ao que ela é direcionada
por natureza como sua causa final, nós vemos que o ditado de Tomás de Aquino
(emprestado de Aristóteles) de que "bondade é aquilo que todas as coisas desejam” (ST
I.5.4) é, quando entendido corretamente, não uma psicologia de poltrona duvidosa, mas sim
(dada sua base de compromissos ontológicos) uma verdade necessária da metafísica.

A afirmação de que o ser é conversível com a bondade pode parecer ser falsificada pela
existência do mal. Pois, se o mal existe, então (pode ser pensado) deve ter ser; e como o
mal é o oposto do bem, segue que existe algo que tem ser, mas que não é bom. Entretanto,
Tomás negaria a primeira premissa desse argumento. Ele escreve que “não pode ser que o
mal implique ser, ou qualquer forma ou natureza. Por isso, deve seguir que, pelo nome do
mal, seja denotada a ausência do bem. E é isso que se quer demonstrar quando é dito que o
mal não é um ser nem um bem. Isso desde que ser, como tal, é bom, a ausência de um
implica a ausência do outro” (ST I.48.1). Precisamente porque o bem é conversível com o
ser, o mal, que é o oposto do bem, não pode ser um tipo de ser, mas a ausência de ser. Em
particular, é o que os filósofos escolásticos chamavam de privação, a ausência de alguma
perfeição que deveria estar presente em uma coisa, dada a sua natureza. Portanto, a
cegueira (por exemplo) não é um tipo de ser ou positivo realidade, mas simplesmente a

23
ausência de visão em alguma criatura que, por sua natureza, deveria tê-la. Sua existência e a
de outros males, portanto, não entram em conflito com a alegação de que o ser é
conversível com o bem.

Causalidade final

Para muitos leitores modernos, diversos aspectos da metafísica de Aquino podem parecer
pitorescos, talvez de importância histórica, mas irrelevantes para debates filosóficos. Em
particular, o princípio da finalidade, sobre o qual (como já vimos) virtualmente toda a sua
metafísica depende, pode-se pensar ter sido decisivamente refutado pela ciência moderna,
que mais ou menos baniu oficialmente o apelo às causas finais através do método científico
vários séculos atrás. Deve-se dizer, no entanto, que aqueles que fazem essa suposição – e é
de fato uma suposição muito comum – geralmente não parecem compreender nem a noção
de causalidade final, nem a natureza da revolução intelectual representada pelo surgimento
da ciência moderna, nem a até que ponto apelos à causalidade final, em substância, não
nominalmente, ainda permeiam a filosofia e a ciência contemporâneas. Existe de fato um
forte argumento a ser feito de que a causalidade final é inevitável se quisermos fazer
sentido, não apenas do pensamento e da ação humana, mas também do que sabemos
sobre o mundo natural em geral pela4 própria ciência física moderna.

Já observei como algumas suposições comuns sobre a causalidade final – como a ideia de
que envolve a atribuição de funções quase biológicas ou consciência de tudo, incluindo
objetos inanimados – são simplesmente falsas. Na medida em que os filósofos
contemporâneos encontram o princípio da finalidade implausível, então, suas dúvidas são,
pelo menos em parte, baseadas em mal-entendidos. Também problemáticos são os
argumentos que pensadores do início da era moderna tendiam a dar para justificar sua
rejeição de apelos à causalidade final. Descartes afirmou que o apelo às causas finais de
forma arroganteente mas falsamente assume que podemos conhecer as intenções de Deus,
o autor das causas finais das coisas. Mas há dois problemas com isso. Primeiro, mesmo que
pudéssemos não conhecer as causas finais das coisas, não se seguiria (como o próprio
Descartes parece ter concedido) que a causalidade final não existe; e a mero existência de
causalidade final seria suficiente para justificar muitas das conclusões metafísicas de Aquino
e outros pensadores escolásticos baseados nela.

Por exemplo, mesmo que não pudéssemos saber especificamente qual é a causa final deste
ou daquele fenômeno natural, desde que realmente houvesse uma, teríamos a base para
um argumento para a existência de Deus do tipo representado pela Quinta Via de Aquino,
como veremos no próximo capítulo. Em segundo lugar, mesmo que hajam muitos
fenômenos cujas causas finais não sabemos e talvez não possamos sabemos – e Tomás de
Aquino e os outros escolásticos nunca negaram isso – parece óbvio que também há muitos
fenômenos cujas causas finais podemos conhecer. Por exemplo, se o olho tem uma causa
final, é certamente óbvio que tem a ver com a visão; se o coração tem uma causa final, é

24
óbvio que tem a ver com bombeamento de sangue; e assim por diante.

Talvez a crítica mais famosa da metafísica escolástica por parte dos primeiros pensadores
modernos é aquela representada pela piada de Molière sobre o médico que alegou explicar
por que o ópio causa sono dizendo que tem um “poder dormitivo”. A razão pela qual isso
deveria ser engraçado é que "poder dormitivo” significa “um poder de causar sono”, de
modo que a explicação do médico equivale a dizer “o ópio causa sono porque tem o poder
de causar sono." A razão pela qual isso supostamente é para ser uma crítica à metafísica
defendida por Aquino e outros escolásticos – que, como vimos, sustentavam que as causas
eficientes são direcionadas para certos efeitos como suas causas finais, de modo que se
pode dizer que eles têm “poderes” inerentes para provocar esses efeitos – é que mostra
(assim se diz) que as explicações fornecidas pela metafísica escolástica são tautologias
vazias.

Mas embora a explicação em questão neste caso não é muito informativa, não é de fato
uma tautologia; ele tem conteúdo substancial, porém mínimo. Dizer “o ópio causa sono
porque causa o sono” seria uma tautologia, mas a afirmação em questão diz mais do que
isso. Diz que o ópio tem o poder de causar sono; quer dizer, diz que o fato de que o sono
tende a se seguir da ingestão de ópio não é uma característica acidental desta ou daquela
amostra de ópio, mas pertence à natureza do ópio como tal. Que isso não é uma tautologia
é evidenciado pelo fato de que os primeiros pensadores modernos tendiam a considerá-la
falsa, em vez de (como deveriam ter feito se fosse realmente uma tautologia) trivialmente
verdadeira. Eles não disseram: “sim, ópio tem o poder de causar sono, mas isso é óbvio
demais para valer a pena mencionar”; disseram: “não, o ópio não tem tal poder, porque
‘poderes’, ‘causas finais’, e afins não existem.” Assim, a crítica da escolástica implicada na
piada de Molière é confusa. Além disso, embora seja verdade que o apelo a poderes
inerentes do ópio não nos dá o tipo de explicação empírica satisfatória detalhada da
natureza do ópio que a química moderna apresentaria, é importante entender que não se
destina a fazê-lo. Seu objetivo é mais afirmar uma verdade metafísica básica que
fundamenta os detalhes empíricos sobre a estrutura química do ópio, seja lá o que for.

Às vezes também se pensa que as descobertas da ciência moderna refutaram várias


suposições da ciência aristotélica, refutando assim metafísica aristotélica. Mas isso é um
non sequitur. A física aristotélica é uma coisa, e a metafísica aristotélica outra, e elas não se
sustentam nem caem juntas. Mesmo que alguns dos exemplos científicos em que os
aristotélicos às vezes explicavam suas noções metafísicas acabaram sendo falsas – como a
ideia de que a Terra fica imóvel no centro do universo – não há conexão essencial entre as
noções metafísicas e os exemplos científicos, e o primeiro pode ser facilmente reafirmado
em melhores exemplos. Nem era a possibilidade de avanço científico empírico negado pelos
pensadores escolásticos, como se pensassem que a ciência de seu tempo era infalível. Como
o próprio Tomás de Aquino diz a respeito da astronomia ptolomaica aceita em sua época,
“as suposições que esses astrônomos inventaram não precisa necessariamente ser verdade;
pois talvez os fenômenos das estrelas sejam explicáveis em algum outro plano ainda não
descoberto pelos homens” (In DC II.17, como traduzido por Rickaby na p. 67 de seu

25
Scholasticism; cf. ST I.32.1).

É claro que os fundadores da ciência moderna – Galileu, Descartes, Boyle, Newton, et al. –
de fato diferiam dos aristotélicos acerca da metafísica também, e não apenas em detalhes
empíricos. Em particular, eles diferiram sobre no que suposições metafísicas devem guiar a
investigação científica empírica, sustentando que as causas finais e afins devem ser evitadas
em favor de explicações por causas “mecânicas” (ou seja, não teleológicas), e que uma
descrição matemática da natureza era preferível ao apelo dos aristotélicos a tais
inquantificáveis noções como poderes inerentes e formas substanciais. E, claro, esta nova
concepção do método científico teve um tremendo sucesso. É falacioso, no entanto, inferir
(como muitas vezes é feito) do sucesso do método científico moderno mecanicista a
falsidade do esquema aristotélico que substituiu, pois o “sucesso” em questão não tem
nada necessariamente a ver com uma tentativa de chegar à profunda estrutura ontológica
da realidade (um projeto sobre o qual os pensadores modernos tendem a ser bastante
céticos). De fato, a preferência dos modernos pelo novo método parece ter sido motivada
menos por qualquer suposta superioridade metafísica sobre o aristotelismo – novamente,
os argumentos filosóficos feitos em seu favor eram em geral surpreendentemente fracos –
do que por um interesse prático em reorientar filosofia e ciência para melhorar as condições
materiais da vida humana neste mundo. Os antigos e os medievais tendiam a considerar
investigação como uma busca de sabedoria, entendida como conhecimento das causas
última e do significado das coisas, à luz das quais se pode melhorar a alma e preparar-se
para uma vida além desta. Em contraste, os primeiros pensadores modernos tendiam a vê-
la mais como um meio de aumentar a “utilidade" e o "poder" humano através das “artes
mecânicas” ou tecnologia (nas palavras de Francis Bacon) e de nos fazer “donos e
possuidores da natureza” (como disse Descartes). Tal avanço tecnológico seria facilitado por
uma abordagem do estudo da natureza; daí a atratividade desta abordagem para os
modernos. Os primeiros pensadores modernos também desconfiavam da tendência
aristotélica da escolástica de sustentar a ordem política e religiosa, como era obrigada a
fazer devido ao seu discurso das essências fixas e das causas finais das coisas, incluindo os
seres humanos e as sociedades humanas. Este pedido era, afinal, altamente conservador e
decididamente “de outro mundo” em sua orientação e, portanto, fora de sincronia com o
projeto de melhorar a vida no aqui e agora. Qualquer substituição do esquema aristotélico,
como a novo concepção mecanicista-matemática da natureza porporcionava, assim,
vantagens políticas e práticas definidas.

Se a nova ciência dos modernos “teve sucesso”, então, pode ser argumentado que isso é
em grande parte porque ela empilhou o baralho em seu próprio favor. Tendo redefinido
“sucesso” como a conquista de progresso tecnológico e, em geral, a manipulação da
natureza para alcançar fins humanos, eles essencialmente ganharam um jogo que os
escolásticos não estavam tentando jogar em primeiro lugar. Isso não quer dizer que os
aristotélicos inteiramente evitaram a abordagem quantificacional para a ciência ou os
avanços tecnológicos que ela possibilita; de fato, alguns pensadores escolásticos tardios
colocaram maior ênfase em métodos quantificacionais, e Galileu e outros primeiros
cientistas modernos construíram em seu trabalho. Mas sua ênfase estava em causas

26
formais, finais e afins, porque as consideravam mais fundamentais para nossa compreensão
da natureza das coisas e para produzir conhecimento com maior significância moral e
teológica. E eles também teriam enfatizado que focar obsessivamente em um aspecto da
realidade, embora possa indubitavelmente aumentar o conhecimento desse aspecto, não
significa em nada para demonstrar que não há outros aspectos que valham a pena estudar -
aspectos que podem até ser mais importantes, e para além do qual a nossa compreensão
do primeiro aspecto pode ficar distorcida. Em particular, se você insistir em procurar apenas
aquelas características da natureza que podem ser descritas na linguagem da matemática,
então é claro que isso é tudo que você vai encontrar; e se você se recusar a procurar ou
mesmo a reconhecer a existência de causas finais, então não é surpreendente se você não
descobrir nenhuma.

Obviamente, porém, não se segue que não exista nenhuma causa final ou aspectos não
quantificáveis da natureza, não mais do que uma recusa a tirar óculos vermelhos “provaria”
que tudo é vermelho. Fingir que isso se segue é simplesmente deixar o método de alguém
ditar o que conta como realidade, em vez de deixar a realidade determinar o método.

A negação mecanicista das causas finais, poderes inerentes e coisas semelhantes

não decorre da ciência, então, mas foi lida na ciência desde o princípio. O que é muitas
vezes considerado como uma “descoberta” alcançada por meio de investigações e estudos
científicos empíricos era, de fato, uma estipulação relativa à natureza do conhecimento do
método científico, uma limitação, mais ou menos por decreto, do que seria permitido
contar como “científico”. Como o historiador e filósofo da ciência E. A. Burtt concluiu em
seu clássico The Metaphysical Foundations of Modern Physical Science, os fundadores da
concepção mecanicista-matemática da natureza foram impulsionados por “pensamento
positivo” e “confiança acrítica” apenas do tipo de que acusavam a tradição escolástica
aristotélica que procuravam derrubar; causas finais e afins eram consideradas por eles como
“fontes de distração [que] simplesmente tinha que ser negada ou removida” (pp. 305-36).

Se há muito menos no caso dos modernos contra o aristotelismo do que se revela aos
olhos, pode-se ainda sugerir que o ponto é discutível, na medida em que o imagem
mecanicista e quantificacional moderna do mundo natural se provou capaz de dar conta de
toda a realidade em qualquer caso. Nesse ponto de vista, simplesmente não há necessidade
de apelar para causas finais, formas substanciais, poderes e afins. Mas qualquer tal sugestão
seria ingênua e historicamente mal informada. O fato é que que uma miríade de problemas
filosóficos - na verdade, muitos problemas que enganosamente passam a ser considerados
como problemas “perenes” ou “tradicionais” de filosofia – surgiram apenas depois e por
causa do abandono dos primeiros filósofos modernos das principais noções aristotélicas e
escolásticas. Como Alasdair MacIntyre argumentou, a infinidade de teorias morais
concorrentes dentro filosofia moderna – para não mencionar o desacordo radical que veio
existir dentro da sociedade ocidental em geral sobre os fundamentos e o conteúdo de
moralidade e ceticismo generalizado sobre se esse desacordo é suscetível de qualquer
julgamento racional e objetivo – é uma consequência da abandono de uma concepção

27
teleológica da vida humana em particular e a mundo natural em geral.

(Teremos motivos para voltar a este tema no capítulo 5.) Como veremos no capítulo 4, o
“problema mente-corpo” como entendido desde o tempo de Descartes e o “problema da
identidade”, como tem sido debatido desde a época de Locke, são amplamente
subprodutos do abandono dos primeiros filósofos modernos da noção de causalidade.
Mesmo quanto aos problemas do livre-arbítrio e do ceticismo, embora discutidos de uma
forma ou de outra por milênios, devemos seu caráter moderno e aparentemente intratável
ao abandono de certos pressupostos metafísicos aristotélicos fundamentais. Se a concepção
exclusivamente mecanicista e quantitativa da natureza pela qual os modernos substituíram
a escolástica levou a tal perplexidade filosófica, dificilmente é plausível sugerir que não há
motivos para uma reconsideração dessa decisão. Isso talvez deva ser mais evidente a partir
do que os filósofos modernos têm feito de causação, a noção metafísica que é mais
fundamental para a ciência natural e que a filosofia moderna afirma dominar. Como vimos,
para Aristóteles e Tomás de Aquino, não podemos entender a causalidade eficiente – a que
é, das quatro causas de Aristóteles, aquela que os filósofos modernos acham mais familiar –
além da causa final. Como também vimos (e como é bem conhecido em qualquer caso) a
causalidade eficiente tornou-se de fato algo ao qual filósofos modernos acharam muito
difícil dar sentido à luz dos quebra-cabeças levantados por Hume – quebra-cabeças que
parecem surgir apenas se negarmos que as causas são inerentemente “dirigidas para” seus
efeitos como para uma causa final. Em particular, tem sido notoriamente difícil para a
filosofia moderna explicar a conexão necessária que o senso comum supõe manter entre
causas e efeitos. Essa dificuldade, por sua vez, levou ao “problema da indução”, sobre a
qual, uma vez que não há conexão necessária entre causas e efeitos, parece também não
haver base racional para inferências para o não observado com base no que foi observado
ou para o futuro com base no que aconteceu no passado. No entanto, se a ciência está no
negócio de descobrir relações causais objetivas entre as coisas, de descrever o mundo em
geral (porções não observadas, bem como as observadas), e de fazer previsões com base
nessa descrição, então parece que a ciência é impossível, ou pelo menos racionalmente
infundada. O quadro “mecanicista” ou não-teleológico do mundo natural que supostamente
tornou a ciência natural moderna possível na verdade parece torná-la ininteligível.

A incoerência conceitual dentro da ética, que MacIntyre argumentou, seguido do abandono


da teleologia pelos modernos tem assim, sem dúvida, um paralelo dentro da metafísica
moderna. A causalidade eficiente torna-se ininteligível sem causalidade final; substância e,
em particular, a substância que chamamos de pessoa humana, torna-se ininteligível sem a
distinção hilemórfica entre forma e matéria; o livre arbítrio torna-se ininteligível quando
insistimos em reduzir a ação humana a movimentos corporais governados por cadeias de
causalidade eficiente e ignoramos essas descrições em termos de causalidade formal e final,
além das quais não pode ser entendida como ação em primeiro lugar; e assim por diante.
Estas são, naturalmente, grandes questões; mais uma vez, abordei-as mais detalhadamente
em outro lugar (em trabalhos citados em seção de Leitura Complementar), e retornaremos
a vários deles ao longo deste livro. Por enquanto, basta notar que há muito sobre filosofia
moderna para indicar que o recente renascimento do interesse pela teoria moral de

28
Aristóteles deve ser enfrentada por uma séria reconsideração também da metafísica.

Há muito na ciência moderna para indicar a mesma coisa. Considere primeiro descobertas
da biologia moderna. A teoria da evolução darwiniana foi, pelo menos oficialmente,
supostamente para exorcizar a causalidade final daquela parte do mundo natural onde sua
existência parece mais óbvia. E ainda, como o filósofo tomista Etienne Gilson documentou
longamente em seu From Aristotle to Darwin and Back Again, os conceitos teleológicos
permeiam a teoria darwiniana desde o início. Um problema aqui é que mesmo depois de
Darwin, é tão impossível como sempre foi dar uma descrição adequada de órgãos de um
animal, padrões de comportamento e similares, exceto em termos do que eles são para e,
portanto, em linguagem teleológica.

Filósofos contemporâneos da biologia tentaram mostrar como tal linguagem pode ser
“descontada” ou analisada em termos não-teleológicos, mas nenhuma proposta foi sem
problemas sérios. Por exemplo, na teoria atualmente mais popular, dizer que os rins em tal
e tal organismo têm a função de purificar o sangue é apenas uma abreviação para dizer algo
assim: aqueles ancestrais deste organismo que primeiro desenvolveram rins (como
resultado de uma mutação genética aleatória) tendiam a sobreviver em maior número do
que aqueles sem rins, porque seu sangue foi assim purificado; e isso fez com que genes dos
rins passassem para o organismo em questão e outros como este. Mas, como John Searle
apontou, estritamente falando, tais relatos das origens dos traços biológicos não fornecem
uma “análise” ou “explicação” das funções teleológicas desses traços, mas sim
simplesmente eliminam completamente a noção de teleologia, tratando-a, na melhor das
hipóteses, como um tipo de ficção útil.

Para usar a terminologia aristotélica, são tentativas de descartar a causalidade final e


explicar fenômenos biológicos inteiramente em termos de causalidade eficiente, não
tentativas de reduzir a causalidade final à causalidade eficiente (um projeto que, de
qualquer forma, parece incoerente). Além disso, mesmo que tomássemos tais abordagens
seriamente como análises da função teleológica, elas enfrentariam sérias dificuldades.
Como Jerry Fodor observou, elas parecem ter as implicações absurdas de que não podemos
conhecer a função de uma coisa a menos que saibamos como evoluiu, e que nada poderia,
em princípio, ter uma função, a menos que tenha evoluído. Mas, na verdade, conhecíamos
as funções de todos os tipos de órgãos e comportamentos muito antes da ideia de seleção
natural ocorrer a alguém, e é pelo menos teoricamente possível que tais órgãos e
comportamentos poderiam ter funções mesmo que não evoluíssem.

Um problema mais profundo, porém, é que o que pode ser a maior descoberta da biologia
moderna – o DNA e o código genético que ele incorpora (que foram incorporadas à história
darwiniana sobre a evolução da vida) – parece teleológica de ponta a ponta. As descrições
desta famosa molécula fazem referência constante às “informações”, “dados”, “instruções”,
“planta”, “software”, “programação” e assim por diante contidos nele; e por um bom
motivo, uma vez que simplesmente não há como transmitir com precisão o que o DNA faz
sem o uso de tais conceitos. Mas cada um deles implica que O DNA é “direcionado para”
algo além de si mesmo como uma espécie de “fim” ou “objetivo” – o desenvolvimento
29
deste órgão no organismo em crescimento, a manifestação de tal e tal tendência
comportamental, ou o que seja, e assim manifesta precisamente o tipo de causalidade final
que a biologia moderna afirmou ter varrido.

É importante notar que isso não tem nada a ver com a “complexidade irredutível” que os
teóricos do “design Inteligente” afirmam que fenômenos biológicos exibem; o aristotélico
não precisa tomar partido no debate entre biólogos darwinianos e teóricos do “design
inteligente” (que geralmente aceitam a visão mecanicista da natureza endossada por seus
oponentes). A causalidade final é evidente no DNA não por causa de sua complexidade, mas
por causa do que faz, e seria igualmente evidente por mais simples que a estrutura física do
DNA poderia ter sido. Como o físico Paul Davies observa em seu livro The Fifth Miracle,
“conceitos como informação e software … [envolvem] noções que são bastante estranhas à
descrição do físico do mundo” – uma descrição que é (novamente, pelo menos
oficialmente) supostamente inteiramente mecanicista – e o uso de tais conceitos na
biologia “trata informações semânticas como se fossem uma quantidade natural como a
energia.”

“Infelizmente”, continua Davies, “significado” soa perigosamente próximo ao propósito, um


assunto totalmente tabu na biologia. Então nos resta com a contradição de que precisamos
aplicar conceitos derivados de atividades humanas intencionais (comunicação, significado,
contexto, semântica) a processos biológicos que certamente aparecem propositais, mas na
verdade não são (ou não deveriam ser). No final das contas, os seres humanos são produtos
da natureza, e se os humanos têm propósitos, então algum nível de propósito deve surgir da
natureza e, portanto, ser inerente à natureza … propósito é uma propriedade genuína da
natureza até o nível celular ou mesmo subcelular? (pág. 121–2) Davies parece próximo de
uma posição expressa décadas antes pelo biofísico e o laureado Nobel Max Delbrück, que
certa vez escreveu que se o Prêmio Nobel poderia ser premiado postumamente: “eu acho
que eles deveriam considerar Aristóteles para a descoberta do princípio implícito no DNA”,
e que “a razão da falta de apreciação, entre os cientistas, do esquema de Aristóteles está
em nosso termos sidos cegados por 300 anos pela visão newtoniana do mundo.”

Parte da razão pela qual o aristotélico considera a causalidade eficiente como ininteligível
sem causalidade final é que sem a noção de um fim ou objetivo para o qual uma causa
eficiente aponta naturalmente, não há como entender por que certas cadeias causais são
significativas de uma maneira que outras são não. Por exemplo, ao caracterizar o DNA dos
ursos, tomamos como relevante notar que isso faz com que eles sejam peludos e cresçam
para um tamanho grande, mas não que isso também os torne bons mascotes para times de
futebol. A informação genética no DNA do urso inerentemente “aponta para” ou é
“dirigida” ao primeiro resultado, mas não o segundo. Mas esse tipo de consideração se
aplica a cadeias causais em geral, incluindo as inorgânicas.

Como o filósofo David Oderberg observou, é particularmente evidente em ciclos naturais


como o ciclo da água e o ciclo das rochas. No primeiro caso, a condensação leva à
precipitação, que leva à coleta, que leva à evaporação, que leva à condensação e o ciclo
recomeça. Neste último caso, a rocha ígnea se transforma em rocha sedimentar, que se
30
transforma em rocha metamórfica, que derrete em magma, que se endurece em rocha
ígnea, e o ciclo começa novamente. Os cientistas que estudam esses processos identificam
cada um de seus estágios como desempenhando um certo papel específico em relação aos
outros. Por exemplo, o papel de a condensação no ciclo da água é para provocar a
precipitação; o papel de pressão no ciclo das rochas é, em conjunto com o calor, contribuir
para gerando magma, e na ausência de calor para contribuir para a geração rocha
sedimentar; e assim por diante. Cada etapa tem a produção de algum determinado
resultado ou gama de resultados como um “fim” ou “objetivo” para o qual ele aponta.

Tampouco servirá sugerir que qualquer um dos ciclos possa ser adequadamente descrito
falando de cada estágio como sendo a causa eficiente de certos outros, sem referência ao
seu “papel” de gerar algum efeito um “fim” ou “objetivo”. Pois cada estágio tem muitos
outros efeitos que não fazem parte do o ciclo. Como Oderberg aponta, a sedimentação
pode (por exemplo) acontecer para bloquear o fluxo de água para uma determinada região,
a formação de magma pode fazer com que algumas aves locais migrem, ou a condensação
em alguma área pode causar dor artrítica no seu dedão do pé. Mas bloquear o fluxo de água
e fazer com que as aves migrem não fazem parte do ciclo das rochas, e causar dor artrítica
não faz parte do ciclo da água. Algumas cadeias causais são relevantes para os ciclos e
algumas não são. Tampouco é correto dizer que o estudante dos ciclos das rochas ou da
água apenas se interessa pela maneira como algumas rochas geram outros tipos e como a
água em uma forma traz água de outra forma, e não está interessado em padrões de
migração de aves ou artrite, para que ele preste atenção a alguns elementos da causa geral
situação do que outras. Para os padrões descritos por cientistas que estudam esses ciclos
são padrões objetivos na natureza, não meras projeções de interesses. Mas a única maneira
de explicar isso é reconhecer que cada estágio no processo, embora possa ter vários tipos
de efeitos, tem apenas a geração de certos efeitos específicos entre eles como seu “fim” ou
“meta” e que é isso que determina seu papel no ciclo. Em suma, é reconhecer ciclos como
teleológicos. Finalmente, vamos considerar as leis causais básicas do tipo estudado pelos
físicos. Os fundadores da filosofia moderna, desejosos de eliminar as formas substanciais,
naturezas, essências, poderes, causas finais e similares da ciência, procuraram substitui-los
pela ideia de eventos relacionados por “leis da natureza”. Daí, quando um tijolo é jogado
em uma janela e a janela quebra, não é (dizem eles) que o tijolo, em virtude de sua natureza
ou essência, tem um poder inerente de quebrar o vidro, ou que é inerentemente
direcionado para esse tipo de resultado como um causa final. É antes que eventos como o
lançamento de tijolos simplesmente acontecem de ser regularmente seguidos, como lei, por
eventos como a quebra de janelas.

Como a filósofa da ciência Nancy Cartwright argumentou, um problema sério com a ideia de
que a ciência está meramente no negócio de estabelecer regularidades com base na
observação é que os tipos de regularidades que as ciências tendem a descobrir raramente
são observadas e, de fato, estão em circunstâncias impossíveis de se observar. Estudantes
iniciantes de física rapidamente familiarizam-se com idealizações como a noção de uma
superfície sem atrito, e com o fato de que leis como a lei da gravitação de Newton
estritamente falando descreve o comportamento dos corpos apenas na circunstância em

31
que não há interferência de forças agindo sobre eles, uma circunstância que nunca
realmente acontece. Além disso, os físicos não adotam de fato uma regularidade como uma
lei da natureza somente depois de muitas tentativas, à moda das apresentações de
raciocínio populares. Em vez disso, eles tiram suas conclusões de alguns especialistas
altamente especializados com experimentos conduzidos em condições artificiais. Nada disso
é consistente com a ideia de que a ciência se preocupa em catalogar regularidades
observadas. Mas é consistente com a imagem aristotélica da ciência como nos negócios de
descobrir as naturezas ocultas ou poderes das coisas. Prática experimental real indica que o
que os físicos estão realmente procurando são os poderes que uma coisa manifestará
naturalmente quando condições interferentes são removidas, e o fato de que alguns
experimentos, ou mesmo um único experimento são tomados para estabelecer os
resultados em questão indica que esses os poderes são tomados para refletir uma natureza
que é universal para coisas desse tipo.

As opiniões de Cartwright não são de forma alguma idiossincráticas. Elas refletem um


crescimento tendencial dentro da filosofia da ciência em direção a um “novo
essencialismo”, como Brian Ellis, um de seus proponentes, o rotulou. Nem é apenas a
doutrina das naturezas, formas ou essências de Aristóteles que encontra um eco no novo
essencialismo. Como muitos desses teóricos reconheceram, para afirmar a existência de
poderes em fenômenos físicos ou capacidades inerentes é reconhecer fenômenos que são
direcionados ou apontam para estados de coisas além de si mesmos. Por exemplo, ser frágil
é apontar ou ser direcionado para quebrar, e uma coisa frágil por sua natureza aponta ou se
dirige a este estado particular, mesmo que nunca seja de fato realizado; ser solúvel é
apontar para ou ser direcionado para a dissolução, e uma coisa solúvel de sua natureza
aponta para ou é dirigido a esse estado particular, mesmo que nunca seja de fato realizado;
e assim por diante. O falecido filósofo “novo essencialista” George Molnar concluiu que o
poderes inerentes aos objetos físicos exibem uma espécie de “intencionalidade física” na
medida em que, como pensamentos e outros estados mentais, eles apontam para algo além
de si mesmos, embora sejam diferentes dos pensamentos em ser inconscientes. Mas a
noção de algo que aponta para além de si mesmo para um certo objetivo ou estado final,
mesmo que seja totalmente inconsciente é, claro, nada mais do que a noção aristotélica de
causalidade final. Como Cartwright disse, “os empiristas da revolução científica queriam
derrubar Aristóteles inteiramente do novo aprendizado”, mas “eles não fizeram tal coisa”.

A referência à intencionalidade – a capacidade da mente de representar, referir ou apontar


além de si mesmo – deve trazer à mente os exemplos mais óbvios de fenômenos naturais
difíceis de explicar em termos mecanicistas, a saber, pensamento e ação humana. Quando
você pensa na Torre Eiffel, digamos, seu pensamento é “dirigido para” algo além de si
mesmo de uma forma análoga a

a maneira pela qual a partida de um carro é, na análise aristotélica, “dirigida para” a geração
de chama e calor como sua causa final. Da mesma forma, quando você raciocina através de
um argumento, seu processo de pensamento é “direcionado para” a conclusão como o fim
para o qual as premissas apontam. Mas precisamente porque o mundo físico é, em um

32
acontamento mecanicista, desprovido de qualquer endosso direcionamento para metas, a
existência de nossos pensamentos e processos de pensamento parecem impossíveis de
explicar em termos puramente físicos. (Na verdade, isso é sem dúvida parte da razão pela
qual Descartes era um dualista: dada sua concepção mecanicista do mundo material, não
havia outro lugar para o pensamento humano existir exceto em algo imaterial.) Da mesma
forma, as ações humanas parecem apenas obviamente teleológicas por natureza, dirigidas
para certos fins em que são realizados; pelo menos, e como filósofos como G. F. Schueler e
Scott Sehon argumentaram longamente, nenhuma tentativa de analisar a ação humana em
termos não-teleológicos foi bem sucedido.

Do pensamento e da ação humana ao mundo dos fenômenos biológicos em geral para


ciclos naturais inorgânicos para as leis básicas da física, causalidade final ou a teleologia
parece, assim, uma característica tão real e objetiva do mundo natural quanto Aristóteles e
Tomás de Aquino o entendiam. No mínimo, suas concepções de causalidade final são
certamente defensáveis e dignas de séria consideração dos fílosofos contemporâneos.

Causalidade eficiente

Se o princípio da finalidade pode ser defendido, então, o que dizer dos outros dois? Os
princípios aristotélicos que eu citei são cruciais para a metafísica de Tomás de Aquino em
geral e seus argumentos para a existência de Deus em particular – ou seja, o princípio da
causalidade e o princípio da causalidade proporcional (que se preocupa com a eficiente em
oposição à causalidade final)? Para começar com o segundo, vale a pena notar que ele é
certamente apoiado por senso comum. Se você encontrar uma poça de líquido vermelho
perto de uma torneira, você não vai supor que a água na torneira causou a poça sozinha. A
razão é que a água, por si só, não tem dentro de si o que é necessário para gerar o efeito em
questão. Uma torneira pingando por si só pode produzir um poça, mas não uma vermelha.
Portanto, você concluirá que a poça foi causada por outra coisa – uma lata de refrigerante
derramada, talvez, ou até o sangramento de alguém – ou que foi causado pela água da
torneira em conjunto com outra coisa, como um comprimido “efervescente” jogado em
uma poça de água ou mesmo ferrugem pesada na linha de água. Ao raciocinar dessa
maneira, você estaria evidenciando um compromisso tácito com o princípio da causalidade
proporcional, a saber, que uma causa não pode dar ao seu efeito o que ela mesma não tem,
quer formalmente, eminentemente ou virtualmente. No entanto, às vezes é sugerido que
este princípio é refutado pela evolução, uma vez que se formas de vida mais simples dão
origem a formas mais complexas então (é afirmado) elas certamente devem estar
produzindo em seus efeitos algo que elas não têm que dar. Mas isso não segue. Cada
espécie é essencialmente apenas um variação no mesmo material genético básico que
existe há bilhões de anos anos a partir do momento em que a vida começou. Na história
darwiniana, uma nova variação surge quando há uma mutação na estrutura genética
existente que produz uma característica que passa a ser vantajosa dadas as circunstâncias
no ambiente da criatura. A mutação, por sua vez, pode ser causada por um erro durante o

33
processo de replicação do DNA ou por algum fator externo como radiação ou danos
químicos. Assim como a água em conjunto com outra coisa pode ser suficiente para
produzir uma poça vermelha, mesmo que a água por si só não seria, o mesmo acontece
com o material genético existente, a mutação, e as circunstâncias ambientais juntas geram
uma nova variação biológica mesmo que nenhum desses fatores por si só seja suficiente
para fazê-lo. Desta forma, evolução já não representa um mais de um desafio ao princípio
da causalidade proporcional do que o exemplo da poça.

De fato, como Paul Davies aponta em The Fifth Miracle (citado anteriormente), negar que as
informações contidas em um novo tipo de forma de vida deriva de algum fator de fatores
preexistentes – especificamente, em parte do ambiente do organismo, se não de sua
herança genética por si só - contradiria a segunda lei da termodinâmica, que nos diz que a
ordem (e, portanto, o conteúdo da informação) tende a diminuir, não aumentar, dentro de
um sistema fechado.

O princípio da causalidade foi notoriamente desafiado por Hume, que afirmou, como
observamos anteriormente, que podemos facilmente conceber uma coisa vindo a existir
sem qualquer causa. O que ele tem em mente é algo como imaginar a superfície de uma
mesa que a princípio não tem nada sobre ela, mas sobre a qual uma bola de boliche aparece
de repente, “do nada”, por assim dizer. Mas há vários problemas com a sugestão de que
este exercício de imaginação implica conceber algo vindo a ser sem causa. Primeiro, ele
falsamente assume que imaginar algo – isto é, formar uma imagem mental disso – é o
mesmo que concebê-lo, no sentido de formar uma ideia intelectual coerente disso. Mas
imaginar algo e concebê-lo no intelecto não são as mesma coisa. Você não pode formar
uma imagem mental clara de um quiliógono – um polígono de 1000 lados – certamente não
uma que seja diferente de sua imagem mental de uma figura de 997 lados ou de uma figura
de 1.002 lados. Ainda assim, seu intelecto pode facilmente compreender o conceito de um
quiliógono. Você não pode formar nenhuma imagem mental de um triângulo que não é
equilátero, isósceles ou escaleno. Mas o conceito de triangularidade que existe em seu
intelecto, que se abstrai dessas características concretas de triângulos, se aplica igualmente
a todos eles. E assim por diante. Como muitos empiristas, Hume funde o intelecto e a
imaginação, e sua argumento soa plausível apenas se alguém o seguir ao cometer esse erro.

Em segundo lugar, como apontou Elizabeth Anscombe, imaginar algo aparecer de repente
não é nem mesmo imaginar algo (quanto mais conceber) vindo à existência sem uma causa.
Suponha que a situação descrita realmente aconteceu com você: uma bola de boliche
aparece de repente em sua mesa. Sua reação espontânea certamente não seria concluir que
a bola entrou em existência sem causa; em vez disso, você se perguntaria "de onde veio
isso?" … uma questão que pressupõe que há uma fonte, uma causa, a partir da qual a bola
de boliche saltou. Você também sem dúvida consideraria todos os tipos de explicações
bizarras - um truque de mágico, um cientista louco testando um dispositivo de
teletransporte, uma flutuação quântica astronomicamente improvável na mesa – tudo isso
antes mesmo de ocorrer a você que pode não haver nenhuma causa. Com efeito, isto pode
nunca ocorrer a você; deve mesmo a explicação mais bizarra ser descartada fora, você

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provavelmente pensaria "acho que nunca saberei o que causou isso" - o que causou isso,
não se foi causado. De qualquer forma, não há nada sobre o tipo de situação que Hume
descreve que equivale a imaginar algo vindo à existência sem causa, em oposição a vir à
existência com uma causa desconhecida ou incomum. Mas o argumento de Hume é ainda
mais problemático. Anscombe nos pede para considerar como faríamos para determinar se
o tipo de cenário que descrevemos é realmente um caso de algo vindo a existir em primeiro
lugar, em oposição, digamos, a meramente reaparecer de algum outro lugar onde já existia.
E a resposta é que a única maneira de fazer isso é fazendo referência a alguma causa da
coisa estar aqui de repente como sendo uma causa de criação, especificamente, em vez de
uma causa de transporte. Então, a única maneira que podemos, em última análise, dar
sentido a algo que está surgindo é por referência a uma causa. Assim, o que Hume diz que
podemos facilmente conceber não só não foi concebido por ele, mas parece provavelmente
impossível de conceber.

Às vezes também é sugerido que a mecânica quântica mina o princípio da causalidade na


medida em que implica que o mundo não é determinista. Mas o aristotélico não considera o
mundo como determinista em nenhum caso (o determinismo é uma visão associada à
concepção mecânica de natureza que os aristotélicos rejeitam), e assim não sustenta que
toda causa deve ser um causa determinista. Como observou o tomista analítico John
Haldane, se pode apelar para propensões naturais objetivas e não determinísticas em
sistemas para explicar os fenômenos que eles exibem, isso será suficiente para nos fornecer
o tipo de explicação que o aristotélico reivindica que cada coisa contingente no mundo deve
ter.

Assim, o princípio da causalidade parece seguro. E vale ressaltar que é um princípio que é,
de qualquer modo, pressuposto na investigação da ciência empírica – que está no negócio
de procurar as causas das coisas – e assim, na própria atividade tida como paradigma de
racionalidade pelos mais inclinados a desafiar o princípio da causalidade, ou seja, os ateístas
que procuram bloquear argumentos de “Primeira Causa” para a existência de Deus do tipo
que será examinado no próximo capítulo.

Ser

Dentro da filosofia analítica recente, o aspecto do pensamento de Tomás de Aquino que


talvez tenha recebido a maior atenção negativa é sua distinção entre essência e existência.
Em particular, Anthony Kenny alegou sobre este assunto que Aquino estava
“completamente confuso” e que sua doutrina é pouco mais do que “sofisma e ilusão”. Para
entender as críticas de Kenny, é necessário primeiro resumir brevemente a noção de
existência introduzida na lógica moderna por Gottlob Frege (1848- 1925). Pegue uma frase
como “gatos existem”. À primeira vista, isso parece predicar a existência de um certo tipo
de objeto, nomeadamente, gatos. Mas Frege argumentou que essa aparência é enganosa. A
existência, afirmou ele, não é um predicado de objetos (ou seja, um predicado de primeiro
nível), mas sim um predicado de conceitos (ou seja, um predicado de segundo nível). Neste

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caso, está sendo predicado do conceito ser um gato. Assim, para revelar a estrutura lógica
da frase em questão, teríamos que reescrevê-la dizendo algo como “existe pelo menos um x
tal que x é um gato.” Isso não nos diz que um certo objeto tem uma propriedade ou
atributo de existência; em vez disso, nos diz que há pelo menos menos uma coisa que caia
sob um determinado conceito. Assim, a frase em questão não nos diz algo sobre gatos
individuais, mas sim algo sobre o conceito de ser um gato. Um argumento padrão para a
visão de que essa noção fregeana de existência é a única noção legítima é que se a
existência fosse um predicado de primeiro nível de objetos, então (afirma-se) afirmações
existenciais negativas como “marcianos não existem” seriam autocontraditórias, o que
obviamente não pode ser. Se pensamos nesta afirmação como estar dizendo que os
marcianos não têm a propriedade ou atributo de existência, isso parece implicar que
existem (ou seja, existem) certas criaturas, nomeadamente marcianos, que carecem de
existência. Como isso é um absurdo, a afirmação “marcianos não existem” não pode ser
interpretada como negando uma propriedade ou atributo de existência para algum objeto
ou objetos. Deve ser, portanto, interpretada à luz da doutrina da existência de Frege como
dizendo algo semelhante a “não é o caso de haver pelo menos um x tal que x seja um
marciano.” Isto é, diz do conceito ser um marciano que não há nada a que ele se aplica.

A objeção central de Kenny a Aquino (que ele toma emprestado de Peter Geach, e
desenvolve longamente em seu livro Aquinas on Being) é que o a doutrina de que a essência
de Deus é idêntica à sua existência pode ser vista como incoerente quando lida à luz da
doutrina da existência de Frege. Isso equivale, ele alega, a pensar que a resposta correta
para a pergunta "o que é Deus?" é "há um", o que, claro, seria uma resposta absurda. Mas
desde que "o que é Deus?" é uma questão sobre a essência de Deus, e "existe um x tal que x
é Deus" é (ele sustenta) o que se entende por falar sobre a existência de Deus, esta resposta
absurda é o que Aquino está de fato apresentando quando afirma que a essência de Deus é
idêntica à sua existência. Os defensores de Aquino responderam a Kenny de várias
maneiras. Brian Davies, por exemplo, embora mais ou menos admitindo a análise fregeana
de Kenny de existência, argumenta que Kenny interpretou erroneamente a afirmação de
Aquino de que em Deus essência e existência são idênticas. Esta afirmação não é (assim
sugere Davies) uma tentativa de nos dizer o que Deus é, mas sim uma declaração sobre o
que Deus não é. Isto é uma peça de "teologia negativa", em vez de uma caracterização
positiva de natureza de Deus. Em particular, está nos dizendo que o que quer que Deus seja,
ele não é o tipo de coisa que pode inteligivelmente ser dito ser capaz de não-existência,
como objetos materiais e outras coisas contingentes podem ser. E não há nada nisto que
implica a resposta absurda à pergunta "o que é Deus?", que Kenny coloca na boca de
Aquino.

Mas outros tomistas objetariam que tal resposta dilui desnecessariamente a doutrina do ser
de Aquino e concede demais à crítica de Kenny, uma vez que é tendencioso supor que
Aquino está ou deveria estar operando com uma noção fregeana de existência. Como disse
Gyula Klima, “é ridículo reivindicar a vitória gritando 'xeque-mate!' em um jogo de poker".
Mas isso é precisamente o que Kenny parece estar fazendo sempre que ele grita 'você não
está sendo um fregeano bom o suficiente!' para Aquino. Certamente outras concepções de

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existência são possíveis. De fato, o próprio Kenny (novamente seguindo Geach) distingue
entre "existência específica", que é do tipo fregeano, capturado em declarações da forma
"existe um x tal que…" e "existência individual", que ele admite é genuinamente predicado
de um objeto, como está em (para usar o exemplo de Kenny) uma frase como “a Grande
Pirâmide ainda existe, mas a Biblioteca de Alexandria não." Existência individual é
exatamente o que a Biblioteca de Alexandria perdeu quando foi destruída, mas que a
Grande Pirâmide ainda tem. Agora, Kenny permite que a doutrina de que a essência e a
existência de Deus são idênticas possa ser interpretada como dizendo que Deus tem
"existência individual" de uma maneira eterna.

Mas ele não acha que mesmo essa noção de existência possa salvar a posição de Aquino,
pelo menos não se essa posição permanecer interessante. Porque, ele argumenta, o
máximo que poderia significar sensatamente dizer que a essência de Deus é idêntica à sua
"existência individual" neste sentido é que enquanto Deus é Deus, ele tem "existência
individual". E isso, Kenny diz, é verdade para tudo; por exemplo, enquanto algum cachorro
Fido for Fido ele terá “existência individual" também. Assim, a "existência individual",
conclui Kenny, é inútil para explicar uma noção de existência na qual a essência de Deus é
idêntica à sua existência, enquanto em todo o resto a essência e a existência são distintas.
No entanto, como Klima reclama, esse argumento de Kenny (como seu anterior)
simplesmente se recusa até mesmo a tentar entender a noção de existência de Aquino em
termos lógicos que o próprio Aquino teria aceito, ao invés de termos pós-fregeanos.

Em particular, não considera a possibilidade de ler "existe" como tendo sentidos análogos
em vez de unívocos (uma distinção explicada acima na seção sobre os transcendentais) em
"Fido existe" e "Deus existe", onde tal leitura obviamente pelo menos abriria o possibilidade
de que dizer que enquanto Deus é Deus, ele existe, é fazer uma afirmação mais forte do que
dizer que enquanto Fido é Fido, ele existe. (Nós podemos acrescentar, com Barry Miller, que
desde a doutrina da simplicidade divina de Aquino sustenta que o ser de Deus é o seu poder
que é o seu conhecimento que é a sua bondade, e assim por diante, há claramente mais
conteúdo na concepção de Aquino do ser de Deus do que Kenny deixa transparecer.
Examinaremos a noção de simplicidade divina no próximo capítulo.)

Há, em todo caso, amplas razões para duvidar que a noção fregeana de existência captura
tudo o que precisa ser capturado por uma análise de existência. Considere que quando nos
dizem que "gatos existem" significa "há pelo menos menos um x tal que x é um gato" ou
que algo cai sob o conceito de ser um gato, ainda há a questão do que torna isso o caso, do
que é exatamente em virtude do qual há algo que cai sob este conceito. E a resposta a esta
pergunta adicional é (como David Braine e John Knasas têm apontou) o que Aquino quer
alcançar em sua fala de um "ato de existir" que é distinto da essência de uma coisa (neste
caso, um gato), mas que deve ser unido a ele para que a coisa seja real.

Em resposta ao que me referi acima como o argumento padrão para a legitimidade


exclusiva da análise fregeana de existência, Knasas nega que considerar a existência como
um predicado de primeiro nível tem a implicação absurda de que "marcianos não existem" é
autocontraditório. Pois isso seguiria apenas se, quando apreendemos o conceito de
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marcianos, necessariamente já o apreendemos como aplicando a algo existente na
realidade, para que "marcianos não existem" equivale a "os marcianos existentes não
existem", o que, obviamente, é autocontraditório. Mas declarações que atribuem existência
ou inexistência a uma coisa, diz Knasas, não funcionam logicamente da mesma maneira que
outros atributos declarações fazem. Em particular, seus assuntos são apreendidos em uma
existência neutra. No caso em questão, nossa mera compreensão do conceito de marcianos
não implica em um juízo de que eles existem ou um juízo de que eles não existem, mas
deixa a questão em aberto. "Marcianos não existem" assim diz, não "os marcianos
existentes não existem", mas sim algo como “marcianos, que são existencialmente neutros,
não existem de fato".

Em geral, para Knasas, como para Aquino, quando a mente apreende a essência de uma
coisa, ela apreende como algo distinto de seu ato de existir (ou falta dele), mesmo que isso
do qual o ato de existir se predica em última instância é a própria coisa e não um mero
conceito. É claro que os filósofos pós-fregeanos modernos podem discordar com isso, mas o
simples fato desse desacordo não prova que Aquino esteja errado. Aqui, como na questão
da causalidade final, os filósofos contemporâneos precisam ter em mente que o fato de que
os pressupostos filosóficos básicos de Aquino serem muito diferentes dos seus próprios, por
si só, não revela qualquer tendência a mostrar que as suposições de Aquino são
equivocadas ou que elas não devem ser levadas a sério como opções vivas hoje.

O lado da "essência" bem como o lado da “existência” da doutrina do ser de Aquino


também foi alvo de críticas de Kenny. Em particular, ele se opõe ao relato de Aquino dos
anjos como formas puras ou essências. Ele argumenta que, diferentemente da humanidade
de Platão, que é predicada de Platão em "Platão é humano", "uma pura forma seria algo
que corresponderia a um predicado em uma frase que não tinha sujeito; mas isso parece
quase um absurdo" (p. 30). Da mesma forma, ele implica na mesma passagem que a
concepção de anjos de Aquino é a de "formas que não são inerentes a nenhuma
substância". Mas isso deturpa a posição de Aquino.

Afinal, Tomás de Aquino se refere aos anjos como "substâncias separadas", então é
estranho que Kenny atribua a ele a visão que ele atribui. E do que é separado não é um
sujeito ou uma substância, mas a matéria. Esta separação da matéria é também o que se
entende por chamar um anjo de "forma pura". Aquino não quer dizer com esta expressão
que um anjo é uma forma, ponto final, como se não houvesse mais nada a ser dito; como
vimos, ele considera um anjo como uma forma ou essência unida a um ato de existir. Daí
deve ser óbvio o sujeito particular ou substância com a qual um certo anjo (Gabriel,
digamos) é identificável: é a forma de Gabriel conjugada com seu ato individual de existir.
Isso também nos dá a resposta a uma pergunta retórica que Kenny levanta: “O que, nos
perguntamos, é a diferença entre as formas puras angelicais que Aquino aceita e as Ideias
ou Formas platônicas que ele rejeita?" (pág. 30). A diferença é que uma forma pura
angelical é um concreto (embora imaterial) particular, com seu próprio ato individual de
existir, enquanto uma Forma Platônica é uma universal. O realismo de Aquino sobre
essências, então, é consistentemente moderado ou aristotélico ao invés de platônico.

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Podemos notar que, assim como seu compromisso com causalidade final, esse realismo
moderado é um aspecto de sua metafísica que encontra apoio significativo na “nova
filosofia essencialista” da ciência descrito anteriormente, que considera a ciência física
como num negócio de descobrir as essências das coisas (com “essência”, decididamente,
um sotaque aristotélico dado por esses filósofos). Mas então, o essencialismo foi fazendo
uma espécie de retorno na filosofia contemporânea mais geralmente, como evidenciado
pelo trabalho de Kripke e Putnam mencionado acima. E mesmo que a forma Kripke-Putnam
de essencialismo deva (pelas razões citadas anteriormente) ser julgada como deficiente do
ponto de vista aristotélico, ao menos restaurou à corrente filosófica uma consciência de
temas que filósofos como os novos essencialistas e, mais especialmente, tomistas
contemporâneos de orientação analítica como Klima e Oderberg, que foi capaz de se
desenvolver em uma direção mais sólida.

Como o "novo essencialista" Crawford Elder observou, a negação de que as essências são,
em certo sentido, objetivamente reais nos leva ao paradoxo em qualquer caso. Pois, se
dizemos que as essências são meramente produtos da convenção humana, então isso teria
que incluir nossa essência, a essência do ser humano também. Mas isso é incoerente. Para
formar convenções em primeiro lugar, temos que existir como espécie, compartilhar uma
essência que nos constitui como tal; e se nossa essência assim nos faz o que somos, não
podemos, por sua vez, ser aquilo que torna nossa essência o que ela é. Ao todo, a doutrina
de ser e essência de Aquino, como sua compreensão de causalidade em suas várias formas,
está muito viva e alguns filósofos contemporâneos têm todas as razões para levá-la a sério –
não menos importante por causa dos papéis que essas doutrinas desempenham nos
argumentos de Aquino na filosofia da religião, a filosofia da mente e a ética, como veremos
nos demais capítulos deste livro.

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