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FABIO DAFLON TÍTULO

PROVISÓRIO
O MOVIMENTO ESTUDANTIL NAS CIÊNCIAS MÉDICAS

editora quilombo
Editor responsável: Walter Codo

Foto da Capa: Hospital Pedro Ernesto

gentilmente cedida por

Antonio Augusto F. Quadros

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Composição e fotolito: Editora Quilombo Ltda.

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Direitos desta edição reservados à

Editora Quilombo Ltda.

Rua Dom João V, 586

05075 – São Paulo

Tel.: 261-7761

1980
TÍTULO PROVISÓRIO

- O Movimento Estudantil na Ciências Médicas –

Fábio Daflon
Ao Dr. Pedro Ernesto, pelo legado

à Ciências Médicas e à Estrutura de

Saúde do Estado
SUMÁRIO

O Autor ---------------------------------------------------------------------------------------------------------------- 9

Prefácio sem prefaciador ---------------------------------------------------------------------------------------- 11

Introdução ---------------------------------------------------------------------------------------------------------- 13

O trabalho e a gratidão ------------------------------------------------------------------------------------------ 21

A superação da Lei Suplicy -------------------------------------------------------------------------------------- 23

Mundo fechado, mundo aberto ------------------------------------------------------------------------------- 28

A Ciências Médicas em crise ------------------------------------------------------------------------------------ 33

A repressão --------------------------------------------------------------------------------------------------------- 39

Participação política pós-68 ------------------------------------------------------------------------------------ 49

A AEMEG e a CDCR ------------------------------------------------------------------------------------------------ 57

O ensino pago ------------------------------------------------------------------------------------------------------ 65

Os acadêmicos bolsistas ----------------------------------------------------------------------------------------- 71

Um título para a consciência ----------------------------------------------------------------------------------- 83

1977 – A retomada das lutas – Reabertura do Centro Acadêmico ------------------------------------ 92

Perguntas sem respostas ---------------------------------------------------------------------------------------- 99

Aèrogramme ------------------------------------------------------------------------------------------------------ 102

Bibliografia -------------------------------------------------------------------------------------------------------- 103


O AUTOR – DADOS BIOGRÁFICOS

Nascido a 9 de fevereiro de 1954, Fabio Santos Daflon Gomes ingressou na


Faculdade de Ciências Médicas da UERJ (então UEG) em 1973. Como estudante foi membro do
Conselho de Representantes dos Alunos nos primeiro e segundo anos do curso. Participou
como candidato pela Chapa Reabertura da Campanha que levou o Centro Acadêmico da
Faculdade de Ciências Médicas a ser reaberto em 1977.

Atualmente é membro da Diretoria da Associação de Médicos Residentes do


Hospital das Clínicas da UERJ (AMERE-HC). E, conforme deliberação do Congresso Nacional de
Médicos Residentes, luta na Associação Hospitalar pela regulamentação trabalhista e didática
da Residência Médica.
PREFÁCIO SEM PREFACIADOR

Onde estava Salgado? Não sabia,

Não sabia onde estava ninguém

Fernando Gabeira

O prefácio, qual seja a intenção que o mova, deve servir aos propósitos de
sublinhar o significado da obra, facilitar a compreensão da sua mensagem. O autor do livro, via
de regra, procura outra pessoa para cumprir essa tarefa, teme cair em redundância.

Onde estava Salgado? Não sabia onde estava o último presidente do Centro
Acadêmico Sir Alexander Fleming (CASAF). Era um dos personagens-chave. Eu não sabia como
abrir as portas que me levassem a ele. Reconstituía sua trajetória sem alcançar um ponto de
encontro.

João Lopes Salgado será sargento da aeronáutica, filho de camponeses e


ingressou na Faculdade de Ciências Médicas em 1967. Não correspondia ao biótipo comum
dos estudantes de medicina, mais corpulento, moreno e alto, era o único líder estudantil da
Ciências Médicas a discursar na rua. Dentro da escola, transformou em movimento estudantil
o trabalho iniciado em 1963.

Após o assassinato do estudante Luiz Paulo, na porta do Hospital Pedro


Ernesto, Salgado começou a trilhar os difíceis caminhos da clandestinidade em 1969.
Desapareceu da escola e só se soube notícias dele em meados do mesmo ano, por ocasião do
sequestro do embaixador dos Estados Unidos no Brasil, Charles Burke Elbrick. Era legítima
defesa. O objeto da ação era livrar quinze presos políticos do padecimento dos cárceres em
troca do embaixador.

Tão logo a operação-sequestro teve sucesso, o grupo se dispersou; o Rio de


Janeiro não constituía mais lugar seguro. Quando as barreiras foram removidas das estradas se
distribuíram por outros estados.

Foi João Lopes Salgado, já conhecido como Dino ou Fio, que organizou o
transporte do Capitão Lamarca e sua companheira até a Bahia – a tarefa de ir ao Rio buscar um
quadro queimado e levá-lo para Brotas de Macaúba.

Em 1971, ele esteve com Lamarca na Bahia e sobreviveu ao massacre, após o


que procurou a segurança no exílio. Segundo gravação sua enviada ao Tribunal Bertrand Russel
em Roma, na primavera de 1974, naquela ocasião vários camponeses foram crucificados num
campo de futebol.

No exílio, constituiu família. Após conseguir receber seu curriculum vitae, não
logrou ingresso nas faculdades de medicina francesas. Tornou-se então enfermeiro.
Quando o movimento popular, através da luta pela “Anistia Ampla, Geral e
Irrestrita”, fazia o governo elaborar uma fórmula para dar saída ao impasse, na certa João
Lopes Salgado sofria a expectativa dos brasileiros afastados da pátria.

Em estágio avançado do livro, pensei: “O personagem que eu não consegui


entrevistar vai ser o prefaciador”. Haviam arranjado um endereço. Emiti uma carta-convite,
mas não obtive resposta.

A anistia parcial do governo, restrita, belicosa, não solucionou os dramas


políticos acarretados pela repressão em sua totalidade.

Este prefácio, propositadamente, desvirtuado em sua função, não encontrou


seu real prefaciador: João Lopes Salgado. É uma alameda vazia, uma porta aberta para o Brasil.

Rio, 31 de dezembro de 1979


INTRODUÇÃO

“Quiero contar amigos,

una historia muy simple

y hablar simple no es fácil”

Pablo Neruda

O Rio de Janeiro é uma cidade que passou por modelos políticos os mais
variados, até vir a ser a capital do Estado do Rio de Janeiro. Ao tempo da destituição do
Presidente Washington Luís, como Distrito Federal, com a instituição do Governo Provisório
(Governo Revolucionário) teve nomeado como Prefeito-Interventor o respeitado cirurgião
Pedro Ernesto.

Enquanto a revolução assumia suas feições, o Dr. Pedro Ernesto, pelas obras
realizadas em função das metas definidas como prioritárias de sua administração – o binômio
saúde e educação – angariou a simpatia do povo, que o referendou em seu cargo pelo voto.

Uma radical transformação, que verdadeiramente marcou época no setor da


saúde pública e da assistência médico-hospitalar, foi efetivada com a criação de hospitais e
dispensários. A instalação deste aparato, principalmente nos pontos mais distantes da cidade,
visava ao zoneamento do atendimento médico, uma assistência global ao indivíduo e a
população, dentro de uma estrutura que oferecesse aos médicos e para-médicos condições de
trabalho de primeira ordem.

Hoje, estes hospitais e dispensários fazem parte da problemática rede


hospitalar de serviços de pronto-socorro da Superintendência de Serviços Médicos do RJ,
esboçada, naquele tempo, com intuito de servir de estímulo ao aprimoramento profissional e
de levar um tipo de assistência médica e uma mensagem humana à população desvalida e, até
então, praticamente esquecida.

O plano de construção de um Hospital Geral surgiu como consequência do


zoneamento. O Hospital Geral Pedro Ernesto foi pensado para cumprir um ideal nobre, para
receber a população pobre que necessitasse de atendimento médico especializado, e servir de
laboratório de ideias científicas.

Construído em Vila Isabel, ponto considerado central, arquitetonicamente para


funcionamento das diversas clínicas, não chegou a ter concluído o prédio que serviria para o
funcionamento dos laboratórios, lavanderia e capela, pois a obra foi interrompida com a prisão
do Prefeito. A verba arrecadada dos cassinos, destinada à construção do hospital, foi então
desviada para outros fins.

Convidado pelo Prefeito para a Coordenação da Secretaria de Educação e


Cultura, Anísio Teixeira criou a Universidade do Distrito Federal. Iniciativa de autoridades
municipais revestidas de maior prestígio popular, teria sido uma das primeiras experiências
universitárias nacionais, não atraísse sobre si a hostilidade do Ministério da Educação, que
acabou por destruí-la, quando se implantou o Estado Novo.
Naquele tempo, não houve necessidade de agir com força contra as
organizações estudantis. O reforço da repressão foi exercido contra os professores; os
melhores foram afastados, alguns presos.

Para entender as imbricações de origem da UDF e da UERJ, é preciso saber que


esta última nasceu, historicamente, de entidades diversas que o destino reuniu; entre estas,
com o nome de batismo a Sociedade Anônima Faculdade de Ciências Médicas, fundada, em
1936, por um grupo de médicos liderados pelo Dr. Rolando Monteiro.

Então, para reconhecimento era indispensável o passe livre do governo. A


atuação de um dos acionistas-professores, parente do General Almério de Moura
(comandante da 1ª Região), no sentido de este exercer sua influência, possibilitou a liberação
do Álvara, reunindo-se a congregação pela primeira vez em 1938.

Nos seus primeiros anos de vida, a administração e algumas cadeiras da


Faculdade funcionaram nas dependências da Fundação Gaffrée-Guinle. Logo, porém, a disputa
entre a Fundação e a Faculdade, pelo direito de exercer ação disciplinar sobre o corpo
discente, motivou a construção da sede própria na rua Cadete Ulysses Veiga.

Posteriormente, em abril de 39, tomando a sociedade conhecimento de que o


então Conselho Nacional de Ensino considerava pequeno o seu patrimônio, em terreno sito na
rua Fonseca Teles, também em São Cristóvão, ergueu um edifício de dezoito andares, cujo
acesso se dá por uma ladeira fatigante, de todo imprópria para os doentes que, um dia,
esperava-se procurariam o hospital que nele se pretendia instalar.

O espírito comercial de alguns possuidores de vultoso número de ações, desde


a fundação da Ciências Médicas, fez com que a maioria dos professores – maioria como
professores, mas minoria como acionistas – progressivamente percebesse que o que no início
parecia “puro idealismo” enveredava para a competição no domínio econômico.

Além disso, com os novos professores que ingressavam através das provas de
concurso, e que não possuíam ações da S.A., formavam-se dois grupos: o dos empregados e o
dos empregadores. A voz da congregação era sufocada pela maioria do capital.

Simultaneamente a estas dissenções internas, com o fim do Estado Novo,


voltaram a atividade os ex-professores da UDF (por exemplo: Hermes Lima, então deputado
pelo Partido Socialista Brasileiro) e Anísio Teixeira abraçou novamente a causa da educação.

Logo os políticos colocaram em pauta a discussão da Universidade do Distrito


Federal, e ao elaborar a Lei Orgânica do DF, o parlamentar e professor Jonas Correa nela
procurou incluir um dispositivo visando à criação de uma universidade – a UDF – por meio da
encampação de faculdades já em funcionamento.

Na Sociedade Anônima Faculdade de Ciências Médicas, à insatisfação dos


professores somou-se a agitação estudantil. A encampação da FCM, na reinstituição da UDF,
pelo poder público, constituiria uma congregação mais democrática.
A manutenção da Universidade pela Municipalidade estabeleceria a
amortização progressiva das mensalidades caríssimas a que se submetiam os alunos.

Além disso, a oportunidade de utilização do aparelhamento oficial do


Município, no caso da Ciências Médicas os hospitais, promoveria o barateio do custo do
ensino.

A disposição recíproca destes fatores fez com que, após inúmeros projetos e
substitutivos de lei, em outubro de 1950, fosse promulgada a Lei que reinstituía a UDF, extinta
em 1939, rompendo um hiato de cerca de 12 anos até o ressurgimento com feições e
finalidades completamente diferentes.

Constituída então pela Faculdade de Direito do RJ; Faculdade de Ciências


Médicas; Faculdade de Ciências Econômicas do Rio de Janeiro e Faculdade de Filosofia do
Instituto Lafayette, a Universidade do Distrito Federal, depois do Rio de Janeiro, guardou sua
memória na antiga UEG, hoje Universidade do Estado do Rio de Janeiro. A esta reparação não
assistiu o Dr. Pedro Ernesto, que falecera em 1942.

Em agosto de 1953, os alunos da Faculdade de Ciências Médicas declararam-se


em greve, em virtude de a drástica redução da subvenção municipal ter levado a Reitoria a
restringir a verba destinada aos encargos financeiros dos alunos, primitivamente calculada de
forma a possibilitar-lhes a gratuidade. Rebelaram-se os alunos, declarando-se em greve
permanente, porque a Diretoria da Faculdade de Ciências Médicas lhes negou acesso às provas
parciais, em virtude de se acharem em débito com as suas contribuições.

Os acontecimentos tiveram repercussão extra-universitária. O reitor da UDF,


Professor Rolando Monteiro, utilizara a maior parte da verba, cujo escopo principal era
conceder o abatimento de mensalidades aos estudantes da UDF na realização de obras, em
prejuízo dos alunos.

Seguiu-se a nomeação de uma comissão de vereadores, para entender-se com


o Diretório Central de estudantes da UDF.

Estes mesmos vereadores subscreveram o requerimento nº 5746, “solicitando


ao Sr. Prefeito no sentido de intervir na reitoria da Universidade do Distrito Federal devido aos
motivos que apresentam” os quais, especificaram, visavam “pôr termo às divergências
surgidas entre os estudantes e o Conselho Universitário de um lado, e do lado oposto a
Reitoria mencionada, que teima em não atender às justas reivindicações dos universitários,
visando estes ao barateamento das mensalidades, aliás, de acordo com a intenção dos Srs.
Vereadores, quando aprovaram a subvenção à UDF”.

Os fatos e agitações foram num crescendo verdadeiramente inesperado para o


ambiente universitário.

Daí resultou, a partir de uma modificação na forma de escolha do Reitor,


votada pela Câmara do Distrito Federal e sancionada pelo Prefeito em 13 de outubro de 1953,
a destituição do Prof. Rolando Monteiro do cargo que ocupava e a implantação do ensino
gratuito na UDF.
A Ciências Médicas se tornou pública, portanto, na época em que se projetava
o polêmico Hospital Universitário da Ilha do Fundão para a então Universidade do Brasil; o
grande problema que se apresentava era dispor a Faculdade de um Hospital de Clínicas. E,
amadurecida a dimensão da necessidade, o Hospital Geral Pedro Ernesto passou a entrar nas
cogitações da Faculdade.

Aos alunos o castigo penoso de correr pela cidade durante o dia inteiro,
cruzando-a em todos os sentidos, da Gávea até o Engenho de Dentro, da Esplanada do Castelo
a São Cristóvão, para as aulas de clínica, ministradas em enfermarias da Santa Casa da
Misericórdia, da Fundação Graffrée-Guinle, da Policlínica Geral do Rio de Janeiro, do Hospital
Miguel Couto, da Polícia Militar, São Sebastião. Moncorvo Filho e mais alguns outros hospitais,
tornava a ideia extremamente sedutora.

Os docentes se dividiam, pois caso o hospital fosse integrado ao patrimônio da


Universidade, os catedráticos de mais de uma escola não poderiam assinar o ponto no local
onde serviam a mais de uma faculdade; por outro lado, abrir mão de uma cátedra significava
ter que passar a dividir a hegemonia do prestígio professoral no Estado em detrimento do
status quo.

Já havia, porém, professores que não possuíam seus próprios serviços. Estes
olhavam com simpatia a possibilidade de estruturação de feudo particular em espaço a
conquistar. Os mais idosos, próximos da compulsória, duvidavam do próprio fôlego para
começar uma estruturação nova.

Ao staff clínico do Hospital Geral Pedro Ernesto, a hipótese desagradava


profundamente. Estes homens, profissionais experientes, praticantes da medicina, teriam
provavelmente menor saber enciclopédico; entretanto, eram mais habilitados para a prática
médica que os professores. Acreditavam, por isso, que o academicismo levaria a uma queda do
padrão de atendimento do hospital. Argumentavam que as grandes vedetes da Faculdade
teriam mais um serviço para não comparecer, e pressentiam que a invasão do hospital pelos
catedráticos e demais docentes traria uma competição inusitada.

O Prof. Américo Piquet Carneiro, liderança universitária em projeção


acreditava que, conseguindo a Faculdade o seu Hospital de Clínicas, isto iria forçar
transformações na escola com os problemas que este traria. Recebia, neste sentido, o apoio
das lideranças estudantis que, através, da Comissão Pedro Ernesto, tornavam pública a luta
pelo hospital.

A possibilidade de a Faculdade de Medicina do Estado, antes da Federal, vir a


ter o seu Hospital de Clínicas, colocava o governo a favor do projeto. Em Decreto publicado no
Diário Oficial de 27.11.62, assinado por Carlos Lacerda (Governador da GB) e Marcelo Garcia
(Secretário de Saúde e Assistência), foi colocado à disposição da UEG o Hospital Geral Pedro
Ernesto, para nele a Ciências Médicas instalar o seu Hospital de Clínicas.

Assim, quando o Hospital foi incorporado à Universidade, o prédio, que em


primeiro lugar serviria para o funcionamento dos laboratórios, lavanderia e capela, foi
aproveitado, após os devidos estudos, com o término de sua construção, para a instalação do
prédio de cadeiras básicas, atualmente Edifício Professor Américo Piquet Carneiro.

Esta obra deveu-se à tenacidade, ao carinho e ao trabalho do emérito Prof.


Paulo de Carvalho, encarregado do planejamento da construção do prédio. A inauguração, em
1965, se deu sem o término da obra, por pressão do Governador Carlos Lacerda, em expiração
de mandato. Passou a ser a Ciências Médicas a primeira faculdade de Medicina do Estado a
funcionar in totum numa única área na antiga Guanabara.

Isto valorizou a FCM como escola médica e possibilitou o fortalecimento de


seu movimento estudantil. Os alunos passaram a se esbarrar com maior frequência e a discutir
os seus problemas e anseios.

Paralelamente à evolução da escola, a partir da elaboração da Lei de Diretrizes


e Bases da Educação, surgiu um projeto da Universidade ideal em todos os pontos de vistas,
desde uma participação efetiva de todo o estudantado, até a influência definitiva da
universidade na sociedade, opondo-se à estrutura acadêmica da universidade tradicional,
compartimentalizada em faculdades e, dentro delas, em cátedras autárquicas.

A criação da UnB por Darcy Ribeiro e sua equipe, de 1959 a 1961, generalizou a
crítica ao sistema de cátedras e amadureceu a agitação estudantil em prol da reforma
estrutural da universidade.

Foi em 1962 que se realizou a greve em favor da participação dos estudantes


nos órgão colegiados na proporção de 1/3 do conjunto dos membros. Naquele momento,
tratava-se da luta pela reforma universitária como luta pela democratização da universidade.

Isto em dois níveis: um era o poder da universidade, que até então era
exercido pelos conselhos universitários e congregações unicamente constituídos de
catedráticos, que eram donos de cada cadeira ou disciplina. Nesse terreno, os estudantes
propunham abolir a cátedra vitalícia e estabelecer alguns esquemas de aferição periódica da
capacidade dos professores; e ao mesmo tempo, a mudança na composição dos conselhos
universitários, congregações, conselhos departamentais, etc. Tratava-se de regulamentar um
item da Lei de Diretrizes e Bases que dizia assegurada a representação dos estudantes nos
órgãos de direção da universidade.

A greve era uma greve complicada, porque a questão tinha que ser
regulamentada no estatuto de cada universidade. As faculdades isoladas e outras que
pertenciam a universidades, mas que possuíam seus estatutos próprios, tinham que decidir se
incluíam no estatuto quantos representantes, etc.

Na Ciências Médicas, apesar de a greve ter sido considerado um fracasso pelas


lideranças de então, somente após a greve do terço é que o Conselho Técnico Administrativo
(CTA) passou a ter a presença regular do Presidente do Centro Acadêmico Sir Alexander
Fleming (CASAF) em suas sessões.

Em 1963, já com a perspectiva da utilização do hospital, foi dobrado o número


de vagas para a Faculdade. Como era a turma do 2º ano que sustentava o trote, os calouros,
mais numerosos, comandados, entre outros, por Luiz Roberto Tenório, Gilberto Hauagen
Soares e Gutemberg Damasceno, com o apoio da oposição à Chapa Ordem e Progresso (COP) –
eleita sobre os louros do “fracasso” da greve do terço – revoltaram-se contra o trote impondo
resistência.

A partir desse dia, o CASAF começou a perder o caráter de grêmio recreativo. A


importância do Diretório passou a ser tal que, sem ele, a faculdade não poderia funcionar; e se
funcionasse sem ele, deixaria de ser uma faculdade.

Como se vê, a Ciências Médicas não tem uma existência à parte. Sua história é
um apêndice da evolução política brasileira. O objetivo de colocar essa história a céu aberto é
contribuir para a sua transformação à luz do seu passado.
O TRABALHO E A GRATIDÃO

Este livro, elaborado entre março de 1978 e dezembro de 1979, é uma resenha
histórica voltada para a participação estudantil dentro de uma escola médica. foi escrito a
partir da vivência cotidiana e da montagem retrospectiva.

Constou de uma árdua pesquisa no campo da Introdução, visando obter uma


sequencia para o período que enfoca: março de 1964 a março de 1978.

Nesse campo, foram valiosos os documentos cedidos pelo Dr. Odilon Batista
(filho do Dr. Pedro Ernesto), as entrevistas com o Prof. Álvaro Cumplido de Sant’Anna (autor
do primeiro livro sobre a história da FCM) e a entrevista concedida pelo ex-professor da UDF –
Hermes Lima – pouco antes do seu falecimento. Contribuíram também a leitura dos livros que
situaram o autor no panorama educacional de então.

No que tange à documentação específica do período em tela, foram


consultadas as Atas da 434ª. Reunião do Conselho Técnico Administrativo da Faculdade de
Ciências Médicas da UEG, realizada em 10 de março de 1964, até a Ata da 281ª. Reunião do
Conselho Departamental da Faculdade de Ciências Médicas da UERJ, de 3 de novembro de
1977.

Foi constituído arquivo de todos os documentos expedidos pelo Centro


Acadêmico Sir Alexander Fleming passíveis de recuperação, assim como foi feito com os
documentos emitidos pelo Conselho de Representantes dos alunos: - órgão substitutivo do
CASAF, após o fechamento deste pela repressão.

Igual destino tiveram os jornais que noticiaram os acontecimentos da Ciências


Médicas, principalmente a partir de 1968.

O método de pesquisa foi empírico, constituindo exercício de aprendizado,


facilitado pela orientação do historiador Hélio Silva e pela leitura de livros de metodologia de
pesquisa histórica.

Meu reconhecimento a Fritz Carl Utzeri, que colaborou na revisão gramatical


do texto, e ao Prof. Ítalo Suassuna, que, como Diretor da Faculdade de Ciências Médicas,
permitiu que eu pesquisasse as atas do Conselho Departamental.

Substanciando o aspecto mais humano da empreitada foram entrevistados ex-


alunos e professores da Faculdade. Cito-os nominalmente, expressando minha gratidão de
saudade.

Os erros e omissões são de responsabilidade do autor.

Albineiar Valente Plaza

Álvaro Cumplido de Sant’Anna

Américo Piquet Carneiro

André Jorge Campello R. Pereira


Antônio Augusto Fernandez Quadra

Armando Hide

Arnoldo Flávio da Rocha e Silva

Cláudio da Rocha Roquete

Eduardo Faerstein

Eliana Cláudia Ribeiro Tadei

Eurys Maia Dallalana

Fritz Carl Utzeri

Gil Santini Pinto

Gilberto Hauagen Soares

Hermes Lima

Hésio de Albuquerque Cordeiro

Ismael Silva Neto

Ítalo Suassuna

Jayme Landmann

Jayme Pereira

João Ramos da Costa Andrade

José Assad

José Augusto Coelho Duque Estrada

José Augusto de A. C. Taddei

Júlio Sanderson

Luís Carlos Linch

Luís de Gonzaga Gawryszcwski

Luiz Roberto Tenório

Marcos Moreira

Murad Ihbrahim Belaciano

Nilcéia Freire Faerstein


Paulo de Carvalho

Paulo Gadelha

Pedro Henrique França

Ricardo Donato Rodrigues

Ricardo Elias

Wanda Coelho
I – A SUPERAÇÃO DA LEI SUPLICY

Para nós, a Universidade, não podendo ser

o reflexo do êxito – mesmo porque ele não

foi alcançado – tem de ser instrumento de

superação do atraso.

Darcy Ribeiro

A brigada contra o trote, composta em 1964 para garantir sua abolição, não
teve missão fácil. Quebrar uma tradição herdada das universidades europeias e introduzir um
outro tipo de integração mais humano, trazendo uma adaptação mais rápida para o calouro,
foi motivo de convocação de assembléia geral, na qual, em acalorado debate, foi criada a
Semana dos Calouros.

Ganha a causa, foi marcada a I Semana de Calouros para ter seu início em 1º
de abril de 1964. Constituída por atividades culturais e esportivas, teve o fito, também, de
apresentar aos novos colegas os problemas da escola e a discussão política. Desenvolviam-se
seus preparativos, enquanto, em contagem regressiva, aproximava-se o dia da sua abertura.

Nesse interregno, Moisés dos Reis Amaral, presidente do CASAF pela chapa
Unidade Estudantil – coalizão das tendências mais progressistas do movimento – encontrava-
se nos Estados Unidos, através do convênio UEG – Universidade de Stanford. Sua ausência
liberava a disputa entre a Chapa Ordem e Progresso (COP) – representante da direita – e as
novas lideranças menos conciliadoras nos dias que antecederam ao desfecho do golpe militar
de 1964.

Reafirmando a Universidade como caixa de ressonância das tensões sociais, o


incêndio da União Nacional dos Estudantes coincidiu com o início da Semana dos Calouros,
causando perplexidade e revolta. Extinguir uma violência menor passava a ser defrontar uma
muito maior.

Elementos da reação distribuíram notas de apoio ao golpe, sem perceber a


moldura familiar a que se submetiam, influenciados principalmente pelo lacerdismo.

Foi um momento difícil para o CASAF, pois tendo ficado sua sede em pequeno
prédio anexo ao principal na Fonseca Teles, fora cedida uma casa em ruína, na área do
hospital, para onde a massa dos estudantes convergia.

Alguns departamentos não estavam funcionando por falta de acomodações,


exigindo grande esforço para instalá-los. Enquanto as cinzas da UNE se espalhavam, o CASAF
se erguia a partir dos escombros.

O Departamento Cultural do Diretório, no dia 11 de abril de 1964, inaugurou a


Biblioteca Manoel de Abreu (BIMA). Em solenidade, com a presença da Sra. Dulce Evers de
Abreu – viúva do homenageado – colocou-se para os estudantes o objetivo de trazer para a
Ciências Médicas todas as condições para o aprimoramento da cultura em seu sentido amplo.
Compareceram ao ato o Prof. Lourival Cordeiro de Souza, representando o
Reitor, e o Prof. João Cardoso de Castro, representando o Diretor da Faculdade. A Biblioteca
Manoel de Abreu surgia como convite ao diálogo, ao livre debate, com respeito e apreço
mútuo.

A necessidade de estruturação da vida universitária a partir das atividades


culturais, como terreno fundamental para um objetivo maior de participação social, passava a
se contrapor ao imediatismo da formação médica, preenchendo uma lacuna e gerando
consciência crítica da estrutura social.

Quando, em setembro de 64, houve eleições para o CASAF, por todo o Brasil
havia diretórios estudantis fechados. Havia três meses, o Ministro da Educação solicitara ao
Presidente da República envio de mensagem ao Congresso Nacional extinguindo a União
Nacional Dos Estudantes, as Uniões Estaduais ou Metropolitanas de Estudantes e a União
Brasileira de Estudantes Secundaristas.

Eleito Presidente pela chapa Unidade Estudantil, Hésio de Albuquerque


Cordeiro, juntamente com a nova diretoria, deu sequência ao desenvolvimento das atividades
culturais, surgindo o Cine Clube Ciências Médicas (CICEME) com sangue novo e boa estrutura
interna.

Os professores Américo Piquet Carneiro e Paulo de Carvalho assumiram a


Direção e a Vice-Direção da Faculdade, em outubro de 1964. Foi Piquet quem arranjou
recursos para a Ciências Médicas. O que ela é hoje é devido a ele.

Nesta época, o mutirão formado pelos estudantes para a organização da


Biblioteca da FCM foi a primeira esperança de um ensino melhor. Assistia-se ao nascimento de
uma escola nova, assentada sobre os principais esteios da estrutura arcaica da Universidade.

O avassalamento da UnB, instituição pioneira na crítica à estrutura feudal das


universidades latino-americanas, não calara a reivindicação de uma universidade integrada. O
regime precisava maquilar qualquer resíduo de perspectiva progressista que pudesse
transpirar pelos pequenos poros da repressão.

A UEG, estoicamente, recebeu a maquilagem. Obedecendo à ordem de


“Departamentalização das Universidades”, em abril de 64 foi instalado o Conselho
Departamental da FCM, estrutura fac-símile ao Conselho Técnico Administrativo e
mantenedora do modus vivendi do órgão que substituiu.

A inversão e o detrimento dos valores culturais, substituídos pelo uso da


violência e de medidas coercitivas no meio universitário e no país, refletia-se no movimento
estudantil, através da tutela paternalista que o regime tentava estabelecer.

Quando a Lei 4.464 de 9 de novembro de 1964 foi assinada pelo Marechal


(Humberto) Castello Branco e por Flávio Suplicy de Lacerda, na Guanabara permaneciam
fechados o Centro Acadêmico Cândido de Oliveira, o Centro Acadêmico da Faculdade Nacional
de Filosofia e o Centro Acadêmico da Escola Nacional de Engenharia.
Esses diretórios só poderiam normalizar suas atividades, totalmente
suspensas, em agosto de 65, quando se anunciassem, conforme a Lei Suplicy, eleições para as
suas diretorias.

Em “O Plantão”, órgão oficial do CASAF, gestão 64/65, encontra-se o resultado


do plebiscito no qual a Ciências Médicas, juntamente com 28 outras escolas da antiga
Guanabara, com uma percentagem de 81,33% dos votos repudiou a Lei Suplicy. No mesmo
exemplar, as prisões políticas das lideranças estudantis eram denunciadas.

A Chapa Ordem e Progresso, após a “revolução”, adotou o nome de


Movimento de Renovação Universitária (MRU), sem abalar o crédito no progresso sem justiça
social, pugnando por pragmatismo e liberdade, dizendo-se livre de ideologias. O MRU, embora
a realidade o desagradasse, não ignorava o aspecto político do movimento estudantil.

Carlos Alberto da Silva, liderança de extrema direita, acusava que ele vinha
sendo insistentemente usado como forma de desagregação social, em uma concepção nova
das lutas de classe, que beneficiariam a implantação de um totalitarismo. Na América Latina,
Ásia e África, onde o pauperismo, a doença e a falta de educação se uniam no termo
subdesenvolvimento, o campo era fértil para a escalada comunista.

Acusava que transformar, se possível, as universidades em “guerrilhas” era


uma das recomendações do Congresso tricontinental de Havana, havendo, no mundo inteiro
elementos treinados para tal missão.

Concomitantemente, a Unidade Estudantil, aumentando as relações no CASAF


com o DCE, a UME e a UNE através da representação externa, elegeu Luiz Roberto Tenório
para Presidente do Diretório – gestão 65/66. Foi Tenório quem trouxe para dentro da escola o
aprofundamento da discussão sobre a legislação repressiva imposta ao estudantado.

Quando os presidentes de Diretórios da Guanabara burlaram a Lei Suplicy, não


apresentando chapas para o “Diretório Estadual de Estudantes”, em represália o regime
decretou o fechamento da União Metropolitana dos Estudantes.

A Comissão Inter-DCEs, responsável pela preparação do 23º Congresso da


UME, de há muito vinha levantando os diversos locais em que haveria possibilidade de sua
realização, concluindo, após avaliar os prós e contras, que o CASAF era o local de eleição.

Lideranças estudantis de projeção nacional passaram a marcar presença nas


assembleias da Faculdade. A consciência do estado repressivo, da ditadura fascista
implantada, somada a uma preocupação com o futuro político do país frente às sequelas que o
sistema de cerceamento das liberdades individuais traria, modificou qualitativa e
quantitativamente o nível de participação do corpo discente.

A universidade continuava acadêmica e pedante, voltando-se para si mesma,


para suas “ciências particulares e teóricas”, repleta de teóricos vaidosos e ortodoxos,
completamente divorciada dos problemas sociais, agindo e ditando ordens
discricionariamente.
Não demorou que o Magnífico Reitor da UEG, Haroldo Lisboa da Cunha,
enviasse a Ciências Médicas correspondência relativa às severas obrigações concernentes à
adaptação dos regimentos estudantis à Lei 4.464, sendo nomeado interventor o Prof.
Francisco Alcântara Gomes Filho para efetivar o cumprimento das determinações.

A posição dos estudantes foi pelo não enquadramento do CASAF na Lei Suplicy
e também pelo não reconhecimento do interventor como representante dos alunos, ficando a
diretoria eleita reconhecida como representativa, até a realização de novas eleições.

O Movimento de Renovação Universitária, frente à intervenção do CASAF,


pugnou por um movimento estudantil que não disseminasse a agitação no seio do povo,
imaginando tudo estar encerrado pelos caminhos normais, vendo na revolução, na luta
corporal ou de classes a única solução humana para a injustiça social.

Referindo-se à Lei Suplicy, lembrou um princípio por ele considerado básico: -


“em qualquer época e lugar vigente, uma lei é feita para ser cumprida. Isto não significa apoio,
pois até para revogá-la é preciso nunca antes aceitá-la como lei”.
II – MUNDO FECHADO, MUNDO ABERTO

Quando uma sociedade tem uma necessidade

técnica, isso não dá mais impulso à ciência do

que o fariam dez universidades.

Friedrich Engels

O Professor Américo Piquet Carneiro acreditava que a formação médica devia


ser alicerçada sobre um ciclo básico encorajador da aptidão de pesquisador e sem prejuízo do
ciclo profissional, assim assentado sobre bases sólidas, levando a uma prática médica de alta
competência e de teor científico do mais alto padrão.

A construção de prédio de cadeiras básicas e, junto com ele, o aparecimento


de laboratórios com melhores recursos e biotérios, abria para a Ciências Médicas a
possibilidade de incentivo à pesquisa, dentro da disponibilidade de um Hospital-Escola e com a
possibilidade de usufruto de uma biblioteca no melhor momento da sua existência.

Nessa conjuntura, colocou-se a escola de medicina da UEG ombro a ombro


com a da USP, passando a ser primeira opção para grande número dos vestibulandos,
aplicando exame de ingresso muito puxado.

Quando se anunciou a entrada de 300 excedentes nas diversas Faculdades de


Medicina do Estado, na tentativa de aquietar o mundo de candidatos reprovados nos
vestibulares, aquiesceu-se em que entrada dos excedentes criaria graves problemas de ordem
interna para a Faculdade.

No critério de classificação, as 416 vagas existentes haviam tido


preenchimento, sendo que todos os vestibulandos que obtiveram notas acima de zero
poderiam ser considerados aprovados. Após o vestibular, as regras do jogo haviam mudado no
sentido de estipular nora mínima para classificação e o critério de segregação de naturalidade
(quem fosse de um estado X não poderia ter feito provas para uma escola no estado Y). Na
realidade, os excedentes eram 900, e não apenas, 300, como estipulava o governo federal.

Estruturada para receber um número determinado de estudantes, com um


corpo docente que deixava muito a desejar, sofrendo a míngua de material, a Ciências Médicas
não aceitou os 80 excedentes que lhe caberiam além dos 100 alunos que já cursavam o
primeiro ano.

Assim, mesmo sob intervenção, com seu prédio trancafiado a sete chaves, o
CASAF-Livre (autônomo em relação à Lei Suplicy) colocou-se ao lado da Direção da Faculdade
na luta contra a tentativa do Ministério da Educação de impor à Ciências Médicas a entrada
dos excedentes. Entrariam em greve de solidariedade à Congregação da FCM, se necessário
fosse.

A Congregação era contra a admissão dos excedentes, a escola fora construída


para 100 alunos por série. Alto dirigente do MEC tentou convencer o Diretor em exercício,
Prof. Paulo de Carvalho, a dissuadir os demais professores. Como o Professor resistiu,
impedindo a implosão da escola, em represália foi feito um corte nas verbas que a
Universidade tinha direito a receber do CAPES.

Não bastava, entretanto, fechar a ponte levadiça e ruminar a auto-suficiência.


Havia de se escolher entre a mobilização imediatista e a reforma universitária.

A aplasia, devido ao crescimento universitário ridículo em relação aos


problemas nacionais; a esclerose, manifestada pela cátedra vitalícia, dando à universidade o
aspecto de museu arqueológico; a introversão, representada pela completa alienação face aos
problemas ex-mura, compunham um quadro de sintomas que emergia do tradicionalismo
doente da estrutura universitária.

Nesta altura Moniz de Aragão, nomeado Ministro da Educação, já não


conseguia impor a Lei Suplicy. Chegava ao término a intervenção no CASAF.

Para a gestão 66/67, novamente a chapa Unidade Estudantil ocupou todos os


cargos da Diretoria, cabendo ao acadêmico José Augusto Coelho Duque Estrada o cargo de
Presidente.

“O Boletim”, semanário de informação do CASAF, e o jornal mural


“Perspectivas”, criados no início da gestão do Duque, abriram espaço para a expressão das
ideias das novas lideranças que surgiam. Entre estas, Fritz Carl Utzeri, Gil Santini Pinto e
Cláudio José de Campos Filho.

Foi na edição provisória do Boletim nº 0, ano II, de 20.08.66, que Gil Santini
Pinto, em seu artigo “MUNDO FECHADO, MUNDO ABERTO”, colocou com clareza a
necessidade da crítica à Ciências Médicas como instituição de ensino.

No artigo, ao dissertar sobre a pobreza cultural na universidade, Gil analisou o


argumento de que ela nada mais seria do que fruto de uma péssima situação econômica: “...
se concordássemos com essa afirmação, teríamos que admitir que a cultura é patrimônio
fundado na riqueza, no bem-estar social. Além disto ser intolerável do ponto de vista histórico,
tal assertiva supõe que a capacidade criadora do homem se atualiza na razão direta de suas
posses, o que não é verdade”.

Ao se perguntar o que provocaria essa pobreza cultural, apontou duas causas:


a primeira, o fenômeno da aculturação: “...a classe média que predomina nas universidades
faz o jogo cultural da classe dominante, em vista de uma ascensão social; recebe e desenvolve
em seu seio, de modo subliminar, pseudo valores culturais que a amortecem e a desintegram
em sua base, que são seus membros”.

Exemplificou com as concepções de amor e trabalho: “... deturpadas por um


individualismo crônico que torna o homem um ser medroso, solitário, incapaz de se
comprometer com o seu meio, em vista da construção da sociedade”, para completar o
raciocínio colocando: “... a imposição desses pseudo-valores à vida cotidiana do povo. Uma
propaganda bem dirigida sedimenta o pessimismo em relação às potencialidades da nação
que, tragicamente, para gáudio de alguns e desgraça da maioria, continua dormindo em berço
esplêndido”.

A segunda, a fuga de toda e qualquer análise e discussão dos problemas extra


curriculares: “... o estudante é para estudar, palavra de ordem comum para condenar as
esquerdas, faz com que o estudo deixe de ser ferramenta para a construção da sociedade e se
torne instrumento de satisfação pessoal. O futuro médico sabe que a fome, as bombas, e
remotamente as próprias ideologias, quando não respeitam a pessoa humana, são causas de
doença, de alienação, mas pressionado pela promessa de ascensão social recusa-se a
participar, submetendo-se ao MUNDO FECHADO da Universidade. Na verdade, a universidade
brasileira não é autônoma. Está ela fechada por interesses que não permitem torná-la um
centro de elaboração científico-cultural do homem”.

A criação de “gênios” através da manipulação experimental do homem, os


meros mimetismos de fórmulas, a universidade como trampolim para a ascensão social
começavam a sofrer processo de questionamento irreversível.

Os estudantes procuravam não se isolar dentro das paredes das faculdades,


nem ficar apenas nas ruas. Haviam entendido a necessidade de conduzir suas lutas específicas
dentro e fora das faculdades e de, simultaneamente, conduzir a denúncia política do sistema
existente.

O Governo, através do convênio firmado entre o MEC e a United States Agency


for International Development (USAID), tentava implantar sua política de estímulo ao
investimento estrangeiro na Universidade.

O acordo MEC-USAID propunha a implantação de um sistema administrativo


tipo empresa privada, ameaçando a escola pública, instrumento de integração e coesão da
comunidade.

A Ciências Médicas, que em período de maior democracia se transformara de


empresa comercial em Faculdade Pública, novamente se defrontava com a possibilidade do
início de cobrança de taxas referentes a serviço de ensino.

O movimento estudantil em ascensão importante impedia a implantação do


ensino pago. A UME organizava passeatas para pressionar o MEC, exigindo verbas para a UEG
e UB. As Universidades do Brasil, do Estado da Guanabara, Federal Fluminense, PUC e
Faculdades Independentes fizeram greve de protesto contra a política educacional do governo
e a cobrança de taxas.

O Sr. Moniz Aragão condenava as greves como prejudiciais ao aluno,


declarando: “... As tarefas de ensinar e aprender coincidem. E não são opostas como as
reivindicações de patrões e empregados. Então, por que paralisá-las?”.

Escolhido paraninfo dos doutorandos de 66, o Prof. Arnoldo Flávio da Rocha e


Silva, na colação de grau, em seu discurso respondeu: “- O ano de 1966 mostrou de que são
capazes, com coragem e decisão, a estudante e o estudante brasileiro. Vós tereis orgulho de
dizer que pertenceis à classe que, neste ano, com tanta coragem e heroísmo, sustentou uma
luta tão desigual e pode desmascarar os coveiros da autonomia universitária”.

Assim transcorreu a gestão do Duque, o qual, após a Unidade Estudantil


ganhar as eleições para o CASAF, passou a presidência do Diretório para Gilberto Hauagen
Soares – gestão 67/68.

As lideranças estudantis sofriam um processo de autocrítica desde 64. O bloco


que existira no pré-64 formulara a sua auto-crítica, que se encerrou por volta de 67, liberando
as forças orgânicas no sentido de atuarem externamente, na sociedade, e não mais se
dedicarem apenas ao debate político e teórico.
A CIÊNCIAS MÉDICAS EM CRISE

A universidade de que precisamos, antes

de existir como um fato no mundo das

coisas, deve existir como um projeto,

uma utopia, no mundo das ideias.

Darcy Ribeiro

Quem quisesse participar da comissão do currículo era só comparecer dia tal


no CASAF para, a partir da contribuição de todos os alunos, promover uma discussão crítica
sobre o ensino na Ciências Médicas.

Na primeira reunião da comissão, apareceu um grande número de pessoas,


mas à medida que as tarefas tinham que ser realizadas, como se acontecesse uma triagem,
este número diminuiu até ser fixada a composição final da comissão do currículo: Gil Santini
Pinto, Albinear Valente Plaza, Rebeca Zetune, Maria Miraci Lafetá, Ricardo Donato Rodrigues,
Cláudio José de Campos Filho, André Jorge Campello Rodrigues Pereira.

Esta comissão realizou um trabalho de capina durante as férias, no sentido de


publicar um trabalho intitulado “Resultado do Inquérito Aplicado aos alunos da FCM – do 2º ao
6º ano atuais – sobre o ensino nesta Faculdade”, diagnóstico elaborado a partir do que
pensavam aqueles que sofriam o ensino.

O ano de 1968 merece realce pela gama de acontecimentos que conteve e


pela tragicidade que encerrou. Marcado, em seu início letivo, pelo assassinato do estudante
Édson Luiz de Lima Souto e pela divulgação, mão a mão e em grande murais, do Inquérito
sobre o ensino da FCM, no sentido de criticar com coragem a formação médica recebida.

A mola propulsora da iniciativa era trazer elementos para uma discussão que
possibilitasse o encaminhamento a uma reforma curricular a partir da seguinte visão:

1. O ensino superior no Brasil define-se como um meio atraente de


promoção individual, sem qualquer vínculo ou compromisso direto e imediato com o
crescimento global da comunidade.
2. A formação médica que recebemos está caracterizada pelo espírito
competitivo, pela irresponsabilidade frente aos problemas da sociedade. Isto é, há uma
supervalorização da medicina de “alta qualidade” levando à desvalorização da medicina
voltada para a realidade, oferecendo um instrumental de trabalho condizente com as
possibilidades econômicas e de saúde da comunidade.
3. Nosso aprendizado tem como elemento chave a MEMORIZAÇÃO e não
o RACIOCÍNIO. O estudante não desenvolve sua inteligência crítica. Submete-se aos
argumentos da autoridade, em detrimento dos argumentos da razão. Daí termos no decorrer
do curso:
a) sensação de perda de tempo, trazida pela passagem das cadeiras
básicas;
b) descaso e fuga do ambiente escolar, evidente nos três últimos
anos, quando começamos a procurar aprender a prática médica
fora da escola;
c) aceitação passiva do ensino estabelecido, como forma de não se
comprometer com os problemas comuns e de resolver os
problemas individuais.
4. Entendemos por “Educação Médica” o processo integrado de ensino e
aprendizado que deve proporcionar os instrumentos intelectuais, a disciplina científica e a
estrutura criadora necessária à formação dos recursos humanos no setor saúde.
5. Por sua vez, didática significa as técnicas usadas para pôr em prática os
métodos de ensino. Assim, professor é aquele que usa de artifícios visuais, auditivos e da
palavra, para bem ministrar o conteúdo de uma aula. Logo, todo professor, para fazer jus a sua
condição, deve ser didata. E também um aluno, que, usando de técnicas de transmissão, expõe
um assunto, torna-se momentaneamente um professor do assunto.
6. Pelo Regimento Interno da FCM – UEG, o curso médico está
estruturado em 7 departamentos. E quando falamos em ensino, em Departamento, em
cadeiras isoladas e em sistemas e órgãos, queremo-nos referir à organização do curso, e não à
sua estrutura administrativa.
Assim, por exemplo, sabemos que do Departamento de Fisiologia fazem parte
as cadeiras de bioquímica, fisiologia, farmacologia e biofísica. No entanto, a programação de
cada uma destas cadeiras é feita isoladamente.
É o que chamamos de ensino por cadeiras isoladas. Logo, Ensino por Cadeiras
Isoladas, por Departamento ou por Sistemas e Órgãos não exclui a estruturação
Departamental.

A partir dos dados obtidos no Inquérito, após avaliação, na análise das


incidências, observou-se que:

1. O principal instrumento ou meio de aprendizado na FCM é o livro.


2. A prática nas enfermarias constitui-se no único instrumento
significativo oferecido pela escola.
3. Isto porque as aulas, de modo geral, o currículo, sem nenhuma
conexão entre a teoria e a prática, e a orientação dos professores foram considerados maus
instrumentos para o aprendizado.
4. O ensino não permite um bom aproveitamento, além disso traz uma
sobrecarga horária.
5. Nas aulas teóricas, a maioria dos estudantes se sente entediada e com
sensação de perda de tempo. Reivindicam, portanto, menor número de aulas teóricas, ou sua
substituição por estudo orientado por livros.
6. Os alunos esperam dos professores que eles desenvolvam uma aula
onde o debate seja fundamental e, surpreendentemente, querem debater com peritos no
assunto.
7. As aulas práticas são mais bem recebidas que as aulas teóricas.
8. Os alunos da FCM mostram-se sensíveis a novos métodos de ensino,
considerando o debate eficaz na promoção do aprendizado, o qual, no entanto, deve obedecer
a certas normas didáticas para alcançar seu pleno desenvolvimento.
9. A partir do exame das incidências os alunos acham que existem
professores que não deveriam dar aulas de espécie alguma.

O sistema de ensino por cadeiras isoladas, existente na FCM, é visto


negativamente pelos alunos, pois oferece oportunidade ao catedrático de elaborar e executar
isoladamente seu próprio programa de ensino, sem preocupar-se em integrá-lo com outras
cadeiras.

Entre as três opções oferecidas no questionário, a mais valorizada foi o ensino


por sistemas e órgãos, devendo o programa ser elaborado por todas as disciplinas necessárias
ao aprendizado de determinado assunto. Este sistema de ensino foi também considerado o
processo mais racional de avaliação do aprendizado.

Em vista das evidências acima, os estudantes se propuseram a lutar pela


reestruturação do ensino médico, ouvindo, inclusive, a opinião dos que consideravam o
sistema de ensino vigente bom e o ensino por sistemas mais uma tolice da esquerda festiva.

Quando os professores viram suas disciplinas serem criticadas em cartazes


enormes, sentiram-se desnudados e reagiram para tentar conter os problemas em seus
redutos. Mas à medida que aumentava a participação, o trabalho sobre o currículo passava a
ser, em circunferência cada vez maior e profunda, a pedra angular das decisões.

A faculdade havia crescido nos últimos seis anos, e o corpo docente não havia
crescido na mesma proporção. O crescimento do hospital havia sido quatro vezes superior ao
setor técnico e docente.

O desaparecimento da expressão “Liberdade da cátedra” da Constituição de


1967, antes que a Ciências Médicas tivesse tempo de substituir totalmente sua primeira
geração de catedráticos, forçava a faculdade a ter de passar a funcionar, de fato, em regime de
Departamentos.

Nessa conjuntura, não havia como evitar o debate. Nas férias de julho, no
anfiteatro central do Hospital de Clínicas, foi realizado um seminário com o seguinte temário:

TEMA I – “O regimento da Fundação e as Universidades Brasileiras (UB)”

Questionavam-se quais as vantagens e desvantagens da aplicação do regime


de FUNDAÇÃO na UB, se o auxílio do capital estrangeiro devia ser recusado, se os referidos
auxílios acarretariam qualquer prejuízo sob o ponto de vista nacional, se o regime de Fundação
propiciaria remuneração mais digna aos corpos docentes.

TEMA II – “A crise educacional das universidades brasileiras”

Questionavam-se os docentes em face das reivindicações dos estudantes, se os


estudantes tinham razão na insatisfação com os métodos de ensino vigentes, se as
reivindicações dos estudantes significavam quebra da disciplina, que tipo de apoio lícito e
eficaz devia o Corpo Docente prestar ao estudante.

TEMA III – “A gratuidade do ensino universitário”


Questionava-se, considerando todas as regalias dos alunos das escolas
militares, se seria defensável a exigência de anuidades dos alunos das nossas universidades,
como se encarava a concessão de bolsas de estudos aos estudantes necessitados, se sob o
ponto de vista democrático, seria válido as universidades estabelecerem distinção entre alunos
pobres e ricos.

TEMA IV – “Prioridade das reivindicações do corpo docente”

Questionava-se, basicamente, a necessidade do regime de tempo integral; se o


serviço exigido pela UEG (12 horas por semana) seria suficiente para o bom funcionamento das
cadeiras; ou se o aumento substancial dos salários resolveria os problemas do corpo docente.

O seminário teve a participação dos corpos docente e discente e marcou o


início da luta pela comissão paritária.
A REPRESSÃO

Fiquemos nós em casa, nós os professores,

e, revezem-se no quadro negro, nos dias

de aula, os alunos sorteados num escrutí-

nio da UNE e da UME.

Gustavo Corção

Na reunião do Conselho Departamental da FCM-UEG no dia 8 de agosto de


1968, quando Gilberto Hauagen Soares comunicou a proximidade das eleições para o CASAF,
informou ainda que fora detido, sábado, com dois colegas.

Chegando à polícia, havia um processo sobre “O PLANTÃO”, órgão oficial do


CASAF, acerca de um artigo forte contra as forças armadas. Uma comissão de inquérito do
DOPS estava apurando, junto a Diretoria do CASAF, qual o autor do artigo; se não fosse
apontado, todo o CASAF poderia ser enquadrado na Lei de Segurança Nacional. Só tinha a
lamentar um fato: ficara 2 dias detido, sem condições de higiene, fechado de todas as
maneiras; nessa hora, sentiu-se envergonhado de ser brasileiro.

Nessa ação repressora incisiva, foram empossados os novos membros que


constituíram a Diretoria do Centro Acadêmico Sir Alexander Fleming, assim formada:

Presidente: João Lopes Salgado

Vice-Pres.: André Jorge Campello R. Pereira

1º Secret.: Jane Corona

2º Secret.: Celso Moreira de Souza

Tesour. Ger.: João Ramos da Costa Andrade

Na segunda reunião do Conselho Departamental após a posse (142ª. reunião


do CD de 05.09.68), o Reitor João Lira Filho reiterou a solicitação de atendimento ao seguinte
ofício subscrito pelo Delegado Manoel Vilarinho: “... tendo sido apreendido na Leme-Gráfica
Editora Ltda. um boletim com o subtítulo “Semanário de Informação do CASAF”,
Departamento de Imprensa, e que se encontra anexado aos autos do Inquérito Policial nº
23/68, solicito providências urgentes de V. Exa., no sentido de informar a esta delegacia,
situada no 3º andar do prédio da Rua da Relação, qual o responsável pelo referido
Departamento do CASAF” – (O Departamento de Imprensa).

No dia 12 de setembro, o Conselho Departamental resolveu não autorizar a


formação da comissão paritária. O Reitor e os professores não haviam comparecido à sessão
onde o assunto seria mais uma vez debatido, o que levou os estudantes a saírem às ruas
próximas em passeatas, levando a reitoria a modificar a sua conduta e, a princípio, ser
favorável à criação da comissão.
No projeto, a comissão paritária se subdividia em três outras comissões
compostas de professores, assistentes e alunos, na proporção de 1/3 de cada categoria, para
tomar conhecimento e examinar as aspirações do corpo discente e formular propostas.

As três comissões seriam constituídas com a finalidade assim discriminada:

1) Comissão de currículo, composta de quatro professores, quatro


assistentes, designados pelo Diretor, e quatro alunos eleitos por seus pares.
2) Comissão de verificação de aprendizado, com composição de tipo
idêntico ao anterior.
3) Comissão de finanças, para tratar de todos os problemas relativos a
verbas, salários, tempo integral e quaisquer outros assuntos que envolvessem questões
orçamentárias, sendo a composição também do mesmo tipo das anteriores.

Além das comissões, funcionaria um Conselho Misto, sob a Presidência do


Diretor da FCM, constituído por seis professores e seis alunos, cuja função seria aprovar e
metodizar a aplicação das resoluções tomadas pelas comissões nas várias etapas necessárias.

As deliberações das comissões seriam tomadas por 2/3 dos votos mais 1.

Designou então o Prof. Piquet uma comissão de entendimento, constituída


pelos professores Jayme Landmann, Aloysio de Paula, Ítalo Suassuna, Hélio Hungria e João
Cardoso de Castro, para travar conversação com o corpo discente no sentido de viabilizar o
plano.

Esta comissão teve duas reuniões com uma comissão de cinco alunos,
designados por assembleia estudantil, da qual os professores também participaram. Os alunos
da FCM estavam em greve para estudar as condições de ensino da Faculdade, greve tão
somente de presença as provas que não eram consideradas fundamentais ao ensino.

Na realidade, a comissão reunira-se não para escolher a tática para o


questionamento da formação médica. A exemplo da Faculdade de Ciências Econômicas
Cândido Mendes, onde os alunos haviam voltado às aulas 48 horas após terem conseguido a
comissão paritária, a reunião ocorrera para dar saída ao impasse que caso permanecesse,
levaria à reprovação geral dos alunos da Faculdade.

Tratava-se de um subterfúgio tático para impedir a criação de um órgão que


contestasse. O comportamento arredio dos docentes fez todo o trabalho perder o seu
significado, encerrando-se, antes de se efetivar, a discussão sobre a reestruturação pedagógica
da Ciências Médicas.

A prisão dos estudantes que participaram do XXX Congresso da UNE, iniciado


clandestinamente num sítio em Ibiúna, no sul do Estado de São Paulo, aumentou o clima de
revolta. O CASAF organizou o Dia Estadual de Protesto, 22 de outubro de 1968, Ato de Repúdio
aos fatos ocorridos em Ibiúna.

Na assembleia de programação do ato, prenunciando que a violência ia-se


manifestar, André Jorge Campello foi o único a opor-se à sua realização.
Pela manhã, foi exibido o filme “Os Companheiros”. Às 13 horas, os estudantes
saíram às ruas para a inauguração da “Estátua da Liberdade – Brasil-68”: - um boneco PM
cinza, de capacete azul, tendo a mão direita o cassetete em riste, na esquerda a metralhadora
abraçada, pendurado na árvore da entrada de automóveis do Hospital das Clínicas. O
Presidente da extinta UME, Carlos Alberto Muniz explicou: “Esta estátua não representa
apenas uma crítica à PM, mas à repressão de toda a estrutura atual do Governo, que mantém
o nosso sistema econômico e o Relatório Meira Matos”.

Logo no início das manifestações, surgiram os carros do DOPS. Os policiais


desceram das viaturas atirando. Os estudantes se armaram com pedras. O combate durou
algum tempo, ficando três feridos, mas os alunos da Faculdade conseguiram expulsar os
policiais do Hospital.

Os estudantes resolveram entrar, para reorganizar a manifestação, e saírem,


então, em passeata. Apareceu nova viatura do DOPS com os policiais atirando. Apanhados de
surpresa, os jovens correram para o portão da escola, pegaram pedras e iniciaram a defesa. A
luta prosseguiu com os policiais atirando de bem perto. Novos estudantes foram feridos; um
estudante da Faculdade ferido a bala na cabeça. Os alunos da Faculdade atacaram um policial,
deixando-o ferido, e refugiaram-se no Hospital.

No interior do Hospital, organizavam-se grupos com tarefas definidas, como,


por exemplo, alimentação, segurança e imprensa. Enquanto os estudantes baleados era
operados no 5º andar, a PM chegava para reforçar o policiamento do DOPS; nos fundos da
Faculdade, postaram-se três choques.

O Diretor da Faculdade, Prof. Américo Piquet Carneiro, tentava retirar o


policiamento do local. Os policiais alegavam que só iriam embora quando fossem devolvidas as
armas – calibre 38 e 32 – tiradas pelos estudantes.

Os estudantes, reunidos em assembleia no refeitório, disseram não dispor de


nenhuma arma para devolver e que permaneceriam no Hospital até a saída da polícia.

Pouco depois, após ter recebido telefonema do reitor da UEG, Ministro João
Lyra Filho, que já se encontrava no local, chegava ao Hospital o General Antônio Pires de
Castro, que, na presença de professores e estudantes, no gabinete do Prof. Piquet,
estabeleceu diálogo com o Reitor, sem chegar a conclusão nenhuma, ficando resolvido que o
Reitor iria diretamente ao Governador Negrão de Lima.

Antes de o General se retirar, os estudantes o fizeram prometer que o Hospital


não seria invadido enquanto o Reitor falava com o Governador. Ao se despedir, estendendo a
mão ao presidente do CASAF, João Lopes Salgado se recusou a “apertar a mão de uma
autoridade que participa da repressão”; o General respondeu energicamente: “- Eu sou
também brasileiro, meus filhos”.

Às 20 horas, o Sr. Negrão de Lima recebeu os jornalistas em seu gabinete.


Vários boatos haviam surgido na ante-sala do Governador, dando conta que o Secretário de
Segurança e o Reitor da UEG dirigiam-se para o Palácio Guanabara, o que não aconteceu. A
resolução fugia da alçada do Governador para esferas superiores.
O estudante baleado na cabeça, Luiz Paulo da Cruz Nunes, do segundo ano de
medicina, morreu às 21h 40min, depois de ter sido submetido a uma neurocirurgia, no
Hospital Pedro Ernesto.

No dia seguinte, o jornal “O GLOBO” publicou o editorial “ÓDIO IMPORTADO”:

“Publicamos no sábado reportagem sobre o frustrado Congresso da UNE, na


qual transcrevemos trechos de dois documentos básicos daquela reunião em Ibiúna. É
oportuno reproduzir aqui e agora dois parágrafos de dois desses desses documentos:

1. “A organização dos estudantes nas manifestações de rua é outro ponto


importante, ao qual devemos atentar constantemente. Esta organização deve estar voltada
fundamentalmente para garantir os objetivos políticos da manifestação, sendo claro que isto
significa principalmente estar preparado para a prática da violência”.
Esta organização aí mencionada é a Organização Continental Latino-Americana
de Estudantes (OCLAE) sediada em Havana, e mentora da ex-UNE.
2. “Hoje, quando as condições subjetivas dos outros setores do povo
ainda não estão suficientemente amadurecidas, só se pode conseguir manifestações de
envergadura quando o próprio governo fornecer um motivo através da repressão desabusada,
morte, etc”.
Este último trecho consta do “programa da nova UNE”, igualmente debatido
no Congresso de Ibiúna, repentinamente interrompido pelos motivos conhecidos.
Verifica-se, portanto, que Havana, mentora da ex-UNE, manda que os seus
agentes no Brasil estejam preparados para a “PRÁTICA DA VIOLÊNCIA”. O texto nº 2 ensina
que as “Manifestações de envergadura”, isto é, aquelas de rua, “só se podem conseguir”
através da “morte, etc”.
Ontem, no Bairro de Vila Isabel, foi realizado o primeiro teste da aplicação da
nova “Linha de Ibiúna-Havana”. Chefiou a empreitada um agitador profissional estranho à
escola, escolhido para a baderna.
Reparem a malignidade da seleção do local das arruaças: um hospital vizinho à
Faculdade de Medicina. Por aí já se percebe que os estudantes de medicina não foram os
autores do “programa”, pois seriam os últimos a indicar um hospital como teatro de agitações.
Quem perturba a vida de um Hospital terá de ser apoliticamente reprimido. Os
próprios “playboys” costumam respeitar a placa “Silêncio – Hospital”. Portanto, EM
QUALQUER REGIME, autores de desordens à porta de uma casa de saúde teriam de ser
castigados.
Foi o que doze policiais tentaram fazer. Foram, porém, agredidos por mais de
duas centenas de agitadores, que haviam recebido instruções de seus líderes para agir com
violência (dentro das Instruções do ACLAE-UNE).
Pode-se imaginar o drama vivido por dezenas de doentes, médicos e
enfermeiras, sobressaltados com a fúria de baderneiros com que embriagados pelo fel do ódio
importado.
Os verdadeiros estudantes – especialmente os de medicina – estão convidados
a denunciar publicamente esses cruéis grupos de assalto que agem em seu nome.
Comício à porta de hospital é desumanidade. A opinião pública repudia esses
bárbaros que desrespeitam”.
Logo em seguida, o Prof. Américo Piquet Carneiro, Diretor da FCM, e o Prof.
Jayme Landmann, Diretor do Hospital de Clínicas, emitiram, em conjunto, no BOLETIM UEG, nº
30 de outubro de 68, a seguinte Nota Oficial: “A Faculdade de Ciências Médicas, em nome do
seu corpo docente e corpo médico do Hospital de Clínicas, associa-se ao protesto feito pelo
Reitor da UEG contra a brutal agressão policial desencadeada contra estudantes, em
manifestações pacíficas, que culminou com a morte de um acadêmico de medicina e
ferimentos graves em mais sete estudantes. Expressa, também, o repúdio ao fato inédito do
ataque ao hospital com bombas de gás lacrimogêneo e projéteis de armas de fogo, sem levar
em conta os doentes internados, inclusive crianças recém-nascidas. Professores, educadores e
médicos, profundamente preocupados, esperam das autoridades medidas que protejam
efetivamente o livre exercício das atividades universitárias, indispensáveis à construção de um
destino melhor para o país”.

O fato tingiu de sangue a UEG, cujo repúdio se manifestou através da Nota


Oficial, emitida pelo Reitor João Lyra Filho: “A Universidade do Estado da Guanabara está de
luto em face dos deploráveis acontecimentos ocorridos na tarde de hoje, dentro de sua
Faculdade de Ciências Médicas, e com extensão, sobretudo, na área do respectivo Hospital de
Clínicas. Todos deploramos ao extremo o comportamento dos agentes policiais que invadiram
à bala e com lacrimogêneo as dependências do nosocômio. Esperamos que as autoridades,
mais uma vez alertadas, adotem providências drásticas no sentido de punir aqueles que,
vindos de fora, conturbam mortalmente o clima de sinceridade da juventude universitária”.
PARTICIPAÇÃO POLÍTICA PÓS 68

Somos uma geração de políticos

surgidos no contexto de uma di-

tadura militar sem ter tido a opor-

tunidade da luta política aberta.

Fernando Gabeira

A Ciências Médicas havia sido escolhida, entre outros pontos que foram
atingidos pela repressão, para ser mais um local de reafirmação do golpe militar de 64.

Os professores cujas cadeiras haviam sido criticadas dentro da exigência de


uma discussão sobre o ensino achavam que era necessário colocar um penso oclusivo sobre a
Faculdade.

A consciência de que haviam sofrido uma derrota na universidade levava os


estudantes, sem o que explorar na escola, a voltarem-se para a atividade externa. João Lopes
Salgado, último presidente do CASAF, caíra na clandestinidade, sendo substituído por André
Jorge Campello (Vice-Presidente).

Na Ata da 154ª. Reunião do Conselho Departamental da FCM (09.01.69), o


Diretor Piquet Carneiro, visto a distribuição de notas aos vestibulandos incitando-os à rebelião,
colocou em discussão a dissolução do CASAF: “... Há uma posição de radicalismo em todos os
problemas da Faculdade; chegará a um ponto em que os membros do Diretório não poderão
mais continuar, pela posição assumida dentro da Faculdade”.

Na mesma reunião, o Prof. Jayme Landmann propôs a dissolução e intervenção


no Diretório: “... o fato deve ter uma consequência, não pode partir para uma simples
advertência; a época das advertências já passou. O Presidente não poderá mais reassumir o
cargo, sob pena de serem envolvidos em casos mais sérios”.

André Jorge Campello, embora sabendo que a Nota fora feita pela Diretoria do
CASAF, na intenção de evitar o seu fechamento, afirmou: “... a Nota foi distribuída em nome
do CSAFA, mas o documento não é de sua autoria, não se deve confundir o núcleo com todos
os alunos, não é a dissolução do Diretório que resolve o problema”.

O intenso policiamento que a Faculdade sofria fez com que se presumisse a


invasão do Diretório. Numa madrugada, em ato de terrorismo policial e vandalismo, uma
bomba foi colocada no CASAF. Apesar da manobra do Vice-Presidente, o Diretório foi fechado
no início das aulas.

O trabalho de demolição da sede do CASAF foi aproveitado para derrubar um


murinho perto do pátio, onde os estudantes costumavam sentar-se para o exercício do
diálogo.
O momento escolhido para as punições na FCM foi o início das férias de 68 e
começo de 69. Em primeiro lugar, as suspensões, e por fim as expulsões, que logicamente
deveriam cair sobre aqueles que se haviam destacado no movimento estudantil, a saber: João
Ramos da Costa Andrade, Jorge Manoel de Oliveira e Silva e Cláudio José de Campos Filho,
expulsos pelo professor Jayme Landmann, quando este interinamente substituía o professor
Américo Piquet Carneiro em férias do cargo de Direção da Faculdade.

O Ato Institucional nº 5 se encarregava de recolher, sob sua mortalha, os


recém-formados que haviam, como estudantes, participado do M. E.. Assim aconteceu com
Luiz Roberto Tenório e Gilberto Hauagen Soares.

Em fins de julho (outra vez nas férias) e por todo o correr de agosto, instalou-
se na FCM um Inquérito Policial Militar atingindo estudantes de todas as séries, inclusive
estudantes do primeiro ano, que não entendiam a razão da interpelação, pois não haviam
participado de 1968. A IPM também se submeteria o Prof. Américo Piquet Carneiro, acusado
de proteger estudantes subversivos.

Mais tarde, o Prof. Piquet, após as expulsões terem-se tornado fato apagado
das pautas do Conselho Departamental, possibilitaria o retorno dos alunos expulsos, sem que
qualquer punição constasse em seus currículos; para todos os efeitos haviam trancado
matrícula durante o ano de 1969.

Uma gama de problemas mais complexos surgia com o movimento estudantil


em maré vazante. Observava-se a todo o tempo, a mudança de comportamento dos
professores e catedráticos em relação aos estudantes entre 68 e 69. Acelerava-se a
implantação do ensino pago, sem possibilidade alguma de resistência.

No momento em que João Lopes Salgado, com mais doze companheiros,


participou da operação de sequestro do embaixador americano Charles Burke Elbrick em troca
de quinze presos políticos, opção de procedimento para enfrentar os dias de perseguição mais
tenaz por parte da ditadura, os alunos da FCM procuravam reconquistar sua entidade para
levar suas reivindicações e lutas.

Nesse meio tempo, os professores se acusavam mutuamente, tentando tirar


proveito da repressão para a resolução de antigas rixas.

Os estudantes que tinham vivido 68 se apresentavam descrentes e


amedrontados; os que chegavam depois traziam a bagagem da inexperiência. Era preciso um
reaprendizado coletivo, uma melhor conceituação do que diferenciava o movimento
universitário do movimento das vanguardas universitárias.

Foi quando, pretextando apresentar mediação justa para o problema da


representação estudantil, o Reitor lançou ofício autorizando a eleição de turma, permitindo a
criação de um Conselho de Representantes composto de alunos de cada série e presidido pelo
quinto ano.

O CR era órgão consultivo do CASAF quanto aos problemas específicos de cada


turma. Foi concedido com limitações amplas. Para se reunir, seria sempre necessária a
autorização do Prof. Hugo Caire de Castro Faria, então nomeado Vice-Diretor para assuntos
estudantis.

Entre os estudantes, havia oposição à formação de uma entidade atrelada,


várias tentativas haviam sido feitas durante o ano para manter o CASAF-livre. Mesmo assim,
em novembro de 69 realizaram-se eleições para o CR, que passou a ser a entidade
representativa dos estudantes da Ciências Médicas.

A disputa se fazia no CR, onde a cada eleição progressivamente era derrotada a


política pelega. Então, como ato suplementar a fraqueza da entidade, a partir de 1971 só
poderiam ser eleitos representantes de turma os alunos que se colocassem no terço superior
das médias de cada turma do ano anterior. A Lei do Terço se constituía dentro da UEG como
desdobramento do Decreto Lei 477.

Em 1971, o estudante João Lopes Salgado foi condenado a dois anos e quatro
meses de reclusão pelo CPJ da 2ª. Auditoria da Aeronáutica, no mesmo julgamento em que
foram absolvidos Jane Corona, João Ramos da Costa Andrade, André Jorge Campello Rodrigues
Pereira, Celso Moreira de Souza, Benjamin Mandelbaum, Juan Affonso Huaman Alvarez,
Amauri Doroguei da Costa e Fritz Carl Utzeri.

Todos os nove estudantes processados sob acusação de distribuir panfletos


subversivos, aliciar outros estudantes para “práticas delituosas” e manter filiação a
movimentos de esquerda na Faculdade de Ciências Médicas da UEG, durante o ano de 1968.
Sua defesa foi feita pelos advogados Lino Machado Filho, Antônio Modesto da Silveira, Técio
Lins e Silva e George Tavares.

Em nível de auditoria, participaram como testemunha de acusação os


professores Hugo Caire de Castro Faria e Jayme Landmann. Não fizeram carga; as acusações
eram do tipo “pregaram cartazes”, “distribuíram notas”, “escreveram nas paredes”...

Em agosto de 1971, assumiram a Direção e Vice-Direção da Ciências Médicas


os professores Jayme Landmann e Roberto de Alcântara Gomes. Após a morte do capitão
Carlos Lamarca, em 17.09.71, João Lopes Salgado retirou-se do país, buscando a segurança do
exílio.

O primeiro problema estudantil de relevo enfrentado pelo novo Diretor foi a


colação de grau da turma do estudante assassinado na porta do Hospital. O patrono escolhido
pela turma foi o jovem Luiz Paulo, e o discurso continha o necrológio escrito pelo Reitor João
Lyra Filho na época da ocorrência.

O Prof. Landmann proibiu o discurso, e só concordou em ser responsável pela


solenidade, após entrevista com a comissão de formatura, para obter desta o compromisso de
eleger novo patrono para submeter ao Conselho Departamental, e que o discurso deveria ter
um caráter afetivo, excluindo o necrológio escrito pelo Reitor.

Uma síntese com os trechos principais do discurso proibido é agora transcrita:


“- Hoje é dia de festa, dia de festa nacional,
estão se formando 130 médicos; diante das necessidades do país e da complexidade dos
problemas de saúde, a desistência de cada um era crime contra o povo.

Desde janeiro de 1967 até hoje, enfrentamos a difícil tarefa de ser universitário
brasileiro. Os momentos de ilusão foram poucos; logo vimos, não só pelos olhos dos nossos
colegas veteranos como por nossa própria existência diária, as deficiências do curso médico.

Rapidamente nos conscientizamos de que nossa participação era de


fundamental importância e nos atiramos, ao longo desses 6 anos, ao trabalho de apontar os
erros, tentar encaminhar as melhores soluções e procurar a criação de uma vida universitária.

Somos a turma que viveu 1968, ano em que mundialmente a juventude


sacudia as universidades dos países, ano em que fomos chamados de questionadores das
velhas gerações. Disseram que não acreditávamos nos velhos, que sabíamos o que não
queríamos e não sabíamos o que queríamos.

A verdade desses 6 anos é bem diversa. Apesar de todo tipo de pressões, em


nenhum momento abdicamos dos propósitos de uma universidade melhor.

Enfrentamos uma série de lutas, algumas coroadas de louros e outras fadas ao


fracasso. Essas, entretanto, não nos abateram, pois dentro da derrota fortificamos o que
tínhamos e temos ainda hoje: - a união.

Mas esses impasses não foram vividos somente por nós. Conosco, os
professores reivindicaram verbas para as suas disciplinas, tempo integral para melhor se
dedicarem ao ensino e, principalmente, o exercício da pesquisa como pré-requisito para as
universidades se tornarem centro de cultura.

A modificação do currículo praticamente não houve. As dificuldades eram


imensas, mas conseguimos aceitar a compreensão de que a universidade era professores e
alunos juntos. Concretizamos a união de duas gerações na defesa do ensino, da cultura e da
pesquisa. Percebemos que somente a escola unida encontraria o caminho livre onde pudesse
respirar um pouco de saber.

Sofremos algumas baixas. Estendidos no campo ficaram mortos e feridos. Luiz


Paulo. Com ele todos morreram um pouco. Morremos nós, ao ver que a universidade
permanece longe daquilo que idealizamos; morrem os médicos, quando ainda hoje, seja nos
ambulatórios, nas enfermarias ou salas de aula, defrontam-se com o ensino desvinculado da
realidade; morrem os pais, quando percebem que os seus filhos longe estão do objetivo da
profissão que abraçaram.

Nesta frustração coletiva, tomamos nota das palavras contidas no Boletim da


UEG: “a compunção não exclui a revolta. Lá se foi o desventurado Luiz Paulo, para nunca mais,
deixando a dor no lar construído por seus pais e fundos ressentimentos no coração de todos
nós. Sua juventude em flor somava esperanças que malograram e perdeu-se na estúpida
façanha de um policial assassino. Não houve quem deixasse de abrir a alma e a consciência à
solidariedade que ainda agora reiteramos aos seus colegas. Por que matar um jovem cheio de
promessas radiantes? Por que incutir no ânimo dos moços a desconfiança implacável? Que fez
Luiz Paulo para ser morto, como se o seu instinto fosse o de uma fera? Que trevas terríveis
caem sobre nós todos! Seu grande crime: ser digno, brioso e inteligente; possuir ideal, querer
ao estudo e desejar ser, na medicina, para servir ao Brasil e à Humanidade. Quem é o
assassino? Que folha corrida haverá de possuir em confronto com a vítima? De qual dos dois
precisaria mais a nossa Pátria? Eis o silêncio, eis a sombra, eis o mistério que a sociedade
estimaria ver desvendado. Quem não se abala ao saber que um jovem estudante foi morto a
bala? A UEG ainda tem presente, para não esquecer jamais, a lembrança dramática do quadro!
Como sair da nossa imagem aquela tragédia trabalhada pela hediondez de um facínora? Que
fez Luiz Paulo para ter a vida ceifada? A polícia não esclareceu. Que fez a polícia para
identificar e punir o assassino? Que sabe a opinião pública a respeito? Porventura, haveremos
de querer que a juventude se desfibre na omissão ou que vegete no despejo de suas ideias?
Não: a Universidade precisa que jovens cultivem seus próprios ideários e que os mestres não
comprometam a autonomia de espírito dos alunos. Luiz Paulo só possuía uma ambição: ser
médico. Antecipando-se ao tempo, frequentava enfermarias e manejava instrumentos de
medicina. Seus dias fecundos eram aplicados no treinamento que se dispunha a acumular à
experiência precoce. Todos os depoimentos são uniformes: moço de juízo prematuro e de
coração ameno. Amava, à luz do olhar da sua eleita; dispunha-se a viver para o amor nobre e a
ciência pura. Seus colegas extremavam-se na vizinhança do desespero. Só eles? Não; toda esta
Universidade. O desespero existe porque nos sentimos de consciência violentada. Nosso Reitor
exprimiu o pensar e o sentir da UEG no texto da nota que ditou, pelo telefone, par ser
intensamente divulgada. As palavras do nosso Reitor, transmitidas aos alunos da Faculdade de
Ciências Médicas, reunidos na cantina do Hospital de Clínicas, foram as palavras que cada um
de nós desejaria ter pronunciado. No túmulo da vítima inesquecível, escritas na tarja de uma
coroa, estes poucos dizeres: “A Luiz Paulo, nossa Universidade”. Estamos de luto e sentimos
nojo. Os meses e os anos correrão, talvez sejam vorazes. Mas na corrida não nos despojaremos
da lembrança ensanguentada. A lembrança perdurará. Que sirva de semente; que frutique na
consciência dos responsáveis pela ordem e pelo bem estar social o dever de banir, para
sempre uma ilustração tão malvada. A funesta verdade é que um jovem estudante morreu,
vítima de um sicário; morreu, exatamente, no momento em que mais a esperança precisava de
sua vida: LUIZ PAULO DA CRUZ NUNES, não lhe diremos adeus: a lembrança de sua presença
haverá de seguir com a nossa UEG ...”.

Mas hoje é dia de festa, dia de festa para o cidadão brasileiro que deposita na
mão desses 130 médicos a esperança de ver sanadas suas doenças.

Será que o tipo de formação se coaduna com a necessidade do povo


brasileiro?

Será que estamos aptos a assumir este papel?

Qual de nós se arrisca a enveredar pelo caminho da clínica geral, das doenças
infecciosas e parasitárias, da saúde pública?

Até que ponto a formação universitária e a oferta do mercado de trabalho não


nos impõe qualquer tipo de opção?
Entre o médico e o doente colocou-se uma estrutura hospitalar: a pública e a
privada.

Na primeira, predominam os valores médicos sobre as necessidades


administrativas. Já a organização privada para os fins lucrativos submete os valores médicos a
seus valores administrativos. A medicina privada estabelece uma relação com a doença e não
com a saúde.

A saúde no nosso país, no que tange ao estado, é um mito. O INPS vem-se


transformando em estrutura de auxílio à medicina privada; em vez de proporcionar
diretamente assistência médica, financia as casas de saúde particulares.

Esta estrutura, da mesma forma que sacrifica o doente crucifica o médico, que
dessa maneira passa a ser algoz do doente e vítima da assistência médica que não o deixa
tratar. A resolução desses problemas ainda está longe de ser real, porém os caminhos para tal
começam HOJE, AQUI, AGORA.

Hoje é dia de festa! Terminamos os seis anos de lutas e sobrevivemos; em


determinados momentos a sobrevivência é o maior rasgo de consciência. Isto significa que
lutamos, morremos, mas ressuscitamos. Não somos como mortos vivos, mas sim como novos
homens renascidos após intensas batalhas.

Parabéns, colegas; parabéns, pais; parabéns, mães; parabéns, professores; a


virtude está em poder permanecer sem perder a consciência, e esta é a herança que esta
turma de estudantes deixa”.

Quando a oradora Telma Ruth Cruz Pereira subiu à tribuna, fez-se silêncio.
Página por página do discurso foi virada: “Era o que podíamos dizer!”.

Em seguida, houve a chamada e um doutorando gritou: “Luiz Paulo,


presente!”. Nesse momento, o prof. Jayme Landmann, em meio a apupos, deu por encerrada a
solenidade e a cortina do teatro se fechou.

Como não havia sido feito o “Juramento de Hipócrates”, os formandos tiveram


que colar grau mais tarde, individualmente, no gabinete do diretor da FCM.
A AEMEG E A CDCR

“Vocês que virão na crista da maré em que

nos afogamos, pensem em nós com simpatia

e lembrem-se dos tempos duros em que vive-

mos”

Brecht

A ideia da criação da Associação de Estudantes de Medicina do Estado da


Guanabara surgiu em 1967, quando o Centro Acadêmico Carlos Chagas da Faculdade Nacional
de Medicina promoveu a I Semana de Debates Científicos da Guanabara. Surgiu com o objetivo
de unir os estudantes de medicina do estado em torno de seus interesses comuns.

Até os fins de 1969, no entanto, não conseguiu estabelecer uma Diretoria que
efetivamente ligasse a entidade aos estudantes.

Após a realização da III Semana de Debates Científicos, em 1969, criaram-se as


condições para a eleição da primeira Diretoria integrada por membros das várias Faculdades.

Os estudantes da FCM haviam tido boa participação na III Semana de Debates


Científicos, onde sentiram o clima de discussão e confraternização entre alunos e professores.
Isso fez com que, ao voltarem sofressem um impacto com a escola ruim, impacto importante
para o reinício de uma crítica, numa escola onde o comportamento docente e a radicalização
estudantil ainda sofriam influência nociva mútua.

Ultrapassando os muros da FNM, a AEMEG conseguiu-se fazer conhecida de


todos os estudantes de medicina, passando a levantar a sua voz em defesa das reivindicações
estudantis.

Extinta a União Metropolitana dos Estudantes, as Faculdades de Medicina


passavam a ser um dos poucos ramos universitários a possuírem uma entidade estadual.

Na Ata da 194ª. Reunião do Conselho Departamental da FCM, em abril de


1970, ao ser aberta a sessão, o Prof. Hugo de Caire de Castro Faria declarou que não tinha
mais tempo para continuar o trabalho de grande importância que é o diálogo entre
professores e estudantes e pediu que fosse designado um titular ou um grupo de professores
para substituí-lo. Continuou falando: “- é de grande urgência esta nomeação, pois há um grupo
de alunos se reunindo e que está levando o ambiente à mesma condição anterior a 1968. Ao
sentir a ausência de quem tomasse conta direta deles, o grupo, que é uma minoria, está-se
rearticulando no sentido de reformular uma situação que já foi debelada”. Acrescentou o Prof.
Hugo: “- não há, todavia, indícios de subversão da ordem, apenas existe a articulação de um
grupo que não são os representantes legais dos alunos, que por um motivo ou outro se
reúnem com estudantes de fora e pretendem desobedecer à Direção da Faculdade, burlando o
já estabelecido; por exemplo, ontem iria realizar-se uma reunião da AEMEG, entidade estranha
à Faculdade, com os alunos daqui”.
Atrás da AEMEG, haveria alguma outra coisa que devia ser prevista e evitada.
Nessa época, o Conselho de Representantes já se instalara no prédio dos alunos, imóvel
construído para instalação do CASAF. A AEMEG pretendia que a Ciências Médicas fosse o local
da realização da IV Semana de Debates Científicos da Guanabara. Como se uma coisa fosse a
opinião dos alunos e outra a sua comunidade. Como se o ensino superior pudesse ser dividido
em dois tempos: o tempo de aula e o intervalo entre as aulas. Como se os estudantes, dentro
da sala de aula, não tivessem coração nem estomago, mas apenas cabeça. Ou como se, dentro
da cabeça, houvesse uma muralha entre estudo e cultura, diversão, relacionamento humano,
convívio social. Tentava-se a separação de duas coisas inseparáveis: A Representação e a
Congregação dos alunos.

O Ministro da Educação, Coronel Jarbas Passarinho, desde que assumira o


cargo, vinha concedendo entrevistas, falando aos reitores, fazendo conferências nos locais os
mais diversos, abordando inúmeros problemas de interesse para os estudantes.

Devido à inexistência de entidades estudantis no âmbito nacional e mesmo no


estadual, não vinha tendo o Ministro interlocutor algum para, em nome dos estudantes,
discutir estes problemas.

Assim a CDCR – Comissão de Diretórios e Conselhos de Representantes –


reunião das entidades estudantis existentes no estado, cujo objetivo precípuo era contribuir
da melhor maneira para o revigoramento da representação dos universitários em todos os
níveis, resolveu estudar os problemas referidos pelo Ministro e verificou serem os de maior
interesse para o conjunto dos estudantes: verbas, salários de professores, Decreto Lei 477,
representação estudantil, etc.

Só que as opiniões do Ministro estavam longe de ser aquelas do desejo dos


estudantes, e a comissão viu ser necessário levar ao conhecimento dos estudantes, da opinião
pública, os pontos de vista dos alunos sobre os temas abordados. Para tanto, foi feita uma
carta aberta ao Ministro Passarinho, a qual serviria para avaliar a disposição do MEC de
dialogar com os universitários.

A carta definia a inexistência de diretórios em quase 50 das faculdades


existentes na Guanabara e as dificuldades de funcionamento dos restantes como “o maior
problema que estamos enfrentando”. Pedia a reabertura dos Diretórios e a revogação da Lei
5540, que tentava substituir os Diretórios por representantes isolados junto aos
Departamentos e Congregações.

Na véspera da entrega da carta, o Ministro fez uma declaração extremamente


negativa numa convenção do Lion’s Club: seu objetivo no MEC seria “acabar com o ensino
superior gratuito”. A carta levava em seu conteúdo um “não ao ensino pago”.

Por sua vez, a AEMEG funcionava estreitamente ligada aos Diretórios, e o


fechamento destes criava sérias barreiras ao trabalho da entidade. Questões pertinentes aos
estudantes de medicina, como o aumento do número de vagas no concurso de Pronto-
Socorro, a luta pela expansão dos estágios remunerados nos hospitais do INPS, pelo término
imediato das obras do Fundão (Hospital Universitário) eram levantadas.
Na política de saúde, a AEMEG atuava no que dispunha a seguinte plataforma:

1. Sindicalização dos estudantes de medicina: através de uma campanha


junto aos anos mais adiantados, visando à sindicalização em massa e colaborando com as lutas
que fossem encaminhadas pelas entidades médicas.
2. Contra a proliferação indiscriminada de escolas médicas: considerando
que essa não era a forma de resolver o problema do déficit de médicos, conforme proposto
pela ABEM, uma vez que as mesmas não possuíam infra-estrutura necessária, tais como
pessoal docente, aparelhagem de laboratórios, hospitais-escola, etc. Também por serem
escolas privadas e devido à falta de critério regional de criação, achando que sua criação devia
ser controlada e planificada.
3. Defesa dos interesses nacionais na indústria farmacêutica: levando em
conta que o capital estrangeiro domina 90% da indústria farmacêutica no Brasil, o apoio à
racionalização devia ser feito com o sentido de promover desenvolvimento.
4. Contra o controle da natalidade: considerando que o Brasil apresenta
um déficit populacional da ordem de centenas de milhões e a produção de riquezas necessita
de grande massa de trabalho.

Especificadas as particularidades, a AEMEG e a CDCR lutavam por objetivos


comuns. Consequentemente, quando se realizou a IV Semana de Debates Científicos, toda
essa discussão adentrou a Faculdade de Ciências Médicas.

O auditório do Hospital Pedro Ernesto foi pequeno para a abertura da Semana


de Debates. Não havia cadeira vazia. Os excedentes ficaram sentados no chão ou em pé, atrás
da última fila, perto da porta dos fundos.

Às 11 horas do dia 14 de setembro de 1970 foi iniciada a cerimônia de


abertura. O Reitor João Lyra Filho, o Diretor da Faculdade de Ciências Médicas, Américo Piquet
Carneiro, o Diretor da Faculdade de Medicina da UFRJ, Lopes Pontes, o Diretor da Escola de
Medicina e Cirurgia, Alcântara Gomes, o Diretor do Hospital de Clínicas da UEG, Oswaldo
Araújo, o Presidente do Sindicato dos Médicos da Guanabara, Miguel Cavalcante (também
presidente do Conselho Regional de Medicina) ouviram as palavras dos estudantes. Discutiram
a falta de estrutura para pesquisa nas Faculdades de Medicina, e principalmente de uma
estrutura que atraísse os estudantes para este tipo de atividade.

O resultado do trabalho dos Diretórios que restavam abertos, dos Conselhos


de Representantes que procuravam preencher as lacunas dos que foram fechados se
substanciava nos primeiros frutos, possibilitando a realização de um SIMPÓSIO SOBRE A
UNIVERSIDADE nos dias 3, 4, 5 e 6 de novembro no auditório do Ministério da Educação.

O simpósio objetivava normalizar a vida universitária, tumultuada pelas


decisões tomadas sem a participação das comunidades docentes e discentes, prejudicada
pelos atos punitivos contra alunos e mestres, sufocada pelo Decreto Lei 477 e pela violação da
autonomia universitária, paralisada pelo golpe sofrido pelas entidades estudantis.

Às 18h 45m. de 3 de novembro, dia da abertura do simpósio, a comissão


organizadora ainda não sabia se ele se realizaria ou não.
Na manhã ou na tarde daquele dia, as Faculdades fervilhavam de boatos de
que o simpósio seria proibido. Rumores de prisões indiscriminadas, mais tarde confirmadas, de
advogados, jornalistas, tiravam a indispensável tranquilidade para a condução dos trabalhos.

Enquanto representantes da CDCR, em entrevista com o Secretário Geral do


MEC, Cel. Mauro Rodrigues, asseguravam a realização do simpósio, um fato mais importante
ainda se somava aos demais: o Ministro Jarbas Passarinho não compareceria às primeiras
sessões.

Alarmados pelas notícias, muitos estudantes e professores haviam deixado de


ir ao MEC no dia 3.

Nesse dia, a mesa instalada foi composta pelos professores – entre os quais os
reitores presentes – estudantes e autoridades educacionais. O Secretário Geral do MEC abriu a
sessão, falando sobre a importância do Simpósio, elogiando a iniciativa dos universitários de
realizar uma reunião daquele tipo.

Em seguida, o Presidente da Associação dos Estudantes de Medicina do Estado


da Guanabara, Carlos Alberto Nascimento Santos, ressaltou a importância do Simpósio como
contribuição para estabelecer um clima tranquilo na Universidade, e frente aos rumores que
corriam, apresentou a proposta de adiamento dos trabalhos. O plenário recebeu o discurso
com uma prolongada salva de palmas.

Proibido em quase todas as escolas da UEG, proibido na Nacional de Direito e


em algumas outras escolas, o Simpósio alcançou os objetivos que os estudantes haviam
traçado. O que se passou nos dias seguintes, a presença dia a dia maior de professores e
estudantes, o calor crescente dos debates, o clima de descontração formado, levava a crer que
também os professores e o próprio MEC tinham razões para dizer o mesmo.

Nos debates de encerramento, os cinco oradores estudantis defenderam a


universidade pública e gratuita, argumentando inclusive com as vantagens oferecidas à AMAN.

O Padre Raul Mendonça, Vice-Reitor da PUC, argumentou que, na situação


brasileira, a universidade grátis para os que podiam pagar era uma exploração contra o pobre.
Seria uma grave injustiça empregar recursos para oferecer uma universidade grátis aos que
podiam pagar. Esses já haviam usufruído os inúmeros benefícios da sociedade.

O Ministro Jarbas Passarinho, pronunciando seu primeiro discurso no


Simpósio, defendeu a cobrança de anuidades “dos que podem pagar”. Concordou com os
argumentos do Padre Mendonça e declarou-se “horrorizado” com a argumentação dos
estudantes.

Fechando o encontro, foi proposta pela aluna Telma Ruth Cruz Pereira, da
Faculdade de Ciências Médicas, para o início do ano letivo de 1971, a realização de um debate
MEC-Estudantes-Professores, exclusivamente sobre a implantação das anuidades.
No dia 12 de dezembro de 1970, o estudante Carlos Alberto Nascimento
Santos foi preso em Volta Redonda, vinte minutos após o seu casamento, e conduzido ao
quartel do 1º Batalhão de Infantaria Blindada, sediado em Barra Mansa.

Empenhando-se na normalização da vida universitária em todos os cargos que


ocupara: Presidente do Diretório Acadêmico Benjamin Batista, da Escola de Medicina e
Cirurgia; Presidente da AEMEG; membro destacado da CDCR, tratava-se de uma liderança
estudantil que sempre pugnara dentro dos estritos limites da legalidade.

A CDCR, em junho de 1970, resolvera, após ter enviado a carta aberta ao


Ministro Jarbas Passarinho, divulgar a seguinte nota:

“Considerando:

1. que os estudantes devem-se pronunciar sobre os atos de terror


ultimamente ocorridos no país (sequestro de diplomatas, assaltos a banco, etc.);
2. que tais atos têm contribuído para agravar o clima de intranquilidade
em que vivemos, aparentemente justificando a ausência de garantias individuais e da
legalidade democrática, e fornecendo pretextos para novas investidas contra os direitos de
associação e manifestação do pensamento;
3. que tais atos demonstram a insensata pretensão de resolver os
grandes problemas nacionais por meio das ações de grupos isolados do nosso povo, realizados
à sua revelia;
4. que estes atos em nada contribuem para a conquista dos referidos
direitos democráticos e, no caso específico dos estudantes, dos tão vivos anseios de liberdade
e autonomia universitária, consubstanciados nas reivindicações de reabertura de nossos
diretórios acadêmicos, revogação do decreto 477;
5. que a repetição desses atos desorienta a opinião pública sobre a
responsabilidade pela intranquilidade do país;
Resolve:
a) Condenar severamente a repetição dos atos terroristas e apelar para a
sua imediata cessação;
b) lembrar que a restrição dos direitos democráticos constitui um
estímulo para a proliferação do terrorismo;
c) advertir para que a repressão ao terrorismo não sirva de pretexto para
maiores limitações da liberdade, criando um círculo vicioso de imprevisível desfecho;
d) conclamar os estudantes e o povo em geral a contribuir, com sua
condenação, para o fim dos atos de terror, e com a sua atividade consciente, para o pleno
restabelecimento dos direitos e garantias constitucionais e democráticas, capazes de assegurar
a tranquilidade e progresso do Brasil;
e) conclamar especificamente os universitários cariocas para que
prossigam na luta por suas reivindicações mais sentidas, em primeiro lugar pela reabertura dos
Diretórios Acadêmicos.
Rio de Janeiro, 18 de junho de 1970.
A Comissão de Diretórios e Conselhos de Representantes”.
O estudante Carlos Alberto, como Presidente da AEMEG e membro da CDCR,
apoiara a condenação ao terrorismo. Não havia justificativa para a prisão; o caso veio a público
em nota expedida pela AEMEG.

Entre o Natal e o Ano Novo, quando praticamente cessou a vigilância sobre a


situação do preso, Carlos Alberto foi severamente torturado.

O Ofício nº 38 de 4 de janeiro de 1971, do processo 65/70, da 1ª. Auditoria da


Aeronáutica, explicita a principal razão da prisão. Segue-se a transcrição de pequeno trecho:
“Carlos Alberto Nascimento Santos, universitário, estudante de medicina, Presidente da
AEMEG, partícipe do Simpósio promovido pelo Ministério da Educação em 1970, de há muito
prega a comunização do País ...”.

Qualquer alternativa política esbarrava na repressão. Carlos Alberto


permaneceu preso até abril de 1971. A CDCR foi desativada. A AEMEG, após ter sua sede
funcionando no prédio dos alunos da Faculdade de Ciências Médicas, foi fechada ao término
de 1972.

Melhor dizendo, a AEMEG deixou de existir no meio do vazio político, frente à


impossibilidade de atuar, sem ter sido necessário um gesto repressivo concreto.
O ENSINO PAGO

“... como diz o ministro Eduardo Portella

que os que podem pagar paguem para os

que não podem pagar, como se houvesse

vasos comunicantes na economia e na

estrutura social”.

Paulo Sérgio Pinheiro

Ao término de 1969, uma gama de problemas mais complexos surgia com o


movimento estudantil em maré vazante. Nessa época o início das obras de construção do
Campus Universitário da UEG estabeleceu, na universidade, o contágio com uma das grandes
causas das deficiências das universidades brasileiras – a mentalidade de fachada.

O Reitor João Lyra Filho, gastando quantias monumentais com edifícios


suntuosos, deixava sobrando pouco dinheiro para o que realmente importava – os cientistas,
os filósofos, literatos, economistas, médicos e o instrumental de trabalho.

A Faculdade de Ciências Médicas havia crescido nos últimos sete anos, e o


corpo docente não havia crescido na mesma proporção. O crescimento do hospital havia sido
quatro vezes superior ao do setor técnico e docente.

A falta de uma indústria de sustentação universitária nacional fazia-se sentir na


dificuldade para adquirir material para reequipar as cadeiras básicas e as de clínica.

Entrava a Ciências Médicas em decadência, após experimentar um período de


cinco anos de maturação. Como se sofresse um processo de regressão, por uma crise
econômica, em consequência também dos progressivos cortes nas verbas para a educação,
dentro da política de implantação do ensino pago, voltava a planejar a cobrança de anuidades
para os estudantes.

Em 1961, ano da criação da UEG (Lei nº 93 de 15.12.61), fora delegado ao


Poder Executivo a função de organizar em FUNDAÇÃO a UNIVERSIDADE DO ESTADO DA
GUANABARA, ficando assegurada aos alunos a gratuidade na realização dos cursos ordinários e
das provas compreendidas nos períodos normais.

A Emenda Constitucional nº 4 de 30 de outubro de 1969 à constituição da GB


passou a versar em seu artigo 5º: “A Universidade poderá adotar o regime de concessão de
Bolsas de Estudo, em substituição gradativa ao regime de gratuidade, na forma do art. 176,
item VI, da Constituição do Brasil, mediante restituição pelo processo que a Lei prescrever”,
autorizando a inclusão, no regimento geral da UEG, de dispositivo para substituir o regime de
gratuidade pelo sistema de bolsas de estudo em favor dos alunos economicamente
necessitados.
Recomendava-se, ainda, a transformação das universidades em Fundações e a
criação de um centro de integração Universidade-Indústria (Recomendação nº4 do relatório do
Grupo de Trabalho para a Reforma Universitária – GTRU), através do qual seria possível a
utilização de docentes e pesquisadores como consultores de empresas privadas.

O cumprimento precoce da última recomendação, no ato de criação da UEG,


deveu-se à atuação do Governador Carlos Lacerda, que desde a época da discussão da Lei de
Diretrizes e Bases da Educação, havia sido defensor ferrenho do ensino pago.

As universidades passariam a estar diretamente subordinadas aos interesses


de grupos econômicos, uma vez que se aconselhava a criação de Conselhos de Curadores, com
a participação de “representantes da comunidade” (traduzindo: empresários ou seus
representantes), procurando adequar-se ao modelo econômico vigente no país.

O GTRU propunha a revogação indireta da gratuidade do ensino público,


sugerindo a cobrança de anuidades e a instituição de um regime de bolsas que seriam pagas
após a formatura do bolsista.

No desenrolar dos acontecimentos, o Ministro da Educação, Jarbas Passarinho,


passou a defender a cobrança de taxas relacionadas com a declaração de Imposto de Renda. O
aluno teria um contrato de financiamento com um Banco Nacional de Educação, sujeito a
correção monetária e com um prazo, após a formatura, para saldar o débito.

A totalidade dos alunos era destinada à obrigatoriedade de pagar pelo ensino.


Segundo a argumentação oficial, seria injusto isentar do pagamento do ensino os alunos
carentes de recursos. A carência seria transitória, uma vez que o estudante, sendo preparado
para uma atividade de nível superior, auferiria futuramente uma renda do mesmo nível do
aluno que foi considerado não carente.

A febre dos diplomas, corrida do ouro iniciada pelos que ensejavam um lugar
ao sol, redundara na proliferação de faculdades particulares isoladas, promovendo um cerco
de influência perniciosa para as faculdades públicas.

A proliferação indiscriminada das escolas médicas agravara as dificuldades do


mercado de trabalho na área médica. Como seria possível pagar o total das anuidades devidas
durante seis anos, acrescidas de juros e correção monetária, sabendo-se que o período
imediato após a formatura é, na maioria dos casos, o mais difícil da vida profissional?

Após um PROCESSO DE DESSENSIBILIZAÇÃO, no sentido de acostumar o aluno


a pagar qualquer coisa, a implantação do ensino pago já se dava como um processo dinâmico.
Mesmo a isenção de taxas era dificultada ao extremo e concedida sem critério, como se fosse
apenas para dar uma satisfação.

Somente em 1973 o Conselho de Representantes dos Alunos da Faculdade de


Ciências Médicas conseguiu esboçar a primeira reação contra a escalada dos preços das
anuidades, publicando, em sinal de alerta, a evolução da cobrança de anuidades na FCM no
período de 1969 a 1973;
VER TABELA NO ANEXO 1

A Comissão Interministerial de Preços (CIP) havia fixado os aumentos máximos


para 1973 em 15,1%. Os aumentos da FCM, porém, ultrapassavam em muito esse percentual,
desobedecendo à determinação oficial do primeiro ao quinto ano.

Em adição, utilizando-se o artifício de dividir a anuidade em taxa de inscrição e


taxas de laboratórios, cobravam-se taxas de laboratórios em disciplinas que não ministravam
aulas de prática laboratorial (por exemplo: Bioestatística e Matemática).

Em vista disto, o Conselho de Representantes dos alunos da FCM enviou ao


Reitor, Prof. Oscar Tenório, ofício em que solicitava obediências à determinação do CIP e que
não fossem cobradas taxas de laboratórios nas disciplinas que não possuíam laboratórios ou
nas quais eles fossem utilizados pelos pacientes.

Tendo recebido os pareceres do sub-Reitor Wilson Choeri e do Diretor da FCM,


Dr. Jayme Landmann, o assunto é abordado nos tópicos onde os pareceres são mais falhos:

Sobre a consequência das cobranças; o sub-Reitor afirmava que:

a. “o ensino superior brasileiro já é pago, pois 60% das unidades escolares


são mantidas por entidades privadas, onde são cobradas anuidades”.
b. “os alunos das escolas públicas não são os mais carentes, pois aqueles que
tiveram oportunidade de estudar em cursos preparatórios caros e
enfrentar, mercê de sua melhor situação econômica, a dureza do
vestibular”.
c. “é demagogia a afirmativa de que se perderão talentos e vocações jovens
pela cobrança de taxas irrisórias”.
O fato de 60% das faculdades serem privadas resultava de um incentivo oficial
à privatização do ensino.

Apesar de inúmeras vezes os estudantes terem-se manifestado contra essa


perspectiva educacional, observava-se que nos últimos anos o grande aumento no número de
vagas fora todo devido a escolas particulares. Nas faculdades públicas, o número de vagas
permanecia inalterado, às vezes até diminuindo.

A proliferação das famosas “faculdades de fim de semana” obrigava o MEC a


impedir que várias delas abrissem novas inscrições para matrícula, por não apresentarem
níveis mínimos de recursos humanos e materiais. Além disso, a imprensa divulgava
periodicamente casos de corrupção administrativa e financeira nessas escolas.

A argumentação de que os alunos mais carentes de recursos estudavam nas


faculdades privadas e os menos carentes nas públicas não resistiria a qualquer pesquisa
comparativa. Quantos estudantes pobres optariam pela Universidade Gama Filho, onde
pagariam Cr$7.469,00 em 1973? Faculdades públicas gratuitas representariam cada vez mais
sua única oportunidade de seguir estudos universitários.
Tratava-se, antes de tudo, de formar “bons profissionais”, no menor tempo e
com o mínimo de custos. O estatuto da UEG dizia em seu artigo nº 3: “São fins precípuos da
UEG a execução do ensino superior e de pesquisa, o desenvolvimento das ciências, letras e
artes, a formação de profissionais de nível superior, a prestação de serviços à comunidade e a
contribuição ao desenvolvimento econômico e social”.

O que fora investido pela UEG na Faculdade de Ciências Médicas e no Hospital


de Clínicas originara-se dos impostos pagos pela população do Estado da Guanabara, que
esperava receber, sob a forma de ensino gratuito, desenvolvimento de pesquisa para o seu
maior bem-estar, ou prestação de serviços médicos, como produto do investimento.

No decorrer do curso, os alunos gradativamente revertem a relação entre o


custo do aprendizado e o trabalho produzido, até que no 6º ano a prestação de serviço é
nitidamente mais elevada que o custo do ensino. Além disso, os gastos com os pacientes eram
cobertos pelos próprios (a classe F gratuita não tinha mais significação estatística) ou pelo
INPS.

Nessa época, o elevado déficit orçamentário observado no Hospital das


Clínicas da UEG acarretava a absoluta impossibilidade de melhoria de seus serviços
assistenciais, de ensino e pesquisa. O referido déficit impossibilitava a busca de novas fontes
de recursos, visto que estas exigiam melhoria dos serviços oferecidos. Criava-se, assim, um
ciclo vicioso, um obstáculo para a quebra da cadeia.

Concluiu-se então, que o Hospital devia dinamizar a prestação de serviços,


como fonte geradora de recursos, através de convênios com firmas e entidades públicas ou
privadas.

Quando o Hospital fez o convênio com o INPS, passou a ter em sua área um
Posto de Urgência (PU). Isto propiciou aos estudantes o contato com doenças mais comuns,
perdendo o hospital o caráter de hotel de doenças raras, de asilo de doentes crônicos, e
passando a receber uma população mista de doentes, ao transformar-se num Hospital
Universitário menos desvinculado da prática médica exigida pela comunidade e, ao mesmo
tempo, possibilitando o contato com doenças raras.

Após o convênio, a Universidade passou a conceder, cada vez menos verba


para o Hospital, acreditando que este pudesse vir a ter economia independente, criando-se
uma demanda de produção do pessoal médico em detrimento do ensino, uma contradição
entre a produção de atendimento médico e um programa didático para uma formação médica
satisfatória.

No escopo da mesma política de contenção de despesas com a educação,


modo de controle ideológico da Universidade, na Ciências Médicas não existe forma livre de
acesso à carreira universitária. O corpo docente introduzido na escola a partir de 1969 foi
escolhido a dedo. Não há concurso para auxiliares de ensino, há muito tempo não se defende
uma livre docência, os salários dos professores que não tem a sua frente a possibilidade de
galgar uma hierarquia universitária são irrisórios.
A Universidade, também através do programa de crédito educativo, se
transformara em instrumento de ágio, uma estrutura universitária em progressiva falência.
OS ACADÊMICOS BOLSISTAS

“O médico transformou-se em mão

de obra abundante e – de acordo com

a lei da oferta e da procura – barata”

Veja

Pelo fato de ser uma rede geograficamente bem organizada, dispersa pelos
mais diferentes pontos do estado e, sobretudo, de dispensar um atendimento gratuito, a rede
de hospitais da Superintendência de Serviços Médicos do Estado do Rio de Janeiro é procurada
pela grande maioria da população, às voltas com ocorrências que necessitam de socorro
urgente, as quais podem variar desde uma diarreia até o politraumatismo. Por outro lado, as
deficiências de material, pessoal e instalações, não permitem um atendimento condigno à
população.

A Associação dos Estudantes de Medicina do Estado da Guanabara, em 1971,


junto aos Diretores, Chefes de Equipe e Acadêmicos dos hospitais estaduais que recebiam
bolsistas em seus postos de urgência elaborou um relatório, a partir das respostas a um
questionário com perguntas sobre diferentes aspectos do atendimento.

O acúmulo de trabalho para acadêmicos apresentou-se como o problema mais


sério. Caso os acadêmicos se recusassem a trabalhar, todos os serviços de urgência entrariam
em falência. Mesmo assim, os acadêmicos não possuíam os direitos trabalhistas, além de
serem mal remunerados.

O estágio em Pronto Socorro se desenvolvia no 5º e 6º anos, numa duração


total de dois anos. Quando, em 1970, o currículo da Universidade Federal Fluminense foi
reduzido para cinco anos, abriu-se uma nova questão; o concurso era feito por acadêmico no
final do 4º ano médico. Assim, obrigatoriamente, colando grau o acadêmico da UFF, ao final do
1º ano de estágio teria de abandonar o estágio, abrindo lacunas em cada equipe.

Os quartanistas da então Guanabara decidiram lutar pela não participação das


Faculdades Fluminenses no concurso e incentivar a luta pela criação de uma rede hospitalar
voltada para a dura realidade do então Estado do Rio.

Nesse panorama, principiava a delineação do bloco de reivindicações que


passaria a nortear o movimento dos acadêmicos bolsistas.

No início, esse bloco definia-se pela exclusão do concurso aos acadêmicos das
Faculdades de Medicina do Estado do Rio, pelo aproveitamento de todos os quartanistas de
medicina da GB (então 750), tornando-se o concurso meramente classificatório, aumento da
bolsa para 3 salários mínimos, manutenção da carga horária (24 horas semanais) e garantias
dos direitos trabalhistas.

Na entrada do ano letivo de 72, soube-se que estava formada uma comissão
proposta pelo Conselho Técnico de Saúde, para estudar a situação dos estágios de acadêmicos
na SUSEME. Corria oficiosamente o boato de que seria proposto o afastamento dos
acadêmicos quintanistas, cujo trabalho seria substituído pelo dos residentes. Os estudantes
tentaram acesso ao debate da questão, sem resultado, entretanto, em virtude do mistério e
distância que envolviam a tal comissão.

Antônio de Pádua Chagas Freitas, Governador do Estado, poderia a qualquer


momento extinguir, por decreto, o estágio remunerado para os quintanistas.

Nos currículos das escolas médicas, a não inclusão do ensino prático da


medicina de urgência por não disporem as Faculdades de estrutura para tanto, visto que a
organização de um Pronto Socorro representaria um ônus a mais, ainda mais com a escassez
de verbas destinadas a cada uma delas, colocava os acadêmicos frente ao risco de perda de
uma experiência necessária à formação médica e de uma fonte de renda para suprir o custo do
estudo.

A estrutura da Suseme ainda era a que melhor preenchia tal lacuna, por suprir
os recursos objetivos para atendimento de urgência em nível de massa e médicos para a
orientação dos acadêmicos em suas funções.

O acadêmico bolsista, como estudante que preencheria seu papel de médico


numa comunidade, sem interferência do ensino ministrado na Faculdade, e como auxiliar para
manutenção da saúde, merecia por seu trabalho uma justa remuneração.

As alegações para exclusão do estágio para os quintanistas consistiam


em:

1º. – prática ilegal da medicina


2º. - má qualidade do atendimento, por deficiência técnica dos quintanistas
3º. - prejuízo à formação do acadêmico, pelo que os plantões significam em
termos de aulas.

O Conselho Técnico de Saúde, para resolver os problemas de falta de verbas da


SUSEME, desgastada economicamente pelos inúmeros atendimentos de segurados do INPS,
que investia na mercantilização da medicina sem remanejamento de verbas para o orçamento
estadual de saúde, resolvera tomar a decisão de acabar com o direito dos quintanistas de
frequentarem seus serviços de urgência, admitindo somente os sextanistas e setimanistas, que
seriam os residentes.

A menor oferta de empregos qualificados para estudantes de nível


universitário na área médica sofria o agravante do aumento da densidade médica na GB,
situada entre os maiores índices do mundo, na iminência de piorar dia a dia, devido à
proliferação indiscriminada de faculdades de medicina, tanto na Guanabara como no Rio de
Janeiro.

A AEMEG profligou a argumentação, contrapondo que, quanto à prática


médica ilegal da medicina, nenhum acadêmico visava substituir o médico em suas funções, e
sim, participar como auxiliar, facilitando o trabalho de atendimento ao povo.
Colocou que o estudante de medicina, devido à sobrecarga imposta por um
currículo de estudo mais longo e em maior carga horária global de que qualquer curso
superior, sobrecarregado por um ônus financeiro mais pesado quanto ao estudo propriamente
dito, iria empregar-se nas clínicas e hospitais particulares, ocupando o lugar do médico. Aí sim,
provocando a prática ilegal da medicina ou a dedicação pelo estudante, de boa parte do seu
tempo a trabalhos inteiramente desvinculados de sua futura profissão.

Ciente de que a decisão final pertencia ao Governador do Estado e sem saber


quando seriam entregues os resultados da tal comissão, a AEMEG convocou todos os
interessados a comparecer quarta-feira, dia 10.5.72, às 15 horas, ao Palácio Guanabara (todos
de jaleco), para entregar ao Governador um memorial reivindicando a permanência dos
direitos dos quintanistas de obterem estágio-bolsa da SUSEME.

Na data e hora previstas, compareceram 100 acadêmicos. Apesar da marcação


prévia da audiência, houve recusa do Governador em recebê-los. Segundo o seu chefe de
Gabinete Civil, Sr. Marcial Dias Pequeno, “o encontro não estava marcado em sua agenda”.

Enquanto aguardavam a resposta ao memorial entregue, os acadêmicos


compareceram, em outra semana, em número de 200, na Assembléia Legislativa, para expor a
questão, a qual despertou o interesse de alguns deputados, que prometeram todo apoio.

Em agosto, veio a notícia, publicada na Imprensa, de que o Sr. Secretário de


Saúde havia baixado portaria excluindo o estágio para os quintanistas. A reação dos
acadêmicos foi imediata, e fez-se percorrer um abaixo-assinado por todos os mestres
encontráveis nas Faculdades, principalmente na UFRJ, em apoio as reivindicações dos
acadêmicos, totalizando-se mais de 300 assinaturas.

Com a divergência assim manifestada, foram convocados o Sr. Secretário de


Saúde e a ABEM para uma mesa-redonda na antiga Nacional, na Praia Vermelha.

No dia 22, compareceram o Sr. Sílvio Barbosa da Cruz, Secretário de Saúde da


Guanabara, o Prof. Fernando Bevilácqua, representando a ABEM, professores, quinhentos
acadêmicos e seus representantes. O Dr. Nova Monteiro, vice-Diretor da Faculdade, presidiu à
mesa.

A SUSEME usava o critério da ilegalidade para afastar os quintanistas,


conferindo, com isto, crítica violenta às administrações anteriores, que haviam permitido por
63 anos esta situação.

Além disto, o próprio sextanista também seria ilegal, e era público e notório
que estudantes, a partir do 2º ano, faziam estágios na SUSEME que permitia a perda de aulas
por parte destes alunos, favorecendo, sem remuneração, o trabalho negado com pagamento.

Na realidade, isto dever-se-ia mais à falta de verbas e não aos quintanistas. Já


que se existia exercício ilegal da medicina, o correto seria contratarem médicos. Na mesma
linha, caso a SUSEME não tivesse condições para ensinar aos quintanistas, muito menos teria
para fornecer residência, fato constatado pela Associação Nacional de Médicos Residentes.
No fim da mesa-redonda, ficou decidida a formação de uma Comissão
Universidades-SUSEME, com a finalidade de elaborar um projeto de convênio, conforme
proposta da Associação Brasileira de Escolas Médicas.

A proposta se apresentava como uma faca de dois gumes. Por um lado, se


apresentava com um recuo do Secretário de Saúde; mas poderia ser uma forma de deixar a
questão em banho-maria, devido à proximidade do fim do ano; o tempo contava contra.

Conforme promessa do Secretário de Saúde, acatando a proposta dos alunos,


a portaria seria revogada tão logo a comissão aprontasse um esboço do que seria o convênio.

Uma vez constituídas as comissões das 4 escolas, restava ainda que se


marcasse a primeira reunião conjunta. Deu-se, então, um incrível “jogo-de-empurra” entra as
Universidades e a SUSEME, que se atribuíram mutuamente a responsabilidade de convocar a
reunião; já em outubro nada fora encaminhado.

Houve, então, ameaça de greve na UFRJ, forçando a realização da 1ª. reunião


da comissão das 4 escolas e Secretaria de Saúde, ficando acertada a realização do concurso.

Em dezembro, foi divulgada na última hora a redução do número de vagas de


570 para 380, isto é, redução de 1/3, o que levou ao comparecimento de mais ou menos 100
acadêmicos a Secretaria de Saúde, para saber o porquê de tal redução. Pouco satisfeito, o
Secretário ameaçou “virar a mesa” e suspender o concurso, alegando ainda que poderia
aceitar os acadêmicos do Estado do Rio e piorar a situação.

Resultou disto um clima de insegurança e concorrência, que impediu uma


resposta coerente à atitude oportunista. A resposta encontrada pela maioria foi a omissão e a
tentativa de resolução individual do problema, que levou inclusive a um clima de guerra e
competição incríveis.

A ideia que se pretendia implementar era a de criação de Residência Médica


nos Hospitais do Estado, o que acarretaria a dispensa progressiva dos acadêmicos.

Sabendo-se que a Residência Médica exige uma estrutura muito mais


sofisticada de ensino, não haveria contradição alguma entre a Residência e o trabalho
desenvolvido pelos acadêmicos bolsistas, uma vez que cada uma das atividades se revestia de
características definidas e independentes, mas o que importava era a substituição de pessoal
mais inexperiente por mão de obra mais especializada e barata no cumprimento da função de
atendimento, isto sem qualquer estruturação pedagógica.

A comissão tratava de assuntos ligados aos estudos de um convênio


Universidade – SUSEME e a atitude do Secretário não considerava esse aspecto. Mesmo assim
os professores não levaram adiante qualquer discussão. Isso porque “topar a parada” e
realmente discutir o problema em toda a sua extensão implicaria tornar a participação da
Universidade uma realidade, fazendo-a atuar como uma das partes ativas do convênio.

Essa omissão acarretaria o aproveitamento apenas dos sextanistas, sendo


admitido o estágio não remunerado para os quintanistas. A proposta da ABEM era pior ainda.
Consistia ela na incorporação do estágio de Pronto-Socorro ao currículo médico, sem qualquer
remuneração e com a obrigatoriedade de cumprimento.

A extinção da AEMEG, que não foi substituída por nenhuma outra entidade
reunindo as escolas médicas da GB, dificultava o encaminhamento concreto das reivindicações
dos acadêmicos.

A partir de 1973, usaram-se os mesmos argumentos para impedir a


remuneração dos quintanistas estagiários. Em 1974, não houve concurso, uma vez que não
haveria remuneração.

A Secretaria de Saúde, utilizando a insegurança do médico recém-formado,


oferecendo-lhe residência médica, sem possuir, em sua maioria, as mínimas condições de
fornecê-la, desenvolvia o sistema de exploração de mão-de-obra barata.

A fusão do Estado do Rio de Janeiro com a Guanabara trazia como objetivo, a


médio prazo, a aproximação com as doze escolas de medicina do novo estado fluminense e a
unificação das reivindicações quanto ao Pronto-Socorro.

Nesse sentido, foi formada uma comissão de alunos da UEG, Nacional e


Cirurgia, centralizando o movimento no Diretório Acadêmico da Medicina e Cirurgia, com
realização semanal de reuniões e progressivo aumento de participação das escolas e das
pessoas.

Discriminadas as reivindicações necessárias para o bom desempenho dos


acadêmicos, mesmo sabendo que isto não iria alterar totalmente a realidade de saúde do
estado, os acadêmicos de medicina de todas as escolas médicas do Rio de Janeiro, exceção de
Campos e Volta Redonda, levaram ao Secretário de Saúde, através de uma manifestação com
mais de 800 estudantes, um memorial e um abaixo-assinado contendo cerca de 5.000
assinaturas.

No memorial, eram denunciadas as más condições de funcionamento, desde o


número insuficiente de médicos, falta de medicamentos e assepsia, até o atendimento, não só
dos casos de emergência, mas em proporção crescente, dos casos clínicos que não dispunham
do tipo adequado de atenção médica.

Por outro lado, a maioria das faculdades funcionavam sem possuir seu próprio
hospital, levando a um ensino eminentemente teórico, desvinculado da realidade de saúde e
da prática médica cotidiana indispensável.

Sob as distorções da rede hospitalar da SUSEME, diante do quadro da


proliferação das escolas médicas, a Secretaria de Saúde passara a encarar o estagiário como
mão de obra abundante e barata.

A reação se fazia sentir com as seguintes reivindicações:

I. Estágios para todos os 5º e 6º anistas


II. Concurso classificatório apenas para a escolha dos hospitais
III. Remuneração de dois salários mínimos aos acadêmicos de 5º e 6º anos
IV. Proibição de estágios em Pronto-Socorro aos acadêmicos de 1º ao 4º ano
V. Estágios sob orientação
VI. Contratação de mais médicos com salários dignos.

Na entrega do memorial, os estudantes de medicina, de jaleco, sem faixas ou


cartazes, realizaram silenciosa passeata pelas ruas da cidade.

Concentrados inicialmente nas escadarias da Santa Casa da Misericórdia, onde


vários oradores fizerem uso da palavra, daí os acadêmicos se dirigiram à Secretaria de Saúde,
na Avenida Marechal Câmara, ponto em que dezoito representantes foram à sala do Chefe-de-
Gabinete do Secretário, Sr. Raul Ribeiro, que os recebeu em nome do secretário Woodrow
Pimentel Pantoja.

No dia 7 de Outubro de 1975, entregue o memorial, a comissão de estudantes


disse ao Chefe-de-Gabinete que seria dado um prazo até 15 de novembro para as autoridades
responderem às reivindicações.

Ao deixarem a Secretaria, os estudantes voltaram à Rua Santa Luzia (escadarias


da Santa Casa), onde, de braços dados, interromperam o tráfego, até alcançarem a Avenida
Presidente Antônio Carlos.

Na Antônio Carlos, só ocuparam meia-pista, atingindo a Erasmo Braga para


chegar ao Palácio Tiradentes. E pela primeira vez, desde que havia sido instalada a atual
assembléia, as galerias ficaram lotadas.

Estava na tribuna o Deputado Alves de Brito (MDB), que leu o memorial para
constar dos Anais e fez indicação à mesa para encaminhar ao secretário de Saúde as
reivindicações. Apesar do baixo nível dos debates, com frieza total ante os pronunciamentos
da ARENA, o Grupo Autêntico, liderado pelo Deputado Edson Khair (MDB), comandou as
galerias.

A passeata do silêncio, como foi denominada pela Imprensa, observada de


longe pela Polícia Militar, foi a primeira manifestação da rua ocorrida no Rio de Janeiro após
68. Restava, agora, trabalhar o prazo dado a Secretaria de Saúde para o restabelecimento do
estágio remunerado nos hospitais do Estado.

Em resposta às reivindicações dos acadêmicos de medicina, foi anunciado


pelos Secretários de Saúde Woodrow Pimentel Pantoja, estadual, e Felipe Cardoso, municipal,
que os estudantes teriam, em 1976, mais vagas do que as ofertadas em 1975 para estágios nas
unidades de emergência médico-cirúrgica da rede hospitalar da Cidade do Rio de Janeiro.

Havia 856 vagas para o 6º ano e 497 para o 5º, estes sem estágio remunerado,
perfazendo o total de 1.359 vagas, e o Secretário prometia mil vagas para 1976, só podendo
prestar concurso alunos do sexto-ano, para receber a título de Bolsa, sem qualquer vínculo
empregatício, a importância de Cr$700,00.

Expirava o prazo concedido ao Secretário de Saúde, quando, ainda em


outubro, Armando Falcão, Ministro da Justiça, enviou circular a todos os Governadores dos
Estados e Territórios, solicitando medidas preventivas contra as passeatas, comícios,
concentrações e quaisquer manifestações públicas capazes de provocar agitação, e
perturbação ao trabalho e à vida da coletividade.

A circular afetava mais diretamente as manifestações estudantis e excluía,


apenas as campanhas regidas pela justiça eleitoral.

Os Acadêmicos haviam conseguido do Governador Faria Lima mais 200 vagas


para os sextanistas além das mil oferecidas pela Secretaria.

O Governo argumentava que, com a fusão, não podia dar vagas nem mesmo
para todos os sextanistas do novo estado.

Isso acontecia dentro de um processo de esvaziamento gradual, em que a


evasão de servidores da rede de Pronto-Socorro do Estado e do Município do Rio de Janeiro já
levara 1.100 funcionários, entre médicos, enfermeiros, auxiliares e técnicos a deixarem seus
empregos, atraídos por salários melhores pagos pelo INPS ou clínicas particulares.

Os estudantes de 1º ao 4º ano, embora fosse proibido, “estagiavam”; se estes


estudantes tinham possibilidade de trabalhar é porque existiam lugares.

Os quintanistas e sextanistas de medicina das várias faculdades do Rio


decidiram abandonar os hospitais da rede estadual ou municipal, onde trabalhavam sem
remuneração.

A intenção inicial era de greve, mas a repressão transformara o movimento em


boicote. A falta de acadêmicos de medicina se segundanistas a sextanistas, levaria os médicos
e sextanistas a, em consequência, redobrarem seus trabalhos.

No Hospital Souza Aguiar, os plantonistas da Equipe Catapreta disseram haver


sofrido ameaças do chefe do grupo. O fato, contudo, foi negado pelo chefe da equipe, médico
Oscar Brandão de Lira, que justificou a presença no Hospital de um choque da Polícia Militar: o
policiamento fora chamado pela própria direção do HSA, para garantir os que quisessem
trabalhar.

Na realidade, o policiamento havia sido reforçado em todos os hospitais; como


resultado do acúmulo de serviço, as pessoas demoravam a ser atendidas, dentro do esquema
de prioridade elaborado para superar a emergência.

Nessa altura, o movimento perdia o ímpeto, e o próprio Governador Faria Lima


fazia questão, em mesa de negociação, de deixar claro que o aproveitamento do estágio sem a
consequente remuneração ia contra as suas ordens e que, portanto, os estudantes deveriam
manter o boicote e a mobilização nas turmas. Manifestava o propósito de resolver o problema
por etapas, prometendo efetivar o aumento das vagas para sextanistas até o fim do ano
vindouro e, depois, a estender a remuneração aos acadêmicos do 5º ano.

Fora aberta a válvula de escape para esvaziar o movimento.


Esses mesmos acadêmicos, ao se transformarem em médicos-residentes,
efetivariam as greves por melhor pagamento e pelo reconhecimento dos direitos trabalhistas.
UM TÍTULO PARA A CONSCIÊNCIA

“As camadas médias urbanas fornecem o

maior contingente de universitários, mas

não lhe fornecem um modelo de ator (econô-

mico, social, político) em nome do qual

possam estruturar-se reivindicações em nome

próprio”

J.A. Guilhon Albuquerque

Em entrevista ao Jornal do Brasil, no início do ano letivo de 1973, o Conselho


de Representantes manifestaria os seus pontos de vista.

- Política é uma palavra proibida no nosso vocabulário. Até mesmo


inconscientemente estamos sempre, em nossas conversas, fugindo de pronunciá-la, buscando
substitutivos.

A afirmativa de José Marcos Ribeiro traduzia o clima que se criara em tono da


participação estudantil.

O Conselho de Representantes (o único que existia na UEG) substituía o CASAF,


sendo formado por delegados de turma, escolhidos exclusivamente entre a terça parte dos
alunos que tinham obtido as melhores notas.

- Apesar de toda esta dificuldade, o impedimento maior para a nossa


representatividade e para a nossa participação não está apenas na estrutura do Conselho de
Representantes, que poderia funcionar muito melhor se houvesse maior liberdade e recepção
para os nossos programas. Mais importante que a estrutura da representação é a liberdade de
dispor, de participar, que nós não temos.

- Daí chegamos – prossegue Hélio Bacha – à constatação inicial do José Marco,


quanto à restrição que nós próprios, inconscientemente, estamos fazendo com respeito ao
termo política, considerado tabu, hoje em dia. O raciocínio mostra um perigo maior que se
manifesta, o sentimento de auto-censura e a ameaça da perda de consciência.

É ainda Hélio Bacha que fala:

- A nossa formação na universidade é essencialmente técnica. nós não


sabemos a importância do médico da nossa comunidade. Não sabemos por que não temos
condições de nos reunir para analisar e discutir uma política de saúde para o Brasil.

- Se o Ministério da Saúde organiza uma política nacional sem de alguma forma


nos sensibilizar, isto pode significar que o plano poderá não ser ideal. A medicina brasileira
está voltada unicamente para o aspecto curativo, e é com este objetivo que são orientadas as
nossas aulas. Não existe qualquer preocupação em pesquisar as doenças que caracterizam o
nosso mundo tropical e subdesenvolvido. – explicou Mário Dalpoz.

E a angústia de não poderem debater publicamente estes problemas


novamente se expressou com Hélio Bacha: - Os estudantes hoje estão mais alienados, mas têm
também mais consciência disso e estão tentando superar essa alienação. O movimento de
1968 e o movimento de agora são completamente diferentes. Hoje, nós lutamos por uma
participação política, e nem se definiu ainda que tipo de participação política é essa.

Segundo Paulo Gadelha, referindo-se à participação política dentro dos


partidos políticos: “Os partidos políticos hoje não são nem a ARENA e nem o MDB. Tem muito
mais importância para nós, por exemplo, a Igreja, em termos de proposta política, do que a
ARENA e o MDB. Tem muito mais importância uma política ditada pela Escola Superior de
Guerra do que a ARENA ou o MDB”.

Apesar disso, concluindo a entrevista, acrescentou Mário Dalpoz: - Existe o


interesse em participar dos partidos políticos, na medida em que teriam condições de obter
uma participação maior, de falar e ser ouvido.

A legislação da UEG quanto à representação estudantil fora elaborada com


base no § 3º do art. 38 da Lei 5540, que exigia o aproveitamento escolar dos candidatos para a
representação estudantil “critérios que incluam o aproveitamento escolar dos candidatos”. A
UEG havia interpretado de forma tão drástica a Lei Federal, que restringia o direito à
candidatura dos alunos que se colocassem no terço superior das melhores médias de cada
turma.

No segundo semestre de 1973, os alunos desenvolveram uma campanha pela


revogação da “lei do terço”. Lei condenada unanimemente pelo corpo discente da Ciências
Médicas, que com uma ida coletiva à Reitoria conseguiu o encaminhamento da lei ao Conselho
Universitário, para que fosse discutida sua revogação.

A essa altura, a aplicação da reforma universitária e a construção do Campus


Universitário constituíam momentos da profunda transformação na UEG, colocando na ordem
do dia problemas que deveriam ser equacionados por toda a comunidade universitária.

A partir de 1972, com a falência administrativa do Hospital e da escola, a


Faculdade de Ciências Médicas entrava em ocaso, o ensino se deteriorava. A escola, que nunca
chegara a ser vinculada à pesquisa, com a queda do padrão de atendimento médico no
hospital, perdia o seu lugar de destaque no cenário médico nacional.

Na FCM, a atividade de Imprensa, desde a publicação do último número de “O


PLANTÃO”, órgão oficial do CASAF, e apesar da publicação de alguns jornais, como “O
SUPOSITÓRIO”, “QRS” e o “Jornal do CR”, vinha sendo um tanto descontínua. A estruturação
do Departamento de Imprensa dos Alunos como órgão que cuidasse da feitura do jornal, como
tentativa de romper com essa situação, encontrava sua maior dificuldade no pequeno número
de participantes para a produção do jornal.
Em junho de 74, foi conseguida a edição do jornal “Cobra de Vidro”, que não
iria firmar-se. Mas nessa empreitada, o Departamento de Imprensa dos Alunos (D.I.A.) se
preocupara em alcançar melhor estruturação.

O Conselho de Representantes já não era aceito como entidade de


representação estudantil. Durante as férias grandes, o grupo de oposição ao CR elaborou um
jornal clandestino (feito à revelia do conhecimento dos membros da entidade). Como o jornal
exigia como pré-requisito a escolha de um nome eleito pelos alunos, o primeiro número, para
preenchimento do cabeçalho, saiu como “O TÍTULO PROVISÓRIO”.

A receptividade do jornal foi muito grande. O D.I.A. passou a funcionar como


qualquer outro Departamento, o número de pessoas que passou a frequentá-lo diariamente
cresceu. O TÍTULO PROVISÓRIO, após votação, passou a ser o nome do jornal, passou a
representar o crédito na possibilidade de mudar uma situação provisória de opressão e
cerceamento da liberdade.

A primeira meta do Título, colocando a representatividade como algo a


conquistar, foi questionar o conselho velho. Na mesma linha, no editorial do exemplar nº 2 do
Jornal, a eleição de representantes é anunciada para assumir novas perspectivas.

Eis uma síntese do editorial, preservando seu conteúdo:

“... Hoje, quando se aproxima a eleição para a gestão 75/76 do CR., outra
questão se coloca, ou seja, quais serão as características desta eleição?

O DESPREZO

Como sempre, certas pessoas demonstrarão um desprezo total pela eleição de


representantes. Desprezo propagado nos corredores por aqueles que se orgulham de ter uma
pretensa aversão a toda e qualquer manifestação de grupo ou classe social. Talvez, algumas
dessas pessoas até acreditem, sinceramente, que estão acima dos diferentes interesses,
objetivos e necessidades existentes, acima do conflito entre o que nós queremos e o que nos é
imposto. Mas, deixando de lado o que elas possam pensar de si mesmas, o que é claro e
inegável é ser esta uma posição em tudo favorável à perpetuação do atual estado de coisas.

O OTIMISMO

Já, por outro lado, é muito provável que tenham os mais otimistas a ver nesta
eleição o marco de um novo período para a nossa vida estudantil. Certamente, este seria um
dos mais belos quadros da “Abertura Democrática” pintada no Brasil nestes últimos tempos.
No entanto, tal otimismo só pode ser sustentado, se esquecermos as condições que limitam a
formulação, a expressão e a defesa do querer doa alunos. Não será alimentando ilusões que
teremos um CR respaldado a todo momento, na maioria dos alunos, no que esteja fazendo ou
deixando de fazer.

O DESCRÉDITO

O que se tem constatado, nestes últimos anos, é um certo descrédito como


clima predominante nas eleições de representantes. Este descrédito tem base em fatos reais,
ou seja, a origem dele está nas experiências vivenciadas por todos no dia-a-dia, da escola e,
além disso, no conhecimento das medidas repressivas que pairam sobre a universidade
brasileira.

REPRESENTATIVIDADE: ALGO A CONQUISTAR

O que o Departamento de Imprensa pretende, ao refutar o desprezo que leva


à perpetuação do atual estado de coisas; ao recusar um otimismo fácil, que difunde a ilusão
como forma de não enxergar os problemas tais como eles são; ao procurar vencer o descrédito
que nos prende, de forma cega, às experiências passadas; e ao conclamar todos os alunos que
tomem para si a tarefa de conseguir um órgão de representação realmente representativo é
contribuir, dentro de suas possibilidades, para este processo”.

O Diretório Acadêmico existia como um Direito esquecido. Enquanto o


ressurgimento do protesto dos estudantes em todo o país se fazia acompanhar de uma
repressão maior, na escola o não reconhecimento do Conselho de Representantes eleito,
mantendo-se os absurdos critérios de inelegibilidade, tentava manter os estudantes dentro
das salas de aula, sem poder ver, ouvir, nem pensar, tendo apenas que digerir o recebido.

O Departamento de Imprensa lançava o debate e sustentava a discussão de


que, para a resolução dos problemas e para a realização de uma vida universitária, era
imprescindível o fortalecimento, tanto em termos de representatividade, como em termos de
liberdade, das formas de organização estudantil.

Quando os professores Jayme Landmann e Roberto Alcântara Gomes foram


substituídos na Direção e Vice-Direção da Faculdade, respectivamente, pelos professores Ítalo
Suassuna e Ismar Chaves da Silveira, fechou-se o ciclo de maior repressão que os estudantes
sofreram desde 1964.

Em março de 76, O TÍTULO PROVISÓRIO, no ano II – nº 4, publicou entrevista


concedida pelo novo Diretor.

TÍTULO PROVISÓRIO: Qual o papel da Universidade, em geral, na sua opinião?

SUASSUNA: Eu acho que a Universidade tem uma função tradicional, que é informar,
transmitir conhecimentos, mas que considerada como exclusividade, esta é uma função
superada. Quer dizer que numa universidade moderna, para o papel que ela se arrogou, em
qualquer nação que teve desenvolvimento, ela tem de ser, além disso e coincidente com isso,
criadora de cultura, criadora de conhecimentos; quer dizer, isto inclui cultura de modo geral,
tecnologia e ciência. E é esse, evidentemente, o destino de uma universidade moderna. E é o
mais necessário para o nosso país, sobretudo por estar-se lançando a processos de acelerar
seu desenvolvimento.

TP: A Universidade Brasileira hoje cumpre esse papel?

S: Não A Universidade Brasileira no sentido, vamos dizer, qualitativo, está procurando


por todos os meios cumprir. No sentido quantitativo, ela ainda está muito aquém das nossas
necessidades. Em função do que o Brasil necessita a nossa Universidade ainda está muito
aquém. Há duas ou três universidades que já chegaram a este estágio, mas a maioria das
outras, não. O motivo, a razão disto é muito simples. Como concepção de uma universidade
moderna, a implementação para se conseguir esse objetivo é muito recente, um plano
realmente de orientação só foi começado, em termos de plano nacional, de 1964 para cá e são
exatamente 10 anos. Quer dizer, até então era atitude particular de alguns professores, muitas
vezes, entender a universidade assim. Então, nós temos os nomes pioneiros, a USP, a UFRJ,
que, quase sozinhas, criaram centros de excelência com todas as dificuldades.

TP: Em relação à pesquisa na nossa Universidade, o que o senhor acha de seu estágio
de desenvolvimento? E qual a perspectiva, como diretor, que o senhor dará à pesquisa na
FCM?

S: Eu acho que o potencial de pesquisa na Ciências Médicas é realmente muito maior


que o que está sendo praticado. Provavelmente, isso se deveu ao preço que se pagou para
chegar ao “status” profissional que a FCM tem. A FCM da UERJ foi a primeira realmente que se
dedicou a possuir seu Hospital de Clínicas. Foi a primeira que compôs o ensino médico, aqui,
na nossa área geográfica. Mas esse investimento, em termos de Hospital, sempre representou
um problema em qualquer país do mundo. Para dar um exemplo, a universidade americana é
sempre tomada como parâmetro do conceito moderno de que a Universidade deveria abrigar
todas as formas de ensino, para merecer este nome. No entanto, já há na literatura médica
americana pontos de vista mais modernos dizendo que talvez para a escola médica fosse
melhor ela estar fora da universidade. Por um simples problema que se repete em todos os
lugares: um Hospital de Clínicas e uma escola médica fazem uma demanda orçamentária que
nenhuma outra escola se pode comparar.

De modo que, chegando a sua pergunta específica, já que nós temos algo
vantajoso, nós temos um Hospital, nós temos material clínico que pode servir de apoio à
pesquisa médica (porque pesquisa médica deve ser feita com material clínico), nós teremos a
possibilidade de atacar agora nesse outro setor. Para isto, nós precisamos de participação da
universidade, uma vez mais, porque à universidade compete manter os recursos humanos,
que é o item nº 1. Os recursos humanos sob o ponto de vista dos alunos aqui na UERJ são
muito bons. O pessoal jovem da docência também é responsável por muito do bom ensino.
Então, recursos humanos a universidade tem onde colher, tem que encontrar meios de agora
sustentá-los. O outro aspecto que se precisa é o financiamento da pesquisa. Ele tem-se
facilitado, dentro, novamente, de uma política de desenvolvimento do Governo, agora
planejado para o país inteiro. Eu acho que a universidade que tem recursos humanos, tem
capacitação para isto, tem de onde solicitar e receber.

TP: Qual a sua opinião sobre a importância da participação estudantil na vida


universitária em geral?

S: A minha opinião coincide inclusive com o que está escrito, pois está dentro dos
regulamentos haver representação estudantil nos órgãos colegiados. No entanto, eu acho que
deve haver um limite. Eu conheci, participei numa universidade em que a participação do
estudante sem limitação contribuiu muito para cair o que essa universidade produzia, que foi a
universidade de Montevidéu. Em certa época havia 1/3 de representantes de alunos, 1/3 de
representação de administração e 1/3 de professores. A partir daí, os professores nunca mais
puderam tomar decisões em função do ensino, dentro daquilo que eles mais possuíam – mais
experiência. Um aluno é tão inteligente quanto um professor ou muito mais. Mas em termos
de vivência, de informação, eu acho que a experiência do professor como a experiência do
indivíduo mais velho, que viveu mais, é uma contingência biológica, aliás, muito particular da
nossa espécie. Nós somos a espécie que é capaz de transmitir conhecimentos por processos de
comunicação bastante sutis. De modo que a minha posição é essa.

TP: Até que ponto o Sr. acha que essas limitações à participação estudantil
beneficiaram à universidade? E a partir desse ponto estas próprias limitações beneficiariam à
universidade?

S: Eu posso responder o seguinte. A coisa que mais me tem ajudado é, sobretudo, o


senso crítico do estudante. Quando a gente é capaz de ouvir o estudante, ele realmente nos
abre os olhos para coisas que, apesar da experiência, pode estar embotado, para sentir e
perceber. O sentido de crítica do estudante é mais aguçado, porque ele é a parte mais
interessada, que vive todos os dias, e realmente ajuda tremendamente. Eventualmente, o
estudante tem uma forma de propor uma solução que eu acho extremamente inteligente e
interessante. Agora, fazer disso uma regra de que sempre ela, necessariamente, é boa, ajudará
a resolver, eu não faço.

TP: O Sr. acha, então, que a participação do estudante na elaboração do currículo é


importante?

S: Acho muito importante. Esta é a parte que mais me tem ajudado, porque em
matéria de currículo, nós mesmos, professores, não temos tido uma participação muito grande
em função dos parâmetros mínimos de currículo que a gente tem. Necessariamente a
proposta do estudante deve ser agora discutida, em função da realidade, para que a gente
possa ter condições de um plano didático global. Esse é o grande problema, porque o
estudante só conhece o plano didático global quando se forma quando deixou de ser
estudante.

O desatrelamento do Conselho de Representantes das Leis de inelegibilidade


deu-se no primeiro ano da gestão Suassuna. Mas apesar de se ter livrado dessas leis, o CR
permanecia com suas limitações próprias, como o fato de não ser eleito em cima de uma
plataforma discutida e apoiada nas turmas.

Havia, portanto, necessidade de se eleger, além dos representantes por turma,


uma chapa que viesse a compor a Diretoria do Diretório Acadêmico.

Há tempos, os estudantes da UERJ vinham tentando desenvolver discussões e


realizar atividades em comum. Ao realizarem a Semana de Calouros da UERJ, com a feitura de
uma mesa-redonda sobre representação estudantil com 10 escolas, que culminou com a
criação da comissão universitária da UERJ, foi dado um importante passo para a união dos
estudantes.

Nesse meio tempo, concomitantemente à aplicação de uma política de


distensão, o Prof. Suassuna tentava conter o ímpeto que o movimento estudantil ganhava
dentro da limitação por ele considerada necessária.
Assim, expirava o ano de 1976, prenunciando o apito da panela de pressão.
1977 – A RETOMADA DAS LUTAS

REABERTURA DO CENTRO ACADÊMICO

“... de uma forma ou de outra, os

professores vêm-se diante de um

novo dilema: fortalece-se dia a

dia a aspiração de isolar-se o

jovem do fluxo de reconstrução

da sociedade”.

Florestan Fernandes

Ao movimento estudantil caberia a função de, tal uma cunha, abrir a brecha e
alargar a fissura, detonando novo impulso à participação política também de outros setores da
sociedade.

Na Ciências Médicas, a greve dos internos (sextanistas de medicina) marcou


seu início no dia 01.03.77. Submetidos a uma carga horária excessiva, com uma remuneração
irrisória (Cr$900,00 mensais), os internos exigiam a diminuição do número de plantões
mensais de 6 para 4, remuneração de dois salários mínimos, como recomenda a CLT, e
contratação de mais médicos e enfermeiras para o hospital.

Frente à negativa de atendimento, os internos haviam entrado em greve de


atendimento ambulatorial e de plantões, como forma de resolver o problema.

Como Diretor do HC-UERJ, o Prof. Jayme Landmann tentou controlar o


movimento, através de suspensão e corte das bolsas. Mas, sabendo da proximidade das aulas
e da possibilidade de aderirem à greve as demais séries da graduação, anuiu ao
estabelecimento de uma comissão sobre o internato e residência no Hospital de Clínicas.

Na véspera do início da greve, o Diretor do Hospital colocara em reunião com


os Internos e Residentes a sua intenção de não voltar atrás em sua decisão. Afirmava que
manteria as punições, que isso constituía um problema de “autoridade”, para a Direção do
Hospital não interessava se o que os internos queriam era justo ou injusto, interessava apenas
sua “autoridade”.

A coesão do movimento, com menos de 10% da turma furando a greve e a


proximidade das aulas obrigariam a Direção a retroceder, pagar as bolsas atrasadas, conceder
aumento para Cr$1.300,00, manter o esquema de plantão dos internos e uma folga semanal.

O apoio da AMERERJ (Associação dos Médicos Residentes do Estado do Rio de


Janeiro), da ANMR (Associação Nacional dos Médicos Residentes) iniciava a mobilização dos
próprios residentes no HC-UERJ.
Os primeiros meses do ano de 1977 foram caracterizados pela crescente onda
de mobilizações, ainda que isoladas no meio estudantil. Estas mobilizações tinham um eixo
comum: decorriam da necessidade de melhoria do nível de ensino, de melhores condições
materiais e convergiam para a luta dos estudantes contra a diminuição de verbas para a
educação.

Todas as mobilizações vinham mostrar que, cada vez mais, tornava-se


imperiosa a necessidade de criação de entidades livremente eleitas, desatreladas e
representativas.

Na Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro, os estudantes do Grande


Rio se reuniam para a discussão dos problemas do ME. À PUC, como sede do movimento
regional, caberia romper o silêncio a que o estudante estava submetido desde 1968.

No 2º Encontro Regional de Universitários do Grande Rio, convocado


inicialmente para discutir problemas de verbas e organização estudantil, houve uma mudança
de pauta.

Nas comemorações do 1º de Maio, em São Paulo, ocorrera a prisão de


estudantes e operários. Cartazes nos pilotis anunciavam a assembleia e a greve de 80 mil
estudantes paulistas, além de pedir a libertação dos estudantes e operários presos.

Na Ciências Médicas, o Conselho de Representantes emite documento, que


viria a ser o último expedido por ele, convocando todos os colegas para discutir a posição da
escola frente ao “ATO PÚBLICO PELA LIBERTAÇÃO DOS ESTUDANTES E TRABALHADORES
PRESOS”, programado na PUC.

Eis a íntegra do documento:

Vemos na época atual a grande contradição existente entre a política oficial e


os interesses reias da maioria da população brasileira.

Sentimos no nosso dia a dia o reflexo dessa política na Universidade.

A. O ensino gratuito sendo extinto, cedendo lugar ao ensino pago, com


taxas cada vez maiores e tornando-o cada vez mais inacessível às classes pobres.
B. A percentagem do orçamento nacional destinado à educação
diminuindo grandemente, em benefício de outras áreas consideradas prioritárias pelo regime,
trazendo a deterioração da qualidade do ensino, ausência de pesquisas e toda sorte de
deficiências.
C. Tenta-se formar profissionais voltados para acionar uma tecnologia
importada e a servir a uma elite economicamente privilegiada capaz de ter acesso a essa
tecnologia, esquecendo as reais e prementes necessidades do povo brasileiro.
Para tornar possível a manutenção dessa política contrária aos interesses dos
mais amplos setores da população, o regime precisa valer-se de um aparato repressivo para
estabelecer um clima de medo e passividade, para calar as vozes que se levantam contra a
injustiça, para que as pessoas vejam a verdade como pecado e temam professá-la.
Assim, vemos a prisão de nossos colegas da USP e dos trabalhadores de São
Paulo, cujo crime foi o de não acreditarem na farsa oficial das comemorações de 1º de maio e
participarem da organização de comemorações realizadas em sindicatos, igrejas, e escolas com
o verdadeiro sentido da data: a luta dos trabalhadores contra a exploração a que estão
submetidos.
A repressão que ora se abate sob a forma de prisões políticas está presente a
cada momento através do Decreto 477, que procura amordaçar e intimidar os estudantes
através do fechamento dos Diretórios e Centros Acadêmicos ou restrições às entidades
abertas; através de restrições aos murais, proibições de reuniões, censura à imprensa
estudantil e às atividades culturais. Portanto, não é um fato isolado nem alheio à nossa
realidade a prisão dos colegas da USP e dos trabalhadores.
Além do mais, a forma com que se deram essas prisões, com características de
sequestro, sem culpa formada, sendo os presos levados a local ignorado e mantidos
incomunicáveis, atenta contra os princípios mais elementares de respeito à pessoa humana
que o Brasil, signatário da Carta das Nações Unidas, se comprometeu a cumprir.
Preocupamo-nos extremamente pela integridade física e a própria vida dos
trabalhadores e colegas da USP sequestrados. Concordamos com os estudantes da USP,
mobilizados pela libertação dos presos, de que só a ampla denúncia e a firme de todos os
estudantes e demais setores da população podem ser as garantias de sua integridade física e
de sua própria vida, e por isto nos posicionamos:
 PELA LIBERTAÇÃO IMEDIATA DOS ESTUDANTES E TRABALHADORES
PRESOS
 PELA EXTINÇÃO DEFINITIVA DAS TORTURAS E ASSASSINATOS AOS PRESOS
 PELAS LIBERDADES DEMOCRÁTICAS

A convocação resultou na primeira Assembléia Geral realizada na Ciências


Médicas após o fechamento do CASAF.

No dia seguinte, 10 de maio de 1977, com presença significativa de alunos da


FCM, 7 mil estudantes compareceram à PUC.

O Senador Petrônio Portela ameaçava: “- Isso vai acabar mal. A ressonância


será proporcional à explosividade”.

O Ministro da Educação e Cultura, Ney Braga, afirmava que uma inexpressiva


minoria de estudantes, aliciada por elementos sem compromisso com os interesses maiores da
nação brasileira, estranhos à universidade, pretendia perturbar a tranquilidade interna.

O primeiro passo era lançar a pecha de “subversivo” sobre as lideranças


estudantis, em seguida convidar os estudantes de grande participação a prestar depoimento
na Delegacia de Polícia Política e Social, situada na Rua da Relação.

Tal medida logo alcançou a Ciências Médicas, atingindo principalmente a


turma do quinto ano médico. Mas o apoio em outros setores sociais, um dos fatores que
diferenciam o movimento estudantil atual do de 1968, fazia com que a sociedade civil, através
de suas entidades democráticas, impedisse que a ditadura prendesse e torturasse de imediato.
Em Belo Horizonte, no III ENE, programado para 4 de junho, seria discutido o
restabelecimento da União Nacional dos Estudantes, não fosse a intervenção policial orientada
pelo governador Aureliano Chaves.

Frente às prisões, enquadramento de estudantes na Lei de Segurança


Nacional, proibição da realização do III ENE, em Florianópolis, o IX Encontro Científico de
Estudantes de Medicina do Brasil fez constar no seu relatório final: “Nossos órgãos de luta são
as entidades estudantis (DAs, CAs, DCEs). É através da garantia da sua independência e
democracia interna que daremos passos cada vez maiores em direção à reorganização regional
e nacional, as UEEs e UNE, com o que teremos melhores condições de lutar por nossas
reivindicações”.

A invisível liderança estudantil em emergência nacional pautava sua


mobilização em palavras de ordem eminentemente políticas.

A universidade e o regime, na medida em que progredia a rejeição coletiva à


Ditadura, entravam em choque. As vertentes internas e externas das inquietações estudantis
continuavam atuantes. Os problemas da vida acadêmica – vertente interna – não haviam sido
resolvidos, e as emoções políticas acentuavam-se com a compreensão de que, somente com a
instalação da democracia no país, a universidade poderia cumprir sua real função de progresso
social.

Logo, a tortura de presos políticos voltaria a surgir como rotina de


investigação. Entre os dias 19 de julho e 2 de agosto, 15 pessoas foram sequestradas e presas,
entre elas três estudantes da Ciências Médicas, a saber: Cláudio da Rocha Roquete, Maria de
Fátima Martins Pereira e José Mendes Ribeiro.

Nesse meio tempo, na FCM, em plena atividade de férias, as lideranças


estudantis articulavam a reabertura do Centro Acadêmico. Ao contrário da década de
sessenta, não se formava nenhuma chapa reacionária para concorrer às eleições do CA. Isso se
devia ao retraimento da influência familiar nesse sentido. Os pais haviam compreendido que
um estado que torturava sistematicamente seus filhos não podia ser tão bom.

Os grupos Participação e Reabertura seriam os concorrentes à eleição, que


com 83,3% dos estudantes no sufrágio reabriria o Centro Acadêmico.

No dia 26 de outubro, foi divulgada uma carta denunciando tortura nas


dependências do DOI-CODI, no Rio, por uma comissão de parentes dos 15 presos, dos quais 13
ainda permaneciam na prisão aguardando julgamento.

A carta tinha como signatários os três estudantes da Ciências Médicas. São


reproduzidos aqui o sofrimento e o gesto político dos colegas:

“Na qualidade de presos políticos, julgamos da maior oportunidade engrossar as vozes que
denunciam as torturas como uma prática sistemática e a opressão policial como instrumento
que se presta a perpetuar a situação de miséria e exploração em que se encontram os
trabalhadores brasileiros. Nesse sentido, passamos a relatar, aqui, fatos ocorridos durante a
nossa passagem pelos órgãos policiais”,
“Uma vez presos, fomos atirados em carros, imediatamente algemados e
encapuzados e conduzidos a um local que, mais tarde, viemos a saber tratar-se do DOI-CODI-
RJ. Lá, após termos sido despidos e fotografados, seguimos, debaixo de espancamentos, para
as geladeiras, ou para salas de interrogatórios, iniciando-se, dessa maneira, os nossos 10 dias
de isolamento e tormentos.”

“Nessas e numa infinidade de outras situações em que nossos verdugos


procuravam nos humilhar e aterrorizar, seu objetivo maior era nos abater, física, moral e
psicologicamente. A cada ato de resistência, nossos algozes respondiam com o aumento
infinito da tortura, com o prolongamento das sessões de choque, com o aumento da corrente
elétrica, ameaças de pau-de-arara, tentativas de estupro, enfim, todo tipo de bestialidade era
empregado com o fim de aniquilar qualquer resistência que opuséssemos àquelas
iniquidades”.

“Na geladeira, a companheira Maria de Fátima Martins Pereira, após


permanecer várias horas com as pernas abertas e braços erguidos, foi atacada por cinco
homens, que, forçando-a a deitar-se no chão e segurando-a pelas pernas e braços, tentaram
enviar na sua vagina um objeto de madeira semelhante a um cabo de vassoura, que a
companheira foi obrigada a apalpar. Tentativas semelhantes de violentação sofreram os
companheiros José Mendes Ribeiro e Fernanda Duclos Caruso, sendo que esta foi forçada a
passar as mãos pelo corpo de um torturador despido”.

“Gabando-se de estar “exportando tecnologia”, a preocupação de nossos


algozes com a “cientificidade” da tortura incluía comparações com os outros órgãos de
segurança, do tipo “aqui não ocorrem mortes como em São Paulo””.

“E uns poucos fatos podem demonstrar até que ponto a ciência e a técnica
podem ser postas a serviço dos mais torpes objetivos. O companheiro Cláudio da Rocha
Roquete, com problemas cardíacos, veio a desmaiar na geladeira, após sofrer violentos golpes
no tórax e no abdômen e ficar dependurado pelas algemas durante horas. O médico que o
examinou limitou-se a recomendar um período de descanso fora da geladeira, e o
companheiro continuou sem ter acesso aos remédios que seu pai lhe enviava através do DPPS.
Segundo os torturadores, não poderia tomá-los por estar em castigo”.

Após a reabertura do Centro Acadêmico, o TÍTULO PROVISÓRIO, que lutava


pela representação estudantil mais forte, perdia o significado.

No último número do TÍTULO PROVISÓRIO uma pergunta: - Reabrimos o


Centro Acadêmico. E agora?
PERGUNTAS SEM RESPOSTA

O verdadeiro caminho passa em

cima de um fio esticado, não no

espaço mas no rés do chão: pare-

ce destinado a fazer tropeçar,

mais do que a ser percorrido.

Franz Kafka

- Entrevista com o Prof. Jayme Landmann –

TÍTULO PROVISÓRIO:

- Na época em que o sr. passou a lecionar na Ciências Médicas – favor


especificar o ano – como a escola se encontrava, e que críticas o sr. faria à FCM como
instituição de ensino?

JAYME LANDMANN: -

TP: - Sofreu a Ciências Médicas mudança marcante após a incorporação do Hospital


Geral Pedro Ernesto à Universidade. Na luta pelo hospital a participação docente e a estudantil
foram decisivas. O que foi a invasão do hospital? Como foi a mobilização estudantil para
conquistá-lo?

JL: -

TP: - A grande mobilização estudantil que ocorreu na escola em 1968 assentou-se


sobre uma crítica veemente ao ensino. Em primeiro lugar, gostaria de saber o que o sr.
considera positivo naquela crítica. Em segundo, até que ponto o sr. acha importante a
participação crítica do estudante nos órgãos colegiados?

JL: -

TP: - A UERJ construiu seu campus universitário de acordo com a estética da segurança
nacional – grande e vazio. A partir de então, as verbas destinadas à FCM foram se tornando
cada vez mais limitadas. Por orientação da reitoria, a escola passou a procurar gerar próprios
recursos para seu funcionamento. O sr. estabeleceria algum relacionamento entre este fato e
a queda do nível de ensino observada após 1969?

JL: -

TP: - O convênio do Hospital com o INPS foi uma iniciativa do Sr. e propiciou a
modificação da qualidade dos doentes internados no Hospital de Clínicas e uma prática médica
mais condizente com as exigências da comunidade. Esta medida visava tornar o Hospital
economicamente mais independente em relação à Universidade. O Hospital, daí para frente,
procurou gerar suas próprias divisas. Gostaria de saber se esse objetivo foi plenamente
atingido e que implicações esse gesto lançou sobre o ensino?

JL: -

TP: - Na minha forma de ver, o convênio passou a exigir do corpo clínico um


compromisso com a produção de atendimento médico que inexistia anteriormente. Este
compromisso desencadeou um divórcio quase completo entre o ciclo básico e o profissional.
Como o sr. explicaria a fragmentação institucional que a escola sofreu – a universidade se
separou da Faculdade e o Hospital em busca de uma autonomia se divorciou da escola?

JL: -

TP: - Atualmente, à semelhança do que aconteceu com a Faculdade de Ciências


Médicas, estudantes de algumas escolas particulares (Medicina de Teresópolis, Medicina de
Petrópolis, Souza Marques, Faculdade de Medicina de Nova Iguaçu) se mobilizam para
conseguir uma melhor estrutura para as suas escolas. Como membro da Comissão de Ensino
Médico do MEC, de que maneira o sr. avalia a repetição cíclica deste fenômeno?

JL: -

Ao ler as perguntas, o Prof. Jayme Landmann tergiversou: - Uma entrevista não


se faz assim; você não pode ser preconcebido. Aqui, por exemplo: O Hospital não foi invadido;
quem veio para o Hospital fui eu, o Prof. Piquet e o Prof. Ângelo Failace. Não houve
participação docente nem estudantil. Sofreu a Ciências Médicas... Não houve crítica ao ensino,
aquilo foi político, foi o Salgado e a turma dele que organizaram...

- É isto que eu quero que o sr. responda, professor.

- Tá bom, eu vou fazer isto.

Mais tarde, ao encontrá-lo perto dos livreiros, a pergunta: - Professor, e o meu


negócio?

- O fim do ano, as festas, você sabe como é. Eu vou responder quando tiver um
tempinho...
République Française

AÈROGRAMME

PAR AVION

Aix-en-provence, 23 de fevereiro de 1980

Caro Fabio

Foi com grande tristeza que acabei de saber (por minha irmã) que você
nunca recebeu minha carta. Pena mesmo, porque respondi na meia hora seguinte ao
recebimento da sua.

Durante estes meses, fiquei matutando sobre o que poderia ter


acontecido, pois você disse que mandaria os originais logo que estivessem batidos à
máquina. No entanto, não quis tomar nenhuma iniciativa sem saber o que estava
ocorrendo.

Hoje é só um bilhetinho e não vou reproduzir minha carta-resposta.


Mas queria dizer que tinha aceitado fazer um esforço para prefaciar o livro. E digo
esforço porque os dotes da escrita não são muito evidentes.

Provavelmente já está muito tarde para fazer algo antes da edição.


Não importa a minha introdução e lhe mando daqui deste quase finado exílio todo
meu apoio ao seu trabalho.

Além de todo envolvimento emocional que ainda tenho coma História


da F.C.M., devo dizer que foi um dos movimentos mais importantes que já conheci.
Marcado por uma grande autenticidade, foi um exemplo de movimento de base. E
tudo era muito sério, com as pessoas acreditando nas coisas, porque, em geral, eram
elas que praticavam. Acho realmente que é uma experiência a ser estudada e contada.
A F.C.M. tem sem dúvida uma página na história do movimento estudantil.

Espero que seu livro trace esta página. Não demoro a chegar por aí
para conversarmos de viva voz. Até lá um grande abraço para você e muito sucesso.

Para os amigos que ainda estiverem por aí muitas saudades.

JOÃO LOPES SALGADO.


BIBLIOGRAFIA*

ADUSP – O livro negro da USP – O controle ideológico na universidade. Editora Brasiliense,


1979.

Autor não especificado – Assistência Pública na Guanabara – 80 anos de História. Secretaria de


Saúde do Estado da Gunabara-SUSEME, 1972.

Autor não especificado – Medicina – Os novos proletários. Editora Abril, Veja, ano 9/nº 485,
1978.

Autores não especificados – RELATÓRIO DE 1972 – Hospital de Clínicas da Universidade do


Estado da Guanabara; RELATÓRIO SOBRE A SITUAÇÃO DO HOSPITAL DE CLÍNICAS DA UEG –
Port. 152/73; RELATÓRIO 1974.

ALBUQUERQUE, J.A.G. – Movimento estudantil e consciência social na América Latina. Paz e


Terra, 1977.

CARR, E.H. – Que é História? – Paz e Terra, 1978.

ENGELS, F.; Marx, K. – Crítica da educação e do ensino. Moraes Editores, 1978.

FERNANDES, F. – Universidade brasileira: reforma ou revolução? Editora Alfa-Omega, 1975.

GABEIRA, F. – O que é isto, companheiro? Editora Codecri, 1979.

GRAMSCI, A. – Concepção dialética da história – Civilização Brasileira, 1978.

* - relacionados somente os trabalhos que tenham contribuído, de alguma forma, para a


elaboração do texto.

LIMA, H. – Travessia – Memórias.. Livraria José Olympio Editora, 1974.

PINHEIRO, P. S. – Os lucros da burrice. Encontro editorial, ISTO É. ano 4/nº 147, 1979.

POERNER, A. J. – O Poder Jovem – História da participação política dos estudantes brasileiro..


Civilização brasileira, 1968.

RIBEIRO, D. – A Universidade necessária (segunda edição revista e ampliada). Paz e Terra,


1975.

RIBEIRO, D. – UNB: Invenção e descaminho. Avenir Editora, 1978.

SANT’ANNA, A. C. de – A Faculdade de Ciências Médicas e a UEG. Editado pela UEG, 1967.

SODRÉ, N. W. – Memórias de um escritor – 1. Civilização Brasileira, 1970.

TEIXEIRA, A. S. – Educação no Brasil. Companhia Editora Nacional/MEC, 1976.


Este livro, elaborado entre março

de 1977 e dezembro de 1979, é

uma resenha histórica voltada para

a participação estudantil dentro de

uma escola médica.

A Ciências Médicas não tem uma

existência a parte, a sua história é

um apêndice da evolução política

brasileira. O objetivo de colocar

essa história a céu aberto é

contribuir para a sua

transformação à luz

do seu passado.
ANEXO 1

ANOS 1969 1970 1971 1972 1973 Aumento


% total
período de
séries aum% aum% aum% aum% aum%
1969 a
1973
1.º -0- 112,5 141,0 493,5 648,0 476
25,3 250 31,3
2.º -0- 112,5 141,0 282,0 526,5 368
25,3 100 86,5
3.º -0- 112,5 141,0 246,75 364,5 224
25,3 75 48
4.º -0- 37,5 47,0 141,0 324,0 764
25,3 200 130
5.º -0- 37,5 47,0 141,0 243,0 548
25,3 200 72,3
6.º -0- 37,5 47,0 141,0 162,0 332
25,3 200 14,8
ANEXO 2

João Lopes Salgado olha


para a Estátua da Liberdade, são
os preparativos do dia de protesto
contra as prisões ocorridas no
Congresso da UNE em IBIUNA.

Em frente ao Hospital Pedro Ernesto o discurso do último


Presidente do CASAF, João Lopes Salgado.
Já dentro do hospital os estudantes protestam. A direita Luiz
Roberto Tenório, presidente do CASAF gestão 65/66.
Passeata do silêncio foi por estágio remunerado

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