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DOI: 10.1590/1413-81232015202.

18112013 425

Samuel Barnsley Pessoa

construtores da saúde COLETIVa Collective Health Builders


e os determinantes sociais das endemias rurais

Samuel Barnsley Pessoa and the social determinants


of rural endemic diseases

Gilberto Hochman 1

Abstract This article analyzes the main aspects Resumo O artigo analisa os principais aspectos
of the trajectory, the ideas and the academic and da trajetória, das ideias e da atuação acadêmica e
political activism of Samuel Barnsley Pessoa política de Samuel Barnsley Pessoa (1898-1976).
(1898-1976). It reveals that Samuel Pessoa’s ac- Indica que a atuação de Samuel Pessoa deve ser
tivism must also be understood in the context of compreendida também a partir da sua militância
his communist militancy and highlights the fact comunista e ressalta que uma das contribuições
that one of the original contributions of his work originais de seus trabalhos foi o estabelecimen-
was the establishment of the relationship between to da relação entre estrutura agrária e endemias
agrarian structure and rural endemic diseases, rurais, entre latifúndio e doença e a adesão a um
between large and unproductive estates and dis- projeto de transformação da sociedade brasileira.
ease and adherence to a project of transformation Palavras-chave Samuel Pessoa, Parasitologia,
of Brazilian society. Endemias rurais, Guerra Fria, Comunismo
Key words Samuel Pessoa, Parasitology, Rural
endemic diseases, social determinants; Cold War,
Communism

1
Departamento de
Pesquisa, Casa Oswaldo
Cruz, Fundação Oswaldo
Cruz. Av. Brasil 4036/403,
Manguinhos. 21040-361
Rio de Janeiro RJ Brasil.
hochman@fiocruz.br
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Hochman G

Introdução Samuel Pessoa só podem ser compreendidas à luz


de uma intensa militância comunista, internacio-
Como superar os graves problemas sanitários das nalista e anti-imperialista, dado inexplorado por
populações rurais brasileiras? Como a saúde pú- aqueles, poucos, que se debruçaram sobre suas
blica poderia alcançar o interior do país? Como concepções e trajetória. Esses trabalhos têm enfa-
reformar a saúde pública? Essas foram perguntas tizado suas propostas de organização sanitária3,4
que incomodaram e mobilizaram gerações de e sua Geografia Médica5. Sua filiação ao Partido
médicos, sanitaristas e intelectuais até o último Comunista Brasileiro (PCB), provavelmente en-
quartel do século XX. Todavia as respostas foram tre fins dos anos 1930 e no início dos anos 1940,
muito diversas. A condenação à raça e ao clima foi uma inflexão política e intelectual. O seu am-
tropical e as consequentes propostas de incen- plo conhecimento sobre as condições de vida do
tivo à imigração e apostas no branqueamento, Brasil rural entrecruzou-se com o socialismo.
ou “melhorias” da raça via políticas eugênicas Com uma apaixonada e excepcional trajetó-
“duras” foram algumas delas. Ideias que mesmo ria de professor, pesquisador e médico da saúde
tendo gerado práticas, ao final, não se materia- pública, inspirador e formador de gerações de
lizaram como políticas governamentais, por um médicos e sanitaristas – uma “escola de parasi-
lado1. De outro lado, a busca de uma resposta tologia”, escreveu em jornais e periódicos, tanto
mais otimista, civilizatória, que recusasse uma operários quanto de circulação mais nacional,
condenação racial e climática do Brasil e de sua sobre a organização dos serviços sanitários, o
população, teria que indiciar outros elementos. papel da universidade e da ciência e sobre a for-
No final da década de 1910, e ao longo da dé- mação dos médicos. Foi celebrado como o mais
cada de 1920, um vigoroso movimento naciona- importante nome da parasitologia médica bra-
lista politizou a doença e a saúde: o que explicaria sileira da segunda metade do século XX e, ao
a onipresença das endemias rurais, da fome e do mesmo tempo, perseguido por suas convicções e
analfabetismo no interior do país seria a ausên- atividades políticas, tanto na experiência demo-
cia de poder público, de Estado2. Um interior crática brasileira (1945-64) como, e principal-
dominado por potentados locais em um país não mente, depois do golpe civil-militar de 1964. Em
integrado devido ao federalismo e gerido por ló- tempos de guerra fria sua vida foi frequentada
gicas particularistas e oligárquicas, com governos por prisões, vigilância pela polícia política, inti-
inapetentes e ineptos para prover os benefícios midações e intimações para depor, vetos velados,
da medicina à sua população. Para o movimen- obstáculos explícitos e inquéritos policiais e mi-
to sanitarista da Primeira República, apenas uma litares. Foi arrolado no Inquérito Policial-Militar
reforma sanitária com a centralização das ações e que investigou “atividades subversivas” na Facul-
políticas no governo central poderia tornar a saú- dade de Medicina da Universidade de São Paulo
de pública e nacional. E algumas reformas ocor- (FMUSP) em 1964. A última prisão foi no início
reriam entre meados dos anos 1910 e na década de março de 1975 no DOI-CODI de São Paulo,
de 1920, e durante o Primeiro Governo Vargas um ano e meio antes de seu falecimento6.
(1930-45), correspondente no ambiente inter- A originalidade de Samuel Pessoa estava tam-
nacional ao período que se inicia com a I Guerra bém em sua leitura sobre a relação entre estrutu-
Mundial e finaliza com a derrota do nazi-fascis- ra agrária e endemias rurais e sobre as possibili-
mo em 1945, ano que no Brasil foi marcado pelo dades de sua transformação na ordem capitalista.
fim do Estado Novo e a democratização do país. Como nenhum outro médico, anteriormente ou
Samuel Barnsley Pessoa (1898-1976) teve de sua geração que tivesse em posição tão desta-
sua formação médica, intelectual e política exa- cada e central – numa cátedra na Faculdade de
tamente nesse período. Contudo suas respos- Medicina, ensinou, escreveu e disseminou o que
tas – interpretações, propostas e ações – para as denominamos hoje de “determinantes sociais da
mesmas perguntas seriam bastante diferentes nas saúde”. A concentração de terras e o latifúndio
décadas seguintes. Para ele, não seria suficiente foram por ele incluídos como dimensões cru-
advogar por mais intervenção estatal e centrali- ciais para a compreensão das doenças endêmicas
zação, muito menos denunciar o clima tropical. do Brasil rural. Ações exclusivamente sanitárias
A ausência do poder público nas áreas rurais não – mesmo centralizadas e nacionais – encontra-
era causa da onipresença de doenças, mas, sim, riam aqui seus limites. Reformas na organização
resultante de estruturas econômicas. Mudan- da saúde, ou mesmo a estatização da medicina,
ças mais profundas seriam necessárias. O ponto não seriam soluções no sistema capitalista. Des-
central deste artigo é que as ideias e a atuação de ta forma o atributo de “desenvolvimentista” é
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limitado para o sanitarismo de Samuel Pessoa. tavam sendo criadas pelo médico, reformador e
A parasitologia foi a sua porta de entrada para personagem importante da saúde internacional,
o conhecimento e a compreensão dos “males do Andrija Stampar: a Escola de Saúde Pública em
Brasil” e o socialismo seria o único caminho para Zagreb (atual Croácia) e o Instituto Central de
a mudança e para a igualdade. Higiene em Belgrado (atual Sérvia), ambas com
forte apoio da Fundação Rockefeller. Stampar,
influenciado pela medicina social, criara tam-
Trajetória, ideias e ação política bém a “Universidade Camponesa” para oferecer
seminários sobre saúde especialmente prepara-
Nascido em 31 maio de 1898 na cidade de São dos para moradores de vilarejos rurais8. Em seus
Paulo, filho do médico paraibano Leonel Pessoa e comentários entusiásticos sobre a visita a Iugos-
de Anna Barnsley Pessoa, Samuel Pessoa perten- lávia, Pessoa registrava o fato de que, em seis anos
cia a uma família da elite política da Paraíba que de reformas dos serviços sanitários, o país se tor-
gerara presidentes da república e governadores nara “uma verdadeira escola de higiene”9.
de estado (Epitácio Pessoa e João Pessoa). Cursou Suas preocupações se iniciaram com a anci-
o ensino secundário no Colégio Anglo-Brasileiro, lostomíase, se espraiaram para a malária e a cis-
por onde passava grande parte da elite paulista. ticercose, a leishmaniose tegumentar e a doença
Ingressou em 1916 na então recém-criada Facul- de Chagas e, a partir dos anos 50, sua atenção
dade de Medicina de São Paulo. Foi exatamente voltou-se para a esquistossomose e a leishma-
neste momento que o International Health Board niose visceral. Em várias oportunidades Pessoa
(IHB) da Fundação Rockefeller passou a apoiar atribuiu a Wilson Smillie, norte-americano que
fortemente a escola de medicina paulista incen- dirigiu o Instituto de Higiene entre 1920 e 1922,
tivando pesquisa em saúde e introduzindo, in- sua escolha pela parasitologia e pelo trabalho de
clusive, o ensino de higiene em 1918. Não é um campo como caminho científico e profissional.
acaso que tenha apresentando, para obtenção do Expressava sua gratidão pelo apoio da Interna-
diploma médico em 1922, um estudo sobre o uso tional Health Division (IHD, que em 1927 substi-
do quenopódio na profilaxia da ancilostomíase, tuiu o IHB) às suas primeiras publicações, vários
doença cujo tratamento e prevenção estava no escritos em coautoria com Smillie10. Esse reco-
centro das preocupações da Fundação Rockefel- nhecimento continuaria mesmo depois que suas
ler para a América Latina e o Caribe6,7. escolhas políticas o afastaram definitivamente da
Sua opção pelo estudo das doenças parasitá- filantropia norte-americana6.
rias e endemias rurais – biologia, epidemiologia Em 1931 tornou-se Professor de Parasitologia
e terapêutica – foi forjada nessa primeira década, Médica na Faculdade Medicina de São Paulo. Aos
em particular no trabalho de campo tão estimu- 33 anos Samuel Pessoa assumia uma das prin-
lado pela Rockefeller. Ao se formar obteve uma cipais posições de ensino e pesquisa médica no
bolsa do IHB para realizar estudos sobre saúde Brasil. Entre 1939 e 1942 chefiou uma Comissão
rural (Resident Fellowship) e trabalhar em postos de Estudos e Profilaxia da Leishmaniose Tegu-
de saúde no interior de São Paulo. Manteve-se mentar, organizando postos de saúde e tratando
associado ao Instituto de Higiene, sempre com doentes no interior de São Paulo. Em dezembro
o estímulo e apoio de Geraldo de Paula Souza, de 1942, Samuel Pessoa tornou-se diretor de saú-
diretor do Instituto a partir de 1922 e principal de pública do Estado de São Paulo, cargo no qual
referência da Rockefeller em São Paulo7. E, dessa permaneceria até fevereiro de 1944 quando se de-
forma, seu contato e preocupação com as popu- mitiu e retornou à USP, durante a interventoria
lações do interior do país se tornaram cotidianos de Fernando de Souza Costa. Costa substituíra
e definitivos. Adhemar de Barros em junho de 1941, demitido
Com a malária ingressando na agenda nacio- por Vargas devido a acusações de corrupção. Foi
nal e internacional, Samuel Pessoa é comissiona- sua única e curta experiência na administração
do para estudos sobre malária no Brasil junto ao pública6. Ao final do Estado Novo acusou o re-
IHB em 1925. Viajou em 1927 para a Europa para gime de censurar seus discursos e artigos sobre
se aperfeiçoar em malária como convidado da as miseráveis condições de vida das populações
Comissão de Higiene da Liga das Nações, visitar rurais.
serviços antimaláricos e estagiar em laboratórios A sua primeira década e meia como professor
em vários países. Ao visitar a Iugoslávia, Pessoa universitário foi marcada por inúmeros e dramá-
teve a oportunidade de conhecer, além dos ser- ticos acontecimentos na política brasileira: a Re-
viços de saúde rural, as novas instituições que es- volução Constitucionalista de 1932, a Intentona
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Comunista de 1935, o Golpe de 1937 e a ditadura adicionais consagrações, com prêmios e títulos, e
do Estado Novo (1937-45), a eclosão da Segun- afirmação como a grande liderança no campo da
da Grande Guerra (1939) e o envolvimento do parasitologia brasileira. Ajudou a fundar depar-
Brasil no conflito (1941-42) e a redemocratiza- tamentos e cadeiras de parasitologia e medicina
ção do país (1945). Apesar do “aparelho civil” do tropical em várias Faculdades de Medicina no
PCB tivesse sido preservado das prisões que se Brasil. O Professor Samuel Pessoa foi um polo de
seguiram ao levante de 1935, a prisão de quase atração de estudantes ao conjugar ensino médi-
todo comitê central em 1940 liquidou o Partido co, pesquisa canônica e forte compromisso social
que permaneceu sem direção nacional até 1943. com o conhecimento sobre as condições de vida
Com as mudanças no ambiente político, o PCB das populações rurais. Muitos tiveram carreira
buscou se reorganizar no Rio de Janeiro, São de expressão nacional e internacional e também
Paulo e Bahia, realizando uma Conferência Na- estiveram associados ao PCB como, por exemplo,
cional em agosto de 1943, que marcou também Luiz Hildebrando Pereira da Silva e Victor Nus-
a ascensão de novas lideranças. Na prisão desde sensweig. Esse núcleo de “parasitologia médica e
1936, Luís Carlos Prestes foi libertado em abril de comunismo” em torno de Samuel Pessoa, e sua
1945 e nomeado secretário-geral do PCB11. Ga- influência nacional, foi motivo de permanentes
nha proeminência, portanto, nesse período, uma observações e investigações da polícia política, de
nova geração de dirigentes e militantes do PCB preocupações da Fundação Rockefeller no Brasil
que amplia a influência social e política do par- e da própria Coordenação de Aperfeiçoamen-
tido na sociedade brasileira. É nesse momento to de Pessoal de Ensino Superior (Capes). Estas
que um número expressivo de escritores, artistas, últimas estiveram empenhadas nos anos 50 em
acadêmicos, jornalistas e intelectuais – tais como conter a influência e liderança de Pessoa, mesmo
Samuel Pessoa – se aproxima do PCB e é forjada aposentado, sobre a formação de médicos, sani-
o que alguns autores denominam de “cultura po- taristas e parasitologistas15.
lítica comunista”12. Em 1952, Samuel Pessoa se envolveu direta-
O intenso ativismo político de Samuel Pessoa mente em um episódio crucial e central da Guer-
ao final da ditadura Vargas seria concomitante a ra Fria: a denúncia feita pelos governos da Co-
suas atividades acadêmicas e a conclusão de seu reia do Norte e da República Popular da China
mais importante livro, Parasitologia Médica, um de que os Estados Unidos teriam utilizado armas
compêndio lançado em 1946 que se tornou lei- biológicas durante a Guerra da Coreia. Essa acu-
tura obrigatória em todas as escolas médicas do sação chegaria ao topo da agenda internacional.
país, com edições atualizadas até 1982, seis anos Dada a negativa dos denunciantes, apoiados pela
depois de sua morte13. Por outro lado, seu engaja- URSS, em aceitar uma comissão de verificação,
mento político ganharia visibilidade e uma mar- seja da Organização Mundial da Saúde (OMS)
ca distintiva ao se candidatar, sem sucesso, pelo ou da Cruz Vermelha, mais aceitáveis para os
Partido Comunista a uma cadeira de deputado EUA e países aliados, o Conselho Mundial da
federal constituinte pelo Estado de São Paulo, Paz, presidido pelo físico e químico francês, Fré-
nas eleições gerais realizadas em 2 de dezembro déric Joliot-Curie, Prêmio Nobel de Química em
de 1945. Não voltaria a disputar cargos eletivos. 1935 e membro do Partido Comunista Francês,
Foi preso em janeiro de 1948, juntamente com nomeou o que seria conhecida por International
sua esposa Jovina Rocha Álvares Pessoa, quando Scientific Commission for the Investigation of the
da proscrição do PCB e a cassação de seus parla- Facts Concerning Bacterial Warfare in Korea and
mentares. China (ISC).
Em 1949 publicou Problemas Brasileiros de Dado seu prestígio como parasitologista e a
Higiene Rural14, no qual explicitou suas inter- sua militância comunista, inclusive pela lideran-
pretações sobre as relações da estrutura agrária ça nos movimentos brasileiros pela paz, Samuel
e endemias rurais, bastante associadas à visão do Pessoa foi convidado diretamente por Joliot-Cu-
PCB sobre a reforma agrária. Em 1955, Samuel rie e pela Academia de Ciências da China, que
Pessoa se aposentou voluntariamente aos 57 custeou a viagem, para participar dessa comissão
anos. Tornou-se Professor Emérito de Parasito- em maio de 1952. A ISC foi coordenada pelo já
logia da USP. Se posicionava contrário ao cará- então consagrado sinólogo e bioquímico britâni-
ter vitalício da cátedra e à necessidade de abrir co Joseph Needham, o único que falava manda-
caminho para as novas gerações de pesquisado- rim. D. Jovina Pessoa viajou com a comissão na
res e desejava se dedicar à pesquisa e ao ensino qualidade de intérprete de seu esposo, uma vez
no nordeste brasileiro. Os anos de 1950 são de que a língua oficial da ISC seria o francês. Entre
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31 de junho e 23 agosto de 1952, a comissão vi- profissionais de saúde envolvidos com doenças
sitou a Coreia do Norte e a China, teve contato infecto-parasitárias. Publicaria, em 1963, Ende-
com autoridades coreanas e chinesas, inclusive mias Parasitárias da Zona Rural Brasileira voltado
com seus dirigentes máximos, entrevistou pes- para o treinamento desses profissionais19.
soas, inclusive dois pilotos norte-americanos, Há também um encantamento com a China
prisioneiros de guerra, que teriam confessado o Popular, que visitou pela segunda vez em 1958,
lançamento de material biológico sobre territó- tendo como consequência mais direta, artigos e
rio coreano e chinês6,15. A comissão produziu um palestras sobre medicina chinesa e acupuntura –
extenso relatório de 660 páginas, divulgado em que experimentara em sua viagem em 1952 – e
Beijing em agosto de 1952, no qual confirmaria sobre o combate às endemias rurais na China,
a “utilização criminosa de armas biológicas pelas em particular a esquistossomose. Passa a cola-
forças norte-americanas”, palavras de Pessoa16. borar com a revista Brasiliense que, sob direção
Foi enorme a repercussão e a polêmica que as de Caio Prado Jr., circulou entre 1955 e 1964
atividades da comissão e seu relatório geraram. mantendo uma linha editorial que guardava in-
Ainda hoje dúvidas persistem. Independente dependência em relação à direção do PCB. Nela
da veracidade ou não das alegações chinesas e escreveria artigos sobre seus temas mais caros: a
norte-coreanas, negadas pelos EUA e Grã-Breta- estrutura agrária, a pobreza e a fome e suas rela-
nha, importa ressaltar que Samuel Pessoa obteve ções com as endemias rurais. Outra marca desse
enorme visibilidade pública por sua participação período é o acirramento dos conflitos agrários e
nesse episódio, alçando-o a uma posição de des- a formação de sindicatos rurais e de movimentos
taque no movimento anti-imperialista no Brasil camponeses, tais como as Ligas Camponesas, em
e no exterior, em particular nos movimentos dos particular no nordeste brasileiro onde Pessoa tra-
partidários da paz e na campanha contra a uti- balhava intensamente. O tema da reforma agrária
lização de armas nucleares6,15. Não era mais um é alçado ao centro da disputa política e fez parte
professor e cientista, como vários outros, filiado do processo de conflito político e crise institucio-
ao clandestino PCB. Samuel Pessoa ao ousar se nal que levou à queda de João Goulart. O livro
envolver no centro da Guerra Fria tornou-se alvo mais político e conhecido de Samuel Pessoa En-
de duras críticas dos principais jornais da Capital saios Médico-Sociais, que reúne artigos escritos e
Federal e de São Paulo – “falou como político e discursos da década de 50, expressava no ano de
não como cientista”17. Foi detido para depoimen- 1960 a sua interpretação sobre as endemias rurais
tos em seu retorno e, ao mesmo tempo, recepcio- e o posicionamento em relação à agenda política
nado e tratado como herói nos jornais operários brasileira, em particular a questão agrária20.
e vinculados ao PCB18. Retornando a originalidade radical de Sa-
A morte de Stalin em 1953, o Relatório muel Pessoa, ela se expressou desde 1940 quando
Khrushchov revelando em 1956 os crimes do de seu discurso de paraninfo da turma de for-
stalinismo e um período de maior franquia de- mandos da Faculdade de Medicina. Nesse discur-
mocrática como o da presidência de Juscelino so aos futuros médicos, apesar de uma linguagem
Kubitschek (1956-1961), entre outros fatores, cuidadosa por conta da ditadura Vargas, aparece
gerou um reposicionamento do PCB e de seus uma clara responsabilização, não apenas do po-
militantes. Esse é um período de relaxamento da der público, mas dos proprietários rurais, e de
perseguição mais explícita ao PCB (que apoiou maneira menos clara, do capitalismo brasileiro,
JK) que reorientou em 1958 sua política abando- pelas condições de vida dos trabalhadores rurais,
nando a bandeira da insurreição e abraçando a em particular nas áreas de expansão agrícola.
proposta de reformas estruturais como um cami- Relata as dificuldades impostas por fazendeiros
nho para a revolução11. Essa nova política do PCB no estabelecimento de postos sanitários em suas
teve ecos. Samuel Pessoa colaborou com o De- propriedades, em particular dispensários para
partamento Nacional de Endemias Rurais (DNE- tratamento da leishmaniose tegumentar ameri-
Ru), criado no início do governo JK como parte cana, sob alegação de que a presença dos serviços
de seu projeto desenvolvimentista, e dirigido ini- e doentes desvalorizaria as terras. Para ele, seria
cialmente por Amilcar Vianna Martins, catedrá- o “fazendeiro, em geral o responsável, em larga
tico de parasitologia médica da UFMG e também extensão, pelo grau de maior ou menor adian-
filiado ao PCB. É notável o seu engajamento na tamento sanitário, do estado de higiene de suas
questão do desenvolvimento do Nordeste, em propriedades e da saúde de seus colonos”21. E isso
particular com o controle das endemias rurais e não se devia apenas ao egoísmo, mas também a
formação tanto de médicos como de diferentes uma mentalidade profundamente arraigada de
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defesa de seus produtos, preocupando-se mais reforma agrária e o socialismo eram os caminhos
com o gado e com as plantações do que com os desejáveis.
“operários agrícolas”. A crítica à mentalidade dos
capitalistas brasileiros incluía, também, a inape-
tência para a filantropia no campo da saúde, para Considerações Finais
doações para que se cuidasse dos corpos dos bra-
sileiros, certamente inspirada em seu íntimo co- A ditadura militar iniciada em abril de 1964,
nhecimento das ações da Fundação Rockefeller. apoiada pelos EUA, com um discurso fortemente
Em seu livro de 1949, no qual detalha os ar- anticomunista, perseguiria de início duramente
gumentos do polêmico discurso de 1940, ele re- líderes sindicais, políticos, intelectuais e cientistas
afirma os principais obstáculos para a melhoria que, de algum modo, tivessem posições progres-
das condições de vida no Brasil rural, o latifún- sistas e fizessem qualquer tipo de oposição, ou que
dio, a concentração da terra nas mãos de poucos, tivessem relações com o governo deposto. Era uma
as terríveis relações de trabalho, quase feudais, e nova etapa da Guerra Fria, no Brasil e na América
de contratos abusivos nas áreas rurais. Para ele, Latina. A repressão atingiu duramente as univer-
“... higienistas ou sociólogos que vêm estudando sidades brasileiras e a USP, em particular sua es-
nosso fenômeno rural, focalizam a necessidade cola de medicina, que teve um expressivo grupo
de uma reforma agrária, sem a qual não será pos- de professores e auxiliares acusados de subversão,
sível... melhorar as precárias condições de exis- presos, processados, demitidos ou aposentados
tência no campo, no que concerne à alimentação, compulsoriamente. Samuel Pessoa foi atingido
vestuário, habitação, saúde e educação”14. A mu- nesse primeiro expurgo e seus ex-alunos, assisten-
dança na estrutura agrária brasileira era uma das tes e colaboradores foram também vítimas desse
principais bandeiras dos comunistas, e dos inte- processo tanto pelo Ato Institucional nº1 como,
lectuais vinculados ao PCB, o que significava de- em 1969, pelo AI-5. Eram tempos de denúncias e
safiar as bases do poder baseado na propriedade perseguições que tomaram conta da Faculdade de
da terra em uma sociedade ainda predominante- Medicina da USP15. Exilou-se no Instituto Butan-
mente rural. A questão agrária ganhava saliência tã, mas não deixou de participar da luta contra a
e autores filiados ao PCB são citados na biblio- ditadura militar assinando manifestos, proferindo
grafia, inclusive Luís Carlos Prestes14. Mesmo em palestras e protegendo perseguidos políticos. Se-
seu compêndio de 1946, reeditado inúmeras ve- guiu sendo ao mesmo tempo homenageado como
zes e voltado para os estudantes de medicina, a cientista e perseguido como comunista.
sua geografia médica associada aos temas da pro- O seu falecimento em setembro de 1976 pro-
priedade da terra e das condições de trabalho no duziu imensa consternação entre ex-alunos, cole-
campo aparece nos capítulos inicial e final dei- gas e admiradores, médicos e militantes da saúde
xando claro que o conhecimento e a ação sobre pública, exatamente num momento em que for-
as inúmeras doenças parasitárias não poderiam ças democráticas da saúde começavam a se orga-
prescindir de seus determinantes estruturais. O nizar. É neste ano que surge o Centro Brasileiro
tema da alimentação e da subnutrição ingressa de Estudos de Saúde (Cebes) cujo primeiro nú-
em suas reflexões sob forte influên­cia dos traba- mero de sua revista Saúde em Debate (outubro/
lhos de Josué de Castro20. dezembro de 1976) foi dedicado a Samuel Pessoa.
Com a reforma agrária na agenda política A conservadora Faculdade de Medicina, na qual
nacional e a radicalização política no início dos construíra toda a sua carreira e da qual fora ex-
anos 60, os seus artigos, discursos, conferências pulso junto com vários colegas e ex-alunos, o ho-
e livros ganharam significados mais amplos em menageou sem muito entusiasmo em 31 de maio
suas demandas para solução da “questão agrá- de 1977. Foi a representação discente que fez dessa
ria” no Brasil como caminho para a superação homenagem ao professor recém-falecido um ato
dos problemas sociais e sanitários do país. Seria contra o regime militar com a proposta de uma
possível a resolução política da questão agrária moção pela anistia irrestrita e incondicional dos
no Brasil? Seria o desenvolvimento um caminho presos políticos, cassados e exilados, certamente
para melhoria das condições de vida das popula- não aceita pela Congregação da FMUSP22. Os
ções rurais? A estatização da medicina seria viá- obituários dos jornais, sob os olhos da censura,
vel na ordem capitalista? As respostas de Samuel ignoraram a sua longa militância política e comu-
Pessoa às perguntas de todos os que estavam nista que, naquele momento tinha sinal negativo.
imersos na luta política dos anos 60 comporta- O engajamento de Samuel Pessoa nas lutas
vam, pelo menos, algumas dúvidas ainda que a pela igualdade, pela saúde dos brasileiros e pe-
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las reformas e pela democracia – no ensino, na na Faculdade de Medicina da Bahia sintetizando
pesquisa, na ação – foi consagrado na saúde pú- sua compreensão sobre os determinantes estru-
blica. Foi a publicação pelo Cebes, em 1978, de turais da saúde e da doença: “...pode-se perceber
uma nova e revista edição de Ensaios Médicos-So- como na Geografia Médica do Nordeste a pato-
ciais23 que vinculou de modo indelével o nome logia se encaixa na conjuntura socioeconômica
de Samuel Pessoa com um campo em constru- da Região: os grandes latifúndios aí existentes
ção – a saúde coletiva – e um projeto ainda es- determinando a miséria, a ignorância, o subde-
tava a ser imaginado, o da reforma sanitária. Às senvolvimento e criando as bases propícias à ação
vésperas do golpe de 1964, no dia 9 de março de do clima e de outros fatores geográficos sobre a
1964, Samuel Pessoa terminou uma conferência patologia regional”24.

Referências

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