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DOI: 10.1590/1413-81232015218.

06892015 2595

Direito à saúde da população em situação de rua:

REVISÃO REVIEW
reflexões sobre a problemática

Homeless people’s right to health:


reflections on the problems and components

Irismar Karla Sarmento de Paiva 1


Cindy Damaris Gomes Lira 1
Jéssica Micaele Rebouças Justino 1
Moêmia Gomes de Oliveira Miranda 1
Ana Karinne de Moura Saraiva 1

Abstract In the present context of neoliberal- Resumo No atual cenário do neoliberalismo, per-
ism, it can be seen that employment and family cebe-se uma fragilização dos vínculos empregatí-
links are becoming more fragile, contributing to cios e familiares, o que contribui para o fenômeno
the phenomenon of social exclusion, and making da exclusão social e dá visibilidade à População
people who are homeless – the Homeless – more em Situação de Rua - PSR. A PSR desafia a uni-
visible. This population, situated on the margin versalidade, a equidade e a integralidade do Siste-
of the healthcare network, challenges the univer- ma Único de Saúde - SUS, encontra-se à margem
sality, equity and integrated quality of Brazil’s da rede de atenção à saúde e é alvo de políticas fo-
Unified Health System – the SUS, and has been calizadoras. Esse debate transformou-se em objeto
the subject of focalizing policies. The debate on deste estudo de revisão integrativa das publicações
this theme is the subject of this study, which is an nacionais dos bancos de dados Literatura Latino
integrative review of Brazilian publications in -Americana e do Caribe em Ciências da Saúde -
the literature databases of Lilacs (Latin America Lilacs e Base de Dados de Enfermagem - BDENF,
and the Caribbean Health Sciences Database) com objetivo de levantar o que existe na literatura
and the BDENF (Base de Dados de Enfermagem acerca da caracterização da PSR, suas necessida-
– Nursing Database), to provide a survey of the des e as políticas desenvolvidas para atendê-la.
literature on characterization of the Homeless as O estudo revelou que a discussão sobre a PSR é
a group, their needs and the policies that have tímida na produção do conhecimento, principal-
been developed to serve them. The study reveals mente, quanto à compreensão dos determinantes
that discussion on the homeless has been timid in sociais do seu processo saúde/doença. As políticas
production of knowledge, principally in relation sociais voltadas para essa população são, em sua
to comprehension of the social determinants of maioria, compensatórias e assistencialistas, de
the health-disease process of this group. The social modo que não possibilitam a materialização do
policies addressing this population are, mostly, direito à saúde. Diante disso, torna-se necessária
compensatory and existentialist, so that they do a construção de políticas sociais coerentes com as
not allow for materialization of the right to health necessidades sociais da PSR.
1
Faculdade de Enfermagem,
Universidade do Estado as a possible outcome. In this context, it becomes Palavras-chave Saúde, Políticas públicas, Popu-
do Rio Grande do Norte. necessary to build social policies that are coherent lação de rua
R. Des. Dionísio Figueira
with the social needs of the homeless.
383, Centro. 59600-000
Mossoró RN Brasil. Key words Health, Public policies, Homeless,
karla.paiva@yahoo.com.br Homeless population
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Paiva IKS et al.

Introdução que vivem nas ruas, identificar suas necessidades


sociais e a complexidade de seu processo saúde-
O desenvolvimento do capitalismo, a internacio- doença, assim como os motivos que os levaram
nalização da economia, a urbanização acelerada, às ruas é condição sine qua non para a construção
a hegemonia neoliberal, entre outros termos que de um modelo de atenção universal, equânime e
representam a nova ordem mundial, têm produ- integral6.
zido, entre outros efeitos, um aumento conside- A existência de pessoas em situação de rua
rável da exclusão social, o que suscita possíveis representa as contradições gritantes de uma so-
rupturas sociais capazes de comprometer o so- ciedade que tem a seguridade social como direito
nho de uma sociedade democrática e justa¹. constitucional e que assegura saúde como direito
Nesse contexto, há um número cada vez de todos e dever do Estado.
maior de pessoas excluídas dos direitos sociais Algumas ações recentes apresentam possibi-
básicos, como educação, saúde, trabalho, mora- lidades de transformação da realidade em que se
dia, lazer, segurança e outros, e até mesmo dos encontra a PSR. Destacam-se: o I e o II Encon-
direitos humanos, com alguns grupos relegados à tros Nacionais da População em Situação de Rua,
invisibilidade. É nessa categorização que encon- que representaram espaços de vocalização desse
tramos o povo de rua. grupo; a Política Nacional de Assistência Social
Apesar do crescimento visível da População - PNAS (2005), que incluiu a PSR no âmbito da
em Situação de Rua - PSR nas últimas décadas, proteção social especial; a Política Nacional para
ela constitui um fenômeno antigo. Sua história a População em Situação de Rua - PNPSR (2009),
remonta ao surgimento das sociedades pré-in- que representou a primeira iniciativa nacional de
dustriais da Europa no processo de criação das reconhecimento dos direitos desse grupo, histo-
condições necessárias à produção capitalista. Os ricamente, excluído, e as perspectivas anunciadas
camponeses foram desapropriados e expulsos de pelo Consultório na Rua2,3,7.
suas terras, e nem todos foram absorvidos pela No entanto se trata de iniciativas recentes,
indústria nascente. Isso fez com que a maioria que ainda demandam mais investigações, bem
destes vivenciasse a amarga experiência de pe- como muitas, ainda, não foram efetivadas em
rambular pelas ruas2. algumas realidades locais. No campo da prá-
A prática que forja o fenômeno população de xis, a PSR ainda vivencia inúmeras situações de
rua foi tratada historicamente por mendicância, privação, violência, miséria, inutilidade social e
vadiagem ou indigência. Em nossa contempora- constitui, portanto, um desafio para as políticas
neidade, de tempos em tempos, eclodem ações de públicas sociais, de modo particular, as de saúde.
violência contra a PSR em uma espécie de limpe- Através do contato com as bases literárias,
za das cidades, que expulsam essa população para percebeu-se que há uma escassez de pesquisas
espaços invisíveis. O Estado, nesse contexto, tem- e estudos nessa área, diante do que se viu a ne-
se utilizado de forças opressoras para punir as cessidade de identificar o quantitativo de artigos
pessoas que não se enquadram na lógica do capi- publicados e se os estudos elaborados abordam a
tal – mercado e consumo: nas ações de fiscaliza- população em situação de rua e/ou realizam arti-
ção, nas áreas públicas, leva os poucos pertences culação da temática com discussões acerca de po-
desse público, seus filhos, documentos, desmonta líticas públicas e do seu processo saúde-doença.
seus barracos precários, dificultando a existência Na perspectiva de refletir sobre essas ques-
da PSR e intensificando ainda mais a situação tões, o presente estudo se propôs a fazer uma
de vulnerabilidade. Transcende-se assim, de um revisão integrativa nas bases de dados BDENF e
“Estado Social” para um “Estado Penal”2-5. Lilacs, com o objetivo de levantar o que existia na
A mudança do regime político ocorrida no literatura no que diz respeito à caracterização da
Brasil, na década de 1980, seguida por recessões população de rua, suas necessidades, bem como
econômicas, aumento do desemprego e intensi- às políticas desenvolvidas para o atendimento
ficação do processo de globalização, contribuiu destas.
para que a miséria rompesse os limites espaciais,
transbordando vilas, favelas e cortiços para as
ruas e praças das cidades4. Metodologia
Hoje a população de rua é uma problemáti-
ca social, requer do Estado intervenções que le- A revisão integrativa é a mais ampla abordagem
vem em conta como ela se constitui e as formas metodológica referente às revisões: permite a
de sobrevivência ali desenvolvidas. Conhecer os inclusão de estudos experimentais e não expe-
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rimentais para uma compreensão completa do esse achado não permitir fazer afirmações mais
fenômeno analisado; favorece a inclusão de li- amiúde, até porque isso fugiria ao objetivo deste
teratura teórica e empírica, assim como estudos estudo.
com diferentes abordagens metodológicas (qua- A análise criteriosa de dados deu-se a partir
litativas e quantitativas)8. de um instrumento construído e validado por
Este estudo consiste em uma revisão integra- Ursi e Galvão9, adaptado para as peculiaridades
tiva que traz à discussão políticas públicas e a Po- desta temática. O instrumento apresenta diversas
pulação em Situação de Rua – PSR. Conforme o informações, porém não se fez uso de todos os
método utilizado, a pesquisa divide-se em etapas: recursos. Consideraram-se: identificação do ar-
(1) estabelecimento da temática e dos objetivos tigo por título/autores/anos de publicação, base
da revisão, (2) seleção dos artigos, (3) definição de dados/periódico, população estudada/abran-
de critérios de inclusão e exclusão, (4) determina- gência do estudo, resultados e considerações. Os
ção das informações que serão extraídas dos arti- dados foram apresentados em quadro sinóptico,
gos escolhidos, (5) interpretação dos artigos es- e a síntese dos artigos resultou em três categorias
colhidos e, por fim, (6) apresentação da revisão8. analíticas: Vivendo na rua - “eu não tenho nome,
Para o levantamento dos artigos na literatu- eu não tenho identidade, eu não tenho nem cer-
ra, realizou-se uma busca nas seguintes bases de teza se eu sou gente de verdade10”; Rua e neces-
dados: Literatura Latino-Americana e do Caribe sidades sociais - “A gente não quer só comida, a
em Ciências da Saúde - Lilacs e Bases de Dados gente quer comida diversão e arte11”; e Política da
de Enfermagem - BDENF. Foram utilizadas para inclusão ou falta de inclusão nas políticas - “Eu
a busca dos artigos as seguintes palavras-chave e sou feio, eu sou sujo, eu sou antissocial, eu não
suas combinações: Saúde “and” População em Si- posso aparecer na foto do cartão postal10”.
tuação de Rua; Políticas Públicas “and” População A escolha de trilhas sonoras para compor
de Rua. “Saúde” e “Políticas Públicas” constituí- essas categorias foi intencional, assim como Es-
ram descritores estabelecidos a partir de consulta corel12, considerou-se a música popular brasileira
aos Descritores em Ciências da Saúde – DeCS. uma companheira sensível quando se pensa nos
Foram considerados para a seleção dos ar- problemas desta sociedade.
tigos os seguintes critérios de inclusão: artigos
publicados em português, em periódicos indexa-
dos nas bases de dados Lilacs e BDENF, e artigos Resultados
na íntegra que retratassem a temática referente à
revisão. E foram adotados como critérios de ex- Vivendo na rua: “Eu não tenho nome,
clusão: artigos repetidos nas bases de dados, sem eu não tenho identidade, eu não tenho nem
texto completo disponível e que expressassem certeza se sou gente de verdade”
apenas uma abordagem biológica da problemá-
tica da População em Situação Rua; teses, disser- A população em situação de rua não participa
tações, monografias e manuais. das pesquisas do Instituto Brasileiro de Geografia
A partir do levantamento bibliográfico realiza- e Estatística (IBGE), uma vez que a coleta de da-
do nas bases de dados, utilizando as palavras-chave dos para os censos é fundamentalmente de base
mencionadas anteriormente, foram identificados domiciliar, e essa população, em sua maioria, não
79 artigos. Após aplicação dos critérios de exclu- possui casa13,14. Mesmo assim, são milhares de
são, como a retirada dos artigos repetidos, resta- pessoas e famílias que vivem na e da rua, entre-
ram 15 para análise e síntese minuciosa, objetivan- tanto, quando organizadas, preferem a denomi-
do a apresentação dos resultados e discussões. nação de “pessoas em situação de rua”, visando
É válido ressaltar que, apesar de o ano de pu- caracterizar o princípio da transitoriedade desse
blicação não ter sido considerado critério para processo de absoluta exclusão social, mesmo que,
seleção da amostra, tendo em vista o número no fundo, muitos saibam que sair da rua não é
reduzido de publicações sobre essa temática, tão simples13,15,16.
optou-se por os apresentar no Quadro 1, por or- Um estudo de abrangência nacional, realiza-
dem decrescente de ano de publicação, ou seja, do pelo Ministério do Desenvolvimento e Com-
de 2014 a 1998. Essas datas sinalizam uma maior bate à Fome - MDS, em 2007/2008, identificou
evidência dessas publicações a partir dos anos 31.922 adultos com 18 anos completos ou mais,
2000, o que configura um resultado importante no universo de 71 municípios brasileiros com
quando se pensa a elaboração de políticas para população superior a 300 mil habitantes, vivendo
um grupo, historicamente, silenciado, apesar de em situação de rua14.
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Paiva IKS et al.

Quadro 1. Distribuição dos artigos por título, autor/ano de publicação, periódico/base de dados, população
estudada/abrangência do estudo e resultados/considerações.

Título/autor (es)/ Periódico/ População estudada/ Resultados/ considerações


ano de publicação base de dados local do estudo

Vida na rua e cooperativismo: Revista Homens em situação Trata-se de uma estratégia


transitando pela produção de Latino- de rua albergados. proposta para um grupo
valores. Ghirardi MIG, Samira Americana de Pesquisa realizada no específico, com a intenção
RL, Barros DD, Galvani D17. Enfermagem Centro de Referência de reinseri-lo no mercado de
2014 BDENF para a PSR - São Paulo. trabalho por meio do ramo
cooperativista.

Acesso e intersetorialidade: o Physis Revista Pessoas em situação de Aborda a problemática da saúde


acompanhamento de pessoas em de Saúde rua, com transtorno mental da PSR e do acesso aos
situação de rua com transtorno Coletiva mental grave. serviços de saúde. Vê-se que o
mental grave. Borysow IC, Lilacs Levantamento nas trabalho intersetorial precisa ser
Furtado JP18. 2013 bases de dados SCIELO melhor desenvolvido.
e CAPES.

Significados e práticas de saúde Caderno de 13 pessoas em situação Descreve como as PSR percebem
e doença entre a população em Saúde Pública de rua. Estudo seu processo saúde-doença, na
situação de rua em Salvador, Lilacs realizado em Salvador, perspectiva de subsidiar políticas
Bahia, Brasil. Aguiar MM, Iriart Bahia. públicas que ultrapassem o
JAB15. 2012 higienicismo e o assistencialismo.

Vulnerabilidade e vulneração: Revista de Moradores de áreas Descreve os fatores de


população de rua, uma questão Bioética de ocupação de terras vulnerabilidade relacionados
ética. Sotero M5. 2011 Lilacs públicas, na Asa Norte à precariedade da existência
e zona central do Plano da PSR, incitando medidas
Piloto – em Brasília- protetoras das instituições
DF. públicas.

Promoção de saúde e Psicologia & Profissionais de Relata uma experiência com


adolescência: um exemplo de Sociedade saúde e educadores a promoção da saúde dos
intervenção com adolescentes Lilacs de instituições para adolescentes em situação de
em situação de rua. Morais NA, crianças e adolescentes vulnerabilidade social.
Morais CA, Reis S e Koller19. em situação de rua, em Aponta a necessidade de
2010 Porto Alegre-RS. mudanças na lógica assistencial.

A estratégia saúde da família Saúde População em situação Discute a experiência na


para a equidade de acesso Sociedade de rua atendida pela implantação da ESF para atenção
dirigida à população em situação Lilacs Estratégia Saúde da à saúde da População em
de rua em grandes centros Família - ESF. Situação de Rua, apresentando
urbanos. Carneiro Junior N, Estudo realizado na determinada política pública com
Jesus CH, Crevelim MA20. cidade de São Paulo. ênfase na equidade.
2010

Processo Saúde-doença da Revista Espaço Indivíduos albergados Fala sobre um programa


população em situação de rua da para a Saúde em instituições. municipal específico – Sinal
cidade de Londrina: aspectos do Lilacs Trabalho realizado na Verde, que fornece acesso
viver e adoecer. Aristides JL, cidade de Londrina-PR facilitado à saúde para a PSR.
Lima JVC18. 2009 Sinaliza a necessidade de os
serviços flexibilizarem regras e
praticarem a equidade.
continua
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Quadro 1. continuação

Título/autor (es)/ Periódico/ População estudada/ Resultados/ considerações


ano de publicação base de dados local do estudo

Crianças e adolescentes em Ciência & Revisão do tema Trata-se de uma investigação


situação de rua: contribuições Saúde Coletiva crianças e adolescentes de um grupo específico da
para a compreensão dos Lilacs em situação de rua, com PSR a partir do conceito de
processos de vulnerabilidade e base na lente teórica vulnerabilidade, com base no
desfiliação social. Gontijo D, de Castel. Estudo de modelo de coesão social e dos
Medeiros M22. 2009 abrangência nacional. determinantes do processo saúde-
doença.

Atendimento à população de Rev Esc População geral em Apresenta um programa


rua em um Centro de Saúde Enferm situação de rua. Pesquisa assistencial - “A gente na rua”,
Escola na cidade de São Paulo. Lilacs/ BDENF realizada no Centro de incluindo a discussão de aspectos
Canônico RP, Tanaka ACDA, Saúde Escola Geraldo relacionados à saúde da PSR,
Mazza MMPR, Souza, MF, Honório de Paula Souza, compreendendo as diretrizes
Bernat MC, Junqueira LX23. da Universidade de São norteadoras desse programa.
2007 Paulo.

Rede social e promoção Escola de PSR e trabalhadores dos Analisa as políticas e experiências
da saúde dos “descartáveis Enfermagem equipamentos sociais da PSR. Faz crítica às práticas
urbanos”. de Ribeirão que assistem a PSR no isoladas, assistencialistas, que
Souza ES, Silva SRV, Caricari Preto município de São Paulo. sustentam e cronificam a situação
AM24. 2007 Lilacs de rua.

Organização de práticas Saúde População geral em Trata-se de experiências


de saúde equânimes em Sociedade situação de rua. Pesquisa de organização de serviços
atenção primária em região Lilacs realizada no Centro assistenciais de saúde em atenção
metropolitana no contexto de Saúde-Escola Barra primária, observando a prática
dos processos de inclusão Funda, na cidade de São dos princípios norteadores do
e exclusão social. Carneiro Paulo. SUS, destacando a participação
Junior N, Andrade MC, Luppi social.
CG, Silveira C25. 2006

O cuidado em situação de Revista População em Traz em discussão aspectos


rua: revendo o significado do Brasileira de situação de rua e relacionados à saúde e assistência
processo saúde-doença. Enfermagem trabalhadores de um da PSR, investigando experiências
Rosa AS, Secco MG, Brêtas BDENF centro comunitário de e concepções sobre o processo
ACP16. 2006 atendimento à PSR em saúde-doença-cuidado.
São Paulo.

O processo saúde-doença- Revista População em Situação Discute os aspectos relacionados


cuidado e a população em Latino- de Rua em geral da à saúde da PSR, trazendo
situação de rua. Rosa AS, Americana de metrópole de São Paulo. apontamentos técnicos,
Cavicchioli MGS, Brêtas ACP13. Enfermagem científicos e políticos acerca da
2005 BDENF assistência da Enfermagem à PSR.

Descartáveis urbanos: População composta, Avalia as condições assistenciais


discutindo a complexidade da Saúde e principalmente, por em saúde e intervenções
população de rua e o desafio Sociedade adultos em situação de sociais, trazendo a discussão
para política. Varanda W, Lilacs rua. Sem identificação de implementação de políticas
Adorno RCF25. 2004 de local geográfico. públicas da saúde para a PSR.

Serviços de saúde e população Saúde e Representantes da PSR Traz a discussão dos aspectos
de rua: contribuição para um Sociedade e representantes dos relacionados à saúde da PSR e de
debate. Carneiro Junior N, Lilacs/ BDENF principais serviços sua condição de vida. Evidencia
Nogueira EA, Lanferini GM, de saúde localizados relações com os programas e
Ali DA, Martinelli M26. 1998 na região central do serviços de saúde na perspectiva
município de São Paulo. dos diferentes atores sociais.
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Paiva IKS et al.

Embora seja expressivo o número de pesso- com pai/mãe/irmãos (29,1%). Dos entrevistados
as apontado pelo estudo, estipula-se que mais de no censo, a maioria citou pelo menos um desses
50.000 estejam em situação de rua, uma vez que três motivos, que podem estar relacionados en-
alguns municípios, como São Paulo, Recife e Belo tre si ou um ser consequência do outro14. Desse
Horizonte, não participaram dessa pesquisa por modo, a ida para as ruas está ligada a diversos
terem feito levantamentos recentes acerca de suas determinantes, entretanto não se pode perder de
PSR. De acordo como o MDS, essa população é vista o processo social que empurra milhares de
predominantemente masculina (82%), e mais da pessoas para essa condição7.
metade (53%) das pessoas adultas em situação de Ghirardi et al.17 apresentam como determi-
rua entrevistadas possui entre 25 e 44 anos14. nantes do processo de viver nas ruas: competição
A PSR é composta, em grande parte, por acirrada do mercado de trabalho, fragilização dos
trabalhadores: 70,9% exercem alguma ativida- vínculos trabalhistas pela não qualificação pro-
de remunerada. Dessas atividades, destacam-se: fissional, inserção em atividades produtivas com
catação de materiais recicláveis (27,5%), “flane- grande potencial de substituição e com rendas li-
linha” (14,1%), construção civil (6,3%), limpeza mítrofes para a subsistência, estigmatização pelas
(4,2%) e carregamento/estivação (3,1%). Apenas posições de trabalho que ocupam e desemprego.
15,7% das pessoas pedem dinheiro como princi- Apesar de, em meados dos anos 2000, vários
pal meio para a sobrevivência14. Esses dados são países da América Latina, incluindo o Brasil, te-
importantes para desmistificar a concepção de rem experimentado redução nas taxas de desem-
que a população em situação de rua é composta, prego, é importante atentar para o fato de que
exclusivamente, por “mendigos” e “pedintes”. as mudanças ocorridas e em curso no mundo
Para Rosa et al.13, a definição de população de do trabalho, no final do século XX e início do
rua é difícil, tendo em vista que a multiplicidade século XXI, têm como uma das principais con-
de condições pessoais, a diversidade de soluções sequências a formação de um exército industrial
dadas à subsistência e à moradia são fatores que de reserva, que é a população sobrante frente às
dificultam a formulação de conceitos livres de necessidades do capital28.
ambiguidades. A ida para as ruas provoca uma ruptura com
É possível identificar situações diferentes em as formas sociais, geralmente, aceitas de sobrevi-
relação à permanência na rua: ficar na rua - cir- vência segundo o princípio legitimador do mer-
cunstancialmente; estar na rua - recentemente; cado, no qual o trabalho é provedor da moradia,
ser da rua - permanentemente. O tempo vivido alimentação e demais necessidades. Viver na rua
como moradores de rua é um elemento agra- é romper com o mercado e seu estilo de vida, o
vante nesse processo: quanto maiores os lapsos que não significa a eliminação total do trabalho
de tempo que permanecem, circunstancial ou re- ou o impedimento à subsistência, mas o desen-
centemente nas ruas, maiores as probabilidades volvimento de novos códigos, de formas específi-
de se tornarem permanentes como seres da rua13. cas de garantia da sobrevivência15.
A população em situação de rua tem presen- Diante da complexidade de vida e trabalho
ça marcante em regiões centrais das metrópoles, da PSR, não se pode pensar em caracterizá-la
pois essas áreas parecem oferecer mais possibili- com um padrão estereotipado, que, por vezes,
dades de viabilizar seu “modo de andar a vida”: anula e massifica suas múltiplas identidades.
grande concentração de serviços, baixa concen- São homens, mulheres, crianças, idosos, jovens,
tração de residências e alta circulação de pesso- que, diariamente, lutam pela sobrevivência. No
as, fatores que contribuem para sua localização entanto o contexto no qual essa população vive
territorial20. tende a mantê-la em uma posição de invisibilida-
Para Escorel12, a PSR, apesar de ser homoge- de, destituída da condição de cidadã: “[...] eu não
neizada pelas carências em comum e pelos olha- tenho nome, eu não tenho identidade”10,15.
res da exclusão e do desamparo, diferencia-se pe- Quando não são ignoradas, as pessoas de
los motivos que levaram as pessoas desse grupo rua são tratadas como objetos da tutela estatal,
para a rua, pelo tempo de permanência nela, pelo da filantropia privada ou da caridade das igrejas.
grau de vínculos familiares existentes e pelas es- Estas, com a filosofia de “fazer o bem sem olhar a
tratégias de sobrevivência adotadas. quem”, acabam por reforçar ainda mais a invisi-
Entre os principais motivos pelos quais essas bilidade dessa população12.
pessoas passaram a viver e morar na rua, estão Retirar o manto da invisibilidade da PSR e
problemas relacionados ao alcoolismo e/ou dro- romper com a imagem clássica do vagabundo e
gas (35,5%), desemprego (29,8%) e desavenças do mendigo podem ser caminhos possíveis no
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sentido de resgatar a cidadania do povo de rua. tologia adquirida. Portanto esquece, mascara, ou
No campo do desafio, está a necessidade de se desconsidera a relação de determinação estabele-
aproximar ao máximo do cotidiano vivido por cida entre o processo saúde-doença e o modo de
essas pessoas, para entender a complexidade de trabalhar e viver dessa população.
seu processo saúde-doença, identificando suas Os significados de saúde e doença para as pes-
reais necessidades. soas em situação de rua são diversificados: não há
conceitos maiores ou menores, e, sim, conceitos
Rua e necessidades sociais: “A gente que fazem sentido para o que os indivíduos estão
não quer só comida, a gente quer comida vivenciando. Alguns fazem associação de saú-
diversão e arte” de com ausência de doença. Outros remetem a
saúde ao bem-estar, à felicidade, à prevenção da
Conforme visto, as pessoas que vivem em dependência química ou a um lugar de abrigo21.
situação de rua são heterogêneas, possuem ca- As concepções de saúde para a PSR estão as-
racterísticas que lhes são próprias, como valores, sociadas à capacidade de estar vivo e de resistir ao
significados, atributos, estrutura pessoal, estraté- cotidiano de dificuldades nas ruas, já a doença foi
gias de sobrevivência e condições de vida. Essas associada ao estado de debilidade a ponto de não
características diferentes vão demandar uma di- poder trabalhar, à impossibilidade de batalhar e
versidade de necessidades. Desse modo, contem- ganhar dinheiro, ao impedimento de realizar tare-
plar todos os aspectos de suas necessidades indi- fas simples ou, no caso extremo, ao organismo não
viduais e coletivas requer a adoção de um concei- suportar o sofrimento, enfraquecer e sucumbir15,26.
to de saúde mais amplo, capaz de ultrapassar a Para essa população, o corpo é seu único bem
dimensão biológica e possibilitar a construção de e instrumento indispensável para a garantia da
estratégias de saúde que visem intervir nos pro- sobrevivência. A atenção que os indivíduos dão
blemas e nos determinantes relativos ao processo ao próprio corpo cresce à medida que se eleva a
saúde-doença. hierarquia social. Contrariamente, à medida que
No entanto o que se tem observado na re- se desce na hierarquia social, há uma utilização
alidade dos serviços de saúde é que o modelo máxima do corpo como instrumento de sub-
multicausal tem inspirado o planejamento das sistência, através da capacidade de resistência e
ações de promoção da saúde nos variados níveis trabalho. Problemas de saúde que não afetem a
de atenção. Há, também, um reforço do modelo capacidade de trabalhar ou de se locomover para
biomédico, medicalizador da sociedade. Essa for- buscar alimentos são relativizados diante da ne-
ma de pensar e produzir serviços de saúde não cessidade de garantir a sobrevivência15.
tem conseguido resolver os problemas relativos O processo saúde-doença se constitui ferra-
ao processo saúde-doença da maioria da popula- menta indispensável para a definição das ações
ção brasileira, em especial, da PSR. do setor saúde da PSR. Contudo esta vem sendo
Percebe-se que poucos estudos abordam a atendida apenas em situações emergenciais, mui-
questão da saúde das pessoas em situação de rua, tas vezes, por profissionais sem o devido preparo
sobretudo na perspectiva de compreender como técnico para compreender suas necessidades de
os indivíduos concebem o processo saúde-doen- saúde16,21.
ça e enfrentam os problemas de saúde. Abordar Rotulados como indivíduos “sobrantes”, des-
os significados de saúde para as pessoas em si- necessários, sem identificação e utilidade social,
tuação de rua é, também, possibilitar um espaço perigosos, drogados, sujos, carentes de direitos,
de vocalização para essas suas questões, já que, de vínculos afetivos, de educação, acabam sendo
no contexto no qual vivem, esses atores tendem reduzidos às suas doenças13,29.
a permanecer em uma posição de invisibilidade, Habitantes das ruas e habitados por elas, as
destituídos da condição de cidadãos15. pessoas em situação de rua necessitam de priva-
Grande parte da produção científica associa o cidade, dignidade e de reconhecimento enquanto
processo saúde-doença das pessoas em situação cidadãs. A atenção à saúde dessa população passa
de rua a dermatites, a helmatoses e aos sofrimen- necessariamente pela compreensão da cultura de
tos psíquicos, ou seja, limita a compreensão do rua, na qual é preciso considerar alguns fatores:
processo saúde-doença às questões biológicas/ quem são essas pessoas?; como conseguem so-
patológicas e, em alguns casos, associa-o a um breviver?; qual o sentido que atribuem à sua exis-
fator social, em geral, relativo ao estilo de vida, tência?13,29.
cuja consequência é a culpabilização das pessoas Conforme discutido na categoria analítica
pela condição na qual se encontram ou pela pa- anterior, a maioria são homens, adultos jovens,
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Paiva IKS et al.

que sobrevivem através de atividades produtivas Apesar de a Constituição Federal assegurar


desenvolvidas na rua, entre outras estratégias. saúde como direito de todos e dever do Estado,
Quanto ao sentido que atribuem à sua existên- garantida mediante políticas econômicas e so-
cia, este parece ir além das necessidades imediatas ciais, em termos práticos, não se vê a extensão
manifestas pelas carências. A pesquisa nacional desses direitos à PSR: esta vive à margem dos
para a PSR14 clarificou essa questão quando inda- processos de inclusão e sofre graus acentuados
gou a esse público sobre seu maior desejo. Entre de vulnerabilidade e marginalidade no acesso aos
as respostas, destacaram-se: moradia (30,6%), bens e serviços21,30.
trabalho (24,1%), reconstrução de laços familia- Embora o acesso seja, muitas vezes, difícil
res (14,9%), sair da rua (10,0%) e outros (20,4%). para qualquer cidadão, no caso da população em
Portanto a população em pauta não quer “só situação de rua, há agravantes. Para se conseguir
comida”: ela evidencia que políticas focalizado- atendimento, é preciso chegar muito cedo ao
ras da proteção social não dão conta de satisfazer posto e esperar várias horas, e o indivíduo, com
suas necessidades; contribuem, na maioria das frequência, precisa sair para conseguir o almoço.
vezes, para agravar a situação de rua, despersona- E, quando não se sabe o que vai comer ou onde
lizando ainda mais as pessoas nessa circunstân- dormir, outras necessidades parecem ficar em se-
cia, de maneira que, para se ter acesso ao que é gundo plano, mas “[...] a gente não quer só co-
de direito, é preciso comprovar uma situação de mida”11. É comum, ainda, que o morador de rua
indigência ou uma vocação religiosa. esteja com roupas sujas e/ou não tenha tomado
Com isso, não se quer dizer que prover con- banho, o que faz com que ele seja mal recebido
dições de alimentação ou higiene, por exemplo, na sala de espera do serviço de saúde21.
não sejam importantes, mas que elas, por si só, Aspectos relacionados às concepções do ado-
não são suficientes para resgatar a PSR enquanto ecimento e do processo do cuidado desses indi-
cidadã23, além de se incorrer no risco de se ficar víduos, também, contribuem para sua não ade-
preso à imediaticidade dos fatos que envolvem são aos serviços. Outras questões referem-se à
essa população, negando sua essência encoberta própria organização do serviço, que exerce papel
pelas expressões das desigualdades existentes na fundamental no acesso, entre as quais se citam:
sociedade capitalista7. exigência de documentação, restrição no atendi-
mento da demanda espontânea, limites na atua-
Política da inclusão ou falta de inclusão ção intersetorial, preconceitos, entre outras que
nas políticas: “Eu sou feio, eu sou sujo, criam vínculos precários20.
eu sou antissocial, eu não posso aparecer Todas essas questões desencorajam futuras
na foto do cartão postal” procuras e inserções da PSR nos serviços de saú-
de, o que a faz buscar, assim como a população de
A População em Situação de Rua, esse perso- um modo geral, preferencialmente, atendimento
nagem anônimo que se avoluma pelas ruas das emergencial quando não consegue resistir aos
cidades, excluída das estruturas convencionais da sintomas, ou seja, quando o corpo está impedido
atual sociedade, como emprego, moradia e priva- de lutar pela sobrevivência, “[...] reforçando-se
cidade, constitui um desafio para as políticas de assim, a concepção de saúde enquanto ausência
saúde e demais políticas públicas16. de doença” (grifo nosso)13,18.
Trata-se de um grupo que sofre uma sobre- A população de rua não necessita de um novo
posição de situações de exclusões e de desvincu- sistema de saúde, pois a equidade, a integralidade
lações nas dimensões: sociofamiliar, do trabalho, e a universalidade do atendimento estão garan-
das representações culturais, da cidadania e da tidas na Constituição Brasileira de 1988, com a
vida humana. Acumula estereótipos de uma tipi- criação do SUS6. Contudo é necessária a recons-
ficação, socialmente, construída; são indivíduos trução do sistema de saúde, hegemonicamente,
considerados supérfluos e desnecessários à vida centrado no modelo biomédico, distante, por-
social, que convivem ao lado do lixo humano e tanto, das reais necessidades sociais da População
são descartados de maneira semelhante aos re- em Situação de Rua.
síduos sólidos, como bem afirmam Varanda e Essa perspectiva leva a pensar a organização
Adorno em “Descartáveis Urbanos”25. dos processos de trabalho, com a concepção de
É o que Escorel12 caracterizou como “[...] pro- novas abordagens junto à PSR, capazes de intro-
cesso dinâmico no qual os indivíduos transitam duzir, em suas formulações, a equidade no acesso
da integração à vulnerabilidade ou deslizam da aos serviços de saúde21, dando visibilidade a esse
vulnerabilidade para a inexistência social”. grupo social, incorporando às práticas sanitárias
2603

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suas demandas, articulando-as no conjunto de da não foi implementada na maioria dos estados
outras práticas sociais25. brasileiros29.
Uma experiência inovadora na perspectiva Ainda no campo das conquistas, a Portaria
da equidade foi descrita por Carneiro Júnior et 122/123, de janeiro de 2012, definiu as diretrizes
al.20, por meio da Estratégia Saúde da Família das equipes de Consultório de Rua - eCR, que
para PSR, em que: “visita domiciliária” passa a integram o componente Atenção Básica da Rede
ser “visita de rua”; domicílio, “o lugar em que se de Atenção Psicossocial e buscam atuar frente aos
costuma ficar na rua”; e família, aquela “consti- diferentes problemas e necessidades de saúde da
tuída por indivíduos declarados no momento do população em situação de rua, inclusive, na busca
cadastro” (cadastro que contemple particularida- ativa e no cuidado aos usuários de álcool, crack e
des, como existência de animal de estimação, lo- outras drogas32.
cais para refeições e higiene, entre outros aspec- No entanto trata-se de iniciativas recentes
tos). Tais adequações foram necessárias devido que demandam mais investigações. O desenho
às singularidades do “modo de andar a vida” dos tradicional das políticas de proteção social, ain-
indivíduos em situação de rua. da, é marcado pela descontinuidade dos projetos
Para Reis7, resgatando Escorel, não é simples e programas, pelas ações pontuais de distribui-
o desenho de políticas de saúde voltadas para ga- ção de alimentação, roupas, banhos e pela cultu-
rantir o direito à saúde dos diversos subgrupos ra predominante do recolhimento em albergues,
que moram nas ruas. Experiências nacionais e in- “outrora em prisões” (grifo nosso), com uma es-
ternacionais parecem indicar que, nesse caso, os treita porta de entrada nas instituições, mas sem
serviços devem ir aonde estão seus usuários, ao a utópica porta de saída que pudesse garantir
invés de aguardar que estes venham a demandar uma reinserção social3,25.
ações e cuidados de saúde. No entanto isso, tam- No campo das políticas de saúde, persistem
pouco, é suficiente; tornam-se necessárias, então, os problemas de acesso, estigma, preconceito,
políticas que articulem saúde e proteção social, despreparo profissional, desarticulação entre os
emprego, moradia, e educação, etc. setores, cuidado uniprofissional, uma atenção à
É bem verdade que o atendimento à PSR tem saúde, ainda, voltada para ações assistencialistas
passado por ressignificações positivas: a constru- e medicalizantes24,25.
ção de proposta para o cuidado desse público foi Pensa-se que o desafio está na (re)definição
resultado do acúmulo dos últimos anos de de- de políticas públicas, de Estado, coerentes com
bate, associados à produção de conhecimento, à as reais necessidades da PSR. No que se refere à
caracterização dessa população, às experiências política de saúde, objeto deste debate, significa
exitosas junto a esse grupo, a iniciativas religiosas (re)defini-la, reconhecendo a existência da PSR,
(como a pastoral do povo na rua, em 1970/1980) cujas demandas são específicas porque são dife-
e, principalmente, devido ao valoroso papel dos renciados e diversificados seus “modos de andar a
movimentos organizados de pessoas em situação vida”. Portanto uma política construída com base
de rua, cujas reivindicações e lutas permanentes na intersetorialidade, de respeito aos princípios e
resultaram em conquistas, entre elas, a publica- diretrizes do SUS, preconizado pelo Movimento
ção da PNPSR31. de Reforma Sanitária, na busca permanente pela
Uma maior mobilização da População em Si- (re)construção da cidadania.
tuação de Rua ocorreu em 2005, ocasião em que
foi realizado o I Encontro Nacional de População
em Situação de Rua, que objetivou conhecer os Considerações finais
desafios e estabelecer estratégias para construção
de políticas públicas. Resultou na aprovação da O estudo possibilitou visualizar que o debate ar-
Lei 11.258, que dispõe sobre a criação de progra- ticulado entre população em situação de rua e
mas específicos de assistência social para as pes- políticas sociais, em particular, políticas de saú-
soas que vivem na rua29. de, ainda é tímido na produção de conhecimento,
Em dezembro de 2009, como conquista ex- principalmente, em uma abordagem que ultra-
pressiva do II Encontro Nacional de População passe o factual e contemple os determinantes so-
em Situação de Rua, foi publicado o texto da ciais do processo saúde-doença dessa população.
PNPSR, pautado na perspectiva de assegurar a Os estudos apresentados descreveram expe-
integralidade das políticas públicas e do acesso riências pontuais de sucesso de ações voltadas à
aos direitos de cidadania às pessoas em situação PSR, porém restritas a quadros epidemiológicos
de rua32. Contudo, se destaca que tal política ain- de algumas unidades de saúde, a centro de refe-
2604
Paiva IKS et al.

rência em álcool e drogas e a grupos específicos geralmente, não promovem uma política de
que moram na rua. Destaca-se, contudo, que atendimento que responda às necessidades e
algumas dessas experiências foram bases para a demandas da população em situação de rua. Al-
construção de políticas públicas de saúde volta- guns autores consideram que os profissionais que
das para essa população. atuam nos serviços públicos de saúde, frequente-
É bem verdade que um grande passo foi dado mente, não estão capacitados para o atendimento
no sentido de incentivo às políticas públicas para dessa população, já que desconhecem suas par-
a população em situação de rua, principalmente ticularidades, homogeneizando-as sob estigmas
no campo constitucional, todavia, ainda, é neces- e rótulos. Persistem, ainda, problemas de acesso,
sário aproximar as políticas públicas das neces- ações de caráter paliativo e higienista, medicali-
sidades da PSR, bem como considerar os princí- zadoras, pautadas em um modelo unicausal e, no
pios da universalidade, integralidade e equidade, máximo, multicausal da doença.
preconizados pelo SUS na sua definição. Compreender a PSR, suas peculiaridades, sua
No âmbito das políticas de assistência social, o vida, seus problemas de saúde não resolve o pro-
estudo revelou a desarticulação entre os setores, a blema da desigualdade e exclusão social. Entre-
descontinuidade dos programas implementados tanto se acredita que a pesquisa é um caminho,
voltados à PSR e a predominância de políticas enquanto mecanismo de conhecimento e denún-
focalizadoras, persistindo, ainda, uma tendência cia social, que possibilita a visibilidade dessa situ-
ao exercício de práticas punitivas e de isolamento. ação, a fim de que se promovam ações no sentido
No que se refere aos serviços de saúde, con- de estabelecer políticas públicas mais universais
forme visto, os equipamentos sociais públicos, e equânimes.

Colaboradores Agradecimentos

IKS Paiva construiu o artigo considerando o re- A Universidade do Estado do Rio Grande do
corte de parte da revisão de literatura de sua dis- Norte, em especial, ao grupo de pesquisa Marcos
sertação de mestrado. Responsável pela redação Teóricos Metodológicos Reorientadores da Edu-
do artigo, coleta e análise dos dados, interpreta- cação e do Trabalho em Saúde e ao PIBIC por
ção dos resultados, revisão crítica, versão final do terem gerado espaços de reflexões teóricas que
manuscrito. CDG Lira e JMR Justino foram res- contribuíram para amadurecimento da temática.
ponsáveis pela redação do artigo, coleta e análise À População em Situação de Rua, que mesmo
dos dados, interpretação dos resultados, revisão não tendo ido até ela para ver o mundo sobre a
crítica, versão final do manuscrito. MGO Miran- perspectiva da rua, a aproximação teórica per-
da e AKM Saraiva participaram como orientado- mitiu ampliar os olhares. Mais do que agradecer
ras contribuindo com a concepção e idealização esperamos contribuir nessa perspectiva.
do projeto, seu conteúdo intelectual, revisão crí-
tica e versão final do manuscrito.
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Artigo apresentado em 23/05/2015


Aprovado em 26/08/2015
Versão final apresentada em 28/08/2015

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