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50 ARTIGO ORIGINAL | ORIGINAL ARTICLE

A dimensão do cuidado pelas equipes de


Consultório na Rua: desafios da clínica em
defesa da vida
The dimension of care by the ‘Street Clinic’ team: challenges of the
clinic in defense of life

Elyne Montenegro Engstrom1, Alda Lacerda2, Pilar Belmonte2, Mirna Barros Teixeira1

DOI: 10.1590/0103-11042019S704

RESUMO O estudo objetivou analisar a produção de cuidados primários à saúde à população em situação
de rua, prestados por equipes de Consultório na Rua (eCR) no contexto de uma metrópole brasileira,
identificando potencialidades e dificuldades. Estudo de caso, de abordagem qualitativa, considerando o
universo das sete equipes no ano 2016/2017, com observação direta do trabalho e realização de entrevis-
tas semiestruturadas com profissionais de várias categorias (n=34), com análise temática de conteúdo.
Observou-se que as eCR atuavam com escopo ampliado e integral de ações, cuidados clínicos e interse-
toriais, nos espaços das ruas e nos serviços, em trabalho de equipe integrado. Organizavam-se com flexi-
bilidade, baixa exigência, busca ativa nos territórios, de forma itinerante, no tempo oportuno, imediato,
construção de planos terapêuticos compartilhados, que promoviam autonomia, baseados na redução de
danos. Dificuldades eram inerentes às vulnerabilidades e complexidades dos casos, à fragmentação da
rede de atenção, à qualidade dos instrumentos para registro em saúde e à carência de recursos estruturais
(transporte, insumos para ações de promoção da saúde). Concluiu-se que o cuidado se sustentava na
dimensão ético-política, usuário-centrado, na solidariedade e na defesa da vida.

PALAVRAS-CHAVE Cuidado integral de saúde. Atenção Primária à Saúde. População em situação de


rua. Vulnerabilidade em saúde.

ABSTRACT The study aimed to analyze the production of Primary Health Care to people living in the streets,
provided by Street Office (eCR) teams in the context of a Brazilian metropolis, identifying potentialities and
difficulties. This is a qualitative case study considering the universe of the seven teams in the 2016-2017
period, with direct observation of the work and conducting semi-structured interviews with professionals from
various categories (n=34), with thematic content analysis. We observed that the eCR operated with an enlarged
and comprehensive scope of actions, clinical and intersectoral care, in street spaces and services, through
integrated teamwork. They were organized with flexibility, low demand, active search in the territories, in an
itinerant way, timely, and immediately, with the construction of shared therapeutic plans, which promoted
1 Fundação Oswaldo Cruz
autonomy, based on harm reduction. Difficulties were inherent to the vulnerabilities and complexities of the
(Fiocruz), Escola Nacional
de Saúde Pública Sergio cases, the fragmentation of the health care network, the quality of the instruments for health registration and
Arouca (Ensp) – Rio de the lack of structural resources (transportation and inputs for health promotion actions). We concluded that
Janeiro (RJ), Brasil.
care was sustained in the ethical-political, user-centered dimension, in solidarity and in the defense of life.
elyneengstrom@gmail.com

2 Fundação Oswaldo KEYWORDS Comprehensive health care. Primary Health Care. Homeless person. Health vulnerability.
Cruz (Fiocruz), Escola
Politécnica de Saúde
Joaquim Venâncio (EPSJV)
– Rio de Janeiro (RJ), Brasil.

Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
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Introdução de população com elevada morbimortalida-


de, comorbidades dos mais variados agravos,
O crescimento da População em Situação de como tuberculose, infecções sexualmente
Rua (PSR) é uma realidade em todo o territó- transmissíveis, problemas de saúde mental,
rio nacional, com estimativa de mais de 100 uso prejudicial de álcool e drogas, entre outros,
mil pessoas vivendo nas ruas no ano de 2015, condições acrescidas do estigma e da violência
principalmente nas grandes cidades, como do viver nas ruas2,6.
São Paulo, Rio de Janeiro e Belo Horizonte1. Desenvolver políticas públicas que minimi-
A PSR é um grupo heterogêneo formado por zem tais iniquidades é um grande desafio para o
desempregados, egressos do sistema peni- País, em particular no âmbito do Sistema Único
tenciário, imigrantes, entre outros, que tem de Saúde (SUS), para que promovam o cuidado
em comum a pobreza, as precárias condições integral à PSR, tendo como principal porta de
de vida, a dificuldade de acesso aos serviços entrada a atenção básica, integrada à Rede de
básicos de saúde e outros direitos de cidada- Atenção à Saúde (RAS) ou a Rede de Atenção
nia2. Viver na rua é uma condição de extrema Psicossocial (Raps), de forma a respeitar as es-
vulnerabilidade que precisa ser compreendida pecificidades dessa população. Pode-se afirmar
em sua dimensão multifatorial e como fruto que houve, no Brasil, especialmente entre os
das políticas neoliberais que acentuam as pro- anos 2008/2009 e 2015, avanços na formu-
fundas desigualdades sociais, o desemprego, lação e implementação de políticas e ações,
a precarização do trabalho, a pobreza, entre de diversos setores, que atuaram de forma
outras situações de iniquidades. Não pode ser sinérgica para a proteção à PSR. Diretrizes
atribuído, portanto, a uma simples escolha presentes, por exemplo, na Política Nacional
dos indivíduos, muitas vezes culpabilizados e para População em Situação de Rua6, que re-
estigmatizados por grande parte da sociedade afirmaram os princípios de equidade, huma-
por se encontrarem nessa situação3. nização, universalidade, direito à convivência
A vulnerabilidade estrutural da PSR nos social e o respeito à dignidade e à cidadania; e
remete à pobreza, que inclui a privação de no âmbito do Ministério da Saúde, a Política
liberdade pessoal e da capacidade de fazer es- Nacional de Atenção Básica (PNAB)7, com a
colhas4. Ter opções de escolha é, muitas vezes, criação e a indução financeira de uma modali-
uma tarefa difícil diante da falta de perspectiva dade específica de equipe de atenção primária,
na vida, do pessimismo, do sofrimento e das denominada de equipe de Consultório na Rua
adversidades do cotidiano. (eCR), e a Política de Promoção da Equidade
A PSR é percebida como marginalizada, em Saúde8, que incluiu a PSR como um dos
invisível ou de visibilidade negativa para a grupos vulneráveis e reiterou a importância
sociedade5. Tal invisibilidade é elemento im- da atuação dessas modalidades de equipes.
portante da vulnerabilidade, para a qual urgem As normativas federais7-9 explicitam que a
a formulação e a implementação de políticas eCR tem o objetivo de ampliar o acesso da PSR
públicas que promovam equidade, proteção aos serviços públicos e assegurar as ações de
social e atenção para garantia à vida e à saúde. cuidado integral à saúde, com propostas de três
Excluída dos censos demográficos nacionais modalidades de equipe multiprofissional, com
e de outros registros de informação de saúde variação quanto à incorporação de categorias
de base domiciliar, salvo esparsas iniciativas profissionais – médico, enfermeiro, assistente
municipais, as informações sobre magnitude social, psicólogo, dentista, técnico de enferma-
e condições de saúde da PSR são escassas, gem e agentes de ação social – que se articulam
fragmentadas, desatualizadas e dificultam com a Estratégia Saúde da Família (ESF), a RAS
a tomada de decisão, o monitoramento e a e Raps e outros equipamentos sociais do terri-
avaliação de intervenções efetivas. Trata-se tório. Várias eCR, de diferentes modalidades,

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foram criadas no Brasil a partir de 2011, em entre 2009 e 2016. Houve ainda investimentos
sintonia ao crescimento e ao reforço do modelo financeiros e estruturais, construção de novas
centrado na ESF, movimento este que sofreu unidades de saúde e ampliação do escopo de
inflexões e tensões após revisão da referida serviços ofertados20. Nesse contexto, sete eCR
política em 201710. Totalizavam, no Brasil, foram implementadas em diversos territórios
no ano de 2019, 155 equipes credenciadas no da cidade, cujas práticas foram analisadas no
Cadastro Nacional de Estabelecimentos de presente artigo, considerando a perspectiva
Saúde (CNES)11, com a perspectiva de de- dos profissionais.
senvolverem ações de promoção da saúde,
de prevenção e assistência, além da urgência
e emergência, ofertadas tanto nos espaços Metodologia
públicos quanto em unidades básicas de saúde.
Pode-se supor o quão complexo é o cuidado Estudo exploratório de abordagem qualita-
integral às pessoas em extrema vulnerabili- tiva, cujo desenho foi um estudo de caso21
dade, como a PSR, sendo fundamental que as considerando o universo das sete eCR
práticas de saúde incluam tanto a dimensão existentes no MRJ no período da coleta
técnica do cuidado, as habilidades clínicas e de dados (2016/2017). As equipes estavam
gerenciais, as dimensões atitudinais, como o distribuídas em diferentes áreas, sendo duas
acolhimento, a escuta atenta, o respeito pelas na região do Centro da cidade, três delas
histórias de vida, de modo a fortalecer a auto- em região da Zona Norte, mas próximas de
nomia e aliviar ou minimizar o sofrimento12,13. linhas férreas, áreas de baixíssimo Índice de
A complexidade do trabalho das eCR sugere Desenvolvimento Humano, de extrema vio-
a adoção de modelos centrados em uma visão lência, conflagradas pelo tráfico de drogas,
ampliada de cuidado, considerando as sin- e duas na região da Zona Oeste e distante
gularidades das pessoas, suas necessidades da cidade, em áreas pauperizadas, sendo
e contextos de vida, o que implicaria a cons- que uma delas funcionava no mesmo espaço
trução de Projetos Terapêuticos Singulares físico de um equipamento para abrigamento
(PTS) compartilhados e flexíveis9. da assistência social do município.
Decorridos oito anos da normatização das Embora com processos de trabalho variando
eCR no Brasil, algumas experiências locais segundo às diferentes necessidades de saúde
sobre o trabalho cotidiano das equipes têm e vulnerabilidades dos territórios, todas as
sido, paulatinamente, objeto de estudos em eCR estavam completas, eram da modalidade
nossa realidade5,14-17, ou em comparação com III, sendo que três equipes tinham dentista
outros países18. Justificam-se análises mais e técnico de saúde bucal. Algumas equipes
aprofundadas dessas práticas, como a proposta dispunham de carro para transporte de pro-
no presente estudo, cujo objetivo foi analisar a fissionais e usuários e estavam vinculadas a
produção do cuidado à PSR pelas eCR em uma uma ou mais Clínicas de Família, dependendo
grande metrópole brasileira, identificando do tamanho do território coberto pela equipe,
suas estratégias, potencialidades e dificul- muitas vezes maior que a área de abrangência
dades. Para tal, selecionou-se como cenário da unidade básica.
do estudo, o Município do Rio de Janeiro Utilizaram-se diferentes técnicas de coletas
(MRJ), que, em 2016, tinha a estimativa de de dados para captar a diversidade do processo
14.279 pessoas vivendo em situação de rua19. de trabalho das eCR e as ações de cuidado
Cabe destacar que, desde 2009, o município desenvolvidas, como a observação direta do
iniciou um movimento de mudança em seu cotidiano do trabalho das equipes, a análise de
modelo de gestão da saúde e de atenção, am- registros do cadastro das equipes e a realização
pliando a cobertura da ESF de 5% para 60% de entrevistas com roteiro semiestruturado.

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Para a entrevista, foram incluídos 34 profissio- de integração com outros equipamentos da


nais (do universo de 69 profissionais), de modo rede de saúde. Também foram identificadas
a garantir a participação de, ao menos, dois ações no campo da intersetorialidade, de apoio
profissionais de nível superior (médico, enfer- social (Bolsa Família, cartão de transporte
meiro, psicólogo, assistente social, dentista) e urbano, Benefício de Prestação Continuada,
um de nível médio (agente social ou técnico de aproximação com famílias) e cidadania – rea-
enfermagem) de cada uma das sete equipes, lizadas tanto nos espaços internos das Clínicas
por adesão voluntária, disponibilidade ou para da Família ou diretamente nas abordagens
contemplar diferentes categorias. Um grupo nas ruas. Especificidades na organização do
de dois pesquisadores e dois supervisores processo de trabalho davam-se em função de
alternou-se na participação das atividades características dos territórios e dos usuários
das eCR, permanecendo cerca de 1 mês em que neles habitavam, com estratégias para
cada uma, presenciou reuniões, atendimentos permitir acesso, resolutividade da atenção, e
clínicos individuais, grupos, ações nas ruas mesmo a segurança de profissionais e usuá-
e outras ações externas nos territórios, com rios. Do total de sete equipes, cinco atuavam
registros em diários de campo e áudios. em locais de extrema violência e pobreza; e
As entrevistas dos profissionais foram re- quatro delas, em territórios marcados pela
alizadas nos serviços de saúde em horário e presença ostensiva do tráfico de drogas, onde
local reservado e adequado, foram gravadas e concentrava-se uma parcela importante de
transcritas na íntegra. Realizou-se a sistema- usuários de drogas, como o crack.
tização das análises no programa Atlas.Ti, e o As equipes mantinham uma regularidade de
material empírico foi trabalhado a partir da visitas no território, essencial para aproxima-
análise de conteúdo temática22. Dessa forma, ção e acolhimento aos usuários, citados como
as categorias emergiram do trabalho real na ‘encontros e espaços de escuta’, imperativos
produção de cuidado, considerando as estraté- para construção de vínculos terapêuticos.
gias, potencialidades e dificuldades de atuação
das eCR. Para garantia da confidencialidade e Toda terça estamos perto do cajueiro, todo mun-
sigilo das informações dos participantes, não do já sabe... essa rotina nas ruas ajuda na organi-
se fez menção à equipe ou categoria profissio- zação da demanda, as pessoas acabam sabendo
nal. O estudo atendeu aos preceitos éticos das que a gente vai estar lá e elas contam com isso
pesquisas em seres humanos e foi aprovado [...] daí alguns procedimentos são possíveis nas
pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola de ruas... outros, entendemos que a pessoa vai ser
Saúde Pública Sergio Arouca (Ensp)/Fundação melhor atendida na clínica.
Oswaldo Cruz (Fiocruz) em 2015, sob parecer
CAAE nº 45742215.6.0000.5240. Outra potencialidade convergente identifi-
cada foi a articulação entre a gestão comparti-
lhada do processo de trabalho e a produção do
Resultados e discussão cuidado integral, tal como apontado em outros
estudos, como de Vargas e Macerata16, em que
Muitas convergências nas práticas relacio- a lógica do trabalho integrado em equipe é
nadas com a produção do cuidado pelas eCR essencial. Segundo Peduzzi23, o ‘trabalho em
foram apreendidas nas observações de campo equipe’ emerge em um contexto formado
e nas entrevistas com os profissionais – ações por três vertentes, relacionadas com a inte-
das mais diversas conformações no campo da gração das ações, com a abordagem relativa
promoção da saúde, prevenção e manejo de ao modelo biopsicossocial de saúde-doença,
agravos clínicos no âmbito da Atenção Primária em contraposição ao modelo biomédico, e
à Saúde (APS), embora ainda com dificuldades às mudanças nos processos de trabalho para

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ampliar as intervenções; com organização e do usuário em situação de rua... hoje [2016]


planejamento conjuntos. A tipologia descrita evoluíram para um formato melhor [...] pergun-
pela autora como equipe integração, e não tas pontuais, né? – Onde dorme, que horas que
agrupamento, foi ainda percebida no trabalho eu o encontro se tiver que pegar medicação. Se é
das eCR pela valoração do trabalho de todos naquele local mesmo que eu vou encontrá-lo. Se
as categorias profissionais, pela comunicação ele, quando não tá ali por qualquer motivo, aonde
e construção coletiva de projetos assistenciais vai estar?
coletivos e/ou individuais, nas ruas ou nos
serviços, pactuadas em reuniões regulares Para superar tal dificuldade, adotavam os
das atividades (diariamente, pela manhã, para registros manuais (diários) ou em planilhas, as
discutir as prioridades do dia; além da reunião trocas e contatos informais com outras eCR e
de um turno semanal, mais aprofundada). Tais serviços, “porque o paciente é itinerante, só que
práticas são importantes para superar a divisão os prontuários não são itinerantes”, procurando
social e técnica do trabalho23. a integração possível para ampliar o cuidado.
Cabe destacar que, na ESF/APS da cidade,
Há atividades de grupo e atendimentos indivi- havia diversos prontuários eletrônicos em
duais, médico, de enfermagem, psicologia, com funcionamento, e algumas áreas estavam em
a assistente social, consultas odontológicas e, às processo de migração para o sistema nacional
vezes, os usuários querem ser atendidos pelos (e-SUS), ocasionando perdas de informações
agentes sociais. O atendimento odontológico, clínicas. Pelos diversos motivos citados, havia
presente em algumas das equipes, é bastante uti- dificuldade de geração de informações, não
lizado pelo usuário, não apenas nas emergências, permitindo conhecer indicadores epidemio-
na dor, mas em ações que melhoram a autoesti- lógicos e aqueles resultantes de efeitos do
ma... e o sorriso. cuidado prestado pelas eCR, informações
essenciais para a tomada de decisão geren-
A abordagem nas ruas – não necessaria- cial – um certo vazio informacional que
mente nos primeiros encontros – ou nos ser- contribui para a invisibilidade esse grupo.
viços possibilitava a realização de cadastros Corroborando esse achado, estudo de ob-
temporários ou definitivos dos usuários, com servação participante em eCR realizado por
características distintas para cada equipe, Hallais e Barros 9 evidenciou que a PSR,
como o critério para quem seria considerado historicamente visibilizada como marginal,
‘usuário acompanhado pela equipe’, eviden- dificilmente consegue acessar os serviços de
ciado nas falas: “um usuário acompanhado saúde, tornando-se invisível ao próprio SUS.
de fato por nosso serviço é o usuário que é Com as informações do cadastro dos usu-
visto ou visitado ou abordado nos últimos 3 ários, observou-se que a maioria era adultos
meses” ou outra equipe que “só considera o jovens, embora houvesse idosos e poucas
usuário acompanhado aquele por qual existe crianças; em sua maioria, eram homens, mas
uma proposta de cuidado”. destaca-se a preocupação das eCR com as mu-
Apesar do registro eletrônico estar acessível lheres – mais vulneráveis ainda pela violência
em todas as unidades básicas desde 2010, as de gênero, estupros, gravidez indesejada, perda
equipes apontavam para a inadequação do ins- da guarda de seus filhos nascidos na rua. Os
trumento de cadastro e das fichas de acompa- profissionais, de certa forma, reconheciam (e
nhamento longitudinal específicas para a PSR, se organizavam tecnicamente) para atuar com
que gerava descontinuidade e das informações. o manejo das condições agudas, em geral, in-
fecciosas ou traumas, dada a ameaça iminente
Quando começou [2013/2014], a ficha de ca- à vida, utilizando para isso diversas estratégias
dastro era ridícula – perguntas fora da realidade de diagnóstico rápido, na lógica point-of-care,

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como testes sorológicos para sífilis, HIV, he- puerpério, doentes de tuberculose, muitas
patites, teste de gravidez e exame de escarro vezes resistentes, ou outras condições que
para tuberculose e, consequentemente, cuida- exigem cuidado longitudinal de maior den-
dos imediatos, com medicamentos para dor, sidade tecnológica, realizados nos espaços
antibióticos, psicotrópicos, curativos e outros públicos das ruas ou abrigos. Para a população
insumos. As eCR atuavam nos primeiros cuida- domiciliada e coberta pela ESF, o cuidado às
dos às urgências/emergências, nas agudizações condições crônicas é dilema antigo desde o
de condições crônicas, naquelas relacionadas final dos anos 198026. De forma mais radical do
com a violência, traumas, ou mesmo nas de que pensado para a ESF, lidar com as inúmeras
natureza psiquiátrica, situações que exigiam cargas de doença é desafio ampliado para as
mobilização intensa da equipe e da integração eCR, exigindo uma oferta mais ampliada de
com a rede. Tais práticas demonstram, ante a serviços/ações e apoio de uma rede de saúde
extrema complexidade, a necessidade de res- e intersetorial. A possibilidade de utilizar a
postas rápidas e oportunas. Como descrito na ‘carteira ampliada de serviços de saúde’ dis-
literatura, a tuberculose pulmonar é agravo ex- poníveis para todos os indivíduos cadastrados
pressivo na PSR, cerca de 60 vezes maior na PSR nas Clínicas de Família era potencialidade
em comparação com o restante da população; para a assistência prestada e reforçava a di-
assim como são importantes outras condições mensão da integralidade do cuidado. Após a
crônicas, como hipertensão (10,1%), problema criação dessa modalidade específica de equipe
psiquiátrico/mental (6,1%), HIV/Aids (5,1%) e para PSR, houve publicação de normativas do
problemas de visão/cegueira (4,6%)9,24. Ministério da Saúde2,8,9 e mesmo da própria
Viver nas ruas não é, necessariamente, um secretaria municipal de saúde25 que apontam
processo temporário ou curto, alguns vivem nelas diretrizes para atuação das eCR, considerando
muitos anos, lá envelhecem, adoecem (e, às vezes, este escopo ampliado de práticas, ressaltando
morrem) por condições infecciosas, crônicas e/ a perspectiva da redução de danos. A adoção
ou por causas externas, violência, pela falta de dessa perspectiva se fazia presente não apenas
comida, pelo desalento e desânimo na luta pela para pessoas em uso prejudicial de álcool e
sobrevivência. Estar preparados para lidar com outras drogas como crack, mas também era
os processos de adoecimento e sofrimento da referencial que permeava outras práticas em
PSR, agravados pela situação de vulnerabilidade um modelo de cuidado de baixa exigência.
e pobreza extrema, não é trabalho simples. Por
outro lado, também era complexo o cuidado dos A abordagem da redução de danos é transversal,
usuários com condições crônicas, por dificuldades presente em várias das atividades inerentes ao
no diagnóstico e tratamento e por estes agravos cuidado físico e a saúde mental, aos projetos te-
demandarem acompanhamento contínuo, lon- rapêuticos… mas não temos muitos dos insumos
gitudinal, com dificuldades de estratégias para ‘clássicos’ da redução de danos – como proteto-
mantê-los acompanhados devido à grande mo- res labiais, soro para as narinas que protegem
bilidade geográfica, conforme destacado pelos das rachaduras da boca pelo uso do crack; temos
relatos dos profissionais: “a gente perde muito preservativos. [grifo nosso].
eles [...]. Tem o primeiro contato e depois a gente
perde” ou “a PSR não pode ficar no território, vão Operar na lógica da redução de danos im-
para outro lugar”. plicava adequar o trabalho à realidade dos
Pode-se imaginar quão desafiador é o usuários, atitudes que explicitavam não apenas
cuidado de pessoas com HIV/Aids, hiper- técnicas e aparatos, mas ainda em uma postura
tensão, diabetes, amputados, pacientes ética do cuidado27. Embora as equipes reco-
que recebem alta hospitalar, gestantes que nhecessem a importância de adoção de proto-
necessitam acompanhamento pré-natal e colos e diretrizes clínicas, relatavam o quanto

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tal prática podia aprisionar o cuidado em saúde as necessidades da população, ofertadas de


e gerar conflitos perante as necessidades de forma a garantir cuidado oportuno (ágil, no
flexibilização para cuidar da PSR, conforme momento do diagnóstico, ou do contato com
explícito nas narrativas dos profissionais: o usuário, na rua ou na Unidade de Saúde),
efetivo e de aceitabilidade pelo usuário. Nessa
Nosso trabalho demanda mais disponibilidade, perspectiva, o tempo e a oportunidade nesse
mais mobilidade e flexibilidade, flexibilidade com modelo de cuidado eram centrais; a noção
a agenda, com a área de abrangência da equipe. de que “o tempo é o aqui e agora” refletia-se
Se eu for muito rigoroso em aplicar e manter o no imediatismo das respostas das equipes, às
protocolo, é provável que aquela pessoa de rua demandas dos usuários, tal como relata um
não se adapte ao protocolo, que é o que [tam- dos profissionais:
bém] acontece com a saúde da família. [...] eu
preciso de uma flexibilização [...] ou pelo menos A vida que eles levam na rua não é uma coisa
a um acordo interno desse protocolo, por exem- simples [...], e o trabalho do profissional também
plo, para tratamento da sífilis. não é, frente a tantas urgências, tudo tem que ser
feito na hora.
Observou-se ainda a flexibilidade com a
área de abrangência das eCR, diferentemente Estratégias de cuidado de baixa exigência,
do observado para o modelo da ESF, basica- no tempo possível, respeitando-se a autonomia
mente domiciliar e com territórios delimi- e desejo dos usuários nos remetem à redução
tados. Embora com territórios geográficos de danos pautada na ética do cuidado27 e aos
preestabelecidos pela gestão municipal, na referenciais da clínica ampliada e comparti-
prática, os limites territoriais eram mais lhada28. A relação terapêutica, com respeito
fluídos, capilares, para alcançar o usuário onde às preferências dos usuários, fortalecendo a
ele estivesse – população nômade-equipe iti- autonomia para a tomada de decisões sobre o
nerante e flexível: processo saúde-doença-cuidado, é destacada
no relato dos profissionais ao sinalizar que
Tempo inteiro, fazemos busca ativa [...] alguma “a autonomia deles [PSR] é o mais importante
questão clínica né, luxação, micose, transtorno que se consiga [com o cuidado da equipe]” ou
mental, ou alguém que foi agredido e tem que ao referir que
encontrar porque algum colega deu algum re-
cado para a gente, a gente faz busca ativa não a gente percebe claramente que as pessoas têm
só nas ruas, mas nos hospitais, nos abrigos, em uma mudança muito importante no autocuidado
outros lugares fora da nossa área. [...] temos pouca coisa pra contribuir [...] mas o
pouco que tem, faz diferença, sim, nessa coisa do
Para facilitar o encontro dos usuários, as autocuidado.
eCR, muitas vezes, utilizavam de estratégias
simples em densidade tecnológica, como a Apesar de evitar a postura paternalista, por
oferta de um cartão, em papel, com número de vezes, a relação autonomia/heteronomia era
telefone, caso o usuário necessitasse contato um equilíbrio difícil no processo de cuidado,
em situação de emergência clínica ou fosse em especial nas condições de ameaça à vida
abordado para recolhimento das ruas por e à integridade física dos usuários. Por lidar
outros setores do poder público. Era uma estra- com casos complexos, a construção de Projetos
tégia simples, mas que extrapolava o que está Terapêuticos Singulares (PTS) – da forma
prescrito nas normatizações. Considerando como é proposta na literatura e normativas
um modelo de cuidado integral e amplia- do Ministério as Saúde9,28 – estava presen-
do, as ações de saúde deveriam considerar te na maioria dos casos, embora com maior

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flexibilidade de metas e pactuações. Projetos da Clínica, por exemplo, no atendimento à


de cuidado compartilhado, às vezes com pouca demanda livre, em momentos que o médico
estruturação, eram construídos para todos e enfermeiro estavam em atendimentos nas
os usuários, visando à melhoria da condição ruas. As eCR, ao reafirmarem que não eram
clínica e/ou social, conforme se destaca no especialistas em ‘Poprua’, buscavam recons-
relato dos profissionais: truir significados, diminuir o preconceito, o
estigma no atendimento a essa população e
a gente elabora o PTS de maneira mais sistemá- sensibilizar outros profissionais, como os da
tica pros casos mais complexos, em geral nas ESF e gestores para a inclusão da PSR na rotina
reuniões de equipe; mas todos os casos a gente das unidades.
tem uma proposta estabelecida e acompanha
como vai evoluir [e ainda que] há o protagonis- Nosso cuidado é compartilhado... nós não somos
mo muito grande do usuário porque todas essas especialistas em população de rua e nem é isso
propostas que a gente constrói, são construídas que a gente quer, mas a gente consegue trazer
junto com o usuário. para todos os profissionais da clínica [da ESF]
uma corresponsabilização em torno daquele cui-
As eCR ao incluírem a PSR na construção dado [...], que o território fora de área também
dos PTS, com definição de ações e estratégias era dele e a gente começou a ver que o trabalho
que respeitem suas especificidades, singulari- compartilhado.
dades e demandas, desenvolvem uma prática
de cuidado centrada nos sujeitos e pautada em Por outro lado, atuar no mesmo espaço
uma dimensão ético-política do cuidado. Essa físico da unidade de saúde possibilitava o
dimensão pode ser mais bem compreendida estreitamento da relação com os demais pro-
se pensarmos o cuidado orientado pela noção fissionais, à medida que as eCR podiam cola-
de ‘valor’, como pensado pelo filósofo George borar para a elaboração de planos terapêuticos,
Canguillen (1904-1995), em obra revisitada por referidos como ‘matriciamento’, nos casos de
Ayres29. Nessa dimensão, as práticas transcen- saúde mental, uso de álcool, violência familiar/
dem normativas, apresentam-se implicadas e social, não adesão a terapêuticas ou mesmo
preocupadas com o valor humano, de defesa em atendimentos a situações de urgências/
da vida. A dimensão ética do cuidado, como emergências de usuários domiciliados sob
apresentado por Boff30, revela ainda a inter- cuidado das ESF. Esse compartilhamento foi
subjetividade, os afetos e o reconhecimento considerado como reconhecimento do traba-
dos sujeitos no ato de cuidar; o que, por sua lho das eCR.
vez, é indissociável da dimensão política do A complexidade do cuidado da PSR impli-
cuidado, enquanto um campo de disputa no qual cava uma pluralidade de ações e estratégias,
emergem conflitos, relações de poder, media- de difícil operacionalização, que, muitas vezes,
ções, parcerias, luta pelos direitos, entre outros. ocasionava uma certa desorganização ou frag-
Nesse sentido, é fundamental a corresponsabi- mentação do processo de trabalho, atribuídas
lização usuário-equipe no cuidado, o respeito à itinerância, ao imediatismo, mas também à
pelas histórias de adoecimento e sofrimento e a inadequação de alguns recursos estruturais,
oportunidade desses usuários traçarem metas, como insumos, transporte para profissionais
fazerem escolhas e tomarem decisões13. e usuários, material de higiene pessoal, auxílio
Cabe destacar que uma certa tensão no ato financeiro ou apoio público para participação
de compartilhar o cuidado pareceu presente dos usuários em eventos na cidade. Um dos
na divisão das responsabilidades à medida desafios do cuidado das equipes é desenvolver
que as eCR consideravam que deveria haver estratégias que promovam a inclusão social
maior implicação dos demais profissionais da PSR e permitam sua livre circulação nas

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atividades culturais e nos espaços públicos da rígidos, não considerava critérios como a gra-
cidade, que, por sua vez, embora fundamentais, vidade, a situação de vulnerabilidade da PSR e
extrapolam as atribuições do setor saúde e a oportunidade daquele usuário que opera na
implicam articulações intersetoriais. Tivemos lógica do ‘aqui e agora’, não estando disponível
a oportunidade de acompanhar práticas de para consultas, exames ou procedimentos em
extrema potência, podemos dizer comoventes serviços especializados em tempo futuro, daí a
e surpreendentes no reforço à cidadania e lógica da entrada dos usuários pelos serviços
à inclusão aos espaços urbanos, como, por de emergência e pronto atendimento. As estra-
exemplo, as visitas conjuntas da eCR e usuá- tégias que as eCR construíam para conseguir
rios a evento social gastronômico, um jantar o atendimento, eram muitas, vezes informais,
ofertado por um restaurante do centro da como citadas:
cidade (projeto ‘Refettorio Gastromotiva’)
à PSR, espaço e refeições dignos, com mesa, Referências muitas vezes não são feitas pelo Sis-
talheres e cardápios respeitosos, momentos reg, e sim no contato [...] a gente segue exata-
singulares para os participantes3. mente todos os fluxos, todas as regras que esses
Buscar tecer articulações intersetoriais, não fluxos impõem, mas a gente também combina
obstante às dificuldades, era uma das tarefas com as gestões as perversões desse fluxo.
das eCR diante das demandas e das necessi-
dades básicas da PSR. Eram demandas por Perverter o fluxo, conforme aponta o pro-
direitos, do cotidiano da vida, como ajuda para fissional, era, de fato, uma estratégia na pro-
obter documentos – certidão de nascimento, dução do cuidado para não perder o vínculo
carteira de identidade –, para conseguir Bolsa com os usuários e assegurar o seu acesso nos
Família, aposentadoria, vale-transporte, dentre diversos níveis de atenção da rede, conforme
outros direitos sociais: suas necessidades e especificidades.
Sem dúvida, o trabalho das eCR era, em di-
As demandas dos usuários são coisas ‘básicas’ versos momentos, vivenciado pelos profissio-
né, que é documento, alguma demanda de fe- nais como gerador de angústias e sofrimentos
rida, dor de dente, e tem as demandas da vida, ao se deparar com inúmeras dificuldades, tais
comida, trabalho e demandas muito concretas, como a carência de insumos, a falta de uma rede
algumas questões de saúde física... teste de gra- de saúde mais articulada, as ações descontínu-
videz, catarro, muito curativo. Demandas por as, as dificuldades de articulação com outros
apoio social, Bolsa Família, Riocard, Benefício de setores da sociedade e os limites impostos,
Prestação Continuada... exige trabalho interse- entre outros, pela própria condição de pobreza
torial; e a presença da equipe multiprofissional é e vulnerabilidade extrema da PSR. Por outro
importante. [grifo nosso]. lado, era possível evidenciar, em outros momen-
tos, uma satisfação e um certo encantamento,
Além da importância das ações interseto- que podem ser atribuídos às características
riais, a articulação com outros equipamentos do trabalho em saúde das eCR que permitiam
de saúde também era imprescindível para a a autonomia do profissional para lidar com
integralidade do cuidado e a resolutividade da as singularidades dos usuários e tornavam o
atenção, mas, ao mesmo tempo, causadora de trabalho vivo e criativo, citado como uma das
tensões, dificuldades e barreiras no processo potências para a atuação dos profissionais.
de trabalho das eCR. Um exemplo é a regulação Conclui-se que o compartilhamento do
assistencial, que gerencia o acesso a serviços cuidado entre equipe-usuário visando à au-
especializados na RAS e Raps e a internação tonomia, assim como a baixa exigência para
hospitalar, que embora considerada necessária construção de vínculos terapêuticos, era
para organizar o sistema, tinha fluxos muito estratégia potente e denota uma dimensão

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ético-política do cuidado, com centralidade públicas de saúde a outras populações vulne-


nos usuários e respeito pelos seus processos de ráveis. Se, por um lado, diversas dificuldades
adoecimento e sofrimento; dimensão esta que foram evidenciadas no cotidiano das eCR, por
tem por finalidade ampliar o acesso da PSR à outro, também foram observadas estratégias
saúde e a outros direitos básicos, fundamentais potentes de cuidado na perspectiva de for-
na construção da cidadania e na defesa da vida. talecer a autonomia e ampliar o acesso dos
usuários à saúde e aos demais direitos sociais.
Essas observações nos permitiram reconhe-
Considerações finais cer que o cuidado das eCR estava pautado
em um modelo que priorizava os usuários,
A PSR é um fenômeno crescente, especialmen- solidário, ancorado em sua essência, em uma
te nos grandes centros urbanos, com elevada dimensão ético-política do cuidado, compro-
morbimortalidade e extrema vulnerabilidade metida, acima de tudo, com a defesa da vida
social que, como tal, necessita de estratégias e da cidadania.
de cuidado diferenciado e políticas públicas O potencial do trabalho das eCR na pro-
específicas que reduzam as iniquidades sociais. dução do cuidado da PSR, com seus limites
Mesmo em países desenvolvidos, observa- e potencialidades, deve continuar a ser apro-
-se interesse em pensar intervenções para fundado em outros estudos, principalmente
populações flutuantes, temporárias, como o diante da conjuntura atual de desmonte das
cuidado à saúde de imigrantes na Europa e nas políticas públicas de saúde. A condição de
Américas. O Brasil implementou modalidades viver na rua é perversa, fruto das políticas
de equipes para populações específicas, tais neoliberais que acentuam a pobreza e as de-
como ribeirinhos, população do campo e da sigualdades sociais. Tal condição agrava-se
floresta e, sem dúvida, para pessoas que vivem ainda mais com políticas setoriais higienistas
em situação de rua, em habitações precárias e proibitivas, como as ações de recolhimento
ou em condições de extrema pobreza. e de internação compulsória da PSR, que se
Observou-se que as eCR, por meio da APS, configuram como um retrocesso à democracia,
promoviam acesso ao SUS (e por vezes a outros aos direitos humanos, às políticas de equidade
setores), trabalhando com as necessidades dos e de saúde pública.
usuários, desde aquelas mais pontuais ou mais
complexas, a maioria exigindo a construção de
planos terapêuticos compartilhados que eram Colaboradores
desenvolvidos no tempo e local oportunos,
tendo em vista o imediatismo que permeia a Todos os autores participaram igualmente
lógica de vida da PSR. Refletir sobre as práticas das etapas de desenvolvimento da pesquisa
de cuidado das eCR, pautadas em modelos de e da elaboração do manuscrito. Engstrom
cuidados primários de saúde, de baixa exigên- EM (0000-0001-6149-3396)*, Lacerda A
cia, criativo, oportuno e integral considerando (0000-0002-8011-5507)*, Belmonte P (0000-
as necessidades da PSR, pode trazer subsídios 0001-7674-5867)* e Teixeira MB (0000-0003-
para formulação e implementação de políticas 0088-9420)*. s

*Orcid (Open Researcher


and Contributor ID).

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secretaria de Promoção, Atenção Primária e Vigilân-

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