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Elyne Montenegro Engstrom1, Alda Lacerda2, Pilar Belmonte2, Mirna Barros Teixeira1
DOI: 10.1590/0103-11042019S704
RESUMO O estudo objetivou analisar a produção de cuidados primários à saúde à população em situação
de rua, prestados por equipes de Consultório na Rua (eCR) no contexto de uma metrópole brasileira,
identificando potencialidades e dificuldades. Estudo de caso, de abordagem qualitativa, considerando o
universo das sete equipes no ano 2016/2017, com observação direta do trabalho e realização de entrevis-
tas semiestruturadas com profissionais de várias categorias (n=34), com análise temática de conteúdo.
Observou-se que as eCR atuavam com escopo ampliado e integral de ações, cuidados clínicos e interse-
toriais, nos espaços das ruas e nos serviços, em trabalho de equipe integrado. Organizavam-se com flexi-
bilidade, baixa exigência, busca ativa nos territórios, de forma itinerante, no tempo oportuno, imediato,
construção de planos terapêuticos compartilhados, que promoviam autonomia, baseados na redução de
danos. Dificuldades eram inerentes às vulnerabilidades e complexidades dos casos, à fragmentação da
rede de atenção, à qualidade dos instrumentos para registro em saúde e à carência de recursos estruturais
(transporte, insumos para ações de promoção da saúde). Concluiu-se que o cuidado se sustentava na
dimensão ético-política, usuário-centrado, na solidariedade e na defesa da vida.
ABSTRACT The study aimed to analyze the production of Primary Health Care to people living in the streets,
provided by Street Office (eCR) teams in the context of a Brazilian metropolis, identifying potentialities and
difficulties. This is a qualitative case study considering the universe of the seven teams in the 2016-2017
period, with direct observation of the work and conducting semi-structured interviews with professionals from
various categories (n=34), with thematic content analysis. We observed that the eCR operated with an enlarged
and comprehensive scope of actions, clinical and intersectoral care, in street spaces and services, through
integrated teamwork. They were organized with flexibility, low demand, active search in the territories, in an
itinerant way, timely, and immediately, with the construction of shared therapeutic plans, which promoted
1 Fundação Oswaldo Cruz
autonomy, based on harm reduction. Difficulties were inherent to the vulnerabilities and complexities of the
(Fiocruz), Escola Nacional
de Saúde Pública Sergio cases, the fragmentation of the health care network, the quality of the instruments for health registration and
Arouca (Ensp) – Rio de the lack of structural resources (transportation and inputs for health promotion actions). We concluded that
Janeiro (RJ), Brasil.
care was sustained in the ethical-political, user-centered dimension, in solidarity and in the defense of life.
elyneengstrom@gmail.com
2 Fundação Oswaldo KEYWORDS Comprehensive health care. Primary Health Care. Homeless person. Health vulnerability.
Cruz (Fiocruz), Escola
Politécnica de Saúde
Joaquim Venâncio (EPSJV)
– Rio de Janeiro (RJ), Brasil.
Este é um artigo publicado em acesso aberto (Open Access) sob a licença Creative
Commons Attribution, que permite uso, distribuição e reprodução em qualquer
SAÚDE DEBATE | RIO DE JANEIRO, V. 43, N. ESPECIAL 7, P. 50-61, DEZ 2019 meio, sem restrições, desde que o trabalho original seja corretamente citado.
A dimensão do cuidado pelas equipes de Consultório na Rua: desafios da clínica em defesa da vida 51
foram criadas no Brasil a partir de 2011, em entre 2009 e 2016. Houve ainda investimentos
sintonia ao crescimento e ao reforço do modelo financeiros e estruturais, construção de novas
centrado na ESF, movimento este que sofreu unidades de saúde e ampliação do escopo de
inflexões e tensões após revisão da referida serviços ofertados20. Nesse contexto, sete eCR
política em 201710. Totalizavam, no Brasil, foram implementadas em diversos territórios
no ano de 2019, 155 equipes credenciadas no da cidade, cujas práticas foram analisadas no
Cadastro Nacional de Estabelecimentos de presente artigo, considerando a perspectiva
Saúde (CNES)11, com a perspectiva de de- dos profissionais.
senvolverem ações de promoção da saúde,
de prevenção e assistência, além da urgência
e emergência, ofertadas tanto nos espaços Metodologia
públicos quanto em unidades básicas de saúde.
Pode-se supor o quão complexo é o cuidado Estudo exploratório de abordagem qualita-
integral às pessoas em extrema vulnerabili- tiva, cujo desenho foi um estudo de caso21
dade, como a PSR, sendo fundamental que as considerando o universo das sete eCR
práticas de saúde incluam tanto a dimensão existentes no MRJ no período da coleta
técnica do cuidado, as habilidades clínicas e de dados (2016/2017). As equipes estavam
gerenciais, as dimensões atitudinais, como o distribuídas em diferentes áreas, sendo duas
acolhimento, a escuta atenta, o respeito pelas na região do Centro da cidade, três delas
histórias de vida, de modo a fortalecer a auto- em região da Zona Norte, mas próximas de
nomia e aliviar ou minimizar o sofrimento12,13. linhas férreas, áreas de baixíssimo Índice de
A complexidade do trabalho das eCR sugere Desenvolvimento Humano, de extrema vio-
a adoção de modelos centrados em uma visão lência, conflagradas pelo tráfico de drogas,
ampliada de cuidado, considerando as sin- e duas na região da Zona Oeste e distante
gularidades das pessoas, suas necessidades da cidade, em áreas pauperizadas, sendo
e contextos de vida, o que implicaria a cons- que uma delas funcionava no mesmo espaço
trução de Projetos Terapêuticos Singulares físico de um equipamento para abrigamento
(PTS) compartilhados e flexíveis9. da assistência social do município.
Decorridos oito anos da normatização das Embora com processos de trabalho variando
eCR no Brasil, algumas experiências locais segundo às diferentes necessidades de saúde
sobre o trabalho cotidiano das equipes têm e vulnerabilidades dos territórios, todas as
sido, paulatinamente, objeto de estudos em eCR estavam completas, eram da modalidade
nossa realidade5,14-17, ou em comparação com III, sendo que três equipes tinham dentista
outros países18. Justificam-se análises mais e técnico de saúde bucal. Algumas equipes
aprofundadas dessas práticas, como a proposta dispunham de carro para transporte de pro-
no presente estudo, cujo objetivo foi analisar a fissionais e usuários e estavam vinculadas a
produção do cuidado à PSR pelas eCR em uma uma ou mais Clínicas de Família, dependendo
grande metrópole brasileira, identificando do tamanho do território coberto pela equipe,
suas estratégias, potencialidades e dificul- muitas vezes maior que a área de abrangência
dades. Para tal, selecionou-se como cenário da unidade básica.
do estudo, o Município do Rio de Janeiro Utilizaram-se diferentes técnicas de coletas
(MRJ), que, em 2016, tinha a estimativa de de dados para captar a diversidade do processo
14.279 pessoas vivendo em situação de rua19. de trabalho das eCR e as ações de cuidado
Cabe destacar que, desde 2009, o município desenvolvidas, como a observação direta do
iniciou um movimento de mudança em seu cotidiano do trabalho das equipes, a análise de
modelo de gestão da saúde e de atenção, am- registros do cadastro das equipes e a realização
pliando a cobertura da ESF de 5% para 60% de entrevistas com roteiro semiestruturado.
como testes sorológicos para sífilis, HIV, he- puerpério, doentes de tuberculose, muitas
patites, teste de gravidez e exame de escarro vezes resistentes, ou outras condições que
para tuberculose e, consequentemente, cuida- exigem cuidado longitudinal de maior den-
dos imediatos, com medicamentos para dor, sidade tecnológica, realizados nos espaços
antibióticos, psicotrópicos, curativos e outros públicos das ruas ou abrigos. Para a população
insumos. As eCR atuavam nos primeiros cuida- domiciliada e coberta pela ESF, o cuidado às
dos às urgências/emergências, nas agudizações condições crônicas é dilema antigo desde o
de condições crônicas, naquelas relacionadas final dos anos 198026. De forma mais radical do
com a violência, traumas, ou mesmo nas de que pensado para a ESF, lidar com as inúmeras
natureza psiquiátrica, situações que exigiam cargas de doença é desafio ampliado para as
mobilização intensa da equipe e da integração eCR, exigindo uma oferta mais ampliada de
com a rede. Tais práticas demonstram, ante a serviços/ações e apoio de uma rede de saúde
extrema complexidade, a necessidade de res- e intersetorial. A possibilidade de utilizar a
postas rápidas e oportunas. Como descrito na ‘carteira ampliada de serviços de saúde’ dis-
literatura, a tuberculose pulmonar é agravo ex- poníveis para todos os indivíduos cadastrados
pressivo na PSR, cerca de 60 vezes maior na PSR nas Clínicas de Família era potencialidade
em comparação com o restante da população; para a assistência prestada e reforçava a di-
assim como são importantes outras condições mensão da integralidade do cuidado. Após a
crônicas, como hipertensão (10,1%), problema criação dessa modalidade específica de equipe
psiquiátrico/mental (6,1%), HIV/Aids (5,1%) e para PSR, houve publicação de normativas do
problemas de visão/cegueira (4,6%)9,24. Ministério da Saúde2,8,9 e mesmo da própria
Viver nas ruas não é, necessariamente, um secretaria municipal de saúde25 que apontam
processo temporário ou curto, alguns vivem nelas diretrizes para atuação das eCR, considerando
muitos anos, lá envelhecem, adoecem (e, às vezes, este escopo ampliado de práticas, ressaltando
morrem) por condições infecciosas, crônicas e/ a perspectiva da redução de danos. A adoção
ou por causas externas, violência, pela falta de dessa perspectiva se fazia presente não apenas
comida, pelo desalento e desânimo na luta pela para pessoas em uso prejudicial de álcool e
sobrevivência. Estar preparados para lidar com outras drogas como crack, mas também era
os processos de adoecimento e sofrimento da referencial que permeava outras práticas em
PSR, agravados pela situação de vulnerabilidade um modelo de cuidado de baixa exigência.
e pobreza extrema, não é trabalho simples. Por
outro lado, também era complexo o cuidado dos A abordagem da redução de danos é transversal,
usuários com condições crônicas, por dificuldades presente em várias das atividades inerentes ao
no diagnóstico e tratamento e por estes agravos cuidado físico e a saúde mental, aos projetos te-
demandarem acompanhamento contínuo, lon- rapêuticos… mas não temos muitos dos insumos
gitudinal, com dificuldades de estratégias para ‘clássicos’ da redução de danos – como proteto-
mantê-los acompanhados devido à grande mo- res labiais, soro para as narinas que protegem
bilidade geográfica, conforme destacado pelos das rachaduras da boca pelo uso do crack; temos
relatos dos profissionais: “a gente perde muito preservativos. [grifo nosso].
eles [...]. Tem o primeiro contato e depois a gente
perde” ou “a PSR não pode ficar no território, vão Operar na lógica da redução de danos im-
para outro lugar”. plicava adequar o trabalho à realidade dos
Pode-se imaginar quão desafiador é o usuários, atitudes que explicitavam não apenas
cuidado de pessoas com HIV/Aids, hiper- técnicas e aparatos, mas ainda em uma postura
tensão, diabetes, amputados, pacientes ética do cuidado27. Embora as equipes reco-
que recebem alta hospitalar, gestantes que nhecessem a importância de adoção de proto-
necessitam acompanhamento pré-natal e colos e diretrizes clínicas, relatavam o quanto
atividades culturais e nos espaços públicos da rígidos, não considerava critérios como a gra-
cidade, que, por sua vez, embora fundamentais, vidade, a situação de vulnerabilidade da PSR e
extrapolam as atribuições do setor saúde e a oportunidade daquele usuário que opera na
implicam articulações intersetoriais. Tivemos lógica do ‘aqui e agora’, não estando disponível
a oportunidade de acompanhar práticas de para consultas, exames ou procedimentos em
extrema potência, podemos dizer comoventes serviços especializados em tempo futuro, daí a
e surpreendentes no reforço à cidadania e lógica da entrada dos usuários pelos serviços
à inclusão aos espaços urbanos, como, por de emergência e pronto atendimento. As estra-
exemplo, as visitas conjuntas da eCR e usuá- tégias que as eCR construíam para conseguir
rios a evento social gastronômico, um jantar o atendimento, eram muitas, vezes informais,
ofertado por um restaurante do centro da como citadas:
cidade (projeto ‘Refettorio Gastromotiva’)
à PSR, espaço e refeições dignos, com mesa, Referências muitas vezes não são feitas pelo Sis-
talheres e cardápios respeitosos, momentos reg, e sim no contato [...] a gente segue exata-
singulares para os participantes3. mente todos os fluxos, todas as regras que esses
Buscar tecer articulações intersetoriais, não fluxos impõem, mas a gente também combina
obstante às dificuldades, era uma das tarefas com as gestões as perversões desse fluxo.
das eCR diante das demandas e das necessi-
dades básicas da PSR. Eram demandas por Perverter o fluxo, conforme aponta o pro-
direitos, do cotidiano da vida, como ajuda para fissional, era, de fato, uma estratégia na pro-
obter documentos – certidão de nascimento, dução do cuidado para não perder o vínculo
carteira de identidade –, para conseguir Bolsa com os usuários e assegurar o seu acesso nos
Família, aposentadoria, vale-transporte, dentre diversos níveis de atenção da rede, conforme
outros direitos sociais: suas necessidades e especificidades.
Sem dúvida, o trabalho das eCR era, em di-
As demandas dos usuários são coisas ‘básicas’ versos momentos, vivenciado pelos profissio-
né, que é documento, alguma demanda de fe- nais como gerador de angústias e sofrimentos
rida, dor de dente, e tem as demandas da vida, ao se deparar com inúmeras dificuldades, tais
comida, trabalho e demandas muito concretas, como a carência de insumos, a falta de uma rede
algumas questões de saúde física... teste de gra- de saúde mais articulada, as ações descontínu-
videz, catarro, muito curativo. Demandas por as, as dificuldades de articulação com outros
apoio social, Bolsa Família, Riocard, Benefício de setores da sociedade e os limites impostos,
Prestação Continuada... exige trabalho interse- entre outros, pela própria condição de pobreza
torial; e a presença da equipe multiprofissional é e vulnerabilidade extrema da PSR. Por outro
importante. [grifo nosso]. lado, era possível evidenciar, em outros momen-
tos, uma satisfação e um certo encantamento,
Além da importância das ações interseto- que podem ser atribuídos às características
riais, a articulação com outros equipamentos do trabalho em saúde das eCR que permitiam
de saúde também era imprescindível para a a autonomia do profissional para lidar com
integralidade do cuidado e a resolutividade da as singularidades dos usuários e tornavam o
atenção, mas, ao mesmo tempo, causadora de trabalho vivo e criativo, citado como uma das
tensões, dificuldades e barreiras no processo potências para a atuação dos profissionais.
de trabalho das eCR. Um exemplo é a regulação Conclui-se que o compartilhamento do
assistencial, que gerencia o acesso a serviços cuidado entre equipe-usuário visando à au-
especializados na RAS e Raps e a internação tonomia, assim como a baixa exigência para
hospitalar, que embora considerada necessária construção de vínculos terapêuticos, era
para organizar o sistema, tinha fluxos muito estratégia potente e denota uma dimensão
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