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Atenção integral à saúde de mulheres em situação de violência

ARTIGO ARTICLE
de gênero – uma alternativa para a atenção primária em saúde

Comprehensive health (care) services to women


in gender violence situation – an alternative to primary health care

Ana Flávia Pires Lucas d´Oliveira 1


Lilia Blima Schraiber 1
Heloisa Hanada 1
Julia Durand 1

Abstract This paper deals with the possibilities of Resumo Este artigo trata das possibilidades de atu-
the health sector to approach violence against wom- ação do campo da saúde na abordagem da violência
en in its practices as a gender issue. It is presented a contra a mulher desde suas práticas assistenciais nos
conceptual and theoretical comprehension of gen- serviços e baseadas na perspectiva de gênero. Apre-
der violence linked to a care proposal, as the defini- senta-se uma dada compreensão teórico conceitual
tion of the problem is essential to the intervention, da violência de gênero contra as mulheres articulada
answering to different social ends. To do that, is nec- a uma proposta de cuidado, pois a forma como o
essary to think what the objectives of the work in problema é delimitado é essencial para a interven-
health are and where it is placed within the produc- ção, respondendo a finalidades sociais diversas. Tra-
tion and reproduction of the ways of living and fall- ta-se, portanto, de pensar quais os objetivos da ação
ing ill. It is argued the possibility of full assistance, in em saúde e qual o seu lugar na produção e reprodu-
order that violence itself, and not only its repercus- ção de modos de viver e adoecer. Defende-se a possibi-
sions, are considered in the health work. The pro- lidade de atendimento integral, para que também a
posal of care for sexual violence in Brazil is recov- violência, e não apenas suas repercussões, seja consi-
ered, and a model of primary health care imple- derada no trabalho em saúde. Recupera-se a propos-
mented at Samuel B. Pessoa Health School Center is ta de atenção dirigida à violência sexual no Brasil e
presented. This model is integrated in the Women’s debate-se uma possibilidade de atuação na atenção
Integral Health Care Program (PAISM) and attends primária tal como implantada no Centro de Saúde
women in severe domestic conflicts (CONFAD) con- Escola Samuel B. Pessoa. As ações propostas e inte-
ceptualized as a specific technique of detection, lis- gradas ao Programa de Atenção Integral à Saúde da
tening and counseling, featuring a “chat technique” Mulher (PAISM) da Unidade constituem uma ativi-
as a professional action. To conclude, aspects related dade de atendimentos a conflitos familiares difíceis
to the connections of the health sector with the in- (CONFAD), conceituada como uma técnica especí-
tersectorial network are discussed presenting its prin- fica de detecção, escuta e orientação qualificadas, que
cipal difficulties. caracterizam uma “técnica de conversa” como agir
1
Departamento de
Key words Primary health care, Domestic violence, profissional. Por fim, discutem-se aspectos relativos à
Medicina Preventiva,
Faculdade de Medicina, Violence against women, Intimate partner violence, conexão do setor saúde com a rede intersetorial de
Universidade de São Paulo. Women’s health services atenção e suas principais dificuldades.
Av. Dr. Arnaldo 455/2.245,
Cerqueira César.
Palavras-chave Atenção primaria à saúde, Violên-
01246-903 São Paulo SP. cia doméstica, Violência contra a mulher, Violência
vawbr@usp.br por parceiro íntimo, Serviços de saúde para mulheres
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D’Oliveira AFLP et al.

Introdução Mas o que os serviços de saúde podem fazer


em relação ao problema? Qual seria o seu papel
Este artigo trata de alternativas para o trabalho na específico no cuidado à questão? Seria a violência
saúde, em especial na atenção básica, ou primária, realmente uma questão de saúde ou os serviços
ao se tomar a violência de gênero contra a mulher deveriam apenas tratar as consequências de sua
como alvo de suas práticas. Está baseado em cator- ocorrência?
ze anos de experiência do Grupo de Pesquisa e In- As respostas nesse caso não são simples. Inter-
tervenção Violência e Gênero nas Práticas de Saúde nacionalmente, especialmente nos Estados Unidos
(Departamento de Medicina Preventiva/FMUSP) e Canadá, a estratégia mais propagada é a do ras-
em lidar com capacitação e supervisão dos profis- treamento de violência doméstica para todas as
sionais de saúde na temática da violência doméstica usuárias, dada a enorme prevalência do problema
e sexual contra a mulher; criação e implementação (em torno de um terço a metade das mulheres) e a
de uma tecnologia específica de cuidado às mulhe- falta de fatores de risco bem configurados e predi-
res em situação de violência para atenção primária; tores dos casos. No entanto, esta proposta, ainda
e formação e aprimoramento de redes de cuidados que bastante divulgada e implantada em diversos
no Distrito Escola do Butantã, Zona Oeste de São serviços, ainda que promova algum tipo de visibi-
Paulo, objetivando uma atuação intersetorial local. lidade da violência, tem apresentado baixa adesão
Busca-se basear a intervenção em foco nos es- dos profissionais e pouca consolidação nos servi-
tudos teóricos e empíricos produzidos sobre o ços, por diversos motivos. A discussão na literatu-
tema, tanto de escopo nacional quanto internacio- ra é grande, levantando, além da baixa adesão, a
nal, tomando-se, portanto, no que tange à violên- inexistência de avaliações que comprovem a ino-
cia, a gênero e ao trabalho em saúde, um quadro cuidade da estratégia e especialmente sua efetivida-
teórico referencial e uma determinada definição de, em termos das medidas tomadas a partir da
conceitual da violência de gênero. identificação dos casos, condições necessárias para
A violência contra a mulher passa a ser tema de a recomendação de um screening universal8,9.
estudo e intervenção na área da saúde a partir dos Por outro lado, uma grande parte das inter-
anos noventa, ao mesmo tempo em que se firma venções realizadas rotineiramente para outros pro-
internacionalmente como questão de direitos hu- blemas de saúde não são sustentadas por evidên-
manos1. Decorridos já seis anos do relatório da cias científicas e a violência de gênero é muito pre-
OMS sobre violência e saúde2, torna-se conhecido valente e tem graves consequências para a saúde.
para os profissionais de saúde o fato de que a vio- Argumenta-se que a pergunta a princípio teria
lência contra a mulher tem alta magnitude e rele- pouco potencial de causar algum dano, o que sus-
vância na saúde. Sabe-se já que mulheres que vi- tentaria a proposta de busca ativa de rotina en-
vem/viveram violência doméstica e sexual têm mais quanto não são produzidas evidências científicas
queixas, distúrbios e patologias, físicos e mentais, que tragam maiores informações9.
e utilizam os serviços de saúde com maior frequ- À identificação segue-se, na maioria dos pro-
ência do que aquelas sem esta experiência3. As tocolos, propostas do registro adequado, do estí-
mulheres podem apresentar-se a serviços de ur- mulo ao trabalho em equipe, da garantia de sigilo
gência e emergência por problemas decorrentes e privacidade e do acionamento da rede interseto-
diretamente da violência física ou sexual (traumas, rial existente, garantindo-se os princípios de não
fraturas, tentativas de suicídio, abortamentos, etc.) julgamento e respeito às decisões da mulher.
ou recorrer a serviços de atenção primária em de- Uma recente revisão das estratégias utilizadas
corrência de sofrimentos pouco específicos, doen- pelos países de renda média ou baixa na saúde10
ças crônicas, agravos à saúde reprodutiva e sexual mostra a organização de serviços baseados em
ou transtornos mentais que ocorrem em maior hospitais secundários ou terciários e também em
frequência nestes casos4. Ações preventivas, para- unidades de atenção primária, mas com grandes
doxalmente, são menos utilizadas por estas mu- desafios na articulação entre eles e com a rede in-
lheres, tendo elas menores chances de realizarem o tersetorial. Alguns serviços, especialmente os hos-
Papanicolaou5 ou utilizarem condom6. pitalares no modelo one stop crisis center, incluem
No entanto, este uso do serviço, ainda que fre- também a assistência jurídica e policial no mesmo
quente, é pouco resolutivo. Da perspectiva dos pro- local. Outros trabalham com referenciamento, mas
fissionais, estes casos tornam-se motivo de frus- ainda são poucos os modelos e raras as avaliações,
tração e impotência7, e, da perspectiva do sistema não havendo consensos estabelecidos, com prós e
de saúde, uma demanda que gera altos custos com contras para cada uma das possibilidades apre-
resultados muito pouco efetivos. sentadas. A articulação, seja interna à saúde, seja
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com a rede intersetorial, ainda é bastante rara e de questão da invisibilidade da violência, mostran-
incipiente. do distintas formas possíveis ou em uso de torná-
Qual deveria então ser a atuação dos serviços la mais visível, a depender de sua definição ou com-
de saúde em um país como o Brasil? O que podem preensão como problema, gerando formas diver-
eles fazer para detectar e, ainda mais crítico, traba- sas de lidar com as dificuldades de revelação. Tam-
lhar os casos de violência além daquilo que já fa- bém se aborda a importância do trabalho em equi-
zem, ou seja, tratar as patologias decorrentes? E pe e das redes intersetoriais, discutindo especial-
seria isto necessário e factível? mente a perspectiva da atenção primária na pro-
Queremos defender aqui que a forma como posta de um cuidar integral11.
compreendemos e delimitamos o problema a ser
trabalhado é essencial para a intervenção, já que
para cada definição do que venha a ser violência e Estratégias iniciais de enfrentamento
qual a sua relação com a saúde, uma determinada da violência de gênero na saúde:
intervenção é proposta e realizada, respondendo a o cuidado aos casos de violência sexual
finalidades sociais diversas. Trata-se, portanto, de
pensar quais os objetivos da ação em saúde e qual A primeira aproximação do campo da saúde com
o seu lugar na produção e reprodução de modos a violência contra a mulher no Brasil foi a implan-
de viver e adoecer, com as crenças, valores e atitu- tação, entre 198912 e 199013, de um primeiro serviço
des culturalmente dado na saúde e na sociedade de saúde que realizava o aborto nas situações pre-
brasileira de modo geral. vistas na Constituição brasileira desde os anos
O uso reiterado e ineficaz dos serviços de saú- quarenta (estupro e risco de vida para a mãe). As-
de, tanto de urgência e emergência como de aten- sim, o problema incorpora-se à saúde e dá visibi-
ção primária, decorre, a nosso ver, da redução do lidade nesse campo por sua delimitação de violên-
problema às suas manifestações no corpo enten- cia do tipo sexual e cometida por estranhos. De
dido da perspectiva biomédica, e da consequente outro lado, a medida está mais voltada para a pos-
invisibilização das situações de violências envolvi- sibilidade do aborto do que para o enfrentamento
das. Este processo, se tem historicamente uma da violência.
comprovada eficácia técnica e simbólica, é conce- Posteriormente, muitos desses serviços foram
bido como medicalização, reduzindo a patologias criados pelo Brasil e, em 2002, havia 245 serviços
problemas que, além de médico-sanitários, são de saúde capacitados a atender mulheres vítimas
sociais. Desvelar a violência no interior dos servi- de violência sexual e 39 hospitais oferecendo a rea-
ços de saúde é, portanto, fundamental para que a lização do aborto legal13.
situação possa ser compreendida em seu todo Apoiando esses serviços, a Norma Técnica so-
médico e social e práticas assistenciais adequadas e bre Prevenção e Tratamento dos Agravos Resul-
intersetoriais, com a qualidade de um cuidado in- tantes da Violência Sexual contra Mulheres e Ado-
tegral, possam ser oferecidas. Este processo resul- lescentes, publicada em 1999 e com diversas reedi-
taria no entrosamento da saúde com os direitos ções posteriores14, criou um protocolo de atenção à
humanos (e o das mulheres), lidando-se com sua violência sexual para mulheres em idade reproduti-
violação em busca da recuperação desses direitos va, detalhando a profilaxia de DST, medicação an-
no restabelecimento da ética nas relações interpes- tiretroviral, gravidez indesejada e o apoio psicosso-
soais, além do tratamento integrado dos agravos cial a ser prestado a estas mulheres. Apesar de essa
à saúde constatados e recorrentes. Esta perspecti- norma ser escrita para mulheres e adolescentes, a
va recoloca, portanto, os objetivos e o papel dos edição de 2005 traz as doses de medicação também
serviços de saúde, reorientando-os para um cui- para crianças, ainda que elas não sejam alvo de
dado integral na assistência cotidiana e, sobretu- outras ações específicas no restante da proposta.
do, fazendo-os somar com outras atuações soci- Dos serviços existentes, nem todos consegui-
ais em movimentos ético-políticos contra a violên- ram uma implantação efetiva. Alguns realizam
cia e a favor de seu controle e prevenção. quase nenhum ou nenhum aborto13,15, outros não
Recuperemos as práticas, serviços e instituições são conhecidos dentro do próprio hospital em que
que vêm sendo constituídos para lidar com pro- atuariam e tampouco são reconhecidos pelos ser-
blema nos últimos anos no Brasil, focalizando es- viços componentes da rede que poderia encami-
pecialmente o papel da saúde por meio de uma nhar casos, seja na saúde ou intersetorial15.
rápida recuperação da implantação de serviços Além disto, a grande maioria esta concentrada
voltados à violência contra a mulher no país. Nes- nas grandes capitais, são poucos para a demanda
sa abordagem, aponta-se para a, ainda hoje, gran- potencial e atendem, na maioria dos casos, a vio-
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lência sexual prevista, isto é, a cometida, no caso estão presentes no cotidiano dos serviços e geram
das mulheres adultas, por estranhos. No caso das a demanda reiterada e com baixa resolutividade já
crianças, os agressores serão mais os conhecidos discutida.
do que os estranhos, porque os casos são majori- Ainda quando enunciada a violência, ela não é
tariamente familiares16. reconhecida para o trabalho, já que não existem
Portanto, estes serviços, extremamente neces- ações previstas para isto. Ou seja, para a violência
sários, não recobrem, ainda, toda a demanda ge- doméstica, não há o equivalente à norma técnica
rada pela própria violência sexual, por um lado, e para a violência sexual, que orienta as ações a serem
pouco podem fazer pela violência não sexual, como realizadas. Portanto, ainda que a mulher diga que
as físicas ou psicológicas, contra a mulher, por foi agredida física ou sexualmente, o profissional
outro. poderá até comentar sua opinião a respeito, mas o
As taxas obtidas em estudos populacionais de- fará, como mostra estudo a respeito7, como uma
monstram que a maioria das violências, mesmo a intervenção de caráter pessoal e não como procedi-
sexual, contra mulheres adultas é perpetrada por mento técnico. Na maior parte dos casos assistidos
parceiros17 e estes episódios acabam praticamente nos serviços de saúde, um conjunto de profissio-
ausentes destes serviços. O apoio fornecido pela nais trata o conjunto das demandas de uma mes-
norma técnica, por sua vez, tampouco serve a es- ma mulher, com pouco conhecimento de cada um
sas violências, já que mulheres envolvidas em vio- sobre o trabalho dos outros e muito menos ainda
lências repetitivas nas quais o agressor e a vítima sobre a situação de violência que pode estar envol-
moram juntos e/ou são familiares não podem se vida em várias das queixas e sintomas relatados.
beneficiar do protocolo prescrito (medicação pro- Queremos tratar das potencialidades da aten-
filática), pela cronicidade da situação e a recorrên- ção primária para intervenção sobre o problema,
cia do abuso. A proposta tecnológica, pensada em de uma perspectiva integral. Integral porque se trata
função da garantia do aborto legal previsto em lei de acolher a violência como problema em toda a
e dirigida a mulheres em idade reprodutiva, tam- sua complexidade, pensando na promoção da não
bém se adéqua pouco ao cuidado da violência se- violência, prevenção e cuidado aos casos, tanto da
xual cometida contra homens e crianças, já que as perspectiva do tratamento de suas consequências
equipes geralmente não prevêem profissionais e como da especificidade do setor saúde na aborda-
ações específicos, além de, no caso dos homens, gem do problema violência em si, que sendo um
existir dificuldade adicional em atendê-los, por tema complexo, interdisciplinar, leva à necessária
não serem considerados como potenciais vítimas multiprofissionalidade e intersetorialidade da aten-
de agressão, dadas as concepções de gênero aderi- ção, como se verá. Integral também porque se tra-
das a maior parte da equipe profissional18. ta de uma decisão assistencial em que a mulher
usuária deve ser considerada como centro da to-
mada das decisões para a atenção e participar des-
A potencialidade da atenção primária no sas decisões referentes ao seu cuidado.
atendimento à violência por parceiro íntimo A atenção primária merece um destaque quan-
do se trata de ações referentes à violência contra a
Ainda que a violência contra as mulheres tenha mulher por diversas razões. Em primeiro lugar,
como principais agressores os parceiros íntimos, este nível de atenção tem grande ênfase nas ações
o reconhecimento da violência psicológica, física e de promoção e prevenção de saúde. Além disto,
sexual cometida por parceiro íntimo em serviços tem um aumento de cobertura e incremento re-
de atenção primária à saúde ainda é muito peque- cente, com valorização da ida ao domicílio através
na. Em estudo realizado na região metropolitana da crescente implantação da Estratégia de Saúde
de São Paulo, em dezenove serviços de saúde de da Família. Este nível de atenção enseja um acesso
atenção primária, a violência física e/ou sexual por frequente, constante e legitimado às mulheres ao
parceiro íntimo na vida foi de 45,3% (IC 95%: longo de toda a sua vida, uma relação mais próxi-
43,5;47,1) e por outros que não o parceiro foi de ma com a comunidade e é dirigida a problemas
25,7% (IC 95%: 25,0;26,5). Observou-se registro comuns de saúde muito associados com violência
de episódios de violência, entretanto, em apenas doméstica e sexual contra a mulher.
3,8% dos prontuários19. Em relação ao enfoque na promoção da saúde
Cabe lembrar, portanto, que os serviços de aten- e prevenção, esta perspectiva acaba sendo a que
ção primária já assistem, em grande medida, casos possui menor acúmulo no trabalho com a ques-
de violência doméstica cometida contra mulheres. tão. Se tomarmos a violência doméstica contra as
Ainda que não reconhecidos como tal, estes casos mulheres como relacionada à desigualdade e aos
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conflitos derivados de transformações recentes nas usuários do serviço. Ao contrário do que vem acon-
relações de gênero, e também como rompimento tecendo em alguns programas e unidades, os ACS
da comunicação interpessoal, todas as ações diri- não deveriam ter papel central na detecção e orien-
gidas a uma maior equidade de gênero e à possibi- tação e assistência dos casos, já que a sua proximi-
lidade de comunicação interpessoal não instru- dade com a comunidade os coloca em posição de
mental podem contribuir para sua diminuição. maior risco de quebra de sigilo e vulnerabilidade à
No sentido da prevenção dos casos e promo- própria violência. Mas no que diz respeito a serem
ção da não violência, diversas ações podem ser promotores da não violência por meio da divulga-
sugeridas, desde uma perspectiva populacional, e ção e informação sobre direitos e serviços existen-
que não passam necessariamente pela ação dos tes na comunidade e fora dela, sim, seriam agentes
serviços de saúde. São elas: as campanhas em mei- privilegiados.
os de comunicação de massa; a educação para a Devemos considerar, ainda, que o ambiente mais
igualdade de gênero; o controle de armas na socie- acolhedor ao tema e sem temor de tratá-lo publica-
dade; o controle da violência urbana; o controle da mente, tal como a colocação de cartazes e folhetos
publicidade e do abuso de álcool; a igualdade de nas unidades, é uma prática que pode facilitar a
salários entre homens e mulheres; a igualdade na revelação e a emergência de casos, lembrando-se
participação política. que o cuidado mesmo aos casos já instalados tem
Estas ações costumam ter pouca articulação uma forte dimensão preventiva: testemunhar vio-
com o trabalho assistencial e praticamente nenhu- lência entre os pais, na infância, ou sofrer violência
ma avaliação neste sentido. Alguns poucos traba- quando criança é importante fator de risco, tanto
lhos internacionais demonstram menores taxas de para meninos como para meninas, para o envolvi-
violência de gênero contra mulheres em locais com mento em situações de violência na vida adulta21.
menor desigualdade de gênero20, mas este ainda é Portanto, o cuidado aos casos pode proteger as cri-
um tema em que há muito por explorar. anças e prevenir a transmissão intergeracional da
A prevenção, entretanto, também passa por violência, ao mesmo tempo em que pode prevenir
ações que podem ser realizadas pelos serviços de as constantes reiterações dos episódios para a pró-
saúde. Em primeiro lugar, o combate à violência pria mulher em situação de violência. O cuidado
institucional e o estímulo à integralidade da aten- aos homens, na mesma direção, pode trazer uma
ção são promotores da boa comunicação e rela- perspectiva crítica e prevenir futuros novos episó-
ções interpessoais no serviço, denotando de modo dios de violência com as mesmas ou outras mulhe-
exemplar a prática da não violência e, por contras- res com quem se relacionem, sejam elas parceiras,
te, apontando sua recusa e a não reprodução desta familiares ou colegas e conhecidas.
no interior dos serviços. Assim, o propósito de Além desses aspectos já tratados, o que mais
tornar visível a violência como questão, atuando poderia a atenção primária à saúde realizar? Have-
contra sua banalização, é uma prática que começa ria uma atuação específica de seus profissionais?
“em casa”, no próprio serviço de saúde. O trabalho Quais podem ser estas ações específicas dos pro-
orientado pelos princípios do PAISM (Programa fissionais de serviços de atenção primária em rela-
de Atenção Integral à Saúde da Mulher), com a ção ao problema da violência doméstica contra as
promoção dos direitos reprodutivos e sexuais e o mulheres?
trabalho com conflitos de gênero da perspectiva Posto desse modo, a tomada da violência como
de fortalecimento das mulheres e emancipação de objeto da intervenção das ações em saúde corres-
todos os usuários e trabalhadores, é fundamental ponde, para o trabalho de seus profissionais, con-
neste sentido. ceitualmente, à constituição da violência como
Além disto, é necessário que se compreenda o objeto desse trabalho, exigindo a definição de uma
papel de todos os profissionais do serviço, em es- dada abordagem do objeto, vale dizer, uma dada
pecial dos Agentes Comunitários de Saúde (ACS), aproximação da violência para a sua transforma-
na dimensão preventiva do serviço. Se todos os pro- ção após a intervenção técnica ou o agir profissio-
fissionais podem ser divulgadores de direitos hu- nal. E isto também exige definir em mesmo sentido
manos e da rede intersetorial que presta apoio à os instrumentos materiais e os saberes a serem
violência, e também provê trabalho, moradia, cre- mobilizados no trabalho cotidiano dos profissio-
che, escola, que são todos elementos fundamentais nais na atenção primária. Portanto, devem ser re-
para a emancipação e uma vida livre de violência, definidos nesta atenção os arranjos das ações pro-
os ACS encontram-se na específica situação de aces- fissionais e de fluxos, atividades e protocolos pre-
so e relação diferenciada frente às questões do do- vistos para o problema, bem como as formas de
micílio e da vida comunitária das/dos usuárias/ interação na equipe de trabalho22,23. Propomos aqui
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que a finalidade última do trabalho com violência Um modelo de atenção à violência


contra a mulher seja o fortalecimento das mulhe- implantado: o atendimento
res e a emancipação de todos os envolvidos (po- a Conflitos Familiares Difíceis (CONFAD)
pulação e profissionais), e não apenas o alívio da
dor e o tratamento dos sintomas e agravos conse- Implantamos, em um distrito da região oeste de
quentes à violência, o que reorientaria os objetivos São Paulo, uma atenção específica para casos de
mais tradicionais de base biomédica do trabalho violência contra a mulher no Centro de Saúde Es-
profissional em saúde. Para isto, é necessária uma cola Samuel B. Pessoa (do Butantã), articulado ao
forma de agir com uma importante dimensão in- atendimento à violência sexual que ocorre no Hos-
terativa, baseada na escuta, na orientação, no aco- pital Mario Degni, secundário, e concomitante à
lhimento, com ênfase na comunicação com a mu- implantação e treinamento conjuntos para todos
lher usuária e entre os profissionais, na direção de os serviços de saúde do distrito. Chamamos esta
projetos assistenciais negociados e construídos em proposta de atendimento voltada aos conflitos fa-
conjunto para cada caso, tendo como referência a miliares difíceis de CONFAD, evitando o termo vi-
garantia de direitos e a emancipação. Mas como olência, que não é utilizado por uma parte signifi-
transformar os valores, especialmente relativos às cativa das mulheres para definir as situações do-
conformações sociais de gênero aos quais muitos mésticas, que são a esmagadora maioria da de-
aderem, em ação culturalmente crítica no cotidia- manda atendida25. Esta proposta de trabalho, que
no dos serviços? Como realizar esta proposta, que vem sendo multiplicada em outras unidades de
é ética e política, além de assistencial, na forma de saúde em São Paulo, no Distrito de Saúde do Bu-
uma técnica compreendida como parte do escopo tantã, em outras Unidades e fora dele, como no
profissional no interior dos serviços? Centro de Saúde Escola Alexandre Vranjac (da
Expõe-se, a seguir, uma possibilidade nessa di- Barra Funda), necessita certas condições instituci-
reção: uma “técnica de conversa”, cuja base é a de- onais prévias que são, elas mesmas, o início do
tecção, escuta e orientação qualificadas para o tra- trabalho contra a violência e a favor de uma inte-
balho com violência contra as mulheres na atenção ração de maior qualidade entre profissionais e
primária à saúde. Tal possibilidade, resultado das população. São elas: o compromisso e envolvimen-
reflexões teórico-conceituais, dos dados produzi- to de todos os profissionais da instituição e ine-
dos nas pesquisas e da experiência conduzida e pre- quívoco apoio da gerência; a crítica à violência ins-
liminarmente avaliada em uma unidade de atenção titucional e estabelecimento de relações de escuta e
primária, aponta como essa técnica atuaria como respeito no interior da unidade de modo geral; o
elemento orientador da conversa que pode ocorrer trabalho comprometido com o ideal da integrali-
cotidianamente nos serviços de saúde, nos encon- dade, defesa dos direitos reprodutivos e sexuais e
tros entre profissionais e usuários. Se pensarmos crítica à desigualdade de gênero, com implantação
os serviços de atenção básica como uma rede de dos princípios do PAISM.
conversações24, o assunto da violência contra a Para tanto, em primeiro lugar, todos os pro-
mulher necessita de certas condições para ser con- fissionais e trabalhadores do serviço foram sensi-
versado da perspectiva do fortalecimento e eman- bilizados para os temas da violência contra a mu-
cipação. Trata-se, pois, não de uma conversa pes- lher, dos direitos humanos e das mulheres e das
soal e de aconselhamentos que se fariam pela ami- relações de gênero. O processo incluiu: os profissio-
zade ou simpatia pessoal ao caso. Em analogia à nais da recepção e trabalhadores da limpeza e ad-
anamnese clínica, esta é uma conversa específica, ministração; pessoal e técnicos da farmácia; pro-
especialmente formulada e realizada para produzir fissionais e técnicos do atendimento odontológico
orientações pertinentes ao caso e encontrar formas e da assistência social; médicos, enfermeiras e pes-
de resolução da situação em que se encontra a mu- soal auxiliar de atuação em outros setores de aten-
lher. Por isto é uma técnica, isto é, uma aproxima- dimentos que não o das mulheres, como a pedia-
ção transformadora de seu objeto de intervenção tria, vacinação, saúde mental e saúde do adulto de
na direção de determinada finalidade que esta ação modo geral (no caso incluindo os que atendem
pretende alcançar, como dito, a de fortalecimento adolescentes e idosos), além dos ACS do serviço.
emancipatório da mulher e crítica à banalização da Esta primeira sensibilização é fundamental e deve
violência e desigualdades de gênero com valoriza- ser mantida continuadamente no tempo, com en-
ção dos direitos humanos e sociais. contros regulares a cada seis meses ou anualmen-
te, para que o trabalho tenha consistência e seja
apropriado por todos. Um cuidado especial preci-
sa ser tomado porque não se deve esquecer que a
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grande maioria dos trabalhadores de saúde são . práticas que resultam em restrições de liber-
mulheres. A enfermagem, especialmente, é uma dades, como não disponibilizar dinheiro para a
categoria que refere altas taxas de violência do- lida diária; ameaças de agressão ou brigas verbais
méstica26. Os profissionais de saúde, portanto, associadas às saídas;
necessitam abordagem especial, levando em con- . humilhação; maus tratos, desqualificações
sideração que muitas também passam por situa- públicas ou privadas; xingamentos e ofensas por
ções semelhantes e devem ser acolhidas pelo servi- conhecidos e/ou familiares;
ço desde o treinamento, sem exposição. Viver ou . discussões e brigas verbais frequentes;
ter vivido violência não impossibilita o trabalho . ameaças de agressão; ameaças com armas ou
com as pacientes, mas deve ser considerado no trei- instrumentos de agressão física;
namento e supervisão dos profissionais. A possi- . relações sexuais forçadas;
bilidade de trabalho melhor ou pior com o tema . submissão a práticas sexuais indesejadas;
depende da elaboração que a profissional fizer so- . agressão física de qualquer espécie (incluindo
bre ele e suas vivências e também do seu desejo de atos como bater, empurrar, puxar cabelos, belis-
trabalhar com o assunto ou não. car, estapear, espancar, agredir com objetos, quei-
Este treinamento também é fundamental por- mar, tentar estrangular, ameaçar o uso de, ou efe-
que a detecção é o primeiro obstáculo ao trabalho tivamente usar, armas de qualquer tipo), seja a
efetivo. A detecção depende, em grande parte, da agressão sofrida ou cometida, contra adultos ou
certeza dos profissionais de que haverá desdobra- crianças.
mentos assistenciais de boa qualidade, ainda que Quanto às repercussões na saúde, considera-
não se esgotem na assistência prestada por cada mos os sintomas e sinais de natureza física e men-
um deles isoladamente. Assim, a proposta do tal, tais como:
CONFAD é de haver um espaço específico, com . Transtornos crônicos, vagos (inespecíficos
profissionais com treinamento mais detalhado e dentro da nosografia médica) e repetitivos;
tempo maior para trabalhar com maior profun- . Entrada tardia no pré-natal;
didade o problema da violência, mas todos os pro- . Companheiro demasiadamente atento, con-
fissionais devem estar envolvidos e apoiar a detec- trolador e que reage se for separado da mulher;
ção dos casos. Para isto, é necessário operacionali- . Infecção urinária de repetição (sem causa se-
zar uma definição de violência tal que permita de- cundária encontrada);
limitar o que seja um caso. A definição adotada, . Dor pélvica crônica;
nesta proposta, baseia-se em dois parâmetros prin- . Síndrome do intestino irritável;
cipais, derivados diretamente das pesquisas sobre . Transtornos na sexualidade;
a violência de gênero contra as mulheres: a ocor- . Complicações em gestações anteriores, abor-
rência de atos violentos, caracterizando uma vi- tos de repetição;
vência da mulher de situações de violência, que são . Depressão;
atos bem discriminados e concebidos como com- . Ansiedade;
portamentos concretos e particulares de exercício . Transtorno do estresse pós-traumático;
da desigualdade de gênero por parte do agressor; e . História de tentativa de suicídio ou ideação
a presença de demandas e queixas repetidas pelas suicida;
mulheres no serviço que são estatisticamente as- . Lesões físicas que não se explicam como aci-
sociadas, conforme toda a literatura, à violência, dentes.
funcionando como indicadores indiretos desta. Nos casos em que alguma destas condições é
Discriminam-se, a seguir, na forma de um rol identificada, os profissionais são treinados a in-
de ocorrências, tanto os comportamentos quanto vestigar violência. A detecção é muito importante,
as demandas clínicas das usuárias, com o propó- já que tanto mulheres como profissionais podem
sito de indicar a importância, para uma ação do banalizar a ocorrência, desconsiderá-la como vio-
tipo técnico, de se delimitar o mais precisamente lência ou perceber o problema da violência como
possível os elementos componentes do diagnósti- exterior à saúde. O primeiro obstáculo apontado
co em questão: o caso de violência. Assim, situação por profissionais é a detecção dos casos, já que há
de violência seriam: uma impressão de que as mulheres não gostariam
. ataques a entes queridos, objetos pessoais ou ou ficariam constrangidas de falar sobre a violên-
animais de estimação; cia sofrida e que a esconderiam dos profissionais.
. restrição de liberdades individuais (impedi- No entanto, na avaliação realizada, ainda que bas-
mento de trabalhar fora; estudar; ou sair de casa, tante preliminar, desta nossa experiência de traba-
mesmo para visitas a familiares); lho, fica claro tanto o benefício da revelação para
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D’Oliveira AFLP et al.

as mulheres, que manifestam querer e sentir-se das e acolhidas em suas situações de violência, raiz
melhor depois de feita essa revelação, como o fato de uma parte dos problemas. A não conjugação de
de que quanto mais o profissional é treinado na esforços nesse sentido, agregando-se a atenção à
questão mais fácil fica realizar a detecção dos ca- violência às investigações clínicas, pode levar o pro-
sos. As mulheres precisam e querem falar sobre a fissional a cometer erros diagnósticos graves, tam-
violência de uma forma privada, sigilosa e não jul- bém do ponto de vista técnico-científico. As quei-
gadora do acontecido por parte do profissional. xas clínicas precisam ser levadas em conta, assim
Não se trata aqui de um interrogatório ou de uma como a história da violência, para que se possa
confissão. Basta escutar e estar atenta ou atento, compreender os casos em seu todo, enquanto um
dando crédito ao relato e produzindo uma narra- cuidado integral a ser dispensado. Tal conjugação
tiva que lhe permita identificar os elementos da de esforços não necessariamente constitui traba-
história com potenciais de transformar a situação lho de um só profissional, mas de uma equipe de
de violência. profissionais de diferentes áreas de atuação.
As mulheres falarão daquilo que queiram e lhes Outra questão importante apontada pela lite-
interesse. Para isto, é muito importante que a reve- ratura é a alegação dos profissionais de não sabe-
lação da violência não se transforme em encami- rem como perguntar sobre a violência. Diversas
nhamentos automáticos, pressão por determina- formas de perguntar são possíveis, como demons-
das ações (ir à DDM ou separar do agressor, por tra o rol abaixo, e cada profissional deve encontrar
exemplo). Perceber que a visibilidade da violência é a mais apropriada para cada mulher e para si pró-
importante para o cuidado em saúde é central, mas pria (o) na relação estabelecida com o caso. Per-
não se trata aqui de um interrogatório policial – a guntas diretas podem ser importantes, desde que
mulher pode, por diversas razões, temer a revela- não estigmatizem ou julguem as mulheres, para
ção em um determinado momento, e isto deve ser não se romper o interesse demonstrado pelo servi-
respeitado. Tampouco se trata de confissão, sendo ço relativamente ao problema.
mais importante que ela perceba que o serviço se Pode-se perguntar indiretamente:
interessa pelo problema de uma forma não julga- Sabe-se que mulheres que apresentam proble-
dora e percebe as suas repercussões para a saúde, mas de saúde ou queixas como os seus muitas ve-
tendo recursos para apoiar os casos. É importante zes têm problemas de outra ordem em casa. Por
que a mulher possa contar aquilo que lhe parece isto, temos abordado este assunto no serviço.
significativo, e que, nos diversos contatos com o Está tudo bem em sua casa, com seu compa-
serviço, ela vá percebendo que o sigilo e a seguran- nheiro? ou
ça serão levados em conta, assim como suas opi- Você está com problemas no relacionamento
niões, valores e vontades. Perguntas diretas são im- familiar? ou
portantes, mas a escuta interessada ainda é o me- Você se sente humilhada ou agredida? ou
lhor instrumento de detecção. Você acha que os problemas em casa estão afe-
Pode acontecer nos serviços que, ao se ouvir a tando sua saúde? ou
revelação da violência, as demais queixas sejam Você e seu marido (ou filho, ou pai, ou fami-
desconsideradas e tratadas como menos impor- liar) brigam muito? ou
tantes. Este comportamento parte do princípio de Quando vocês discutem, ele fica agressivo?
que as queixas não se constituiriam em sofrimen- Pode-se também perguntar diretamente:
tos efetivos, mas por estarem associadas a um pro- Como você deve saber, hoje em dia não é raro
blema da esfera social, não sendo sinais de doenças escutarmos sobre pessoas que foram agredidas fí-
“verdadeiras”, as que correspondem à nosografia sica, psicológica ou sexualmente ao longo de suas
médica. Ou seja, os sintomas revelados não cor- vidas, e sabemos que isto pode afetar a saúde mes-
responderiam a lesões a serem encontradas no mo anos mais tarde. Isto aconteceu alguma vez
corpo conforme definido pela biomedicina, mas com você? ou
seriam percebidos como, grosso modo, falsos si- Já vi problemas como o seu em pessoas que
nais, “invenções da cabeça” da mulher. As mulhe- são fisicamente agredidas. Isto aconteceu com você?
res que sofrem violência apresentam, conforme a ou
literatura, mais sofrimentos e demandas aos servi- Alguém lhe bate? ou
ços, o que não significa que não mereçam investi- Você já foi forçada a ter relações com alguém?
gação clínica, muito pelo contrário. Estas mulhe- Identificado o problema, é oferecido à mulher
res têm maior risco efetivo de patologias clínicas e um espaço apropriado para a discussão mais apro-
mentais, e devem ser investigadas com cuidado e fundada do problema e de suas possibilidades de
cautela, ao mesmo tempo em que são aconselha- enfrentamento, que é a atividade CONFAD.
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Esta atividade dura cerca de uma hora e pode acolhedor. Este ambiente acolhedor caracteriza um
ser reagendada por até mais três vezes, contabili- quarto princípio.
zando a princípio um máximo de quatro sessões. Outro princípio é o desenvolvimento de víncu-
Na avaliação feita, encontrou-se que a média de los de confiança, o que requer atitude de respeito
duração está entre cinquenta a sessenta minutos e para com a mulher, ao se demonstrar interesse pela
a grande maioria das mulheres têm demandado sua situação, e um procedimento de escuta sem
no máximo duas sessões. Como já dito, nela ope- julgamento da história narrada. A confiança está
ra-se uma técnica específica de conversa que pro- associada ao sigilo e à privacidade, que promovem
duz uma orientação, em conjunto com a mulher, o sentimento de segurança na mulher que relata de
mapeando o problema e alternativas de solução, que o profissional está interessado em apoiá-la e
isto é, formas de lidar com a situação de violência em construir o melhor para ela, e não vai traí-la ou
que não configura uma única forma sempre para desapontá-la em seus desejos expressos e nas com-
os casos ou o mesmo mapa de alternativas para binações firmadas. A sinceridade é fundamental
todas, como seria o caso de um protocolo tradici- aqui de parte a parte. A postura de respeito, por
onal. Pode ser conduzida por qualquer profissio- sua vez, a valores e opiniões que podem ser muito
nal de saúde treinado, seja médica, enfermeira, as- diversos dos do profissional é fundamental, bus-
sistente social ou psicóloga, mas a preferência é de cando a comunicação interessada na compreen-
que a condução seja feita por uma profissional são do outro como sujeito livre e autônomo. Tal-
mulher, buscando a identidade de gênero e uma vez a postura mais difícil seja essa resultante do
maior solidariedade e cumplicidade. respeito à usuária que é a escuta sem julgamento,
Seus princípios e conteúdos são todos interliga- escuta que busca a compreensão mútua sem pro-
dos entre si. Um primeiro princípio diz respeito ao curar culpados e inocentes. Assim, o profissional
tempo disponibilizado para a atividade, pois em- não deve julgar, nem moralmente a mulher, por
bora se tenha previsto cerca de uma hora, o tempo suas dúvidas, comportamentos específicos ou con-
deverá ser aquele necessário para que, uma vez feito dutas e valores que adote, nem legalmente o agres-
o vínculo de confiança entre o profissional e a mu- sor, indicando à usuária uma atitude de “punição”
lher, e esta se sinta bem em seu relato, a revelação da ao agressor, embora adote de modo claro a não
mulher define o tempo necessário. Ele já é maior do violência como sua conduta ética e social, e de-
que aquele habitualmente reservado às consultas monstre seu agir no caso como interessado em
médicas e de enfermagem, e algumas mulheres pre- resolver a violência na direção das relações dialó-
cisam um pouco menos de tempo e outras, de um gicas e interativas. Nisto mostra sua ação como
pouco mais. De toda a forma, saber que este tempo diversa da ação da justiça (que pode e deve ser
será disponibilizado dá mais condições para os pro- acionada em muitos casos) ou de líderes religiosos
fissionais que identificam os casos e os encaminham na questão moral, tratando de compreender a ló-
para o CONFAD de que possam fazê-lo de forma gica das ações e os valores dos envolvidos. Não
mais preliminar, simplificando o encaminhamen- significa que o profissional não tenha seu código
to, pois se tem a garantia que haverá aprofunda- de ética e seu agir moral, mas, para diferenciar essa
mento posterior dos casos. Outro princípio im- conversa de uma atividade de caráter pessoal e
portante é o da privacidade: este princípio geral do dotá-la de sentido profissional, seu desempenho
cuidado em saúde toma aqui uma importância ain- não inclui recomendações de ordem moral, religi-
da maior. O assunto da violência só pode emergir osa ou punitiva. O reconhecimento dos próprios
em encontros em ambientes que garantam a priva- preconceitos é necessário para que concepções rí-
cidade. Isto significa, no cotidiano dos serviços, sa- gidas acerca, por exemplo, de relações familiares,
las fechadas, encontros privativos e que não pos- fidelidade, relação com álcool e drogas ou outras
sam ser escutados por outros, sejam profissionais, não obstaculizem o trabalho de compreensão da
usuários ou familiares. Um terceiro princípio será a mulher e o manejo da conversa no sentido da afir-
questão do sigilo, pois é fundamental, inclusive para mação dos direitos humanos e de uma ética da
a segurança dos envolvidos. Estende-se ao uso e não violência nas relações interpessoais. Esta “vigi-
manuseio dos prontuários e deve ser mantido pelo lância cultural” que o profissional deve realizar acer-
serviço, ainda que as informações possam e devam ca de seu próprio agir inclui a atitude de evitar a
circular entre a equipe. A disposição dos móveis da vitimização da mulher. É fundamental que não
sala, a fim de facilitar o encontro e o contato dife- transformemos o problema em algo naturaliza-
renciado de uma consulta médica, como por exem- do, isto é, as mulheres como vítimas por uma ca-
plo cadeiras dispostas para uma conversa, confi- racterística que lhes seria essencial, parte de suas
gura importante imagem imediata de um ambiente qualidades de ser mulher. Assim, deve-se criticar a
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D’Oliveira AFLP et al.

visão mais comum, e muitas vezes da própria . Identificação da rede de suporte social já exis-
mulher em atendimento, de que seriam as mulhe- tente – extremamente importante para evitar a vi-
res vítimas cristalizadas de uma violência natural timização, a rede de suporte existente deve ser re-
dos homens. Lembremos que a situação é produ- conhecida e valorizada – seja ela trabalho, educa-
to de relações e se as relações de gênero expressam- ção, amizades, alguém da família ou outro apoio
se por relações de poder desiguais para as mulhe- comunitário existente;
res, há sempre possibilidades de resistência e luta, e . Identificação de pontos positivos nos relatos
a escuta e a informação nos serviços podem cola- de vida – durante o atendimento, devem ser bus-
borar neste sentido. A vitimização das mulheres, cadas na história da mulher as possibilidades de
que pode ser potencializada pela identificação de relações mais igualitárias, tentando-se resgatar ele-
gênero com profissionais mulheres, é contrapro- mentos em sua experiência de vida que se configu-
dutiva ao trabalho e acaba por fortalecer a crista- rem como apoios ao exercício mais pleno de sua
lização em posições predefinidas. As mulheres subjetividade, constituindo uma reflexão no senti-
transgressoras, que traem seus maridos, revidam do emancipatório da mulher. É importante refor-
ou iniciam a violência, não encontram, neste en- çar que não existem respostas “certas” de antemão,
quadre, espaço de fala, porque tenderiam a não mas sim uma possibilidade de maior reflexão crí-
ser reconhecidas como vítimas. Antes passariam a tica sobre as situações;
ser tomadas como “provocadoras” da violência. . Identificação das conexões violência-saúde –
Outro aspecto dessa importante “vigilância cultu- a forma como a mulher entende as relações entre
ral” do trabalho do profissional é seu lidar com as suas queixas e a situação de violência e os cami-
suas próprias emoções, pois os relatos escutados nhos para a resolução de ambas são fundamen-
são fortemente mobilizadores de diversas delas, tais. O reconhecimento das conexões existentes e
sendo as mais comuns a raiva, o medo e a impo- suas formas de superação é o motivo final do tra-
tência. A consciência crítica destes sentimentos deve balho e justifica sua tomada pela saúde. Via de
ser buscada para o bom atendimento e também regra, esta conexão é bastante clara para as mulhe-
para o crescimento e aperfeiçoamento do profissi- res usuárias, por vezes de forma ainda mais con-
onal, prevenindo sua interferência moral ou pura- tundente do que para os próprios profissionais,
mente emocional reativa no trabalho assistencial. desde que este reconhecimento não leve à desqua-
Disto se discorrerá mais adiante ao ser tratada a lificação da queixas clínicas, como considerado;
questão da supervisão desse atendimento. . Valorização do relato com seu registro – o
Além dos princípios da conversa, arrolam-se a registro deve ser detalhado, para o acompanha-
seguir os conteúdos que devem ser abordados, o mento do caso por toda a equipe e para usos futu-
que é apresentado na forma de itens pelo sentido ros que possam ser necessários, inclusive para uso
técnico que se quer reforçar dessa conversa. São como evidência em processos judiciais;
eles: . Compartilhamento de informações sobre a
. Estímulo à narrativa detalhada e reflexão so- rede intersetorial de serviços – escutada a história,
bre as origens da violência (gênero e outros eixos a rede de serviços adequada à situação deve ser
de desigualdade de poder) – durante o relato, as- exposta pelo profissional para que a mulher a co-
pectos relativos a conflitos de poder baseados nas nheça e possa decidir quais apoios serão mais im-
relações de gênero (dupla moral sexual, trabalho portantes no momento para ela. Esta rede deve
doméstico, divisão e destino do dinheiro, tempo incluir, a depender dos casos, serviços policiais, de
para o lazer, etc.) podem ser apontados e discuti- assistência jurídica, psicossocial, abrigos e recur-
dos, relacionando-os às origens da violência; sos comunitários menos específicos, como ativi-
. Identificação de riscos – homicídio, suicídio, dade de cultura e lazer, educação, creche, trabalho,
violência contra crianças: na presença de riscos, moradia, etc.
estes devem ser apontados e medidas de segurança . Projetos novos de vida e decisão comparti-
podem ser tomadas. Quando violência contra cri- lhada sobre caminhos possíveis e referência aos
anças é identificada, a obrigatoriedade da notifica- serviços que ela escolher – apresentada a rede, a
ção e suas consequências devem ser discutidas, para mulher decidirá, em conjunto com o profissional
que as medidas a serem tomadas sejam no sentido que a atende, seus próximos passos na rota de aten-
da proteção das crianças, no melhor benefício e ção. A idéia de rota supõe que a transformação
com a concordância de todos. A mulher em risco das situações violentas é composta de caminhos
de morte deve ser encaminhada a abrigos e/ou aten- possíveis, decisões e ações que impulsionam ou
dimento especializado em casos de ideação ou ten- obstaculizam o caminho. Esta rota, que é conside-
tativas de suicídio; rada “crítica”27, pode ser impulsionada por este tra-
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balho, na direção definida pela mulher a partir das lência provocada por parceiros íntimos, repetindo
informações e reflexões realizadas pelos profissio- um padrão recorrente nas Delegacias da Mulher.
nais do serviço e especialmente pelo trabalho no Um aspecto, contudo, muito estimulador, foi o
CONFAD; reconhecimento, por meio do estudo dos prontu-
. Monitoramento do caminho (seguimento ou ários dessas mulheres atendidas, de que parte sig-
retorno sempre que ela o desejar) – a mulher po- nificativa delas alterou o uso da Unidade após seus
derá voltar sempre que desejar, com novas deman- atendimentos no CONFAD, diminuindo suas de-
das e/ou discutindo os resultados dos caminhos mandas de pronto-atendimento e voltando-se
tomados; mais às sessões do próprio CONFAD ou outras
. É também fundamental o apoio da gerência modalidades assistenciais programadas.
do serviço e em nível central. Ações de notificação A supervisão, por sua vez, garante a qualidade
para instituições externas aos serviços (a Vara de da atividade e ao mesmo tempo possibilita atuar
Crianças e Adolescentes, o Conselho Tutelar ou os sobre os desgastes e sofrimentos do profissional.
Fóruns) devem ser realizadas pela gerência local, A supervisão pode ser feita por profissionais espe-
complementando o trabalho dos profissionais di- cializados, de formações diversas, mas também
retamente no caso e dando respaldo institucional, entre pares, do mesmo serviço. O fundamental é
e a notificação para a Vigilância Epidemiológica que haja diálogo e reflexão sobre os casos atendi-
também necessita da estrutura da unidade e do dos, pois, apesar de princípios comuns, cada caso
incentivo da coordenação em nível central. Além é bastante singular e exige a mobilização de recur-
disto, é necessária a garantia de condições mate- sos específicos. Os casos são complexos e o seu
riais e tempo para trabalho adequado aos casos e compartilhamento, com a discussão das ações
sua supervisão. adotadas e condução, aprimora o trabalho de to-
Por fim, há que se considerar mais dois outros dos. Adicionalmente, a escuta é tão difícil quanto a
componentes essenciais de gestão da proposta, as revelação, pois mobiliza intensos sentimentos do
avaliações da atividade e as supervisões dos pro- profissional, tais como medo do agressor, raiva,
fissionais. desejos de vinganças. É preciso que esses sentimen-
Avaliar é uma prática fundamental, o que neste tos sejam sempre trabalhados na supervisão, cuja
caso é bastante particular e complexo. Uma das di- direção é retomar a perspectiva ético-política da
ficuldades, por exemplo, está em delimitar o objeti- não violência (não cabem, pois, revanches ou agres-
vo final a ser alcançado. Como o trabalho tem como sões reativas de qualquer espécie) e da adesão aos
objetivo principal o encontro e a delimitação com- direitos humanos e das mulheres. Por todos esses
partilhada de caminhos possíveis para cada mu- motivos, a supervisão deve ser constante, assim
lher, não há um objetivo predefinido além da com- como devem ser constantes as retomadas periódi-
preensão mútua e encontro de soluções possíveis cas de sensibilização da Unidade e treinamentos
para cada momento. A avaliação, seguindo este ca- dos profissionais do CONFAD.
minho, necessita verificar o impacto da atividade Sendo apenas um acolhimento e orientação pre-
no trabalho dos profissionais e nos projetos de vida liminares dos casos de violência, a esta atividade
das mulheres atendidas. Outra dificuldade para a CONFAD segue-se a necessária relação da Unidade
avaliação é estimar o tempo necessário para as com os serviços que comporiam um conjunto mais
mudanças pretendidas, já que são situações crôni- especializado no trato às situações de violência, con-
cas que muitas vezes demoram longos períodos junto este que se esperaria operar em rede.
para que ocorram mudanças significativas.
Em nossa avaliação preliminar28, verificamos,
de um lado, o número crescente ao longo dos anos A rede intersetorial de serviços
de encaminhamentos (de 41 casos atendidos, em
2000, a 153, em 2003), sugerindo progressiva ade- Se no interior da Unidade de saúde é necessário
são dos profissionais à proposta. Também verifi- que todos os profissionais trabalhem em equipe,
camos, utilizando entrevistas semi-estruturadas, com troca de informações e projetos comuns para
que as usuárias valorizaram em maior grau a es- o caso, projetos estes compartilhados e decididos
cuta acolhedora do que as informações fornecidas pelas mulheres envolvidas, a atenção integral às
acerca de serviços disponíveis ou legislação, por mulheres em situação de violência não se esgota
exemplo. Verificamos também que a falta à ativi- necessariamente no CONFAD, pois quase sempre
dade, posto ser agendada, foi semelhante às obti- demanda sua complementação. Pressupõe ainda o
das para as consultas médicas, em torno de 25%, e uso efetivo de uma ampla rede intersetorial, que
que mais de 80% dos casos atendidos foram vio- propicie uma gama diversa de caminhos a partir
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D’Oliveira AFLP et al.

do encontro realizado, com base nos projetos de abrigos, centros de referência geridos pelo poder
vida que surgirem. Para isto, é fundamental, antes municipal ou por ONGs, Delegacias de Defesa da
do início do trabalho, que exista um repertório ou Mulher, Fóruns, Procuradoria de Assistência Judi-
um mapeamento da rede existente, seja localmente, ciária, serviços de saúde hospitalares e ambulato-
no território regionalizado da Unidade, seja no riais, etc. Ademais, podem ser também instituições
município a que pertence como um todo. Este ma- pertencentes a diversos conjuntos ou setores de
peamento se dá em forma de guias de serviços e produção social e de prestação de serviços distin-
recursos locais. Em nosso caso, por meio de pes- tos à população, como as instituições universitári-
quisas específicas, foram publicados, para a região as e as de setores assistenciais públicos ou priva-
metropolitana de São Paulo, e, posteriormente, dos ou do terceiro setor; as ligadas ao poder exe-
também para Recife e Porto Alegre, guias de servi- cutivo federal, estadual ou municipal; ou, realizan-
ços para mulheres em situação de violência em duas do ações do setor saúde, justiça, saúde, psicossoci-
versões: uma de fácil porte para uso das mulheres29 al, etc. Isto tudo sem esquecer que uma parte rele-
e outra para uso dos profissionais30. A existência vante do apoio é buscado em suportes familiares
dos guias facilita o reconhecimento mútuo dos di- ou comunitários, os quais devem compor a rede
ferentes serviços da rede por parte de seus respecti- de suporte social para as mulheres.
vos profissionais, bem como facilita o atendimento Se em cada um destes locais a violência é vista
das mulheres, para que possam viabilizar suas ne- com um determinado recorte (como a doença, o
cessidades. O simples conhecimento dos recursos crime, a miséria, o abuso de álcool e drogas, o
já pode mudar a visão que cada uma tem da sua conflito de gênero), e em cada um dos locais deter-
situação, retirando-a do isolamento e demonstran- minadas ações podem e devem ser realizadas, cada
do, concretamente, o quanto o problema é coleti- caso deve ser reintegrado em um todo pelo con-
vo, social e, assim, de todos, evidenciando a exis- junto de profissionais e instituições, garantindo a
tência de políticas públicas e serviços montados para possibilidade de um projeto assistencial comum.
tal. Isto simboliza para todos que a afirmação dos Tal qual já se estudou relativamente ao trabalho
direitos e a ética da não violência é um movimento em equipe22, a integralidade do cuidado será pro-
cultural e político em curso e já apoiado pelos orga- duzida quando tivermos ações articuladas e inte-
nismos governamentais, borrando o caráter estri- rações entre os profissionais dessas ações, cujo re-
tamente privado que o senso comum vem forne- sultado é a formulação interativa de projetos de
cendo à violência doméstica, sobretudo. intervenção que se potencializam em cada ponto
Embora se aponte uma rede intersetorial, é fato da rede. Para isto, é importante que, para além da
que tal qualidade é ainda apenas potencial, isto é, operação do objeto parcelar de cada serviço, esteja
há muitos obstáculos ainda para o efetivo traba- presente em todos os serviços a consciência das
lho em rede. Uma primeira questão e que marca outras ações acopladas e dos outros profissionais
diferença com o setor saúde é que os serviços de com quem haverá a interação, garantindo que a
saúde têm tradição de trabalho na forma de um escuta interessada e a reflexão crítica estejam sem-
sistema hierarquizado e, portanto, em níveis pri- pre presentes.
mário, secundário e terciário, dispostos de forma No entanto, as linguagens de cada um dos se-
bidirecional, mas com uma porta de entrada defi- tores envolvidos são via de regra bastante distin-
nida, que é a atenção primária. No trabalho com tos. Basta lembrar como médicos e enfermeiras
violência, a rede é o modelo mais aceito pela litera- descrevem seus casos, mesmo de atenção primá-
tura, e proposto; nele, a “entrada” pode se dar em ria, em termos de sofrimentos e patologias, e com-
qualquer ponto, sendo a circulação dos casos um parar esta com a maneira como advogados e dele-
trançamento entre os diversos pontos desse con- gados descrevem suas ocorrências, na linguagem
junto (os distintos serviços), entre os quais não há do crime e da lei. Para que a comunicação possa
hierarquia de disposição e sim uma colocação ho- ser estabelecida e o trabalho ocorra em rede, é im-
rizontal nas relações entre si. portante operar traduções com a mulher usuária e
O trabalho em rede intersetorial guarda diver- entre os profissionais dos serviços envolvidos.
sas tensões que devem ser superadas, a iniciar pe- Via de regra, o reconhecimento mútuo é per-
las diferentes definições e enquadres dados ao pro- meado de desconfianças quanto à qualidade do
blema, tais como as instituições que trabalham outro setor assistencial. Assim, profissionais de
com violência contra a mulher, com violência do- serviços de saúde desconfiam dos operadores do
méstica, com violência intrafamiliar, com violência direito e educadores, enquanto na educação e jus-
sexual ou com violência de gênero. Também po- tiça a visão dos serviços de saúde é de grande ino-
dem representar instituições tão diversas como perância e falta de vagas. Superar esta desconfian-
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ça e refazer um pacto de trabalho, com apoio da Apesar das dificuldades, no entanto, as possibi-
gerência e nível central, é fundamental para a fina- lidades de trabalho colocadas para lidar com a vio-
lidade de fortalecimento dos direitos humanos e lência contra as mulheres da perspectiva de gênero
emancipação para os serviços de saúde apontam para alternati-
Fóruns intersetoriais, reuniões e supervisões vas que aprimoram e levam em frente a organiza-
internas aos serviços e à saúde, visitas aos serviços ção dos serviços e a reflexão sobre suas finalida-
e contatos pessoais, listas de e-mails e telefones, des31. Enfatizando o respeito aos direitos huma-
tudo o que possa facilitar o contato é importante nos, a valorização da ética nas relações interpesso-
neste sentido. Em relação aos encaminhamentos, ais e a emancipação de todos, combate-se de forma
também se deve lembrar que o referenciamento ativa a medicalização da violência, redirecionando-
precisa ser feito com cuidado (em termos do co- se demandas que a princípio se esgotavam no inte-
nhecimento das possibilidades assistenciais do rior dos serviços para alternativas para fora destes,
outro local pela usuária e informações precisas transformando criticamente as necessidades em
sobre local e horários e condições de atendimento) novas demandas mais ricas e diversificadas.
e não se tornar apenas uma forma de se “livrar” do Por fim, queremos destacar os novos desafios
caso, o que é dito pelos profissionais como “passar que se colocam para o modelo implantado.
a batata quente”. A existência de uma rede não pode O primeiro deles diz respeito à integração de
significar a transformação de cada ponto dela em um trabalho com crianças e homens no CONFAD,
apenas um centro de triagem ou encaminhamento desde a perspectiva de gênero. Em relação às crian-
para os demais. O encaminhamento, quando cou- ças, é comum que a violência doméstica envolva-
ber, deve articular-se a uma resolução de nível pró- as bem como aos adolescentes, como testemunhas
prio, o que certamente inclui empreendimentos do ou vítimas diretas. A articulação do trabalho de
tipo CONFAD, na atenção primária do setor saú- proteção das crianças com o fortalecimento de seus
de. Além disto, é importante estabelecer mutua- responsáveis no sentido de superação da violência,
mente os fluxos e formas de referência e contra- que devem ser encaminhados ao CONFAD, é fun-
referência de forma articulada às gerencias locais, damental, além da percepção dos diferentes signi-
para que não ocorram os fluxos baseados apenas ficados e riscos de violência a que estão expostos
em relações pessoais, que são descontinuados meninos e meninas. O trabalho com homens, na
quando os profissionais trocam de posição nos mesma perspectiva, ainda precisa ser implantado
serviços e instituições. e monitorado.
Por último, a maior dificuldade para lidar com O segundo diz respeito à consolidação e articu-
a rede é sua fragilidade, instabilidade e dimensio- lação da rede, desde os fluxos internos à saúde até
namento dos diversos tipos de serviços, alguns em aqueles que integram os serviços de saúde à rede
capacidade nitidamente inferior às necessidades. intersetorial, no sentido de sua quantidade, quali-
De um lado, sua fragilidade está dada no intenso dade e reconhecimento mútuo.
movimento de fechamentos e aberturas de servi- Além disto, a notificação e monitoramento dos
ços, em boa parte devido ao fato de que as políti- casos e ações de promoção e prevenção ainda são
cas públicas acabam sendo transformadas a cada relativamente incipientes. São desafios que estão
novo governo, comprometendo a estabilidade e colocados para o futuro, e que só são possíveis
adensamento da rede. De outro, as propostas de hoje porque 25 anos de mobilização contra a vio-
abertura não necessariamente levam em conta os lência contra a mulher produziram um volume
dimensionamentos dos casos, como estudos de suficiente de conhecimento e políticas públicas que
prevalência, perfis de uso dos serviços pela possí- os possibilitam.
vel clientela, etc.

Colaboradores

AFPL d’Oliveira e LB Schraiber desenvolveram a


proposta e o estudo do CONFAD, conceberam e
redigiram o artigo igualmente; H Hanada e JG
Durand participaram do desenvolvimento do
CONFAD, da produção do material de campo e da
redação final do artigo.
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D’Oliveira AFLP et al.

Referências

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