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ARTIGO ARTICLE
de gênero – uma alternativa para a atenção primária em saúde
Abstract This paper deals with the possibilities of Resumo Este artigo trata das possibilidades de atu-
the health sector to approach violence against wom- ação do campo da saúde na abordagem da violência
en in its practices as a gender issue. It is presented a contra a mulher desde suas práticas assistenciais nos
conceptual and theoretical comprehension of gen- serviços e baseadas na perspectiva de gênero. Apre-
der violence linked to a care proposal, as the defini- senta-se uma dada compreensão teórico conceitual
tion of the problem is essential to the intervention, da violência de gênero contra as mulheres articulada
answering to different social ends. To do that, is nec- a uma proposta de cuidado, pois a forma como o
essary to think what the objectives of the work in problema é delimitado é essencial para a interven-
health are and where it is placed within the produc- ção, respondendo a finalidades sociais diversas. Tra-
tion and reproduction of the ways of living and fall- ta-se, portanto, de pensar quais os objetivos da ação
ing ill. It is argued the possibility of full assistance, in em saúde e qual o seu lugar na produção e reprodu-
order that violence itself, and not only its repercus- ção de modos de viver e adoecer. Defende-se a possibi-
sions, are considered in the health work. The pro- lidade de atendimento integral, para que também a
posal of care for sexual violence in Brazil is recov- violência, e não apenas suas repercussões, seja consi-
ered, and a model of primary health care imple- derada no trabalho em saúde. Recupera-se a propos-
mented at Samuel B. Pessoa Health School Center is ta de atenção dirigida à violência sexual no Brasil e
presented. This model is integrated in the Women’s debate-se uma possibilidade de atuação na atenção
Integral Health Care Program (PAISM) and attends primária tal como implantada no Centro de Saúde
women in severe domestic conflicts (CONFAD) con- Escola Samuel B. Pessoa. As ações propostas e inte-
ceptualized as a specific technique of detection, lis- gradas ao Programa de Atenção Integral à Saúde da
tening and counseling, featuring a “chat technique” Mulher (PAISM) da Unidade constituem uma ativi-
as a professional action. To conclude, aspects related dade de atendimentos a conflitos familiares difíceis
to the connections of the health sector with the in- (CONFAD), conceituada como uma técnica especí-
tersectorial network are discussed presenting its prin- fica de detecção, escuta e orientação qualificadas, que
cipal difficulties. caracterizam uma “técnica de conversa” como agir
1
Departamento de
Key words Primary health care, Domestic violence, profissional. Por fim, discutem-se aspectos relativos à
Medicina Preventiva,
Faculdade de Medicina, Violence against women, Intimate partner violence, conexão do setor saúde com a rede intersetorial de
Universidade de São Paulo. Women’s health services atenção e suas principais dificuldades.
Av. Dr. Arnaldo 455/2.245,
Cerqueira César.
Palavras-chave Atenção primaria à saúde, Violên-
01246-903 São Paulo SP. cia doméstica, Violência contra a mulher, Violência
vawbr@usp.br por parceiro íntimo, Serviços de saúde para mulheres
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D’Oliveira AFLP et al.
lência sexual prevista, isto é, a cometida, no caso estão presentes no cotidiano dos serviços e geram
das mulheres adultas, por estranhos. No caso das a demanda reiterada e com baixa resolutividade já
crianças, os agressores serão mais os conhecidos discutida.
do que os estranhos, porque os casos são majori- Ainda quando enunciada a violência, ela não é
tariamente familiares16. reconhecida para o trabalho, já que não existem
Portanto, estes serviços, extremamente neces- ações previstas para isto. Ou seja, para a violência
sários, não recobrem, ainda, toda a demanda ge- doméstica, não há o equivalente à norma técnica
rada pela própria violência sexual, por um lado, e para a violência sexual, que orienta as ações a serem
pouco podem fazer pela violência não sexual, como realizadas. Portanto, ainda que a mulher diga que
as físicas ou psicológicas, contra a mulher, por foi agredida física ou sexualmente, o profissional
outro. poderá até comentar sua opinião a respeito, mas o
As taxas obtidas em estudos populacionais de- fará, como mostra estudo a respeito7, como uma
monstram que a maioria das violências, mesmo a intervenção de caráter pessoal e não como procedi-
sexual, contra mulheres adultas é perpetrada por mento técnico. Na maior parte dos casos assistidos
parceiros17 e estes episódios acabam praticamente nos serviços de saúde, um conjunto de profissio-
ausentes destes serviços. O apoio fornecido pela nais trata o conjunto das demandas de uma mes-
norma técnica, por sua vez, tampouco serve a es- ma mulher, com pouco conhecimento de cada um
sas violências, já que mulheres envolvidas em vio- sobre o trabalho dos outros e muito menos ainda
lências repetitivas nas quais o agressor e a vítima sobre a situação de violência que pode estar envol-
moram juntos e/ou são familiares não podem se vida em várias das queixas e sintomas relatados.
beneficiar do protocolo prescrito (medicação pro- Queremos tratar das potencialidades da aten-
filática), pela cronicidade da situação e a recorrên- ção primária para intervenção sobre o problema,
cia do abuso. A proposta tecnológica, pensada em de uma perspectiva integral. Integral porque se trata
função da garantia do aborto legal previsto em lei de acolher a violência como problema em toda a
e dirigida a mulheres em idade reprodutiva, tam- sua complexidade, pensando na promoção da não
bém se adéqua pouco ao cuidado da violência se- violência, prevenção e cuidado aos casos, tanto da
xual cometida contra homens e crianças, já que as perspectiva do tratamento de suas consequências
equipes geralmente não prevêem profissionais e como da especificidade do setor saúde na aborda-
ações específicos, além de, no caso dos homens, gem do problema violência em si, que sendo um
existir dificuldade adicional em atendê-los, por tema complexo, interdisciplinar, leva à necessária
não serem considerados como potenciais vítimas multiprofissionalidade e intersetorialidade da aten-
de agressão, dadas as concepções de gênero aderi- ção, como se verá. Integral também porque se tra-
das a maior parte da equipe profissional18. ta de uma decisão assistencial em que a mulher
usuária deve ser considerada como centro da to-
mada das decisões para a atenção e participar des-
A potencialidade da atenção primária no sas decisões referentes ao seu cuidado.
atendimento à violência por parceiro íntimo A atenção primária merece um destaque quan-
do se trata de ações referentes à violência contra a
Ainda que a violência contra as mulheres tenha mulher por diversas razões. Em primeiro lugar,
como principais agressores os parceiros íntimos, este nível de atenção tem grande ênfase nas ações
o reconhecimento da violência psicológica, física e de promoção e prevenção de saúde. Além disto,
sexual cometida por parceiro íntimo em serviços tem um aumento de cobertura e incremento re-
de atenção primária à saúde ainda é muito peque- cente, com valorização da ida ao domicílio através
na. Em estudo realizado na região metropolitana da crescente implantação da Estratégia de Saúde
de São Paulo, em dezenove serviços de saúde de da Família. Este nível de atenção enseja um acesso
atenção primária, a violência física e/ou sexual por frequente, constante e legitimado às mulheres ao
parceiro íntimo na vida foi de 45,3% (IC 95%: longo de toda a sua vida, uma relação mais próxi-
43,5;47,1) e por outros que não o parceiro foi de ma com a comunidade e é dirigida a problemas
25,7% (IC 95%: 25,0;26,5). Observou-se registro comuns de saúde muito associados com violência
de episódios de violência, entretanto, em apenas doméstica e sexual contra a mulher.
3,8% dos prontuários19. Em relação ao enfoque na promoção da saúde
Cabe lembrar, portanto, que os serviços de aten- e prevenção, esta perspectiva acaba sendo a que
ção primária já assistem, em grande medida, casos possui menor acúmulo no trabalho com a ques-
de violência doméstica cometida contra mulheres. tão. Se tomarmos a violência doméstica contra as
Ainda que não reconhecidos como tal, estes casos mulheres como relacionada à desigualdade e aos
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as mulheres, que manifestam querer e sentir-se das e acolhidas em suas situações de violência, raiz
melhor depois de feita essa revelação, como o fato de uma parte dos problemas. A não conjugação de
de que quanto mais o profissional é treinado na esforços nesse sentido, agregando-se a atenção à
questão mais fácil fica realizar a detecção dos ca- violência às investigações clínicas, pode levar o pro-
sos. As mulheres precisam e querem falar sobre a fissional a cometer erros diagnósticos graves, tam-
violência de uma forma privada, sigilosa e não jul- bém do ponto de vista técnico-científico. As quei-
gadora do acontecido por parte do profissional. xas clínicas precisam ser levadas em conta, assim
Não se trata aqui de um interrogatório ou de uma como a história da violência, para que se possa
confissão. Basta escutar e estar atenta ou atento, compreender os casos em seu todo, enquanto um
dando crédito ao relato e produzindo uma narra- cuidado integral a ser dispensado. Tal conjugação
tiva que lhe permita identificar os elementos da de esforços não necessariamente constitui traba-
história com potenciais de transformar a situação lho de um só profissional, mas de uma equipe de
de violência. profissionais de diferentes áreas de atuação.
As mulheres falarão daquilo que queiram e lhes Outra questão importante apontada pela lite-
interesse. Para isto, é muito importante que a reve- ratura é a alegação dos profissionais de não sabe-
lação da violência não se transforme em encami- rem como perguntar sobre a violência. Diversas
nhamentos automáticos, pressão por determina- formas de perguntar são possíveis, como demons-
das ações (ir à DDM ou separar do agressor, por tra o rol abaixo, e cada profissional deve encontrar
exemplo). Perceber que a visibilidade da violência é a mais apropriada para cada mulher e para si pró-
importante para o cuidado em saúde é central, mas pria (o) na relação estabelecida com o caso. Per-
não se trata aqui de um interrogatório policial – a guntas diretas podem ser importantes, desde que
mulher pode, por diversas razões, temer a revela- não estigmatizem ou julguem as mulheres, para
ção em um determinado momento, e isto deve ser não se romper o interesse demonstrado pelo servi-
respeitado. Tampouco se trata de confissão, sendo ço relativamente ao problema.
mais importante que ela perceba que o serviço se Pode-se perguntar indiretamente:
interessa pelo problema de uma forma não julga- Sabe-se que mulheres que apresentam proble-
dora e percebe as suas repercussões para a saúde, mas de saúde ou queixas como os seus muitas ve-
tendo recursos para apoiar os casos. É importante zes têm problemas de outra ordem em casa. Por
que a mulher possa contar aquilo que lhe parece isto, temos abordado este assunto no serviço.
significativo, e que, nos diversos contatos com o Está tudo bem em sua casa, com seu compa-
serviço, ela vá percebendo que o sigilo e a seguran- nheiro? ou
ça serão levados em conta, assim como suas opi- Você está com problemas no relacionamento
niões, valores e vontades. Perguntas diretas são im- familiar? ou
portantes, mas a escuta interessada ainda é o me- Você se sente humilhada ou agredida? ou
lhor instrumento de detecção. Você acha que os problemas em casa estão afe-
Pode acontecer nos serviços que, ao se ouvir a tando sua saúde? ou
revelação da violência, as demais queixas sejam Você e seu marido (ou filho, ou pai, ou fami-
desconsideradas e tratadas como menos impor- liar) brigam muito? ou
tantes. Este comportamento parte do princípio de Quando vocês discutem, ele fica agressivo?
que as queixas não se constituiriam em sofrimen- Pode-se também perguntar diretamente:
tos efetivos, mas por estarem associadas a um pro- Como você deve saber, hoje em dia não é raro
blema da esfera social, não sendo sinais de doenças escutarmos sobre pessoas que foram agredidas fí-
“verdadeiras”, as que correspondem à nosografia sica, psicológica ou sexualmente ao longo de suas
médica. Ou seja, os sintomas revelados não cor- vidas, e sabemos que isto pode afetar a saúde mes-
responderiam a lesões a serem encontradas no mo anos mais tarde. Isto aconteceu alguma vez
corpo conforme definido pela biomedicina, mas com você? ou
seriam percebidos como, grosso modo, falsos si- Já vi problemas como o seu em pessoas que
nais, “invenções da cabeça” da mulher. As mulhe- são fisicamente agredidas. Isto aconteceu com você?
res que sofrem violência apresentam, conforme a ou
literatura, mais sofrimentos e demandas aos servi- Alguém lhe bate? ou
ços, o que não significa que não mereçam investi- Você já foi forçada a ter relações com alguém?
gação clínica, muito pelo contrário. Estas mulhe- Identificado o problema, é oferecido à mulher
res têm maior risco efetivo de patologias clínicas e um espaço apropriado para a discussão mais apro-
mentais, e devem ser investigadas com cuidado e fundada do problema e de suas possibilidades de
cautela, ao mesmo tempo em que são aconselha- enfrentamento, que é a atividade CONFAD.
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visão mais comum, e muitas vezes da própria . Identificação da rede de suporte social já exis-
mulher em atendimento, de que seriam as mulhe- tente – extremamente importante para evitar a vi-
res vítimas cristalizadas de uma violência natural timização, a rede de suporte existente deve ser re-
dos homens. Lembremos que a situação é produ- conhecida e valorizada – seja ela trabalho, educa-
to de relações e se as relações de gênero expressam- ção, amizades, alguém da família ou outro apoio
se por relações de poder desiguais para as mulhe- comunitário existente;
res, há sempre possibilidades de resistência e luta, e . Identificação de pontos positivos nos relatos
a escuta e a informação nos serviços podem cola- de vida – durante o atendimento, devem ser bus-
borar neste sentido. A vitimização das mulheres, cadas na história da mulher as possibilidades de
que pode ser potencializada pela identificação de relações mais igualitárias, tentando-se resgatar ele-
gênero com profissionais mulheres, é contrapro- mentos em sua experiência de vida que se configu-
dutiva ao trabalho e acaba por fortalecer a crista- rem como apoios ao exercício mais pleno de sua
lização em posições predefinidas. As mulheres subjetividade, constituindo uma reflexão no senti-
transgressoras, que traem seus maridos, revidam do emancipatório da mulher. É importante refor-
ou iniciam a violência, não encontram, neste en- çar que não existem respostas “certas” de antemão,
quadre, espaço de fala, porque tenderiam a não mas sim uma possibilidade de maior reflexão crí-
ser reconhecidas como vítimas. Antes passariam a tica sobre as situações;
ser tomadas como “provocadoras” da violência. . Identificação das conexões violência-saúde –
Outro aspecto dessa importante “vigilância cultu- a forma como a mulher entende as relações entre
ral” do trabalho do profissional é seu lidar com as suas queixas e a situação de violência e os cami-
suas próprias emoções, pois os relatos escutados nhos para a resolução de ambas são fundamen-
são fortemente mobilizadores de diversas delas, tais. O reconhecimento das conexões existentes e
sendo as mais comuns a raiva, o medo e a impo- suas formas de superação é o motivo final do tra-
tência. A consciência crítica destes sentimentos deve balho e justifica sua tomada pela saúde. Via de
ser buscada para o bom atendimento e também regra, esta conexão é bastante clara para as mulhe-
para o crescimento e aperfeiçoamento do profissi- res usuárias, por vezes de forma ainda mais con-
onal, prevenindo sua interferência moral ou pura- tundente do que para os próprios profissionais,
mente emocional reativa no trabalho assistencial. desde que este reconhecimento não leve à desqua-
Disto se discorrerá mais adiante ao ser tratada a lificação da queixas clínicas, como considerado;
questão da supervisão desse atendimento. . Valorização do relato com seu registro – o
Além dos princípios da conversa, arrolam-se a registro deve ser detalhado, para o acompanha-
seguir os conteúdos que devem ser abordados, o mento do caso por toda a equipe e para usos futu-
que é apresentado na forma de itens pelo sentido ros que possam ser necessários, inclusive para uso
técnico que se quer reforçar dessa conversa. São como evidência em processos judiciais;
eles: . Compartilhamento de informações sobre a
. Estímulo à narrativa detalhada e reflexão so- rede intersetorial de serviços – escutada a história,
bre as origens da violência (gênero e outros eixos a rede de serviços adequada à situação deve ser
de desigualdade de poder) – durante o relato, as- exposta pelo profissional para que a mulher a co-
pectos relativos a conflitos de poder baseados nas nheça e possa decidir quais apoios serão mais im-
relações de gênero (dupla moral sexual, trabalho portantes no momento para ela. Esta rede deve
doméstico, divisão e destino do dinheiro, tempo incluir, a depender dos casos, serviços policiais, de
para o lazer, etc.) podem ser apontados e discuti- assistência jurídica, psicossocial, abrigos e recur-
dos, relacionando-os às origens da violência; sos comunitários menos específicos, como ativi-
. Identificação de riscos – homicídio, suicídio, dade de cultura e lazer, educação, creche, trabalho,
violência contra crianças: na presença de riscos, moradia, etc.
estes devem ser apontados e medidas de segurança . Projetos novos de vida e decisão comparti-
podem ser tomadas. Quando violência contra cri- lhada sobre caminhos possíveis e referência aos
anças é identificada, a obrigatoriedade da notifica- serviços que ela escolher – apresentada a rede, a
ção e suas consequências devem ser discutidas, para mulher decidirá, em conjunto com o profissional
que as medidas a serem tomadas sejam no sentido que a atende, seus próximos passos na rota de aten-
da proteção das crianças, no melhor benefício e ção. A idéia de rota supõe que a transformação
com a concordância de todos. A mulher em risco das situações violentas é composta de caminhos
de morte deve ser encaminhada a abrigos e/ou aten- possíveis, decisões e ações que impulsionam ou
dimento especializado em casos de ideação ou ten- obstaculizam o caminho. Esta rota, que é conside-
tativas de suicídio; rada “crítica”27, pode ser impulsionada por este tra-
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do encontro realizado, com base nos projetos de abrigos, centros de referência geridos pelo poder
vida que surgirem. Para isto, é fundamental, antes municipal ou por ONGs, Delegacias de Defesa da
do início do trabalho, que exista um repertório ou Mulher, Fóruns, Procuradoria de Assistência Judi-
um mapeamento da rede existente, seja localmente, ciária, serviços de saúde hospitalares e ambulato-
no território regionalizado da Unidade, seja no riais, etc. Ademais, podem ser também instituições
município a que pertence como um todo. Este ma- pertencentes a diversos conjuntos ou setores de
peamento se dá em forma de guias de serviços e produção social e de prestação de serviços distin-
recursos locais. Em nosso caso, por meio de pes- tos à população, como as instituições universitári-
quisas específicas, foram publicados, para a região as e as de setores assistenciais públicos ou priva-
metropolitana de São Paulo, e, posteriormente, dos ou do terceiro setor; as ligadas ao poder exe-
também para Recife e Porto Alegre, guias de servi- cutivo federal, estadual ou municipal; ou, realizan-
ços para mulheres em situação de violência em duas do ações do setor saúde, justiça, saúde, psicossoci-
versões: uma de fácil porte para uso das mulheres29 al, etc. Isto tudo sem esquecer que uma parte rele-
e outra para uso dos profissionais30. A existência vante do apoio é buscado em suportes familiares
dos guias facilita o reconhecimento mútuo dos di- ou comunitários, os quais devem compor a rede
ferentes serviços da rede por parte de seus respecti- de suporte social para as mulheres.
vos profissionais, bem como facilita o atendimento Se em cada um destes locais a violência é vista
das mulheres, para que possam viabilizar suas ne- com um determinado recorte (como a doença, o
cessidades. O simples conhecimento dos recursos crime, a miséria, o abuso de álcool e drogas, o
já pode mudar a visão que cada uma tem da sua conflito de gênero), e em cada um dos locais deter-
situação, retirando-a do isolamento e demonstran- minadas ações podem e devem ser realizadas, cada
do, concretamente, o quanto o problema é coleti- caso deve ser reintegrado em um todo pelo con-
vo, social e, assim, de todos, evidenciando a exis- junto de profissionais e instituições, garantindo a
tência de políticas públicas e serviços montados para possibilidade de um projeto assistencial comum.
tal. Isto simboliza para todos que a afirmação dos Tal qual já se estudou relativamente ao trabalho
direitos e a ética da não violência é um movimento em equipe22, a integralidade do cuidado será pro-
cultural e político em curso e já apoiado pelos orga- duzida quando tivermos ações articuladas e inte-
nismos governamentais, borrando o caráter estri- rações entre os profissionais dessas ações, cujo re-
tamente privado que o senso comum vem forne- sultado é a formulação interativa de projetos de
cendo à violência doméstica, sobretudo. intervenção que se potencializam em cada ponto
Embora se aponte uma rede intersetorial, é fato da rede. Para isto, é importante que, para além da
que tal qualidade é ainda apenas potencial, isto é, operação do objeto parcelar de cada serviço, esteja
há muitos obstáculos ainda para o efetivo traba- presente em todos os serviços a consciência das
lho em rede. Uma primeira questão e que marca outras ações acopladas e dos outros profissionais
diferença com o setor saúde é que os serviços de com quem haverá a interação, garantindo que a
saúde têm tradição de trabalho na forma de um escuta interessada e a reflexão crítica estejam sem-
sistema hierarquizado e, portanto, em níveis pri- pre presentes.
mário, secundário e terciário, dispostos de forma No entanto, as linguagens de cada um dos se-
bidirecional, mas com uma porta de entrada defi- tores envolvidos são via de regra bastante distin-
nida, que é a atenção primária. No trabalho com tos. Basta lembrar como médicos e enfermeiras
violência, a rede é o modelo mais aceito pela litera- descrevem seus casos, mesmo de atenção primá-
tura, e proposto; nele, a “entrada” pode se dar em ria, em termos de sofrimentos e patologias, e com-
qualquer ponto, sendo a circulação dos casos um parar esta com a maneira como advogados e dele-
trançamento entre os diversos pontos desse con- gados descrevem suas ocorrências, na linguagem
junto (os distintos serviços), entre os quais não há do crime e da lei. Para que a comunicação possa
hierarquia de disposição e sim uma colocação ho- ser estabelecida e o trabalho ocorra em rede, é im-
rizontal nas relações entre si. portante operar traduções com a mulher usuária e
O trabalho em rede intersetorial guarda diver- entre os profissionais dos serviços envolvidos.
sas tensões que devem ser superadas, a iniciar pe- Via de regra, o reconhecimento mútuo é per-
las diferentes definições e enquadres dados ao pro- meado de desconfianças quanto à qualidade do
blema, tais como as instituições que trabalham outro setor assistencial. Assim, profissionais de
com violência contra a mulher, com violência do- serviços de saúde desconfiam dos operadores do
méstica, com violência intrafamiliar, com violência direito e educadores, enquanto na educação e jus-
sexual ou com violência de gênero. Também po- tiça a visão dos serviços de saúde é de grande ino-
dem representar instituições tão diversas como perância e falta de vagas. Superar esta desconfian-
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Colaboradores
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