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07242022 3715
Abstract The objective was to characterize the Resumo Objetivou-se caracterizar os casos de
cases of sexual violence (SV) against women in violência sexual (VS) contra mulheres, em Mi-
Minas Gerais state, associating the care provided nas Gerais-MG, investigando a associação entre a
in cases of rape with the type of health service that atenção prestada nos casos de estupro, ao tipo de
provided the care (specialized or not). The Noti- unidade de saúde que realizou o atendimento (es-
fiable Diseases Information System was used for pecializada ou não). Utilizou-se o Sistema Nacio-
data referring to the notification of SV among wo- nal de Agravos de Notificação, para dados referen-
men (age ≥10 years old), which occurred in 2017, tes à notificação de VS entre mulheres (idade≥10
and the National Registry of Health Facilities for anos), ocorridos em 2017, e o Sistema Nacional
information on the type of health service. The SV de Estabelecimentos de Saúde, para informações
occurred mainly among women under 29 years sobre o tipo de unidade de saúde. A VS ocorreu,
old (77.1%), blacks (61.1%), singles (69.7%), and principalmente, entre mulheres abaixo de 29 anos
with low education (42.4%). Rape was the most (77,1%), negras (61,1%), solteiras (69,7%) e de
frequent SV (73.5%), with the majority being no- baixa escolaridade (42,4%). O estupro foi a VS
tified within 72 hours of the occurrence. For all mais frequente (73,5%), sendo a maioria notifi-
the procedures recommended for acute situations cado até 72h após ocorrência. Para todos os pro-
of SV, there was an association between attendan- cedimentos preconizados para situações agudas
ce at a specialized service and a greater chance of de estupro, houve associação entre o atendimen-
carrying out the planned procedures. The only to em unidade especializada e a maior chance
exception was abortion permitted by law. The re- de realização dos procedimentos previstos. Única
sults demonstrated the importance of continuing exceção foi o aborto previsto em lei. Os resulta-
investment in the qualification and expansion of dos demostraram a importância da continuidade
the SV care network and the importance of a bet- do investimento na qualificação e ampliação da
1
Programa de Pós- ter territorial distribution of reference services in rede de atenção à VS, e, também, a importância
Graduação em Saúde
Coletiva, Instituto René Minas Gerais. da melhor distribuição territorial das unidades de
Rachou, Fiocruz Minas. Key words Violence against Women, Health referência em MG.
Av. Augusto de Lima 1.715, Evaluation, Health Information Systems Palavras-chave Violência contra a Mulher, Ava-
Barro Preto. 30190-002
Belo Horizonte MG Brasil. liação em Saúde, Sistemas de Informação em Saúde
cristiane.magalhaes@ufv.br
2
Instituto René Rachou,
Fiocruz Minas. Belo
Horizonte MG Brasil.
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Melo CM et al.
Em janeiro de 2017, havia 36 unidades ca- Tutelar, Conselho do Idoso, entre outras); rede de
dastradas como serviço especializado “código segurança pública (incluiu: Delegacia Especiali-
165”, em Minas Gerais (MG) e somente seis des- zada de Proteção à Criança e Adolescente, Delega-
ses estavam habilitados também para coleta de cia de Atendimento à Mulher, outras delegacias);
vestígios. Dessas, 34 permaneceram ativas du- rede de atendimento à mulher; sistema de justiça
rante todo ano; duas unidades se mantiveram (incluiu: Ministério Público, Justiça da Infância e
cadastradas até outubro do mesmo ano (CNES da Juventude, Defensoria Pública) e outros enca-
2119773 e 7326610); e nove unidades se cadastra- minhamentos (incluiu: rede de educação, Centro
ram ao longo de 2017, sendo quatro no primeiro de Referência em Direitos Humanos).
semestre (CNES 2200473; 2219654; 2145960 e Adicionalmente, foram calculadas as pre-
2775999). Portanto, para este estudo, 40 unida- valências de violência sexual e, especificamen-
des de saúde foram consideradas “especializa- te para o estupro, segundo as macrorregiões de
das” (Quadro 1). As demais unidades de saúde Minas Gerais. Para tanto, foram considerados os
do SUS, que atenderam mulheres em situação casos ocorridos entre mulheres residentes nas 14
de violência em 2017, foram consideradas como macrorregiões do estado e a população feminina
unidades “não especializadas”. estimada pelo TCU para 2017, ambas informa-
ções obtidas por meio do Datasus/Tabnet25.
Análise dos dados Para a etapa analítica, considerou-se como
desfecho de interesse os procedimentos reali-
O estudo foi realizado em duas etapas. Na zados pelo serviço de saúde, preconizados para
primeira, descritiva, considerou-se toda popula- os casos de estupro, especificamente, “profilaxia
ção de mulheres em situação de VS. Na segunda HIV”, “profilaxia IST”, “profilaxia hepatite B”,
etapa do estudo, analítica, foi considerada uma “coleta de sangue”, “coleta de sêmen”, “coleta de
subamostra do banco de dados do SINAN, con- secreção vaginal”, “contracepção de emergência”
tendo apenas os casos de estupro, atendidos até e “aborto previsto em lei”; e a variável explicati-
72 horas após ocorrência da violência. A Figura 1 va foi o tipo de unidade de saúde que realizou o
ilustra o processo de busca e seleção dos dados do atendimento, ou seja se unidade “especializada”
SINAN que foram utilizados no presente estudo, ou “não especializada”.
conforme o tipo de análise realizada. Para verificar a força da associação, foram
Para a análise descritiva dos dados, foram es- estimadas as razões de chance (RC), e os respec-
timadas as frequências das variáveis qualitativas tivos intervalos de confiança de 95% (IC95%)
relacionadas às características sociodemográfica para cada procedimento, utilizando, para tanto,
das mulheres (faixa etária, raça-cor, escolaridade a regressão logística simples. Em caráter comple-
e situação conjugal), aos casos de VS notificados mentar, foram estimadas as razões de prevalência
(tipo de violência, local de ocorrência, se crônica (RP), com intuito de informar sobre a prevalên-
ou de repetição, macrorregião de saúde de ocor- cia da realização de cada procedimento entre as
rência), ao agressor e aos encaminhamentos re- mulheres atendidas em unidades especializadas
alizados. em relação à prevalência entre as atendidas em
A caracterização do agressor foi feita a par- unidades não especializadas. Para cálculo das
tir da variável “vínculo/grau de parentesco com RP e os IC (95%), utilizamos o modelo log-bi-
a pessoa atendida”, categorizada como: parceiro nomial. O programa estatístico RStudio, versão
íntimo (namorado/a, ex-namorado/a, cônjuge, 1.3.1093, foi utilizado para realização das análises
ex-cônjuge); familiar (filho/a, pai, mãe, padrasto, estatísticas.
madrasta e irmão); conhecido (amigo/conheci-
do, cuidador, patrão/chefe); desconhecido e ou- Aspectos éticos
tros vínculos (policial/agente da lei, pessoa com
relação institucional, entre outros). O estudo foi submetido ao Comitê de Ética
A categorização foi utilizada, também, para em Pesquisa do Instituto René Rachou - Fiocruz
a variável “encaminhamento”, uma vez que um Minas, sendo aprovado em 18 de dezembro de
mesmo caso pode ter mais de um encaminha- 2020, sob parecer número: 4.476.736. De acordo
mento realizado. Assim sendo, a categorização foi com a Resolução do Conselho Nacional de Saú-
realizada da seguinte forma: rede de saúde; rede de nº 466, de 12 de dezembro de 2012, o uso do
de assistência social (incluiu: Centro de Referên- Termo de Consentimento Livre e Esclarecido foi
cia da Assistência Social (CRAS), Centro de Refe- dispensado, haja vista o estudo se basear em ban-
rência de Assistência Social (CREAS), Conselho co de dados secundários de domínio público.
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SINAN – Violência
SINAN/MG - 2017
Seleção de dados
pessoal/autoprovocada
MG/2017
Masculino Feminino
N= 11.263 (25,7%) 32.483 (74,3%)
violência
N=1.181 (65,5%)
saúde
Fonte: Autoras.
A VS ocorreu, principalmente, entre mulhe- desconhecido das vítimas (36,4 e 18,9%) (Tabela
res jovens, abaixo de 29 anos (77,1%), sendo que 2).
em 38,3% dos casos, as vítimas eram meninas Sobre o local de ocorrência da violência, a
entre 10 e 14 anos. Houve, ainda, maior núme- maior parte dos casos ocorreu na residência das
ro de notificações entre negras (61,1%), solteiras vítimas, tanto para os casos de estupro (51,1%)
(69,7%) e com baixa escolaridade (42,4% das quanto para as outras violências sexuais (59,6%).
mulheres tinham somente o ensino fundamental Os locais “via pública, bar e comércio” também
completo ou incompleto) (Tabela 1). representaram significativos percentuais para ca-
O estupro foi a VS mais frequente (73,5%), sos de estupro (24,7%) e outras violências sexu-
representando média de cinco estupros notifi- ais (17,2%) (Tabela 2).
cados pelos serviços de saúde, por dia, em MG. A violência crônica ou de repetição carac-
65,5% desses casos foram notificados menos de terizou 31,5% dos casos de estupro e 34,3% de
72 horas após a ocorrência. O assédio represen- outras violências. Quanto ao encaminhamento,
tou 32,1% das notificações de VS, seguido da a rede de assistência social, seguida da seguran-
exploração sexual (3,7%) e pornografia infantil ça pública, foi majoritariamente reportada, tan-
(1,7%). Outros tipos de VS representaram 3,9% to nos casos de estupro (25,8%; 24,8%), quanto
dos casos (dados não apresentados em tabelas). para as outras violências sexuais (26,7%; 16,6%)
Tanto para o estupro, quanto para outras (Tabela 2).
violências sexuais, o autor reportado foi, majo- Os procedimentos previstos para situações de
ritariamente, do sexo masculino (95,0 e 87,1%) e estupro atendidos até 72 horas depois da ocor-
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Fonte: Autoras.
rência da violência foram realizados nas seguin- de coleta de secreção vaginal e de sêmen, relacio-
tes frequências: coleta de sangue (77,2%); profi- nados à produção de evidências forenses, foram
laxia para IST (67,1%), HIV (62,5%) e hepatite B realizados em 25,8 e 8,2% dos casos notificados
(42,3%); contracepção de emergência (44,8%) e respectivamente (dados não apresentados em ta-
aborto previsto em lei (1,6%). Os procedimentos belas).
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Tabela 2. Descrição dos casos de violência sexual (todos os tipos) e estupro, segundo características da violência.
Minas Gerais, 2017.
Outras violências Total (todas
Estupro
Características socioeconômicas sexuais violências sexuais)
% N=1.804 % N=651 % N=2.455
Local ocorrência
Via pública, bares ou comércio 24,7 446 17,2 112 22,7 558
Residência 51,1 921 59,8 389 53,4 1.310
Outros 14,1 255 11,5 75 13,4 330
Ignorado* 10,1 182 11,5 75 10,5 257
Macrorregião de saúde de ocorrência**
Centro 38,3 691 28,9 188 35,8 879
Centro Sul 2,6 46 2,8 18 2,6 64
Sul 6,4 115 11,5 75 7,7 190
Sudeste 6,6 119 11,8 77 8,0 196
Oeste 2,8 50 4,0 26 3,1 76
Vale do Aço 3,4 62 2,6 17 3,2 79
Noroeste 2,3 41 2,8 18 2,4 59
Triângulo do Sul 9,8 177 5,2 34 8,6 211
Triângulo do Norte 6,8 123 6,5 42 6,7 165
Norte 8,3 150 8,6 56 8,4 206
Nordeste 3,3 60 2,6 17 3,1 77
Leste do Sul 3,5 63 4,6 30 3,8 93
Jequitinhonha 3,5 63 5,5 36 4,0 99
Leste 2,4 44 2,6 17 2,5 61
Violência crônica
Sim 31,5 568 34,3 223 32,2 791
Não 57,4 1035 48,1 313 54,9 1.348
Ignorado* 11,1 201 17,7 115 12,9 316
Sexo do provável agressor
Masculino 95,0 1713 87,1 567 92,9 2280
Feminino 1,1 20 2,9 19 1,6 39
Ambos os sexos*** 1,2 22 3,4 22 1,8 44
Ignorado* 2,7 49 6,6 43 3,7 92
Vínculo com o agressor
Desconhecido 36,4 657 18,9 123 31,8 780
Parceiro íntimo 16,8 303 17,4 113 16,9 416
Familiar 11,6 210 20,7 135 14,1 345
Conhecido 27,0 487 27,8 181 27,2 668
Outros 7,4 133 13,1 85 8,9 218
Ignorado* 6,6 119 8,6 56 7,1 175
Encaminhamentos
Rede de saúde 0,4 8 0,5 3 0,5 11
Rede de assistência social 25,8 465 26,7 174 26,0 639
Rede de segurança pública 24,8 448 16,6 108 22,7 556
Rede de atendimento à mulher 13,5 243 6,6 43 11,6 286
Justiça 0,9 17 2,2 14 1,3 31
Outros 1,1 20 2,3 15 1,4 35
Ignorado* 5,5 100 5,5 36 5,5 136
*Para fins de análise, consideramos “Ignorado”, os campos marcados como ignorado e os campos não informados ou em branco;
**Macrorregiões de saúde de MG indicadas no DATASUS/Tabnet; ***Ocorre quando há mais de um/a agressor/a reportado.
Fonte: Autoras.
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Tabela 3. Procedimentos realizados nos casos de estupro, atendidos até 72 horas após a violência, segundo tipo
de unidade de atendimento (especializada e não especializada). Minas Gerais, 2017.
Procedimentos realizados
Tipo de unidade RC (IC95%) RP (IC95%)
Sim Não
Profilaxia IST
Especializada 328 71 4,06 (3,02; 5,51) 1,54 (1,41; 1,68)
Não especializada 341 300
Profilaxia HIV
Especializada 316 82 3,63 (2,73; 4,86) 1,54 (1,41; 1,69)
Não especializada 330 311
Profilaxia Hepatite B
Especializada 214 170 2,62 (2,02; 3,40) 1,71 (1,48;1,98)
Não especializada 205 427
Coleta de sangue
Especializada 334 68 6,08 (4,51; 8,29) 1,86 (1,69;2,05)
Não especializada 285 353
Coleta de sêmen
Especializada 38 328 1,70 (1,06; 2,70) 1,62 (1,06;2,49)
Não especializada 40 587
Coleta de secreção vaginal
Especializada 149 233 3,06 (2,28; 4,10) 2,25 (1,82;2,80)
Não especializada 107 512
Contracepção de emergência
Especializada 248 134 3,23 (2,48; 4,22) 1,78 (1,57;2,03)
Não especializada 226 395
Aborto previsto em lei
Especializada 2 328 0,73 (0,10; 3,42) 0,73 (0,10;3,39)
Não especializada 5 602
RC=Razão de Chances; IC=Intervalo de Confiança; RP=Razão de Prevalência.
Fonte: Autoras.
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Considerando a prevalência da VS, especifi- gistro de violência anterior, pode estar relaciona-
camente o estupro, para todo estado, o coeficien- do à dificuldade de identificação e nomeação das
te, a cada 10 mil mulheres, foi de 1,9. Para as ma- situações de violências sexuais que acontecem, de
crorregiões, observamos os seguintes coeficientes forma naturalizada, em nossa sociedade como,
em ordem decrescente de valores: Triângulo do por exemplo, o estupro ocorrido dentro de rela-
Sul (5,3), Jequitinhonha (3,6), Centro (2,3), Tri- ções íntimas, ou outras violências sexuais, como
ângulo do Norte (2,2), Norte (2,1), Leste do Sul o assédio. Isso implica, consequentemente, em
(2,1), Nordeste (1,7), Vale do Aço (1,7), Sudes- problemas no registro de casos (subnotificação) e
te (1,6), Leste (1,4), Noroeste (1,4), Centro Sul na assistência prestadas às mulheres nos diversos
(1,3), Sul (0,9) e Oeste (0,9) (dados não apresen- pontos da rede de atenção à saúde.
tados em tabelas). Mulheres que vivem ou vivenciaram situa-
ções de violência costumam acessar os serviços
de saúde e demandar por atenção à saúde mental
Discussão com frequência, em decorrência do sofrimento
causado por essas situações. Porém, nem sempre,
A partir da análise descritiva dos casos, foi pos- as mulheres ou mesmo as/os profissionais perce-
sível verificar a maior proporção dos estupros bem ou nomeiam o que foi experienciado como
dentre às violências sexuais notificadas em MG. violência. São situações invisíveis e, por vezes, al-
Ainda, verificamos que grande parte dos casos tamente medicalizadas32.
notificados de estupro envolveu meninas entre A VS e o estupro, por suas características, re-
10 e 19 anos, negras, de baixa escolaridade. Es- querem o estabelecimento de ações de urgência,
sas informações corroboram achados de outros demandando de toda rede de serviços que atende
estudos realizados nacional e internacionalmente mulheres em situação de violência, sobretudo a
que informam que, embora as violências estejam saúde, assistência psicossocial, a segurança públi-
presentes na vida de todas as mulheres, as vul- ca e a justiça, a organização de fluxos para garan-
nerabilidades para a VS tendem a ser maiores tir atenção oportuna e de qualidade.
entre as mulheres mais jovens, mulheres com de- Apesar da importância da organização de
ficiência, as pretas e pardas e com baixos níveis redes ampliadas de cuidado e enfrentamento às
educacionais e econômicos4,26,27. Tal constatação, violências, observamos, a partir dos resultados
conduz à reflexão sobre como a intersecção de di- do presente estudo, que as mulheres foram enca-
mensões como gênero, raça, classe, entre outras, minhadas, principalmente, para serviços da rede
potencializa vulnerabilidades e desigualdades socioassistencial e da segurança pública. Consi-
nas situações de violências experimentadas pelas derando que a segurança pública é a área tradi-
mulheres. cionalmente acionada quando da ocorrência de
Embora os dados apresentados no presente casos de violência, os dados observados elucidam
estudo caracterizem as mulheres considerando a importância assumida pela política de Assis-
as dimensões de idade, raça, escolaridade e de- tência Social nos atendimentos de VS, indicando,
ficiência, de forma separada, é necessário refletir também, sua presença e capilaridade nos territó-
que essas características, por vezes, se sobrepõem, rios mineiros.
implicando distintas formas de opressão sobre as É preciso, contudo, refletir sobre os desafios
mulheres. A perspectiva interseccional, contribui de tratar da pauta da violência de forma mais
para essa reflexão, ao propor que as mulheres não ampliada, envolvendo não somente a segurança
são igualmente discriminadas, oprimidas, explo- pública e assistência social, mas outros setores
radas, uma vez que distintos sistemas de poder como a saúde. Serviços de atenção primária a
operam, estabelecendo relações que subjugam e saúde, por exemplo, são potenciais para cons-
oprimem mulheres em relação aos homens e às trução de vínculos com a comunidade e com as
próprias mulheres28,29. mulheres, e conforme apresentado por Santos et
No que se refere à relação entre vítima e agres- al.33, constitui-se elementos essenciais a compo-
sor, diferentemente do que tem sido relatado na rem a rede ampliada de enfrentamento e cuidado
literatura, que aponta o parceiro íntimo como à violência, abordando os casos de forma menos
principal perpetrador de violências contra as invasiva, contribuindo para a proteção das mu-
mulheres23,30,31, os resultados do presente estudo lheres e para o acesso às demais políticas públicas.
informaram que a maior parte dos agressores era Desde a implementação da SPM, o Brasil ini-
desconhecido das vítimas. Esse achado, somado ciou importante movimento no sentido da orga-
ao fato de as mulheres serem solteiras e sem re- nização das redes de atendimentos às mulheres
3725
jurídico para a completa legalização do aborto dado, uma vez que permite visualizar as possibi-
no Brasil”36. Sendo assim, segundo a justificativa, lidades de intervenção e encaminhamentos dos
a especialização do atendimento à VS seria um casos. Nesse sentido, o melhor registro das infor-
estímulo à realização do aborto, o que não foi ob- mações referentes aos atendimentos às mulheres
servado neste estudo. realizados no campo da saúde, incluindo a coleta
O período compreendido entre 2010 e 2015 de vestígios para fins forenses, poderia contribuir
foi especialmente profícuo em relação ao desen- tanto no monitoramento e avaliação da realiza-
volvimento de políticas públicas para qualifi- ção desse procedimento pelos serviços de saúde
cação do atendimento às mulheres em situação quanto na qualificação do cuidado.
de VS no Brasil, implicando o campo da saúde,
de forma direta e objetiva, na rede de enfrenta-
mento à VS, sobretudo nos casos de estupro. A Considerações finais
possibilidade das unidades de saúde do SUS,
além de prestarem cuidados de saúde às vítimas, O presente estudo demostrou a importância da
participarem na coleta de vestígios, que podem continuidade do investimento na qualificação,
contribuir para a persecução penal do agressor, ampliação e melhoria da distribuição das unida-
foi especialmente inovador. Contudo, a descon- des de atendimento especializado em MG, para a
tinuidade nos investimentos, experimentada nos garantia de acesso aos procedimentos preconiza-
últimos anos, pode implicar na estagnação das dos nos casos de estupro, sobretudo dos atendi-
ações ou mesmo em retrocessos. dos na fase aguda (até 72 horas após ocorrência
A organização da assistência prescinde de da- da violência); e, ainda, a urgente necessidade de
dos confiáveis que permitam avaliação e moni- compreensão dos entraves existentes para a im-
toramento dos casos e das ações implementadas. plementação dos serviços especializados.
Os SIS, em especial o SINAN, têm possibilitado, Em relação às características dos casos de VS
a despeito das limitações, a realização de impor- notificados em MG e, considerando ser este um
tantes análises sobre violências contra mulheres, tema complexo e culturalmente sensível, reco-
já que o acesso a parte das informações sobre as nhece-se como necessário, o desenvolvimento de
notificações é livre, por meio do Datasus. esforços apropriados para sensibilizar os serviços
Destaca-se, contudo, uma limitação identi- de saúde em geral, seus gestores e trabalhadores,
ficada no registro de dados referente a coleta de bem como a comunidade, em relação à violên-
vestígios para fins forenses nos casos de estupro. cia de gênero, sobretudo a sexual, capacitando-os
Seja na ficha de notificação de violência interpes- para identificar casos de VS e ofertar atendimen-
soal/autoprovocada (ficha do SINAN), atualizada to adequado e oportuno às mulheres.
em 2015, ou no instrutivo produzido pelo MS Como limitações deste estudo, mencionamos
para orientação de profissionais sobre o preenchi- problemas relacionados à utilização de dados se-
mento da referida ficha, não há menção de cam- cundários, destacamos a subnotificação dos casos
pos específicos para registro dessa informação22. de VS, especialmente a perpetrada por parceiros
No campo 50 da ficha do SINAN, onde são íntimos e as decorrentes da violência domésticas,
informados os procedimentos realizados pelo cujo reconhecimento pode ser mais difícil e, con-
serviço de saúde nos casos de VS, é possível re- sequentemente, a notificação menos realizada;
gistrar a coleta de sêmen e/ou secreção vaginal. a falta de padronização no preenchimento das
Mesmo havendo campo para esse registro, não fichas de notificação do SINAN e a morosidade
está explícito que esses podem ser preenchidos na disponibilização dos dados no Datasus para
quando coletados materiais para fins foren- acesso público.
ses. Não há, ainda, espaço para registro de ou- Destaca-se, ainda, a baixa completude dos
tras coletas eventualmente realizadas para esses campos referentes às informações socioeconômi-
fins, como, por exemplo, secreção anal, vestígio cas das mulheres e sobre os procedimentos rea-
subungueal, cabelo e pelo, vestes e objetos com lizados pelos serviços de saúde no atendimento
possível presença de sêmen e/ou outros fluidos aos casos de estupro. A ausência de dados, assim
biológicos para pesquisa de DNA, dados que como o preenchimento incorreto de campos da
também podem contribuir para produção de ficha de notificação, pode ocultar informações
prova pericial, conforme prevê a norma técnica relevantes para compreensão das característi-
produzida pelo MS em 201522. cas da VS e do seu atendimento pelos serviços
Para além do caráter epidemiológico, a ficha de saúde de MG, ou mesmo mascará-los, o que
do SINAN pode contribuir na orientação do cui- pode comprometer os resultados da pesquisa.
3727
CM Melo participou da concepção do estudo, 1. Costa MC, Lopes MJM, Soares JSF. Violence against
rural women: gender and health actions. Esc Anna
análise e interpretação dos dados, redação, re-
Nery 2015; 19:162-168.
visão crítica do conteúdo e aprovação da versão 2. Silva LEL, Oliveira LC. Características epidemiológi-
final do manuscrito. MQ Soares participou da re- cas da violência contra a mulher no Distrito Federal,
dação, revisão crítica do conteúdo e aprovação da 2009 a 2012. Epidemiol Serv Saude 2016; 25(2):1-2.
versão final do manuscrito. PD Bevilacqua parti- 3. World Health Organization (WHO). Guidelines for
Medico-Legal Care of Victims of Sexual Violence. Ge-
cipou da concepção do estudo, redação, revisão
neva: WHO; 2003.
crítica do conteúdo e aprovação da versão final 4. World Health Organization (WHO). Violence against
do manuscrito. Women: Intimate Partner and Sexual Violence Have
Serious Short- and Long-Term Physical, Mental, Sexual
and Reproductive Health Problems for Survivors: Fact
Sheet. Geneva: WHO; 2019.
Agradecimentos
5. Winzer L. Frequency of self-reported sexual aggression
and victimization in Brazil: a literature review. Cad
As autoras agradecem à Fundação de Amparo à Saude Publica 2016; 2(7):S0102-311X2016000702001.
Pesquisa do Estado de Minas Gerais (FAPEMIG), 6. Soares CVP. Qualidade dos dados das notificações de
pelo apoio financeiro e concessão de bolsa de pes- violência contra mulheres no Estado de Minas Gerais,
2011 a 2018 [dissertação]. Belo Horizonte: Fiocruz
quisa, por meio do Programa de Pesquisa para o
Minas; 2021.
SUS: Gestão Compartilhada em Saúde (PPSUS) 7. Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP).
- Chamada 3/2020 (Processo APQ-00814-20). Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2019 [Inter-
net]. [acessado 2021 nov 16]. Disponível em: http://
www.forumseguranca.org.br/wp-content/uplo-
ads/2019/09/Anuario-2019-FINAL-v3.pdf.
8. Brasil. Secretaria Nacional de Enfrentamento à Vio-
lência contra as Mulheres. Política Nacional de Enfren-
tamento Da Violência Contra as Mulheres [Internet].
2011 [acessado 2021 nov 16]. Disponível em: https://
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