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Artigo
Término de relacionamentos íntimos violentos: uma revisão da literatura
Sheila Giardini Murta*
Priscila de Oliveira Parada
Universidade de Brasília, Brasília, DF, Brasil
Resumo: Este artigo analisa avanços e limitações na produção científica acerca do processo de término de relações
íntimas violentas. Realizou-se busca nas bases de dados Portal de Periódicos Capes e SciELO, com entradas em
inglês, francês, espanhol e português. O critério de inclusão foi tratar do término de relações amorosas violentas ou
de aspectos da decisão ficar versus sair. Encontraram-se catorze estudos publicados entre 1999 e 2015, dos quais
metade tinha design quantitativo e a outra metade, qualitativo. Estas variáveis mostraram correlação com o avanço
rumo ao término nos estudos quantitativos: nível de investimento, comprometimento, normas subjetivas, atribuir
ao agressor a responsabilidade pela agressão, sentimento de raiva, barreiras e facilitadores estruturais. Para os
sete estudos qualitativos, observaram-se: a proposta de novos modelos de compreensão, a maior variabilidade de
recrutamento das amostras e a consideração do período pós-separação nas análises. Discutem-se recomendações
para a prática profissional e a pesquisa.
Palavras-chave: violência doméstica, violência por parceiro íntimo, violência contra a mulher.
Estudos acerca da prevalência e dos impactos da intervenções realizadas com homens autores de violência
violência nos relacionamentos íntimos são crescentes encaminhados pela justiça (Akoensi, Koehler, Lösel, &
e têm se tornado cada vez mais importantes, tanto na Humphreys, 2013; Feder & Wilson 2005; Feder, Wilson, &
compreensão desse fenômeno como na construção de Austin, 2008). As revisões da literatura sobre o tema
diretrizes das políticas públicas relacionadas ao tema (Feder & Wilson 2005; Feder et al., 2008) mostraram
(Brasil, 2006). Dados sobre a prevalência apontam que que estudos que utilizaram métodos experimentais
ao menos uma em cada cinco mulheres brasileiras sofrem para avaliação de efeitos das referidas intervenções
com a violência nos relacionamentos (DataSenado, 2013) apresentaram efeitos modestos quando comparados os
e que 43% das mulheres que buscam ajuda via assistência grupos de tratamento e controle. Por sua vez, aqueles
telefônica são agredidas diariamente e 35%, semanalmente de delineamento quase-experimental com grupo de
(Secretaria Especial de Políticas para as Mulheres, 2012). comparação sem tratamento indicaram resultados
Esses dados, contudo, ainda devem ser tratados como inconsistentes, com possibilidades de pequenos
limites mínimos, uma vez que é comum que tanto efeitos prejudiciais. As evidências, portanto, apontam
mulheres como homens não saibam reconhecer formas para o fraco efeito das intervenções direcionadas
de violência diversas da agressão física. aos agressores existentes atualmente. Por um lado,
Nesse contexto, os estudos sobre término de isso suscita a necessidade de investigações que permitam
relacionamentos violentos apresentam potencial de o desenvolvimento de técnicas e intervenções mais
maior esclarecimento sobre os processos que propiciam efetivas e, por outro, que as intervenções destinadas à
o fim desse tipo de relação. Ampliar a compreensão superação da violência enfoquem tanto as mudanças de
desse processo complexo poderá gerar conclusões comportamento do agressor quanto a possibilidade de
relevantes e aplicáveis às políticas públicas e aos abandono da relação pela vítima.
serviços de prevenção – no sentido do abandono precoce Nesse sentido, resta analisar as possibilidades
de relações que se mostrem violentas – e de suporte a relacionadas ao outro caminho possível: o término
vítimas de violência. do relacionamento. Essa, contudo, não se mostra uma
A superação da condição de violência no via simples, envolvendo outras tantas ramificações de
relacionamento engloba mais de um caminho possível. possibilidades no que diz respeito à continuidade versus
Uma primeira variante seria a interrupção da violência superação da violência. Em primeiro lugar, sabe-se que o
dentro do próprio relacionamento. Outra possibilidade término não necessariamente significa o fim da violência
consistiria no término da relação violenta. Sobre a primeira e, em alguns casos, a avaliação dos riscos diante de
opção, contudo, revisões sistemáticas e metanálises uma ou outra opção pela vítima leva-a a concluir que
têm apontado para a inconsistência dos resultados de a permanência, ao menos no curto prazo, é a opção
mais segura (Anderson, 2003; Bell, Goodman, &
* Endereço para correspondência: giardini@unb.br Dutton, 2007; Meyer, 2012).
http://dx.doi.org/10.1590/0103-6564e200046
Sheila Giardini Murta& Priscila de Oliveira Parada
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Em segundo, os resultados de alguns estudos Saunders (2003) consistiu no conceito de comprometimento
demonstraram que o término da relação não necessariamente com o relacionamento, hipotetizando que mulheres com
é definitivo (Bell et al., 2007; Shurman & Rodrigues, 2007) maior comprometimento tenderiam a permanecer mais
e, ainda, que nem sempre é acompanhado de bem-estar. no relacionamento. Essa relação foi observada quando se
Shurman e Rodriguez (2007), nesse sentido, encontraram utilizaram medidas subjetivas (ex.: sentimentos positivos
a depressão como aspecto emocional associado ao período em relação ao parceiro), contudo mostrou-se mais fraca
que segue o término da relação. Esses resultados apontam diante de medidas objetivas (ex.: tempo e status do
para a necessidade de estudos que clarifiquem quais outros relacionamento). As variáveis ligadas a recursos externos,
fatores contribuem para a melhoria da qualidade de vida especialmente aquelas relacionadas à renda, por sua vez,
de pessoas que conseguem sair de relações violentas e da foram as que se apresentaram mais consistentes e
revisão das políticas públicas, cuja atuação não se encerra tiveram maior poder de predição ao longo dos estudos.
quando ocorre a separação. Nesse sentido, menos acesso a renda própria ou a outros
Em terceiro lugar, existe a possibilidade do recursos externos dificultou o término da relação.
engajamento em novas relações violentas após o abandono Por fim, os estudos que inseriram variáveis
da anterior. Martsof, Draucker, Stephenson, Cook e relacionadas às estratégias de enfrentamento da violência
Heckman (2012), em um estudo qualitativo envolvendo são apontados por Anderson e Saunders (2003) como
88 participantes, encontraram que 32 haviam vivido precursores da ideia do abandono enquanto processo.
mais de um namoro violento no período da adolescência. Essas pesquisas evidenciaram que mulheres com maior
Isso ressalta o fato de que a superação do ciclo da violência número de tentativas de término definitivo foram as
é um fenômeno complexo e ainda pouco conhecido que mais aptas a alcançá-lo e que aquelas que empregaram
merece muita atenção. múltiplas estratégias de enfrentamento, além do
Embora o abandono do relacionamento não se rompimento, tinham maiores chances de conseguirem
constitua em todos os casos como uma opção viável – se separar. A autora e o autor indicam, ainda, a mudança
ao menos no curto prazo – ou não implique necessariamente proporcionada por essas pesquisas no foco de interesse,
o fim da violência, ele segue sendo um caminho possível, que deixa de residir nos motivos pelos quais as mulheres
direcionado ao empoderamento e cuja compreensão permanecem na relação para aqueles que permitem que
tem potencial de aprimorar as políticas de atendimento elas as deixem (Anderson & Saunders, 2003).
a vítimas de agressões por parceiros íntimos, seja pela No que diz respeito às investigações qualitativas,
oferta de novos serviços voltados a necessidades que Anderson e Saunders (2003) apontaram para maior
atualmente não são atendidas ou não entraram na agenda, tendência, nesses estudos, de conceituar o abandono como
pelo desenvolvimento de perspectivas preventivas, um processo que não se restringe ao término definitivo,
especialmente da prevenção indicada (aquela direcionada mas envolve decisões e ações que ocorrem durante meses
a pessoas que já apresentam um problema em estágio ou anos. Os pesquisadores interpretam o fenômeno,
inicial), ou pela qualificação de técnicas e métodos de portanto, como esforços ativos e cumulativos pelos
intervenção mais eficazes nos serviços já existentes. quais as mulheres aprendem gradualmente estratégias
No único artigo anterior encontrado de revisão de mais efetivas para lidar com o abuso, incluindo o
literatura sobre o tema do abandono de relações violentas, abandono. O modelo transteórico de mudança (Prochaska,
Anderson e Saunders (2003) ressaltaram a consistência DiClemente, & Norcross, 1984) destacou-se como
de variáveis e as tendências na agenda de pesquisa referencial de interpretação dos dados qualitativos entre
em 20 estudos quantitativos e 28 estudos qualitativos os estudos incluídos na revisão. Eles identificaram que as
publicados entre 1976 e 2001. No que diz respeito aos mulheres passaram por um aumento de suas perspectivas
estudos quantitativos, essa revisão identificou a existência que, em alguns casos, ocorreu repentinamente, mas,
de quatro grupos de variáveis sobre as quais os estudos na maioria, desenvolveram-se a partir de percepções
se concentraram: frequência e severidade da violência, fugidias sobre a relação e sobre si. Como catalizadores no
história de vitimização da mulher na infância ou família processo de abandono da relação, as pesquisas qualitativas
de origem, fatores psicossociais, recursos externos e englobadas pela revisão encontraram aumento no nível
estratégias de enfrentamento anteriores. Sobre a relação da violência, menor quantidade de carinho e dedicação
entre frequência e severidade da violência e término pelo parceiro, perda da esperança na melhoria da relação,
da relação, os estudos mostraram-se inconsistentes, perceber o efeito do abuso nos filhos e a rede de suporte
provavelmente em razão de conceituação da severidade social comunitária e profissional.
e de medidas utilizadas. O mesmo ocorreu no que diz Anderson e Saunders (2003) destacam, ainda,
respeito à vivência de violência na infância ou família aspectos relacionados ao bem-estar psicológico após
de origem, tendo sido os resultados entre os estudos a separação. Essa foi uma lacuna identificada por eles
inconsistentes para apontar esse como um fator que naquele momento da produção científica. Entre os poucos
facilite ou dificulte o abandono da relação. estudos analisados por eles que se preocuparam com isso,
Sobre os fatores psicossociais, o mais estudado os resultados mostraram que, na medida em que passa o
nas pesquisas incluídas na revisão de Anderson e tempo desde a separação, aumenta o bem-estar psicológico.
Abstract: This article analyzes the advances and limitations in the scientific production regarding the process of leaving violent
intimate relationships. For that, articles addressing leaving violent relationships or the stay/leave process as the main theme,
written in English, Portuguese, Spanish, and French, were searched in Periódicos Capes and SciELO Web searches. The search
resulted in 14 articles published between 1999 and 2015 – half with a quantitative design and the other half with a qualitative
design. Investment, commitment, subjective norms, responsibility attribution, anger, and structural barriers and facilitators
were correlated with the leaving process. These studies also understood the end of relationship as a process. Qualitative studies
proposed new models, focused on strategies that enable the leaving process, and considered the post-separation period in the
analysis. Thus, this study provides recommendations for professional practice and further research on the theme.
Résumé : Cet article analyse les avances et les limites de la production scientifique sur le processus de rompre des relations
intimes violentes. On a mené une recherche dans les bases de données Portal Periódico Capes et SciELO, avec des mots-clés
en anglais, français, espagnol et portugais. Les études discutant la fin des relations amoureuses violentes ou les aspects de la
décision de rester ou de partir ont été incluses. On a trouvé 14 études publiées entre 1999 et 2015, dont la moitié avait une
conception quantitative et l’autre moitié, qualitative. Dans les sept études quantitatives, les variables suivantes ont montré une
corrélation avec la progression vers la fin de la relation : niveau d’investissement, engagement, normes subjectives, attribution
de la responsabilité de l’agression à l’agresseur, colère, obstacles et facilitateurs structurels. Pour les sept études qualitatives,
on a observé : la proposition de nouveaux modèles de compréhension, la plus grande variabilité dans le recrutement des
échantillons et la prise en compte de la période post-séparation dans les analyses. Des recommandations pour la pratique
professionnelle et la recherche sont discutées.
Mots-clés : violence domestique, violence envers le partenaire intime, violence contre les femmes.
Resumen: Este artículo analiza los avances y las limitaciones en la producción científica sobre el proceso de término de relaciones
de parejas violentas. Se realizaron búsquedas en las bases de datos Portal de Periódicos Capes y SciELO con entradas en inglés,
español, francés y portugués. Los criterios de inclusión fueron tratar del término de relaciones de pareja violentas o de aspectos
de la decisión de quedarse versus dejar. Se incluyeron 14 estudios publicados entre 1999 y 2015, los cuales la mitad fue de
enfoque cuantitativo, y la otra mitad, cualitativo. Estas variables tuvieron correlación con el avance al término en los estudios
cuantitativos: nivel de inversión, compromiso, normas subjetivas, atribuir responsabilidad al agresor por la agresión, sentimiento
de rabia, barreras y facilitadores estructurales. Para los siete estudios cualitativos se observó: la propuesta de nuevos modelos
de comprensión, la variabilidad de reclutamiento de los muestreos y la consideración del período que sigue la separación en los
análisis. Se discuten recomendaciones para la práctica profesional e investigación.
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