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RESUMO: O objetivo deste texto é apresentar e ABSTRACT: The purpose of the text is to pres- CASSIA DE FREITAS
discutir histórias das várias vitimizações sofridas ent and discuss history of the various victim- TEIXEIRA PASSARELA1
pela ofensora sexual do gênero feminino, buscan- izations suffered by the female sex offender in
do contribuir para os atendimentos psicossociais. order to contribute to psychosocial care. It is a
LUCY MARY
Trata-se de um recorte de pesquisa desenvolvida research cut developed in partnership between
CAVALCANTI STROHER1
em parceria entre uma instituição pública e uma a public institution and a public university, and
universidade pública, e a opção metodológica foi a the methodological option was the documentary
pesquisa documental, com a obtenção das infor- research, with the obtaining of information taken LIANA FORTUNATO
mações retiradas diretamente do registro contido directly from the record contained in the institu- COSTA2
nos prontuários da instituição. As participantes tion’s health records. The participants were five
foram cinco mulheres com idades entre 19 e 52 women between the ages of 19 and 52 who re-
anos que receberam atendimento psicossocial ceived psychosocial care after referral of justice 1
Secretaria de Estado de
após encaminhamento de serviços de justiça e and health services during the first half of 2018. Saúde do Distrito Federal
saúde, durante o primeiro semestre de 2018. Os The results point to stories of intense suffering (DF), Brasília, Brasil
resultados apontam histórias de intenso sofrimen- experienced by these women who started very
to vividas por essas mulheres que tiveram início early in childhood, being continuous, permanent, 2
Universidade de Brasília,
muito precocemente na infância, sendo contínuas, with many facets: physical, neglect, street life and Brasília (DF), Brasil
permanentes, com várias facetas: física, abando- sexual violence. There were still deaths, separa-
no, negligência, vivência de rua, violência sexual. tions, rupture of affective bonds, great changes
Ainda ocorreram mortes, separações e ruptura de and disengagement of the environment and of
vínculos afetivos, grandes mudanças e desvin- people. The experience of these various violence
culações do ambiente. A vivência dessas várias has had grave consequences on the development
violências trouxe consequências graves para o de- of affectivity and the establishment and mainte-
senvolvimento da afetividade e estabelecimento e nance of binding relationships. These results co-
manutenção de relações vinculares. Esses resul- incide with the international literature. The aspect
tados são coincidentes com a literatura internacio- analyzed in this text needs to be included in any
nal. O aspecto analisado nesse texto necessita ser program of psychosocial or clinical intervention
considerado em qualquer programa de interven- with these women.
ção psicossocial ou clínico com essas mulheres.
KEYWORDS: Sexual offender female; Sexual
PALAVRAS-CHAVE: Mulher ofensora sexual; Abuso abuse; Violence; Victimization.
sexual; Violência; Vitimização.
Este texto tem por objetivo apresentar e discutir as histórias das várias
vitimizações sofridas pela ofensora sexual do gênero feminino, conforme é relatado
amplamente pela literatura internacional (Cauffman, 2008; Comartin, Burgess-
Proctor, Kubiak & Kernsmith, 2018; Grattagliano, Owens, Morton, Campobasso,
Carabelle, & Catanesi, 2012; Levenson, Willis, & Prescott, 2015; Strickland, 2008; Recebido em: 09/01/2019
Willis & Levenson, 2016). Os casos de violência sexual cometidos por mulheres Aprovado em: 25/04/2019
http://dx.doi.org/10.21452/2594-43632019v28n64a04
tiveram identificação, em países de lher adulta ou adolescente, em nosso
48 NPS 64 | Agosto 2019
língua inglesa, a partir das décadas país, é praticamente nulo. No Distrito
de 1980/1990 (Pflugradt, Allen, & Federal (Brasil), no ano de 2018, ha-
Marshall, 2018). Ainda hoje muitos viam cinco mulheres adultas senten-
casos se mantêm desconhecidos e ciadas por abuso sexual e recolhidas
inacessíveis, e há uma tendência a ao sistema prisional (Ronny Alves de
serem menosprezados por conta do Jesus, comunicação pessoal, em 15 de
mito sobre a mulher, vista sempre outubro de 2018). E é muito recente o
como cuidadora (Strickland, 2008). despertar do interesse do Ministério
Essa desqualificação da violência Público por encaminhamento para
cometida por mulheres contra crianças atendimento clínico dessas mulheres
e adolescentes é particularmente (Thiago André Pierobom de Ávila, co-
observada no contexto jurídico que municação pessoal, em 15 de outubro
se mostra leniente e, muitas vezes, de 2018). Dessa forma, constata-se que
irresponsável em relação a identificar começa a surgir uma demanda institu-
e responsabilizar a mulher ofensora cional mais sistematizada por identi-
sexual (Cauffman, 2008; Kington, ficar mulheres que cometeram ofensa
2014). Por outro lado, há uma sexual e se estabelecer oferecimento
tendência a se categorizar a mulher de ações de atendimento psicológi-
ofensora sexual como portadora de co a essa população. Exemplo disto é
problemas mentais, ou então como que o Ministério da Saúde (2015), na
pessoa má, evidenciando com esta ficha de notificação de violência inter-
leitura patologizante ou moralista pessoal/autoprovocada, trouxe espaço
uma dificuldade geral (até mesmo para preenchimento de variável sobre
de profissionais da psicologia e o tipo de violência sexual praticada, o
juristas) de reconhecer sua condição sexo e a faixa etária do autor da vio-
de sofrimento. Em outros termos, lência, no intuito de mapear e trazer
de se aproximar da subjetividade ao conhecimento público essa preva-
das mulheres em questão e, até, de lência. Espera-se, em futuro próximo,
realizarem o encaminhamento para haver conhecimento mais detalhado
atendimento específico (Cauffman, desse fenômeno, no entanto, agora o
2008; Nicoletti, Giacomozzi, & Cabral, índice de mulheres autoras de violên-
2017; Peter, 2006). cia sexual é quase inexistente.
A indicação correta de prevalência Este texto pretende contribuir não
do abuso sexual cometido por apenas para visibilizar estas mulheres
mulheres é desconhecida. Alguns que ofenderam sexualmente, porém,
estudos apontam uma prevalência mais especificamente contribuir para
de 4% a 6% de ocorrência de abuso a iniciativa de encaminhamentos para
sexual cometido por mulheres em atendimentos na rede (pública e priva-
comparação com o cometimento de da). Além disso, apresenta as histórias
abusos sexuais de forma geral. Porém, de violências sofridas e vitimizações
essa estimativa pode ser maior se a pelas mulheres adultas ofensoras se-
contagem for realizada a partir do xuais em concordância com a una-
relato de adultos que foram vítimas nimidade dos autores internacionais
sexuais de mulheres na infância que privilegiam o conhecimento desse
(Cortoni, Babchishin, & Rat, 2017). aspecto no tratamento desses sujeitos
O conhecimento sobre o cometi- (Blom, Högberg, Olofsson, & Daniels-
mento da violência sexual por mu- son, 2014; Kington, 2014; Levenson
graves injúrias na infância e na pré- intensa com preconceitos de gênero, Liana Fortunato Costa
do ao Comitê de Ética do Instituto de Logo em seguida são relatadas, com Liana Fortunato Costa
Idade Vitimizações
Violência Violência
Idade Violência Violência Trabalho Situação
Participantes sexual sexual Abandono Negligência
atual física psicológica infantil de rua
intrafamiliar extrafamiliar
11, 22 a
1 52 17 a 19 11 e 14 22 a 27 11
27
2 41 8, 12 e 40
Infância Infância
3 45 25 a 41 10
25 a 41 25 a 41
4 29 9 e 13 13 e 16 15 14
6, Infância,
5 19 17
adolescência 17
no mesmo quarto do casal. Uma das e, principalmente, a violência sexual. Liana Fortunato Costa
que não podem ser vistas como agres- da da justiça, o encaminhamento para Lucy Mary Cavalcanti Stroher
Liana Fortunato Costa
soras, pois são as mães. Desse modo, atendimento é visto como o momento
as ofensoras se mantêm sem denúncia, mais próximo a um possível processo
responsabilização e, o mais importante: de reconhecimento desse dano.
sem receberem qualquer tipo de ajuda Kington (2014) é explícita em afir-
(Gannon & Alleyne, 2013; Grattaglia- mar que a justiça criminal é leniente
no et al., 2012; Levenson et al., 2015; com a mulher que ofende sexualmen-
Willis & Levenson, 2016). Os precon- te, em especial com a mãe que assim
ceitos de gênero influenciando nega- procede. Peter (2006) também aponta
tivamente a identificação da violência a presença de preconceito indicando
cometida por mulheres podem se mos- que a criança sob a responsabilidade
trar impactantes no contexto jurídico e da mãe está sempre protegida, o que
clínico (Pflugradt, Allen, & Marshall, não é verdade sempre. Há uma ver-
2018; Weinsheimer, Woiwod, Coburn, dadeira “cegueira” da sociedade em
Chong, & Connolly, 2017). sequer duvidar dessa assertiva porque
Com relação à responsabilização, a sociedade descreve o homem abusa-
observa-se uma débil resposta da so- dor sexual como mau/monstro/diabo,
ciedade e da justiça. A participante 1 e não há espaço para a desconfiança
foi a que teve uma responsabilização em relação à qualidade das ações da
mais definida: foi condenada a oito mulher. Com relação à mulher que
anos de prisão por cada vítima, perda abusa sexualmente, a sociedade não
do pátrio poder (artigos 214, atenta- sabe como classificar ou onde colocar
do violento ao pudor, posteriormente essa informação. A mulher ofenso-
revogado, juntamente com o artigo ra sexual é vista como doida, pessoa
224, alínea “a”, presunção de violência ruim ou, até mesmo, doente mental,
– menor de 14 anos, posteriormente face à dificuldade de compreender que
revogado, e artigo 226, inc. III e art. se trata de uma expressão de grave dis-
71 / Todos os crimes praticados em túrbio emocional e psíquico e que esta
acordo com o art. 5º - violência do- ofensora necessita de atendimento es-
méstica, da Lei n. 11.340/2006 (Lei pecializado (Willis & Levenson, 2016).
Maria da Penha). Ela foi presa e per- Sobre as vítimas, é importante re-
maneceu em regime fechado por um portar que, quando houve notifica-
ano e seis meses, em regime semia- ção ao sistema de saúde, por meio do
berto por um ano e, no momento, está preenchimento da Ficha de Notifica-
em prisão domiciliar até 2019. Sobre a ção de Agravos (Ministério da Saúde,
participante 2 não houve notificação, 2015), e posterior denúncia, houve
e a participante 3 não tem ainda con- também encaminhamento para aten-
clusão sobre o processo criminal. O dimento psicológico, como foi o caso
mesmo se seguiu com a participante 4, das três filhas da participante 1, e das
que teve processo criminal arquivado, duas filhas da participante 4. Autores
e a participante 5 não teve nenhuma como Cortoni et al. (2017), Blom et al.
notificação e nem denúncia. Punição (2004), Goldhill (2013), Peter (2006),
e responsabilização são condições Willis e Levenson (2016) compro-
diferentes. Considera-se responsa- varam em estudos qualitativos com
lescentes (Lei n. 8069/1990). Observa- the Female Offender.The Future Liana Fortunato Costa
(https://orcid.org/0000-0001-5662-5024)
Assistente social, Programa de Pes-
quisa, Atenção e Vigilância à Violên-
cia. Secretaria de Estado de Saúde do
Distrito Federal. Programa de Pesqui-
sa, Atenção e Vigilância à Violência –
PAV Alecrim – Secretaria de Estado de
Saúde do Distrito Federal (SES-GDF).
E-mail: pav.alecrim@gmail.com
(https://orcid.org/0000-0002-4525-9281)
Assistente social, Programa de Pes-
quisa, Atenção e Vigilância à Violên-
cia. Secretaria de Estado de Saúde do
Distrito Federal. Programa de Pesqui-
sa, Atenção e Vigilância à Violência –
PAV Alecrim – Secretaria de Estado de
Saúde do Distrito Federal (SES-GDF).
E-mail: lustroher@gmail.com
(http://orcid.org/0000-0002-7473-1362)
Psicóloga, Programa de Pós-Gradua-
ção em Psicologia Clínica e Cultura da
Universidade de Brasília (PPGPSICC-
-IP-UnB).
E-mail: lianaf@terra.com.br