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06912021 1327
artigo article
de mães de vítimas de ação policial no Rio de Janeiro, Brasil
Abstract This paper addresses the experiences of Resumo Este artigo trata das experiências de
Black women organized in social activism to fight mulheres negras organizadas em grupos de ativis-
for justice for the deaths of their children, victims mo social para lutar por justiça pelas mortes dos
of police brutality. These deaths are analyzed as seus filhos, vítimas da atuação violenta de agentes
part of the genocide of Black people and result do Estado. Essas mortes são analisadas como parte
from the action of a State operating in a necrop- do genocídio da população negra e são resultado
olitical fashion, in which racism is an ideological da ação de um Estado que opera no modo necro-
tool for the production of disposability of Black político, em que o racismo é ferramenta ideológica
bodies. In this work, the stories of four women para a produção de descartabilidade de corpos ne-
living in territories dominated by gun violence gros. Neste trabalho, a partir dos relatos de quatro
in Rio de Janeiro reveal how they organize them- mulheres residentes em territórios dominados pela
selves politically to fight for justice, memory and violência armada no Rio de Janeiro, conhecemos
reparation; and their illnesses and individual and a forma como elas se organizam politicamente na
collaborative care strategies. We observe the refus- luta por justiça, memória e reparação; e também
al of their demands by the health system and the seus adoecimentos e estratégias de cuidado indivi-
social assistance policies, while the activism stands dual e coletivo. Observamos a ausência de abrigo
out as a producer of care and acceptance. das suas demandas pelo sistema de saúde e pelas
Key words Black motherhood, Black genocide, políticas de assistência social, ao passo que o espa-
Mothers’ activism, Racism, State violence ço do ativismo se destaca como produtor de cuida-
do e acolhimento.
Palavras-chave Maternidade negra, Genocídio
negro, Movimento de mães, Racismo, Violência
do Estado
1
Instituto de Saúde Coletiva,
Universidade Federal da
Bahia. R. Basílio da Gama
s/n, Canela. 40110-040
Salvador BA Brasil.
veronica.sa.med@gmail.com
2
Escola Nacional de Saúde
Pública Sérgio Arouca,
Fundação Oswaldo Cruz.
Rio de Janeiro RJ Brasil.
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Araújo VS et al.
Os Movimentos de Mães identificam a raça A gente vê muito caso disso, que ele já rendido, foi
como um dos principais elementos para a des- morto, mas tava roubando, aí a mãe não cai na
cartabilidade das vidas dos seus filhos e comuni- luta (Carolina, entrevista individual).
dades. O processo de construção de consciência A realidade que o Movimento de Mães en-
racial dessas mulheres é muitas vezes marcado frenta é a de impunidade. Segundo relatório da
pela observação da semelhança racial entre as Anistia Internacional, estima-se que apenas 5%
que são chamadas de “mães de bandido”, as que a 8% dos homicídios no país sejam elucidados29.
se organizam em filas para visitar os filhos encar- Nos casos registrados como “homicídio decor-
cerados e as que choram a morte dos seus filhos rente de intervenção policial”, a impunidade é
vítima de violência do Estado. mais acentuada, muito em decorrência de graves
O seu ativismo representa, também, uma ten- falhas no processo de investigação29. A responsa-
tativa de resgate, no debate público, da humani- bilização legal dos agentes públicos, além da re-
dade negada aos seus filhos. A busca por repara- paração financeira, exerce um papel de efetivação
ção moral diante da opinião pública ganha, para da justiça e de combate à cultura de impunidade,
essas mulheres, um lugar tão importante quanto que encoraja a ação violenta dos agentes de segu-
a luta por punição dos envolvidos nesses crimes. rança nas favelas.
A preservação da memória de seus filhos é uma Para Carolina, a impunidade é um fator dire-
das razões que as fazem continuar no ativismo. tamente ligado à repetição de casos similares ao
Elas costumam repetir que seus filhos estão vivos seu. Ela segue argumentando que a sua luta por
por meio das suas vozes14,25,28: justiça é também contra a impunidade, mas que a
Quando meu filho morreu, ele foi chamado observação das repetições dos casos a desanima:
de bandido pelo Wagner Montes. Uma pessoa que Queria que eles pagassem pelo erro deles, por-
acordava às quatro da manhã ser tachada de ban- que ia saber que não era pra tá fazendo isso com
dido? (Lélia, entrevista individual). outras pessoas, mas parece que quanto mais pren-
Quando ele foi assassinado, o Wagner Montes de, mais eles faz. Não adianta nada a gente querer
falou na televisão que meu filho era bandido. Eu pedir justiça porque vão prender, depois os cara
me desesperei vendo o rostinho dele na TV, meu fi- solta, começa a matar de novo. Se expulsar vai vi-
lho morreu uma segunda vez ali. [...] Eles tratam rar miliciano. Aí que vai matar com toda força! Às
sempre de colocar como se as pessoas que moram na vezes a gente se sente inútil, porque tá lutando, tá
favela pudessem ser mortas. Uma das coisas que eu lutando, tá lutando e vê essas coisas acontecendo
mais me ponho de pé nessa luta é eu poder colocar (Carolina, entrevista individual).
a camisa com a foto do meu filho, estampar o rosto Em face dessa realidade tão adversa, para Smi-
dele no meu peito e levar ele pras pessoas saberem. th17, se a necropolítica antinegritude, empregada
Ele tem família, ele tem mãe, ele tem amigos, pessoas como política transnacional, busca exterminar
que sofrem até hoje pela ausência dele. A gente não corpos negros, então, a maternidade negra é a
tem que se esconder, quem tem que se esconder são antítese deste processo, dada a sua inerente fun-
esses assassinos (Dandara, entrevista individual). ção de reprodução e preservação das vidas negras.
Essas mães enfrentam a exposição em pro- Como apontado por Audre Lorde, “[n]ão era para
gramas de televisão que acompanham as notícias termos sobrevivido”, mas mães negras sempre
policiais, amplificando e naturalizando a violên- criaram estratégias de sobrevivência14(p.192).
cia. O que se observa é a produção de um popu- A morte brinca com balas nos dedos gatilhos
lismo penal midiático que lucra com a explora- dos meninos. Dorvi se lembrou do combinado, o
ção de crimes e estimula a vingança contra um juramento feito em voz uníssona, gritado sob o pi-
Outro construído como “bandido”, quase sempre pocar dos tiros: - A gente combinamos de não mor-
pobre, negro e anônimo21. rer!30(p.99).
Para Carolina, cujo filho já havia sido preso
em ocasião anterior, a entrada na luta foi ainda Violência e adoecimento
mais difícil, tendo sido desencorajada por diver-
sas vezes. Ela conta que chegou a ouvir de vizi- Uma das únicas publicações dedicadas à saú-
nhos “vai lutar por quê, sua filha da puta? se ele de da mulher negra no Brasil, O Livro da saúde
era envolvido?”, mas relata que seu ativismo é das Mulheres Negras, possui um capítulo dedi-
também para encorajar outras mulheres: cado exclusivamente às perdas para a violência
Se ele foi abordado e depois foi morto, então e suas consequências para a saúde. Neste capítu-
aquela mãe tem que tá sim na luta. Não é porque lo, Davis descreve experiências de desassistência
tava traficando, que ela tem que deixar pra lá. [...] compartilhadas por sua comunidade:
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perda dos seus filhos. Elas costumam usar o ter- para tratar o trauma pela perda do irmão. Lélia
mo “queda” como sinônimo de depressão, ou de também relatou que seu neto de 10 anos apre-
uma tristeza profunda que pode impossibilitar a sentou uma mudança brusca de comportamento
mãe de seguir na luta. Em contrapartida, a cate- após a perda do tio:
goria “levantar” se refere ao retorno ou entrada Ele diz que o tio ia voltar pra soltar pipa com
na luta após um período de depressão: ele e não voltou. Ele não solta mais pipa. [...] A
Quando a gente se levanta, a gente percebe que professora chamou a minha filha na escola porque
a gente tem força [...]. A minha preocupação hoje é todas as vezes que fala de família na sala de aula ele
com a saúde, porque a gente tem visto muitas mães chora (Lélia, entrevista individual).
morrendo, muitas mães adoecendo, é preciso ter As próprias mães, além do adoecimento psí-
saúde pra poder seguir nessa caminhada (Danda- quico, referem o surgimento ou agravamento
ra, grupo focal). de outras doenças, como hipertensão arterial
O movimento é bom porque é uma levantando sistêmica, diabetes, gastrite, dermatite e artrite
a outra (Carolina, grupo focal). reumatoide. A insônia e a perda de memória são
Assim como a depressão, o TEPT é um diag- condições que chamam particularmente a aten-
nóstico comum entre as co-vítimas de homicí- ção, por terem sido relatadas por todas as mães.
dio33, sendo caracterizado por insônia, ataques Todas elas também relataram ter recebido
de pânico, flashbacks, isolamento social, estado pouco ou nenhum apoio institucional frente à
de alerta constante, entre outros sintomas. A ti- perda do filho. Por outro lado, todas encontra-
pificação desse transtorno surgiu para abordar os ram apoio em organizações comunitárias de
quadros apresentados por pessoas que vivencia- combate à violência, as quais também foram as
ram eventos violentos, como soldados em guer- principais responsáveis pelo seu acesso a serviços
ra, vítimas de estupro ou de catástrofes naturais36. de saúde. Uma das únicas instituições públicas
Atualmente, esse diagnóstico também se aplica a que as acolheu foi a Comissão de Direitos Huma-
situações traumáticas da vida cotidiana, como as- nos da Assembleia Legislativa do Estado do Rio
saltos e sequestros. Em geral, os indivíduos aco- de Janeiro. Elas citaram nominalmente Marielle
metidos por TEPT estão apartados da violência Franco, vereadora carioca assassinada em março
que gerou o trauma. de 2018, como uma das pessoas que intermedia-
As mães ouvidas nessa pesquisa relataram ram o acesso a cuidados de saúde, ao sistema de
vários desses sintomas. Elas vivem em territórios justiça e a grupos de mães ativistas.
dominados pela violência armada, realidade de Nesses grupos, elas encontram espaço para
boa parte das mulheres que perdem seus filhos compartilhar uma dor que afirmam só poder ser
para a violência do Estado. Nesse contexto, sua experimentada por outra mãe na mesma situa-
tristeza, ansiedade, pensamentos intrusivos e ção. A possibilidade de ajudar outras mulheres
medo são respostas a um contexto social ado- parece ressignificar as suas vidas, num processo
ecido. A situação traumática não se encerra no de construção de resistência frente à desumani-
passado, ela é parte do que tece o seu presente. zação a que são continuamente submetidas.
Portanto, elaborar diagnósticos psiquiátricos que Para além de um possível efeito terapêutico
não levam em conta os processos que estruturam (individual e coletivo), a práxis forjada nessa luta
a realidade social dessas mulheres não parece dar é descrita pelas ativistas como um despertar para
conta de suas experiências de vida. as questões subjacentes ao assassinato de seus fi-
É importante considerar que essas mulheres lhos:
continuam a ser as principais responsáveis pela Às vezes a gente vê uma notícia de jornal aqui,
reprodução da vida nas suas famílias e comu- outra ali, a gente não percebe, mas quando vai pros
nidades, que também são afetadas pela morte grupos e a gente se olha e as mães são negras, as
precoce e violenta desses jovens. Assim, além mulheres que têm seus filhos assassinados são mu-
de terem que lidar com a sua própria dor, essas lheres pretas, mulheres pobres. Às vezes tem uma
mães ainda têm que cuidar de outros familiares, minoria de mães brancas, mas acabam nesse mes-
também em sofrimento profundo. O sofrimento mo contexto porque são pobres, são moradoras de
por essa perda não é vivenciado de forma isola- favela e de periferia (Dandara, grupo focal).
da, mas como parte do conjunto de violações que Você acha que eles mataram meu filho porque
constituem o continuum do genocídio da popu- ele era mais pretinho que eu? (Pergunta que me
lação negra. foi feita por uma mãe do Ceará, no III Encontro
Dandara relata que sua filha mais nova pas- Internacional de Mães e Familiares de Vítimas de
sou a precisar de acompanhamento psicoterápico Terrorismo do Estado, em 2018).
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Colaboradores
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diferentes olhares. Campinas: Livro Pleno; 2002. da Silva
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