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Clarissa De ANTONI1
Maria Angela Mattar YUNES2
Luisa HABIGZANG3
Sílvia Helena KOLLER1
Resumo
Abuso sexual extrafamiliar é uma forma de violência em que crianças e adolescentes são vitimizados por adultos sem laços
parentais. A análise ecológica permite observar esse fenômeno de forma multicausal e compreender interações de risco e
proteção em contextos variados. Participaram deste estudo qualitativo três mães de meninas que foram vítimas desse tipo de
abuso. O instrumento utilizado foi uma entrevista semidirigida. Os resultados revelaram aspectos semelhantes aos encontrados
no abuso intrafamiliar: síndrome do segredo, gratificação secundária e singularidades de interação e organização das famílias. Há
elementos semelhantes nas infâncias de mães e filhas: perda dos pais, contínua privação material e sofrimento por abandono e
maus tratos. Quanto à percepção da situação abusiva, as mães culpam as filhas, apontando suas características de “fraqueza” ou
“impulsividade” e não responsabilizam o agressor, o que fomenta a vulnerabilidade das filhas diante de situações de abuso.
Unitermos: Abuso sexual. Abuso sexual extrafamiliar. Crenças. Famílias em situação de risco.
Abstract
Extrafamilial sexual abuse is a form of violence where children and adolescents are victimized by adults with no parental connection. Ecological
analysis allows us to observe the multicausality of the phenomenon and to understand risk and buffer mechanisms in different contexts.
Three mothers of girls who had suffered this type of abuse participated in this qualitative study. The instrument used was a semi-structured
interview. The results point to the presence of similar aspects to those of intrafamilial abuse: syndrome of secrecy, secondary gratification,
peculiarities of the interaction and organization of families. There are similar elements in the infancies of mothers and children: loss of parents;
ABUSO SEXUAL EXTRAFAMILIAR
constant material deprivation and suffering through abandonment and maltreatment. The situation experienced by the daughters is
perceived by their mothers as characteristics of “weakness” and “impulsivity” and they do not attribute blame to the aggressor, which increases
their daughters’ vulnerability when faced with abusive situations.
Uniterms: Sexual abuse. Extrafamilial sexual abuse. Beliefs. Families in risk situations.
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1
Universidade Federal de Ciências da Saúde de Porto Alegre, Instituto de Psicologia. R. Sarmento Leite, 245, Sala 207, 90050-170, Porto Alegre, RS, Brasil.
Correspondência para/Correspondence to: C. De ANTONI. E-mail: <clarissadeantoni@yahoo.com.br>.
2
Universidade Federal do Rio Grande, Departamento de Educação e Ciências do Comportamento, Centro de Estudos Psicológicos de Meninos e Meninas. Rio
Grande, RS, Brasil.
3
Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Curso de Especialização em Psicoterapia Cognitivo-Comportamental. Porto Alegre, RS, Brasil.
Apoio: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico, Edital MCT-CNPq\MS-SCTIE-DECIT\CT-Saúde-Nº 07\2005. 97
2001) e atual Serviço de Enfretamento à Violência, ao abusador como um instrumento de excitação, e não
Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adoles- como uma pessoa. Outro aspecto relevante da con-
centes, desenvolvido no âmbito do Centro de Referência ceituação de abuso sexual é o fato de não necessa-
Especializado de Assistência Social (CREAS); o Plano riamente ocorrer o contato físico-sexual. Segundo o
Nacional de Enfrentamento da Violência Sexual Infanto- relatório do Disque Denúncia (ABRAPIA, 2007), são
-Juvenil (2002); o Programa de Prevenção, Assistência e categorizadas como formas abusivas as sugestões
98 Combate à Violência Contra a Mulher (2003), entre sexuais, que são relatos que descrevem situações nas
extrafamiliar, que não ocorre necessariamente no âmbi- relações de poder. A família pode ser compreendida
to das relações familiares. Geralmente é ocasionado por como um microssistema, assim como o ambiente onde
um adulto sem laços parentais e que pode ser conhe- a criança sofre o abuso sexual. O mesossistema é um
cido ou não da família. Sempre é aludido àquelas crian- conjunto de microssistemas inter-relacionados na vida
ças e adolescentes que vivem em situação de rua, e das pessoas, como a escola, igreja, local de trabalho,
geralmente está relacionado à exploração sexual comer- vizinhança, comunidade, entre outros. É no mesossis-
cial, como podemos observar em materiais divulgados tema que identificamos a rede de apoio social e afetiva
por programas governamentais de combate à explo- ou comprovamos sua precariedade, principalmente em
ração sexual (vide, por exemplo: Refazendo Laços de situações nas quais a criança necessita de apoio e
Proteção, Instituto WCF-Brasil, 2006). proteção. 99
as meninas foram ameaçadas caso revelassem a situação exibicionismo ou toques são sexualmente abusivas.
de abuso, e as denúncias partiram de outros ambientes: Pensam, portanto, que o abuso sexual só ocorre quando
no caso 1, da escola; no caso 2, do bilhete anônimo; no há intercurso genital. Como no caso 2, em que a mãe
caso 3, do Conselho Tutelar. afirma: “pois não chegaram a transar, tirar a virgindade
A gratificação secundária, então, é o “pseudo” dela”. Segundo Plummer (2006), a descoberta pela mãe
ganho da vítima, recebido por meio de subornos e de do abuso sofrido pela filha pode ser compreendida mais
104 recompensas em troca do abuso ou do sigilo. Nos casos como um processo do que como um evento. As mães
desconhecer quem era o abusador e frisou: “ela [filha] me disque 100. Brasília: Autor.
mentiu, eu não podia fazer mais nada”. No caso 3, a
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