Você está na página 1de 42

Junguiana

v.37-1, p.73-114

Amadeus. A Psicologia da Inveja e sua


função no processo criativo: um estudo da
Psicologia Simbólica1

Carlos Amadeu B. Byington*

Resumo Palavras-chave
O autor analisa a peça de teatro “Amadeus” e e atingindo o psicótico. Descreve a função estru- inveja
estuda a função da inveja na relação de Mozart e turante normal do ciúme para melhor discriminar construtiva
ou normal,
Salieri. Caracteriza a inveja como uma função es- a inveja e exemplificar o ciúme patológico com a
inveja destrutiva,
truturante normal da maior importância no desen- peça Otelo, de Shakespeare. Finalmente, diferen-
patológica ou
volvimento da consciência. Chama atenção para cia a função estruturante normal do ciúme e da in- defensiva,
a dificuldade de se compreender este fato devido veja nos ciclos arquetípicos matriarcal, patriarcal, criatividade
às nossas concepções psicológicas se acharem de alteridade e cósmico. ■ prostituída,
ainda dominadas pela obra repressora-puritana traição da
da Inquisição. Afirma que na apresentação da própria anima,
peça a patologia mental de Mozart é ainda maior ciúme normal
que a de Salieri. Relaciona a inveja patológica de ou criativo,
ciúme patológico
Mozart com um complexo paterno negativo e a de
ou defensivo,
Salieri com a prostituição de sua Anima. Explica
complexo
a deterioração progressiva das personalidades paterno
de Mozart e Salieri: ao não assumirem sua inveja negativo,
normal, esta se tornou cada vez mais sombria e complexo de
patológica, ultrapassando o dinamismo neurótico desadaptação
social.


1
Este artigo foi escrito inicialmente em julho de 1982 para
o Seminário de Psicopatologia Simbólica da Sociedade Bra-
sileira de Psicologia Analítica. Revisto e ampliado para publi-
cação na Revista Junguiana nº 3, 1985 p. 81-120.
* Médico Psiquiatra e Analista Junguiano. Membro fundador
da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica. Membro da
Associação Internacional de Psicologia Analítica. Criador da
Psicologia Simbólica Junguiana. Educador e Historiador.
E-mail: <c.byington@uol.com.br>
Site: www.carlosbyington.com.br

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 73


Junguiana
v.37-1, p.73-114

Amadeus. A Psicologia da Inveja e sua função no processo criativo:


um estudo da Psicologia Simbólica

A peça de teatro “Amadeus”, na qual foi ba- em “Amadeus” vamos encontrar uma verdadeira
seada o filme do mesmo nome, tem como tema antologia da inveja. Contudo, quando se refere à
central a relação historicamente famosa entre essência do fenômeno da inveja, o personagem
os músicos Antonio Salieri (1750–1825) e Wolf- que representa Salieri expressa de forma exube-
gang Amadeus Mozart (1756–1791) na corte de rante a conotação habitual em nossa cultura de
Viena no final do século 18. Salieri só é conheci- algo ruim e exclusivamente destrutivo, como se
do hoje devido ao escândalo histórico que teve a inveja fosse basicamente pecaminosa. Minha
com Mozart. Na época, porém, Salieri foi um dos intenção aqui é mostrar a natureza preconceituo-
músicos mais famosos da Europa não só por ser sa desta noção, usando algumas cenas centrais
primeiro Mestre Capela na corte de Viena como da peça para teorizar sobre a inveja e sua função
por suas 40 óperas e 12 oratórios que as grandes estruturante na Psicologia Simbólica.
capitais da Europa conheceram e aplaudiram. Esta peça tem sido muito apreciada e critica-
Mozart passou como um cometa musical pela da. Como qualquer criação romanceada de um
Europa no final do século XVIII. Menino prodígio, fato histórico, tão mal documentado como foi a
estudava desde os 3 anos, compunha e tocava vida de Mozart, no que concerne, sobretudo às
desde os 5 anos de idade. Sua trajetória feérica razões de sua pobreza e, mesmo, miséria cres-
teve muitos episódios de glória, mas seu tem- cente no final de sua vida, seguida de sua do-
peramento irreverente e mimado, sua descon- ença e sua morte em circunstâncias obscuras,
sideração para com os valores da sociedade do “Amadeus” é questionável em muito do que
seu tempo e sua incapacidade de promover sua afirma e deixa transparecer. A confissão de Sa-
carreira tiveram papel importante no fato de ele lieri indubitavelmente é um fato histórico. O seu
ter morrido aos 35 anos, abandonado por todos, conteúdo, porém, nunca foi apurado. Afora isso,
na miséria e enterrado como indigente numa o fato mais questionado da peça foi o exagero
vala comum. Salieri uniu-se à glória de Mozart nas irreverências de Mozart, que teria distorcido
na história da música, não devido à sua músi- para muitos a verdadeira natureza de sua perso-
ca, mas por ter confessado na velhice, em meio nalidade. Estes dois aspectos, porém, não pa-
a um episódio psicótico no qual tentou suicídio, recem invalidar as considerações que fazemos
que envenenara Mozart 30 anos antes por inve- sobre os símbolos provavelmente vivenciados
ja. A veracidade do fato nunca foi apurada, mas pelos dois músicos.
o acontecimento passou a fazer parte da glória e Não é necessário se ter visto ou o filme ou a
do fim trágico de Mozart. peça para se acompanhar este estudo. Todos os
A peça, há anos um sucesso nos Estados Uni- símbolos aqui estudados têm um contexto muito
dos e na Europa e atualmente em exibição no Rio claro e quando for necessário, repetirei as frases
de Janeiro, ilustra, por intermédio da competição da peça nas quais eles estão contidos. Apesar
de dois músicos, Salieri e Mozart, o conflito de disso, apresento a seguir um resumo da peça
inúmeras emoções, das quais a inveja sobressai para melhor situar o leitor. A ação decorre em
para dominar o enredo dramático do princípio Viena em novembro de 1182 e evoca a década
ao fim. Da mesma forma que o ciúme permeia de 1781 a 1791.
o Otelo de Shakespeare, e aí podemos perceber Ato 1 Cena 1 (Viena) – Salieri velho, numa cadei-
muitas de suas inúmeras nuances psicológicas, ra de rodas ouve o escândalo causado em Viena

74 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


Junguiana
v.37-1, p.73-114

por seus delírios de ter envenenado Mozart 32 emitindo compulsivamente uma risadinha esga-
anos atrás. niçada e chocante. Mozart, que recebera a enco-
menda de uma ópera há apenas duas semanas,
Ato 1 Cena 2 (Casa de Salieri) – Salieri invoca o
diz que já terminou o primeiro ato (O Rapto do
futuro e começa a contar sua história, preparan-
Seraglio) e choca o Conde Rosemberg, diretor
do sua confissão.
da ópera, pois não lhe submetera o libreto para
Ato 1 Cena 3 (1781 – A corte do Imperador José aprovação, ao mesmo tempo em que ofende os
II) – Salieri relata como os músicos viviam como brios patrióticos de Salieri, referindo-se à ópera
meros criados dos nobres e, no entanto, seriam em voga como “lixo italiano”. A sós, Mozart con-
mais reverenciados pela História do que aque- ta a Salieri que encontrara em Katherina Cavalieri
les. Salieri era o mais bem-sucedido de todos até uma cantora perfeita para o papel em sua ópera.
que se começou a falar em Mozart. Salieri enciuma-se, pois Katherina é sua melhor
Ato 1 Cena 4 (O Palácio de Schönbrunn) – Fala-se aluna. A seguir, toca a marcha de Salieri no pia-
em encomendar uma ópera em alemão para Mo- no de memória. Começa a desenvolver sua melo-
zart, cuja fama de menino prodígio era conheci- dia com incrível criatividade diante de um Salieri
da de todos – Salieri é convidado pelo Barão Van estupefato e a transforma na célebre Marcha do
Swieten para fazer parte de sua loja maçônica. Casamento de Fígaro como a conhecemos hoje.
Mozart também será convidado. Tratava-se de Salieri se despede, mal podendo dissimular o
uma grande honraria. ódio. Imagina Mozart no lugar do personagem de
sua ópera sobre a Lenda de Dannos, que, por ter
Ato 1 Cena 5 (A Biblioteca no Palácio da Baronesa cometido um crime monstruoso, foi acorrentado
de Waldstadten) – Durante uma recepção, Salieri a uma rocha para toda a eternidade com a cabe-
senta-se numa cadeira da Biblioteca e, por aca- ça sendo repetidamente golpeada por um raio.
so, ouve escondido uma cena entre Mozart e sua
noiva Constanze na qual brincam de gato e rato Ato 1 Cena 8 – A estreia do Rapto do Seraglio tem
com grande irreverência. A seguir são chamados relativo sucesso e, pelo papel dado a Katherina,
para ouvir o Adágio da Serenata para 13 Instru- Salieri imagina que Mozart a seduzira, jurando
mentos de Sopro (K-361) de Mozart. Salieri, de que seduziria Constanze em troca.
início, tenta ridicularizar o que ouve, mas, aos Constanze e Mozart casam-se, apesar de não
poucos, é invadido por uma imensa onda de in- haverem ainda recebido o consentimento do pai
veja e de dor. Salieri sai à rua desvairado pela dele. Comenta-se em Viena como Mozart é irre-
natureza divina da música que ouvira e, ao mes- verente e perdulário.
mo tempo, chocado pela infantilidade obscena
Ato 1 Cena 9 – A irreverência de Mozart choca e
da personalidade do artista que a criara.
insulta todos, até mesmo o Imperador, em meio
Ato 1 Cena 6 (Casa de Salieri) – O músico com- à sua risadinha compulsiva. Salieri percebe que
põe e ensina. Tem muitos alunos. É bem-suce- Mozart está em dificuldades financeiras e deci-
dido. À noite, ajoelha-se em desespero e implo- de agir.
ra a Deus a Graça de poder expressá-lo. Evita
Ato 2 Cena 10 (Biblioteca de Waldstadten) – Do
encontrar Mozart.
mesmo esconderijo da Cena 5, Salieri presencia
Ato 1 Cena 7 (Palácio de Schönbrunn) – O Impe- uma briga de ciúmes e ressentimentos entre Mo-
rador aguarda impaciente a chegada de Mozart zart e Constanze, que lhe acusa de seduzir todas
e o recebe, mandando Salieri executar sua Mar- as suas alunas, inclusive Katherina. Afirma que
cha de Boas-Vindas, aplaudida por todos. Mo- Salieri tem alunos porque não tem essa levian-
zart saúda a todos de forma exuberante demais, dade e Mozart revida descompondo-o. Salieri

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 75


Junguiana
v.37-1, p.73-114

finge acordar e cumprimenta o casal estarrecido. lento para o cargo de professor da princesa Eliza-
Mozart sai e Constanze se queixa e pede que Sa- beth, pedido por Constanze para Mozart.
lieri ajude Mozart com um emprego e alunos. Ele
Ato 2 Cena 3 – Mozart compõe genialmente, mas
a convida para ir à sua casa uma tarde.
pouco é ouvido, enquanto Salieri se torna cada
Ato 1 Cena 11 (Casa de Salieri) – Constanze che- vez melhor sucedido.
ga trazendo uma partitura do marido. Grosseira-
Ato 2 Cena 4 – Mozart planeja as Bodas de Fí-
mente, Salieri propõe a sedução de Constanze
garo. Com isso invade a Ópera Italiana, seara de
em troca de um emprego na Corte. Revoltada, ela
Salieri, e se indispõe pela vulgaridade do libreto
o destrata e ele se humilha confessando sua in-
com o Barão Van Smieten, seu protetor e diretor
veja. Ela o espezinha e ele, desesperado, repete
da Biblioteca Imperial, sempre com sua risadi-
sua proposta agressivamente.
nha debochada, impertinente e compulsiva. Sa-
Ato 1 Cena 12 – Culpado e envergonhado, Salie- lieri planeja com o Conde Van Strack, camareiro
ri se recrimina. Apanha a partitura deixada por imperial, impedir as Bodas de Fígaro pelo fato de
Constanze. É a Abertura da 29º Sinfonia em Lá ter um ballet no 3º Ato, o que contrariava uma
Maior. Ela havia dito que se tratava do original. determinação do próprio Imperador.
Maravilhado, ele se dá conta de que não há nada
Ato 2 Cena 5 – Mozart insiste em incluir o ballet,
a corrigir. É uma obra-prima acabada. Em outra
rompe com o Conde Rosemberg e pede a Salieri
partitura, vê a mesma coisa na Sinfonia Concer-
que, mentirosamente, concorda em interceder
tante para Violino e Viola e, a seguir, tudo se re-
junto ao Imperador.
pete com o Concerto para Flauta e Harpa. Súbi-
to, Salieri percebe que a genialidade criativa de Ato 2 Cena 6 – Por coincidência, o Imperador vem
Mozart é de tal ordem que ele compõe a música ao ensaio e mantém o ballet, contra Rosemberg e
já perfeitamente acabada. Ao som do Kyrie da Stratt. Mozart crê ingenuamente dever tudo a Salieri.
Missa em Dó Menor, Salieri é acometido de êx- Ato 2 Cena 7 – As Bodas de Fígaro são executadas
tase. O teatro se inunda de música e de luz. Ele incluindo a Marcha das Boas-Vindas de Salieri
cambaleia com as partituras na mão e desmaia. na célebre ária “Non piu andrai”. O Imperador
Salieri acorda e vocifera contra Deus por humi- boceja no final e pouco elogia Mozart que, deso-
lhá-lo ao ter criado Mozart: infantil, mal-educa- lado, é consolado por Salieri. Rosemberg furioso
do, irresponsável, mas... genial! – “Dio Ingiusto, será doravante um grande inimigo de Mozart.
exclama, vós sois meu inimigo eterno...” Declara Ato 2 Cena 8 (Biblioteca de Waldstadten) – Mo-
guerra a Deus por intermédio de sua criatura pre- zart fala em ir para a Inglaterra. Afirma que o pai
ferida – Mozart, chamado Amadeus. não o ajuda por nunca o ter perdoado por ter me-
Ato 2 Cena 1 (Casa de Salieri) - Estamos em 1823. nos talento que ele. Chega a notícia da morte do
Salieri continua a contar o que aconteceu na sua pai. Mozart desespera-se de culpa por tê-lo de-
luta com Deus para destruir Mozart. Constanze sobedecido ao se casar e, depois, abandonado.
vem a sua casa para cumprir o contrato. Salieri a Salieri o consola e depois, só, afirma que assim
rejeita e a manda embora com as partituras. Con- nasceu o fantasma do pai em D. Giovanni.
fessa para si mesmo que a deseja, mas que isso
Ato 2 Cena 9 – Em relação aos acordes de D. Gio-
atrapalharia seus planos. Dedica-se à sedução
vanni, Salieri afirma ali estar o pai mais acusador
da soprano Katherina, de quem se torna amante
da história da ópera, que condena o libertino cul-
durante muitos anos.
pado ao Inferno. Ele vê na risadinha de Mozart a
Ato 2 Cena 2 (Palácio de Schönbrunn) – Salieri gargalhada de Deus e reitera seu plano de lutar
vai ao imperador e recomenda alguém sem ta- contra ambos.

76 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


Junguiana
v.37-1, p.73-114

Ato 2 Cena 10 – Morre Gluck e o Imperador no- Mozart compõe sem parar. A figura reaparece
meia Mozart para seu posto, mas, por influência e ele a convida para a ceia com as palavras de
de Salieri, com um salário muito menor. Mozart D. Giovanni – “Oh estátua gentilíssima, venite a
iludido e já doente agradece tudo a Salieri que é cena!”. Salieri é agora o personagem e atravessa
nomeado Mestre-Capela Imperial. a rua em direção à casa de Mozart.

Ato 2 Cena 11 – Constanze novamente engravi- Ato 2 Cena 16 – Mozart dirige-se a Salieri como
da e Mozart diz que vê em pesadelos uma figura a figura e promete que já está quase terminan-
mascarada vestida de cinza que lhe chama. Eles do o réquiem. Salieri come o canto de uma par-
passam muita necessidade, mas seus compa- titura dizendo que os dois estão envenenados,
nheiros maçons os ajudam. um pelo outro. Mozart começa a delirar, regride
à infância e chama pelo pai. Chega Constanze,
Ato 2 Cena 12 – Van Swieten (maçom) ajuda
mas Mozart não a vê. Continua compondo, canta
Mozart se este fizer arranjos de Bach. Mozart,
“Gragna figata já!”. É o fim.
mesmo revoltado, concorda, pois os maçons
são agora seu único esteio. Salieri, também Ato 2 Cena 17 – Salieri se dá conta de que a figu-
maçom, quer lhe dar dinheiro. Mozart recusa, ra que amedrontava Mozart havia sido um criado
valorizando ainda mais sua amizade. Schikane- do Conde de Walsegg que, almejando passar por
der, ator e dono de teatro, entra para a loja ma- compositor, encomendara o réquiem para apre-
çônica e oferece a Mozart pagamento para uma sentar como seu. Salieri chegou a regê-lo sob
peça de vaudeville. Mozart pensa escrever so- esta falsa autoria.
bre o amor fraterno. Salieri ficou em Viena e, aos poucos, entendeu o
Ato 2 Cena 13 – O casal passa dificuldades. Cons- castigo de Deus. Ela não havia querido a fama?
tanze acusa o pai de Mozart de ter superprote- Pois bem, ele agora era o músico mais famoso
gido Mozart e de ter feito dele um eterno bebê. da Europa. Viveu para ver sua música esquecida
Diz que, na véspera, devido ao frio, queimara as e a de Mozart glorificada.
cartas do sogro para que se esquentassem. As Ato 2 Cena 18 (Casa de Salieri) – Salieri assina a
mesmas cartas que a atacaram tanto. Mozart fica confissão de ter envenenado Mozart e se declara
furioso. Brigam e, no meio da crise, ele vê a fi- o santo protetor da mediocridade. Tenta o suicídio.
gura chamando. Constanze entra em trabalho de
Ato 2 Cena 19 – No livro de conversas de Bee-
parto. Tem mais um filho e viaja para Baden com
thoven, no qual os visitantes escrevem para o
o pouco dinheiro que lhes resta. A figura volta e
compositor surdo, se lê em novembro de 1823:
lhe pede para escrever um réquiem.
“Salieri cortou a garganta. Está completamente
Mozart encena a Flauta Mágica com libreto de louco, afirmando que envenenou Mozart”.
Schikaneder, incluindo os rituais sagrados. Sa-
Salieri encerra a peça exclamando – “Mediocridades
lieri sente que, na obra, Mozart fazia as pazes
de todo o mundo, eu vos absolvo a todos. Amém!”.
com a figura do pai.
Minha prática como psicoterapeuta e minhas
Salieri avisara o Barão Van Swieten para ir à es-
vivências no meu próprio processo de individu-
treia e este, chocado com a abertura dos rituais
ação têm me levado cada vez mais a discordar
maçônicos para um público tão vulgar, condena
da noção dominante em muitas teorias psicoló-
Mozart veementemente.
gicas de que o Ego se estrutura em meio à tais
Ato 2 Cena 15 (O Teatro em Weiden) – Schikane- ansiedades durante e após o nascimento, que
der engana e rouba Mozart, dando-lhe dinheiro tem que lançar mão normalmente de mecanis-
apenas para beber. mos de defesa que habitualmente encontramos

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 77


na patologia para fazer face a essas ansiedades. dirigida a algo que tem a característica específi-
Aos poucos e por intermédio de dos anos, vou ca de já pertencer a outro.
chegando à conclusão que a vida não é tão ame- É perigoso denominarmos de cobiça e vora-
açadora quanto é apresentada por essas teorias cidade a pujança normal do Self e reservar a in-
psicológicas. Com isso, suspeito cada vez mais veja para denominar esta manifestação no seu
que, frequentemente, a Psicologia está expres- aspecto destrutivo, pois, nesse caso, abrimos a
sando inconscientemente uma atitude cultural porta para o puritanismo maniqueísta patriarcal
puritana, oriunda da repressão da Inquisição que entrar na Ciência. Prefiro buscar minuciosamen-
feriu nossa Alma Coletiva ou Self Cultural inten- te as características psicológicas de cada estado
samente durante séculos, ao considerar pecami- emocional e designá-lo de forma clara na sua ex-
nosas a maioria de nossas emoções normais. De pressão normal e patológica. Assim, voracidade
fato, como a função primordial do inquisidor era é a fome do ser. Cobiça é esta forme, esta ânsia
enquadrar a Consciência Coletiva em noções rí- se dirigindo a um objeto qualquer, enquanto que
gidas e repressivas, as emoções normais foram a inveja é esta voracidade e esta cobiça do Self
frequentemente apresentadas como pecamino- dirigidas para uma característica que pertence
sas e destrutivas como é o exemplo exuberante de forma nítida a outro.
dos “sete pecados capitais”. Isto ainda faz com Cada um destes estados emocionais pode
que muitos, ao viverem ou simplesmente estu- aparecer de forma normal ou patológica, depen-
darem cientificamente estas emoções, o façam dendo de sua maneira de operar. Se a emoção
enfatizando seu aspecto negativo, imiscuindo está operando por intermédio de símbolos que
em suas ações e estudos, suas culpas e seus permitem o livre desenvolvimento da personali-
preconceitos. A Psicologia Simbólica busca per- dade, ela é normal. Se, pelo contrário, ela opera
ceber a atuação das funções psíquicas no seu por intermédio de símbolos que estão dissocia-
papel estruturante da consciência sem rotulá-las dos do desenvolvimento criativo da persona-
com qualquer julgamento de valor apriorístico. lidade e cercados por defesas estereotipadas
Essas funções e seus símbolos, quaisquer que (neuroses) ou por intermédio de símbolos que ir-
sejam, podem atuar construtiva e destrutiva- rompem na personalidade incapazes de pratica-
mente na personalidade e na cultura, em função mente qualquer adequação criativa (psicoses),
da sua forma de agir, mas nunca em função de ela será patológica. Esta parece ser uma maneira
sua natureza. Como escreveu o poeta: “As coisas de ultrapassarmos a dicotomia patriarcal que di-
em si não são boas ou más; é o pensamento que vide, reduz e codifica os símbolos em bons ou
as faz assim”, ou seja, os símbolos em si não maus, destrutivos ou criativos fora do seu con-
são bons ou maus, pois é a função que desem- texto simbólico operativo e, com isso, impede a
penham na Psique que os torna bons ou maus compreensão dinâmica da realidade simbólica.
para o desenvolvimento. A inveja, como as demais emoções, é um
A emoção da inveja é muito próxima da co- fator da maior importância na estruturação da
biça e da voracidade. A diferença está no grau consciência normal. Durante toda a vida, a in-
de diferenciação da expressão emocional do veja desempenha uma importantíssima função
Self. Podemos dizer que a voracidade expressa a do Self que é detectar o Símbolo Estruturante
energia psíquica emergente, enquanto que a co- necessário para determinada fase do desenvol-
biça diz respeito a esta energia psíquica dirigida vimento. Isto faz com que a inveja seja aciona-
por um vetor que lhe dá relativa especificidade da e entre em funcionamento no Self Individual
objetal. A inveja é, nesse sentido, mais diferen- e Cultural com enorme frequência. Contudo, ela
ciada do que a voracidade e a cobiça, pois na in- não é somente o perdigueiro que fareja a caça. A
veja a energia psíquica se encontra nitidamente inveja é ainda a águia que desce sobre sua presa

78 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


num voo certeiro, como é, também, o tigre que puritana e repressora da Inquisição. Ao descre-
se lança de corpo inteiro para abocanhá-la. Es- ver um inconsciente humano instintivamente
tes componentes de busca, espreita, voracidade homicida, reafirmou, “cientificamente” agora, a
e agressividade são necessários para localizar o necessidade da repressão.
Símbolo Estruturante necessitado naquele mo- É impressionante como pais que receberam
mento, e, a seguir, delimitá-lo no seu contexto até mesmo educação universitária, frequente-
e destacá-lo do Todo para torná-lo operativo no mente, não permitem que seus filhos vivenciem
processo de desenvolvimento. A inveja, assim agressividade, ciúmes, inveja, competição, ódio,
sendo, como todas as demais funções psíqui- rebeldia, traição, roubo, vergonha, humilhação,
cas, é imprescindível para o crescimento. Disso mentira, fingimento, covardia, inovação, espon-
nos damos conta plenamente no dia a dia, seja taneidade, para não se falar na sexualidade in-
em função de nossas próprias necessidades, fantil. Ainda que cada vez mais os pais tendam a
seja em função das necessidades dos outros. É ser compreensivos, liberais e não agridam seus
frequente usarmos a inveja dos outros para re- filhos, frequentemente seu código de valores
lacionarmos com eles muitas vezes para nosso não difere, essencialmente daquele da Inquisi-
próprio proveito. Podemos observar, por exem- ção, na medida em que não se dão conta de que
plo, como os políticos usam habilidosamente a todos esses estados psicológicos mencionados
inveja do eleitorado. Muitas vezes, o fazem de são altamente estruturantes e os consideram ex-
boa fé e realmente tentarão satisfazer a inveja clusivamente danificantes à personalidade, ou
genuína depois de eleitos. Outras vezes, porém, seja, essencialmente errados e ruins. Isto não
manipulam demagogicamente a inveja dos ou- quer dizer que eu esteja advogando a educação
tros, prometendo uma distribuição de riquezas com ausência e omissão dos pais, pois isto não é
para todos, que sabem ser inexequível. educação, e sim abandono da criança com resul-
Os componentes da inveja a tornam uma tados geralmente maléficos. Aquilo a que estou
emoção estruturante das mais poderosas e, por me referindo é a uma educação não repressiva,
isso, frequentemente assustadora e dolorosa ao porém, estruturante, que acompanhe e permita
ser vivida, como assinalamos na expressão “a à criança elaborar suas vivências como funções
inveja rói”. Isto não quer dizer que a inveja cause simbólicas estruturantes de sua personalidade.
normalmente ansiedade insuportável que obri- Toda criança aprende muito cedo que em nossa
gue o Ego a lançar mão de mecanismos de defe- cultura a mentira, a covardia, o roubo e a traição,
sa para suportá-la. Talvez, em nossa cultura, nos por exemplo, não fazem normalmente parte da
defendamos e disfarcemos a inveja mais que em vida, mesmo quando não desejadas. Contudo,
outras, devido a obra da Inquisição. O puritanis- é mentiroso e prejudicial transmitirmos às crian-
mo nos fez desconhecer a verdadeira extensão ças noções de que nós adultos somos imunes
da força vital do ser humano. Tratamos nossas ao fingimento, à mentira, à covardia e à traição.
crianças como seres destituídos de emoções e, Quando assim fazemos, criamos uma atmosfe-
com isso, as fragilizamos. Quando percebemos, ra idealizada e facciosa de culpa e repressão
porém, suas emoções vitais e profundas, sejam que impede a criança da vivência e elaboração
elas de agressividade, sexo, inveja ou o que for, estruturante destas funções que, por isso, pas-
tendemos a tratá-las como bichos de sete cabe- sam a formar a parte sombria da sua personali-
ças e, com isso, não lhes damos suficiente vaso dade. A melhor maneira de criarmos um covarde
familiar para elaborar estas funções e se acostu- com aparência de corajoso é reprimirmos o seu
marem a vivenciá-las normalmente na sua finali- medo, como nos mostrou tão bem Joseph Con-
dade estruturante. A Psicologia Moderna, nesse rad em seu romance “Lord Jim”. A covardia repri-
sentido, continuou em muitos aspectos a obra mida na Sombra será de alguma forma atuada

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 79


e a Persona de coragem dificilmente resistirá a valorizei muito o medo como função estruturan-
uma análise existencial mais profunda. te para trazer à consciência a realidade profunda
Lembro-me de um caso de uma família que da vida, exemplificando com a função relevante
orientei, no qual uma menina de 12 anos havia que o medo desempenha na sobrevivência dos
roubado dinheiro de sua mãe. Descoberta e animais ferozes. Acabamos por compreender
severamente repreendida na frente dos irmãos que a fuga do adolescente nos abrira uma por-
e de estranhos, a menina desenvolveu a partir ta para lidar com o medo reprimido do pai que
daí sintomas histéricos com tiques, depressão e todos sentiam e que lhes ensombrecia a vida. O
anorexia (falta de apetite). Elaborei o símbolo do próprio pai, no final, abraçou-se com o filho, ao
roubo em nível individual e familiar e pedi-lhes se conscientizar do quanto ele temia e detesta-
que compreendessem o dinheiro da mãe como va seu emprego pela atmosfera persecutória e
algo simbólico que teve que ser roubado. Con- opressiva na qual o exercia.
tei-lhes o Mito de Prometeu, mostrando-lhes que Vemos com esses exemplos que o conheci-
seu roubo foi por um lado considerado errado e mento do componente estruturante de todas as
punido, mas que, por outro, trouxe o fogo dos funções psíquicas, por mais incômodas que se-
deuses para a humanidade. Durante a elabora- jam, é fundamental não só para o analista como
ção em nível de Self familiar, emergiu o fato que para o educador é mais importante devido ao as-
a mãe dedicava seu afeto preponderantemente pecto preventivo ser mais eficiente que o curati-
ao pai e ao filho mais velho em detrimento dos vo. A noção de que as funções psíquicas são es-
outros filhos. O roubo expressou, assim, uma sencialmente expressões do Arquétipo Central,
necessidade vital daquela filha que não estava ou seja, são símbolos destinados a transformar
podendo conseguir afeto por vias normais. a consciência, estimula o caminho da compreen-
É importante frisar que, em momento al- são da vida antes de julgá-la.
gum, deixei de situar o roubo como uma trans- Um dos grandes problemas do educador ao
gressão, ao mesmo tempo em que estimulei situar a Pedagogia à luz da Psicologia Simbóli-
sua compreensão dinâmica simbólica para ca e substituir a conduta diretiva pela compre-
elaborar e propiciar sua função estruturante ensão sistemática das ocorrências como sím-
da consciência familiar. bolos estruturantes é, sem dúvida, o problema
Em outro caso, elaborei uma situação de co- ético. De fato, muitos educadores progressistas
vardia, também, em nível do Self Familiar. Um se perdem nesse caminho por escolherem uma
pai trouxe-me a situação de seu filho de 14 anos via liberal, mas diretivamente permissiva para
que, no início de uma luta de judô, diante de toda escapar da via diretiva repressiva. Esta foi uma
a academia e seus familiares, fugira em pânico. das dificuldades centrais da pregação do Novo
Humilhado por seu pai, seus irmãos e colegas, o Testamento que até hoje, ao que tudo indica,
menino desenvolvera agorafobia aguda (pânico ainda não conseguimos compreender. Como
de sair em espaços abertos). Elaborei o ato co- agir liberal, amorosa e criativamente e ao mes-
varde como símbolo em nível do Self Familiar e mo tempo preservar os limites e evitar o desre-
emergiu aos poucos a covardia reprimida do pai gramento e o caos?
que superexigia reativamente junto com a mãe Desde o início da pregação de sua mensagem
um comportamento extraordinário na atmosfera de compreensão simbólica acima da ética pa-
familiar, acobertando com isso o intenso medo triarcal diretiva, dogmática e apriorística, Jesus
que o pai vivenciava inconscientemente no seu é confundido com um anarquista. Os próprios
ambiente de trabalho. anarquistas e liberais confundem-se muito a
Se bem que em momento algum retirei da esse respeito. Ao quererem adotar uma mensa-
covardia sua conotação de conduta indesejável, gem sem valores repressivos adotam, frequente-

80 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


mente, uma posição sem valores. Ao condenar o dedo na terra. Como eles insistissem,
a ética repressiva, declaram-se antiéticos. Claro ergueu-se e disse-lhes: – Quem de vós
está que, imediatamente a seguir, necessitam estiver sem pecado, seja o primeiro a lhe
começar a explicar que não são nem caóticos atirar uma pedra (João 8:3-7).
nem libertinos. A dificuldade vem de não reco-
nhecerem que a ética patriarcal dogmática que Simultaneamente, os textos expressam que
combatem de um estado de consciência (regido esta nova ética não é simplesmente alguma ino-
pelo Arquétipo do Pai) e que eles buscam uma vação que brotou na consciência em nível pura-
outra ética regida pela Consciência de Alteridade mente egoico, mas uma revelação da divindade
(regida pelos Arquétipos da Anima, do Animus e (expressão simbólica do Arquétipo Central):
do Coniunctio). Esta dificuldade é exacerbada
pelo fato destes inovadores, apesar de sua co- Os judeus se admiravam e diziam: – Este
ragem contestadora e de suas boas intenções, homem não fez estudos. Donde lhe vem
não se darem conta que estes dois padrões de pois este conhecimento das Escrituras?
consciência, ou seja, o patriarcal e o de alterida- Respondeu-lhes Jesus: – A minha doutri-
de, são regidos pelo Arquétipo Central em sua na não é minha mas daquele que me en-
função ética estruturante e, por isso, atuam eti- viou. Se alguém quiser cumprir a vontade
camente tanto um quanto o outro, variando na de Deus, distinguirá se a minha doutrina é
forma mas sem perder sua essência ética. de Deus ou se falo de mim mesmo. Quem
As pregações do Novo Testamento mostram fala por própria autoridade busca a pró-
essa dificuldade ao tentar expressar a nova éti- pria glória; mas quem procura a glória de
ca sem invalidar a antiga: “Não julgueis que vim quem o enviou é digno de fé e Nele não há
abolir a lei dos profetas. Não vim para as abolir impostura (João 7:15-18).
mas sim para levá-las à perfeição” (MT:5:17).
O mito frisa permanentemente que se trata de Naturalmente, isto não quer dizer que mui-
uma nova ética na qual os fatos não devem ser tas emoções não provoquem ansiedade acom-
julgados de antemão: “Não julgueis para não ser- panhada de patologia e, por isso, necessitem
des julgados” (MT: 7:01). “Não julgueis por apa- a atenção do psicólogo mais que do educador.
rência, mas com julgamento certo (João 7:24). Todavia, nestes casos, vamos encontrar estas
Em várias passagens são apresentadas orien- emoções expressas dentro de estratégias de-
tações invalidando o julgamento pelo fato disto fensivas com seus bloqueios característicos
ocultar a existência do pecado (psicologicamen- por intermédio de das quais poderemos perce-
te o pecado seria o símbolo problemático como ber os quadros psicológicos neuróticos e psi-
do roubo ou da covardia nos casos acima). cóticos. No caso da inveja, vamos percebê-la
como patológica quando ela não estiver mais
Os escribas e os fariseus trouxeram uma contribuindo livre e criativamente para o de-
mulher que fora apanhada em adultério. senvolvimento da personalidade e se encontrar
Puseram-na no meio da multidão e disse- operando num contexto à parte do todo com ca-
ram a Jesus. – Mestre, agora mesmo esta racterísticas compulsivo-repetitivas, inadequa-
mulher foi apanhada em adultério. Moi- das e, por isso, destrutivas.
sés mandou-nos na lei que apedrejásse- A diferenciação do desempenho normal e pa-
mos tais mulheres. Que dizes tu a isso? tológico da inveja só poderia ser feita, então, se
Perguntaram-lhe isso a fim de pô-lo à admitirmos, na profundidade do nosso ser, que
prova e poderem acusá-lo. Jesus, porém, todas as emoções, incluindo a inveja, podem
se inclinou para a frente e escrevia com atingir, dentro do desenvolvimento normal, uma

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 81


intensidade estruturante tal que sejam acompa- provinha essencialmente da musicalidade extra-
nhadas de intenso mal-estar, ansiedade e sofri- ordinária com que nasceu dotado. Esta teoria de
mento sem que isso deva necessariamente ser que a inveja normal é proporcional à pujança do
caracterizado como anormalidade. Continuan- crescimento do Self invalida concordamos com
do com Santo Agostinho, poderíamos dizer que o próprio Salieri na peça, quando ele racionaliza
não só “entre fezes e urina nascemos”, como defensivamente sua problemática e se autorrotu-
também com elas vivemos. A convicção de que la um gênio, apenas para reconhecer um grande
o processo existencial é normalmente intenso, musicista (Mozart) e um imbecil absolutamente
sofrido e doloroso, porém, só pode ser adquirida incapaz de sê-lo. A voracidade de qualquer ani-
por intermédio da sua própria vivência, ou seja, mal predador em condições normais é sempre
de forma iniciática. Um dos grandes mal-enten- proporcional a sua vitalidade e a sua pujança
didos originados nas análises pessoais é usar para saltar sobre a presa. Não encontramos na
o sofrimento oriundo do confronto de núcleos biologia, a excitação de um sentido que não en-
patológicos para referendar a noção errônea de contre seu correspondente normal de satisfação.
que a intensidade emocional e o sofrimento se- Dentro desta teoria, devemos, porém, perceber
jam indicativos de patologia. Este fato não deve, que a inveja, como todas as demais manifesta-
porém, de modo algum, servir para estimular ções psíquicas, é de natureza simbólica e, por
aqueles que buscam masoquisticamente o so- isso, não necessita necessariamente se efetivar
frimento e de forma puritana se desobrigam do exatamente da mesma forma que a consciência
prazer e da sensualidade da vida. percebe o objeto que a desencadeou. Na medida
As personalidades de Salieri e Mozart nos em que tudo na psique é símbolo, o objeto da
aparecem como uma antologia da inveja porque inveja também o será e, ao ser vivenciado e ela-
nos permitem percebê-la em nível normal, de- borado simbolicamente, ele próprio multiplicará
pois neurótico e, finalmente, psicótico apresen- as possibilidades por intermédio de das quais
tando assim todas as variações existenciais. poderá se aplacar a inveja criativamente.
A importância de considerarmos a inveja Por isso, o fato de Salieri invejar Mozart não
também como uma emoção normal da perso- quer dizer que, para realizar sua inveja, Salieri
nalidade, expressando sempre um determinado devesse ser igual a Mozart. Ao invejar Mozart,
anseio de desenvolvimento do Self Individual este se transforma em símbolo estruturante na
por intermédio de símbolos estruturantes, faz personalidade de Salieri. O símbolo Mozart re-
com que as interpretações dos Símbolos da presenta alguém dotado de genialidade musical
inveja sejam radicalmente diferentes das inter- que se lança com todo seu ímpeto existencial
pretações de uma Psicologia que reduza a inve- para expressar sua criatividade. Foi este “se lan-
ja a uma noção destrutiva. Para esta Psicologia çar inteiro na criatividade”, a grande característi-
redutivista, Salieri, como grande invejoso, seria ca do símbolo Mozart que Salieri não seguiu no
simplesmente um músico medíocre carregado desenvolvimento de sua personalidade. Mas por
de destrutividade, como é representado do iní- que não o fez?
cio até a última frase da peça. Para a Psicologia Muitos responderão que não o fez porque
Simbólica, porém, a intensidade da inveja de não sabia e não podia fazê-lo, exatamente por-
Salieri é altamente indicativa da pujança cria- que só tinha inveja e não criatividade. Este ra-
tiva de sua personalidade. A destrutividade da ciocínio só seria válido se desvinculássemos a
personalidade de Salieri teria nascido e crescido inveja do desenvolvimento criativo global da
progressivamente na exata medida em que ele personalidade, o que não é aceitável para a Psi-
não soube, não pôde, ou não quis fazer o esfor- cologia simbólica, pois, para ela, a inveja como
ço necessário para desenvolver sua inveja que outra qualquer função psicológica é estruturante

82 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


não só da consciência como de toda a psique, um exemplo explícito. Afinal, Salieri, com sua
tanto individual quanto coletiva. Aceitando isto, imensa inveja, não só se destruiu como, talvez
podemos admitir que o potencial estruturante de mesmo, tenha contribuído diretamente para a
sua inveja era tal que, ao não ser aproveitado, destruição do próprio Mozart. Haveria melhor
invadiu a personalidade de forma inadequada exemplo para a destrutividade da inveja? Já para
conduzindo à desestruturação psicótica e à ten- a tese que defendo na qual a inveja é normal-
tativa de suicídio. Pode-se falar em seca diante mente estruturante e somente se torna destruti-
de tal inundação? Poderia se argumentar que va quando não atendida, o caso Salieri seria um
muitas vezes a desestruturação psicótica ocor- exemplo implícito. Somente se o analisássemos,
re não pela pujança da força criativa, mas pela o confrontássemos com sua criatividade e ele
fragilidade, estruturação defeituosa e predispo- passasse a desempenhá-la com todo seu ser e
sição hereditária à psicose. Isto como sabemos sua inveja aos poucos se aplacasse, na medida
é não somente possível como frequente, mas em que sua obra crescesse, é que poderíamos
não parece ter sido o caso. Pelo contrário, pois usar seu caso como um exemplo explícito desta
toda a história de Salierinos mostra a existência tese. A vivência da criatividade da inveja e, aliás,
de um Ego forte e bem-estruturado. Parece-me de toda a Psicologia Simbólica, é, pois, neces-
altamente improvável que um indivíduo que fos- sariamente iniciática. Somente se acompanhar-
se portador de um ego fraco, com estruturação mos o desenvolvimento dos símbolos na perso-
defeituosa e predisposto à psicose, saísse ainda nalidade em casos de psicoterapia, em pessoas
jovem da Itália, vindo de família humilde e tives- intimamente a nós ligadas ou em nós mesmos é
se a pujança competitiva para atingir em Viena o que perceberemos o funcionamento dos símbo-
posto musical mais alto na corte austríaca. Não los e funções simbólicos ora de forma construti-
pretendo, de forma alguma, com isso dizer que va, ora de forma destrutiva dependendo de como
Salieri foi um gênio musical como Mozart. Isto são aproveitados no todo psicológico ou Self.
seria absurdo, pois meu raciocínio aqui parte do O problema é que a Psicologia é necessa-
pressuposto que Salieri adoeceu, exatamente, riamente iniciática por ser uma ciência do ser
por não realizar a sua genialidade e, por isso, global. Ao ser iniciática, a Psicologia faz parte
ela nunca foi conhecida. O que quero dizer é que da ciência simbólica que engloba a ciência ob-
a inveja de Salieri expressava exatamente esse jetiva e inclui sempre também a parte subjetiva
imenso potencial criativo não realizado. do símbolo. Por conseguinte, a demonstração
O caso Salieri está aqui sendo referido para e a prova da ciência psicológica são a vivência
ilustrar nossa tese sobre a inveja, mas não para que nunca pode ser só comprovada abstrata
comprová-la. Reconheço que com este mesmo e objetivamente e necessita sempre do enga-
caso, algum psicólogo que reduza a inveja a jamento do ser inteiro para comprová-la. Não
uma emoção destrutiva e em nada estrutural- tenho aqui a intenção de demonstrar ou com-
mente possa também ilustrar sua tese. Afinal, o provar esta tese, mas tão somente de ilustrá-la,
que sabemos historicamente é que Salieri sendo deixando a cada um o convite para vivenciá-la
portador de uma inveja avassaladora de Mozart em si mesmo ou no processo de individuação
desestruturou-se progressivamente no final da das pessoas que acompanha intimamente,
vida atingindo um estado psicótico no qual fale- seja no consultório ou fora dele. Esta vivência
ceu. O potencial estruturante e desestruturante é altamente comprovadora na medida em que
desta inveja pode ilustrar ambas as teses sobre a inveja tratada como destrutiva é reprimida e
a inveja. Poderíamos até dizer que a tese sobre leva junto a ansiedade criativa da personalida-
a inveja como fator puramente destrutivo seria de. Deixa-se de ter angústia, em troca de uma
mais plausível pois o caso Salieri para ela seria calma desvitalizada. Por outro lado, podemos

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 83


comprovar como a inveja é criativa, na medida estruturante em questão, não necessitando por
em que a atendemos, a “ouvimos” e ela começa isso de ser buscada fora dele. Isto nos obrigará
a diminuir como a fome diminui durante a re- a buscar o significado sempre no próprio “aqui e
feição vitalizadora. Esta vivência torna-se real- agora” histórico do símbolo, por mais arquetípi-
mente convincente quando sentimos não uma, co que ele seja.
mas inúmeras vezes a ansiedade dolorosa da Esta consideração é muito importante para o
inveja atendida se transformar aos poucos na caso de examinarmos qualquer função psíquica
satisfação da criatividade realizada. Isto tudo como estamos fazendo com a emoção da inve-
é altamente convincente para quem a vivência, ja. Se tivermos em mente somente a noção do
pois esta satisfação é acompanhada da pleni- inconsciente reprimido, buscaremos no símbolo
tude do ser que é completamente diferente do aquilo que achamos que está reprimido. Mas se
vazio que substitui a inveja quando, simples- tivermos em mente a noção de um Self criativo
mente, a reprimimos e a substituímos por uma realizando dia e noite a obra psíquica, como um
noção puritana de bom comportamento. Quem pedreiro que constrói uma casa, buscaremos
reprime ou racionaliza defensivamente sua in- compreender o significado de cada tijolo (símbo-
veja nunca poderá perceber o quanto ela é ne- lo) na função que ele desempenhará na própria
cessária e inerente à aventura do ser em dire- casa que está sendo construída. Por isso, dizer
ção à atualização de sua potencialidade. Pode que as pessoas são invejosas ou que Salieri é
o navegante que equaciona a escuridão com o um grande invejoso é dizer muito pouco. Sur-
perigo e se recolhe sempre ao anoitecer jamais preendo-me frequentemente quando ouço dizer
usufruir da navegação pelas estrelas? que algo é “fálico” ou “incestuoso”, acreditan-
Neste ponto, torna-se necessário refletirmos do, com isso, esgotar o significado simbólico. É
sobre a importância do conceito de Jung de que o mesmo que dizer que algo é alto ou vermelho.
libido é igual a energia psíquica e não deve ser Trata-se de meras qualidades dos símbolos que
reduzido a nenhuma característica humana par- necessitam de muitas outras para se compreen-
ticular como, por exemplo, a sexualidade, como der seu significado. É necessário sempre saber-
quis Freud, ou o poder como preferiu Adler. É mos como os símbolos são e como estão fun-
que, se assim o fazemos, não podemos usar cionando na inveja para compreendermos sua
adequadamente a noção de símbolo estruturan- função estruturante.
te e caímos prisioneiros do redutivismo. Nesses Acredito que haja uma grande resistência
casos, quando vamos intuir prospectivamente individual e cultural para admitirmos a norma-
o caminho do símbolo estruturante em respos- lidade e a função estruturante da inveja, pois,
ta às perguntas “para onde?” e “para quê?”, a aí, não poderemos simplesmente considerá-la
resposta será canalizada forçosamente para o algo ruim que deva ser reprimido. Pelo contrá-
sexo ou o poder, porque nós reduzimos a prio- rio, nesse caso, seremos obrigados a conside-
ri o conceito de energia psíquica ao sexo ou ao rá-la simbolicamente como uma exigência do
poder. O oposto se dá quando equacionamos nosso Self Individual ou Cultural, exigência
libido com energia psíquica, pois com isso libe- essa que deveremos nos esforçar para atender
ramos o conceito de Símbolo Estruturante para adequadamente, sob pena de prejudicarmos
que ele exerça plenamente a realidade psíquica o nosso desenvolvimento e termos que pagar
que a ele corresponde. Nessa eventualidade, mais tarde o preço de nossa omissão. É como
a resposta ao “para onde?” e “para quê?” do o caso das crianças mal-nutridas que comem
símbolo estruturante não reduzido será: para a terra, fato que durante muito tempo atribuímos
expressão da realidade psíquica, qualquer que a sua ignorância, mas que ultimamente desco-
ela seja e que já é inerente ao próprio símbolo brimos que, com isso, a criança está buscando

84 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


inconscientemente o ferro imprescindível à for- mágoa e torna ainda mais dolorosa sua inveja.
mação da hemoglobina dos seus glóbulos ver- Sua consciência da inadequação de Mozart na
melhos e ausente na sua alimentação. A partir corte, em vez de diminuir ou compensar seu sen-
daí aumentamos nossa consciência da desnu- timento de inferioridade, na realidade o aumen-
trição em nosso meio e somos conclamados ta, ao perceber que ele, que tudo consegue na
ainda mais a agir em função do desenvolvimen- corte, tem uma obra musical medíocre, enquan-
to social. Analogamente, a inveja conscientiza- to que Mozart que nada pode, nem por isso dei-
da será indicativa da fome e da carência de um xa de ser um gênio criando de forma exuberante
ser ou de uma sociedade que necessita daquilo uma obra inigualável. A criatividade de Salieri,
para se realizar. Ao seguir a carência alimentar mesmo não realizada plenamente, lhe capaci-
destas crianças, descobrimos sua anemia e o ta de uma consciência musical histórica muito
ferro que falta em seu organismo, da mesma além do seu tempo, por intermédio da qual ele
forma que, ao seguirmos a inveja, descobrire- classifica com grande objetividade sua criativi-
mos os símbolos e as funções estruturantes dade de medíocre e a de Mozart de genial.
para as quais eles estão sendo mobilizados. A inveja não aproveitada criativamente torna
Nossa tese é que a inveja tanto mais rói e Salieri cada vez mais maléfico, diabólico e des-
faz sofrer quanto mais ela expressa algo que é trutivo. Sua inveja não aproveitada dentro do di-
imprescindível à personalidade do invejoso. A namismo criativo, normal, enseja a formação de
própria peça, mesmo sem explicitar esta tese, um quadro neurótico que, mesmo assim, não a
ao menos no que se refere à consciência de contém e caminha, por isso, para o dinamismo
Salieri, nos apresenta com extraordinária ri- psicótico. O fato de somente ele ter conhecimen-
queza quanto Salieri é musicalmente dotado. to da genialidade de Mozart faz com que exclu-
Somente ele percebe plenamente a genialida- sivamente ele tenha a consciência e a responsa-
de de Mozart. Salieri usa sua percepção para bilidade da extensão de sua destrutividade. Ao
humilhar o gênio e prejudicar sua contratação atacar a símbolo e sua inveja, inicialmente de
na corte reservando par si o cargo máximo, en- forma neurótica, ainda contida e relativamente
quanto influencia a contratação de Mozart por adequada, e finalmente de forma avassaladora,
remuneração miserável e humilhante. Lado a delirante e já psicótica, Salieri se autodestrói,
lado com esta agressividade contra o símbolo pois, com isso, inutiliza para sempre simbolica-
invejado, em momento algum Salieri o esquece mente o caminho que seu Self lhe apontara para
ou deixa de valorizar sua criatividade, acompa- criar profundamente. Este caminho era existen-
nhando maravilhado sua carreira e admirando cialmente tão importante que sua destruição
estagiado cada nova composição. arrastou com ela o próprio Ser. Se nos pergun-
Parece-nos mesmo, às vezes, que Salieri tem tarmos agora, admitindo o imenso potencial
até mais consciência da genialidade e da impor- criativo de Salieri porque ele não se realizou, ve-
tância histórica de Mozart do que este próprio. remos que também nisso, o caso Salieri é antoló-
É que, lado a lado de sua enorme sensibilidade, gico. Salieri se perdeu porque, em vez de se de-
Salieri não carrega só a frustração criativa, mas dicar a sua criatividade, se dedicou à detenção
também, a experiência sofrida de quem se fez do sucesso mundano, ou seja, ao preferir o po-
um lugar ao sol, galgando com dedicação e es- der da fama, perdeu sua chance de atingir a gló-
forço cada degrau na corte e adquirindo grande ria. Acima escrevi que Salieri não quis, não pôde
conhecimento mundano da mediocridade huma- ou não soube realizar seu potencial criativo. Sua
na e seus valores. Nesse sentido, Mozart social- gula “infantil e viscosa”, como ele mesmo diz, é
mente para ele é um neófito e um inocente. Um aqui significativa. É muito difícil precisar porque
joguete fácil que, por isso mesmo, aumenta sua uma pessoa se afasta do seu potencial criativo

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 85


se alienando de sua autenticidade. Este tema é vivências criativas. De fato, a maioria delas tem
tão profundo que podemos vê-lo como uma das esta problemática. Se estamos amando alguém,
características de nossa espécie. Psicologica- aparecem sempre sentimentos e ideias que sa-
mente somos entre outras coisas um organismo bemos que não agradarão ao outro e nós as es-
que pode optar entre o poder e a glória. A com- condemos. Em breve chega o momento em que
provação deste fato psicológico é mais uma vez ou arriscamos mostrar estas ideias e emoções e
iniciática. Bastará alguém entrar em contato com perder o outro, ou as escondemos e mantemos
seus símbolos e perceber o sentido do seu cami- a relação sob o nosso poder, mas perdemos sua
nho amoroso, profissional, político ou religioso essência e sua integridade e junto com elas nos
para começar a se dar conta de quantas são as perdemos a nós mesmos. Profissionalmente, o
tentações para trairmos o sentido profundo dos mesmo se dá. Temos nossa vocação, mas somos
nossos passos. Esta tentação é tão frequente e frequentemente obrigados a fazer concessões
significativa que ela desempenha um papel im- para mantermos nossos empregos ou nossa po-
portante até mesmo no mito messiânico Judaico- sição social. Chega um momento, porém, que
-Cristão que é o protótipo de um mito de busca se nós não nos colocamos e defendemos nossa
e autorrealização de gigantesco potencial criati- criatividade profissional, correndo o risco das
vo, visto que seus símbolos continuam até hoje, consequências contrárias a nós, perderemos o
transformando nossa civilização 2 mil anos após contato com essa criatividade. O mesmo ocorre
sua vivência histórica. em nossas atitudes políticas. A linguagem reli-
giosa expressa isto na tentação pelo Diabo, no
Em seguida Jesus foi conduzido pelo afastamento de Deus, no pecado ou na perda da
Espírito para o deserto para ser tentado própria alma, o que simbolicamente quer dizer o
pelo demônio... (pela terceira vez) o dia- afastar-se de si mesmo, de sua integridade, de
bo levou-o a uma montanha muito alta e sua vocação existencial autêntica.
mostrou-lhe todos os reinos do mundo Trata-se da imensa problemática existencial
e o poder sobre eles; e lhe disse: – To- de cada um de nós de perder-se ou de encontrar-
dos estes eu te darei se você a mim se -Se. Chama-se este Se de autenticidade, Deus,
submeter e me adorar. Disse-lhe Jesus: – integridade, servir a glória ou a realização exis-
Afasta-te Satan, pois está escrito: adora- tencial do Ser, não importa. Denomine-se este
rás o Senhor teu Deus e só a Ele Servirás perder-Se de falso Self, imaturidade narcísica,
(MT: 4:1-10). alienação existencial, cair na tentação do poder
mundano, servir ao Diabo, fracassar no caminho
A análise simbólica deste texto mítico nos de sua autorrealização profunda, também não
mostra duas coisas importantes quanto à rea- importa. O que importa é que é inerente ao cami-
lidade psíquica. Primeiro, que a mais forte das nho do desenvolvimento da personalidade e das
tentações aqui apresentadas é a de deixar-se sociedades humanas este corresponder a uma
levar pelo poder sobre o mundo. Segundo, que vocação profunda, apesar da não aprovação do
as tentações são encaminhadas pelo próprio consenso do momento, ou afastar-se dela e ar-
Espírito, ou seja, a tentação pelo poder, o su- riscar a estagnação, a desintegração, a loucura e
cesso mundano e a fama em detrimento da fi- até mesmo a morte prematura e destrutiva.
delidade à integridade da autorrealização plena Com isso, não devemos concluir que o cami-
é inerente ao Todo, isto é, ao próprio caminho nho individual seja mais autêntico e profundo
do desenvolvimento. Isto tudo pode parecer que o caminho social, pois indivíduo e socieda-
muito complicado, mas na realidade se torna de, na sua dialética permanente durante o pro-
simples quando observamos nossas próprias cesso de desenvolvimento, têm a mesma proble-

86 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


mática de autenticidade e alienação. O indivíduo assinalado pela vivência dos símbolos sem real-
pode negar o seu caminho mais profundo em mente saber para onde vamos. Por isso, pode-
função da tentação imediata de fama e poder mos dizer que o caminho do desenvolvimento
social e a sociedade, também, pode desviar-se simbólico é o caminho do conhecimento, mas,
do seu caminho mais autêntico e seguir mágicos também, é o caminho da fé na sabedoria do Ser.
e demagogos que a tentem com grandezas ime- O grande problema deste caminho é que, devi-
diatistas. Por isso, não devemos separar quali- do a sua própria natureza simbólica, ele não é
tativamente o caminho individual e social e sim claro, discriminado e objetivo. Os símbolos in-
vê-los, cada um a sua maneira, com a mesma cluem, por definição, componentes subjetivos e
problemática de autenticidade e alienação du- objetivos que somente se discriminam durante
rante o seu processo de desenvolvimento. sua vivência, o que levou o poeta a escrever que
É importante perceber que o Self Individual “o caminho se faz ao caminhar”. O caminho dos
e Cultural se expressam por intermédio de sím- símbolos é necessariamente incerto e angustian-
bolos estruturantes a longo prazo e, por isso, te devido a sua própria originalidade e criativida-
a dedicação à integridade do processo requer de, e nos faz atravessar regiões desconhecidas
frequentemente a vivência de grandes frustra- e inóspitas onde não se encontra nem viva alma
ções. A travessia do deserto pelo povo judeu, quanto mais espectadores para nos aplaudir.
que até hoje comemora as frustrações vividas Também não importa se designamos este es-
ao comer o pão não fermentado na Páscoa, no tado psicológico buscado de sintonização com
nível cultural, e a “Noite escura da alma”, des- os símbolos de céu, Nirvana, Tao, estado de
crita por São João da Cruz, no nível individual, Graça, santidade, Zen, plenitude, beatitude e ao
são exemplos dos sofrimentos e tentações do seu oposto de inferno, alienação. Maya, loucura,
caminho de desenvolvimento. A tentação do po- desespero ou frustração existencial. O importan-
der e da fama têm muito a ver com o imediatismo te é reconhecer que eles existem e que são dois
da busca de sucesso e de satisfação de desejos dos parâmetros mais profundos e significativos
em troca de uma fidelidade a símbolos que se par avaliarmos o processo de desenvolvimento
tornarão realidade num futuro mais longínquo. psicológico de um ser humano e de uma cultura.
Estes símbolos, são denominados, frequente- Em termos de desenvolvimento simbólico
mente, de profundos, espirituais ou “não deste da personalidade ou do processo de individua-
mundo”, o que pode confundir a percepção da ção, como o denominou Jung, esta problemáti-
sua natureza psicológica. A satisfação imediata ca de nos mantermos fiéis a nossa integridade
é denominada mundana porque ela está presen- ou de nos perdermos de nós mesmos é de cru-
te e a vista de todos, enquanto que os símbolos cial importância no sentido global. Todo aquele
profundos exatamente por serem intensamente que tem um mínimo sentido da sua individuali-
prospectivos não estão aparentes. Para segui- dade e do que quer dizer a busca de si mesmo
-los, necessitamos do conhecimento e da fé, que ou de sua autenticidade tem uma noção do que
psicologicamente significa a ligação íntima com é perder-se. A escola existencial de filosofia en-
o significado simbólico que muitas vezes é uma fatizou muito a problemática da autenticidade
sensação profunda, mas inexplicável. Ao cre- do Ser. Na vivência religiosa cristã ou taoista, o
ditarmos nos símbolos e segui-los, avançamos estar com Deus ou em Tao, como disse acima, é
de forma racional e irracional. Racional porque praticamente a vivência central do conjunto de
percebemos o caminho desconhecido que entra- ensinamentos dessas religiões. O Budismo Zen
mos e tentamos nos precaver de seus perigos e preferiu afastar-se da linguagem religiosa, que
avançar da forma mais adequada possível. Irra- de tanto falar em Deus, frequentemente o coisi-
cional porque estamos avançando num caminho fica, o separa do sujeito que dele fala e perde

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 87


a vivência de totalidade essencial ao relaciona- a Sombra da Personalidade e que sejam atua-
mento místico. O Budismo Zen passou a buscar dos por intermédio da Sombra da Cultura. A
a vivência Zen como uma vivência de ligação Sombra é, então a parte da Personalidade e da
com a totalidade em cada momento existencial Cultura que abriga e atua aqueles símbolos es-
específico, o que necessariamente engloba su- truturantes que não têm acesso à Consciência
jeito e objeto e nos impede buscar a vivência Individual e Coletiva. O Self Individual e Cultu-
do Todo fora de nós. Mas, como tratar este as- ral, além de propiciar e coordenar os símbolos
sunto dentro dos parâmetros da nossa ciência estruturantes, busca sempre também confron-
psicológica, ou seja, à luz do desenvolvimento tar a Consciência com a Sombra e criar mais
da Consciência a partir dos seus símbolos es- Persona por intermédio da modificação e da
truturantes? E, dentro da abordagem científi- ampliação dos papéis existentes ou da criação
ca e simbólica deste tema, como conjugá-lo à de novos para desenvolver o indivíduo e a cul-
criatividade artística e aplicá-lo ao processo de tura. Por conseguinte, a consciência sofre uma
desenvolvimento existencial e profissional de tensão permanente entre a Persona e a Sombra
Salieri para chegar a conclusão que sua loucura que é praticamente inseparável da tensão entre
se explica essencialmente na sua opção pela a Consciência e o Arquétipo Central oriunda da
fama em detrimento da glória? existência contínua de símbolos estruturantes
Para que a fama e a glória sejam percebidas atuando dia (atos, vivências e fantasias) e noite
em relação dialética dentro da ciência psicoló- (sonhos) para alimentar e fazer prosseguir o de-
gica, temos que ter uma compreensão não só senvolvimento da Consciência.
da formação da Consciência como de sua rela- É dentro desta tensão de crescimento que
ção com a totalidade do processo. Para isto, ne- a Consciência pode se apegar a situações na
cessitamos conjugar a descoberta de Freud de vida de forma estereotipada e passar a resistir
que a Consciência é formada a partir do incons- à transformação exigida pelos símbolos estru-
ciente e a de Jung de que o inconsciente tem no turantes que a transformam, na medida que a
seu centro o Arquétipo Central do qual emana a ligam significativamente ao Todo. Uma das for-
vivência e totalidade que orienta o Ego no pro- mas da Consciência apegar-se a uma fase do
cesso de individuação. Necessitamos também processo e passar a resistir à movimentação
acrescentar a essas descobertas a noção de do Todo é o cultivo exagerado de um determi-
que o mesmo fenômeno se passa no desenvol- nado papel no qual obtivemos sucesso. Nesse
vimento do Indivíduo e da Cultura um processo sentido, o sucesso é algo que confirma o nosso
paralelo e interacional. esforço e nos estimula a continuar, mas que,
A Persona é uma função no desenvolvimento ao mesmo tempo, se transforma na grande ten-
da personalidade e da sociedade que regula a tação de nos desviarmos do nosso desenvolvi-
interação pessoal no nível institucional. A Perso- mento. Isto explica porque, na passagem bíblica
na se constitui pelo número e a natureza de pa- citada, é Deus quem guia Jesus pela terceira vez
péis que uma cultura elaborou tradicionalmente ao deserto onde será tentado por Satã. É que, a
durante séculos ou milênios e que coloca à dis- tentação de permanecer exageradamente no su-
posição dos seus membros para o desenvolvi- cesso só existe porque é inerente ao Self o de-
mento de sua Personalidade na interação social. sejo e o incentivo para alcançá-lo. O problema
Quando o Self Individual constela símbolos surge não pelo fato do sucesso em si ser bom ou
estruturantes cujo conteúdo ou forma não en- mau, certo ou errado, e sim devido ao processo
contram uma Persona, ou seja, um papel social de desenvolvimento não parar nunca. Devido a
adequado para se desenvolver, a tendência isto, a meta de hoje pode facilmente se transfor-
será que estes símbolos sejam levados a formar mar na estagnação de amanhã. É nesse momen-

88 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


to que o culto do sucesso obtido pode atrasar o de Mozart destruindo o símbolo central de sua
desenvolvimento e afasta nossa Consciência do obra e com isso a própria pretensão de um Deus
seu relacionamento com o Self, ou seja, é este o justo e harmonioso.
caminho por intermédio de do qual a fama pode Na realidade, Salieri vai aos poucos afundan-
nos separar da glória. Os estados de alienação do no inferno da negação de sua criatividade,
e autenticidade do Ser, de estagnação e de cria- que ele próprio iniciara muito antes de apare-
tividade plena, de pecado e de graça, por con- cer Mozart em sua vida. Existe um momento na
seguintes não são isolados um do outro, mas peça, em que Salieri deixa a Itália e parte para
interagem dinamicamente durante as transfor- sua grande busca existencial em meio à inten-
mações da Consciência. sa insegurança. Nesse momento, ele se dirige a
Nesse sentido, podemos dizer que Salieri Deus e pede o poder e a fama:
não pôde desenvolver sua inveja construtiva-
mente, na medida em que se afastou de sua vo- Salieri – ato 1 cena 2 – Admito que seja
cação musical profunda por haver transformado um tanto repulsivo, mas o primeiro peca-
sua arte num instrumento de obtenção de poder do que devo confessar a vocês é minha
e fama. Ao usar sua criatividade para ganhar fa- gula. Uma gula viscosa, infantil, italia-
vores na corte, obter cada vez mais status e po- na... Dos 3 aos 73 anos toda minha carrei-
der, Salieri submeteu-se paulatinamente à mu- ra foi conduzida ao sabor de amêndoas
sicalidade medíocre reinante e foi se afastando polvilhadas de açúcar cristal, biscoitos
do seu talento e mergulhando em frustrações de Verona, macarrões de Milão, escalo-
cada vez mais intensas. O aparecimento de Mo- pes de Siena, tortas geladas recheadas
zart com sua criatividade genial, mas sobretudo e pistache... Meus pais eram simples
com sua dedicação até mesmo descontrolada a vassalos do Império Austríaco e perfei-
essa criatividade em detrimento de tudo e todos, tamente felizes com essa condição. Sua
incapaz até mesmo por imaturidade e limitação noção de espaço reduzia-se a pequena
de sua personalidade à qualquer adequação so- cidade de Legnano da qual eu queria dis-
cial, transformou Mozart num símbolo de tudo o tância. Sua noção de Deus era a imagem
que estava negado na personalidade de Salieri e de um super Imperador dos Hapsburgo,
acendeu sua inveja, incendiando-a até as raízes morando um pouquinho mais longe que
da loucura. Viena. Tudo o que desejavam desse Ente
Na encruzilhada que poderíamos conside- Supremo é que protegesse o comércio e
rar o fulcro dramático da peça, Salieri resolve os mantivesse perfeitamente anônimos,
destruir Mozart. Sua inveja atinge um ponto, preservados em mediocridade. Já minhas
tão doloroso e mesmo desesperador, que ele necessidades eram um tantinho diferen-
se considera um monstro da criação. Salieri tes. (Pausa). Eu queria a Fama. Para ser
julga sua própria inveja um defeito da criação. sincero, eu queria brilhar como um co-
Inteiramente inconsciente de como prostituiu meta rasgando o firmamento da Europa.
e malbaratou sua criatividade, ele percebe sua Mas por intermédio de uma única coisa:
inveja como um erro de Deus e decide levar este – A Música absoluta. Pois uma nota de
erro às últimas consequências, vingando-se de música está certa ou errada de modo ab-
Deus e fazendo tudo em seu poder para destruir soluto. Nem mesmo a eternidade poderá
Mozart. Nesse sentido, sente-se como a própria mudar isso: A música é a arte de Deus.
sombra de Deus, um ser diabólico e defeituoso, (Excitado pela lembrança). Já quando eu
que assume a criação defeituosa sob a forma tinha só 10 anos, uma simples escala
divina e decide dirigi-la contra o Deus criador musical quase me fazia desmaiar.

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 89


Com 12 anos eu contemplava o céu en- -me fama. Em troca, viverei na virtude. Luta-
tre os ramos dos choupos assobiando rei para melhorar a sorte dos meus colegas.
minhas áreas e meus hinos ao Senhor. E vos honrarei com muita música todos os
Minha única aspiração era estar entre os dias de minha vida”. Assim que eu dis-
compositores italianos do passado que se Amém, vi que os olhos dele brilhavam,
haviam celebrado a Sua Glória. Todo Do- como se dissesse – Bene. Vá em frente, An-
mingo na Igreja, eu contemplava o Senhor tônio. Dedique-se a mim e à humanidade
pintado nos murais. Não estou falando de e eu te abençoarei. “Grazie”, eu respondi.
Cristo. Os Cristos da Lombardia são tolos “Serei vosso servidor por toda a vida”.
sorridentes, acariciando cordeirinhos.
Não: eu falo de um Deus com um manto À luz do que dissemos acima, nos damos con-
escarlate no meio de velas enfumaçadas, ta de que um indivíduo com aquela criatividade
contemplando o mundo com os olhos de tinha que pedir ao destino a autorrealização do
um negociante. Foram os comerciantes seu Dom criativo como o que poderia lhe advir de
que o puseram lá em cima. Aqueles olhos mais precioso. Ao desejar, porém, acima de tudo
faziam barganhas reais e irreversíveis. a fama, Salieri confessou sua intenção de negar
“Toma lá, dá cá – nem mais, nem menos”. sua vocação profunda em função do sucesso so-
(Na sua excitação, come um biscoitinho) cial. Naquele momento, em símbolos religiosos,
– na véspera de minha partida definitiva podemos dizer que Salieri não estava rezando
de Legnano, eu fui vê-lo e fiz uma barga- para Deus, mas sim vendendo sua alma ao Dia-
nha com Ele. Era um rapaz ponderado de bo ou, em termos mitológicos, que Salieri foi um
16 anos, repleto de um desesperado sen- artista que rejeitou sua verdadeira musa e, por
so de justiça... isso, seria por ela um dia levado à loucura. Em
símbolos existenciais, isto seria o equivalente
Veem-se aqui duas características impor- a dizer que Salieri estava naquele momento ex-
tantes na personalidade de Salieri: primeiro, a pressando sua propensão de desviar-se de sua
sensibilidade, profundidade e criatividade que integridade criativa profunda em função de um
lhe dão a ambição de crescimento. Segundo, a grande sucesso social.
subordinação dessa criatividade à fama. Seu Por isso, quando muitos anos mais tarde sur-
Deus na realidade é tão farisaico que não po- ge Mozart em sua vida, compreendemos porque
dia ser mais diabólico. Obcecado pelo sucesso, a inveja de Salieri é o tema central da peça e esta
Salieri não percebe o quanto está traindo a sua se chama ambiguamente “Amadeus”. O título da
criatividade ao subordiná-la à fama. Pactua a peça “Amadeus” que, aparentemente, é apenas
clássica venda da alma ao Diabo, assegurando um dos nomes do compositor Wolfgang Ama-
com isso a sua fama, mas também sua loucura. deus Mozart, adquire aqui todo seu significado
Psicológica e existencialmente não podia ser simbólico. Diante de um Salieri entregue de cor-
mais claro o projeto de vida alienante que seu po e alma ao culto do poder e da fama e prosti-
organismo psíquico ou sua alma, como quei- tuído por toda espécie de concessões, aparece
ram, não toleraria a longo prazo e cuja rebelião Mozart na simplicidade de um artista que jamais
eclodiria anos mais tarde ao encontrar Mozart. rejeitou sua Musa, que não faz concessões, não
O personagem continua: prostitua sua arte, e por isso realmente ama a
Deus, o que não impediu de sofrer de uma neu-
Salieri – Me ajoelhei diante do Deus da Bar- rose ainda mais grave que Salieri que se trans-
ganha e orei com todo o fervor. (Ajoelha). formará numa psicose fulminante, só que por
“Signore, fazei de mim um compositor. Dá- outros motivos como descreveremos adiante.

90 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


Junto com a inveja avassaladora, aparece sua criatividade e transformando a destruição de
também na vida de Salieri sua chance de salvar- Mozart na sua guerra com o Criador.
-se, caso ele pudesse ainda perceber o Símbo- O ponto decisivo do processo analítico de
lo Mozart como a representação de tudo aquilo uma personalidade como a de Salieri, e que ilus-
que ele há anos negara em si mesmo, ou seja, tra a importância da concepção da inveja como
o desvio existencial do seu próprio caminho de fator estruturante no desenvolvimento da perso-
autorrealização. Se ele assim o fizesse, sua in- nalidade, teria sido o confronto com o símbolo
veja, apesar de o corroer e torturar intensamen- Mozart. A amplificação deste símbolo e sua ela-
te, preservaria sua função normal estruturante boração, dentro da própria história do seu de-
e até mesmo salvadora. Porém, ao racionalizar senvolvimento, teriam podido mostrar a Salieri
defensivamente a função de sua inveja, culpan- tudo o que ele havia negado na criatividade do
do Deus por tê-lo criado para humilhá-lo, pela seu Ser e que agora vinha sob a forma do fan-
percepção de uma criatividade em Mozart, da tasma terrível da inveja cobrar dele um acerto de
qual julga não ter nenhuma parcela em si pró- contas. Ao não confrontar construtivamente este
prio, Salieri bloqueia a função estruturante de fantasma, verdadeiro demônio da criatividade
sua inveja e a reprime, transformando-a em in- no sentido grego do “daimon”, o acerto de con-
veja neurótica e por isso destrutiva. Ele não reco- tas se transformou na tragédia de sua loucura e
nhece o quanto prostituiu e bloqueou sua cria- sua morte.
tividade por narcisismo, imaturidade e ambição Do ponto de vista da Psicologia da Inveja,
social. Sua criatividade, porém, era tanta que cabe ressaltar que o grande ensinamento do
o dinamismo neurótico não foi bastante para personagem Salieri para nossa cultura é que o
conter sua inveja. Ela o transpõe e Salieri entra personagem sofre, enlouquece e morre em meio
no dinamismo psicótico de pretender destruir à inveja sem em momento algum haver pensado
Mozart não só profissionalmente como também na possibilidade de a inveja ter função estrutu-
existencialmente. Se ele o fez realmente, não o rante. Seria como se um ser faminto saísse pelo
sabemos. O importante para nós neste contexto mundo afora teorizando e destruindo planta-
é que ele o intencionou com tal intensidade que ções e criações e a seguir enlouquecesse e um
chegou a tentativa de suicídio em meio a crises dia morresse, sem nunca reconhecer que o seu
delirantes de culpa 30 anos depois. problema era sua própria fome. Este fenômeno
Podemos dizer que o dinamismo da inveja de não reconhecer a inveja, que sentimos várias
de Salieri na peça passou a ser neurótico depois vezes por dia durante toda a vida, como uma fun-
que Mozart o humilhou, ridicularizando a peque- ção psicológica e estruturante, não é só de Salie-
na área que Salieri compôs para sua recepção ri, mas de toda nossa cultura. Este problema é
na corte. A partir daí a inveja de Salieri passa apenas uma das consequências da repressão e
a ser quase que exclusivamente antagônica ao dissociação do nosso Self Cultural ocorrido após
símbolo invejado, pouco contribuindo para o o Renascimento em função da vivência traumáti-
crescimento de sua personalidade. Contudo, ca da Inquisição.
este dinamismo neurótico não foi suficiente para O problema se agrava porque esta dissocia-
conter o símbolo da criatividade tão intensamen- ção interrompeu nossa consciência histórica,
te mobilizado pela inveja, o que motivou a ins- o que nos impede até mesmo de reconhecê-lo.
talação de um dinamismo psicótico paranoide, Freud, por exemplo, no final de sua obra tão cria-
megalomaníaco e delirante. Este dinamismo se tiva, ao examinar em “O Mal-Estar na Cultura”
instala na peça, a partir do momento em que Sa- as causas da repressão do Id, chega à conclu-
lieri passa a lutar diretamente com Deus, proje- são de que esta é uma vicissitude da civilização,
tando na divindade o que ele próprio fizera com sem sequer entrar nos “porquês e comos” da

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 91


repressão em nossa cultura. Ele que tudo ana- cativo desta tese, porque Mozart, ao menos, era
lisava e buscava enraizar no passado, deixa a um gênio e assim correspondia às resistências
imensa repressão cultural originada na Inquisi- de Salieri para perceber a função da inveja no
ção escapar devidamente racionalizada. Ele, que seu próprio processo existencial. Já Desdêmona
descrevera e denunciara tão magistralmente o jamais conheceu o adultério e, por conseguinte,
puritanismo da era vitoriana que acompanhava percebemos muito mais claramente, que o seu
as manifestações expressivas do Inconsciente, adultério é produto da imaginação de Otelo para
não diferenciou no final de sua obra a sociedade justificar sua dificuldade em confrontar a função
repressiva da sociedade democrática, limitando- estruturante do seu ciúme. Ao acirrar esta resis-
-se a lamentar-se pela necessidade cultural da tência, Ioga atua diabolicamente como o Deus
repressão. Ao não diferenciar a repressão da su- Mercador de Salieri, desviando Otelo cada vez
blimação, ou seja, a repressão da delimitação, mais da função estruturante autêntica do seu
Freud deixa passar a repressão cultural oriunda ciúme, e levando-o a vivenciá-lo de forma repri-
da Inquisição, camuflada lado a lado com a deli- mida e dissociada, primeiramente neurótica e,
mitação, esta, sim, necessária a qualquer cultu- depois, psicoticamente no homicídio.
ra. Até hoje continuamos sendo devorados por Salieri sucumbe à inveja e Otelo ao ciúme
um monstro que não podemos combater por não sem em momento algum confrontá-lo e vivenciar
havermos sequer identificado-o como monstro, seus símbolos, Mozart e Desdêmona, como fun-
posto que o incorporamos ao desenvolvimento ção estruturante de seu processo de desenvolvi-
como normal. mento. Suas tragédias confirmam a expectativa
Grandes liberais, revolucionários e cientis- da moral maniqueísta do nosso Self Cultural, dis-
tas dos mais avançados atuam a dissociação sociado pela Inquisição, de que inveja e ciúme
sujeito-objeto, ser humano-mundo, emocional- são emoções ruins que não devem ser vividas.
-racional oriunda da Inquisição sem nem sequer Em momento algum destas obras percebemos a
percebê-la. Os religiosos cristãos raramente a noção de que seus processos de desenvolvimen-
computam em suas interpretações culturais, to pararam e a desestruturação psicótica de sua
pois a Inquisição é a mancha negra de sua his- personalidade teve lugar a partir da sua incapa-
tória, na qual até hoje se apoiam suas defesas cidade de viver a inveja e o ciúme como funções
repressivas e os cientistas liberais materialistas normais no desenvolvimento e diferenciação de
ou agnósticos deixam-na de lado, pois “Inquisi- suas personalidades.
ção foi coisa de Religião e por isso nada tem a ver Tenho descrito uma Psicologia simbólica na
com a verdade científica”. Quem usufrui disto é qual os símbolos são percebidos como símbolos
a própria dissociação cultural que veladamente estruturantes da consciência e da personalida-
continua sua obra repressiva e maniqueísta. de. O símbolo estruturante tem conteúdos tanto
Os grandes fenômenos emocionais em nos- dos processos conscientes quanto dos proces-
sa cultura que consideramos como o protótipo sos inconscientes. Por exemplo, Mozart, como
de determinadas emoções são, frequentemente, símbolo estruturante na personalidade de Sa-
na realidade, monumentos exemplares de como lieri, tem componentes conscientes, tais como
não nos permitimos e nem sabemos vivenciar tratar-se de um músico prodígio desde os 3 anos
nossas emoções. O drama de Otelo, que Shakes- de idade, ter criatividade exuberante, ser extra-
peare apresentou magistralmente e que se tor- vagante, irreverente etc. Tem, porém, como todo
nou uma antologia teatral do ciúme, por exem- símbolo, também componentes inconscientes.
plo, expressa de forma exuberante que Otelo O componente central inconsciente do símbolo
como Salieri negou a função estruturante de sua Mozart na inveja de Salieri é a criatividade e, so-
emoção. O caso de Otelo ainda é mais exemplifi- bretudo, a criatividade ferida e prostituída, que,

92 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


por se haver tornado tão sombria, foi aos pou- e o crime existencial que praticou contra o dom
cos sendo cercada por defesas de dissociação, que recebeu.
repressão, projeção e racionalização, formando, As defesas de Salieri são relativamente difí-
assim, uma Sombra intensamente patológica. ceis de perceber porque são sociossintônicas,
Mozart ativa intensamente o inconsciente ou seja, existem também em nossa cultura e por
reprimido de Salieri porque simboliza o oposto isso, até certo ponto, nos parecem normais. O
da sua prostituição musical. Parte importante fato, é que nosso Self Cultural não está tão dife-
do drama da peça surge quando Salieri confes- rente assim do Self Individual de Salieri. O que
sa publicamente como abandonou Cristo por foi que fizemos com Cristo na Inquisição? A partir
um Deus comerciante ao qual prometeu servir do século XVIII não passamos a considerar a na-
em troca da fama. Contudo, em momento algum tureza humana igual à dissociação cultural que
ele se dá conta do que isso significa em termos sofremos? Isto não equivale dizer que a criação
de traição da sua própria criatividade. Podemos do ser humano é que é dissociada e que nossa
dizer que a Sombra de Salieri, ou seja, seus sím- cultura e nós não temos nada a ver com isso, ou
bolos estruturantes que não puderam estrutu- seja, que procedemos como se não tivéssemos
rar integralmente sua Consciência durante seu participado na dissociação e patriarcalização
processo de desenvolvimento e foram mantidos maniqueísta do Mito Judaico-Cristão?
fora da Consciência, está representada na prosti- As guerras religiosas ocorridas na Europa
tuição da sua criatividade em troca da fama. entre católicos e protestantes, enquanto ambos
Este símbolo estruturante, que é a sua cria- dissociavam, reprimiam, projetavam e racionali-
tividade, foi prostituído em meio a tal tensão e zavam o Mito Messiânico, não teriam sido uma
violentarão que se separou do funcionamento expressão psicótica da Sombra Patológica do
normal da personalidade. A partir desse mo- nosso Self Cultural? Da mesma forma, Estados
mento, o símbolo estruturante da criatividade já Unidos e Rússia, gastando tesouros inacreditá-
agora prostituída passou a ser escondido e guar- veis em armas em meio a um mundo miserável
dado por defesas como dissociação (Salieri não e faminto, enquanto se afirmam defensores dos
associa daí por diante o fato de desejar e não mais altos valores humanos e se culpam mutu-
conseguir criar profundamente com a barganha almente e são incapazes de ver seus próprios
diabólica que fez), repressão (o componente co- defeitos, não serão a expressão de uma disso-
varde, desonesto e traidor desta barganha não ciação neurótica do Self Cultural com possibili-
tem mais acesso à consciência), projeção (toda dade de se transformar numa avalanche psicó-
sua criatividade profunda é vista em Mozart) e tica e mortal para nossa espécie? A semelhança
racionalização (Deus criou um mundo deforma- entre nós e Salieri é grande. Resta esperar que
do e torturante para Salieri, pois fez ele nascer não nos defendamos neurótica e psicoticamente
medíocre e almejar ser um gênio), dentro de um e possamos confrontar os símbolos estruturan-
dinamismo megalomaníaco e parodie (não é tes prostituídos do nosso Self Cultural para que
Salieri quem tem problemas e sim o Criador do tenhamos um fim diferente do dele.
mundo a quem ele declara guerra). Estas defe- Estas defesas tão bem organizadas eviden-
sas se combinam entre si para isolar da Cons- ciam que a Sombra de Salieri, formada pelo sím-
ciência o símbolo estruturante da criatividade bolo estruturante de sua criatividade prostituí-
prostituída. A racionalização, por exemplo, coor- da, é patológica. Fosse ela normal, a Consciência
dena e arremata magistralmente a dissociação, de Salieri teria muito mais chances de integrá-la
a repressão, e a racionalização ao colocar a ori- quando o aparecimento de Mozart vem ativá-la
gem de tudo numa organização divina defeituo- tão intensamente por intermédio da inveja. Nes-
sa do mundo e, assim, encobrir a vida de Salieri se caso, Salieri, ao invejar Mozart, sentiria ime-

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 93


diatamente grande culpa de estar prostituindo normalmente o símbolo da criatividade para sua
sua criatividade no seu culto à fama e passaria a função estruturante, as defesas trabalhavam em
buscar sua criatividade profunda com intensida- sentido oposto contendo e ilhando a parte sím-
de proporcional à sua inveja. bolo representada pela criatividade prostituída.
Contudo, mesmos as defesas intensas que O leitor já viu em filmes uma punição dilacerante
ilhavam este símbolo, mostrando se tratar de que consiste em amarrar os tornozelos de um ini-
uma Sombra patológica dentro de um dinamis- migo a duas árvores fletidas em direções opos-
mo neurótico, não foram suficientes para conter tas e de repente soltá-las? Esta me parece uma
a intensidade estruturante de sua inveja que, por analogia do que foi acontecendo com a perso-
isso, ultrapassou o dinamismo neurótico, conti- nalidade de Salieri durante sua convivência com
do e adequado socialmente, para transbordar no Mozart.
dinamismo psicótico delirante atuado por inter- Este caso é um exemplo de como a patologia
médio da desestruturação da personalidade na mental se exacerba frequentemente pela luta da
desadaptação social aguda e no atentado contra criatividade normal com as defesas e não sim-
a própria vida. plesmente pela exacerbação destas. A exacerba-
ção das defesas de Salieri, que passam do dina-
Salieri-Capisco, já conheço meu destino... mismo neurótico ao psicótico, se dá, então, não
Vós me destes a percepção do Incompa- diretamente pela piora dos sintomas, mas pela
rável que a maioria dos homens jamais intensidade das defesas em resposta à pujança
conhece e depois garantiu que eu mesmo do dinamismo criativo normal que tudo faz para
fosse um medíocre... Dio Ingiusto! Vós rompê-las. Este fato demonstra como a psicopa-
sois o Inimigo! E isto eu juro: até o meu tologia só pode ser compreendida a partir do de-
último talento eu vou bloquear Vossa pre- senvolvimento simbólico normal.
sença na Terra. Para que serve o homem, Isto nos mostra como o símbolo estruturante
afinal de contas, senão para ensinar a expressa e veicula normalmente os processos
Deus suas próprias lições? eu lhes conta- conscientes e inconscientes e, no caso da pre-
rei a guerra que travei com Deus por inter- sença de patologia, pode reunir também o in-
médio de sua preferida – Mozart, chama- consciente patológico e o inconsciente criativo.
do Amadeus. Uma guerra na qual, é claro, Não creio que devamos reduzir a atitude pa-
a criatura tinha de ser destruída (fim do ranoide de Salieri a uma fixação homossexual
primeiro ato). em Mozart, apesar de reconhecermos que, mui-
tas vezes, a homossexualidade seja o principal
Mas, como disse acima, o símbolo Mozart símbolo reprimido no dinamismo paranoide. A
na personalidade de Salieri não contém apenas generalização feita por Freud (1969) deste fato,
componentes do seu consciente e do seu in- porém, não se confirma neste caso, pois perce-
consciente reprimido, pois possui também com- bemos claramente que o símbolo central repri-
ponentes do seu inconsciente criativo, qual seja mido é a criatividade e não a homossexualida-
a criatividade plenamente assumida, o despo- de. Nada nos impede de afirmar que, por trás
jamento social e a entrega absoluta ao dom da da criatividade, está escondida a homossexu-
criatividade musical sobejamente representada alidade. Tal afirmação nos parecia, neste caso,
por Mozart. Foi, sobretudo esta parte do símbolo gratuita, sem nada para corroborá-las. A própria
situada fora das defesas da Sombra Patológica heterossexualidade na peça ocupa lugar secun-
que foi veiculada intensamente pela inveja e dário, pois está adlerianamente a serviço do
passou a tencionar exuberantemente a perso- poder. Quando Salieri fica enciumado pelo fato
nalidade de Salieri. Enquanto a inveja conduzia de Mozart seduzir a soprano sua aluna e retalia

94 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


tentando seduzir Constance, ele é guiado pela na medida em que forma e transforma a Identi-
luta de poder oriundo da inveja da criatividade dade do Ego. Parto então da premissa que a psi-
de Mozart e em momento algum pela atração se- que está inicialmente indiferenciada inconscien-
xual. Preferimos, pois, subordinar o dinamismo temente num todo do qual por intermédio de dos
paranoide ao dinamismo repressivo patriarcal símbolos estruturantes vai durante toda a vida
de um modo geral e considerar que, em certos se diferenciando e formando a consciência, a
casos, seu conteúdo simbólico seja a homosse- Identidade e o Ego. O processo de crescimento
xualidade, mas não em todos. é doloroso porque implica sempre numa separa-
O conhecimento da função estruturante dos ção, desintegração (Fordham) ou desgarramento
símbolos combate a tendência reacionária do do Ouroboros (Neumann), ou simbiose original
Ego de se achar inteiramente pronto e acabado (Bleger) para o que contribui cada símbolo estru-
e negar que está sendo dia e noite consciente turante. No que concerne a função estruturante
e inconscientemente transformado. Não foi por das emoções, a inveja e o ciúme não estão sozi-
acaso que nossa cultura reagiu tanto às desco- nhos e atuam em meio ou, às vezes, em combi-
bertas de Galileu e Copérnico. Nosso egocentris- nação com as outras emoções como, por exem-
mo, como assinalou Freud, preferiria que a Terra plo, o amor, o ódio, a competição, a cobiça, a
fosse o centro imóvel do sistema solar, da mes- voracidade, a vaidade, o orgulho, a prepotência,
ma forma que o Ego fosse o centro da Psique. a possessividade, o medo, a covardia, a cora-
Por isso continuamos a reagir às descobertas de gem, a vingança, a falsidade, a traição e todas as
Freud, que o Id é anterior e maior que o Ego, e de demais emoções. Descrevo sucintamente, como
Jung, segundo as quais o inconsciente tem uma exemplo, a função estruturante da inveja e do
capacidade centralizadora e criativa (Arquétipo ciúme em conjunto, pois sendo estas duas emo-
Central) que como um verdadeiro Sol coordena o ções muito próximas, uma evidencia ainda mais
funcionamento da Psique. claramente a função da outra. Seu estudo pode
Como vemos no Gráfico, os símbolos estru- servir de parâmetro para o estudo da função es-
turantes funcionam como vínculo entre a Cons- truturante de todas as outras emoções dentro da
ciência e o Inconsciente ao desempenhar sua Psicologia simbólica.
função criativa no desenvolvimento da persona- A diferenciação do Ego não é aqui pensada
lidade. Todavia, nem sempre os símbolos têm o a partir da relação mundo interno-mundo exter-
mesmo tipo de componentes na sua formação. no ou princípio de prazer-princípio da realidade
Ao observar a pirâmide do Gráfico, vemos que e, sim, a partir de um estado de indiferenciação
Galileu e Copérnico lidaram com símbolos que primordial. A Psicologia Simbólica busca ultra-
podemos situar predominantemente na vertente passar a dicotomia maniqueísta Psique, mundo
ou coluna da natureza, enquanto que a inveja e o interno e subjetivo versus matéria, mundo exter-
ciúme se situam predominantemente na vertente no, não psíquico e objetivo e, para isso, conside-
emocional ideativa. O símbolo estruturante tem, ra que a Psique se diferencia do Cosmos. Assim,
porém, sempre a mesma função coordenadora e para a Psique, como para o Cosmos, não existe
transformadora entre os processos inconscien- dentro e fora. Todas as polaridades inclusive in-
tes e conscientes e somente a maneira como ele terno-externo são polaridades com relação ao
desempenha esta função é diferente em função Ego e não com relação à Psique.
de seus componentes. As polaridades se relacionam com o Ego em
Todo símbolo estruturante, independente- função da polaridade básica do Eu e do Outro.
mente dos seus componentes, deve sempre con- Então, algo pode estar dentro do Eu ou fora do
tribuir para o crescimento da personalidade e da Eu e só nessa medida é que será subjetivo ou
consciência a partir dos processos inconscientes objetivo. Qualquer polo de qualquer polaridade,

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 95


Desenvolvimento simbólico da personalidade
Os quatro ciclos arquetípicos

“O 1 se transforma no 2, o 2 no 3, o 3 no 4 que é novamente o 1”

2a fase dos ciclos 1a fase dos ciclos


O Ego exerce o padrão arquetípico – O Ego apreende o padrão arquetípico

4
Ciclo cósmico
CONSCIENTE INCONSCIENTE
3
Ciclo de alteridade

SELF Adolescência SELF


Ciclo patriarcal

o)
l/

st
ta

ce
ren

ão
(in


a

rim i
sc ró
o
op

in
çã

Di e
icl Ciclo matriarcal

– oh
ra
ne
2C

ão d
ge

aç po
De
4

in ti
1

é
rim qu
sc Ar
Uroboros 3
Sociedade 2

di
In
1
Natureza

Morte Persona – Ego – Sombra


Corpo

Self
Vida Arquétipo Arquétipo Arquétipo Self
Ideação da grande do pai Anima
Emoções mãe Animus
Coniunctio
s
lo
bo


m

m

bo
lo
s

SELF SELF

Gráfico. A estruturação simbólica da personalidade e do ego se faz através do eixo ego-self por quatro
ciclos arquetípicos, cujos aparecimento e dominância são sucessivos, mas cuja função estruturante,
depois do seu aparecimento, age simultaneamente durante o processo.

porém, será sempre psíquico. De fato, para a re- a ser psíquica. Somos animais simbólicos e, por
alidade humana tudo é sempre psíquico. O todo isso, quando lidamos com o mundo objetivo a
universal é a nossa origem, é o meio no qual in- nossa volta, o fazemos por intermédio de sím-
teragimos e é o nosso fim, Ele e nós somos psi- bolos que discriminamos permanentemente em
quicamente um. Nosso Ego e nossa identidade componentes subjetivos e objetivos. Nós não te-
consciente se diferenciam do todo, mas, no fun- mos a capacidade de relacionar com um mundo
do, quer sejamos químicos, físicos ou místicos objetivo em si, dissociado do contexto simbó-
sabemos que o Cosmos e nós somos uma só en- lico. Nossa capacidade de objetividade advém
tidade. A diferenciação de nossa identidade do sempre e de novo da diferenciação da dimensão
todo não interrompe nem elimina a natureza de simbólica que é a fonte da objetividade e da sub-
nosso relacionamento com o todo que continua jetividade. A dificuldade de raciocinarmos den-

96 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


tro da dinâmica estruturante da Psicologia Sim- Sabemos que o Ego se desenvolve a partir de
bólica é que temos que raciocinar em dois níveis uma unidade primordial inconsciente. A relação
simultaneamente. Um é o nível egoico, parcial e primária criança-mãe que se passa praticamen-
aparente e o outro, o nível global profundo. No te dentro dessa unidade primordial, tem, por
nível aparente estamos raciocinando a partir isso, características simbióticas muito intensas
do Ego, e no profundo, a partir do Self, ou seja, que diminuem com a diferenciação da persona-
do todo. É claro que para raciocinarmos a partir lidade da criança e de seu Ego. A relação do ser
da função do Self, temos que fazer um esforço humano com a unidade primordial e o fenômeno
muito maior, pois este raciocínio é relativamen- da simbiose intensa, porém, não se restringe à
te mais difícil. Somente, a partir dele, porém, infância e normalmente não acabam com ela.
podemos ultrapassar a dicotomia maniqueísta A unidade primordial não é uma circunstância;
Psique-matéria, subjetivo-objetivo, que nos li- baseia-se numa estrutura psíquica, isto é, num
mita, sobretudo desde a crise do Renascimento, arquétipo. Ela é oriunda, em última instância,
quando ocorreu a imensa dissociação trazida da atividade globalizadora de, nada mais nada
pela Inquisição. menos, do que do próprio Arquétipo Central e,
O estudo do ciúme nos permite compreen- assim sendo, está sempre presente na matriz
der melhor a inveja. O ciúme é uma emoção que do desenvolvimento psicológico. Todo símbolo
estabelece uma relação estruturante entre três importante tem a capacidade de indiscriminar a
entidades. O Eu, um Outro e um Outro distante. Consciência e reuni-la com o Arquétipo Central e,
O Outro próximo tem uma relação afetiva com o por conseguinte, toda relação simbólica impor-
Eu e é considerado íntimo e conhecido enquanto tante passará por uma fase de simbiose intensa
que o Outro distante é considerado desconhe- durante sua diferenciação. O ciúme terá sempre
cido. O ciúme denuncia a entrada do Outro dis- um papel muito importante nesta diferenciação,
tante como símbolo no campo afetivo do Eu e do sempre que se tratar de um símbolo atuando in-
Outro íntimo e, com isso, ameaça o Eu de trans- tensamente na dimensão interpessoal. Compre-
formação da sua relação com o Outro íntimo, po- ende-se, assim, porque a criança sofre tanto de
dendo advir até mesmo sua perda. A função es- ciúmes quando nascem seus irmãos e, também,
truturante do ciúme é altamente diferenciadora porque a falta de irmãos e desta vivência de ci-
da relação simbiótica do Eu com o Outro íntimo, úmes dificulta o desenvolvimento da persona-
em função da interveniência do Outro distante e lidade do filho único. Compreende-se também
proporciona um crescimento por discriminação porque o ciúme terá um papel diferenciador da
íntima, do Eu e do Outro do campo da Consci- personalidade não só na infância, mas também
ência e da Personalidade. A medida que o Outro durante toda a vida.
distante é envolvido no processo, ele se simbo- Vê-se agora que aqueles dois posicionamen-
liza cada vez mais e, se houver abertura para a tos da Consciência, o superficial e o profundo,
vivência do ciúme, o Outro distante se tornará em função do Ego e do Self, respectivamente,
cada vez mais próximo, íntimo e conhecido, não que mencionados acima, não são algo importan-
só naquilo que ele é como Outro, mas naquilo te só teoricamente, mas também o são na práti-
que ele traz para a estruturação do próprio Eu, ca para compreendermos a realidade simbólica
bem como para a diferenciação e conhecimento e o desempenho estruturantes dos símbolos. É
do Outro íntimo. É importantíssimo nos darmos que, superficialmente, a nível do Ego, no início
conta de que o Outro distante, na medida em da relação triangular de ciúmes, o Outro distante
que se torna símbolo estruturante, contribuirá nada parece ter a ver com a realidade psíquica
para a transformação do Outro íntimo como tam- da personalidade do Eu, mas profundamente,
bém do próprio Eu. em nível do Self, vemos que tem e muito. Esta

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 97


percepção profunda, porém, só é possível quan- forma extraordinária e, com isso, acionou o Ou-
do nos abrimos para a realidade simbólica do tro íntimo de forma intensa. O recrudescimento
Outro distante. Ora, quem nos mobiliza para a das defesas em torno do Outro íntimo levou a um
importância do aparecimento do Outro distante, ataque maciço ao Outro distante na ânsia de re-
neste caso é o ciúme e só podemos perceber o primir seu poder transformador. A estrutura psí-
Outro próximo e o Outro distante como símbolos quica de Salieri não resistiu a este conflito e sua
estruturantes nesta situação, se aguentarmos o sanidade mental se desestruturou na psicose.
ciúme com toda tensão e sofrimento que ele nos A diferença entre o ciúme e a inveja reside na
traz. Normalmente, apesar de sofrer com o ciú- dimensão em que atuam, mas sua pujança es-
me e antagonizar o Outro distante, o ego sofre truturante e discriminadora é a mesma. O ciúme
a ação simbólica e transformadora da sua pre- atua fundamentalmente num triângulo interpes-
sença no campo existencial. Este sofrimento é soal, mas não exclusivamente, pois o Outro dis-
difícil de aguentar exatamente devido ao seu po- tante nem sempre é pessoa, podendo ser uma
der diferenciador, e o Self pode circunscrevê-lo atividade ou reação emocional ao Outro íntimo.
patologicamente, principalmente por intermédio Os grandes ciumentos podem sentir ciúmes de
de dois dinamismos defensivos, opostos na sua seus cônjuges no seu apego ao trabalho ou até
maneira de funcionar. O primeiro é a repressão mesmo da sua relação com animais ou objetos.
do Outro íntimo ou do Outro distante e as vezes O ciúme funciona como um termômetro da rela-
dos dois. Otelo reprime o Outro íntimo, ao matar ção simbiótica. Conheci um homem que sofria
Desdêmona. O segundo dinamismo é absorver o muito de ciúmes pelo amor que sua mulher sen-
Outro distante ao Outro íntimo e acabar com a tia por suas joias. Já a inveja, além de funcionar
tensão, como fizeram Jules e Jim com a amante de maneira direta e não triangular, atua sobre
no célebre filme de Truffaut, passando os três a símbolos estruturantes ligados a características
viver juntos. Estas são duas maneiras extremas de outras pessoas. Nesse sentido, os símbolos
de se evadir a função estruturante do ciúme. guiados pela inveja diferenciam o Ego do incons-
Otelo, por possessão pelo ciúme e repressão do ciente, atuando na cobiça de expansão da per-
Outro íntimo e Jules e Jim, por negação do ciúme sonalidade, enquanto que o ciúme age sobre o
e incorporação defensiva do Outro distante. que a personalidade já tem. A inveja é dolorosa
Já na inveja, a relação é direta do Eu com cer- porque funciona por intermédio da Consciência
tas características de um Outro. Na medida em da falta, isto é, do que não temos, ao passo que
que as características desse Outro se tornam o ciúme nos faz sofrer porque é exercido sobre
simbolizadas, pode surgir um Outro íntimo, até nossa ansiedade de perda, ou seja, de sermos
então menosprezado, que estava oculto na Som- privados daquilo que já temos. Estas peculia-
bra do próprio Eu. No caso de Salieri, o Símbolo ridades dão à inveja uma vivência de se tomar
Mozart funciona como um Outro distante que algo do Outro e ao ciúme, a de se ser ameaçado
submetido à ação estruturante da inveja vai aos de roubo pelo Outro. Nesse sentido, a inveja é
poucos se simbolizando intensamente e trazen- uma força que se caracteriza por ser ativa, revo-
do a Consciência um Outro íntimo que é a própria lucionária, corajosa e predadora enquanto que o
criatividade de Salieri. Todavia, como este Outro ciúme é uma força que se caracteriza por ser pas-
íntimo se achava ferido e envolvido em aconte- siva, reacionária, covarde e conservadora. A fun-
cimentos passados traumáticos, situava-se na ção no desenvolvimento simbólico da personali-
Sombra Patológica e encontrava-se cercado por dade da inveja e do ciúme, como disse acima, é
defesas complexas como vimos acima. A inten- muito grande e de igual importância e valor.
sidade da inveja estruturante carregou energi- Não creio que possamos concluir que a inveja
camente o Outro distante (o Símbolo Mozart) de seja uma função primária e o ciúme, secundária

98 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


devido ao fato de a inveja apresentar uma rela- Outro ameaçador opera psicodinamicamente
ção estrutural binaria (entre o Eu e um Outro) e o em nível binário.
ciúme, uma relação ternária (entre o Eu e um Ou- Por outro lado, a inveja, ainda que operando
tro íntimo e um Outro distante ameaçador). Este estruturalmente de forma binária, pode operar
fato levou Melanie Klein a considerar o ciúme psicodinamicamente em nível triangular. São
como um derivado da inveja (KLEIN, 1974). Esta casos em que o Eu inveja coisas do Outro pelo
mesma consideração levou José Bleger (1977) a poder que adquirirá frente a terceiros e não pe-
situar o ciúme como característica do dinamismo las coisas em si. Assim sendo, estes símbolos
neurótico e a inveja, do dinamismo psicótico da só são invejados pelo fato de se situarem numa
personalidade. A inveja, por ser basicamente bi- dinâmica triangular.
nária, seria mais arcaica, relacionada com a día- A Psicologia da polaridade extroversão-intro-
da primária pré-edipíca boca-seio, criança-mãe. versão de Jung (1960) pode nos esclarecer me-
O ciúme, por ser basicamente ternário, seria uma lhor as diferenças entre a inveja e o ciúme sem
função de aparecimento ulterior, relacionada que tenhamos que recorrer a uma hierarquiza-
com o triângulo edípico. ção. Jung mostra que, no extrovertido, a libido
Acho importante a consideração do compo- flui basicamente em direção ao objeto, enquanto
nente psicodinâmico do ciúme, que, a meu ver, que o introvertido, o inverso se dá. Com isso não
altera esta hierarquização entre a inveja e o ci- quero caracterizar a inveja como um fenômeno
úme e permite considerá-los como funções ar- extrovertido e o ciúme como introvertido, o que
quetípicas de importância equivalente e comple- não seria pertinente, por se tratar, num caso, de
mentar. Este argumento se baseia no fato de que atitudes da Consciência e, no outro, de emoções.
quando o Outro distante ameaça apossar-se do Quero com isso caracterizar que, analogamente
Outro íntimo, este se acha muitas vezes fusiona- à polaridade extroversão-introversão, também a
do com o Eu a tal ponto que a relação triangular polaridade inveja-ciúme se diferencia pela ênfa-
aparente é psicodinamicamente binária. se no objeto (inveja) ou no sujeito (ciúme). Este
Relato, para exemplificar, o caso de um ho- fato faz com que inveja e ciúme tenham igual
mem de 30 anos com componentes homosse- primazia de aparecimento e funcionamento no
xuais intensos e muito dependente de sua mãe. desenvolvimento da Consciência e até mesmo
Quando sua mulher o deixou por outro homem, impede que estabeleçamos entre estas funções
ele apresentou um quadro emocional de impo- qualquer hierarquização.
tência e desespero. Chorava praticamente o dia Da mesma forma que no ciúme, há formas
todo. Não conseguia mais trabalhar. Foi acome- clássicas polares do Self diminuir defensiva-
tido de intensa insônia e buscou a psicoterapia mente a função estruturante da inveja. Uma é
por julgar-se na eminência de autodestruição. a agressão, na tentativa de reprimir a simboli-
Ao descrever o ciúme que sentia, referia-se exu- zação e a função estruturante do Outro como
berantemente ao fato de que, com sua mulher, aconteceu com Salieri. Outra é a negação, co-
o amante arrancava-lhe junto as entranhas. locando-se por exemplo um defeito no Outro
“Não é ela que ele leva”, repetia-me ele com- distante para fingir que não o cobiçamos. “As
pulsivamente. “É meu fígado, meu coração, uvas estão verdes e, por isso, eu não as quero”,
meu pulmão e minha alma. Assim, fico vazio, afirmou a raposa.
sem nada, e não consigo viver”. Este caso é um, Como é o caso de qualquer símbolo ou fun-
dentre inúmeros outros que pude acompanhar, ção estruturante, a inveja e o ciúme são mais
que me demonstrou estar o Outro íntimo ainda ameaçadores que normalmente, quando ativam
de tal forma fusionado ao Eu, numa simbiose símbolos que já estão na Sombra e, sobretudo,
indiferenciada, que a relação triangular com o na Sombra Patológica. Tratam-se de Outros ínti-

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 99


mos pelos quais já passamos e deixamos para de Veneza expressa pela oposição do sogro ao
trás devido a fatores diversos. Quanto mais difí- casamento? Seu amor por Desdêmona não teria
ceis e dolorosas foram as vivências que com eles uma imensa Sombra de rejeitado social cerca-
tivemos, tanto mais serão ameaçadores e dolo- da por defesas de repressão, negação e idea-
rosos a inveja e o ciúme que com eles mexerem. lização? E não teria sido o ciúme ativando este
Sentir inveja de algo pelo qual já lutei e fracassei símbolo do rejeitado que descompensou ainda
é muito pior do que sentir inveja por algo pelo mais seu Eixo Ego-Símbolo estruturante-Arquéti-
que nunca tentei lutar. Da mesma forma, ter um po Central, obrigando-o a passar do dinamismo
vínculo ameaçado pelo ciúme com o qual sem- neurótico projetivo, mas ainda adequado do ma-
pre se teve segurança é mais tolerável do que rido ciumento, ao dinamismo psicótico delirante
quando se tem uma relação de insegurança e do marido homicida?
sofrimento. Faz toda diferença se as funções es- A presença da Sombra patológica nos casos
truturantes atuam em terreno livre de conflito ou de Salieri e Otelo evidencia a presença de com-
se reabrem feridas. ponentes do Self parcialmente discriminados
Caso Otelo aguentasse seu ciúme e o con- no passado e que foram remobilizados pela in-
frontasse como unção estruturante, ele desco- veja e pelo ciúme respectivamente. A Sombra
briria primeiro a falsidade e a inveja de Yago e, patológica é, no caso, um Outro muito íntimo
a seguir, sua insegurança e autorrejeição que o para o Ego, mas que se tornou distante devido
levaram a duvidar de Desdêmona e não de Yago. às defesas que o circunscreveram. Este Outro
Desdêmona, Cassio e Yago são símbolos estru- íntimo que se tornou distante pelas defesas é
turantes na vida psíquica de Otelo que, mobiliza- frequentemente muito mais ameaçador do que
do pelo ciúme, forçam o Ego a se diferenciar da qualquer Outro distante.
simbiose com Desdêmona e a se desenvolver. A Existem muitos casos em que o símbolo es-
diferenciação de Otelo traria a descoberta de um truturante mobilizado pela inveja e o ciúme é
novo Outro, ainda mais íntimo que Desdêmona algo inteiramente novo na personalidade. Nes-
e que se achava há muitos anos reprimido for- ses casos, o Outro distante mobilizado é re-
mando uma terrível Sombra Patológica. Quando almente distante e expressa um arquétipo se
encontramos defesas rígidas do Ego diante da apresentando como símbolo estruturante para
mobilização tanto do ciúme quanto da inveja é a continuação do desenvolvimento. É o caso da-
porque o símbolo estruturante mobilizado para o quele personagem nos contos de fadas e mitos
desenvolvimento foi alijado do processo no pas- que aparece sob forma banal, mas que, na rea-
sado e está naquele momento aprisionado pelas lidade, é um Deus disfarçado para desempenhar
defesas na Sombra Patológica. Foi o caso de Sa- uma tarefa da maior importância.
lieri e Otelo. O primeiro por abrigar em sua Som- É evidente que os casos mistos são os mais
bra Patológica sua traição à criatividade e, o se- frequentes. A inveja e o ciúme, como parte das
gundo, pelo fato de nela conter sua insegurança funções psíquicas, mobilizam os símbolos es-
que talvez envolvesse toda sua identidade num truturantes para a diferenciação progressiva da
complexo racial. Se aguentasse o ciúme, Otelo Consciência, e é raro encontrarmos símbolos
confrontaria sua Sombra e, com isso, muito en- estruturantes que não tenham pelo menos algu-
riqueceria seu Ego. Porque idealizou tanto Yago mas de duas facetas envolvidas seja com a Som-
a ponto de se deixar por ele enganar daquela bra normal (sem defesas à sua volta) seja com
forma? A idealização, empregada como defesa a Sombra patológica (com defesas a sua volta).
neurótica, não estaria a serviço de encobrir seu O importante é percebermos que a mobilização
complexo racial e a inveja da posição privilegia- dos símbolos estruturantes nunca é em si pró-
da e preconceituosa dos brancos na sociedade pria doentia e tem sempre o componente sadio

100 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


que busca propiciar o desenvolvimento da Cons- não se suspeitar da existência de características
ciência e da Personalidade. peculiares na personalidade de Mozart que ex-
Apesar de a peça “Amadeus” estar centrali- pliquem uma decadência socioeconômica tão
zada na inveja de Salieri e em sua patologização intensa. Diante destes fatos, não podemos dei-
progressiva, ela apresenta num segundo plano, xar de imaginar, que algum distúrbio psicológico
mais velado, mas, nem por isso, com intensi- grave deva ter comprometido a personalidade do
dade menor, as características psicológicas de compositor, além do alcoolismo.
Mozart que interagiram com Salieri num envol- Durante a peça, o autor tece as característi-
vimento de complementariedade. Dificilmente cas de um complexo paterno negativo na per-
se vivencia intimamente um estado psicológi- sonalidade de Mozart, com os ingredientes de
co intenso de alguém sem algum envolvimento rejeição, mimo, insensamento, fragilização e su-
emocional correspondente. Não é essa a preten- perexigências ligados a imagem do pai, comple-
são explícita de qualquer espetáculo dramático? xo este responsável pela preservação de traços
Seria praticamente impossível a vivência do sím- infantojuvenis atuados inadequadamente pelo
bolo estruturante da criatividade prostituída de grande músico. Salta aos olhos, no texto dra-
Salieri tão exuberantemente por intermédio de mático, que a irreverência de Mozart apresenta
Mozart, sem que existisse no próprio processo características compulsivas de uma Sombra pa-
de Mozart um símbolo estruturante que atuas- tológica que o Ego do compositor quer conter e
se complementarmente no relacionamento dos não sabe. O enfant térrible em Mozart revela-se
dois artistas. Este símbolo foi veiculado no dra- aos poucos muito mais do que uma gaiatice que
ma, sutilmente no início, para, aos poucos, cres- o gênio não controla, simplesmente porque não
cer e atingir uma força e uma função tão decisi- quer. As características do “menino endiabrado”
vas na peça quanto o que ocorreu com Salieri. vão aos poucos mostrando que, frequentemen-
Trata-se do símbolo estruturante do Arquétipo te, possuem e comandam a conduta do gênio,
do Pai constelado negativamente, ou seja, do obrigando-o a desempenhar diabruras que, ao
Pai Terrível que, na peça, levará Mozart à loucura se acumularem. Vão atuando cada vez mais des-
e à morte, da mesma forma que o símbolo estru- trutivamente com todas as amizades masculinas
turante Mozart enlouquece Salieri. do compositor, sobretudo naquelas que, por es-
A história da música parece coatuar nesta pu- tarem ocupando posição de poder e fama, mais
nição a Mozart, ao desconsiderar praticamente o poderiam lhe proteger e paternalizar.
drama psicológico que o autor deve ter sofrido Uma das críticas feitas à peça, como mencio-
durante toda sua vida. As biografias do musicis- nei, foi o exagero que teria sido dado pelo autor
ta citam sua morte aos 35 anos, provavelmente às características infantis e rebeldes de Mozart.
por cólera, e atribuem a uma tempestade o fato Ainda que não tenhamos dados históricos para
de seus amigos terem se afastado de seu caixão confirmar factualmente estas características, po-
no dia do enterro. Por este fato, explica-se, não demos admitir que a biografia conhecida de Mo-
se sabe até hoje onde está o túmulo de Mozart zart nos mostra condições ideais para a formação
no cemitério de Viena em que foi enterrado. É de uma fixação patriarcal em torno da imagem
evidente, porém, que nem a cólera, nem a tem- do pai, pois como quase toda criança prodígio,
pestade explicam a decadência e a miséria so- Mozart desde cedo chamou para si como músico
cioeconômica que dominou a vida de Mozart nos mais atenção que seu pai. Isto geralmente impe-
seus últimos anos, a ponto de ter passado fome de ao menino crescer protegido pela personali-
e, finalmente, ter sido enterrado numa vala co- dade do pai que idealiza e com a qual competirá
mum, incógnito. Empregado na corte de Viena e muito mais tarde. Ao ser dos 8 anos em diante
no auge de sua esplêndida criatividade, é difícil apresentado em turnês por seu pai e aclamado

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 101


pelas cortes da Europa como prodígio, por si só esposa inconscientemente por ele acumpliciada
já equivaleria para Mozart a um distúrbio da fun- e incitada, ataca o sogro sem mesuras e termi-
ção estruturante da sua função paterna. Alie-se a na por queimar-lhe as cartas. Podemos mesmo
isto o fato de seu pai ter sido, ao menos na peça, aventar a hipótese de que as dificuldades cres-
superexigente e pouco afetivo para termos uma centes do casamento, que culminam com a sepa-
intensa fixação em torno do símbolo estruturan- ração, tenham sua fonte principal nesta atuação
te do Pai. A culpa de Mozart com relação ao pai da Sombra patológica de Mozart, depositada em
associada na peça ao parricídio e à condenação Constance por intermédio da simbiose conjugal.
ao inferno de D. Giovani podem tornar-se menos Nesse caso, a produtividade do seu amor teria
fantasiosas psicologicamente, quando intuímos sido consumida pela destrutividade do comple-
que Mozart, ao sustentar sua família junto com xo paterno negativo que, atuando em conjunto,
sua pequena irmã, desde cedo em concertos inconsciente e defensivamente pelo casal, impe-
pela Europa, deve ter desenvolvido em comple- diu-lhe desempenhar a função provedora para si
xo paterno fixado tanto no dinamismo matriarcal e para seus filhos.
quanto no patriarcal. Ora, talvez o personagem que mais pudesse
Basta aparecer uma possibilidade de ajuda ajudar o jovem músico recém-chegado a Viena
e dependência paternal, para aquele jovem, re- fosse seu colega Salieri, que até mesmo por ser
cém-chegado à corte e tão necessitado de apoio, estrangeiro e de família humilde, havia tido que
que suas defesas e a própria Sombra patológi- aprender todos os meandros do poder da cor-
ca cheia de desamparo e ódio entram em cena te austríaca para galgar os degraus da sua tão
para atacar. Esta tendência é expressa na peça almejada fama e, por isso, se achava em posi-
por uma risadinha compulsiva e demoníaca que ção singular para auxiliá-lo. Podemos dizer, que
Mozart parece não conseguir controlar. A intensi- Mozart ataca Salieri, de saída, porque a estru-
dade desta Sombra e sua defesa é tal, que elas turação de sua identidade mal-resolvida a nível
dominam a vida social do autor, prejudicando a paterno não lhe permite compulsivamente, isto
manutenção de sua família e de sua própria so- é, neuroticamente, dividir qualquer posição de
brevivência. Sabemos que, quando numa neuro- poder com outro homem. Podemos, porém, já
se a Sombra patológica atua de forma coniven- perceber neste ataque, a inveja neuroticamente
te e sincronizada com o Arquétipo da Anima, a exercida, pois Mozart não ataca simplesmente
possibilidade do dinamismo neurótico se trans- qualquer um, e sim, especificamente, aquela
formar em psicótico se torna bem maior que o posição de poder na corte que ele necessita ter,
habitual. De fato, desde o início da peça, Mozart até mesmo, como o drama mostrará, por uma
usa as personalidades de Constance, sua namo- questão de sobrevivência, literalmente, para
rada e mais tarde esposa, como aliada e coni- não morrer de fome na miséria e ser enterrado
vente para debochar, ridicularizar, desrespeitar numa vala comum, como aconteceu. E, apesar
e agredir todos os que dele se aproximam com disso, ou talvez devemos dizer, exatamente por
quaisquer características paternais possíveis. não poder vivenciar esta inveja normalmente,
Até mesmo o próprio relacionamento amoroso Mozart a reprime e ataca Salieri. Ao invés de
se torna depositário das irreverências infantis cultivar sua amizade e lhe pedir ajuda, Mozart
intempestivas reprimidas por uma educação pu- o ataca e, até nisso, demonstra grande sensi-
ritana. Contudo, pelo fato de toda esta sua atua- bilidade, pois ataca Salieri no seu ponto mais
ção ser sombria, Mozart não assume um ataque vulnerável, neuroticamente defendido e extre-
frontal ao pai e, pelo contrário, ajuda a esconder mamente doloroso.
ainda melhor sua Sombra com uma Persona de- Para receber Mozart na Corte, Salieri compõe
fensiva de bom filho, e o defende, quando sua uma pequena marcha, transformada mais tarde

102 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


na marcha do casamento de Fígaro. Ao acabar da maior gravidade. Mozart tinha sua criativida-
de ouvi-la, Mozart senta-se ao piano e a repro- de livre e assumida e, aí, era normal, onde Salieri
duz para Salieri, tão engrandecida e de forma era defendido e neurótico. Contudo, na parte de
tão ostensiva que o humilha irreparavelmente. sua personalidade que necessitava se compor-
Naquela região da alma de Salieri na qual há tar como adulto, como marido e pai, não só de
muitos anos nenhum raio de luz da sua própria seus filhos mas, até mesmo, de sua própria per-
consciência penetrava, naquela fortaleza, onde sonalidade, de sua profissão e criatividade, ou
estava protegida sua sombra patológica com sua seja, de sua própria Anima, Mozart estava fixado
criatividade profunda abandonada e prostituída, na infância e era ainda mais gravemente doente
é ali que Mozart, aperfeiçoando sua marchinha, que Salieri.
ou seja, recriando a criatividade prostituída do Salieri, ao menos, ainda que sem saber re-
amigo e protetor em potencial, despeja, como almente porque, percebeu o quanto odiava
ácido numa ferida aberta, uma avalanche de Mozart e muito fez para destruí-lo consciente-
humilhação. As defesas de Salieri exacerbam-se mente. Devido a isso, ao menos parte de sua
abruptamente e, do potencial competitivo, mas agressividade foi atuada conscientemente.
cordial, em meio ao qual as invejas recíprocas Quanto a Mozart, não conscientizou, de forma
poderiam ter se exercido produtivamente, incen- alguma sua agressividade à autoridade, basica-
deiam-se a mágoa e a rejeição de Salieri, para mente formada por sua carência e ambiguidade
criar dois inimigos mortais, cujas invejas pas- com relação a imagem paterna, que lhe fazia
sariam do dinamismo neurótico ao psicótico, ridicularizar Salieri compulsivamente. A disso-
levando as duas personalidades à desestrutura- ciação de Mozart era então muito mais grave
ção e à destruição. que a de Salieri, a quem Mozart conscientemen-
Nesta linha de raciocínio, podemos dizer que te chamava seu único amigo e sinceramente
o personagem de Mozart, no plano emocional é buscava proteção, enquanto sobre ele atuava
ainda mais dissociado e neurótico que Salieri, sua Sombra, humilhando e ridicularizando sua
pois era muito mais inconsciente de sua Sombra criatividade sempre que podia. Por isso, quan-
patológica. Mozart atuava sua Sombra patoló- do, devido a sua carência cada vez maior, a in-
gica mas em sua Consciência apresentava so- veja de Mozart mobilizou progressivamente sua
mente motivações opostas a ela, evidenciando necessidade de um símbolo estruturante pater-
um grau de dissociação muito maior. Quando é nal, os mecanismos de defesa de sua Sombra
este o caso e a Sombra, finalmente, por qualquer de exacerbam num dinamismo psicótico franca-
eventualidade, que no caso de Mozart foi à ex- mente paranoide e delirante.
trema miséria e abandono ao qual sua neurose O caso de o Conde Walsegg ter encomenda-
aos poucos o conduzia, invade a Consciência, a do um réquiem a Mozart e mandar buscá-lo por
desestruturação da personalidade geralmente é Leutgeb, que Mozart confunde com a morte e
gravíssima. Mozart não percebia o quanto agre- passa a compor seu próprio réquiem, é um acon-
dia seus protetores de um modo geral, como, por tecimento de sincronicidade. Dentro do campo
exemplo, quando propiciou na Flauta Mágica, a psicológico do símbolo estruturante do pai ter-
abertura pública dos rituais secretos da maçona- rível, operando em dinamismo psicótico, Mozart
ria e, com isso, perdeu o importante apoio dos percebe no emissário do Conde, por intermédio
seus patrocinadores maçons. Sua morte preco- de uma defesa projetiva e delirante, a figura da
ce, pode ter sido factualmente desencadeada própria Morte. Não podemos deixar de associar
pela cólera, como nos refere a História, mas a este episódio, como o faz tão criativamente o
ocorreu em meio a uma crise psicológica de ca- autor na peça, a figura do Comendador assassi-
racterísticas psicóticas, paranoide e delirante, nado por D. Giovani na famosa peça musicada

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 103


por Mozart anos antes. Ao desafiar a estátua da predispõe catastroficamente para o fim. Como
figura paterna justiceira e vingativa no cemitério, relatei acima, os poucos amigos que acompa-
esta adquire vida e lança D. Giovani para a morte nhavam o enterro de Mozart não puderam che-
nas chamas do inferno. A mensagem é freudia- gar ao cemitério, devido a uma tempestade com
namente cristalina, demonstrando a existência relâmpagos. Mozart foi enterrado numa vala de
de um Complexo de Édipo não resolvido que leva indigente que, posteriormente, seus amigos não
a desestruturação psicótica pela culpa do parri- puderam mais localizar (HUGHES, 1950). A cena
cídio. Contudo, a receita para Mozart bem como parece fazer parte da condenação de D. Giovani
para Édipo não seria a repressão do antagonis- pela estátua do Comendador no cemitério, quan-
mo ao pai e a formação de uma personalidade do em meio a relâmpagos, as portas do inferno
bem-comportada e reprimida como concebeu se abrem para tragá-lo.
Freud, e sim confrontar e vivenciar a agressão O relacionamento de Salieri e Mozart, visto
de forma a poder descobrir e se deixar guiar pelo do ponto de vista da Psicologia Simbólica, nos
símbolo estruturante presente no seu conteúdo. oferece, além do que já vimos, a oportunidade
Assim fazendo, Édipo e Mozart descobririam que de analisarmos, a partir de ângulos diferen-
sofriam a rejeição e odiavam seu pai na mesma tes e complementares, o Self Individual e o
medida em que haviam vivenciado a repressão e Self Grupal no seu desempenho tanto normal
a rejeição com sua imagem. Essa descoberta os quanto patológico.
levaria a elaborar essas vivências para resgatar Jung (1960) conceituou o Self como a totali-
a função estruturante do seu complexo paterno. dade dos processos conscientes e inconscientes
A culpa oriunda do complexo paterno não resol- no processo de individuação. Podemos, tam-
vido persegue D. Giovani e só se aplaca com a bém, conceber o Self a nível grupal (BYINGOTN,
morte em meio a torturas terríveis, exatamente 1983a). Isto quer dizer que o Arquétipo Central
como acaba morrendo Mozart, ao se deparar que coordena todos os demais arquétipos do
com a morte, em meio a delírios persecutórios Self tem a propriedade de funcionar engloban-
hediondos, já agora, na peça, conscientemente do e coordenando os símbolos estruturantes do
incarnada por Salieri na figura do homem alto processo de individuação numa só pessoa, como
cobrador-persecutor. também englobar e coordenar os símbolos es-
Esta figura ameaçadora em pé, em frente a truturantes comuns às pessoas que se associam
casa de Mozart, corresponde no seu delírio a fi- em função do processo vital. O mínimo para a
gura do pai vingador que, ataca durante toda sua formação desta associação são duas pessoas e,
vida, vem finalmente cobrar sua dívida e exercer daí, podemos estudar o Self Grupal funcionando
sua vingança. Devido ao agravamento da carên- em relacionamentos íntimos como, por exemplo,
cia do pai e, por conseguinte, a exacerbação da na clássica complementariedade de D. Quixo-
função estruturante criativa do símbolo do pai, te e Sancho Pança, ou num casamento no qual
rompe-se o dique defensivo neurótico formado percebemos o dinamismo do Self Conjugal, ou
pelos dinamismos de repressão, projeção, nega- numa relação transferencial terapeuta-analisan-
ção, formação reativa e deslocamento e instala- do onde identificaremos os símbolos do Self Te-
-se o dinamismo defensivo psicótico visionário, rapêutico e assim por diante. A concepção mais
paranoide e delirante. Dentro deste delírio, so- abrangente deste fenômeno é o do Self Cósmi-
mente sua própria morte seria um castigo a altu- co que os místicos e físicos modernos buscam
ra para tanta vivência de perseguição. Por isso, aprender e a do Self da Humanidade, que é da
a vivência defensiva da morte passa a consolar maior utilidade para mantermos a noção do de-
delirantemente a culpa de forma tão psicótica e senvolvimento global do ser humano no planeta.
suicida que desestrutura a razão do gênio e lhe Antropologicamente, porém, talvez a concepção

104 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


mais frutífera da aplicação desta característica que passaram a fazer parte da Sombra Normal e
de omnipresença e omnisciência do Arquétipo Patológica. Da mesma forma que uma pequena
Central seja a do Self Cultural que nos permite planta encoberta pela sombra de um galho caído
perceber e acompanhar os símbolos estruturan- de uma árvore curva o seu crescimento para bus-
tes de uma cultura na sua interpelação como um car a luz do Sol, assim também ocorre com o Self
todo único significativo (BYINGTON, 1983c). Individual. Só que, o nosso Self cria e coordena
Vista do ponto de vista do Self Grupal, a re- o desenvolvimento psicológico usando os acon-
lação de Mozart e Salieri nos apresenta uma di- tecimentos da vida como símbolos estruturantes
nâmica importante entre o símbolo estruturante do processo de desenvolvimento. É, por isso,
da criatividade musical e a Persona e a Sombra que a Psicologia Simbólica considera o símbolo
tanto normal quanto patológicas. A Persona, estruturante seu conceito central e a função sim-
como sabemos, é o conjunto de máscaras sim- bolizadora como a principal função da Psique.
bólicas ou papéis que uma cultura tem à dispo- Quando qualquer acontecimento advém à Psi-
sição para o desenvolvimento dos seus mem- que individual, o Self Individual usa esse acon-
bros. Já vimos como a criatividade de Salieri tecimento como símbolo estruturante. Qualquer
havia sido prostituída e passara a fazer parte coisa que ocorra, seja o aparecimento de uma
da sua Sombra Patológica. Vimos como Mo- pessoa, um lugar, uma modificação no corpo,
zart também tinha dificuldade em adaptar sua na sociedade ou na natureza a nossa volta, ou
criatividade à sua Persona devido a um intenso mesmo, o aparecimento de uma ideia ou emo-
complexo paterno negativo que fazia parte de ção, o Eu se sente diante de um Outro e o Self
Sombra Patológica e que, invadindo sua per- transforma esse Outro em símbolo estruturante.
sonalidade, dominava compulsivamente sua Caso esse Outro também possua um Self em pro-
conduta e impedia o exercício de sua Persona cesso de desenvolvimento que se imiscua com o
a serviço de sua criatividade. O complexo pater- Self do Eu, passa a se formar o Self Grupal que
no negativo de Mozart impedia-lhe compulsiva- associa simbioticamente o Self do Eu e o Self do
mente de desempenhar o papel social de filho Outro no processo de desenvolvimento.
que usufrui produtivamente de relacionamentos Foi assim que a aproximação de Mozart e Sa-
sociais com pessoas influentes para desenvol- lieri criou um Self Grupal tendo o símbolo estru-
ver partes necessitadas de sua personalidade. turante da criatividade como o símbolo central
No momento em que o símbolo estruturante do do seu desenvolvimento. A inveja mobilizou ime-
Pai bom se constelava socialmente, as defesas diatamente a supercriativa Persona de Salieri e
de sua Sombra patológica, que controlavam o o desembaraço criativo de Mozart a serviço de
símbolo do Pai, sob seu aspecto terrível, entra- desenvolvimento. Em condições normais, teria
vam em cena e impediam o desempenho desse sido um encontro de uma produtividade fabulo-
papel. É que, como os aspectos do Pai bom e sa acrescendo muitas páginas à história da mú-
do Pai terrível fazem parte do mesmo símbolo sica. Mozart, tendo morrido isolado e na miséria
estruturante Pai, a constelação ou ativação do aos 35 anos de idade, teve ao lado de Bach uma
Pai bom forçosamente ativa as defesas que pro- das produtividades mais fecundas de que se
tegem o símbolo do Pai terrível. tem conhecimento. Imaginemos que ele tivesse
O Arquétipo Central, na sua atividade criativa como Bach desenvolvido sua obra musical soli-
e coordenadora do desenvolvimento da Persona- damente apoiado numa corte e assim vivido até
lidade, busca permanentemente criar soluções os 65 anos! Se bem que podemos sempre argu-
para melhor propiciar o desenvolvimento da mentar que se Mozart fosse mais bem-comporta-
personalidade inclusive daquelas regiões preju- do e adaptado, talvez sua criatividade não tives-
dicadas durante o desenvolvimento passado e se nunca atingido tanta exuberância.

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 105


Todavia, a busca de integração da magní- uma personalidade, menos o seu Self se con-
fica Persona de Salieri e da entrega criativa de formará com uma performance truncada por de-
Mozart, unindo produtivamente suas invejas fesas. Por intermédio de novos símbolos estru-
respectivas, esbarrou num sistema defensivo turantes, o Self buscará, dia (fantasias) e noite
arquitetado dento deste Self Grupal. O Self In- (sonhos) ultrapassar as defesas que ele próprio
dividual de cada um deles já possuía defesas um dia criou. Esta criatividade, será sempre
funcionando dentro de suas características pes- uma nova experiência do Self e, ao ativar con-
soais. A simbiose das duas personalidades criou teúdos da Sombra Patológica, poderá desenca-
um Self Grupal com características próprias que dear ameaças de sofrimento e ansiedade que
não só impediram a integração produtiva da sim- farão com que estas defesas recrudesçam e se
biose dos dois processos de desenvolvimento, aprimorem, usando para isso, também, a cria-
como acirraram a luta entre criatividade e defesa tividade do próprio Self. Este é um fato psíqui-
levando a formação de uma simbiose patológi- co paradoxal apenas aparentemente, pois, na
ca que culminou na desestruturação das duas prática, ele é inteiramente compreensível. É
personalidades. A simbiose das duas personali- que o Self, apesar de intuir o futuro, não tem
dades criativas para formar um Self Grupal, que certeza deste e, por isso, ora favorece o advo-
prometia ser das mais fecundas, se transformou, gado de defesa da liberação do conteúdo da
desta maneira, num verdadeiro desastre psicoló- Sombra Patológica, ora o promotor que deseja
gico e existencial. prorrogar a sentença, dependendo da conjun-
Ao lançar mão do Outro como símbolo estru- tura social e da operosidade da função de cada
turante para continuar sua obra psicológica, o um, exatamente como num processo jurídico de
Self tenta sempre, também, resgatar os conteú- longa duração.
dos simbólicos cercados na Sombra Patológica Esta verdadeira guerra que se trava, então,
para reciclar os conteúdos sombrios e fazê-los dentro do Self, entre a criatividade e as defesas,
atuar dentro da criatividade normal do Eixo pode levar ao crescimento da personalidade e,
Ego-símbolo estruturante-Arquétipo Central. As até mesmo, à cura da neurose ou ao desgaste e
defesas, porém, se opõem a essa reintegração, à improdutividade tão comuns na personalidade
posto que a Sombra Patológica se formou, ou neurótica que, apesar de, às vezes, muito ativa
em meio a muito sofrimento, ou devido a algu- psicologicamente, na prática tão pouco produz,
ma disfunção psíquica, que tornou proibitiva ou pode levar a um agravamento tal do sistema
sua atuação normal daí por diante. Todavia, sa- defensivo que de neurótico passa a psicótico ou,
bemos que os conteúdos mentais são funções ainda, pode conduzir a desestruturação total da
psíquicas necessárias à vida e que, por isso, personalidade e à própria morte.
sombrias ou não, são frequentemente desem- É importante dos darmos conta eu o sistema
penhadas. Um neurótico obsessivo, por exem- defensivo também foi criado pelo Eixo Ego-Sím-
plo, que prega compulsivamente o bem para bolo estruturante-Arquétipo Central, fato que nos
esconder (defesa de repressão e negação) sua levou a falar em mecanismos de defesa deste
agressividade está na realidade exercendo uma eixo ou do Self e não de mecanismos de defesa
estratégia para poder atuar sua agressividade, do Ego, como habitualmente o fazíamos. O sis-
ainda que de forma camuflada e distorcida por tema defensivo é geralmente formado num pas-
suas defesas. No caso de o símbolo estruturan- sado infantil, como descreveu Freud (1969), e o
te fazer parte da Sombra Patológica, forma-se Self Individual posteriormente atinge outro nível
uma estratégia no Self para desempenhar o de criatividade, mas preservando o dinamismo
símbolo, mesmo que defensivamente. Quanto estratégico defensivo para atuar junto aos sím-
maior for, porém, a pujança e a criatividade de bolos estruturantes contidos na Sombra Patoló-

106 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


gica. Todavia, quando algum Outro é simboliza- dade, contaminada, porém, por uma tonelada de
do e ativa intensamente conteúdos da Sombra lixo de concessões, bajulações, covardias e um
Patológica, as defesas se exacerbam. O Self monte de rejeição, em suma, uma criatividade
mobiliza o símbolo estruturante em função das denegrida e ferida. Da parte de Mozart, surgiu a
necessidades do desenvolvimento, mas quando necessidade de um pai protetor e provedor, mas
este símbolo ativa outros símbolos contidos na num símbolo estruturante carregado de desam-
Sombra Patológica, a exacerbação dos sinto- paro, rejeição, vivência de exploração, superexi-
mas, frequentemente, é inevitável. Neste caso, gência e um grande número de vivências muito
é o próprio crescimento saudável que exacerba dolorosas. Diante da disfunção angustiante tra-
a doença. As coisas então se passam como se zidas por estes símbolos necessitados, mas con-
o Self intencionasse mobilizar o símbolo estru- taminados e, por isso, malditos, reexacerberam-
turante, mas não o seu distúrbio. No entanto, o -se as defesas. Contudo, da mesma forma que
símbolo, ao ser mobilizado, apresenta-se com o a ativação dos símbolos estruturantes criativos
referido distúrbio, o que tumultua o desenvolvi- no Self Grupal tem um potencial diferente e, às
mento e faz com que o Self não só reintensifique vezes, até mesmo maior que no Self Individual,
as defesas, como, até mesmo, as aperfeiçoe ou assim também, ocorre com a reintensificação
crie outras novas. É como se o Self ao mobilizar o das defesas.
símbolo estruturante necessário ao processo de A humilhação de Mozart e Salieri, vista sim-
desenvolvimento naquela etapa, o fizesse, cada bolicamente dentro do vínculo simbiótico do Self
vez com a esperança que, desta feita, ele possa Grupal, tem assim um significado mais amplo do
ser reintegrado na dinâmica do Eixo Ego-Símbolo que visto exclusivamente no dinamismo do Self
estruturante-Arquétipo Central. Se, porém, isso Individual. A humilhação vista operando na Per-
não acontece, e a disfunção estruturante contur- sonalidade de Mozart foi acima compreendida
ba por demais o processo, o próprio Self propicia como uma defesa de sua inveja diante da mag-
a reintensificação das defesas ou o seu aperfei- nífica Persona de Salieri que, apesar de apenas
çoamento. Há casos, porém, em que o gênio sai seis anos mais velho, já se encontrava tão bem
da garrafa e não só se recusa a voltar como, ao situado na corte. Do ponto de vista de Salieri, a
ser obrigado a voltar, ameaça destruir o mundo humilhação, como vimos anteriormente, atingiu
a sua volta. Nesse caso, o Self lança mãos de re- em cheio seu orgulho e sua autoestima, já tão
cursos radicais que mantêm o gênio cercado por inseguras, devido à sua Sombra patológica da
esforço exaustivo. É o caso do dinamismo defen- criatividade prostituída. Do ponto de vista do
sivo neurótico que se transforma em psicótico Self Grupal, porém, a humilhação de Mozart a
no Self Grupal de Mozart e Salieri. Nesses casos, Salieri atuou como um exocet no meio da ponte
porém, o Self obtém uma vitória de Pirro pois que poderia unir produtivamente suas persona-
mantém a integridade com um terrível desgaste lidades. Vista dentro da psicodinâmica do Self
das funções vitais. É um caso análogo aos do- Grupal, a humilhação, usada defensivamente
entes de câncer que tomam remédios que lhes por Mozart, foi a defesa de maior poder patolo-
prolongam a vida, mas com enormes prejuízos gizador de todo seu longo relacionamento com
de muitas funções vitais. Salieri, pois transformou de forma abrupta, ra-
O Self Grupal de Mozart e Salieri ativou pela dical e irreversível o vínculo simbiótico, que se
inveja de tal forma símbolos estruturantes vitais iniciava com um imenso potencial criativo, num
para as duas personalidades que junto com a vínculo simbiótico defensivo e dissociativo. Por
inveja foi acionada, também, sua respectiva dis- isso, apesar da peça centralizar-se explicitamen-
função de estruturação obrigada na sombra pa- te na psicopatologia de Salieri, do ponto de vista
tológica. Da parte de Salieri, emergiu a criativi- da operatividade do Self Grupal, residiu na pato-

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 107


logia da personalidade de Mozart a característi- velmente, favoreceu sua passagem parcial do di-
ca defensiva decisiva para a desestruturação do namismo neurótico projetivo para o dinamismo
Self Grupal e das duas personalidades. psicopático homicida, evitando assim a entrada
A defesa de Mozart foi tão destrutiva para a franca no dinamismo psicótico, que, tão aguda
união extremamente fecunda que despontava e drasticamente, desestruturou a personalidade
porque invalidou simultaneamente o símbolo de Mozart.
estruturante Salieri, como Pai bom, para Mozart, Não poderia encerrar este estudo, ainda que
e o símbolo estruturante Mozart, como criativi- sumário, da inveja na Psicologia Simbólica, sem
dade assumida, para Salieri. Vemos, aqui, um relacionar sua função estruturante com os dife-
grande exemplo de resistência à criatividade do rentes estágios estruturais-evolutivos da Consci-
Self Grupal, que atua anulando a produtividade ência (BYINGTON, 1983b), ou seja, com os qua-
dos vínculos entre os processos individuais. Ao tro ciclos arquetípicos (Gráfico). Se não fizermos
perceber a produtividade do Self Grupal, que se isso, muitos aspectos normais da inveja poderão
esboçava pela associação das necessidades e ser confundidos com a sua patologia aqui apre-
virtudes da interação dos processos de individu- sentada e isso indiscriminaria muito o nosso es-
ação Salieri-Mozart, o dinamismo defensivo des- tudo. Abordarei a inveja e o ciúme, lado a lado,
te mesmo Self Grupal aplicou uma defesa com porque a compreensão de um facilita, pela com-
um timing, tão perfeito, que contaminou para paração, a compreensão do outro.
sempre todo o potencial criativo nele contido. O A inveja e o ciúme no dinamismo matriarcal
relacionamento produtivo, ferido de morte, deu são, como todas as demais funções estruturan-
lugar ao relacionamento defensivo neurótico, tes, subordinadas ao desejo e ao princípio da
mas, mesmo assim, como já vimos, não conte- fertilidade. Adquirem aqui conotações exube-
ve a luta do Self Grupal para associá-los produ- rantes, fortemente impregnadas de sensualida-
tivamente. Salieri e Mozart, já agora afastados de. (As expressões “babar de inveja” e “morrer
por um abismo de mágoa e ódio, abismo este de ciúme” são muito pertinentes neste dina-
muito mais consciente para Salieri do que para mismo). Esta carga sensual-instintiva é posta,
Mozart, continuaram fascinados um pelo outro e desde o início da vida, a serviço da estruturação
indissoluvelmente ligados até o fim. É que, seus da Consciência, e os símbolos que expressam a
símbolos estruturantes, que se interbuscavam, inveja e o ciúme tem um papel muito importante
estavam carregados com o potencial criativo da na formação da identidade do Eu e do Outro ou
genialidade, da sanidade mental e até mesmo Não Eu. O grande papel da imitação no dinamis-
da sobrevivência. A reintensificação permanente mo matriarcal faz com que a maneira de ser do
desta busca de associação produtiva incremen- Outro invada exuberantemente o Eu. Daí o fato
tou o dinamismo defensivo, de tal forma, que da imitação e da frustração estarem aqui sempre
lançou o Self Grupal no dinamismo psicótico, entremeadas com o desejo, em meio a ação es-
no qual, as defesas passaram da estratégia neu- truturante da inveja e do ciúme.
rótica projetiva ao delírio megalomaníaco per- A importância da coluna social no dinamis-
secutório paranoide bilateral, que terminou por mo matriarcal faz com que o ciúme, por ser uma
desestruturar as duas personalidades. Podemos função estruturante. Essencialmente pertinente
imaginar, para finalizar, que Salieri resistiu mui- ao relacionamento interpessoal, tenha aqui um
to mais do que Mozart, possivelmente, porque, papel muito importante. O ciúme fustiga perma-
estando consciente do seu ódio a Mozart, foi nentemente a relação de possessividade do Eu
mais saudável, menos dissociado e se manteve com o Outro, clivando, como um pedreiro que
muito mais longamente no dinamismo neuróti- trabalha na rocha, a natureza fortemente simbió-
co. Sua Personalidade tão desenvolvida, possi- tica e semiconsciente do dinamismo matriarcal.

108 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


A inveja opera também basicamente dimensão ao seu poder mobilizador. Sua função estrutu-
interpessoal. Isto faz com que pessoas com di- rante é encaminhada para o desempenho de
namismo matriarcal dominante ou exuberante tarefas e, por isso, ciúme e inveja são canali-
com suas personalidades sejam geralmente zados juntos e subordinados à competição. O
muito invejosas e ciumentas. A inveja investe, Eu tem ciúme de um Outro que funciona como
sobretudo sobre a indiscriminação da relação arbitro da sua importância. A própria autoesti-
Eu-Outro, não tanto no que se refere à posses- ma se torna inseparável do cargo, da tarefa e
sividade afetiva como é o caso do ciúme, mas, do que “os outros vão dizer”. O ciúme de quem
muito mais, no que diz respeito ao poder em si. está perto do chefe subordina o amor à efici-
O ciúme é uma função mais ligada ao amor e a ência, pois aqueles que estão mais próximos à
inveja, ao poder. liderança têm aqui mais direitos e responsabi-
Devido à relação Eu-Outro ser muito simbió- lidades no exercício do poder. A inveja é aqui
tica no dinamismo matriarcal, a inveja age aqui, tão canalizada em função do desempenho da
de forma importante como função estruturante, tarefa, que suas manifestações genéricas ou
por sua capacidade de humilhar o Eu e clivar sensuais são delimitadas frequentemente por
sua relação indiscriminada e onipotente com o proibições. “Não cobiçarás a mulher do próxi-
Outro. “Eu tenho poder sobre as pessoas e as mo”. Nesse sentido, ao excluir a inveja da es-
coisas”, fantasia, magicamente, com frequên- posa do próximo, e, por conseguinte, da dimen-
cia, o Eu no dinamismo matriarcal. Surge então são da sensualidade, intensifica-se a ação da
a inveja e contra argumenta humilhando: “Você inveja sobre as tarefas desempenhadas pelo
não tem isto, aquilo, e aquilo outro e, por isso, próximo. Isto faz com que o ciúme e a inveja se-
você é fraco e pobre. Você é muito pior do que fu- jam canalizados para missões no desempenho
lano e beltrano que têm muito mais que você”. A de tarefas que irão paulatinamente aumentan-
indiscriminação da relação Eu-Outro é elaborada do o poder do Eu e o diferenciando do Outro.
pelo ciúme mais na dimensão afetiva. “O Outro Devido a esta intensa delimitação, porém, res-
é meu e ama só a mim”, fantasia o Eu. O ciúme tringe-se muito a atuação da inveja e do ciúme
entra atuando basicamente não por intermédio no campo psíquico. Como as demais funções
da humilhação, e sim da rejeição: “Esse Outro estruturantes no dinamismo patriarcal, a inveja
não é seu e não te ama nada. Você não viu como e o ciúme atuam dentro de uma malha de codi-
ele olhou e falou com sicrano ou deu tanta aten- ficações regidas pelas polaridades certo-erra-
ção para beltrano? Esse Outro ama a eles e não do, bonito-feio, deve-não deve, bom gosto-mal
a você. Em vez de possuir o amor do Outro e ser gosto etc. que limitam muito sua exuberância
um bem-amado sempre acompanhado, você é operacional. É comum, pois, neste dinamismo
um rejeitado, desamparado e sozinho”. É a natu- a inveja e o ciúme terem que atuar escudadas
reza da intimidade intensamente simbiótica do em alguma justificativa. É o caso, por exemplo,
vínculo Eu-Outro nos símbolos que expressam o do marido ciumento que arma situações estra-
dinamismo matriarcal que torna a função da in- tégicas para provar a infidelidade de sua mu-
veja e do ciúme tão pujantes nesse dinamismo lher e aí, então, atacá-la em nome, não da pos-
e, ao mesmo tempo, faz com que a Consciência sessividade do seu ciúme, mas preservação da
matriarcal sofra tanto de inveja e de ciúme. moral familiar. No caso da inveja atuando no
Pelo fato de o Dinamismo Patriarcal ativar dinamismo patriarcal, é comum percebermos o
basicamente, por intermédio da delimitação invejoso atuar sobre as coisas alheias escuda-
e sublimação a partir de posições dogmáticas do em alguma racionalização religiosa, política
apriorísticas, o ciúme e a inveja são aqui alvo ou humanista. No caso de nossa cultura, tão
de grande enquadramento, exatamente devido dissociada e com a intensa formação defensi-

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 109


va patriarcal oriunda da Inquisição, estas ocor- ciúme, proporcionando uma abertura do Eu para
rências são ainda mais frequentes, pelo fato o Outro que engloba necessariamente o ciúme
da inveja e do ciúme, como funções psíquicas como função estruturante.
serem codificadas em bloco como pecamino- O desapego ao Eu que permeia o Budismo,
sas, indesejadas e prescindíveis no desenvol- também impede, por intermédio de um dinamis-
vimento da personalidade. mo dialético introvertido, o antagonismo siste-
É no terceiro ciclo estrutural-evolutivo, ou Ci- mático do Outro distante no triângulo amoroso
clo de Alteridade, porém, que a inveja e o ciúme do ciúme. Ao desapegar-me do Eu, abdico de
atingem características extraordinárias, pois, qualquer posição de poder assimétrico sobre
junto com os demais símbolos e funções estrutu- o Outro e, assim, exponho-me para confrontar
rantes, tem sua função criativa plenamente reco- qualquer força psíquica, incluindo o ciúme.
nhecida e devidamente avaliada. Podemos mes- Simultaneamente a esta abertura para a vi-
mo afirmar que sem confrontar criativamente a vência plena do ciúme no Ciclo de Alteridade, va-
inveja e o ciúme, a Consciência humana nunca mos encontrar a mesma ocorrência com relação
chega a conhecer a alteridade, ou seja, a impor- a inveja. A abertura para o Outro e o desapego
tância do Outro no desenvolvimento da persona- ao orgulho defensivo do Eu abrem a Consciência
lidade. Confrontar a inveja e o ciúme, porém, na para avaliar e compreender a importância do Ou-
Consciência de Alteridade, certamente não quer tro. Isto permite duas coisas. Do ponto de vista
dizer codificá-los aprioristicamente, como ocorre do Eu, a dor humilhante da inveja é muito melhor
no dinamismo patriarcal, mas também não quer tolerada e assimilada. Do ponto de vista do Ou-
dizer exercê-los à vontade, como ocorre no dina- tro, o amadurecimento das uvas é plenamente
mismo matriarcal. Trata-se de algo maior e mais admitido, por ser esta a verdade objetiva.
complexo. Confrontar a inveja e o ciúme significa Com isto, podemos agora acrescentar, que
admitir a sua necessidade e acompanhar a sua Mozart e Salieri não se abriram para sua inveja
função estruturante buscando compreender sua em sintonia com nossa cultura, na medida em
direção e sentido. Confrontar a inveja e o ciúme que não ultrapassaram suas defesas parentais
significa, pois submeter-se a sua ação em fun- narcísicas e não puderam transcender seu or-
ção da compreensão de sua atuação no todo gulho defensivo, oriundo de uma fixação no
processual da Psique. seu desenvolvimento simbólico. Arquetipica-
No Ciclo de Alteridade, regido pelos Arquéti- mente falando, vemos agora, também, porque
pos da Anima, do Animus e da Conjunção (Co- a inveja destrutiva de Mozart era mais grave e
niunctio), o ciúme e a inveja necessitam ser, inconsciente que a de Salieri. É que a inveja de
então, plenamente aceitos como funções estru- Mozart, ao funcionar patologicamente em tor-
turantes. “Amar ao próximo como a si mesmo”, no de um complexo paterno negativo, era mais
expressa um dinamismo dialético extrovertido, muda do que a de Salieri por ser sociossintôni-
pregado no Mito Judaico-Cristão que significa ca e se ocultar sob defesas parentais, basica-
considerar o Outro distante e abrir-se para ele mente patriarcais. Já a de Salieri tornou-se mais
(este dinamismo é dialético porque propicia a emergente por não ser tão sociossintônica,
interação Eu-Outro em nível de igualdade e é posto que atuante predominantemente dentro
extrovertido porque acentua a importância do das defesas de alteridade. Mozart foi símbolo
amor ao próximo). “Virar a outra face” expressa da Anima de Salieri no seu Processo de Indivi-
um dinamismo dialético introvertido que signifi- duação. Ao negá-la, Salieri desvirtuou defensi-
ca tolerar a presença do Outro distante, ao invés, vamente o poder estruturante do seu Ciclo de
de patriarcalmente antagonizá-lo. Esta atitude Alteridade e perdeu o sentido do seu desenvol-
modifica inteiramente o triângulo amoroso do vimento existencial.

110 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


No Ciclo Cósmico do desenvolvimento sim- solutamente dominante e as partes, uma sim-
bólico da personalidade, as funções do ciúme ples contingência.
e da inveja, que, normalmente atingem seu ápi- A inveja de Mozart e Salieri e o ciúme de Otelo
ce de reconhecimento e liberação no Ciclo de permaneceram nos dinamismos matriarcal, pa-
Alteridade, diminuem de importância cada vez triarcal e de alteridade. Sua dinâmica não atingiu
mais, na medida em que a Consciência admite a problemática da Consciência Cósmica. ■
a interação Eu-Outro, como uma unidade com
polaridade distensionada, no qual o todo é ab- Recebido em: 25/03/2019 Revisão: 31/05/2019

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 111


Abstract
The psychology of envy and its role in the creative process: a study of
symbolic psychology
The author describes envy as a normal struc- zart’s Shadow. By defensively humiliating Salieri
turing function in the development of personal- through his creativity, Mozart greatly intensified
ity. Envy constellates symbols for development Salieri’s defenses against his own genuine cre-
and helps to discriminate the Ego from the Oth- ativity. Plotting against Mozart’s efforts to sup-
er (the I from not I) in the construction of iden- port his family through music lessons and court
tity. When envy is not given proper attention it services, Salieri significantly strengthened Mo-
becomes part of the Shadow, which may lead to zart’s defenses against social adaptation.
neurotic and even psychotic behavior. An exam- Such complementary defensive behavior pre-
ple is given in the relationship between Mozart vented envy from further creative development
and Salieri such as it was represented in Peter and established a neuro­­tic symbiotic relationship.
Shaffer’s play “Amadeus”. The creative forces of both personalities were so
Envy constellated the symbol of Mozart in powerful, however, that neurotic defenses were in-
the development of Salieri’s personality as an sufficient to express their pathological Shadows.
expression of his betrayed creativity. Since early Psychopathic aggression and psychotic megalo-
youth, social ambition had led Salieri to create maniac dynamism took over Salieri’s personality,
for fame instead of for his own Self. The betrayal while paranoid, persecutory delusion had and ir-
of the Anima formed a powerful symbol of pros- reversible effect on Mozart’s career.
tituted creativity in his pathological Shadow, The author further clarifies the role of envy in
which was constellated through envy when he normal and pathological development by com-
met Mozart. Unable to attend his envy creatively paring it with jealousy as expressed in Shake-
by confronting his Shadow, Salieri acted out his speare’s Othello. Envy is predominantly active,
envy destructively by destroying Mozart, his own Jang and revolutionary. It stimulates growth
Anima and himself. through greed. Jealousy is predominantly pas-
Envy constellated the negative father complex sive, Yin and reactionary. lt stimulates the main-
in Mozart’s personality when he met Salieri. The tenance of the status quo through the threat of
prodigious child soon surpassed his father. Lack loss. Envy functions predominantly through the
of appropriate protection, affection and loving power drive and favors Ego development by
guidance developed a negative father complex limiting omnipotence through self-humiliation
in Mozart’s personality. This prevented social ad- and competitive performance. Jealousy func-
aptation due to a compulsive aggression toward tions predominantly through the erotic drive by
authority figures expressed through defensive rejecting the Ego’s narcissistic self-assurance
irony, ridicule and overall irreverent behavior. through doubt. Both are archetypal structuring
Marriage and fatherhood activated the father functions indispensable for the symbolic devel-
role and strongly intensified these defenses. As opment of Consciousness from its very begin-
an Italian musician successfully serving the Vien- ning. While envy discriminates the Ego from the
nese monarchy, Salieri stood for an extraordinary Other through delimitation of the Ego’s power,
example of social adaptation and success. Envy jealousy discriminates the Ego from the intimate
constellated the negative father complex through Other by introducing a threatening, affectionate
the symbol of social unadaptation present in Mo- foreign Other. The author questions the classical

112 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019


psychoanalytical consideration of jealousy as a jealousy but on the threat, which the Other holds
later development of envy due to the triangular for the I in jealousy, which is a complementary
structure of jealousy as compared to the binary psychological function of the threat which the I
structure of envy. The author argues that jealou- holds for the Other in envy.
sy can act through an intimate Other, which is so The paper ends with a brief description of the
closely fused with the I that, psychodynamically different structuring functions of envy and jealou-
speaking, jealousy can function in the primary sy in each of the four archetypal cycles of symbol-
binary relationship as much as envy. The differ- ic personality development (matriarchal-patriar-
ence, then, lies not in the triangular structure of chal, otherness and cosmic). ■

Keywords: normal, constructive or creative envy, pathological, defensive or destructive envy. prostituted
creativity, anima betrayal. negative father complex, social unadaptation complex, normal, constructive or
creative jealousy, pathological, defensive or destructive jealousy.

Resumen
La psicología de la envidia y su función en el proceso creativo: un estudio de la
psicología simbólica
El autor analiza la pieza de teatro “Amadeus” de Salieri con la prostitución de su Anima. Explica
y estudia la función de la envidia en la relación de el deterioro progresivo de las personalidades de
Mozart y Salieri. Caracteriza la envidia como una Mozart y Salieri: al no asumir su envidia normal,
función estructurante normal de la mayor importan- ésta se volvió cada vez más sombría y patológica,
cia en el desarrollo de la conciencia. Llama atención superando el dinamismo neurótico y alcanzando
a la dificultad de comprender este hecho debido a lo psicótico. Describe la función estructurante nor-
que nuestras concepciones psicológicas se hallan mal de los celos para mejor discriminar la envidia y
todavía dominadas por la obra represora-puritana ejemplificar los celos patológicos con la pieza Otelo
de la Inquisición. Afirma que en la presentación de de Shakespeare. Finalmente, diferencia la función
la pieza la patología mental de Mozart es aún may- estructurante normal de los celos y la envidia en los
or que la de Salieri. Relaciona la envidia patológica ciclos arquetípicos matriarcal, patriarcal, de alteri-
de Mozart con un complejo paterno negativo y la dad y cósmico. ■

Palabras clave: Envidia constructiva o normal, envidia destructiva, patológica o defensiva, creatividad
prostituida, traición de la propia anima, celos normales o creativos, celos patológicos o defensivos, complejo
paterno negativo, complejo de desadaptación social.

Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019 ■ 113


Referências
BLEGER, J. Simbiose e ambigüidade. Rio de Janeiro, RJ: BYINGTON, C. A. B. Uma teoria simbólica da história: o mito
Francisco Alves, 1977. judaico-cristão como principal símbolo estruturante do padrão
de alteridade na cultura ocidental. Junguiana: Revista da
BYINGTON, C. A. B. Symbolic psychotherapy: Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, São Paulo, v. 1,
a post-patriarchal pattern in psychotherapy: n. 1, p. 120-77, 1983c.
an interpretation of the historical development of
western psychotherapy through a mythological theory of FREUD, S. Notas Psicanalíticas sobre um relato autobiográf-
history. In: INTERNATIONAL CONGRESS FOR ANALYTICAL ico de um caso de paranóia. Rio de Janeiro, RJ: Imago,
PSYCHOLOGY, 8, San Francisco, 1980. Proceedings… 1969. (Edição standard das obras completas, vol. 12).
Fellbach: Bonz, 1983a.
JUNG, C. G. Os tipos psicológicos: definição do eu. Rio de
BYINGTON, C. A. B. O desenvolvimento Janeiro, RJ: Zahar, 1960.
simbólico da personalidade: os quatro ciclos
arquetípicos. Junguiana: Revista da Sociedade KLEIN, M. Inveja e gratidão. Rio de Janeiro, RJ: Imago, 1974.
Brasileira de Psicologia Analítica, São Paulo, v. 1, n. 1,
HUGHES, R. Mozart. In: HUGHES, R. (Comp.). Music lover’s
p. 8-63, 1983b.
encyclopedia. New York, NY: Garden City, 1950.

114 ■ Revista da Sociedade Brasileira de Psicologia Analitica, 1º sem. 2019

Você também pode gostar