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Ciclo III – 5ª feira – Noturno - 2019

Marcelo Yukio Corazza

Ensaio sobre a vaidade e psicanálise

Centro de Estudos Psicanalíticos


Vaidade das vaidades, tudo é vaidade.

Este versículo bíblico do livro Eclesiastes, capítulo 1 e versículo 2,


atribuído a Salomão, abre o entendimento deste ensaio sobre o tema vaidade e
psicanálise. Na visão bíblica, a vaidade estaria em todo as esferas do
entendimento humano. Considerando que a vaidade está em “tudo”, pressupõe
que em todo ato humano a vaidade estará presente. Mas então o que é a
vaidade?

Para definirmos a vaidade, é prudente que se busque uma definição numa


visão do senso comum e da psicanálise para que haja um confrontamento entre
ambas as definições e verificar se há um entendendimento onde essas
definições possam mesclar. Para isso os dicionários são uma forma de
aproximar o leitor de uma determinada definição. Recorro-me a dois dicionários:
um de língua portuguesa e o outro da psicanálise. Para a primeira definição,
segundo o Dicionário da Língua Portuguesa da Academia Brasileira de Letras há
três definições para a vaidade: é uma valorização exagerada do próprio valor,
uma preocupação de merecer a admiração dos outros e uma condição do que é
fútil, sem sentido. No campo psicanalítico, o Vocabulário da Psicanálise de
Laplanche e Pontalis é referência no assunto. Para tanto, nas suas mais de 500
páginas com verbetes psicanalíticos a vaidade não é definida! A 4ª edição,
utilizada para esta consulta, apenas consta “viscosidade da libido” e “vivência de
satisfação” na letra v e a expressão “vaidade” não é mencionada no corpo do
vocabulário. (ABL, 2008; LAPLANCHE, J; PONTALIS, J, 2001). Mas o que seria,
então, a vaidade para a psicanálise?

Uma das tentativas de explanar a vaidade no campo psicanalítico foi


proposta pelo psicoterapeuta Flávio Gikovate, morto em 2016. Com inúmeros
livros publicados no campo da saúde humana, sexualidade e psicanálise,
Gikovate publicou um livro em 1987 sobre o título: “Vício dos Vícios – Um estudo
sobre a vaidade humana”. Neste livro há uma tentativa de definir e defender a
ideia da vaidade como vício, ou seja, uma forma de dizer que a vaidade é a
busca de uma falta prazerosa que nos humanos necessitamos. Mas como
compreender essa falta a que buscamos na vaidade?
Quando falamos de vaidade e partindo da segunda definição do dicionário
da ABL: “uma preocupação de merecer a admiração dos outros” e supostamente
a sua aprovação, estamos falando sobra a atividade exibicionista-escopofílica
(voyeurística).

Assim, conclui-se por esta definição, que a vaidade é uma prática


exibicionista. Freud, em seus estudos sobre o tema, propõe que o exibicionismo
é uma forma de excitação erótica que envolve a exposição dos seus genitais a
um estranho a fim de excitar sexualmente. Esta excitação provém da exposição
do corpo ou uma parte dele. Freud salienta nos Três ensaios sobre a teoria da
sexualidade que:

[...] o prazer de ver [escopofilia] transforma-se em perversão (a) quando se


restringe exclusivamente à genitália, (b) quando se liga à superação do asco
(o voyeur - espectador das funções excretórias), ou (c) quando suplanta o alvo
sexual normal, em vez de ser preparatório a ele. Este último é marcantemente
o caso dos exibicionistas, que, se posso deduzi-lo após diversas análises,
exibem seus genitais para conseguir ver, em contrapartida, a genitália do outro
(FREUD, 1905, p. 148).

Neste sentido, seu par oposto, a atividade escopofílica (voyeurista), seria


o prazer de ver a cena exibicionista como uma forma de também se excitar
sexualmente:

Toda perversão “ativa”, portanto, é acompanhada por sua contrapartida


passiva: quem é exibicionista no inconsciente é também, ao mesmo tempo,
voyeur [...] (FREUD, 1905, p. 158).

Isto mostra-se a atividade ativa-passiva do caráter exibicionista. Ou seja,


a exibição se alimenta pela natureza escopofilica e vice-versa, onde há a
sustentação dessa dinâmica perversa, no entendimento de Freud.

O fato da fantasia inconsciente infantil de exibir seus genitais mostra o


caráter exibicionista que é presente deste os primórdios da constituição psíquica
do sujeito e na visão de Gikovate, isto seria a primeira justificativa da vaidade
humana:

A coisa mais observável no menino: ele sente prazer – de natureza erótica –


ao exibir seus genital! [...] a exposição dos genitais é coisa já proibida; o prazer
resultaria, pois, da própria transgressão. Ou será, que o menino se orgulha,
outra vez por isso ser valorizado pela cultura, de possuir um pênis, coisa que
o coloca em “superioridade” em relação às meninas? Ou estará orgulhoso de
não ter sido “castrado” pelo pai? (GIKOVATE, 1987, p.17-18).

Neste entendimento, o caráter prazeroso da exibição dos genitais é


deslocado para a exibição de outras “partes do corpo” ou “outras formas de
exibir”, visto que a prática da exibição dos genitais é um ato transgressor na
sociedade civilizatória. O exibicionista adulto busca outras formas de prazer no
seu repertório como maneira de poder exibir seus genitais. Assim, a vaidade é
alimentada por este mecanismo exibicionista-escopofílico, tornando-a de
natureza psicossexual, e isto demostra que a vaidade como um prazer erótico.

Percebemos que ficamos excitados quando atraímos olhares para nós e


quando chamamos atenção de diversas pessoas. Sentimos –nos alegres e
gratificantes.

A segunda visão psicanalítica da vaidade é explicada pela dissolução do


Complexo de Édipo, sobretudo pela angustia da castração. Segundo o
psicanalista J-D Nasio:

As fantasias infantis de prazer e angústia mal recalcadas preservaram toda


sua virulência e geraram essa neurose cotidiana presente em todos nós. O
outro tipo de distúrbio neurótico é a neurose mórbida e patológica, que, ao
contrário, manifesta-se por sintomas recorrentes que encerram o sujeito em
uma solidão narcísica e doentia. Esse sofrimento, seja fóbico, obsessivo ou
histérico, é provocado por um fator mais grave que o recalcamento insuficiente
das fantasias edipianas. Trata-se dos traumas singulares advindos em pleno
período do Édipo. Que traumas? Em primeiro lugar, o de um abandono real
ou imaginário, que provoca imensa aflição na criança (NASIO, 2007, p. 95).

Há uma fantasia real ou imaginária de abandono e desamparo provocado


pelo próprio Édipo na criança. Em adultos, isto poderia ser minimizado pelo
mecanismo que a vaidade se impõe. Mostrar-se e exibir – se, como forma de
minimizar o desamparo e dando sentido a um pertencimento egóico como
atenuante. Há um sentimento de inferioridade que se agrava neste desamparo
e a necessidade de atingir as “outras” qualidades se acentua.

A vaidade humana se expressa numa visão psicanalítica como


psicossexual, que como dito, um prazer erótico. Para tanto, sua imersão é
observada na socialização da psique humana, dando o seu caráter psicossocial.
Desta maneira, a dinâmica da vaidade apresenta singularidade para cada
indivíduo merecendo destaque na neurose. Freud assinalou em O Mal-estar na
civilização que a beleza, a limpeza e a ordem ocupam uma posição especial
entre as exigências da civilização:

Evidentemente, a beleza, a limpeza e a ordem ocupam uma posição especial


entre as exigências da civilização. Ninguém sustentará que elas sejam tão
importantes para a vida quanto o controle sobre as forças da natureza ou
quanto alguns outros fatores com que ainda nos familiarizaremos (FREUD,
1930, p. 101).

Um ponto muito importante que se observa é sobretudo na beleza, no seu


sentido garboso. A vaidade é muito íntima deste sintoma neurótico. Mulheres
costumam ser vaidosas desde a adolescência até a sua vida adulta. Assim, um
brinco, uma roupa diferente, um acessório, a maquiagem, o próprio decote de
uma roupa, etc, são elementos que despertam olhares de outros e é um
mecanismo da vaidade, sendo o desejo inconsciente de mostrar os genitais!

Freud comenta que a ‘beleza’ e a ‘atração’ são, originalmente, atributos


do objeto sexual. (FREUD, 1930, p. 91). A vaidade apoia-se na beleza como
fruto de “atrair” e chamar a atenção, neste caso, uma atração sexual. Atrair
olhares nos provoca uma agradável e difusa sensação de excitação
(GIKOVATE, 1987, p.22).

De outro lado, os homens tornaram-se mais vaidosos depois do


empoderamento feminino que vem ocorrendo nas últimas décadas. Por medo
de perdê-las, se tornam vaidosos também. Há uma maior preocupação com sua
aparência para serem competitivos como elas. Esta aparência é mais expressiva
no material, diferentemente ao feminino, onde é ligado ao corpo. Assim, homens
envaidecem com seus carros, localização do seu imóvel, etc., uma vaidade
expressa no poder de ter.

Este tipo de vaidade está ligado ao poder financeiro, do status social que
uma determinada pessoa pertença. O dinheiro convertido nos objetos de
amostra é uma tentativa de suprir o desamparo provocado pelo Complexo de
Édipo.

A beleza também se manifesta no narcisismo. A vaidade é tamanha nos


adultos narcisistas que alguns tornam-se exibicionistas! O narcisista vaidoso é o
exemplo clássico da vaidade, pois todo narcisista é vaidoso. A ligação com sua
libido é covalente, ou seja, irreversível, e não há espaço para seu objeto. Assim,
a sua satisfação prazerosa é no seu próprio corpo exibicionista que pede
admiração.

Partindo de outra esfera, a vaidade aparece em outras nuances da vida


cotidiana: um exemplo é no trabalho, onde tornou-se um campo de atores
vaidosos. Muitas pessoas lutam ao longo de anos por prestígio e reconhecimento
laborial. Doam – se seu tempo e todos seus esforços para se posicionares
estrategicamente nas suas ocupações. Muitos estudam, fazem inúmeros cursos,
as saudosas férias são sacrificadas com um intercâmbio ou a viagem é fruto de
se exibir e chamar a atenção para colegas, justamente para ter o prestígio de
um determinado cargo e todos poderem admirá-lo ou ainda aproximar de
pessoas estratégicas para ocupar determinada posição. Não há ócio para os
vaidosos trabalhadores!

Ter sucesso profissionalmente significa, como regra, ganhar mais


dinheiro. A acumulação deste capital além de ser uma forma de atenuar o
desamparo, também atenua a insegurança quanto ao futuro, dando a vaidade
um sentimento de imortalidade para o sujeito. Assim, o trabalhador sai da sua
situação de humilhação vivida na infância e afirmar sua capacidade de vingança
contra essa fase, na superioridade, pela força da fantasia material advindo do
dinheiro. A acumulação de riqueza, assim, não apenas contribui para a
sobrevivência, mas também contribui para a exibição e admiração, pois quanto
mais rico, mais admirado socialmente, e mais invejado.

Um esportista terá sua admiração quando numa competição conquistar


um dos três primeiros lugares, mas para o vaidoso, ser campeão é a sua
vaidade. Todos estarão admirando-o e seu nome é levado para a história. Aqui,
a função do ranking dá o destaque para o vaidoso e seu caráter único da sua
conquista.

Há uma outra forma onde a vaidade é muito frequente: na intelectualidade.


Aqui não há espaço para perdulários e sim um deslocamento para o saber.

É de conhecimento que nas sociedades subdesenvolvidas o prazer de se


exibir está muito relacionado ao status econômico que determinada pessoa
pertença. Já nas sociedades desenvolvidas a vaidade surge na intelectualidade.
Assim, falar duas ou três línguas, pertencer a uma determinada academia,
possuir uma pós-graduação de determinada faculdade, publicar um livro, são
exemplos de vaidade.

Um autor de livros expressa suas ideias no papel. Seu esforço em tê-lo


publicado é enorme e os prêmios literários dão suporte para o seu
envaidecimento. Em muitos deles, como no Jabuti, Camões e Nobel dão se
dinheiro como forma de recompensa. Aqui o dinheiro é o poder da vaidade
materializado.

Há uma categoria de livros, as autobiografias, que merecem uma melhor


atenção. A autobiografia é a vaidade esplêndida do autor. Uma das maiores
autobiografias já escritas foi aa de Agostinho de Hipona, o Santo Agostinho. No
livro Confissões ele relata a sua vida antes de torna-se cristão. É pertinente
mencionar que os santos católicos são por si só são frutos da vaidade, pois
pedem admiração e cultuação. Neste sentido, as autobiografias dão ênfase ao
legado que o autor/personagem quis deixar em vida. O vaidoso quer ser
santificado e um autógrafo no seu livro seria o seu gozo imortalizado. Santo
Agostinhos seria duplamente vaidoso.

Indo neste sentido podemos destacar a função das academias. A mais


conhecida delas no Brasil é a Academia Brasileira de Letras. Para ser membro
desta academia, de “letras”, não precisa ter escrito nenhum romance de grande
dimensão e difusão, apenas um livro em qualquer área do conhecimento. Assim,
esta academia possui médicos, cineastas, economistas, etc. É oportuno dizer
que ser membro desta academia é muito mais importante da obra que foi escrita.
Parece que não há critérios meritrocráticos para o ingresso. No mundo dos
vaidosos, quem não quer ser imortal?

Muito é discutido a utilidade de cursos de mestrados e doutorados. A


pesquisa é uma forma de contribuir para a sociedade e muitas teses geram
pouca difusão. O título que o pesquisador terá parece ter maior importância do
que seu estudo teve. O título alimenta seu prestígio e a sua vaidade. Assim, é
convidado a solenizar palestras, conferências, falar do que se sabe ou se
pesquisou, isto como se fosse uma grande descoberta. Isto parece aproximar da
terceira definição de vaidade do dicionário da ABL, “uma condição do que é fútil
e sem sentido”.

Neste sentido a fala tem um papel mais peculiar, pois dá a sensação de


pertencimento e exibição, que como vimos é onde a vaidade mais atua. Assim,
ministrar uma palestra para desconhecidos torna-se um ato vaidoso quando me
envaideço com aplausos de pessoas desconhecidas. Por vaidade quero agradar
a qualquer um e a todos. O falar erudito e articulado, com inúmeras citações de
autores famosos é uma forma de vaidade.

Agora, partindo da primeira definição no dicionário da ABL, a vaidade “é


uma valorização exagerada do próprio valor”. E de que exagero estamos
falando? A vaidade humana nos mostra que há uma capacidade de
transbordamento na função da pulsão de vida e do prazer que negaria a pulsão
de morte. Parece que a busca de prazer e de reconhecimento é a força motriz
que alimenta esta pulsão. Ou seja, há um gozo, uma instância mais do que
necessária.

Lacan, nos mostra no seminário 7 que há uma “transgressão do gozo”:

É nesse ponto que chegamos à fórmula de que uma transgressão é


necessária para aceder a esse gozo e é muito precisamente para isso que
serve a Lei (LACAN, 1959-1960, p. 217).

Podemos chamar a instância de gozo de transgressão, ou seja, um gozo


que é ligada ao excesso. Esta forma de gozo aparece como forma de prazer e
satisfação da pulsão. Assim, o vaidoso transgride a lei.

Esse movimento, ligado à busca da coisa perdida que falta no lugar do


Outro, é causa de sofrimento, que nunca erradica por completo a busca do gozo.
Esta coisa, chamada por Freud de das Ding é por si o objeto que está sempre
perdido e por isso mesmo marcado pela eterna busca de reencontrá-lo. Ao
considerar das Ding como gozo real, fora do sistema, afirma, portanto, que só
temos acesso a este através de um forçamento, por via da transgressão da Lei.
Daí a questão do vício e do prazer da própria transgressão proposta por
Gikovate. A vaidade é um vício e transgressão para uma busca de um objeto
que está sempre perdido.

Referências Bibliográficas

ABL. Dicionário Escolar da língua portuguesa da Academia Brasileira de Letras.


2 ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 2008.1312 pp.
FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. In Um caso de
histeria, três ensaios sobre a teoria da sexualidade e outros trabalhos (1901-
1905). In Obras Completas, volume VII. São Paulo: Imago, 1969. 333 pp.
_______________ O mal-estar na civilização. In O futuro de uma ilusão, o mal-
estar na civilização e outros trabalhos (1927-1931). In Obras Completas, volume
XXI. São Paulo: Imago, 1969. 304 pp.
GIKOVATE, F. Vício dos vícios – um estudo sobre a vaidade humana. São
Paulo: MG Editores Associados, 1987. 154 pp.
LACAN, J. (1959-1960). O seminário, livro 7: A ética da psicanálise. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997. 396 pp.
LAPLANCHE, J; PONTALIS, J. B. Vocabulário da Psicanálise. São Paulo:
Martins Fontes, 2001. 552 pp.
NASIO, J.-D. Édipo: o complexo do qual nenhuma criança escapa. Tradução
André Telles. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007.153 pp.

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