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dm, “O pós-guerra, em meio à re-


| de uma Europa devas-
“tada, que cidadãos de uma pequena
e cidade italiana resolveram repensar o
“” futuro a partir da criação de uma nova
escola. Com tijolos de casas que ha-
viam sido bombardeadas e areia das
margens do no que cortava a cidade,

os
Villa Ceila tomou-se o marco zero da
experiência de Reggio Emilia, uma das
propostas mais inovadoras e bem-su-
cedidas para a pedagogia da primeira
imfância.
Regoio Emilia é uma cidade no
nordeste da ltália. Antes conhecida
pela qualidade de seu vinho, hoje é re-
ferencial de excelência no campo da
educação. À proposta de Reggio, idea-
fizada por Loris Malaguzzi, baseia-se
na pedagogia da escuta, em que a
criança é posta ceno protagonista de
seu próprio processo de conhecimen-
to. G espaço da escola é pensado com
base no princípio de horizontalidade e
respeito mútuo, contra quaiquer tipo
de hierarquização. A participação dos
pais no dia a dia escolar é estimutada,
bem como & da comunidade. Não ha
um ensino convencional das matérias
tradicionais, e os atehês perrriem um
contato abrangente da criança Com as
mais variadas formas de are. O resul.
tado é fascinante, vsio O aumento de
E instituições que seguem a abordagem

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DIÁLOGOS COM
REGGIO EMILIA

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metem

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Carla Rinaldi
DIÁLOGOS COM
REGGIO EMILIA
EsCUTAR, INVESTIGAR
E APRENDER

Tradução

Vania Cury

Revisão técnica

Marilia Dourado

12º edição

D
Paz SUTERRA
Rio de Janeiro | São Paulo
2020

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Copyright O 2008 Cara Rinaldi
Copyright desta edição 45 Paz e Terra

Tradução autorizada da edição em iaglês publicada pela Routedge,


empresa membro do Taylor & Prancts Group

Direitos de edição da olwa em lingua portuguesa no Brasil adqui


vdos pela Eryrona Pas n Penna. Todos os direitos reservados. Ne
nbuma parte desta obra pode ser apropriada e estocada em siste
tma de banco de dades ou processo sumdlar, em qualquer forma ou
meio, seja eletrônico, de fotocópia, gravação etc, sem a permissão
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Texto revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Lingua Portuguesa

CIPRRASA CATALOGAÇÃO NA FONTE


SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ.

Rinaldi, Carla
12º ed. Diblogos com Regaio Emilia : escutar,
investigar e aprender Carla Rinaldi; tradução de
Vania Cury — 12*ed — Rio de Janeiro/ São Paulo:
Paz e Terra, 2020.
ISBN 978-85-7753-242

Titulo original: In Dizlogue with Reggio


Emiíli
erre item

1. Educação infannil 2. jardim de infância


3. Reggio Emilia 1. Titulo.
raise

12-06932 CDD-372.21094543)
Rs nr
VP

2020 .
/ Primseá in Brazil
impresso BO Brasil

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PARA AS CRIANÇAS, PROFESSORES, PEDAGOGOS, PAIS h

ADMINISTRADORES DE REGGIO EMILIA,

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Sumário

NOTA DOS EDITORES: DIÁLOGOS COM


REGGIO EMILIA 9
NorTA SOBRE TERMINOLOGIAS II
PRÓLOGO
— MARILIA DOURADO 15
INTRODUÇÃO: Nossa REGGIO EMILIA
— GuNILLA DAHLBERG E PerTerR Moss 19

Ficar do lado das crianças: A sabedoria


dos educadores (1984) 57
Participação como comunicação
(1984) 91
Malaguzzi e os professores (1996) 103
Documentação e avaliação: Como se
relacionam? (1995-1998) 117
Diálogos 139
O espaço da infância (1998) 145
=

Questões sobre a educação de hoje


(1998) 165
Documentação e investigação (1999) 179

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fes
Na

Continuidade nos serviços para 187


W
nr see

crianças (1999)
Criatividade como qualidade do 203
pensamento (2000)
|
À construção do projeto educativo:
TT"

=
Entrevista com Carla Rinaldi, por Lella
TITE

Gandini e Judith Kaminsky (2000)


Educadores como pesquisadores:
Formação e desenvolvimento
profissional numa escola de educação
(2001) 247
13 A organização, o método: Uma
conversa com Carla Rinaldi, por
Ettore Borghi (1998) ZA
14 Atravessando fronteiras: Reflexões
sobre Loris Malaguzzi e Reggio Emilia
(2004) 299
Diálogo com Carla Rinaldi: Um
7

debate entre Carla Rinaldi, Gunilla


Dahlberg e Peter Moss 317

AGRADECIMENTOS 367
BIRETO RARA 369
ÍNDICE 385

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Nota dos editores
DiáLoGos com Reccio EMtiLIA

O PROGRAMA PARA A PRIMEIRA infância de Reggio Emilia, na


Itália, tornou-se reconhecido e aclamado como um extraor-
dinário sistema de educação. Carla Rinaldi, ex-diretora dos
centros municipais para a primeira infância de Reggio Emi-
lia e sucessora de Loris Malaguzzi (um dos pensadores pe-
dagógicos mais importantes do século XX), possui renome
internacional na área da educação de crianças e tem feito
palestras em todo o mundo sobre o assunto.
Este livro oferece uma seleção de artigos, palestras e en-
trevistas mais importantes de Rinaldi, de 1984 até 2004, com
introduções que explicam o contexto que inspirou cada um de-
les. Algumas questões impõem-se como foco desta coletânea:

* Por que a Pedagogia da Escuta, a documentação pe-


dagógica, a participação e a pesquisa são conceitos
tão importantes para Reggio Emilia? Como são pra-
ticados?
* De que maneira os educadores podem fazer um uso
mais efetivo da arte e da criatividade?
* O que há de tão especial em Reggio Emilia?

Diálogos com Reggio Emilia se encerra com uma entrevista


de Rinaldi feita por Peter Moss e Gunilla Dahiberg, editores

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abasà
Fra RP

da série Contesting Early Childhood [Debatendo a Prime


ir.
LAT

infância, em tradução livre]. Nessa conve


rsa, ela E
sobre seu trabalho atual e faz reflexões sobre o passa
, T

do, o
presente e o futuro de Reggio.
TINTO ye

A leitura deste livro é fundamental não apenas para


aqueles que estudam ou praticam a educação na primei-
ra infância. Qualquer pessoa que
se interesse pelas amplas
questões do aprendizado, da infância e do lugar da escola
muma sociedade democrática irá considerá-lo um texto se.
minal.

À
|
e
— writ ap

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NOTA SOBRE TERMINOLOGIAS

NESTE LIVRO, EMPREGAMOS TERMOS ITALIANOS para Os dois


principais tipos de serviços para a primeira infância encon-
trados em Reggio Emilia e no resto da Itália: o nido (no
plural, nidi) é um centro ou creche para crianças de aproxi-
madamente três meses a três anos; a scuola delVinfanzia (no
plural, scuole delPinfanzia) é um centro para crianças acima
de três anos e até a idade escolar obrigatória de seis anos.
Em Reggio, usa-se o termo “escolas municipais” para se
referir aos 33 centros para crianças pequenas — tanto nidi
quanto scuole delPinfanzia — que são dirigidos diretamen-
te pela municipalidade de Reggio Emilia (empregamos o
termo “municipalidade” para designar a autoridade local)
ou são administrados para a municipalidade por cooperati-
vas ou demais organizações sem fins lucrativos; esse termo
também é utilizado no livro para remeter a essa rede de
serviços. Todavia, o termo “escola” (não qualificado com
“municipal”) é empregado de forma genérica para iden-
tificar todos os locais de aprendizagem, tanto para crian-
ças recém-nascidas e de até seis anos quanto para crianças
maiores e jovens.
Os funcionários que trabalham diretamente com as
crianças nos nidi e nas scuole delPinfanzia são identificados
como “educadores”, ainda que em geral as equipes dos nidi
tenham níveis mais baixos de formação inicial.

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Mas há ainda outros grupos de trabalhadores que desem-
penham um papel muito importante nas escolas munici-
pais de Reggio. Além dos auxiliares, sobre quem se discute
em vários momentos deste livro (como, por exemplo, co-
zinheiras e faxineiras), existem também os pedagogistas e
os atelieristas. Os pedagogistas têm alto nível de formação
em psicologia e pedagogia, e cada um deles trabalha com
um pequeno número de escolas municipais, a fim de ajudar
a desenvolver o entendimento dos processos de aprendiza-
gem e do trabalho pedagógico, por meio de, por exemplo,
documentação pedagógica (uma estratégia que será discuti-
da com alguma profundidade neste livro). Atelieristas, cuja
formação em geral é em artes visuais, trabalham com os
professores nas escolas municipais de Reggio, normalmente
num ateliê (oficina), num nido ou numa scuola dell'infanzia,
onde apoiam e ajudam a desenvolver as linguagens visuais
de adultos e crianças, como parte de um complexo processo de
Construção do conhecimento.
Outra questão de terminologia deve ser assinalada aqui,
nesse estágio inicial do livro: a distinção entre as palavras
italianas programmazione e progettazione. Em italiano, o ver-
bo progetiare tem uma variedade de significados: inventar,
Planejar, elaborar, projetar (num sentido técnico de enge-
nharia). O emprego da forma substantiva progettazione por
educadores de Reggio, porém, tem seu significado especial.
Ela é utilizada, em Reggio, em oposição a programmazione,
que implica currículos, programas, estágios e outros as-
pectos pré-definidos. O conceito de progettazione represen-
ta, assim, uma abordagem mais global e flexível, na qual
as hipóteses iniciais são elaboradas acerca do trabalho em

n ns
(ARIA RINALDI

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sala (assim como acerca do desenvolvimento dos demais
educadores e da relação com os pais) e estão sujeitas a mo-
dificações e alterações de rumo no curso do processo de
andamento do trabalho: o projeto de trabalho “cresce em
direções distintas sem nenhum princípio ordenador geral,

ro TETE
desafiando a ideia corrente de que a aquisição do conheci-
mento se dá numa progressão linear, simbolizada pela ár-
vore” (p.30).
Não é fácil achar um termo que possa descrever esse pro-
cesso tal qual ele se dá em Reggio Emilia. Alguns escritores
de língua inglesa empregaram expressões, como “currículo
emergente”, “currículo projetado” ou “currículo integra-

E
do”, a fim de descrever de maneira geral como os professo-
res de Reggio planejam e trabalham com crianças, colegas e
pais. Esses termos, porém (como o leitor vai perceber), são
inapropriados, originários de métodos e modos de trabalhar
desenvolvidos e utilizados em outros lugares; seu emprego
torna invisível a especificidade de Reggio. Assim, decidimos
manter a palavra italiana progettazione.

DiáLoGos com Reggio EMILIA


[3

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PRÓLOGO

Em DiáLoGos com Reggio Emtria, escuto, investigo e aprendo,


como está posto no título desta obra. Mas vou mais além:
sonho e cultivo a ideia de escolas de educação infantil do
Brasil e do mundo dotadas de princípios ético, estético e
político, que reconheçam as crianças como agentes de mu-
dança e transformação e que com elas, efetivamente, esta-
beleçam relações de coNFIANÇA para a construção de uma
AUTONOMIA criativa.
Faço parte do International Network da Reggio Chil-
dren, grupo mundial organizado com representantes e
associações de mais de trinta países e presidido por Carla
Rinaldi. Sou membro deste grupo como representante do
Brasil na RedSOLARE — associação latino-americana em
defesa da cultura da infância e de difusão das práticas edu-
cativas das escolas municipais de Reggio Emilia.
Como representante da RedSOLARE Brasil, tenho tido
a oportunidade de ir à cidade de Reggio Emilia duas vezes
ao ano, nos últimos cinco anos. Faz três anos que Carla me
fez uma provocação e desde então vivo com esta ideia na
cabeça e no coração: “A América Latina é a esperança do mun-
do, vocês estão se organizando para responder a essa expectativa?
Temos muito o que aprender com vocês.”
Minhas reflexões referem-se, principalmente, ao proces-
so gerativo, à contribuição da prática educativa de Reggio e

Digitalizado com CamScanner


ww
ue

às experiências e reflexões que Carla Rinaldi oferece a nós,


usem

educadores brasileiros, porque creio que essa é uma das


rr

questões mais importantes a ser compreendida, para irmos


muito além do aparente, do modismo, da importação de
modelos, do fazer sem refletir.
ET TO

Neste livro, com capítulos escritos ao longo de três dé-


em

cadas, encontro muitas ideias, pistas e trilhas para atribuir


sentido e participar da construção e reconstrução das traje-
tórias de creches e pré-escolas de educação infantil no meu
país, valorizando história, identidade, cultura e participação.
Este é um convite à compreensão de que estamos no
momento de agir e convocar todos os atores sociais que
trabalham em espaços educativos para a defesa da infância
através de um diálogo verdadeiro, transparente e transfor-
mador, conscientes das nossas escolhas e de quanto temos
que aprender com as crianças. É o contrário da indiferença,
do conformismo e da negligência.
Na obra, a autora narra seu percurso profissional em
diferentes momentos da sua história e a experiência das
escolas de Reggio Emilia como um projeto que, vivido e
testemunhado com autenticidade e conhecimento de cau-
sa, foi construído na coletividade, optando por reconhecer
recursos e potencialidades sempre inéditos nas crianças du-
À rante a primeira infância, por valorizar os educadores e a
| 1 família como protagonistas, assim como a memória, o re-
gistro, a documentação e a história como elementos de um
patrimônio cultural das escolas. Como um projeto que op-
| tou também destacar como as riquezas da espécie humana
| transcendem as culturas individuais, o que exige responsa-
bilidade e participação de todos.

I6 | Carta RiNALDI

iii ii
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As escolas são ambientes organizados que oferecem ao
ser humano um espaço de vida. Como devem ser esses es-
paços, são escolhas que devemos fazer. Carla defende que

TESES SE
sejam lugares envolventes para crianças e adultos, acolhen-
do-os numa rede de relações em um campo de possibili-

EE
dades criativas de expressão e de comunicações múltiplas.
Aqui entra a tão bem-colocada ideia de escuta; uma escuta
que prevê diálogo atento, cuidadoso e marcado pelo respei-
to — uma comunicação que não está só conectada com a

TT
palavra, mas também com os olhos, o corpo, as mãos.

pres
Volto à provocação inicial que Carla me fez e questio-
no: Como os educadores de Reggio podem aprender com
as nossas experiências? Recordo Humberto Maturana, que
afirmou: “Mesmo que de imediato não o percebamos, so-
mos sempre influenciados e modificados pelo que experien-
ciamos.”
Vejo que, na ideia de complementaridade, encontramos
as possibilidades de intervenção e colaboração. É com a
nossa identidade e com o nosso próprio sentido de atuar
em relações democráticas e respeitosas com o outro, com
o mundo e com a natureza que expressamos nossas gran-
des riquezas. É nossa vocação para a atitude positiva e agre-
gadora, sobretudo pela realidade desafiadora e tão diversa
que vivenciamos no Brasil, a pista colocada por Carla para
trilharmos nosso caminho para uma educação infantil que
faça a diferença.
Vamos portanto construir laços entre espaços geográfi-
cos do nosso país e do mundo e tempos históricos diferentes
da nossa história e de muitas outras que nos projetem para
um aqui e agora pleno e um futuro cheio de relações múlti-

DiÁLoGos com Reggio EmiLia | 17

|
REAL ain pi, hs

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plas. para que sejamos capazes de perceber o valor da nossa
cresça, transfor.
força. para que a educação infantil floresça,
e - -
r

me e nos estimule a cultivar novos sonhos.

Marilia Dourado
Representante Nacional da REdSOLARE Brasil

18 | Cas
ARTS
r RX
MINAI
E
DI

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Introdução
Nossa REGGIO EMILIA

O diálogo é fundamental. Trata-se de uma ideia de diálogo


não como troca, mas como processo de transformação em
que se perde totalmente a possibilidade de controlar o resul.
tado final. E isso vai ao infinito, vai ao universo, é possível se
perder. E, hoje, para os seres humanos, e para as mulheres
em particular, se perder é uma possibilidade e um risco, sabe?
Carla Rinaldi

ESTE LIVRO TRATA DE UMA EXPERIÊNCIA extraordinária vista pe-


los olhos de uma de suas intérpretes mais importantes. Car-
la Rinaldi começou a trabalhar em Reggio em 1970, primei-
ro como pedagoga, depois como diretora pedagógica dos
serviços municipais para a primeira infância e, desde a sua
aposentadoria, em 1999, atua como consultora da Reggio
Children, organização criada pela municipalidade de Reg-
gio Emilia para administrar a relação entre as escolas muni-
cipais de Reggio e o resto do mundo. Nessas várias funções,
Carla fez muitos discursos, deu inúmeras entrevistas e es-
creveu diversos artigos, dos quais este livro apresenta uma
seleção. Por intermédio deles, podemos acompanhar como

” Desde 2007, Carla Rinaldi é presidente da Reggio Children. (N.E.)

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a experiência de Reggio Emilia se desenvolveu ao longo de
mais de quarenta anos, tanto em relação às perspectivas filo-
sóficas e teóricas particulares quanto a respeito dos contex
tos social, cultural e político mais amplos.
O que é Reggio Emilia? É uma cidade no norte da
Itália com uma população de aproximadamente 150 mil
habitantes, uma comunidade próspera cuja longa histó-
ria se tornou, nos últimos anos, etnicamente diversa ao
criar uma “nova Reggio” (Piccinini, 2004). O psicólogo
norte-americano Jerome Bruner, eminente visitante do
ultramar que se tornou amigo íntimo e admirador da ci-
dade, tendo recebido o título de cidadão honorário em
1998, argumentou que não se pode compreender as es-
colas municipais se não se compreender a cidade onde
elas nasceram: Reggio Emilia, ele afirma, “não é nem
arordoadamente grande nem sufocantemente pequena [é
de um tamanho que] favorece a imaginação, a energia, o
espirito de comunidade. (...) [Em] Reggio pode-se conhe-
cer uma forma rara de cortesia, um modo precioso de
respeito mútuo” (2004: 27).
Reggio é também o conjunto de 33 escolas municipais
para crianças com idades que vão de poucos meses de vida a
seis anos, mantidas pela autoridade local, tanto diretamente
quanto por meio de acordos com cooperativas. O mais im-
portante, porém, talvez seja o fato de que Reggio represen-
ta um corpo único de teoria e prática sobre o trabalho com
crianças peguenas e suas famílias, surgido em contextos
histórico, cultural e político bastante particulares. O objeto
deste livro é formado por esse corpo de teoria e prática e
seu contexto.

20! Carris ResaiD

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Como editores de uma série denominada Contesting
Early Childhood (Debatendo a primeira infância, em tra-
dução livre) e autores de um livro dessa série intitula-
do Ethics and Politics in Early Childhood Education (Ética e
política na educação da primeira infância, em tradução
livre), consideramos a experiência das escolas municipais
de Reggio Emilia, assim como a interpretação de Carla
acerca dela, extremamente relevantes; pois, para nós, pa-
rece que vivemos hoje numa fase da história em que as
dimensões ética e política da educação, com seus deba-
tes correlatos, têm sido constantemente negligenciadas.
A ideia da educação para todas as crianças, inclusive =|
bem pequenas, como experiência compartilhada numa
sociedade democrática e de escolas como parte dessa so-
ciedade, cujos cidadãos se responsabilizam por todas as
suas crianças, tem cada vez mais sido substituída por ou-
tra noção. A educação vem sendo tratada, mais e mais,
como uma mercadoria individual e como metáfora para
as mudanças que a escola tem passado, de espaço ou fó-
rum público para negócio privado, uma atividade que
compete no mercado para vender seus produtos — edu-
cação e cuidado. Os pais se transformam em consumido-
res autônomos calculistas, que fundamentam os cálculos
individuais em conceitos administrativos, tais como bens
em oferta, qualidade, excelência e resultados. A escola
fica reduzida a um local de prática técnica, a ser avalia-
da de acordo com sua capacidade de reproduzir conhe-
cimento e identidade e de atingir critérios uniformes e
consistentes. A escola é transformada numa tecnologia
de normatização.

DiáLocos com Regcio EMILIA | 21

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Tre pra
É nesse contexto histórico que uma viagem à excepcio
nal experência educacional e cultural das escolas munici.
pais de Regrio Emiha se torna tão importante e urgente.
me

PP to aos

Essas escolas não desprezam o conhecimento técnico, nem


ee

inoram aspectos de organização e estrutura. Mas os co-


a

jocam em seus devidos lugares: como bases de apoio para


o”

um projeto educacional que compreende a escola, antes e


EA
FR TE

acima de tudo, como espaço público e como local para a


pratica ética e política — um lugar de encontro e conexão,
:

mreração e diálogo entre cidadãos, sejam jovens ou velhos,


gue vivem juntos na comunidade. Jamais esquecemos, diz
| Carda sobre Reggio, que “por trás de cada solução e cada
| organização, quer dizer, por trás de cada escola, existe uma
: escolha de valores e ética”.
no

Para mós, Regeio Emilia é uma experiência que abar-


ca. mas palavras do filósofo francês Gilles Deleuze, “uma
crença no mundo” e promete esperança para uma cultura
renovada sobre a mfância e sobre a recuperação da escola
como espaço público de importância crucial nas sociedades
democráricas No restante desta introdução, tentaremos
exphcar as armações que temos feito de Reggio. Todavia,
fazendo 18so, reconhecemos que estamos apresentando nos-
sa Rego. nossa mterpretação dessa experiência única que
resultou de duas décadas de acompanhamento dessa prát-
ca, lendo, visitando e discutindo com professores e outros
educadores. Sentimo-nos encorajados a fazer isso porque
pensamos que Caria e seus colegas em Reggio diriam que
mterpretar o mundo é inevitável (de fato, no capítulo final
dese isvro, Caria observa que "a própria Reggio é uma mM
terpretação de Reggio! 'p 348); e que novos conhecimentos

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são criados quando se colocam interpretações em discussão
c em contestação.

À HISTÓRIA DE UM EXPERIMENTO PEDAGÓGICO

A experiência pedagógica de Reggio Emília é uma história


que vem perpassando mais de quarenta anos e que pode ser
descrita como um experimento pedagógico em toda uma
comunidade. Como tal, ela é única; até onde temos conheci-
mento, jamais houve algo assim antes. A fim de colocar essa
experiência em perspectiva, a única escola experimental de
John Dewey, durou apenas quatro anos. O psicólogo norte-
“americano Howard Gardner, ao refletir sobre a experiência
de Reggio Emilia, definiu uma escala das realizações do local
em relação à história da educação progressista nos Estados
Unidos, onde, assim como na maioria dos países, os ideais da
educação progressista raramente se concretizam na prática:

Como educador norte-americano, não posso deixar de me sen-


tir afetado por alguns paradoxos. Nos Estados Unidos, temos
orgulho de nos focarmos nas crianças, mas mesmo assim não
prestamos atenção suficiente àquilo que elas realmente expres-
sam. Reivindicamos aprendizado cooperativo entre as crianças,
mas raramente sustentamos qualquer tipo de cooperação entre
educadores e administradores. Invocamos trabalhos artísticos,
mas quase nunca criamos ambientes que possam realmente
abraçá-los e inspirá-los. Apelamos ao envolvimento dos pais,
mas abominamos repartir com eles a propriedade, a responsa-
biidade e os créditos. Reconhecemos a necessidade da comu-
nidade, mas com frequência nos cristalizamos rapidamente

Drátogos com Reggio Emma | 23

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“ em interesses de grupos. Elogiamos o método das descober-
tas. mas não temos confiança em deixar as crianças seguirem
os próprios mstíntos. Convocamos o debate, mas sempre o
Tecusarmos convidamos a ouvir, mas preferimos falar; somos
afizentes, mas não salvaguardamos os recursos que possam
Dos conservar assim e também permitir a afluência dos outros.
Regpso é muito insrutiva nesses aspectos. Enquanto ficamos

Exzm sem cansar


para resolver muitas dessas questões que são
Fundamentais — e fundamentalmente dificeis (Gardner, 1999

Uma das razões


ra do vigor e da longevidade de Reggio tem
são z disposição para ultrapassa
limites,
r decorren
de te
uma
curiosidade múinita e do desejo de criar novas perspectivas.
Os educadores de Reggio reuniram teorias e conceitos de di-
VETSOS campos diferentes, não apenas da educação, mas tam-
dém da flosofz da arquiserura, da ciêda
nciHreratua,
ra e da
Cormnicação visual Eles relacionaram seu trabalho a uma

DE So Eaiê eee Dodi escreveu:

/ É curiosa (embora não injustificada) a resistência da crença


j de que
ne sócias e práticas educacionais só podem se originar de
* modelos oficiais ou teorias estabelecidas(...) No entanto.
as
t discussões sobre educação imclusive e de crianças pe-
| | quenas) não podem ficar confinadasa essa literarura Essa faiz,
Nm

À tradução deste
+ de curros trechos citados no lxro é nossa. amda que apre-
Sexos ns Aibhogrzõs as edições brasdeiras (N E
b

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—d
mm
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que também é polí tica, deve provocar, de modo contínuo, im- N

portantes mudanças e transformações sociais na economia,


nas ciências, nas artes e nas relações e hábitos humanos. To-

das essas grandes forças influenciam a forma pelaqual o Ç r >


Ps AS

res humanos — até mesmo as crianças pequenas — “teem


e lidam com as realidades de suas vidas. É daí que emergem,
tanto no plano geral quanto no plano local, novos métodos de
conteúdo e prática educativa, assim como novos problemas e
uestões mais profundas (Malaguzzi, 1999).

Todavia, os educadores de Reggio não apenas trouxeram


teorias e conceitos de vários lugares; na realidade, refleti-
ram sobre eles e os experimentaram, criando os próprios
significados e implicações para a prática pedagógica.
Ao mesmo tempo, eles sempre foram críticos e questio-
nadores. Por exemplo, um grande desejo de acompanhar
as últimas realizações da ciência foi temperado pela análise
crítica e pela forte crença de que a ciência sozinha não con-
segue resolver aquilo que é normalmente questão de valor,
como, por exemplo, o que consideramos uma vida boa para
crianças e outros cidadãos de uma comunidade, ou como
pensamos que são as crianças. Eles reconhecem que a ciên-
cia oferece não somente possibilidades boas, mas também
possibilidades de dominação e exploração. Como observou
o biólogo chileno Humberto Maturana:

O que a ciência e a formação para ser um cientista não nos


oferecem é sabedoria. A ciência moderna surgiu numa cultu-
ra que valoriza a apropriação e a riqueza, que trata o conhe-
cimento como fonte de poder, que promove crescimento e

ALOG
ALOGOS cos
COS Regcso
Goro TT
Emilia
25
y

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controle, que respeita hierarquias e dominação, que glorifica
as aparências e o sucesso, e que perdeu a visão da sabedoria
e não sabe mais como cultivá-la. Nós, cientistas, em nossos
esforços para fazer aquilo de que mais gostamos, a bem dizer,
pesquisa científica, com frequência somos aprisionados pelas
paixões, pelos desejos e objetivos de nossa cultura e pensamos
que a expansão da ciência justifica tudo, ficando cegos dian-
te da sabedoria e da forma de aprendê-la. A sabedoria viceja
no respeito ao próximo, no reconhecimento de que o poder
emerge na submissão e na perda da dignidade, na aceitação
de que o amor é a emoção que constitui a coexistência social,
a honestidade e a confiança, e no reconhecimento de que o
mundo no qual vivemos é sempre, e inevitavelmente, nossa
construção. Mas, se a ciência e o conhecimento científico não
nos propiciam sabedoria, pelo menos não a negam (Matura-
na, 1991: 50).

A curiosidade, a abertura e a capacidade de ultrapassar li-


mites deixaram Reggio, em diversas ocasiões, à frente do
seu tempo. Teorias e filosofias que hoje começam a ser
amplamente utilizadas em discussões sobre educação, mas
que ainda não são muito visíveis e incorporadas nas práticas
pedagógicas, chegaram a ser bastante visíveis e incorpora-
mm

das em Reggio durante algum tempo. Assim como outras


práticas educativas radicais nos anos 1970, os educadores de
Reggio se inspiraram no pensamento de Piaget, em espe-
aa

cial na importância por ele atribuída à epistemologia e na


sua visão de que o objetivo do ensino é oferecer condições
de aprendizado. Mas eles também compreenderam que os
educadores, “com uma ganância simplória”, tinham muitas
A TO
/

26; Cana RinaLDI

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vezes tentado extrair da psicologia de Piaget aspectos que
ele não considerava de modo algum propícios à educação. l

Muito cedo,
cedo, também,
também, eles S compreenderam certa fra- mM

Pi
teoria dede Piaget,
za nana teoria
ueza inclusive a forma. pela qual seu
construtivismo descontextualiza e isola a criança, coisa
que muitos construtivistas hoje tentam remediar. Como
consequência, os educadores de Reggio começaram a
olhar de forma mais crítica para determinados aspectos da
teoria de Piaget, inclusive

a subestimação do papel do adulto na promoção do desen-


volvimento cognitivo; a atenção marginal à interação social e
à memória (em oposição à inferência); a distância entre pen-
samento e linguagem; a linearidade de cada passo do desen-
volvimento no construtivismo; o modo pelo qual os diversos
tipos de desenvolvimento cognitivo, afetivo e moral são trata-
dos separadamente, com cursos separados; a ênfase exagerada
nos estágios estruturados, no egocentrismo e nas habilidades
classificatórias; a falta de reconhecimento das competências
parciais; e a superutilização de paradigmas das ciências bioló-
gicas e físicas (Malaguzzi, 1999).

A transgressão da ideia descontextualizada de Piaget levou


Reggio a, nos anos 1970, começar a experimentar aquilo
que acabaria resultando na adoção de outra concepção: a
de que o aprendizado das crianças se situa num contexto so-
cioculturale se dá por meio de tea ue que requerem
a construção de um ambiente que “permita um movimento
máximo, interdependência e interação” (ibid). Desse modo,
vieram a adotar uma perspectiva social construtora, na qual

DiáLocos com Reggio EmiLia | 27

Digitalizado com CamScanner


o conhecimento é visto como parte de um contexto dentro
de um processo de produção de significados em encontros
contínuos com os outros e com o mundo, e a criança € o
educador são compreendidos como coconstrutores do co-
nhecimento e da cultura.
Tal perspectiva permitiu aos educadores de Reggio Emi-
lia abrirem-se para preciosos insights sobre o psicólogo rus-
so Lev Vygotsky. Desde então, essas percepções vêm sendo
importantes para a prática, como, por exemplo, a relevância
por ele atribuída à relação entre pensamento e linguagem,
e o fato de a ação ser mediada por ferramentas culturais e
por símbolos. As estratégias muito conscientes de Reggio
de utilizar outras crianças no grupo como ferramentas
pedagógicas no processo de coconstrução têm muito em
comum com a ídeia de Vygotsky sobre a zona de desenvol-
vimento próximo.
Outra inspiração importante foi John Dewey, que via o
aprendizado como um processo ativo e não uma transmis-
são pré-moldada de conhecimento. Como ele argumen-
tou, o conhecimento é construído nas crianças por meio
das atividades, com experimentações pragmáticas e livres,
/ € com participação nas atividades. Ele também superou os
* dualismos entre conteúdo e método, processo e produto,
| mente e corpo, ciência e arte, teoria e prática: “A huma-
| q nídade gosta de pensar em opostos extremos. Ela é dada a
| formular suas crenças em termos de Ou Isso, Ou Aquilo,
| deixando de reconhecer as possibilidades intermediárias”
Dewey, 1938: 17).
De forma característica, os educadores de Reggio se ins-
piraram em teorias e teóricos, mas não foram restringidos

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por isso; mais do que reproduzir teses alheias, utilizaram-
-nas para construir as próprias perspectivas. Malaguzzi,
por exemplo, afirmou que no começo eles se apoiaram no
trabalho de Maria Montessori, de modo a poder avançar:
“Montessori: elaé a nossa mãe, mas, como todos os filhos,
tivemos de nos tornar independentes da mãe.” O mesmo
“ir além” foi verdadeiro, como acabamos de mencionar, na
relação deles com Piaget. Se Vygotsky e outros pensadores
semióticos enfatizaram a linguagem verbal e a oral, Reggio
ampliou a ideia da linguagem para aquilo que chamou de
“as cem linguagens das crianças”, às quais Carla se refere
em seu livro como “a fantástica teoria” (p.340). O reconhe-
cimento da multiplicidade da linguagem significou que eles
o

introduziram em suas escolas, como mediadores semióti- A

tais
computadores.
e
Outro exemplo que demonstra como Reggio estava à
frente do seu tempo são suas ideias sobre o conhecimento.
se Para compreender o pensamento e a prática de Reggio Emi-
Jia, como, por exemplo, a noção de planejamento, temos de
nos abrir para repensar a ideia mestra do conhecimento. Não
somente devemos manter um permanente questionamento
acerca da disciplinaridade, deixando sempre aberta a questão
do que é uma disciplina e do que é a matéria da escola, como
também devemos nos perguntar por que temos conceitualiza-
do e organizado um conhecimento de determinada maneira.
Em Reggio, eles questionaram e repensaram. Num dos
seus discursos, Loris Malaguzzi falou da ideia do conheci-
mento em Reggio como uma espécie de Feraranhadoà)
(Espaguetee”) Carla tem uma visão semelhante quando diz

Diátocos com Reggio Ema | 29

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que “o aprendizado não ocorre forma linear, determi.
nada e determinista, em estágios progressivos e previsíveis:
KO) pelo contrário. é construído por meio de avanços simultã-
“neos, paralisações e recuos que tomam diversas direções”
“(p.237. Dotados dessa concepção de conhecimento, pode-
mos entender por que o projeto de trabalho em Regeio
Emilia cresce em direções distintas sem nenhum princií-
pio ordenador geral, desafiando a ideia corrente de que a
aquisição do conhecimento se dá numa progressão linear,
simbolizada pela árvore — muito diferente da metáfora
do
emaranhado de espaguete! O projeto educativo
de Regeio
pode ser visto como uma série de pequenas
narrativas, que
| são dificeis de combinar de modo aditivo e cumulativo.
as e Isso, acreditamos, é semelhante a uma imagem do co-
E nhecimento como umírizomaNEssa imagem foi
desenvolvi.
Es da pelos filósofos franceses Gilles Deleuze e Felix
Guattari
(2011; ver também Deleuze e Parnet, 1998) como Eme
transgredir noções, como universalidade, padrões de per-
| guntas e respostas, julgamentos simples, reconhecimento
e
-s ideias corretas. Num rizoma, não existe hierarquia de
raiz,
Ra tronco e galhos. Não é como uma escada, em que é preciso
pisar no primeiro degrau para subir nos outros — semelhan-
te à metáfora da árvore do conhecimento, que permanece
tão proeminente na educação.
Para Deleuze e Guattari, e cremos que para Reggio tam-
( bém, pensamento e conceitos podem ser vistos como con-
sequência da provocação de um encontro com a diferença.
Eles enxergam o rizoma como algo que brota em todas as
direções, sem começo nem fim, mas sempre no meio e se
abrindo para outros destinos e lugares. É uma multiplicidade
mm
mi
pe
pe

30 :( sARLA R: Wa D
ii

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que funciona por meio de conexão e heterogeneidade, uma
multiplicidade que não é dada, mas construída. O pensa- |
mento, assim, é uma questão de experimentação e proble- /
matização — uma linha de voo e uma exploração do porvir, o
que ecoa na observação de Carla de que “o processo de vir]
a ser”, que é a base da verdadeira educação” (p.150).
Podemos apresentar um exemplo pessoal de como o
trabalho pedagógico dos educadores de Reggio e seu amor
pela experimentação colocaram essa pequena cidade e suas
escolas municipais na vanguarda de um novo pensamento
e prática. No final dos anos 1990, junto com nosso colega
canadense Alan Pence, escrevemos um livro sobre a pri-
meira infância, no qual trabalhamos com uma perspectiva
filosófica que poderíamos denominar pós-moderna. No en-”
tanto, quanto mais trabalhávamos nessa perspectiva, mais
compreendíamos que diversas facetas do pensamento e da
prática pedagógicos de Reggio também poderiam ser deno-
minadas de/pós-modernas) e o foram por um bom tempo,
como, por exemplo:

Optar pela abordagem socioconstrucionista; desafiar e des-


construir os discursos dominantes; compreender o poder 1.
desses discursos na moldagem e na condução de nossos pen-
- Samentos e ações (...); rejeitar o estabelecimento de regras,
metas, métodos e padrões, e, ao fazer isso, correr o risco da
incerteza e da complexidade; ter a coragem de pensar por si
mesmo na construção de novos discursos e, ao fazer isso, atre-
ver-se a optar por compreender a criança como uma criança
rica, com infinitas capacidades, uma criança nascida com cem |
linguagens; construir um novo projeto pedagógico, pondo 3

DiáLoGos com Reggio Emitta ay

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Epi
UG
SM à
O
my É. em primeiro plano as relações e os encontros, o diálogo e a
negociação, a reflexão e o pensamento crítico; ultrapassar os
PR

limites das disciplinas e perspectivas, substituir posições de


ou isso ou aquilo por abertura com e/também; e entender
ww

a natureza dinâmica e contextualizada da prática pedagóei-


ca, que problematiza a ideia de um “programa” transferível
(Dahlberg et al., 1999: 122).

ESPERANÇA DE RENOVAÇÃO DA POLÍTICA RADICAL

Para nós, Reggio Emilia não apenas revela as potencialida-


des das crianças, mas também sugere algumas direções para
a renovação da prática democrática e da política radical num
mundo pós-comunista. A origem dos serviços para a primei
ra infância em Reggio repousa numa longa tradição de vida
coletiva em comunidades coesas, que produz normas de rec
procidade e confiança, e redes de engajamento civil, que Put-
fértil, cres
solo fértil,
nam (1993) chamou de “capital social”. Nesse solo
ceu
ceu e e floresceu uruma vigorosa política deé esquerda.
esquerda. Como
Como diz
na entrevista que ue fin finaliza este livro, “As raizes dee nos”
X Carlana nossas
ideias se encontram nos ideiais socialistas que tomaram con
ta de nossa região da Itá a no final do século XIX e início
do XX” (p.318). Com base em origens políticas semelhante
também surgiram outras experiências locais inovadoras, Pº
norte e no centro da Itália, no campo da educação da pr |
meira infância, sendo Reggio, como Carla prontamente e
conhece, “um dos muitos lugares que expressam a vitalidade |
a riqueza e a qualidade da pesquisa pedagógica italiana fin
os corajosos investimentos das municipalidades nos serY a
para a primeira infância” (p.187), Mesmo assim, como Car?

a
Digitalizado com CamScanner
sugere, apesar da intensa troca e do compartilhamento, dife-
renças importantes surgiram entre as inúmeras experiências
locais, produzindo identidades distintas.
As políticas de esquerda, porém, não foram os únicos
ingredientes, Reggio também simboliza a história de uma
mulher, o produto da participação ativa de uma mulher na
luta pela melhoria não somente de seus direitos, mas dos (9)
direitos das crianças; e a história da determinação em im-
pedir o ressurgimento do de quebrar
fascismo e do desejo
R

“o monopólio da Igreja Católica na educação das crianças


LT

pequenas, Em seguida, Reggio exibiu rápida disposição


para estabelecer uma nova forma de colaboração com a
Igreja e para criticar a educação secular. Malaguzzi (1999)
foi contundente a respeito das escolas públicas, “apegadas
a sua indiferença burra e intolerável em relação às crian-
ças, a sua atenção obsequiosa e oportunista em relação às
autoridades, e a sua esperteza interesseira, a empurrar co:
nhecimentos pré-moldados”. Em vez disso, ele e seus cole-
gas desejavam reconhecer o direito de cada criança de ser
protagonista e elevar a curiosidade espontânea das crian-
ças ao nível mais alto; além de criar u amigável
onde crianças, famílias e educadores se sentissem à vonta-
de — “dar um significado humano, digno e civil à existên-
cia” (ibid).
E a -
A contribuição de Reggio para a renovação da política
radical se dá de duas maneiras. Primeiro, moldam-se no-
vas relações de interdependência entre individualidade e
coletividade, diferença e solidariedade. Todos nós somos
diferentes, todos indivíduos: porém, cada individualidade,
igualmente importante, e mesmo vital, “para o futuro da

Diátogos com Regcio Emíuia | 33

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própria humanidade: o relacionamento do indivíduo Ep
outras pessoas, entre o Eu e o Outro” (p.250). Em Reggio,
o indivíduo jamais pode assumir a aparência liberal de su-
Jeito autônomo e só adquire subjetividade completa — pela
construção como sujeito único e não passível de duplicação
— na sua relação com os outros: “E posso descobrir essa
individualidade porque você existe. Obrigada! E porque so-
mos interdependentes” (p.333). Pela importância que atri-
bui às relações, Reggio nos leva a escolher “entre sociedades
orientadas para a competição entre os indivíduos e socieda-
des baseadas na construção do indivíduo com os outros,
do
indivíduo que busca os outros. (...) [Uma] escolha
política e
econômica que pode influenciar todo o sistema educacional
e também o sistema social” (p.251).
Segundo, eles desafiaram a racionalidade
calculista do
neoliberalismo e a necessidade de renovação
dos serviços
públicos baseada em práticas administrativas,
na operação
de mercados e na racionalidade dos investimentos.
Eles
perceberam que tal “pensamento econômico”
entrava em
conflito com valores que lhes são preciosos, em
especial o
diálogo e as relações de cooperação — e não de competição
—, não apenas entre indivíduos, mas entre escolas muni.
cipais que funcionam como uma rede. Eles acreditam na
importância da escolha nos serviços públicos, mas escolha
como decisão política e ética, feita na relação com os ou-
tros, e não apenas como decisão tomada por consumidores
individuais.

34

Digitalizado com CamScanner


to cujo tema central não é a humanidade, mas suas relações
com o mundo, seu estar no mundo, seu sentimento de inter-
dependência com aquilo que está fora dela mesma. Assim, à
pedagogia implica escolhas, e escolher (...) representa ter a co
ragem das próprias dúvidas, incertezas, quer dizer participar
de alguma coisa pela qual se assume responsabilidade (p.304).

, À primeira elis fundamental dessas escolhas está ligada à [HH /


resposta da questa qual é a nossa imagem da criança:
End gs , . x e > nn

sobre a qual falaremos mais adiante.


Os serviços para a primeira infância em Reggio Emi-
lia insistem na importância de enxergar os serviços públi-
cos como responsabilidade coletiva, e nos oferecem uma
compreensão da escola como, antes e acima de tudo,u
espaço público e um local para a práticalética Eae
a . me me E

— um lugar de encontro, interação e conexao entre ci-


TO e

dadãos de uma comunidade, um lugar em que as rela-


ções combinam um imenso respeito pela alteridade, pela
diferença, com profundo senso de responsabilidade em
relação ao outro, um lugar de intensa interdependência.
Em seu trabalho, os educadores de Reggio lutaram para
expandir o potencial emancipador da democracia, dando
a cada criança a possibilidade de agir como cidadão ativo
e a oportunidade de ter uma vida boa numa comunidade
democrática.
Desse modo, a política radical se integra por completo
com a política democrática. A( participação) das crianças Pele.
dos pais, dos ed da comunidade mais amp
oral hara a experiência educativa: essa
participação não representa uma forma mais efetiva de
e aaanei

Diátogos com Reggio EmiLia [35

vga emages ss ms
| ' RR AM
Digitalizado com CamScanner
controle, por intermédio
da “educação dos pais”, para que
cles adotem ia determinal erspectiva Ghia, mas é “a
participação ativa, direta e explíci o)
projeto educativo” (p.60) e a construção de significado —
uma ideia extraída da repetição contínua que Carla faz da
palavra “protagonista”, para descrever todos os participan-
tes do projeto de Reggio. Por meio da participação, as esco-
Jas municipais têm propiciado novos locais para a política
democrática, ao mesmo tempo que expandem o escopo da
política para novas áreas.
be ) A abordagem socioconstrucionista significa que Reggio
totiih hi Emilia tem se engajado náquilo que poderia ser chamado
“ Am uma política de epistem les contestaram a ideia
os
moderna do conhecimento como representação objeti-
E d va do mundo real, em benefício do conhecimento como
Rd “uma interpretação da realidade que está em constante
evolução” (p.227) e que é socialmente construída por cada
um de nós na relação com os outros. Para Carla e seus co-
| legas,
ta,

o aprendizado não acontece por transmissão ou reprodução.


é É um processo de construção, no qual cada indivíduo constrói
Wim as | Para si mesmo as razões, os “porquês”, os significados das coi-
k as | sas, dos outros, da natureza, dos acontecimentos, da realidade
9j e da vida. O processo de aprendizado é certamente individual,
pp* mas, como as razões, as explicações, as interpretações e os
a(o , | significados dos outros nos são indispensáveis para construir-
k | mos nosso conhecimento,é também um processo de relações
| | — um processo de construção social, Portanto, consideramos
[9 conhecimento um processo de construção realizado pelo

36: Camisa Rynaibi

Digitalizado com CamScanner


indivíduo na relação com os outros, um verdadeiro ato de co
construção (p.226).

p Isso também significou que eles problematizaram a ideia


de objetivos predeterminados, abrindo-se para a explora- |
ção de formas alternativas e marginalizadas de pensar e 4
atribuir significação ao mundo, nas quais a/subjetividade| a
jofespanto(e afabertura às dúvidas Sãolvalores im-)
(portantes.)Em nossa opinião, aqui têm especial relevância
as ideias cibernéticas de Bateson acerca dos sistemas autor-
regulados num processo de contínua mudança recíproca
(Bateson, 1972); a visão de Dewey de que o aprendizado é
um processo ativo e não uma transmissão de conhecimen-
to pré-moldado; e os pensamentos dos biólogos chilenos
Maturana e Varela (2001) sobre o “linguagear”.
Assim como os fenomenologistas e outros, Maturana
que nos
sugerem
e Varela questionam a objetividade. Eles
relacionamos com o mundo como se pudéssemos ser obje-
tivos, mas, ao mesmo tempo, percebemos queljamais ser
fmos objetivos) O que o observador faz com a linguagem,
como ser humano que explica a sua experiência, não pode
se referir a nada considerado independente daquilo que o
observador faz. Você é sempre parte do contexto,
um par-
ticipante do sistema que está observando e interpretando; 6)
o mundo no qual vivemos é sempre nossa construção —
inevitavelmente, Nós somos constituídos pela linguagem, e
isso quer dizer que(não
] podemos viver fora
atitido VISEI da linguagem:)
JOIA Ga ADguaseii
“Nossa vida acontece, nossa experiência acontece, os mun-
dos em que vivemos acontecem à medida que os levamos
adiante em nossas explanações” (Maturana, 1991: 49), Uma
j

DiáLocos com Reggio EMiLIA | 37

MT a
Digitalizado com CamScanner
1
mudança é proposta: da linguagem como algo abstrato, um
nome, para a linguagem como um ato, um verbo. A cons-
“TITura

trução da linguagem leva adiante um mundo criado com


n

os outros no ato de coexistência, que faz surgir aquilo que


é humano; e todos os atos humanos possuem um caráter
"TUTTI

ético, porque são atos de constituição do mundo humano;


“noção de ética tem a ver com a nossa preocupação a res-
peito das consequências de nossas ações na vida de outros
seres humanos que aceitamos em coexistência conosco”
(ibid.: 43).
O constante questionamento de Reggio provocou uma
0) olítica de educação e aprendizado. A adoção de uma “pe-
dagogia da escuta”, mencionada com bastante frequên-
cia por Carla e discutida mais adiante, contesta uma ideia
cada vez mais abrangente da educação como transmissão
e reprodução; enquanto o processo de documentação pe-
dagógica, que também aparece bastante no trabalho de
Carla e que será debatido a seguir, propicia meios para a
participação democrática na discussão e na avaliação da
prática pedagógica.
Por meio da política de educação e aprendizado de Reg-
gio, o significado da escola passa a demandar uma atenção
dE Sri j
ça] Jo
(adi democrática. Como argumenta Carla, a escola é um lugar
Â

wa L
!i
de transmissão e de criação de cultura e valores. É o lugar que
Ai
'
É

ks reconhece as crianças como cidadãs. É um lugar de possi-


Tue
àond
4
bilidades, onde o conhecimento e a identidade são cocons-
3
4

| truídos e os processos de aprendizado são investigados,


h
sempre em relação com os outros — um fórum, um local
El de encontro, um espaço de construção, uma oficina e um
laboratório permanente são apenas algumas das metáforas

38 | CagLA RINALDI

Digitalizado com CamScanner


usadas por Carla. E é também o lugar que é, ao mesmo
tempo, uma comunidade em si mesma e parte integrante
de uma comunidade maior: segundo Bruner, uma escola de A

Reggio “é um tipo especial de lugar, no qual jovens seres |


humanos são convidados a expandir mentes, sensibilidades |
e sensos de pertencimento a uma comunidade mais ampla
|
(...) é uma comunidade de aprendizado, onde mente e sen-
|
sibilidade são compartilhadas. É um lugar de aprendizado
da
comum sobre o mundo real e sobre os mundos possíveis
imaginação” (1998).
política da 9
Por fim, porém não menos importante, uma
ro-
infância ve m sendo estimulada pela simples, porém vigo
usa
sa, questão à à nos referimos e que alguns conside-
emda «
ram a/marca registrada He Reggio;Jqual a sua imag
carregada de
criança? Para eles, a infância é uma construção
a
valor, à qual prestaram atenção de forma séria, de modo
abrir novas possibilidades. Qu, como disse Carla, “afnfância)
não existe, nós à criamos na sociedade, como tema públi-
co. Trata-se de uma construção social, política e histórica”.
Isso nos faz pensar no trabalho de Michel Foucault sobre
como conhecimento e poder se entrelaçam nos discursos
dominantes, um legitimando o outro — e sobre como, em
Reggio, essa relação é reconhecida, confrontada e descons-
truída (ver Dahlberg et al., 1999, para uma discussão mais
avançada).
Em Reggio, a resposta para essa questão é a da “criança (x > j A
tica”, uma imagem baseada na compreensão de que todas | is
o crianças são inteligentes, o que quer dizer que todas as Uvinfa
crianças atribuem significado ao mundo, num processo | 1
constante de construção de conhecimento, identidade e va-

DiáLoGos com Reggio EmtLia | 39

Digitalizado com CamScanner


Jores. Seguindo essa construção social, luta-se para mostras
as potencialidades de cada criança e para dar a cada uma
delas o direito democrático de ser escutada e de ser reco.
| nhecida como cidadã na comunidade. Essa foi uma men.
| sagem muito forte, uma provocação, posto que as crianças
o | pequenas e suas vidas não costumam figurar sempre no
| discurso público; e quando o fazem, são prontamente des.
|
valorizadas e marginalizadas como as “pobres”, “frágeis”
| ou “inocentes” crianças, das quais se fala em termos de
| uma situação de deficit, imaturidade, fragilidade ou impo-
| tência.

A sistir na ideia de que todas as crianças são competentese

, “-. nas para perseverar num acordo melhor para as crianças,


mas também para olhá-las de uma perspectiva diferente,
reelaborar a problématique e redefinir as questões críticas.
As políticas de infância de Reggio desafiaram nossos discur-
sos dominantes e nossas concepções consagradas acerca da
criança, por exemplo, as categorias da psicologia desenvol-
[ vimentista que dominaram nossa ideia daquilo que a crian-
ça é, pode e deve ser, substituindo a política por supostas
verdades científicas.
A experiência de Reggio surgiu daquilo que poderia ser
chamado de política tradicional, isto é, as escolas munid-
pais e seu trabalho pedagógico foram criados e mantidos
por uma autoridade local, eleita pelos cidadãos adultos de
Reggio; é um exemplo de como essa política ainda pode
ter um papel relevante a desempenhar em uma experimen-
tação inovadora. Os anos finais do século XX, no entanto,

40 | Capia RINALD!

EE SS Se entr e oem mc
Digitalizado com CamScanner
testemunharam a expansão de outros típos de formas políti-
cas, que Melucci (1989) designou de novos movimentos so-
ciais na arena pública, Exemplos bem conhecidos incluem o
movimento pela paz, o movimento das mulheres, o movi-
mento ambientalista e o movimento contrário ao neolibe-
ralismo global.
Essas manifestações se abrem para a ampliação da demo-
cracia nos tempos pós-modernos — apelando para o engaja-
mento, a ação coletiva e a proliferação de espaços públicos ou
fóruns; em síntese, uma nova cultura política. Tais movimen-
tos, que quase sempre ultrapassam as fronteiras dos Estados
nacionais, têm contribuído para fazer avançar novos temas
políticos na agenda de discussões e têm desafiado formas es-
tabelecidas de ação política e organização. Eles questionam
o significado de conceitos, como política e democracia, nos
tempos atuais. Por essa perspectiva, Reggio pode ser conside-
rada como um movimento social pela infância, e suas escolas,
novos espaços públicos para a prática democrática.

ESCOLAS COMO ESPAÇOS DE PRÁTICA ÉTICA

Como já sugerimos, Reggio reafirma a Éscolay antes € aci-


ma de tudo,
consideramos a política, mas onde entra a ética aqui? Em
parte, na alta prioridade concedida aos valores. Em Reggio, YLyus

tais como amizade, solidariedade, respeito pelas diferenças,

“Todavia, para entender o lugar da ética em Reggio, tam: Ah tp


bém devemos perguntar:|qual ética? Para nós, a pedagogia d

DiáLoGos com Regio EMiLia | 41


Pai,
>

BAGS
Digitalizado com CamScanner
fla escuta de Reggio oferece uma indicação importante da
resposta a essa pergunta. No nosso primeiro livro da série
(Dahlberg e Moss, 2005), argumentamos que o escutar ativo
das teorias das crianças e de suas claborações de significados
se inscreve em uma abordagem ética particular: o conceito
deargumenta
EmmanuelqueLevinas da(ética como um encontro) Levinas
existe uma forte tradição filosófica no Oci-
dente que concede primazia ao saber. Por meio desse desejo
) de saber, agarramos o outro e o mimetizamos. Um exem-
plo disso são os conceitos e classificações, tais como os está-
gios de desenvolvimento, que nos dão, como educadores e
pesquisadores, possibilidades de desfrutar e “compreender
a criança. Aprisionadas pelo desejo de saber, a alteridade de-
saparece e a singularidade e a novidade são excluídas, sendo
| substituídas pelo “totalitarismo do mesmo”. A ética do en-
contro se opõe a esse aprisionamento por meio do respeito
pela absoluta alteridade do Outro.
A escuta também conecta Reggio à poderosa visão éti-
ca que Bill Readings esquematizou no seu livro final — The
University of Ruins —, sobre como as universidades e outras
instituições para educação e aprendizado têm a possibilidade
de se transformar em “lugares de obrigação” e “espaços de
práticas éticas”, em vez dos “locais para transmissão do co
nhecimento científico”. Pois, como ele argumenta,

aten ção
2 condição da prática pedagógica é “uma infinita
ao outro” (...) e a educação é a elaboração da alteri dade 0
. . a 20
x
Fazer justiç
Z
pensamento. (...) [E] Ouvir o Pensamen to (...)
Ê Pensamento, escutar nossos interlocutores, signi fica tentar
e fazé ;
ouvir aquilo que não pode ser dito, mas que tenta S

Digitalizado com CamScanner


ouvir. (...) É pensar um ao lado do outro e juntos, para ex-
plorar uma rede aberta de obrigação que guarda a questão
do significado aberta como um locus de debate (Readings,
1996: 161, 162, 165; grifo no original).

Uma “pedagogia da escuta” — escuta do pensamento —


exemplifica para nós uma ética de um encontro edificado
sobre a receptividade e a hospitalidade ao Outro — uma
abertura para a diferença do Outro, para a vinda do Outro.
Ela envolve uma relação ética de abertura ao Outro, tentan-
do escutar o Outro em sua própria posição e experiência,
sem tratar o Outro como igual. As implicações para a edu-
cação são revolucionárias.
O trabalho com a ética de um encontro na pedagogia
da escuta requer que o educador pense no Outro como
alguém que ele não pode aprisionar, e que desafia todo
o cenário da pedagogia. Pois a pedagogia do escutar re-
presenta ouvir o pensamento — ideias e teorias, questões
e respostas de crianças e adultos; significa tratar o pen-
samento de forma séria e respeitosa; significa esforçar-se
para extrair sentido daquilo que é dito, sem noções pre-
concebidas sobre o que é certo e apropriado. A pedagogia
da escuta trata o saber como algo construído, em pers-
pectiva e provisório, e não a transmissão de um corpo de
conhecimentos que transforma o Outro num igual. Para
cada questão, é preciso abrir-se para a Alteridade — rece-
ber abertamente o estranho, o que significa uma afirma-
ção, um sim, sim, sim ao Outro, o estranho. Ou mesmo
mais que isso, uma afirmação da Alteridade da existência
(Derrida, 2004).

DiáLocos com Regio EMILtA | 43

Digitalizado com CamScanner


. |

Na pedagogia da escuta, as escolas municipais de Reg-


gio têm buscado as aspirações de seus fundadores, cuja ex-
periência no fascismo “ensinou-lhes que as pessoas que se
conformaram e obedeceram eram perigosas, e que para a
construção de uma nova sociedade era imperativo salva-
guardar e transmitir essa lição, assim como preservar a vi-
são de que as crianças podem pensar e agir por si próprias”
(Dahlberg et al., 1999: 12). Desse modo, ética e política ca-
minham juntas numa abordagem da educação que rejeita os
vínculos regulatórios das classificações desenvolvimentistas
e a educação como transmissão e resultados normativos, e
que enfatiza a importância da alteridade e da diferença, da
conexão e das relações.

O PODER DA DOCUMENTAÇÃO PEDAGÓGICA

À prática da documentação pedagógica percorre todo o


trabalho de Reggio Emilia, como será visto nos capítulos
seguintes. Dito de maneira mais simplificada, a documen-
tação pedagógica é um processo que torna o trabalho pe-
dagógico (ou outro) visível e passível de interpretação, diá-
logo. confronto (argumentação) e compreensão. Incorporz
o valor da subjetividade, do fato de que não existe ponto
de vista objetivo capaz de fazer com que uma observação
seja neutra, mas, ao mesmo tempo, insiste na necessidad:
de uma rigorosa subjetividade, tornando as perspectivas é
interpretações explícitas e contestáveis, por meio da docu-
mentação da relação com Os outros, sejam crianças, pais
educadores ou outros cidadãos: a documentação estimu':
o conflito de ideias e a argumentação, não uma cômoc:

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busca de consenso; é uma forma de capturar as subjetivi-
dades que interagem dentro de um grupo. A valorização da
subjetividade também significa que o sujeito deve assumir
responsabilidades pelo próprio ponto de vista; não há como
se esconder atrás de uma presumida objetividade científica
ou de critérios propostos por especialistas.
De acordo com Carla, a documentação pedagógica é
um instrumento para vários fins. Visualiza os processos de
aprendizado das crianças, a busca pelo sentido das coisas €
as formas de construir o conhecimento. Permite a conexão
entre teoria e prática, no trabalho do dia a dia. É um meio
para o desenvolvimento profissional do educador, ao qual
Reggio atribui grande importância, em especial pelo fato de
o professor ser entendido e tratado tanto como pesquisador
quanto como aprendiz. Promove a ideia de que a escola é
um lugar de prática política democrática, que permite aos
cidadãos, jovens e velhos, se envolver e debater assuntos
relevantes: infância, cuidado, educação, conhecimento, e
assim por diante. É uma maneira de abrir um espaço pú-
blico ou fórum numa sociedade civil, no qual os discursos
dominantes e a forma pela qual construímos nós mesmos
como sujeitos — como nos conduzimos — por meio desses
discursos podem ser percebidos e problematizados.
É ainda um método de aferir e avaliar, “um “anticorpo”
extremamente poderoso contra a proliferação de ferramen-
tas de aferição e avaliação cada vez mais anônimas, descon-
textualizadas e só aparentemente objetivas e democráticas”
(p.119). A estipulação de escalas e ferramentas normativas
semelhantes que servem para avaliar, com base num con-
junto de critérios tidos como estáveis, uniformes e ob-

DráLoGos com ReGGio EmiLia | 45

Tiro apr Es Fa Revel


Cr e ludinda
VR od mta pe, tu " aa

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jetivos, é uma “linguagem de avaliação” (a linguagem da
“qualidade e excelência”). A documentação pedagógica re-
presenta outra linguagem (aquilo que chamamos, em outro
texto, de linguagem da “atribuição de significado” [Dahl
berg et al., 19997): nela, presume-se que devemos assumir
responsabilidade pelos julgamentos que fazemos, com base
no confronto com a prática atual, esforçando-nos para in-
terpretar e atribuir sentido ao que vemos, e relacionando
tudo isso aos valores que consideramos importantes — e
sempre na relação com os outros, no diálogo com nossos
companheiros cidadãos, como parte daquele coletivo que
assumiu responsabilidade por essa prática, como parte de
um verdadeiro ato de democracia.

ALTERIDADE, DISSENSO E PROVOCAÇÃO

Podemos resumir nossa discussão precedente dizendo


que a importância de Reggio, para nós, reside em sua di-
ferença, sua alteridade, sua distinção. Isso não quer dizer
que seja desconectada ou autônoma, pois, como vimos, O
pensamento e a prática de Reggio desenvolveram-se sem-
pre em relação com o mundo mais amplo, coconstruindo
seu conhecimento, sua identidade e seus valores com mui
tas disciplinas, lugares e pessoas. Todavia, o resultado des
sa coconstrução tem algo de particular, uma singularidade
ativa, Poderíamos ir além e dizer que Reggio é uma ilha de
dissenso, uma provocação ao discurso cada vez mais dom
nante e opressivo acerca da primeira infância, em particu-
lar, e da educação em geral, discurso amplamente expresso
crer eme

em língua inglesa e altamente instrumental, que enxerga as


mem
meme
quere

46 | Carta RINALDI!
meme
RR

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escolas como locais onde
se exerce con trole sobr
ças, por meio da aplicação de e as crian-
tecn ologias destinadas
duzir resultados predetermi a pro-
nados € normativos.
Ao fazer

escrito
por Nikolas Rose
como a “introdução de
uma atitude crítica em
relação às

dO de que existe
a e deve existir
uma distin-
do
aquele que Prat
e

Mais, ica
.
e aquele que
pel
; teoriza. .
Além
cadores
ainda outra di
stinção,

DiáLogos com
ReGcio Ema
| 47

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entre o profissional na sala e o pesquisador na univers.
dade. Segundo seus argumentos, a pesquisa pode c dev
acontecer tanto na sala, realizada pelos educadores, quan:
to na universidade, pelos “acadêmicos”: “Nesse sentido, a
palavra pesquisa sai — ou melhor, exige que saia — dos
laboratórios científicos, deixando de ser privilégio de pou.
cos (nas universidades e em outros locais designados) para
se tornar a postura, a atitude com a qual os educadores se
acercam do senso e abordam o sentido e o significado da
vida” (p.265).
Nesse ponto, Reggio rejeita o pensamento dualista —
mas também em todas as demais questões. Por exemplo,
as velhas discussões sobre a importância ou não de se dar
mais atenção ao processo ou ao resultado tornam-se sem
sentido no discurso de Reggio. É possível dividir a vida des-
sa maneira? Não estaríamos sempre no meio, sempre em
transformação? Como podemos diferenciar sem fazer um:
fragmentação artificial da vida?
Antes de terminar esta seção, queremos fazer mais duas
provocações que têm especial significação para nós e que
aparecem de modo particular em nosso diálogo com Carla
no final deste livro. Primeiro, dúvida, incerteza e sentimen
tos de crise são vistos como recursos e qualidades para s:
valorizar e se oferecer, condições para abrir-se e escutar «
requisitos para a criação de novos pensamentos e perspecu
vas. O outro lado dessa moeda é ser “contra toda pedagog
cujo objetivo é, de certa forma, predizer o resultado, que :
um tipo de prognóstico que predetermina o resultado e s:
torna uma espécie de prisão para a criança, para o educ:
dor e para o ser humano” (p.322). Nada poderia estar ma»

sms é Tera + ru
IoBEILA FRUIMNALIA

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distante de grande parte da atual pesquisa e
política sobre
a primeira infância, que luta em alcanç
ar a segurança por
meio da busca e da aplicação de te cnolog
ias, que por sua
vez asseguram resultados predef
inidos e excluem a possibi-
lidade de se surpreender e se pertur
bar.
Segundo, há o reconhe ciment
o de que a ideia de ed
ção de Reggio requer um ce uca-
rto tempo, e não ap
certa quantidade de temp enas uma
o, de modo a não ser
pelo tempo”, mas també “governado
m uma concepção
não é “o tempo de de tempo que
produção”. Pesqui
talvez tentem defini sadores PoOsitivista
r quanto tempo s
Sar EM instituições as cr iancas devem pa
para imei s-
ra ij
de se ge-

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acompanhada pelos conferencistas da cidade: nesse mo:
mento, já ultrapassou cem exibições em mais de vinte paí.
ses. Existem “redes de Reggio” em treze países, incluindo
Austrália, Estados Unidos, Coreia, Reino Unido, Alemanha,
Holanda e os cinco países nórdicos. Por que tanto interesse?
Como podemos entender esse exemplo de “glocalização”
-— uma experiência local com apelo global? O que dizer do
futuro?
Esse apelo, ao menos em parte, vem da alteridade de
Reggio e da provocação que ela faz. Acreditamos que o in-
teresse mundial por Reggio reflete uma reação ao discurso
cada vez mais dominante sobre a educação na primeira in-
fância, ao qual já nos referimos. Esse discurso está repleto
de valores neoliberais altamente instrumentais e calculistas,
e também hipóteses e práticas administrativas. É um discur-
so que trata Os serviços para a primeira infância como es-
paços para aplicação de “tecnologias humanas” destinadas
a produzir resultados predefinidos e normativos, a fim de
melhor controlar as crianças para que sirvam como agentes
redentores, que nos salvarão das incertezas e desigualdades
do mundo — uma solução técnica que nos impedirá de con-
frontar os problemas políticos e éticos que estão arruinando
nosso mundo €e os povos.
rage [7 psrí
Bow ER

Regeio fala para aqueles que anseiam por alguma coisa


diferente disso, por outro pertencimento. Ela dá conforto
EEE

e esperança ao ser diferente, mostrando a possibilidade de


valores distintos, relações distintas e modos distintos de vi
ver. Por exemplo, aqueles que visitam Reggio Emilia geral
mente voltam para casa com um forte sentimento de que
as crianças, os pais e os políticos são realmente participan

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tes da escola, de que Reggio tem conseguido envolvê-los e
criado interesse e engajamento participativo. A documen-
tação pedagógica tem sido uma ferramenta e um media-
dor fantásticos na criação desse interesse. Em Reggio, eles
conseguiram tornar as escolas infantis importantes em um
contexto democrático, algo que se contrapõe à apatia e ao
desinteresse, que costumam ser as consequências da sensa-
ção de não ser ouvido nem levado a sério — “Não importa
o que eu faço. As questões importantes são sempre decidi-
das pelos outros.”
Reggio proporciona um senso de pertencimento a pes-
soas que anseiam por outros valores, outras relações e ou-
tros modos de vida. Além disso, ainda que em pequena
escala, desgasta a confiança do discurso dominante, seu
pensamento crítico faz titubear, nesse discurso, a narrativa
arrogante sobre necessidade e verdade absoluta. Ao fazer
isso, nos dá algo muito precioso e bastante escasso hoje em
dia: esperança.
Para muitos, o futuro parece inimaginável, catastró-
fico ou apenas deprimente. Não existem pensamentos e
energias utópicos para nos guiar, para nos dar algo pelo
qual batalhar, e para nos propiciar realizações ocasionais.
Sem uma ideia do futuro que não seja nem uma continua-
ção do presente nem uma catástrofe, a política se reduz a
meros argumentos sobre a melhor forma de administrar
o status quo. O pensamento utópico, ao contrário, provoca
e estimula a crítica radical daquilo que existe e pode dar
uma direção às mudanças futuras, por meio da explora-
ção da imaginação de novas possibilidades humanas que
nos ajudem a reinventar o futuro. Isso desconstrói o pre-

Diárocos com REGGIO EmILIA | sr

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sente e reconstrói o futuro. E faz uma provocação à poli.
tica e à ética. por meio do ato de pensar diferentemente
possibilitando, assim, a construção de novos horizontes
de possibilidades e novas direções para as mudanças que
virão.
No entanto, o pensamento utópico não é suficiente parz
propiciar uma transformação radical. São necessários espa-
ços que permitam ao pensamento acontecer e à vontaé Ge
agir, espaços onde exista abertura à experimentação. pes
quisa e reflexão contínua, crítica e argumentação — e àul
trapassagem das fronteiras. Desse modo. o pensamento € z
ação utópicos podem estar em constante relação e sujeitos — mm.

à revisão, à luz da experiência, do aprendizado e do diálo


a 070

Mas esses espaços não precisam existir em grande escala


pci ser Eis

no pensamento e na ação utópicos, por meio de um pro iii jãVU

cesso que pode ser chamado de “um projeto cultural


de infância”. O que aconteceu, porém, foi que esse pro
jeto local se dispersou geograficamente e se transformosz

'
muma rede giobal — ele construiu uma “nova geogrzê
- -


=- -=-

|
culmral”. segundo Carla Essa rede é uma abermra em &
ção à possibilidade de explorar novas formas de capzo
dade humana.
Em nosso diálogo no final deste livro, Carla prefere fiz
de Reggio mais como um sonho do que como uma utops mat mm mo a q

+“ -

“poís z tzmopiz é algo mm ito bom, m as perft 1tO, € OS son&es


são possíveis rmuma noíte” aaa . Isso é uma adveriênc:
” - -

BREICxIVES € incontestável, com todos os riscos de quer

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“solução final”. Para nós, é necessária uma relação perma-
nente entre pensamento e ação utópicos. o que mantém a
utopia “em seu eixo”, sujeita à revisão à luz da experiência,
do aprendizado e do diálogo — a utopia como sonho pro-
visório, talvez.
Reggio não é um modelo, um programa, uma “boa prá-
tica” ou um marco de referência (menos ainda se “Reggio é
uma interpretação de Reggio”). As escolas municipais e seu
trabalho apresentam um contexto particular, uma história
particular e escolhas políticas e éticas particulares. A rela-
cão de Reggio com os outros, portanto, não é comercial, de
exportação de um produto. Ela é, como sublinhamos, uma
relação de esperança, uma utopia ou um sonho, ou ambos.
Ela propicia um sentimento de pertencimento e é um forte
estímulo para aqueles que procuram valores diferentes, su-
gerindo modos de pensar para aqueles que se encontram à
sua volta.
Reggio, no entanto, nas palavras de Carla, é “um lugar
ge encontro e diálogo, e não apenas com Reggio, mas com
muitos protagonistas relacionados. Reggio, assim, abre es-
paço para que as pessoas dialoguem, oferece uma desculpa
para isso” (p.347). Por intermédio desse dialogismo, per-
míte que as pessoas entrem no processo de aprendizado,
um processo de coconstrução do próprio conhecimento,
dos próprios valores e da própria identidade; um processo
que tem relação com Reggio, mas no qual é possível, para
os protFagoniaças, aqueles que dialogam com Reggio, reter
a suz “alteridade” sem que este tente aprisioná-los e trans-
forrná-los num ígual; acima de tudo, um processo, como
nos lembra a citação que abre este capítulo, que promete

DIÁLoGos com Proc EMILIA 5


pires
pa

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transformação e o risco (ou a possibilidade) de se perder.
sem o controle sobre a direção em que as coisas vão.
A questão para nós, sobre a qual Carla fala em diversas
passagens, como, por exemplo, ao discutir sobre currículo,
é se algumas dessas pessoas que entram em diálogo com
Reggio podem. sem querer, tentar aprisionar essa experién.
cia. Sem trabalhar com a ética do encontro, sem escutar
clas podem acabar negando a alteridade de Reggio. E, em
vez disso. podem fazer com que se torne algo que estão ha.
brruados a conhecer, aplicando sobre essa experiência sin-
gular os próprios conceitos e sistemas de conhecimento e
de valores — “ah, sim, é exatamente o que fazemos, só que
um pouquinho melhor”. “qual é a evidência de seus resulta.
dos?”, “que tipo de currículo vocês usam?”.
Hoje, existe uma consciência crescente a respeito da ne-
cessidade de se manter e aumentar a biodiversidade. diante
das tendências globais que ameaçam nosso meio ambiente
material numa escala sem precedentes. No mesmo senti.
do, necessitamos da diversidade sociocultural como valor é
como escape do interesse próprio, a fim de garantir nosso
futuro. Reggio é um exemplo importante dessa diversidade.
e precisa de proteção frente tanto aos seus inimigos — os
advogados da racionalidade neoliberal e da prática adm
nístrativa — quanto aos seus amigos, que podem sufocé-lo
de amor. Nós também temos necessidade de mais Repggros
não no sentido de meras duplicações, mas de outras comu
nidades que se preparem para embarcar em projetos cultu
rais locais para a infância, a fim de combinar pensamento é
ação utópicos, de sonhar com o futuro, de esperar por um
mundo melhor.

(-APIA MImaL Em
= E ea a

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O QUE VEM A SEGUIR?

O restante do livro dá voz a Carla Rinaldi. Ela fez uma sele-


ção de suas apresentações ao longo dos últimos vinte anos
— alguns textos, mas, na maior parte dos casos, discursos.
Há também três entrevistas, a terceira das quais ao final do
livro foi feita por nós dois, e Carla insistiu (de acordo com
sua perspectiva) em chamá-la de diálogo. Algumas apre-
sentações já tinham sido publicadas em inglês, mas não a
maioria.
Fazer uma seleção de seu trabalho passado, diz Carla, foi
compensador, mas também difícil, algumas vezes: “porque
é complicado para mim reler o que escrevi sem modificá-
Jo, tenho sempre uma sensação de insatisfação e incom-
pletude” (comunicação pessoal). Para nós, como editores,
porém, parece importante mostrar esses documentos sem
alterações, como traços do passado, pois eles permitem
compreender o pensamento de Carla durante um período
de tempo, tanto sobre as mudanças de ênfase quanto sobre
as continuidades de temas e valores. Ela também escreveu,
especialmente para este livro, introduções que oferecem ao
leitor percepções sobre o contexto particular de cada artigo,
discurso ou entrevista.
O leitor deve sempre se lembrar de que a voz de Carla
é italiana. Uma parte do trabalho que segue foi apresenta-
da originalmente por ela em inglês. Nas duas formas, Car-
la está trabalhando e pensando por intermédio da língua
italiana, Em alguns casos, isso representa problemas parti-
culares para a tradução, posto que algumas palavras e ter-
mos não se transpõem facilmente de um idioma para outro.

DiátoGos com Reggio EMILIA | 55

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Mas a linguagem e a cultura estão intimamente conectadas
e diferentes culturas possuem diferentes modos de pensar
sobre o mundo e de conceituá-lo. Talvez o leitor devesse se
preparar para, em algumas ocasiões, lutar com o desconhe-
cido e resistir rapidamente à tentação de equipará-lo ao que
é familiar.
Diálogos com Reggio Emilia é o título do livro, e diálogo é
uma relação e um valor que percorre, como o fio de Ariad-
ne, todos Os textos que se seguem, e também o trabalho
pedagógico das escolas municipais de Reggio. Esperamos
que este livro possa inspirar, no futuro, um diálogo ainda
mais amplo e profundo com Reggio. Um diálogo que per-
mita abrir um processo de transformação rumo a uma nova
paisagem social, cultural e política, na qual possamos en-
contrar novas possibilidades para a infância e a paternidade,
para a educação e as escolas, para as famílias e as comunida-
des — e, como diz Carla, isso é tanto um risco quanto uma
/ possibilidade.

; Gunilla Dahlberg e Peter Moss

56 | Carma RiNALDI

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1
FICAR DO LADO DAS CRIANÇAS
À SABEDORIA DOS EDUCADORES (1984)

ESTE TEXTO FOI ESCRITO PARA A conferência nacional do Grup-


po Nazionale Nidi, ocorrida em Veneza, em 1984. Para uma
melhor compreensão das razões desta fala e da que se se-
gue, em especial dos temas tratados, tais como relaciona-
mentos, comunicação e participação, é necessário levar em
consideração alguns elementos contextuais.
Naquele ano, completaram-se doze anos da aprovação
da Lei nacional 1.044, que promovia o financiamento e a
construção dos nidi por toda a Itália, para crianças entre três
meses e três anos. De acordo com essa lei, 2.500 nidi deve-
riam ser construídos em todo o país, nos primeiros cinco
anos. No entanto, em 1984, apenas algumas centenas de
centros tinham sido erguidas e quase todas se situavam nas
áreas norte e central da Itália.
Assim sendo, a lei não havia sido aplicada e mais e mais
obstáculos vinham sendo criados pelo governo, especial-
mente de cunho econômico. Somente algumas municipali-
dades continuavam investindo dinheiro de fontes próprias
para fazer frente à falta de investimentos do Estado, e essas
municipalidades estavam particularmente conscientes da
importância dos nidi, por causa de sua orientação políti-
ca; a maioria delas ficava nas regiões de Emilia Romana,

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Toscana, Lombardia, Lazio ce Veneto, e muitas cram go
vernadas pela esquerda naquela época. A tarefa que clas
enfrentavam era de ampliar a rede dos nidi, em particular
e os serviços em geral (desenvolvendo o Estado de bem-es
tar social). garantindo, ao mesmo tempo, a qualidade para
crianças. famílias e educadores. De forma a subsidiar essa
busca pela qualidade e também coordenar as lutas política:
que ocorriam cada vez mais entre os educadores que tra-
balhavam nos nidi, foi fundado o Gruppo Nazionale Nid:
(agora conhecido como Gruppo Nazionale Nidi Infanzia
em Reggio Emilia.
Entre os principais objetivos do Gruppo Nazional:
Nidi incluíam-se a expansão dos nidi e a consolidação de
um conceito que naquela época era bastante inovador em
termos culturais: o direito da criança pequena a escolas
de qualidade. Com base em uma proposta de Loris Mala
guzzi (pedagogo e inspirador fundamental da pedagogia e
da experiência das escolas municipais de Reggio Emilia
o Gruppo Nazionale Nidi promoveu (e continua promo
vendo) conferências nacionais e seminários locais para «
desenvolvimento profissional dos educadores. São mo
mentos para a troca de experiências, o compartilhament:
de reflexões e a construção de uma consciência da neces
sidade de comprometimento cultural e político daqueles
que trabalham com serviços para a primeira infância.
Esse era o pano de fundo da conferência realizada e»
1984, organizada em colaboração com a Comuna de
neza. O tópico que escolhi foi aceito por Loris Malaguz
e os organizadores. O tema da participação e da orgs”
zação dentro dos nidi era particularmente urgente c *

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O.

te di-
po
na época,
rque era extre mamen
grande is t
eresse
»s lu ga re s co mp reender que a
rs
CC ai n da é) em dive colha, mas parte da
fi ca
n ão er a um a es
lia
d a famí
participação o da s cr ia nç as ficando ao lado
re it
do nído, O di
identidade
is. ria acontecer
do direito dos pa rv iç o s só p o d e
ansão dos se
A defesa c à exp r i e d a d e e O apoio da famíli
a,
são, à soli d a
com à compreen ão ni d o não para serem
«

s pa is
da vinda do

obtidos por meio e r n i d a d e , m a s para agregar


os sobre pat
|

instru idos e educad al . El es veria m, então, O


hecimento pa re nt
seu pró prio con e t a m bém poderiam
am va lo r
do com o lugar
no qual teri tural.
ni
in fâ nc ia c o m o herança sociocul
atribuir valo r
à

E D UC A T I V O NA COMUNIDADE
O
MOLDANDO O PROJET
4 e já te nd o or g anizado a quin-
Doze anos após a Le
i 1.04
up po Na zi on al e Nidi, na qual discu-
| ta conferência do Gr mo s em outro s locais
a (C o mo fi ze
timos com insistênci pa pe l dos pai s na
sign if i ca do e o
e em outras ocasiões) O e lembrando o que
do , vo u co me ça r r
da experiência do ni e consolidamos
s no pl an o te ó ri co ,
realizamos, pelo meno
neve RR RR Sa

gu nd a pa rt e, vo l ol ha r al ém da consolidação
juntos. Na se or €
daquilo que já realizamos e tentar compreend er melh
pesa tepemepamo
cms

ente nossos pensamento


s e ações.
definir mais detalhadam fu-
4de modo que possamos identificar e seguir as àáreas de
o co le ti vo € atingindo
qu peeper tos

ganhando
turos avanços, assim imp et
do fato de qu e novas ideias (e
eNsemrrare

novos alvos, embo ra cônsc ios


uições
à pesou das famílias na administração de instit
ões subs-
04 tomem meet

educacionais é algo novo) sempre requerem porç


is de tempo para se est abelecerem em nosso país, em
pa eesriço grTe Sema

tanc
Ta iase
ncia
ore

EMILIA [59
Drárogos com REGGIO
x 0 ps
rp
cedia apes

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especial quando introduzem novos processos culturais e
políticos.
As realizações que considero importantes recordar (para
uma memória “histórica” — do grupo — que permita avan-
çar nosso nível de reflexão) são as seguintes:

1) Este é o século no qual a qualidade da relação pais-


-filhos surgiu, pela primeira vez, como proposição teórica
(embora adulterada, na prática) e como questão pública,
isto é, de natureza sociocultural. Ainda mais particularmen-
te, foi a primeira vez que uma instituição educacional públi-
ca (o nido) procurou a participação ativa, direta e explicita dos
pais na formulação do projeto educativo.”
2) Dessa forma, além das acusações frequentes acerca
de suas limitações e ambiguidades, que necessitam de mu-
danças urgentes, a Lei 1.044 representa um passo bastan-
te avançado ainda hoje, ao menos no que diz respeitoà
participação e à administração social. É avançado porque
sanciona uma instituição pública para a criança saudável (e
não apenas a criança deficiente ou doente) e porque define
e reconhece a municipalidade como corpo administrador
das instituições socioeducacionais. Mas, acima de tudo.é
avançado porque sublinha a centralidade do nido não so-
mente na relação entre educador e criança, mas também
na interação entre o ambiente familiar e o ambiente do
nido. E isso é feito não por meio de simplificações ilusórias
de teorias sobre continuidade educacional, e sim com bas

* Normalmente, espera-se que os pais deleguem a responsabilidade aos educ


dores e raramente discutam as escolhas que foram feitas, por medo de que *
crianças tenham de pagar pelo questionamento sobre decisões dos educador
Para nós, isso precisava ser evitado a qualquer custo.

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na ênfase sobre a natureza dialógica e a qualidade dialética
permanente da relação.”
3) O nido é, portanto, um sistema de comunicação integra-
do no sistema social mais amplo: um sistema de comunica-
ção, de socialização, de personalização,” de interações em
que existem três principais sujeitos interessados afetados
pelo projeto educacional, isto é, a criança, o educador e
a família. Esses três sujeitos são inseparáveis e integrados;
para preencher suas principais tarefas, o nido precisa se
preocupar e lidar com o bem-estar da equipe e dos pais,
assim como com o das crianças. O sistema de relações é
tão integrado que o bem-estar ou o mal-estar de um dos
três protagonistas não é apenas correlacionado, mas inter-
dependente dos outros dois.
4) Esse bem-estar está diretamente associado à qualidade
e à quantidade: (a) da comunicação que acontece entre as
partes, (b) do conhecimento e da consciência que as par-
tes têm de suas necessidades e satisfações mútuas, e (c) das
oportunidades para as pessoas se encontrarem e ficarem
juntas, que surgem num sistema de relações permanentes.
5)
criança
ge sa

membro da equipe família

” Aqui estou ressaltando, para o nido, a centralidade assumida não apenas pela
relação entre criança e educador mas também pela relação entre crianças, edu-
Cadores e pais. O significado do nido repousa na interação entre esses sujeitos,
no encorajamento dessas relações. O nido é um lugar de relacionamentos e co-
municação, um espaço onde se constrói uma forma ou cultura de ensino.
“” Quero dizer, valorizando a subjetividade de cada pessoa, criança ou adulto.

DIÁLOGOS COM REGGIO Empis


nam

| 61
ee
pos

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A identidade do nido, assim, depende desse sistema de
relações-comunicação no qual a participação ativa dos pais
(tanto social quanto administrativamente) é considerada par.
te integrante da experiência educacional.
6) Como temos sempre mencionado, para que isso vá
além do puramente conceitual e abstrato, deve haver um
forte comprometimento no nível organizacional — que é,
em si mesmo, objeto de constante avaliação e ajuste — e
nos níveis funcional, metodológico e político. Todo o res-
to se desenvolve automaticamente a partir daí, como, por
exemplo, a arquitetura do nido (espaços e mobiliário), os
métodos e tempos de comunicação, os horários de trabalho
da equipe, o conceito de colegiado e de liberdade educa-
cional, e o significado e os conteúdos do desenvolvimento
profissional. Por meio da troca e do diálogo com as famílias,
emergem novos conceitos que definem a própria ideia de
participação e do nido.”
7) Finalmente, parece que já se aceitou o fato de que es-
ses processos de relações-comunicação, em especial entre
equipe, família e comunidade local, precisam de uma or-
ganização concebida e implantada com as mesmas flexibi-
lidade e habilidade e com o mesmo compromisso exigidos
pelos tipos de relações-comunicações e interações que te-
mos com as crianças.

* Um nido participativo é uma escola onde se aprende a escutar, onde as com


petências de cada pessoa (criança e adulto) podem se expressar e encontrar ac
tação, onde progettazione é melhor do que programmazione (ver discussão sobr
esses termos na página 12), onde o conceito de democracia não se bascia €7
quem detém a maioria, mas na construção do consenso, do significado acorda
do, do mútuo consentimento.

62 CaAvIA RiNAaLDIS

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Essas suposições teóricas, que foram desenvolvidas, discu-
tidas, comparadas e enriquecidas ao longo dos anos, torna-
ram-se as convicções de muitos, mas a prática costumeira
e a ação de poucos. A razão para isso é a complexidade
cultural e conceitual dessas proposições (à medida que elas
rompem e reviram crenças e atitudes bastante difundidas
e amplamente compartilhadas); mas também uma série de
fenômenos e eventos de natureza política, econômica, cul-
tural e social que tem impedido sua aplicação, a ponto de
levantar dúvidas quanto à sua própria validade.
Vou mencionar apenas alguns desses eventos/fenôme-
nos que têm caracterizado este século:

* uma feição característica do momento histórico que


estamos vivendo é a mudança, o movimento e o por-
vir. Na Itália, isso deu origem a uma transformação
profunda e de grande escala, de natureza econômica,
tecnológica, social, institucional e moral, com uma
dimensão política. Isso, por sua vez, gerou problemas
numerosos e algumas vezes graves, cuja administra-
ção distraiu a atenção das forças políticas para longe
dos problemas da educação em geral e da escola em
particular (onde as reformas jamais se completaram).
As escolas na Itália, como um todo, se encontram bas-
tante atrasadas, em comparação a outros países, na
capacidade de responder às mudanças e aos novos re-
quisitos, e estão passando por um minucioso processo
de busca por um novo papel e uma nova identidade;
* a política do Estado de bem-estar social foi maciça-
mente atacada em diversas ocasiões, por meio de

DiáLoGos com Receio EmiLia | 63

Digitalizado com CamScanner


palavras e ações (econômicas), assim como foi, de
modo geral, a política de descentralização e partici-
pação. com críticas bem-fundamentadas às vezes,
mas também com julgamentos preconceituosos. Isso
provocou a reafirmação da centralidade do poder e
a rejeição de qualquer forma de descentralização. E,
na prática, causou o grave enfraquecimento dos ser-
viços, tanto no nível econômico e cultural; quanto no
plano sociopolítico;
* todas essas organizações que falam de participação
mas que não a tornam possível para que os verdadei-
ros atores ajam e decidam assumindo responsabili-
dades estão passando por um período de crise. Em
determinadas épocas, houve muita ênfase na partici-
pação, mas sem enfoque suficiente no seu conteúdo
e nos processos participativos, cujos principais atores
não foram apropriadamente analisados e muitas ve-
zes se sacrificaram entre a busca pelo consenso e as
v

tendências centralizadoras.

Os nidi (e as scuole dell'infanzia) — embora não em todos os


casos — podem ser, de fato, uma das raras exceções em que
se tentou aplicar concretamente o conceito de participação
como um modo de criar, promover e organizar o projeto
educativo.
Não se deve esquecer, porém, que a participação (pen-
sada não apenas em termos da relação equipe-pais, mas
também em sua forma mais ampliada, que cria uma rede
concreta de relações, que inclui equipe-pais, pais-pais e pais
-crianças, assim como laços entre crianças, equipe, pais, or

64 | Carta RinaLDI

Digitalizado com CamScanner


ganização da comunidade local e administração local etc.)
não é uma variável independente ou uma escolha opcional
que pode ou não ser adotada. Como observamos no início,
a participação é a expressão de valores importantes, perten-
ce psicologicamente ao conceito de nido, é biologicamente
inata à própria idade das crianças e é decisiva para a afir-
mação do conceito educativo de nido (e não somente do
nido). É por isso que o nido não pode apenas reclamar da
queda de participação e não pode renunciar à participação,
em especial o diálogo com as famílias, com os pais e com a
comunidade: sua própria existência e sobrevivência ficariam
ameaçadas.
Assim, não é uma mera questão de reiterar enfatica-
mente as realizações básicas às quais nos referimos antes,
reafirmando sua validade e sua efetividade no nível político-
-cultural. Precisamos levá-las adiante, e de uma forma que
ainda não fizemos, por meio da análise de fatos, métodos e
ações. Enquanto temos total consciência de que hoje tudo
é mais complexo do que era no passado — ou talvez apenas
diferente — e que é preciso muito mais inteligência e ferra-
mentas interpretativas novas, ao salvaguardar e praticar a
participação (vamos elucidar esse conceito mais à frente) es-
tamos salvaguardando a sobrevivência do próprio nido. Isso
significa reavaliar e restabelecer o papel e o sentido do nido
numa sociedade que, pelo menos na superfície, aparentaria
não estar mais interessada no nido. Isso representa trazer
E O nido para a atenção dos políticos, administradores, movi-
e mentos e associações, sindicatos e cidadãos.
Precisamos de uma melhor interpretação dos fatos, dos
eventos e do contexto à nossa volta. Temos de analisar e

DiáLoGos com Reggio EMILIA | 65

O TT OSS STS E E TO

Digitalizado com CamScanner


compreender os novos sujeitos do nido (pais-equipe-crian-
ças). que ainda são os mesmos mas, na verdade, são sempre
muito diferentes, dependendo de cada situação. Precisamos
evitar declarações generalistas, bordões, conceitos por de-
mais abrangentes (tais como “necessidades das famílias”,
“esimular relacionamentos”, “comunicar” e assim por
diante) e fazer um esforço para conjugá-los e apreender
suas várias facetas. Isso representa entender novas (e velhas)
necessidades, de forma a construir novas respostas, embora
estejamos totalmente conscientes de que não existe nada
definitivo nessas respostas.
É necessário um grande esforço para fazer isso, mas
devemos tentar. Vou começar confiando não somente em
minhas reflexões, mas também nas dos meus colegas de
trabalho em Reggio Emilia, que estão engajados nessa bus-
ca permanente. Isso, junto com a contribuição de vocês,
deverá nos ajudar a sair desse encontro não apenas equi-
pados com mais conhecimento, considerações e questões,
mas também com sugestões de estratégias para se pensar é
aplicar. É importante compreender não só os sujeitos, mas
também seus comportamentos, os laços que os unem, suas
formas de interagir, os campos nos quais estão situados e
operam, o poder que os mantém juntos ou separados e suas
constantes mudanças e transformações.

À FAMÍLIA E O CONTEXTO SOCIAL

Se aplicamos o tipo de pensamento que deveríamos sempre


adotar, de modo a ganhar um melhor entendimento dos
novos fenômenos que caracterizam as famílias modernas,
mem
cem

66 | CARLA RINALDS
mm
Tamara

Digitalizado com CamScanner


precisamos começar com um número de considerações que
dizem respeito ao contexto (a ambientação) no qual essa fa-
mília vive e opera, isto é, a sociedade, e seguir com o exame
de inúmeros aspectos que parecem ser “indicadores” inte-
ressantes para nossas reflexões.
Muitas vezes, nossa sociedade foi definida como a “so-
ciedade fragmentada”, porque se moveu em direção a situa-
ções e mecanismos tão diferentes e multidimensionais que
acabaram sugerindo a expressão “sociedade indefinida”,
na qual é impossível perceber diferenças importantes: por
exemplo, em termos de emprego (milhões de pessoas que
entram e saem do mercado de trabalho todo ano), da estru-
tura de grupos e classes sociais (cada vez menos diferencia-
dos), dos padrões de consumo (ouvimos falar do politeísmo
dos consumidores), do uso do tempo (recuperação do ho-
rário noturno) e do tempo de lazer, e da administração do
poder.
Outra expressão que pode nos ajudar a definir o caráter
do nosso tempo é “sociedade de segmentação”, isto é, uma
crescente diferenciação entre sujeitos de acordo com expe-
riências que os definem e caracterizam. Isso torna cada vez
mais difícil a aplicação de categorias e generalizações, pois
nenhum ato de “troca” (seja ou não baseado em comunica-
ção) é algo simples. Uma porção cada vez maior de tempo
tem de ser gasta em exercícios de “arbitragem” relaciona-
dos às trocas, em especial trocas verbais. Na assim chamada
era das comunicações, a comunicação entre os indivíduos
parece ter se tornado progressivamente difícil.
A consequência inevitável é o desejo de autodetermina-
ção e de personalização da experiência individual no con-

DiáLogos com Regio EmiLia | 67

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texto social, quanto à seleção de informações, escolha de
serviços e planejamento e uso do tempo de lazer. Isso levou
a uma grande variedade de oportunidades oferecidas pelo
mercado (em especial o mercado privado, que se apropriou
desse desejo e o aumentou significativamente), que deve-
riam permitir a realização de uma boa escolha. Os serviços
públicos (inclusive o nido) não estão excluídos dessa análise:
eles devem procurar evitar a oferta de respostas padroniza-
das que não atendem de modo adequado a necessidades e
preferências particulares dos indivíduos.
A família demonstrou uma habilidade extraordinária
para resistir e se adaptar a esse processo rápido e profundo
de transformação social, e para colocar em prática a flexibili-
dade organizacional como resposta. Qualquer outro tipo de
generalização, porém, se torna impossível, pois hoje, mais
do que nunca, temos de falar de famílias e não mais da fa
mília, em função de suas crescentes e complexas variedade e
forma. Seguem algumas considerações que podem ser úteis
para a compreensão da intrincada geografia das famílias:

* diversidade dos lares: há um número cada vez maior


de lares formados por uma única pessoa (jovem ou
velha); de “famílias pós-nucleares”, com um lar que
consiste em um dos pais e o filho (após a separação
ou o divórcio); lares em que filhos adultos vivem jun-
EE

tos com pais de meia-idade (em especial, devido às


dificuldades de habitação);
novas pobrezas: encontradas particularmente nat
grandes cidades da Itália, assim como em algumas
outras áreas, diferenciadas de acordo com as causi

68| | Caria RinaLD!

Digitalizado com CamScanner


(imigração, desemprego etc.) e os tipos de necessida-
des, levam os membros dessas famílias a expressarem
profundo mal-estar psicológico e existencial e podem
ser interpretadas pelos outros, às vezes, de modo su-
perficial e preconceituoso (por exemplo, “pais negli-
gentes etc.);
e avós: a fim de interpretar o papel deles na economia
e na gestão da família e da sociedade modernas, pre-
cisamos abandonar os estereótipos tradicionais que
os caracterizam como “velhinhas meigas e velhinhos
trôpegos” e reconhecer alguns dos fenômenos que
ocorrem na atualidade, particularmente no centro-
-norte da Itália e nas cidades. Existem bastantes avós
mais jovens ou mais joviais, muitos dos quais tra-
RD

balham ou têm atividades profissionais ocasionais


depois da aposentadoria, e que viajam e circulam bas-
tante. Embora adorem os netos, esses avós mantêm
a

sua independência econômica e, quando possível, sua


independência fisica; e, apesar de desejarem ajudar os
filhos, eles também têm interesses e compromissos
próprios que desejam preservar.

Há ainda muitos outros fenômenos e diferenças relevantes,


dependendo daquilo que se está mencionando, como, por
exemplo, um casal jovem ou um casamento que durou pou-
co tempo; o norte, o centro ou o sul; a cidade, o campo ou
a grande cidade.
Focalizando os problemas com mais acuidade e não fa-
zendo generalizações simplistas, podemos identificar (com
base em dados estatísticos oficiais), em especial no centro-

DiáLoGos com Recgto Emma 6%

Digitalizado com CamScanner


norte, um perfil mais ou menos típico da família cujo filho
frequenta o nido:

* nível mais elevado de instrução dos pais;


* os pais não são mais tão jovens, em geral ambos tém
emprego de cunho profissional e participam das fun.
ções da casa com alto grau de colaboração e intepra-
ção, embora ainda exista alguma diferença;
* há um período de consolidação antes do nascimento
dos filhos, no qual o casal alcança estabilidade no re-
Jacionamento;
* o primeiro filho é geralmente “planejado” c cada vez
mais filho único.

A chegada do primeiro filho c a paternidade/m aternidade


provocam mudanças ainda maiores , à medida que esse novo
membro da família não apenas modifica o mé
todo existente
de comunicação e o estilo de vida — porque atr ai para sias
atenções, fazendo uma “triangulação” (se é que podemos
Ni

usar esse termo) da família —, mas também força transfor-


mações (e/ou sacrifícios) em vidas e relações pretérit as. À
criança recém-nascida propõe e impõe uma metamorfose
substancial do sistema da família e de seus membros. Cer.
tamente, não é um problema fácil e nem todos são bem-
y
mi sera
y
;

sucedidos,
Pi

De modo geral, em vez de melhorar o relacionamento


A

!
A
»

de casais que estiveram passando por uma crise (como cos


a
«
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é
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pais
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7
E

* Durante algum tempo, a taxa de fertilidade da Itália foi uma das mais baixas
Pa
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a

da Europa, e mesmo do mundo, Em 2000, 0 país detinha a segunda taxa mais


o

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baixa entre os quinze Estados membros da União Europeia (Eurostat, 200)


E o moda EA Med
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180), (N.E.)
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dao Sa?
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o | Canta RinaLbi
e

/
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Digitalizado com CamScanner


E a

tumávamos dizer), a chegada de um filho tende a tornar


a crise ainda pior, Vemos casais que, pelo menos nos pri-
meiros anos após o nascimento do filho, falam de grande
solidão e do desejo de se encontrar com outros casais: por
causa da solidão, surge a necessidade de comunicação inte-
rativa, a necessidade de descobrir como lidar com um filho
que é tão “desconhecido”, pelo menos no começo, para o
qual se deseja o melhor e ao qual se teme não ser capaz de
prover os cuidados necessários. A solidão e a insegurança
podem impregnar não apenas o jovem casal que tentamos
descrever, mas muitos pais, em geral, e muitas mães, em
particular.
Vamos olhar rapidamente para o fato de que hoje é mui-
to mais fácil combinar a maternidade com o trabalho, mas
também para o fato de que ainda há muito por fazer no
sentido de garantir que aquilo que já foi alcançado não seja
disperso nem desperdiçado, em função, entre outras coisas,
da séria situação econômica que leva as mulheres a voltar
a ficar em casa. Essa é uma questão cultural e política com a
qual deveríamos nos preocupar seriamente, porque o nido
contribuiu bastante para essa nova imagem e qualidade de
| vida que as mulheres possuem, e esses melhoramentos po-
dem estar correndo risco se esse processo lento, porém ine-
xorável, de transformação se enfraquecesse, ou pior, fosse
interrompido. Aqui, tudo que precisamos fazer é lembrar
que o trabalho deu às mulheres um grau de poder que elas
jamais tiveram antes, permitindo-lhes experimentar a ma-
ternidade e o relacionamento com os parceiros de formas
inovadoras, tanto histórica quanto culturalmente. Elas vi-
venciaram uma realização pessoal e uma plenitude maio-

DiáLogos com RegGio EMILIA | 71

m» TTeee
TP
Digitalizado com CamScanner
res, e se sentiram mais capazes de sustentar uma relação de
igualdade com outros membros da família.
No entanto, ao mesmo tempo elas tiveram de superar
demandas fortes e quase sempre conflitantes, com um pro.
fundo senso de desconforto e sentimentos de culpa. Elas
temem que, em consequência de seu trabalho, os filhos se.
jam negligenciados, fiquem desorientados e se exponham a
perigos sérios. As pessoas que trabalham com essas criancas
não podem ignorar tais aspectos psicológicos elementares
A mulher que trabalha fora precisa se certificar de que no
nido estamos aptos a satisfazer as necessidades de seu filho,
em termos qualitativos e quantitativos, e de que a equipe
pode ser como ela — mas não tanto quanto ela, que pode
temer estar sendo substituída nas afeições de seu filho (uma
questão muito importante a se abordar dos pontos de vista
cultural, comportamental e psicológico).
Analisar e interpretar a fenomenologia das famílias que
têm um filho pequeno seria um exercício grandioso e inte-
ressante. Todavia, vamos simplesmente convidar a todos,
inclusive as equipes, os administradores e os políticos, a
analisar a questão em profundidade, para lhes dar ferra-
mentas que permitam encontrar dados e experiências, €
para começar a entender o que significa ser pai hoje em
dia. Ou ainda, o que representa ser um pai ou uma mãe,
o que é diferente; ser o pai ou a mãe de um filho pequeno
e trabalhar fora; ser pai, mãe, homem e mulher numa so-
ciedade que definimos como sociedade da fragmentação,
tipificada pela necessidade de autocertificação (isto é, cada
pessoa certifica a própria autenticidade) e pelo direito a
mais completa realização.

72 | Carta RiNALDI

Digitalizado com CamScanner


Existe uma demanda ou uma necessidade de ser com-
preendido de modo holístico, quer dizer, de ser considerado
como uma pessoa tanto quanto como um pai/mãe de, ou
pai ou mãe de fulano. Ser pai /mãe hoje em dia implica, além
de um alto investimento emocional, uma variedade mais
ampla de responsabilidades vinculadas a uma consciência
mais difundida das questões e dos problemas educacionais.
Isso requer um ambiente de verdadeira socialização, corres-
ponsabilidade civil e solidariedade social. O que os pais não
precisam é ser submetidos a julgamentos e, em especial, a
prejulgamentos.”
Em minha visão, não existem pais bons ou maus, exis-
tem apenas modos diferentes de ser pai e mãe, embora
nem sempre estejamos aptos a compreendê-los e interpre-
tá-los. O fato de um pai/uma mãe perguntar todo dia o
que o filho/a filha fez no nido e com quem ele/ela brin-
cou não é garantia de que essa pessoa é melhor pai/mãe
do que outra que, em dois anos, pode nunca ter ido além
de perguntar se o filho/a filha fez suas refeições e foi ao
banheiro. Tudo que podemos concluir daí é que nosso re-
lacionamento com o primeiro pai/a primeira mãe é mais
próximo do que com o segundo, mas nada além disso. Nos-
sa avaliação não pode ultrapassar esse ponto porque não
possui ferramentas para tanto. Por outro lado, devemos
lembrar que é possível ser um educador excelente e um
pai/uma mãe horrível, ou ainda, de que alguém pode ser
apenas um pai/uma mãe razoável de uma criança peque-
na e se tornar um pai/uma mãe maravilhoso(a) quando

* Um jogo de palavras, pois em italiano a palavra


prejulgamento significa, na
verdade, preco
nceito. (N.E.)

DiáLocos com RecGio EmiLia | 73

Digitalizado com CamScanner


essa criança chegar à adolescência (devido, por exemplo, a
mudanças no mesmo pai/na mesma mãe como resultado
de eventos de nível pessoal, tais como seu emprego ou a
relação com o parceiro). A paternidade /maternidade não
é um modo de ser, mas um tornar-se. O mesmo, poderia.
mos acrescentar, vale para ser um educador.
Portanto, devemos evitar estereótipos e julgamentos su-
perficiais e imediatos, que podem acabar minando nosso re.
lacionamento com aquele pai /aquela mãe e por conseguinte
com a criança. Na realidade, é duplamente arriscado prolon.
gar esses “prejulgamentos” porque, em geral, a qualidade do
contato com os pais e a imagem que formamos em conse.
quência desse contato algumas vezes se projeta na criança,
de maneira “sinistra”. Devemos nos esquivar de “medir &
qualidade” dos pais com base em nossas expectativas e em
como gostaríamos de que eles fossem, o que representa, na
verdade, como gostaríamos de ser como pais e como gosta-
ríamos de que nossos pais tivessem sido conosco.
Afirmamos anteriormente que, em média, os pais de
hoje têm um nível cultural mais alto que o dos pais no pas
sado. Provavelmente, por um lado, isso aguçou a sensibi-
lidade e o conhecimento das pessoas sobre as habilidades
necessárias para se educar um filho, mas, por outro, tornou-
-as mais conscientes das próprias deficiências em “ficar com
o filho” ou ainda em “educar o filho”. Isso deu aos pais um:
“predisposição” ao diálogo e uma “necessidade” de se co
municar e trocar opiniões com pessoas diferentes. Além do
mais, o grau de fragmentação social e humana e de desinte-
gração que caracteriza nossa existência levou à emergência
de uma outra necessidade, ou ainda à busca de um novo
Se

74: CARIA RINALDI

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prazer, o de se encontrar e ficar junto como pessoas, quase
como “outro” filho.
Em resumo, não existe o pai/a mãe. Existem pais, ou
ainda, pessoas que também são pais e que merecem o cré-
dito por terem sensibilidade e preocupação educativa em
relação ao filho/à filha, embora algumas vezes não as ex-
pressem ou nós não consigamos vê-las. Precisamos apren-
der a enxergar as necessidades implícitas e explícitas dos
pais e a dar a elas novas e efetivas respostas.

À EQUIPE

Nesse ponto, como estamos falando do relacionamento en-


tre educadores e pais, não podemos deixar de mencionar
a equipe, ainda que de modo breve, e também os novos (e
velhos) fenômenos que a caracterizam.
Educadores — na imensa maioria, mulheres — que tam-
bém têm filhos e, em consequência, estão sujeitos a essas
questões que mencionamos anteriormente, têm idades dis-
tintas, embora sejam majoritariamente jovens, e possuam
qualificações educacionais variadas. Tem crescido o núme-
ro de educadores que vêm das universidades, e que, por
fim, poderão acabar contribuindo para o aumento do con-
tingente de diplomados “insatisfeitos”. Em geral, nesses ca-
SOs, existe um sentimento crescente de frustração entre os
To

educadores, devido à falta de oportunidades de trabalho nas


escolas de ensino médio e fundamental, o que os obriga a
buscar empregos no nível do nido (algumas vezes, até como
auxiliares). Em suma, os educadores do nido experimentam
Uma vida profissional que é das mais compostas, complexas

DiáLoGos com Reggio Eita


7s

Digitalizado com CamScanner


e interessantes, mas também carregadas de ambiguidades
em diferentes aspectos, inclusive:

* ambiguidade politico-administrativa: A definição do nido


como um serviço baseado na demanda individual tor-
na os nidi similares, nesse sentido, aos matadouros
e aos serviços funerários; a questão do status pro.
fissional das equipes do nido, cujo nível educacional
presume-se que não precisa ser muito avançado: um
sistema que não permite funcionários substitutos.
sugerindo assim que a ausência de um dos membros
não é um problema grave; o fato de que as equipes
podem ou não ter um programa de desenvolvimento
profissional, e podem ou não participar dos conselhos
de administração. Nada disso foi útil para as equipes
dos nidi, que, em sua maioria, são entregues à própria
sorte pelos políticos, administradores e sindicatos para
definir perfil profissional, tipologia profissional e ética
profissional, numa profissão complexa que necessita
de uma forte solidariedade e de amplos recursos:
* ambiguidade sociocultural: Apesar das humilhações €
tribulações que os nidi sofreram no passado, o papel
que eles têm representado na Itália nos planos socio-
culturais indica um saldo muito positivo, no geral.
graças à impressão que causaram nos hábitos sociais.

* Na Itália, definir um serviço, em seu estatuto, como sendo baseado em “de


manda individual” significa dizer que ele é concebido como existente apenas
para aqueles que necessitam dele, em oposição à definição de um serviço soda!
que é concebido como um investimento para toda a sociedade. Uma das const
quências disso é que o custo é pago pelos usuários, sendo provavelmente caro O
suficiente para desencorajar a utilização do serviço. Graças a essa concepção do
nido, anos de realizações e progressos sociais foram jogados fora.

76 | Carta Rimarbi

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na cultura, no serviço social e na pesquisa. É comum,
porém, as equipes dos nidi não serem capazes de
ver e valorizar a própria contribuição sociocultural,
à medida que, na maior parte do tempo, trabalham
em situações isoladas e individuais, sem meios para
avaliar a qualidade e a efetividade de seu trabalho e
para levá-lo às áreas em que a pesquisa indica a exis-
tência de lacunas, e sem serem encorajadas a fazer
as próprias pesquisas. Geralmente, as indicações de
suas conquistas são sutis e se encontram nos progres-
sos das crianças, na afeição que elas demonstram e/
ou no que dizem os pais. Contudo, o educador nem
sempre consegue captar tais sinais € testemunhos e,
assim, pode não perceber aquilo que realizou e quan-
to o seu trabalho é apreciado pelos pais. Muito ra-
ramente o trabalho do nido se conecta à comunidade
mais ampla e a pais que não usam o serviço, mas cujas
necessidades são semelhantes, de diversas maneiras,
àquelas das famílias cujos filhos frequentam nido. As
vantagens do nído — seu desenvolvimento cultural —
são quase sempre reservadas para poucos;
ambiguidade psicológico-profissional: Algumas vezes, a
sobreposição com os trabalhos maternal e doméstico
pode gerar o perigo de que as fronteiras entre a casa e O
nido não fiquem muito bem-definidas, afetando o pro-
fissionalismo de forma negativa. Além disso, as ativida-
des culturais a que alguns educadores aspiram (quando
são jovens) não encontram espaço nem eco dentro do
nido. Os educadores do nido, assim, podem sentir que
seu profissionalismo fica duplamente atrofiado, isto é:

Diárogos com Reggio Emis 7

Digitalizado com CamScanner


— em relação à criança, à medida que a educação lhes
ensinou a usar a linguagem verbal como a única
linguagem que pode ser utilizada com crianças,
quando elas, ao contrário, dispõem de uma grande
variedade de linguagens não verbais;
— em relação aos pais, a falta de formação profissional
básica nesse quesito essencial de seu trabalho se
torna cada vez mais óbvia, quer dizer, o baixo nível
de qualificação para o diálogo e a intercomunicação,
não apenas com os colegas, mas em especial com os
pais, cuja colaboração é fundamental.

Assim, é necessário reafirmar que as qualificações e o co-


nhecimento dos funcionários devem ser encarados como
um processo, não como um fato. Eles se enriquecem por
meio do trabalho colegial realizado com as crianças, os
colegas e os pais; e os funcionários se tornam mais quali-
ficados devido aos processos de participação. Na verdade,
acredito que este é um conceito fundamental: funcionário
não é apenas um “gerente”, mas um beneficiário da par-
ticipação e da administração. Ele/ela não é somente “a
pessoa que sabe” se dirigindo às “pessoas que não sabem”
(os pais), mas alguém que propõe, que deixa sua habilida-
de como educador e como pessoa circular pelo sistema e
a compara com o conhecimento dos pais. Dessa forma, o
conhecimento do nido não é o conhecimento da equipe,
nem o dos pais ou o das crianças: ele emerge da osmose
entre os seus diferentes tipos de conhecimento e, assim, é
compartilhado e comparado com aquele da cultura mais
ampla, exterior ao nido.

78 | Casia Rimatbi

Digitalizado com CamScanner


O relacionamento entre o educador e os pais (ou me-
lhor, entre os educadores e os pais) é altamente dinâmico
e tem de se diferenciar e se modificar, de acordo com cada
situação e seus participantes, precisamente por causa da
grande variedade de necessidades e possibilidades de cada
indivíduo. Assim, tem de variar segundo o perfil da família,
o contexto sociocultural e a porção de tempo que a criança
e sua família passam no nido. O tipo e o estilo do envolvi-
mento demonstrados por um pai/uma mãe quando a crian-
ça vem pela primeira vez ao nido serão diferentes daqueles
apresentados meses depois do seu ingresso na instituição.
A entrevista que fazemos com um pai/uma mãe que rara-
mente vem ao nido será organizada e estruturada de modo
diferente daquela realizada regularmente com pais que le-
vam seus filhos ao nido todas as manhãs.
Mas isso não é suficiente, pois também precisamos do
seguinte:

1) refletir mais e melhor sobre a comunicação, para


compreender toda a informação que com frequência rece-
bemos, sem necessariamente levar em conta a pessoa com
quem falamos, se é um adulto ou uma criança, e para con-
trolar o máximo possível as mensagens que, por outro lado,
expressamos por meio de nossos gestos, sorrisos e olhares,
2) por conseguinte, para compreender que a comunica-
ção com as famílias exige novos conteúdos, novas ferramen-
tas e novos métodos:

a — novos conteúdos, quer dizer, focalizar não tanto o fato


de que a criança é uma criança, mas seu avanço, seus pro-

DiáLogos com Regaio EmiLia | 79

Digitalizado com CamScanner


cessos e formas de lidar com os problemas. Os conteúdos
não deveriam apenas nos deixar satisfeitos, mas também
perturbados, surpresos e impressionados com a constante
descoberta das extraordinárias habilidades da criança. Esses
conteúdos não deveriam excluir nada e nem se restringir
àquilo que os pais desejam ouvir sobre seus filhos. Ao final
de uma reunião, individual ou em grupo, esses conteúdos
deveriam nos ajudar a compreender melhor as crianças e a
trazer à tona problemas em vez de certezas, focalizando os
processos mais do que os produtos, interpretados conjunta-
mente por adultos que, além de educar, estão sendo “edu-
cados” pela criança. Esses conteúdos deveriam nos ajudar a
interpretar as contribuições fundamentais que a criança dá
(e pode dar, se a escutarmos) ao nosso projeto educativo.
b — novas ferramentas: Obviamente, os conteúdos e encon-
tros que definimos acima necessitam de linguagens e ins
trumentos diferentes. Imagens e traços (fotos, slides, filmes
e, quando possível, vídeos) deveriam servir de suporte (jun-
to com produtos/marcas das crianças) e mesmo substituir
a linguagem verbal sempre que forem mais efetivos. Essas
imagens e traços não deveriam se limitar às reuniões, mas
ficar expostas nas paredes do nido todos os dias — não so-
mente para os país, mas para as próprias crianças, que teriam
prazer ao ver e identificar a si mesmas naquelas imagens €
traços, cujo valor é reconhecido pelo fato de que os adul-
tos as expuseram. Há ainda outras ferramentas, tais como
painéis que reúnem informações ordinárias e extraordiná-
rias ou formulários-padrão duplicados, preenchidos com
informações necessárias (se a criança comeu, dormiu e as

* Quero dizer, expor nas paredes projetos e outros trabalhos com as crianças

Bo | CartA RINALDI

Digitalizado com CamScanner


cen
sim por diante), que permitem aos pais alterar o enfoque da
comunicação para outros tópicos que eles desejarem;

mori
c — novos métodos: É essencial romper com padrões anti-
gos de organização, de modo a identificar novas formas

ir
de se reunir que possam representar os pais, a equipe e
as crianças de diferentes maneiras. Deveria existir um “es-
pectro de oportunidades” para as pessoas se reunirem, se

mo
relacionarem e dialogarem, de forma necessária, mas tam-
bém prazerosa e enriquecedora. Conselhos de classe, em
sua concepção tradicional, nas quais os membros da equi-

o ro
pe falam e são ouvidos, e que são agendados previamente,
não podem ser uma proposta do nido para os novos usuá-
rios, tanto pais quanto equipe, que são tão diferenciados
e adeptos dos recursos multimídia, como já afirmamos

e
anteriormente. Não podemos nos dirigir a eles como pais

ee
utilizando métodos que são estranhos e anormais quan-
do comparados aos contextos culturais mais amplos nos
quais eles transitam como qualquer pessoa.

Particularmente, o que precisamos compreender como edu-


cadores é que o relacionamento com as famílias traz vanta-
gens enormes em termos do enriquecimento profissional que
pode promover, a confiança fortalecida, além de ser uma pos-
sibilidade de se superar a solidão, a frustração e a desorienta-
ção que algumas vezes torna nosso trabalho mais dificil.
Para mim, parece óbvio que essa participação, esse modo
de pais e educadores “criarem” a experiência do nido transfor-
"a
-

ma substancialmente a “imagem” e a “forma de ser” do nido.


Tudo muda: a maneira de estruturar os espaços, a concepção
das mobílias, mas, particularmente, a forma de ser e de fazer

DiáLogos com Reggio EMiLia | 81

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as coisas com as crianças, que é enriquecida pela construção
do conhecimento, pela reflexão e pelas imagens produzidas
nessa comunicação interativa de tamanha variedade. O que
se modifica de modo especial é a forma de a criança estar
no nido, a sensação de segurança, prazer e bem-estar, além
dos estímulos maiores e mais ricos que elas recebem. A par-
ticipação (o compartilhamento e a corresponsabilidade das
famílias na “construção” e na “administração” do nido) é vital
para a criança e para o próprio nido, porque a criança necessi-
ta, quase psicologicamente, viver numa rede de comunicação
com a qual possa se identificar e da qual possa se beneficiar.
Tudo isso é fundamental e vitalmente importante.
Não devemos esquecer, entretanto, que há um grau de
resistência a esse tipo de projeto que está sendo implantado:

1) por parte da equipe, em função de:

— falta de autoconfiança, muitas vezes decorrente de bai


xa autoestima, e outras vezes resultante da percepção
do elevado nível profissional que esse tipo de exercício
exige. Um alto grau de comunicação por parte do pai
da mãe pode levar o educador a se fechar, reduzindo as
trocas que ele interpreta como um julgamento por par
te das famílias. Já um baixo grau de comunicação por parte
do pai/da mãe ou conversas que se limitam a assuntos do
cotidiano pode levar o educador a desistir de tentar com
duzir o diálogo para outros tópicos;
— dificuldades, ou uma rejeição a priori, de trabalhar em ho
rários que nem sempre são adequados à vida pessoal do pr”
fissional, mas que certamente facilitam a vida das famílias

82 | CARLA RiINALDI

Digitalizado com CamScanner


s
— um corpo administrativo que não é capaz de perceber de
modo suficientemente claro a identidade da educadora do
nido, por exemplo comparando-a a uma professora de es-
cola primária ou, mais frequentemente, a uma servente da
limpeza, pois trabalhar com crianças pequenas é conside-
rado fácil e visto como algo que não requer grande esfor-
ço ou preparação — basta ser mulher e ter senso comum.

2) por parte dos pais, em função de:

— dificuldades de “organização”: Muitas vezes pode ser di-


fícil encontrar alguém com quem deixar a criança, quan-
do eles desejam comparecer às reuniões, principalmente
quando os dois querem ir;
— atitudes político-culturais: Em diversos casos detectamos
uma atitude subjacente de desconfiança em relação à im-
portância da participação, às vezes devido a experiências
prévias ou a visões vindas de outros, mas fundamentalmen-
te por suspeitarem de que não vai fazer nenhuma diferença;
— dificuldades psicológicas: Não é fácil compartilhar e tor-
nar públicos fragmentos da própria história, problemas
pessoais e crenças que precisamos compartilhar para que
esse tipo de relacionamento se torne efetivo. As pessoas
ainda não estão acostumadas ao diálogo e muitas vezes
temem ser julgadas.

3) por parte da administração e dos sindicatos, em função de:

— impossibilidade ou resistência para entender que con-


ceitos teóricos (tais como descentralização e participa-

DiáLoGos com Reccio EMiLia | 83

Digitalizado com CamScanner


ção) exigem ação prática, e que não é possível agir em
algum aspecto ou tema do nido sem envolver e modificar
os demais.
O nido não é divisível: cada ação, seja realizada ou não,
tem repercussões sobre todo o nido, assim como sobre
outros setores da administração municipal;
— distanciamento do nido e das questões a ele relaciona-
das, em razão de sua complexidade e da necessidade de
audácia ao assumir posições e tomar decisões;
— demora em compreender a grande oportunidade que
o nido representou e, mais ainda, representa nos dias de
hoje, isto é, um novo modo de elaborar uma política cul-
tural e de reafirmar o significado da autoridade local.

Essas e outras formas de resistência, baseadas em diferentes


razões, precisam ser superadas, com a máxima coerência e ra-
pidez. Precisamos que os administradores, sindicatos e equi-
pes façam escolhas básicas a respeito da organização e do pla-
nejamento dos conteúdos da participação e da administração,
incluindo:

* a maior estabilidade possível para os educadores;


*- a continuidade do relacionamento entre a equipe, 0
anos
grupo de crianças e os pais, no período de três
Em

em que a criança frequenta o nido;


es:
Nie
ds Ta

- anão introdução de novos membros e mudanças nos


grupos de crianças no curso de todo o ano letivo;
* o reconhecimento e a dedicação de tempo ao a
sessões de
volvimento da relação com os pais € às
atualização profissional;

84 | CARLA RINALDI

Digitalizado com CamScanner


« horários de reuniões convenientes não apenas para a
equipe, mas também para os pais;
« ferramentas para documentar, escrever, copiar e exi-
bir, algumas para serem disponibilizadas no nido, ou-
tras nos escritórios da administração;
+ espaços de encontros e de coleta de materiais e de ar-
quivos para a memória do grupo e a história do nido.

A VERDADEIRA PARTICIPAÇÃO

Dadas essas condições, será possível interagir e se comunicar


com as famílias de maneira nova e verdadeira, por meio de:

* encontros com famílias que se candidataram a uma


vaga no nido, a fim de discutir os critérios de seleção
(caso haja excesso de demanda);
* oencontro de início de ano, com todas as famílias das
crianças que vão começar a frequentar o nido, e o con-
tato com os educadores e demais pais para uma troca
inicial de informações;
* entrevistas conduzidas pelos educadores com sensibi-
lidade e discrição, preferencialmente com ambos os
pais, no nido ou na casa deles, antes que a criança co-
mece a frequentar o espaço educativo;
* entrevistas realizadas poucos dias antes que as crian-
ças comecem a frequentar o nido, a fim de discutir e
esclarecer questões, instruir os pais e deixá-los tran-
quilos, e para se chegar ao consenso quanto a várias
estratégias e métodos que guiarão o comportamento
dos adultos nos primeiros dias da criança no nido;

DiáLocos com Regaio EMiLia | 85


na.

Digitalizado com CamScanner


* permanência dos pais no nido durante o período inicial
de acolhimento. Isso terá de ser acordado, administra.
do em conjunto e adequado a cada criança e família,
levando em conta as necessidades dos envolvidos,
quer dizer, as crianças, suas famílias e os educadores;
reunião de grupo ou de classe, com enfoque prioritário
no perfil do grupo, nas propostas de trabalho pedagó-
gico e na apresentação dos métodos de ensino (com
imagens e pequenas exposições). A reunião acontecer;
à noite, no horário mais conveniente para todas as fa-
mílias, acordado previamente e de forma conjunta;
reunião entre um grupo de pais e a equipe, interessa-
dos em discutir um determinado tópico (por exemplo,
o papel do paí com a criança), que pode ser agendada
por vários membros da equipe ou por pais de crianças
em qualquer grupo da classe. O tópico é analisado €
abordado com a contribuição de todos, com a alter.
; nância equilibrada entre comunicação e escuta, Uma
variante é o “grupo de estudos em profundidade”, que
aus envolve encontros noturnos em diversas ocasiões:
bo? * entrevista indivídual requisitada pelos país ou pelz
equipe, a fim de abordar pontos relevantes espedf
cos relacionados à criança ou à família ou de permitir
uma oportunidade de diálogo mais substancial e int
mo para o desenvolvimento da personalidade de um?
criança em particular:
reuniões abertas com “especialistas”, encontros auto
gerenciados e sessões de trabalho, e assim por diante

* “Encontros autoperenciados são quando


“+
ad

os pais decidem o tu ma e cond !


. q uZer

a reunião, embora o educador também seja convidado, “” “Sessões


La
de tra
balho

BO | Carla RinaLAM

Digitalizado com CamScanner


isa s com,
a fazer co
u a i s s e aprende m b r a s e cà-
n a s q h e s , s o
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exemplos
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ós e netos tém
juntos; ou a festa dos avós, quando av
, rmitin-
atido inteiro só para eles e brincam juntos pe
a os má à descobrir o nido
as resistências até dos mais
desconfiados;
º passeios
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xcursões crianças
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7

Digitalizado com CamScanner


Em suma, um espectro real de oportunidades e uma “rede
de relações” oferecida aos usuários do nido, adultos e
crianças.
No que tange à organização, eu gostaria de reiterar que
organização e planejamento também são cruciais para a
participação. Esse é exatamente o objetivo dos conselhos
de administração, nos quais os pais representam a maioria.
Esses conselhos promovem e organizam a participação das
familia, e estabelecem relacionamentos significativos em ter-
mos qualitativos e quantitativos para aqueles que se envol-
vem ativamente na experiência. As questões prioritárias das
reuniões do conselho não deveriam ser mais apenas taxas
ou admissões, mas o nido como um todo e como um sis-
tema de comunicação. Para estar à altura da tarefa, o con-
selho precisa ser capaz de se estruturar e se dividir de tal
forma que permita intercâmbios com as mais amplas e va-
riadas seções do nido e da comunidade local. Assim, ele vai
se organizar em grupos de trabalho ou comitês (pedagógi-
co, ambiental, de festas, e assim por diante) organizados de
maneira permanente ou como resposta ad hoc às necessida-
des particulares, e serão coordenados por um secretariado
formado por quatro ou cinco membros (equipe e pais).
Esses corpos e processos necessitarão de uma grande
dose de respeito e apoio, assim como de meios para realizar
as investigações sobre, por exemplo, o perfil dos usuários,
EA,
ES
PE

* Conselhos de administração (consíglio di gestione) são compostos de pais, edu


cadores e cidadãos eleitos por outros pais, educadores e cidadãos em eleições
públicas realizadas a cada três anos. A responsabilidade dos conselhos e pro
mover a participação de outras familias, auxiliar os educadores na tomada &
decisões e na realização de projetos e desenvolver relações com a área loca! t
com outros nídi e scuole dell'infanzia na cidade.

Digitalizado com CamScanner


sua mudança de ano para ano, as necessidades, preocu-
pações e expectativas das famílias, e seu desejo de serem
envolvidos. Desse modo, será possível identificar as necessi-

e
dades do nido, das crianças e da equipe, os objetivos primá-

E
rios a perseguir e as formas, os meios, os períodos de tempo
e as pessoas que irão garantir que as decisões tomadas re-
sultarão, rápida e eficientemente, em ações concretas com
o máximo de prazer e benefício para os envolvidos.

e —
Assim, o nido será capaz de expressar seu pleno poten-
cial sem nenhum custo adicional, apenas com o esforço da
mente. Ele também poderá manter diálogo com as famílias
cujas crianças não frequentam o nido. Essas famílias e crian-
ças, que em alguns casos não escolheram a opção completa
do nido, podem, mesmo assim, aproveitar algumas opor-
tunidades oferecidas pelo nido, como festivais, sessões de
trabalho, reuniões com especialistas e todas as demais ini-
ciativas destinadas a incrementar o envolvimento das famí-
lias com o nido.
Dessa maneira, o nido poderia realmente se tornar um
vigoroso protagonista cultural para todas as famílias e to-
dos os cidadãos. Ele poderia se abrir aos não usuários, em
algumas ocasiões, e interagir com outras instituições, asso-
ciações e grupos locais, entrelaçando-se com o bairro. Ele
poderia contribuir para o projeto educativo e para o avan-
ço da cultura, não apenas do nido, mas também da infância
como um todo.
O grande inimigo contra o qual devemos lutar é a se-
paração, o isolamento; o grande valor a ser alcançado é a
informação, a comunicação. Uma espécie de comunicação,
conforme observamos em diversas ocasiões, que é infor-

DiáLogos com Reggio EmiLia | 89


=
di

Digitalizado com CamScanner


mativa, formativa € inclusiva, de modo que Ninguém eis
trabalha junto e
excluído dela e na qual todo mundo
encontrar soluções alternativas. Um tipo de Comunic,
ção que compreende e respeita integralmente as diferen.
ças, que passam a ser vistas como fontes de Nutrição par;
a qualidade e a quantidade da própria comunicação. Uma
categoria de comunicação e um tipo de relacionameno
(criança-educador-pai/mãe-cidadão) que são buscados +
usufruídos pelos participantes ativos, mas cuja principal
beneficiária é sempre e acima de tudo a criança, que obterá
o máximo de vantagem dessa atmosfera de diálogo.

9o | CariA RiNALDI

Digitalizado com CamScanner


2
PARTICIPAÇÃO COMO COMUNI
CAÇÃO (1984)

CrEIO QUE NÃO PODEMOS


M aIS falar do nido, da
família, dos
serviços sociais e assim p or
diante sem “historiar” esses
termos, isto é, sem faze
r qualquer distinção
“espaço” e “tem em termos de
po”. “Nido” e “família”
ferentes, se fazemos re
têm significados di-
ferência a
situações de dez anos
atrás
mos falando do cent
ro, do norte ou do

Digitalizado com CamScanner


dos cronogramas, do planejamento pedagógico, das horas
de trabalho dos educadores, das sessões de desenvolvimen-
to profissional, do debate cultural e político corrente e das
questões econômicas. Mais do que uma proposição meto-
dológica, isso é uma mentalidade, uma forma de pensar
diferente daquela com a qual muitos de nós estamos habi.
tuados, uma vez que a maior parte de nós é sobrevivente de
um sistema educacional em que as relações/ conexões eram
evitadas, no melhor dos casos, e de fato proibidas, nas piores
situações. Não havia relacionamento entre o que acontecia
fora da escola e o que se passava dentro dela, nem entre
aquilo que estudávamos em história e o conhecimento que
adquiriamos em geografia, e assim por diante.
Creio que essas elucidações são necessárias. Por um lado.
para responder àqueles que, com base em conhecimentos e
considerações vagas e superficiais, poriam tudo no mesmo
saco e fariam julgamentos com base em uma visão genérica
dos nidi na Itália. E, por outro, para introduzir o conceito
de administração social como uma intensa relação e comu-
nicação entre a equipe do nido, as famílias dos usuários eo
conselho de administração.
Administração social no nido significa a promoção e a or-
ganização desse relacionamento entre famílias e educado
res, que é o ponto de partida objetivo, embora essa relação
precise ser consolidada por meio de processos de comuni
cação cada vez mais bem-definidos. Assim, a comunicação
se torna um item do mais alto valor, o fim e os meios, 2
estratégia e o objetivo que envolve a equipe, as crianças, as
famílias, o conselho de administração e toda a instituição
sem distinção. A fim de compreender mais integralmente as

92. CarlA RinALDI

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implicações dessa afirmação e seus resultados práticos, pre-
cisamos analisar os sujeitos da comunicação, que incluem:

* A familia. Partindo da suposição de que é arriscado


definir qualquer sujeito de modo restrito, existe um
número de fatores constantes que parecem caracteri-
zar as famílias de hoje. Famílias com um filho menor
de cinco anos estão decrescendo em termos numéri-
cos; a idade média com que homens e mulheres têm
o primeiro filho está aumentando, e os filhos tendem
a ser únicos. O nível cultural médio se elevou, espe- ?
cialmente entre as mulheres, e elas surgem como
protagonistas-chave de muitas mudanças que têm
ocorrido no contexto sociofamiliar em anos recentes,
embora sejam as mulheres, em geral, que tenham de
pagar o preço pelas contradições que gradativamente
aparecem.
Dos muitos aspectos que poderíamos mencionar, um
dos mais impressionantes é a solidão e o isolamento
de muitas famílias com um filho pequeno. A solidão,
que é uma das doenças mais comuns nos dias de hoje,
acontece porque um filho pequeno normalmente
força as pessoas a abandonar alguns de seus antigos
hábitos e amigos. Pais de primeira viagem não sabem a
quem recorrer para descobrir como satisfazer algumas
necessidades da criança, que, nos estágios iniciais, é
muito “desconhecida” (as avós, na maior parte das
vezes, não estão por perto, e quando estão, não são vistas
como pessoas com conhecimentos atualizados; assim,
o médico e os vizinhos de porta acabam se tornando as

Diátogos com Reccio EmiLia | 93

Digitalizado com CamScanner


únicas pessoas disponíveis para dar conselhos e apoio).
Além disso, o nascimento de um filho muitas vezes
atrapalha a relação do casal. Os pais, portanto, têm um
grande desejo de estar com os outros, mas de uma nova
forma.
Os educadores. Em sua maioria, são mulheres e mães;
e, em sua maioria pertencem a uma família igual a
essa que descrevemos acima. No plano profissional,
os problemas de um trabalho muito exigente exacer-
bam as crises de identidade que os educadores sofrem
hoje em dia, quando mais do que nunca, os educa-
dores estão cientes de que escola e faculdade não
são suficientes para formar a pessoa para o trabalho
e de que a verdadeira formação começa depois que
a educação formal termina. Acredito que agora seja
extremamente necessário ter uma educação profis-
sional assim como uma profissão sabida e reconheci-
da, compartilhada, pública e participativa e, por isso
mesmo, significante.
A criança. Talvez mais do que qualquer outro sujeito,
a criança tem a sensação de insegurança e precarie-
dade que caracteriza a nossa existência atual e sente
mais do que qualquer um a necessidade de se envol-
ver num relacionamento, num ambiente de apoio €
comunicação que, dada a sua tenra idade, é fator de
importância vital para sua sobrevivência." Isso signi-
fica comunicação entre adultos, com adultos, com

* Aqui, me refiro, em primeiro lugar e acima de tudo, à sobrevivência fisica,


mas também à importância da boa comunicação entre o nido e a família, que é à
única maneira de assegurar um contexto que esteja ciente das necessidades, dos
desejos e da identidade da criança.

94 | Carta RiINALDI

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colegas e com os espaços e o mobiliário do nido, de
modo a estimular resolutamente o desenvolvimento
da identidade e da autoconfiança.
« Conselhos de administração ou, de forma mais genérica,
participação. Já falamos bastante, e ainda o fazemos,
da crise na participação. O cômputo de dez anos de
experiência em participação e administração social,
no campo da educação escolar e além, é, com certeza,
pouco satisfatório. As causas desses resultados decep-
cionantes e da perda de fé no processo são múltiplas
e variadas. Algumas das mais importantes se relacio-
nam aos persistentes e pesados ataques lançados con-
tra as administrações públicas, à convicção latente de
que os processos de participação provocam preguiça
e sobrecarga no sistema, e à perda de confiança nas
instituições democráticas quando se descobre que
elas são negligenciadas ou subvertidas por grupos inex-
plicáveis que trabalham “por trás dos panos”. Esses
elementos são com certeza relevantes para a com-
preensão dos baixos níveis de participação nos nidi,
onde quer que ocorram. Mas são insuficientes.

E provável que exista algo mais, que seja sutil mas decisi-
vo. É comum, por exemplo, os tipos de participação nos
nidi seguirem de forma subserviente aqueles das scuole
del"infanzia, ou pior, aqueles estabelecidos por decretos go-
vernamentais. É comum também os desequilíbrios internos
entre os integrantes dos conselhos de administração (por
exemplo, o número excessivo de representantes políticos
ante os representantes dos pais, ou a quantidade limitada de

DiáLocos com Reccio EMiLia | 95


nem

posa cata
da Sd
E

Digitalizado com CamScanner


educadores indicados para o conselho) literalmente aniqui-
larem quaisquer sinais de desenvolvimento. Acredito que,
no nido, desenvolvimento e comunicação sejam quase fei.
ções físicas e se encontrem potencialmente presentes em
cada experiência. No entanto, para que eles não se despeda-
cem em milhares de pequenas peças ou não sejam asfixia.
dos ao nascer, precisam ser animados por ideias e organizados
com ferramentas e iniciativas.
Para mim, o papel poderoso e significativo do conselho
de administração no nido parece ser o de promover, incen-
tivar e aumentar a participação e a comunicação de todo
o corpo de usuários, inclusive pais, crianças, educadores.
cidadãos, administradores e políticos. É por isso que não
aceitamos a atitude daqueles que, ao falar de participação
no nido, de sua qualidade e significação, não estão cientes
de que falam sobre o nido como entidade compreensiva
e inclusiva. Não podemos analisar e criticar processos de
participação sem analisar e criticar o desempenho integral
do nido como um todo. A família, a criança, o educador
e

e o administrador social adquirem um


valor, uma signih-
cância e um papel que são muito diferentes se aceitamos
esse princípio fundador como nosso ponto de partida. À
administração social e a participação são partes do proces
so educativo, representam uma feição intrínseca da cultura
e da conduta do nido.
A abordagem geral muda substancialmente se virmos a
administração — entendida como administração social —
como fenômeno que vai sendo filtrado ao longo do pro
cesso educacional, com habilidade para mergulhar fundo
na alma e na essência do espaço educativo, não como um

96 |; Caria RiINALDI

Digitalizado com CamScanner


tipo de ritual acrescido ou desgastado para se conformar a
: algumas fórmulas ou exigências externas. Quando a admi-
| nistração social permeia o nido, todo o resto se estrutura de
acordo com ela:

* a arquitetura do nido se modifica, assim como a or-


ganização do espaço usado pelas crianças e pelos
adultos, o mobiliário, as formas de comunicar-se e as
mensagens verbais e escritas, que adquirem um papel
e uma significância diferentes;
* os cronogramas se alteram, em especial o da equipe
e do serviço;
* o significado da educação profissional muda, porque
as sessões de desenvolvimento profissional têm de
restabelecer o conceito de participação dentro delas.

Esses não são aspectos, tópicos e setores de participação em


oposição a aspectos, tópicos e setores de não participação.
Em nossa visão, o termo “participação” vai fundo e ajuda a
resolver e reinterpretar questões, tais como o profissiona-
lismo dos educadores, a liberdade educacional, a vocação
para ensinar, o papel do profissional e a distribuição de di-
* “Liberdade educacional” aqui se refere à liberdade da educadora para decidir
O que ensinar na classe e as formas que ela gostaria de empregar para fazê-lo. No
entanto, o frequente isolamento dos educadores tem sido legitimado em nome
da liberdade educacional” — não compartilhar, mas fechar-se ao diálogo com
amigos e colegas. Assim como o conceito de “vocação para ensinar”, o senti-
mento básico que se sente pelas crianças (“Adoro crianças”) tem sido considera-
do suficiente para o exercício do ofício de ensinar, impedindo-se qualquer tipo
de desenvolvimento profissional. Certamente o fator motivacional é importan-
te, mas a qualidade do relacionamento com a criança deve ser construída por
meio de processos de desenvolvimento profissional que durem todo o tempo
de trabalho dos educadores.

Diátocos com REGGIO EMILIA | 97

Digitalizado com CamScanner


versos direitos e habilidades entre as famílias e os profissio-
nais. Em nossa opinião, todavia, sua função mais importan-
te é redefinir o conceito de “competência” que utilizamos
com frequência nesse contexto.

COMPETÊNCIA E CONSENSUALIDADE

“Competência” é uma palavra sempre recorrente. O significado


do termo geralmente aceito é aquele que o vincula a “profis
sionalismo”. Costumamos dizer: “A competência é a base do
profissionalismo”, embora, em geral, façamos alusão a uma
qualidade estática que se adquire por meio de qualificação edu-
cacional, de uma vez por todas. Alguns também alegam que
podem existir “dificuldades com o diálogo” dentro dos nidi, nos
casos em que o nido se torna “competente demais” para poder
manter o diálogo com as famílias e compreender suas necessi-
dades. Isso é quase o mesmo que dizer que um bom nido acaba-
ria distanciando as famílias da participação e do diálogo.
Acredito que o erro mais sério reside na forma pela qual
o conceito de competência é compreendido, visto como an-
títese do termo “participação”. A competência não é um vo
cábulo estático nesse caso, ou um dado. É uma abordagem,
um desejo de trabalhar junto, realizar trocas, esmerar nossas
ferramentas de aquisição de conhecimento; é estar aberto
ao profissionalismo, à progressão cognitiva, ao projetar €
Plancjar. Em primeiro lugar e acima de tudo, a competén
cia é um processo aberto de desenvolvimento profissional é
autodesenvolvimento, de enriquecimento mútuo, um desc
jo humano de trabalhar de modo cooperativo e de assumi!
responsabilidades em conjunto.

98, CARLA RiSALDI

Digitalizado com CamScanner


O projeto de participação, assim como o projeto de co-
municação que foi gradualmente tomando forma, também
requer uma definição precisa dos seguintes fatores-chave:
erre

| planejamento, organização, enfoque e consensualidade, que


: são atributos necessários que influenciam de modo decisivo
o progresso da administração social. Eles não deveriam ser
pensados como se obedecessem a alguma ordem particular
de prioridades, pois suas formas mais elevadas são alcança-
das por intermédio de interação natural e permanente.
O conceito de “consensualidade” merece uma elabo-
ração mais detalhada. Muitas vezes, falamos dos jogos de
maioria e minoria que ocorrem nos conselhos e resultam
em divisões perigosas. Mas a vida do conselho e de par-
ticipação e democracia dentro do nido não pode ser uma
questão de maioria ou minoria; tem de ser uma questão de
crescimento coletivo, que se dê pelos processos de aquisição
conjunta de conhecimento e aptidões. Não deve haver so-
luções impostas pela maioria, apenas soluções que surjam
de um diálogo proveitoso de partilha e troca, cujo resultado
final seja a conquista de um desenvolvimento e uma cons-
trução comuns.
Assim sendo, o papel cambiante dos membros da equi-
pe no nido, tanto educadores quanto auxiliares, significa que
cles não apenas propõem o projeto educativo ou comandam
a administração social, mas também se tornam de fato bene-
ficiários dessas experiências. O membro da equipe deve ser
o primeiro a alimentar o prazer da participação, a encontrar
sentido nas reuniões e achar uma oportunidade de se quali-
ficar e enriquecer seu profissionalismo por meio da partici-
pação. Porque não podemos excluir parte dos funcionários

DiátoGos com Reggio Emiia | 99

Digitalizado com CamScanner


da administração social e não é mais viável incluir o tempo
dedicado à administração nas horas normais de trabalho.
Para resumir, a participação ce a administração devem ser
vistas como um projeto que gira em torno de um projeto
educativo mais amplo, centrado na comunicação. Seus três
principais protagonistas devem ser a criança, a família co
educador, cujos destinos estão fortemente ligados. Nosso
objetivo é o bem-estar deles, um bem-estar geral que en-
volve todos de maneira interconectada: se uma das partes
está indisposta, o bem-estar das demais estará em perigo.
Esse bem-estar é altamente dependente da qualidade da
comunicação entre as partes, do conhecimento e da cons-
ciência que elas têm de suas necessidades e satisfações mú-
tuas, e das oportunidades de encontro e desenvolvimento
gradual que surgem no sistema integrado de experiências
comunicativas. Tal sistema, ao mesmo tempo que se opõe
a qualquer forma de separação, garante a valorização e a
individualidade de cada pessoa, formulando questões que
'

se encaixam nas necessidades individuais de ação e conhe-


'

cimento; e impede a separação entre a família e a experiên-


cia institucional, assim como evita que se criem hierarquias
E,

entre indivíduos, funções e espaços ou qualquer tipo de su-


bordinação entre o nido e a família. Esse sistema inibe ainda
qualquer possibilidade de separação entre aspectos afetivos
e cognitivos, assegurando a continuidade entre os proble-
mas das crianças e os das famílias, dos educadores e da so
ciedade.
Assim, será necessário encontrar abordagens organiza
cionais que, tendo a comunicação como objetivo, sejam ca
pazes de sustentá-la e lhe dar valor. Desse modo, o grupo d:

I00| Cavia RimaLDI

Digitalizado com CamScanner


classe terá um papel decisivo como grupo original e primá-
rio nos encontros de crianças e nos de adultos. Essa é a base
para se estimular a comunicação das famílias, não apenas
com os educadores, mas também com outros pais.
Ao descobrir aspectos em comum, o prazer de falar e
ouvir, ao perceber que se sabe mais do que se imaginou,
ao compreender que não se é melhor nem pior do que os
outros como pai/mãe e que se é participante ativo de um
projeto — todas essas experiências devem servir para de-
sencadear os processos de crescimento e análise que, ao en-
volver a comunidade local e suas instituições, podem dar
uma contribuição real à consolidação da cultura do nido e
da criança, que ainda é tão frágil em nosso país.

Diátocos com Reggio EMiLIA | 101

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3
MALAGUZZI E OS PROFESSORES (1996)

O ANO É 1996. LORIS MALAGUZZI, que em 1963 inspirou a


pedagogia da priimeiia escola aqunicipal em Reggio Emilia
e guiou a experiência por quase trinta anos seguintes, mor-
rera dois anos antes. Uma morte súbita, um imenso vazio,
fazendo surgir o temor de que perderíamos o sentido da
própria experiência. Trabalhei ao lado dele durante 24 anos.
Aprendi muitas coisas, mas não a ficar sem ele. Tanto no
plano pessoal quanto no profissional, foram meses e anos
difíceis, que conseguimos superar graças à profunda con-
vicção de que o conhecimento, o nosso aprendizado jun-
tos naqueles anos eram uma herança viva, uma pesquisa
permanente, um ato de vitalidade expresso no trabalho diá-
rio de cada um de nós. E os primeiros verdadeiros autores
dessa continuidade, dessa vitalidade, foram os educadores,
que haviam sido sempre os primeiros e fundamentais ins-
piradores e autores da pedagogia de Loris Malaguzzi e da
experiência de Reggio.
Pensar dessa forma me guiou quando chegou a hora de
preparar o texto para a conferência organizada em Milão,
em fevereiro de 1996. O título da conferência, Nostalgia del
Futuro (Nostalgia do Futuro), era um conceito caro a Mala-
guzzi, a quem o evento era dedicado. A organização era fei-
RD

ta pela Universitá Statale di Milano, e a professora Susanna

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Mantovani se encarregou de sugeri-lo e dar-lhe vida. Duran.
te muitos anos, Susanna tinha não apenas incentivado de
forma convincente nossa experiência, mas, também, c aci.
ma de tudo, fora amiga de Loris Malaguzzi. Essa amizade
se consolidou ao longo dos anos, graças, em parte, às mui.
tas vivências compartilhadas no Gruppo Nazionale Nidi
do qual Loris era o presidente e Susanna, a vice-presidente.
Eram essas as razões que embasavam o comprometimento
de Susanna com a organização da conferência, a primeira
sobre Loris Malaguzzi, após sua morte.
Foi um evento muito emocionante e envolvente. Havia
palestrantes de toda a Europa e dos Estados Unidos, to.
dos admiradores de Loris e ligados a ele por afeição since-
ra e admiração. Sofri para preparar minha fala. Tudo que
eu escrevia me parecia banal ou inadequado. Mas havia a
necessidade de discutir o papel dos educadores em nossa
experiência e nas escolas em geral; uma necessidade que vi-
nha de honestidade intelectual e de gratidão, mas, acima de
tudo, de como, no plano pessoal, eu havia aprendido muito
em meu diálogo com os educadores. Na verdade, acredi-
to que a profissão de pedagogo só pode ser construída por
E meio da troca permanente com os educadores e, assim,
| com as crianças e suas famílias.

Não sei de que forma isso será útil para os que estão me ou
vindo, mas quero dizer, em primeiro lugar, como foi dificil
para mim escrever este discurso. Mais do que escrever uma
fala, tive a impressão de que estava reconstruindo um peda
: ço de minha vida. Tenho certeza de que aqueles que, como
eu, tiveram a grande sorte de dividir experiências com

104 | CariA RiINALDI

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professor Malaguzzi por muitos anos — e somos muitos —
se sentem incapazes de fazer jus à riqueza, à profundidade e
à clareza de seu pensamento e, acima de tudo, de sua expe-
rência compartilhada. A natureza “parcial” do meu discur-
so é menos uma escolha e mais uma limitação — necessária
e compreensível, mas ainda assim difícil. Toda vez que me
pedem para falar ou escrever sobre Malaguzzi, tenho a im-
pressão de que estou deixando algo importante de fora, de
que não conseguirei expressar integralmente a profundeza
e a extensão da vivência que tivemos sempre que confron-
távamos um problema com Malaguzzi — mesmo que fosse
um pequeno incômodo.
Vocês podem se perguntar por que estou dizendo isso,
tendo em vista que, normalmente, as pessoas não falam — À
ou talvez não devessem falar — sobre essas coisas. Talvez |
eu não devesse ter escrito ou falado dessas coisas, já que
são tão pessoais. Seja como for, sinto que não teria sido ca-
paz de dizer ou escrever qualquer outra coisa antes de fazer
essa declaração. Eu não teria encontrado as palavras para
prosseguir. A emoção é muito forte, eu acho. Mas o pro-
cesso de construção do conhecimento (em especial aquele
que tivemos oportunidade de compartilhar com Malaguzzi)
também é um processo emocional.
Agora podemos voltar ao tema de meu discurso: Mala-
guzzi e os educadores, ao qual gostaria de acrescentar um
subtítulo: “O fio de Ariadne.”" Escolhi essa referência mito-
lógica porque era o título que Malaguzzi queria dar ao li-
* Na mitologia clássica, Ariadne, filha do rei Minos de Creta, deu para Teseu
um fio que lhe permitiu matar o Minotauro (meio homem, meio touro, a quem ;
Os atenienses eram sacrificados todos os anos) e achar o caminho de volta no
labirinto em que o Minotauro vivia. (N.E.)

Diátocos com Reggio EMiLia | 105

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vro As cem linguagens da crinça (Edwards, Gandini e Forman,
1999), quando ele estava para ser publicado pela primeira
vez nos Estados Unidos. “O fio de Ariadne” é uma metáfora
do grandioso e fundamental papel desempenhado pelo pro.
fessor — pelos professores, em geral, e pelos professores de
Reggio, em particular; uma metáfora da tarefa do professor,
de dar orientação, sentido e valor à experiência das escolase
das crianças (uma saída do “labirinto”). Os professores vistos
como aqueles que têm o fio, que constroem e constituem os
entrelaçamentos e as conexões, a rede de relacionamentos,
para transformá-los em experiências significantes de intera-
ção e comunicação. No entanto, parecia difícil traduzir esse
título, transferi-lo para a cultura norte-americana, que tal.
vez seja menos familiarizada com a mitologia e, assim, com
a metáfora, o que impediu que o título do livro enfatizasse
o papel fundamental que Malaguzzi atribuía ao professor,
ainda que essa ideia se torne clara quando se leem as muitas

páginas do livro que foram escritas por ele (e também de


outras publicações).
O papel do professor é o de protagonista e é inerente
mente respeitado. Esse respeito se deve à competência e à
inteligência com que o professor é chamado a desempenhar
NI Poda RO

o seu papel. A definição da identidade profissional do pr


= AVE ES
e

fessor, então, não é vista em termos abstratos, mas em cor


ci di
iona ai

textos, em relação aos colegas, aos pais e, acima de tudo, às


crianças, mas também em relação à sua própria identidad:
Oa
Sd à gh speia
ot cairam

e à sua formação pessoal e educacional, além da sua ext


riência.
E

Malaguzzi sempre nos pedia para começar com as cria”


ças ao tentarmos reformular tanto a epistemologia de er

Casris RINALOS

E - ao
Digitalizado com CamScanner
sinar e aprender quanto o papel do professor e do aprendiz
no processo educativo. Ele expressava assim sua ideia:
“Devemos dar um imenso crédito ao potencial e ao poder
que as crianças possuem. Devemos nos convencer de que
as crianças, assim como nós, têm poderes mais vigorosos
do que nos disseram que tinham, poderes que todos nós
possuímos — nós e as crianças temos potencial ainda mais
forte do que acreditamos. Devemos entender como, sem
ao menos perceber, fazemos tão pouco uso do potencial
de energia que temos dentro de cada um de nós.” Mala-
guzzi ressaltava que o problema da escola (e além) é, acima
de tudo, relacionado à falta de percepção e à subutilização de
todas as inteligências, habilidades, aptidões e conhecimen-
tos que possuímos. O problema, assim, é comum a todos
nós — crianças, adultos e professores.
Sua crítica era de que “existe uma espécie de convicção
crescente, um acordo tácito que sanciona a ideia de que
t

cada figura adulta na escola é perfeitamente livre para viver


te”

sua vida pessoal, sem necessariamente se misturar, vincu-


lar ou colaborar com seus colegas de trabalho — deixan-
do-nos com professores incapazes de planejar e trabalhar
coletivamente”. Por essa razão, nas palavras de Malaguzzi,
precisamos “sair de debaixo desse grande cobertor de con-
formismo e passividade e redescobrir o desejo de pensar,
Planejar e trabalhar junto”. Ele também acrescentou que

Talvez não estejamos totalmente cientes do significado de pro-


8ettare, mas podemos ter a certeza de que, se tirarmos de uma
criança a habilidade, a possibilidade e a alegria de projetar e
explorar, essa criança vai morrer. A criança morre se tirarmos

DiáLoGos com Ruccio EmiLia | 107

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dela a alegria de perguntar, de examinar e de explorar. Ela
morre se não perceber que o adulto está suficientemente pró.
ximo para ver quanta força, quanta energia, quanta inteligên.
cia, inventividade, capacidade e criatividade ela tem. A criança
quer ser vista, observada e aplaudida.

E quando a criança morre, o professor também morre, por-


que o seu objetivo é o mesmo das crianças: encontrar sen.
tido em seu trabalho e em sua existência, ver valor c signi-
ficância naquilo que faz, escapar da condição de indistinto
e anônimo, conseguir enxergar resultados gratificantes em
seu trabalho e em sua inteligência. O professor não pode
trabalhar sem um senso de significado, sem ser um prota-
gonista. Ele não pode ser apenas alguém ainda que inte:
ligente — que implanta projetos e programas decididos e
criados por outros para “outras” crianças € para contextos
E indefinidos. O valor mais alto e a significação mais profunda
residem na busca por senso e sentido que são compartilha
dos por adultos e crianças (professores e estudantes), ainda
que sempre com a percepção integral das diferentes identi-
dades e dos distintos papéis.
Nesse casamento de intenções, nessa pesquisa comum |
(da qual tiramos a definição de adultos e crianças como pes:
quisadores), qual é o papel desempenhado pelo professor?
Como nos situarmos próximos das crianças? Nesse ponto
reside uma das maiores realizações do pensamento de Ma
| Jaguzzi. A relação tradicional entre teoria e prática, que de
| signa a última como consequência da primeira, é redefinida

* Essas palavras de Malaguzzi, e as outras citadas logo acima, foram extraídas


de minhas anotações de conversas com ele,

jo8 | CARLA RINALDI

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e, assim, superada. Teoria e prática são colocadas numa re-
lação de reciprocidade, na qual, até certo ponto, a prática
tem precedência sobre a teoria. Pode ser embaraçoso admi-
tir essa preeminência possível da ação sobre a lógica, o que
pode levar inclusive à sua rejeição completa, porque parece-
ríamos estar renunciando à racionalidade e à supremacia da
teoria, assim como à nossa capacidade de predizer.
Em vez disso, devemos considerar que em uma orga-
nização (e a escola é uma organização) a lógica se torna
evidente em nosso pensamento quando somos capazes de
criar relações entre ações que já aconteceram. Se, por outro
lado, as premissas teóricas são acatadas como conclusões e
“reverberam” na didática, aqueles que implantam o projeto
educacional não são obrigados a refletir, a pensar ou a criar.
A ênfase excessiva na centralidade da teoria exime os pro-
fessores do papel de protagonistas no processo educacional,
da reflexão pedagógica e até da responsabilidade de educar.
Embora afirmemos a indissociabilidade de teoria e prá-
tica, preferimos uma teoria aberta que seja nutrida pela
prática e se torne visível, contemplada e interpretada e que
7 seja discutida com a utilização da documentação que pro-
duzimos. A documentação, assim, não representa um rela-
tório final, uma coleção de documentos, um portfólio que
apenas ajuda com a memória, avaliações e arquivos; é um
procedimento que sustenta a ação educativa (o ensino) no
diálogo com os processos de aprendizagem das crianças. A
documentação é uma força que produz o entrelaçamento
das ações de adultos e crianças, de modo oportuno e visível,
c aperfeiçoa a qualidade da comunicação e da interação. É
um processo de aprendizado recíproco. A documentação

DiáLoGos com RecGio EMILIA | 109

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torna possível aos professores sustentar a aprendizagem das
crianças, ao mesmo tempo em que os professores apren
dem (aprendem a ensinar) com o processo de construção
do conhecimento das crianças. Por essa razão, não bas;
apenas observar, embora a observação possa ser refinadae
perceptiva. Como sabemos que observar significa interpre.
tar, precisamos deixar traços de nossa observação — traços
suscetíveis de interpretação.
Desse modo, documentar significa acima de tudo deixz
vestígios, criar documentos, notas escritas, tabelas de oh
servação, diários e outras formas narrativas, mas também
gravações, fotografias, slides e vídeos que possam torna
visíveis os processos de aprendizagem das crianças e
as for.
mas de construção do conhecimento (incluindo
também o:
aspectos relacionais e emocionais). Esses docu
mentos cons
ttuem o núcleo temático de uma observação competente,
são descobertas parciais, interpretações subjetivas que.
por
sua vez, devem ser reinterpretadas e discutidas com outros
em especial com os educadores.
Isso cria uma das oportunidades mais fundamentais part
a formação profissional e o crescimento, formação real qx:
decorre da troca, da comparação de ideias. da discusso:
do coleguismo. É nesses momentos compartilhados qu:
nem sempre são fáceis, porque não estamos acostumaés
a essa discussão permanente e a ficar na berlinda) que te»
rias interpretativas e hipóteses são geradas, avançando ni
apenas o conhecimento do grupo, mas também, caso se”
confirmadas e apoiadas, mais teorias gerais de referênos :
relação de teoria e prática). E é aqui, com esse procedima
to, que o documento e o evento documentado adqur” i
Gtmn

110 | CariA RiNALDI

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múltiplos significados, criando a história e a narração do
evento como “interpretação raciocinada”. Essa é a origem
dos documentários de slides, vídeos e livros, assim como da
documentação escrita e fotográfica que adorna as paredes
dos nossos nidi e das nossas scuole dell" infanzia. Esses painéis
montados nas paredes se tornam o ponto focal da intensa e
rotineira comunicação, reflexão, memória e interação que
envolve as crianças, os educadores e os pais. Eles se trans-
formam em verdadeiros espelhos de nosso conhecimento,
em que vemos nossas próprias ideias e imagens refletidas,
mas em que também podemos ver outras imagens diferen-
tes com as quais nos engajar, dialogando.
Isso designa a escola para crianças pequenas como um
dos espaços mais privilegiados para a construção da com-
petência profissional e do conhecimento, que pertence não
apenas aos educadores das escolas, mas também aos pesqui-
sadores, acadêmicos e professores universitários. A escola
para crianças pequenas é um lugar de enorme aprendizado
e grande respeito. Durante uma de suas visitas às nossas
escolas, Jerome Bruner afirmou: “Tenho a sensação, e espe-
ro que isso não soe constrangedor para meus bons amigos,
quando estou com as crianças na escola Diana ou mesmo
no nido Arcobaleno, com as crianças bem pequeninas, de
que é como se eu estivesse num seminário no departamen-
to de pós-graduação da universidade, com o mesmo tipo
de respeito, de troca na conversa sobre o que acabamos de
merme arte

dizer ou sobre a sua visão anterior.”


N

Estamos cientes de que o meio que escolhemos para do-


we rmrirgesto

cumentar a experiência observada — em outras palavras,


para torná-la visível e suscetível ao “compartilhamento” —
Teor
nr

DiáLoGos com REGGIO EMILIA | HI


PPP

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,
representa uma perspectiva parcial que só pode ser bencfi.
ca à medida que múltiplos documentos do mesmo evento
sejam produzidos e/ou múltiplos observadores estejam en.
volvidos, usando diferentes mídias (por exemplo, gravação
de som, vídeo e slides). Tendo em vista que esse procedi
mento possibilita discutir e comparar ideias, ele nos permi.
te analisar e formular hipóteses e previsões, consolidando,
assim, nosso pensamento. É a estrutura de apoio básica do
nosso trabalho. Tal visibilidade (documentos e documenta.
ção como narrativas raciocinadas) representa um suporte
fundamental para o desenvolvimento do conhecimento e a
qualidade do relacionamento entre os três protagonistas da
experiência educacional: educadores, crianças e pais.
A documentação oferece ao educador uma oportunida.
de única de tornar a escutar, ver e visitar (“recognição”),
individualmente ou com outros, eventos e processos nos
quais foi coprotagonista, tanto direta quanto indiretamen-
te. Essa revisitação é a ocasião para interpretar os vários
documentos produzidos, junto com nossos colegas, dando
sentido aos eventos que aconteceram e, então, criando sig-
nificações e valores comuns. Além disso, como planejar en-
volve essencialmente a formulação de hipóteses e a previsão
de contextos, instrumentos, oportunidades e relevância dos
processos de aprendizagem e dos desejos das crianças, a do:
cumentação passa a ser o coração, a especificidade de cada
projeto próprio. Para nós, nem sempre é possível documen-
tar dessa forma tão abrangente, mas, quando conseguimos,
a documentação se converte num processo de verdadeira
criatividade e de crescimento para todos os envolvidos. É o
autêntico processo de formação profissional do educador.

112 | CARLA RiNALDI

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A documentação também proporciona às crianças uma
valiosa oportunidade de revisitação, reflexão, interpretação
e auto-organização do conhecimento. É um sustentácu-

Jo fundamental para a autoavaliação e para a avaliação do


grupo acerca das teorias e hipóteses de cada criança. Ela
estimula a comparação e o conflito de ideias e, portanto,
a argumentação no sentido filosófico; dá sustentação à me-
mória, permitindo à criança reler os próprios processos,
revisar, encontrar confirmações e negações e, em especial,
fazer comparações com os processos dos outros. Com a do-
cumentação, a criança pode se ver sob uma nova luz, co-
mentar sobre si mesma e ouvir comentários dos outros — e
isso possibilita uma transformação importante em termos
da construção do conhecimento e, assim, da identidade.
A documentação proporciona aos pais uma extraordiná-
ria oportunidade, pois lhes dá a possibilidade de saber não
só o que seu filho está fazendo, mas também como e por
quê, conhecendo o significado que a criança dá ao que faz
e os significados compartilhados com as outras crianças. É
um ensejo para que os pais vejam aspectos desconhecidos
de seu filho, vejam, em certo sentido, a criança “invisível”
que raramente conseguem enxergar. Mas a documentação
ainda oferece aos pais o valor da comparação, da discussão
e da troca com outros pais, estimulando o crescimento da
percepção de cada pai/mãe acerca de seu próprio papel e
de sua identidade. Compartilhar a documentação represen-
ta participar de um verdadeiro ato de democracia, dando
suporte à visibilidade e à cultura da infância, tanto dentro
quanto fora da escola: participação democrática, ou “demo-
cracia participante”, que é resultado da troca e da visibilida-

DiáLocos com Reggio EMiLIA | 13

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de. Essa mesma oportunidade nos foi dada pela exposição
“As cem linguagens das crianças” — uma ocasião para troca,
reflexão e discussão. Esse é um dos insights mais extraordi.
nários que se pode extrair da capacidade tremendamente
visionária e quimérica de Loris Malaguzzi.
Assim, a posição central da documentação no processo
educativo de adultos e crianças juntos nos leva de volta ao
papel primordial desempenhado pelo educador (e com esse
termo quero designar tanto o professor quanto o atelierista)
no pensamento e na obra de Malaguzzi.
Malaguzzi jamais escondeu as grandes expectativas e es
peranças que tinha nos educadores. Aqueles que o conhece.
ram devem se lembrar muito bem que ele podia ser tanto
minucioso quanto exigente (embora acima de tudo consigo
mesmo). No entanto, também sabemos que esse era um
sinal tangível do profundo respeito e gratidão que ele nutria
pelos educadores; respeito por suas aptidões, inteligênciae
possibilidades.
Malaguzzi sempre traduziu esse respeito em gestos
concretos, batalhas compartilhadas, paixões envolventesé
manifestações públicas, e tudo isso sem comprometer ou
renunciar a seus valores. O papel fundamental do ambiente
físico e da organização no sistema educacional; o direito a0
desenvolvimento profissional permanente, ao coleguismo.
à participação; a importância do diálogo com as famílias
esses eram os grandes princípios que Malaguzzi constante
mente sustentava e nos pedia para apoiar. O valor da ed |
cação, o desejo de superar a ambivalência (entre educaçã
e instrução, entre imaginação e realidade) e a consciênd*
de que o conhecimento do educador vai além do conhei

114 | Carta RinaLDI

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mento psicopedagógico: foram esses valores que Malaguz-
zi sempre compartilhou com os educadores, pedindo-nos
para apoiá-los, atuar sobre eles e inová-los. Malaguzzi esten-
deu esse mesmo respeito às famílias e às crianças, em razão
das quais se enchia de otimismo, fé e esperança. Enchia-se
de futuro.
Gostaria de concluir com o trecho de uma fala do profes-
sor Malaguzzi, proferida durante a visita de uma delegação
estrangeira a Reggio — uma das muitas a que ele sempre se
dedicou com grande paixão e comprometimento, porque,
como ele mesmo diria, “eles são professores”:

Há uma passagem extraordinária nos textos de Wittgenstein


em que ele fala de ter conhecido uma menina muito jovem,
com a qual conversou longamente. Um dia, a menina se apro-
ximou dele e disse: “sabe, eu espero que...” Foi a primeira vez
que ela empregou a palavra “espero” em suas conversas, e
Wittgenstein escreveu que essa experiência o perturbou pelo
resto da vida. Onde está o significado profundo de uma crian-
ça que diz “eu espero...” pela primeira vez? Quando é que a
esperança entra como uma luz na vida de uma criança, e por
quê?

Isso quer dizer que o direito de ter esperança, o direito ao


futuro, deve ser sempre um direito das crianças e dos adul-
tos, direito que todos nós, amigos de Loris, nos comprome-
temos a defender juntos.

DrároGos com Reggio EMILIA | 115

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E]

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4
DOCUMENTAÇÃO E AVALIAÇÃO
Como SE RELACIONAM? (1995-98)

À FIM DE COMPREENDER INTEGRALMENTE este texto € o próxi-


mo (“Diálogos”), precisamos retornar a 1995, ano em que
Howard Gardner propôs a realização de uma pesquisa em
conjunto. Naquela época, o professor Howard Gardner era,
entre outras coisas, diretor do Projeto Zero, uma equipe
de pesquisa da Escola de Pós-Graduação em Educação de
Harvard que se preocupava com o desenvolvimento cog-
nitivo e o processo de aprendizagem. Ele era conhecido no
mundo todo pela teoria que havia elaborado e que ficara

é, uma teoria que orientava a pesquisa e as escolasa consi-


derar a existência, nas crianças e nos adultos, de, como diz o
próprio nome, não uma, mas várias inteligências diferentes
(pelo menos sete) (Gardner, 1985). Trata-se de uma teoria
de grande importância psicológica, pedagógica e cultural,
que Malaguzzi e eu viemos a conhecer graças à sugestão
de Lella Gandini, que “urdiu a trama” de muitos dos nossos
relacionamentos com eminentes pesquisadores e figuras
culturais dos Estados Unidos. Gardner veio a Reggio Emi-
lia com sua esposa, Ellen Winner, a fim de visitar as esco-
las municipais e apresentar sua teoria para Malaguzzi e um
público de educadores de Reggio. Desse encontro, nasceu

Digitalizado com CamScanner


uma profunda amizade, baseada em estima ce admiração
mútuas, que se tornaram mais ricas com o passar dos anos
Analogias e diferenças entre as teorias das sete inteligências
e das cem linguagens tornaram o diálogo enriquecedor «
inesgotável.
Provavelmente, essa foi uma das razões que persuadi.
ram Howard Gardner a propor um projeto de pesquisa em
conjunto após a morte de Loris Malaguzzi. Ele deixou que
nós. que estávamos trabalhando nas escolas de Reggio na
época, e membros do Projeto Zero definíssemos o objeto
da pesquisa. Para isso, Mara Krechevsky veio a Reggio e.
depois de alguns encontros, concordamos com um tem:
de grande relevância para nós (especialmente para mim:
o relacionamento entre documentação e avaliação /apre-
ciação. Ao explorar essa área, no entanto, percebemos que
outros assuntos estavam surgindo, entre eles o aprendizado
individual e o aprendizado dentro e por parte de grupos de
aprendizagem e o trabalho dos documentadores. De manei
ra geral, surgiu a centralidade do tema da documentação
E desse modo, começou uma jornada que foi de grand:
interesse para todos os protagonistas: as escolas de Reggio
(em especial os educadores e pedagogos das escolas Dianat
Villerta) e os membros do Projeto Zero. Os resultados dess:
pesquisa, desenvolvida ao longo de três anos, foram pub!
cados num livro intitulado Making Learning Visible (Giudic
Krechevsky e Rinaldi, 2001), no qual apareceu pela primei:
vez este texto e o seguinte.
O livro reúne alguns dos elementos mais significauvo
decorrentes da investigação, entre os quais eu postaria “
mencionar:

18 | CARLA RinaLDI

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+ O valor da documentação fno processojisto é Quran>
Ge o processo)de ensino/ aprendizagem encenado na
sala.À documentação é, em primeiro lugar e acima
de tudo, uma ferramenta educacional, mas também
uma grande oportunidade.
- O valor da documentação como ferramenta para a
avaliação /apreciação e para a autoavaliação /autoa-
preciação. Foi por isso que me pediram para escrever
o texto que se segue, em que creio, podem ser senti-
dos o avanço e o enriquecimento que resultaram da
própria pesquisa. Algumas considerações consequen-
tes de nossos diálogos seguem ao lado dos elementos
que sempre utilizei em outros trabalhos, para descre-
ver a documentação.

“Diálogos” (Dialoghi) é o título do segundo texto, que des-


creve a riqueza do relacionamento com o Projeto Zero, que
não foi fácil, mas que com certeza gerou resultados.
Espero que também seja possível ver um pouco da força
das contribuições dos educadores de Reggio, que, ao reali-
zar a documentação (isto é, por meio da documentação),
nos ofereceram não somente seus pensamentos e reflexões,
mas também hipóteses e evidências que embasaram e de-
ram suporte a reflexões mais gerais. Enfatizo esse valor da
investigação porque o tópico, atualmente, parece ser de
grande interesse, não apenas em meu pais como em mui-
t0s outros. Sinto que reconhecer ajdocumentação jcomo,,
ferramenta possível para a aferição e avaliação nos dá um

de ferramentas de aferição e avaliação cada vez mais anô-


j mer te tm te e

DiáLoGcos com Reggio Ema | 119

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nimas, descontextualizadas e só aparentemente objetivas e
democráticas.
aca

O conceito de documentação como uma coleção de docu-


mentos utilizados para demonstrar a verdade de um fato
ou confirmar uma tese é historicamente correlato ao nasci.
mento e à evolução do pensamento científico, e a uma con.
ceituação do conhecimento como entidade objetiva e passí-
vel de demonstração. Portanto, ele é vinculado a um deter.
minado período histórico e a profundas razões de natureza
cultural, social e política, que não examinarei aqui. Em vez
disso, considero interessante ressaltar como o conceito de
documentação, que só recentemente ingressou no ambien.
te acadêmico, mais especificamente na esfera didático-pe-
dagógica, sofreu modificações substanciais que, em parte,
alteram sua definição. Nesse contexto, a documentaçãoé
interpretada e utilizada por seu valor como ferramenta pars

O itinerário didático e a trajetória do aprendizado que


acontecem numa escola presumem significação completa
para os sujeitos envolvidos (educadores e crianças), a ponto
de esses processos poderem ser relembrados, reexaminados,
analisados e reconstruídos de forma adequada. A trajetória
educacional se torna concretamente visível por meio de
uma documentação cuidadosa dos dados relacionados com
as atividades, fazendo uso de instrumentos verbais, gráficos
e documentários, assim como das tecnologias audiovisuais
mais comumente encontradas nas escolas. Quero realçar
um aspecto em particular relacionado com a maneira peli
qual a documentação é utilizada: os materiais são colet?

120 | CARLA RiNALDI

Digitalizado com CamScanner


dos durante a experiência, mas são lidos e interpretados no
final, A leitura e a convocação da memória, portanto, têm
lugar após o fato. Os documentos (gravações em áudio e
vídeo, notas escritas) são coletados, algumas vezes cataloga-
dos, e trazidos de volta para releitura, revisitação e recons-
trução da experiência. Aquilo que ocorreu é reconstruído,
interpretado e reinterpretado por meio dos documentos
que testemunham as etapas destacadas de um processo pre-
definidas pelo educador: a trajetória que tornou possível
para o alcance dos objetivos da experiência.
Em síntese, de acordo com essa abordagem conceitual
e com essa prática didática, os documentos (e as reflexões e
interpretações que eles extraem dos educadores e alunos)
não intervêm durante a trajetória do aprendizado nem no
processo de aprendizagem de modo a dar sentido e dire-
ção a esse processo. Eis a diferença substancial. Em Reggio
Emilia, onde exploramos essa metodologia durante anos,
damos ênfase à documentação como parte integrante dos
Procedimentos que almejamos para fomentar o aprendi-
Zado e modificar o relacionamento entre ensino e apren-
dizagem. Para elucidar minha afirmação, deveriam ser
Munciadas algumas suposições que a princípio poderiam
Parecer distantes da questão tratada, mas que — assim es-
Pero — ajudariam a compreender que nossa escolha e nos- f
Sa prática não são aleatórias nem indiferentes. Na verdade, | À
acredito que a documentação é uma parte substanciosa do
(Gr
objetivo que sempre caracterizou nossa experiência: a bus-
Ca pelo significado — encontrar o significado da escola, ou o 7 I
melhor, construir a significação da escola como lugar que 135
desempenha papel ativo na busca das crianças pelo signifi- eh

DiáLoGos com Reggio EMILIA [121

Digitalizado com CamScanner


cado e na nossa própria busca por significado (e significados
| partilhados). Nesse sentido, entre as primeiras questões que
N | nós, educadores, deveríamos nos perguntar, estão as seguin.
E tes: Como podemos ajudar as crianças a descobrir o sentido
daquilo que fazem, encontram e experimentam? E como
podemos fazer isso por nós mesmos? Estas são questões de
significado e de busca pelo significado (Por quê? Como? O
quê?). Creio que sejam as perguntas-chave que as crianças
estão sempre se fazendo, tanto na escola quanto fora dela.
s Trata-se de uma busca e uma tarefa muito difíceis, espe-
cialmente para crianças que, hoje em dia, têm tantas esferas
de referência em suas vidas cotidianas: a experiência da fa.
mília, a televisão, os lugares sociais que frequentam (além
da escola e da família). É uma empreitada que implica a rea-
lização de conexões e a atribuição de significados a even-
tos e fragmentos que são reunidos em inúmeras e variadas
experiências. As crianças se entregam a essa busca com te.
nacidade e esforço, cometendo erros algumas vezes, mas
E 2 buscando por conta própria. Não podemos viver sem sig-
nificado; isso impossibilitaria qualquer senso de identidade.
qualquer esperança, qualquer ideia de futuro. As crianças
sabem disso e iniciam sua busca desde o comecinho de suas
é vidas. Sabem disso como membros novatos da espécie hu-
, mana, como indivíduos, como pessoas. A busca pelo sentido
É da vida e do eu na existência nasce com a criança e é porel |
a desejada. É por isso que falamos que a criança é competente |
e forte — uma criança que tem o direito de ter esperançae
de ser valorizada, não uma criança predefinida como frágil.
y arente, incapaz. Temos uma maneira diferente de pensart
| tratar a criança: nós a enxergamos como sujeito ativo, com
"Tl

122 | CartA RINALDI

Digitalizado com CamScanner


o qual podemos pesquisar, tentar compreender as coj
dia a dia, encontrar um significado, um pedaço-daida.
q Para nós, esses significados, essas teorias explanatórias,
são, extremamente importantes e poderosas Ipara revelar
como as crianças pensam, questioname interpretam a rea-
Tidade e as próprias relações com a realidade e conosco.
> Aqui está a gênese da pedagogia das relações e da escu-
uma das metáforas que distingue a pedagogia de Reg-
gio Emilia. o
Para adultos e crianças, sem diferença, compreender re-
presenta ser capaz de desenvolver uma “teoria” interpreta-
tiva, uma narração que dê sentido a eventos e objetos do
mundo. Nossas teorias são provisórias, a explicação que
=

propõem é satisfatória, mas pode ser continuamente retra-


balhada; elas representam, porém, algo mais do que sim-
plesmente uma ideia ou um conjunto de ideias. Elas devem
nos agradar e nos convencer, devem ser úteis e satisfazer
Z . DA L
meme

nossas necessidades intelectuais, afetivas e estéticas (a esté- Cemunvita


tica do conhecimento). Ao representarem o mundo, nossa =:
teorias representam a nós mesmos.
Além do mais, se possível, nossas teorias devem agradar
€ ser atraentes para os outros. Elas precisam ser ouvidas por
outros. Expressá-las para terceiros torna possível transformar
um mundo que não é intrinsecamente nosso em algo com-
partilhado. Compartilhar teorias é uma resposta à incerteza.
Eis aqui, portanto, a razão pela qual qualquer teoriza-
ção, da mais simples à mais refinada, necessita ser expressa,
ser comunicada, sendo, assim, ouvida, para poder existir.
E aqui que reconhecemos os valores e os fundamentos da

e
pedagogia da escuta”.

DiáLogos com Regcio EMILIA | 123

k o as
Digitalizado com CamScanner
À PEDAGOGIA DA ESCUTA

Como podemos definir o termo escuta?


& Escuta como sensibilidade
aos padrões que conecta, ao
que nos conecta aos outros; entregando-nos à convicção de que
nosso entendimento e nosso próprio ser são apenas pequenas
partes de um conhecimento mais amplo, integrado, que man-
tém o universo unido.
s Escuta, portanto, como metáfora para a abertura c a sen.
sibilidade de ouvir e ser ouvido — ouvir não somente com
as orelhas, mas com todos os nossos sentidos (visão, tato,
“olfato, paladar, audição e também direção).
; Escuta das cem, das mil linguagens, símbolos e códigos que
usamos para nos expressar € nos comunicar, e com os quais
a vida expressa a si mesma e se comunica com aqueles que
sabem ouvir. Escuta como tempo, tempo de ouvir, um tempo
situado fora do tempo cronológico — um tempo cheio de s-
lêncios, de longas pausas, um tempo interior. Escuta intenor
escuta de nós mesmos, como uma pausa, uma suspensão, um
elemento que engendra ouvir os outros, mas que também€
gerado pelo escutar o que os outros têm de nós.
«& Por trás do ato de escuta existe normalmente uma cuno
sidade, um desejo, uma dúvida, um interesse; há sempr
alguma emoção. Escuta é emoção; é um ato originado por
emoções € que estimula emoções. As emoções dos outro
nos influenciam por meio de processos fortes, diretos, nê
mediados e intrínsecos à interação entre sujeitos comur
cantes. Escutar como forma de aceitar de bom prado e est
aberto às diferenças, reconhecendo o valor do ponto de v
ta c da interpretação dos outros.

124 | CasiA Posalpi

Digitalizado com CamScanner


; Escutar como um verbo ativo que envolve interpretação,
dando sentido à mensagem e valor àqueles que a oferecem.
Escutar que não produz respostas, mas formula questões;
escutar que é engendrado pela dúvida, pela incerteza, que
não é insegurança, pelo contrário, é a segurança de que cada
verdade só existe se estivermos cientes de seus limites e de
sua possível “falsificação”.
(A escuta não é fácil. Exige uma profunda consciência e
a suspensão de nossos julgamentos e, acima de tudo, de
nossos preconceitos; demanda abertura à mudança. Requer
que tenhamos claro em nossa mente o valor do desconheci-
do e que sejamos capazes de superar a sensação de vazio e
precariedade que experimentamos sempre que nossas cer-
tezas são questionadas.
tEscuta que tira o indivíduo do anonimato, que nos legi-
tima, nos dá visibilidade, enriquecendo tanto aqueles que
escutam quanto aqueles que produzem a mensagem (e as
crianças não suportam ser anônimas).
€ Escuta como premissa de qualquer relação de aprendiza-
“do — aprendizado que é determinado pelo “sujeito apren-
diz” e toma forma na mente desse sujeito por meio da ação
c da reflexão, que se torna conhecimento e aptidão por
intermédio da representação e da troca. Escuta, portanto,
como um “contexto de escuta”, em que se aprende a ouvir e
a narrar, em que indivíduos sentem legitimidade para repre-
sentar suas teorias e oferecer as próprias interpretações de
uma questão particular, Ao representar nossas teorias, nós
as reconhecemos”, permitindo que nossas imagens e intui-
ções tomem forma e evoluam por meio de ação, emoção,
expressão e representações icônicas e simbólicas (as “cem

Diátosos com Reggio Eita | 125

Digitalizado com CamScanner


linguagens”). O entendimento e a consciência são engen
drados no compartilhamento e no diálogo.
Representamos o mundo em nossas mentes, e essa re
presentação é fruto de nossa sensibilidade à forma pela qual
o mundo é interpretado nas representações dos outros.É
aqui que a nossa sensibilidade ao escutar é realçada; par.
tindo dessa sensibilidade, formamos e comunicamos nossa:
representações do mundo, baseados não apenas em noss:
resposta aos eventos (autoconstrução), mas também naqui.
lo que aprendemos sobre o mundo na troca por comunica.
ção com os outros.
A capacidade de mudar (de um tipo de inteligência parz
outro, de uma linguagem para outra) não é só um potenai!
na mente de cada indivíduo, envolve também a tendêna:
à mudança através de (para interagir entre) muitas mentes
Enriquecemos nosso conhecimento e nossa subjetividade
graças a essa predisposição de aceitar as representações
teorias dos outros — isto é, escutar Os outros e estar aberto
a eles.
Essa capacidade de escutar e de alimentar expectativas
recíprocas, que possibilita a comunicação e o diálogo, é um:
qualidade da mente e da inteligência, particularmente nº
criança pequena. É uma qualidade que requer compreensi:
e apoio. No sentido metafórico, as crianças são as maior:
ouvintes da realidade que as cerca. Elas possuem o tem
de escutar, que não é apenas o tempo para escutar, mas:
tempo rarefeito, curioso, suspenso, generoso — um temp
cheio de espera e expectativa. As crianças escutam a vida e”
todas as suas formas e cores, e escutam os outros (adulto
e colegas). Elas logo percebem que o ato de escutar (obs

126 . CARLA RiNALDI

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vando, mas também tocando, cheirando, sentindo o gosto,
pesquisando)é essencial para a comunicação. As crianças
são biologicamente predispostas a se comunicar, a existir
em relação, a viver em relação.
Assim, escutar parece uma predisposição inata que acom-
panha as crianças desde o nascimento, permitindo que seu
processo de aculturação se desenvolva. A ideia de uma ca-
pacidade inata de escutar pode parecer paradoxal, mas, com
efeito, o processo de aculturação deve envolver motivações
e competências inatas. A criança recém-nascida vem ao
mundo dotada de um eu alegre, expressivo e pronto para
experimentar e pesquisar, utilizando objetos e se comuni-
cando com outras pessoas. Desde o princípio, as crianças
demonstram uma notável exuberância, criatividade e in-
ventividade diante de tudo que as rodeia, assim como uma
consciência autônoma e coerente.
t Na mais tenra idade, as crianças mostram que têm voz|
e, acima de tudo, que sabem escutar e que também querem
ser ouvidas. Não se ensina a elas a sociabilidade: elas são se-1
res sociais. Nossa tarefa é apoiá-las e viver sua sociabilidade [
junto com elas; foi essa qualidade social que nossa cultura í
produziu. Crianças pequenas se sentem fortemente atraídas |
pelos modos, pelas linguagens (e, portanto, pelos códigos)| |
produzidos por nossa cultura, assim como por outras pes- À
soas (crianças e adultos). õ;
Trata-se de um caminho difícil que exige esforço, ener-
gia, muito trabalho e às vezes sofrimento, mas que também
oferece encanto, surpresa, alegria, entusiasmo e paixão.
E um caminho que demanda tempo, tempo que as crian-
ças têm e os adultos não têm, ou não querem ter. Isso é

Diátocos com Regcio EmiLia | 127

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o que uma escola deveria ser: primeiro e acima de tudo,
um contexto de múltiplo escutar. Esse contexto de múltiplo
escutar, envolvendo os educadores e também o grupo de
crianças e cada criança, todos capazes de ouvir os outros
e a si mesmos, subverte a relação ensino /aprendizagem e,
assim, muda o enfoque para o aprendizado; quer dizer, do
autoaprendizado da criança e do aprendizado conquistado
por crianças e adultos juntos.
é Assim como as crianças representam suas imagens men-
tais para os outros, elas também as representam para si
mesmas, desenvolvendo uma visão mais consciente (escuta
interior). Então, passando de uma linguagem a outra, de
um campo de experiência a outro, e refletindo sobre essas
mudanças e as dos outros, as crianças modificam e enrique-
cem suas teorias e seus mapas conceituais. No entanto, isso
só se torna verdadeiro se, e apenas se, elas tiverem a opor
tunidade de fazer essas mudanças num contexto de grupo
— isto é, em e com outros — e se puderem ouvir e serem
ouvidas, para expressar suas diferenças e se tornar recepti
vas às diferenças alheias. A tarefa daqueles que educamé
não só permitir que as diferenças sejam manifestadas, mas
tornar possível que elas sejam negociadas e alimentadas por
meio da troca e da comparação de ideias. Estamos falando
sm

de diferenças entre indivíduos, mas também de diferenças


entre linguagens (verbal, gráfica, plástica, musical, gestual
etc.), pois é a passagem de uma linguagem a outra, assi
como sua recíproca interação, que possibilita a criação €º
consolidação de conceitos e mapas conceituais.
Não é somente a criança, individualmente, que aprem
de a aprender, mas o grupo se torna cônscio de si mesm

128 | CantA RiNALDI

Digitalizado com CamScanner


como um “lugar de ensino”, onde as muitas linguagens são
enriquecidas, multiplicadas, refinadas e geradas, mas onde
também colidem, “contaminam”, formam híbridos umas
com as outras e se renovam.
£O conceito de “montagem de andaimes”, que tem ca- |
racterizado o papel do educador, também presume novos
e diferentes métodos e sentidos. É o contexto, a rede de ex-
pectativas recíprocas (mais do que os próprios professores)
que sustenta os processos individuais e coletivos. Além de
oferecer suporte e mediação cultural (problema em ques-
tão, instrumentos etc.), os educadores que sabem como
observar, documentar e interpretar os processos que as
crianças experimentam autonomamente perceberão, nesse
contexto, seus maiores potenciais para aprender como en-
sinar,
À documentação, portanto, é vista como a escuta visível,
como a construção de traços (por meio de notas, slides, vi-
deos e assim por diante) que, além de testemunhar os pro-
cessos e trajetórias de aprendizado das crianças, também os Í
tornam possíveis por serem visíveis. Para nós, isso or
tornar visível e, assim, possível as relações que são a base do
conhecimento.

Documentação

Caran rantirésc(EE
*Ua EU
utarE e ser escutadojéa uma das funções mais pri- w
COD

Mordiais da doc ntação (produzir traços/documentos


meme,

que testemunhem e tornem visíveis os modos de aprendi-


Zado dos indivíduos e do grupo), assim como a segurança
de que o grupo e cada criança individualmente têm a pos-

DiáLoGos com Regcio Emicta | 129

Digitalizado com CamScanner


sibilidade de observar a si mesmos de um ponto de vista
externo enquanto estão aprendendo (tanto durante quanto
após o processo),
Uma ampla variedade de documentação (vídeos, prava
ções em fitas, notas por escrito, e assim por diante) produzi.
da e utilizada no processo (quer dizer, durante a experiência)
oferece as seguintes vantagens:

* Tornar visível (embora de mancira parcial e, assim,


“partidária”) a natureza dos processos de aprendizado
c as estratégias utilizadas por cada criança, e trans
formar os processos subjetivos ce intersubjetivos em
patrimônio comum.
* Possibilitar a leitura, a revisitação e a avaliação, no
tempo e no espaço, de forma que essas ações se tor
nem partes integrantes do processo de construção do
conhecimento,

A documentação pode modificar o aprendizado de um pon


to de vista epistemológico (permitindo a avaliação e a autos
valiação epistemológica, que se tornam partes integrantes
do processo à medida que o guiam e o orientam). Isso pare
ce essencial aos processos metacognitivos e à compreensão
de crianças e adultos. Em relação a estudos recentes qu
realçam cada vez mais o papel da memória nos process
de aprendizado e de formação de identidade, poderíamos
levantar a hipótese de que a memória ganha um significar
vo reforço com imagens (fotografias e vídeos), vozes e ano
SS pj SOS T

tações. Da mesma forma, o aspecto reflexivo (estimulad:


Pista

pela “metacognição” que ocorre com o uso das descobe


RIA 4 star
ENGESA E

130 CaurA RisaLDI


BEEN

Digitalizado com CamScanner


tas) e a capacidade de concentração e interpretação pode-
riam se beneficiar desse material que aprimora a memória,
Isso é apenas uma suposição, mas em minha visão, merece
ser confrontada e discutida, Nesse movimento, que eu de-
finiria como uma espiral que entrelaça e junta observação,
interpretação e documentação, é possível ver claramente
que nenhuma dessas ações pode realmente ser separada ou
isolada das outras, Qualquer separação scria artificial e ser-
viria apenas ao argumento. Em vez disso, cu falaria sobre o
domínio, no nível adulto, da consciência e, por conseguinte,
da ação. É impossível, na realidade, documentar sem obser-
var e, obviamente, sem interpretar.
Por meio da documentação, o pensamento — ou a in-
terpretação — daquele que documenta se torna material,
isto é, tangível e capaz de ser interpretado. As notas, as gra-
vações, os slides e as fotografias representam fragmentos de
uma memória que parece, assim, se tornar “objetiva”, Ao
mesmo tempo que cada fragmento está imbuído da subje-
tividade daquele que documenta, ele se oferece à subjetivi-
dade interpretativa dos outros de modo a ser conhecido ou
reconhecido, criado e recriado, e também como um evento
coletivo de construção do conhecimento.
O resultado é um conhecimento abundante e enriqueci-
do pelas contribuições de muitos. Nesses fragmentos (ima-
gens, palavras, sinais e desenhos) existe o passado, aquilo
que já ocorreu, mas também existe o futuro (ou melhor,
aquilo que pode vir a acontecer se...).
Estamos olhando para uma nova concepção de didática:
didática participativa, didática como procedimentos e pro-
cessos que podem ser comunicados e compartilhados. Visi-
q
perene

DiáLoGos com Regio EmiLia | 137

Digitalizado com CamScanner


bilidade, legibilidade e cumplicidade se tornam núcleos de
sustentação, pois são as bases da efetividade comunicativa e
da efetividade didática. Assim, a didática se assemelha mais
à ciência da comunicação do que às tradicionais disciplinas
pedagógicas.
Aqui surge um aspecto particular que estrutura a rela-
ção de ensino /aprendizagem e que, nesse contexto, fica
mais visível, mais explícito. No momento da documenta-
ção (observação e interpretação), o elemento de avaliação
entra imediatamente em cena, isto é, no contexto e duran-
te o tempo em que a experiência (atividade) acontece. Não
basta fazer uma previsão abstrata que determina o queé
significativo — os elementos de valor necessários para que
se efetive o aprendizado — antes que a documentação seja
de fato efetuada. É necessário interagir com a própria ação,
com aquilo que é revelado, definido e percebido como ver-
dadeiramente significativo, enquanto a experiência trans
corre. Qualquer lacuna entre a previsão e o evento (entre
os sentidos inerentes e aqueles que as crianças atribuem
à sua ação) deve ser pronta e rapidamente acolhida. O es
quema de expectativas do adulto não é prescritivo, mas
orientador. Dúvida e incerteza permeiam o contexto; são
parte do “contexto daquele que documenta”. Aqui reside
verdadeira liberdade didática, tanto para a criança quanto
para o educador. Uma liberdade que reside nesse espaço
entre o previsível e o inesperado, onde o relacionamen
to comunicativo entre os processos de aprendizagem d
crianças e educadores é construído. É nesse espaço que at
questões, o diálogo, a comparação de ideias com os cole
gas estão situados, onde acontece a reunião sobre o “qui

132 | Canta RinALDI

eim

Digitalizado com CamScanner


fazer” e onde se dá o processo de avaliação (decidir a que
“atribuir valor”).
A questão, portanto, é considerar a criança como um
contexto para si mesma e para os outros e conceber o pro-
cesso de aprendizado como um processo de construção de
interações entre o “sujeito que está sendo educado” e os
“objetos da educação” (que incluem tanto o conhecimento
quanto os modelos de comportamento socioafetivos e axio-
lógicos). Isso significa que o objeto da educação é visto não
como um objeto, mas como um “lugar relacional”. Com
esse termo, quero ressaltar a forma pela qual o educador
escolhe e propõe a abordagem de construção do conheci-
mento (assumindo toda a responsabilidade devida). Ela é a
construção de relacionamentos que nascem da curiosidade
recíproca entre o sujeito e o objeto, curiosidade que é ani-
mada por uma questão que estimula o sujeito e o objeto a
“encontrar um ao outro”, mostrando o que a criança sabe
(compreendido como teorias e desejos de conhecimento)
e o conhecimento do objeto em termos de sua identida-
de cultural. Essa identidade não é limitada aos elementos
imediatamente percebidos, dirige-se também às elaborações
culturais que foram produzidas ao seu redor e, acima de
tudo, a todas aquelas que podem ser produzidas nesse novo
relacionamento de busca do conhecimento. Esse “re-conhe-
cimento” do objeto é não apenas “histórico”, isto é, que re-
produz o que é culturalmente sabido sobre o objeto (por
exemplo, o que sabemos sobre uma árvore em suas inter-
pretações disciplinares: biologia, arquitetura, poesia e assim
por diante). É ainda um organismo vivo, porque surge na
vitalidade, no frescor e na imprevisibilidade desse encontro,

DiáLocos com Reggio EmiLia | 133

Digitalizado com CamScanner


E
o

no qual a criança pode dar nova identidade ao objeto, crian-


do um relacionamento para o objeto e para ela própria que
aa

é também metafórico e poético.


A documentação é esse processo: dialético, baseado em
laços afetivos, e também poético; não apenas acompanha o
processo de construção do conhecimento como, em certo
sentido, o fecunda.
A documentação não apenas se empresta à interpreiz
ção: ela própria é interpretação. É uma forma narrativz
uma comunicação tanto intrapessoal quanto interpessoz, |
porque oferece aos que documentam e aos que leem ess:
documentação uma oportunidade para aprender e refletir
O leitor pode ser um colega de trabalho, um grupo de co
legas, uma criança, várias crianças, pais, qualquer um que
tenha participado ou queira participar desse processo. O
material documentado é aberto, acessível, utilizável e, por
tanto, legível. Na realidade, esse não é sempre o caso. €º
processo não é nem automático nem fácil. Uma documer
tação efetiva requer larga experiência em leitura e escrtz
documental.

LEGIBILIDADE

Assim a documentação é uma forma narrativa. Seu poi!


;
t
de atração reside na riqueza de questões, dúvidas e re:
3
“3 xões que sublinham a coleção de dados e com as quais e:
oferecida aos outros — colegas educadores e crianças. Es

.
y “escritos”, em que diferentes linguagens são entrelaçad”
o
(gráfica, visual, icônica), precisam ter O próprio código
própria convenção no grupo que os constrói e os unliza.

4
5
4
:54 CariA RexsiDI
4

Digitalizado com CamScanner


modo a garantir, ainda que não totalmente, a efetividade
da comunicação. Ou seja, esses escritos devem ser legíveis,
comunicar efetivamente algo âqueles que não estavam pre-
sentes no contexto, e devem também incluir os “elementos
emergentes” percebidos por quem documentou. São es-
critos tridimensionais, que visam não dar objetividade ao
evento, mas expressar o esforço para atribuição de significa-
do; isto é, dar sentido, exibir a significação que cada autor
atribui à documentação e às questões e problemas que ele/
cla percebe em determinado evento. Esses escritos não se
apartam das características biográficas pessoais do autor;
tornamo-nos, assim, cientes de suas preferências, o que aqui
é considerado um elemento de qualidade.
Aquele que documenta enxerga os eventos que aconte-
ceram com um olhar pessoal buscando compreendê-los em
profundidade e, ao mesmo tempo, almejando clareza de co-
municação. Isso é possível (embora pareça paradoxal) com a
incorporação, na documentação, do senso de incompletude e
expectativa que pode surgir quando se tenta oferecer aos ou-
tros, não o que se sabe, mas as fronteiras do seu conhecimen-
to; quer dizer, os seus limites, que derivam do fato de que o
“objeto” narrado é um processo e um caminho de pesquisa.

AVALIAÇÃO: UMA PERSPECTIVA QUE DÁ VALOR

O que oferecemos aos processos e procedimentos das crian-


ças, e âqueles que crianças e adultos colocam juntos em
ação, é uma perspectiva que dá valor. Valorizar significa dar
valor a esse contexto e implica que certos elementos sejam
tomados como valores.

Diárosos com Regio EmiLia | 135

Digitalizado com CamScanner


Creio que aqui está a gênese da avaliação, porque ela per-
mite tornar explícitos, visíveis e partilháveis os elementos
de valor (indicadores) aplicados na produção da documen-
tação por quem documenta. A avaliação é parte intrínseca
da documentação e, portanto, de toda a abordagem daquilo
que denominamos progettazione (a progettazione é discutida
nas “Notas sobre terminologias”, página 11). Na verdade,
essa abordagem se torna algo além de um procedimento
prescrito e predefinido; é uma conduta alimentada pelos
elementos de valor que emergem do próprio processo.
Isso faz com que a documentação se torne especia
lmen-
te valiosa para as próprias crianças, pois elas
podem encon-
trar aquilo que fizeram na forma de uma
narração, vendo
o significado que o educador extraiu de
seu trabalho. Aos
olhos das crianças, isso pode demonstrar que
aquilo que fi-
zeram tem valor, tem significado, e assim
elas descobrem
que “existem” e podem sair do anonimato
e da invisibilida-
de, observando que aquilo que dizem e fazem
tem impor-
tância, é ouvido e apreciado: é um valor.
É como ter uma interface consigo mesmo e com
quem
mais entrar nesse tipo de hipertexto. Aqui o texto age como
ve-
tor, suporte e pretexto do espaço mental pessoal das crianças.

À COMPETÊNCIA DO EDUCADOR

Nesse contexto, é óbvio que o papel e a competência do


educador são qualificados diferentemente do modo pelo
qual são definidos no ambiente educacional em que o ofício
do professor é apenas transmitir conhecimento disciplinar
da forma tradicional.

136 | Caria RiNALDI

Digitalizado com CamScanner


A tarefa não é encontrar (e ensinar) uma série específica de
regras, ou apresentar certas proposições organizadas em fór-
mulas que podem ser facilmente aprendidas, ou mesmo en-
ginar um método que possa ser replicado sem modificações.
A competência do educador é definida mais em termos
de entendimentos do que de conhecimento puro. Isso indi-
ca familiaridade com fatos críticos, de modo a permitir que
aqueles que têm essa familiaridade digam o que é importan-
te e levantem hipóteses que se encaixem em cada situação
— isto é, o que tem utilidade para aquele que aprende, em
uma situação particular.
Então, qual é o segredo? Não há segredo, nem chave, a
não ser o de examinar permanentemente nossos entendimen-
tos, conhecimentos e intuições, e partilhá-los e compará-los
com os de nossos pares. Não é uma “ciência” transferível,
mas antes uma compreensão, uma sensibilidade para o co-
nhecer. A ação e os resultados da ação, numa situação em
que somente a superfície está visível, serão bem-sucedidos,
em parte, graças ao sucesso dos atores — crianças e educa-
dores —, que são todos responsáveis, embora em diferentes
níveis, pelos processos de aprendizagem.
Proceder por tentativa e erro não degrada os caminhos
didáticos; na verdade, isso os enriquece no plano do pro-
cesso (quer dizer, do processo e de nossa consciência dele),
assim como no plano ético.
Há ainda um elemento de improviso, uma espécie de
| tocar de ouvido”, uma capacidade de analisar em detalhe
) Uma situação para saber a hora de andar e a hora de ficar
f parado, coisa que nenhuma fórmula, nenhuma receita pode
substituir.

DiáLoGos com RegGio EMILIA | 137

Digitalizado com CamScanner


Com certeza também existem riscos, mas na verdade
muito poucos: imprecisão e superficialidade podem induzir
a confusão de imagens ou notas escritas para a documenta-
ção, o que, sem a percepção daquilo que se está observan-
do, só cria desorientação e perda de significado.
Nesse ponto, a questão que surge claramente é a edu-
cação dos professores: ela deve ser muito ampla e abran.
ger diversas áreas de conhecimento, não apenas psicologia
e pedagogia. Um professor cultivado tem não só formação
multidisciplinar, como cultura da pesquisa, da curiosidade,
do trabalho em grupo: a cultura do pensamento baseado
em projetos. Acima de tudo, precisamos de professores que
se sintam realmente pertencentes e participantes desse pro-
cesso como professores, porém mais ainda como pessoas.
Loris Malaguzzi, arquiteto do pensamento pedagógico
e filosófico que permeia a experiência de Reggio, certa vez
disse que precisamos de um professor que, em determina-
dos momentos, seja diretor, cenógrafo, cortina e cenário,
e às vezes ponto (auxiliar de cena). Um professor que é ao
mesmo tempo doce e severo, que é eletricista, que distribui
as tintas e que seja o próprio público — o público que assis
te, que às vezes aplaude, às vezes fica em silêncio, cheio de
emoção, que algumas vezes julga com ceticismo e outras
vezes aplaude com entusiasmo.

138 | CARLA RiNALDI

Digitalizado com CamScanner


5

SEE
ed
DIÁLOGOS

ENQUANTO EU LIA OS VÁRIOS CAPÍTULOS deste livro, antes de


escrever esta conclusão, alguns aspectos me pareceram tão
claros que me convenci a partilhá-los com o leitor.
O primeiro aspecto tem relação com os processos de
aprendizagem de crianças e adultos. Já faz tempo, a epis-
temologia genética de Piaget demonstrou que, de um
ponto de vista muito específico e abstrato, as estrutu-
ras lógicas de um adulto são bem diferentes das de uma
criança. De acordo com essa visão, quando um adulto e
uma criança são colocados diante do mesmo problema,
eles reagem e se comportam de maneiras bastante distin-
tas. Todavia, se assentamos adultos e crianças em situa-
ções concretas diferentes, mas que exijam de ambos um
esforço cognitivo que é mensurado segundo os potenciais
próprios de cada um, parece que os processos vividos não
diferem tão significativamente.
Em minha concepção, isso pode ser visto em boa parte
do que já foi escrito neste livro. De fato, observamos como,
ao se deparar com a necessidade de refletir e de reformu-
lar o conhecimento já adquirido, como acontece quando se
utilizava documentação, adultos e crianças desenvolvem es-
tratégias que são geralmente comparáveis. Em essência, tais
estratégias envolvem a procura por uma “postura” teórica,

Digitalizado com CamScanner


moral e algumas vezes física, que permita aos sujeitos exer-
citar um controle maior sobre as mudanças que estão em
curso; mudanças relacionadas com os sistemas conceituais
e de valor que eles formularam anteriormente e às vezes
capazes de abalar esses sistemas. A natureza do relaciona.
mento entre o problema que surge e a pessoa que tem de
resolvê-lo é essencialmente análoga, tal como a natureza
das estratégias que adultos e crianças utilizam para explo-
rar, definir, formular hipóteses, sendo que o envolvimento
emocional, a paixão, o senso de ironia e diversão que eles
experimentam também podem ser semelhantes. Uma vi.
vência de aprendizado, é, portanto, um “empenho educa-
cional”, quer envolva adultos, crianças ou ambos.
O segundo aspecto que acho que pode ser extraído no
livro diz respeito ao trabalho dos educadores. Graças aos
membros do Projeto Zero, com suas questões e sua for
ma incansável de esquadrinhar as atividades cotidianas de
nossas escolas, tornou-se ainda mais claro para nós que o
trabalho “prático” dos educadores é uma “teoria interpre-
tativa” que integra histórias e micro-histórias da pesquisa
a contextos da vida real. Esse enobrecimento do trabalho
prático dos professores, no qual sempre acreditamos, adqui
riu agora um valor ainda maior ao ser partilhado por nossos
colegas do Projeto Zero.
Esse projeto de pesquisa e este livro demonstram que,
seja lá como se olha para ele, o trabalho dos professores
comprova que eles não estão entregues à própria sorte, sem
regras ou apoio acadêmico — ele não apenas produz expe
riência e ação diárias, mas também se torna objeto de reava
liação crítica e construção teórica. Dessa maneira, a prátici

140 | Carta RiNaLD)

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é não somente um campo de atuação necessário para o su-
cesso da teoria, mas uma parte ativa da própria teoria: ela a
contém, a gera e por ela é gerada.
Um outro aspecto que merece consideração cuidadosa é
a forma pela qual evoluiu o diálogo com os nossos parceiros
do Projeto Zero. Foi um processo complexo às vezes dificul-
tado por conta das diferenças linguísticas e culturais. Ain-
da assim, a linguagem, que começou como uma barreira,
acabou se revelando uma espécie de “fórum” que propor-
cionou a oportunidade para submetermos nossos entendi-
mentos a um escrutínio e uma elucidação mais avançados.
Alguns termos até se mostraram impossíveis de traduzir,
porque os conceitos que expressavam não eram facilmente
transferíveis de uma experiência para outra.
Em Regeio, utilizamos uma linguagem nascida num mun-
do minúsculo que, apesar de sua abertura ao diálogo e à
troca, precisou de e lutou para construir um linguajar que é
tanto gerador de experiência quanto por ela gerado. O fato
de essa linguagem ser altamente visual e metafórica mui-
tas vezes a tornou bem atraente para os nossos colegas do
Projeto Zero, mas também serviu como fonte de algumas
suspeitas compreensíveis.
A primeira delas é a ideia de que podemos estar tentan-
do margear a questão, recusando-nos, ainda que momenta-
neamente, a descontextualizá-la. Talvez eles tivessem razão.
Algumas vezes fomos um tanto vagos, parecendo que está-
Yamos envolvidos por uma espécie de nebulosidade mui-
to semelhante à imprecisão. No entanto, ocasionalmente,
Vimos suas questões persistentes e pormenorizadas como
uma espécie de desvio que julgávamos capaz de gerar al-

DiáLocos com Reggio EMiLia | 141

Digitalizado com CamScanner


gumas representações filológicas e conceituais equivocadas,
Sem dúvida, temos um amor muito grande pela metáfora;
e isso principalmente porque as crianças adoram tal recurso
o usam com muita frequência. Vemos a metáfora não como
figura estilística ou retórica, mas como ferramenta genuína
de cognição. Como diversos outros estudos e investigações
confirmam, observamos que as metáforas são particular.
mente úteis quando novas ideias estão surgindo dentro de
um grupo (que pode ser de crianças), e o uso de
conceitos
e expressões preexistentes é evitado nos terrenos
em que
podem provocar equívocos. Nesse caso, precisamente
por
ser mais indefinida, mais alusiva e algumas vezes
ambígua,
mas ao mesmo tempo aberta a novos conceitos, a lingua-
gem metafórica se torna a única ferramenta
disponível para
o novo entendimento que procura emergir e encontrar seu
público.
Talvez por estarmos tentando encontrar novos entendi
mentos nessa pesquisa e por nós mesmos estarmos procu-
rando entender é que a metáfora (e, com ela, os exemplos)
pareceu oferecer uma estratégia de apoio. Creio que conse:
guimos estruturar — embora o leitor possa julgar isso me
lhor — aquilo que Kenneth J. Gergen chama de “diálogo
transformador”: um diálogo capaz de transformar nosso
relacionamento e, assim, de certo modo, nossas identidades
profissionais e de grupo. Em vez de adotar uma abordagem
“analítica”, com definição prévia de regras, éticas e prát'
cas idênticas para todos os envolvidos, conseguimos entra!
numa esfera de ação em que crianças e adultos esforçaram
-se para superar (com sucesso, acredito) os problemas d
aprendizado em um contexto múltiplo e conflituoso. 4

142 | CarLA RINALDI


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sim, compilamos uma espécie de “dicionário de experiên-
cias” que nos ajudou a refletir, inferir, formular hipóteses e
compreender.
Por tudo isso, eu gostaria de agradecer a Mara, Steve
e Ben, pela aptidão heurística, habilidade em participar e
em nos permitir participar de seus pensamentos filosófi-
cos, conhecimentos e experiências. Em particular, gostaria
de agradecer a Howard Gardner, porque, durante as reu-
niões conjuntas do Projeto Zero com as equipes de pesquisa
de Reggio, ele foi capaz de confundir nosso conhecimen-
to acumulado, com uma única pergunta, forçando-nos ao
engajamento em saudáveis processos de repensar. Por fim,
gostaria de agradecer aos nossos leitores pela fé em nosso
trabalho e por permitirem, lendo este livro, que nossa pes-
quisa continue a existir.
EenUpIanes

DiáLoGos com Reggio EMILIA | 143

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6
O ESPAÇO DA INFÂNCIA (1998)

ESCREVI O TEXTO A SEGUIR NA ÉPOCA em que estava sendo


publicada a pesquisa realizada pela Reggio Children em co-
laboração com a Academia Domus. A pesquisa e a jornada
foram inesquecíveis: permitiram a todos os participantes
entender, mais uma vez, a riqueza do diálogo, que, por ser
interdisciplinar, se torna intradisciplinar e, assim, contribui
para atingirmos níveis de reflexão metacognitivos.
Mas, o que é a Academia Domus e por que a pesquisa? A
Academia Domus é um centro de formação em pós-gradua-
ção e um laboratório de pesquisa em processos de design,
situado em Milão. Ela é conhecida em todo o mundo e tem
interesse particular em questões de pesquisa e de inovação.
Entramos em contato formalmente em 1995, mas nossas
relações com a instituição haviam começado muitos anos
antes, num período em que sentimos necessidade não só
de expandir e aprofundar nosso conhecimento de ambien-
tes espaciais, mas também de reformular nossos conceitos
relacionados ao assunto, mudando nossa maneira de pensar
acerca dos espaços.
A experiência de Reggio sempre se manteve muito atenta
ao tema dos espaços e, num plano mais geral, aos ambien-
tes na educação. Quando comecei a trabalhar nas escolas
municipais de Reggio, em 1970, fiquei surpresa com o alto

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nível de consciência acerca da importância da qualidade dos
espaços da escola. Num contexto nacional e internacional
no qual a sala era considerada uma caixa vazia, tanto antis.
séptica quanto anônima, e no qual se considerava legítimo
(infelizmente, ainda se considera) criar escolas em porões e
áreas comerciais, entrar numa escola de Reggio era, essen.
cialmente, uma experiência emocional. Era possível senti.
las vibrando de tanta vida e, embora se pudesse reconhecer
nelas o pensamento de Montessori, Freinet e Dewey, era ní-
tido que a linguagem do ambiente espacial ia muito além
disso, graças à preocupação com as artes visuais e a arqui-
tetura.
Já existia uma clara intuição da relação existente entre
a qualidade do espaço e a qualidade do aprendizado. A de.
finição dos espaços como o “terceiro educador”, tão cara
a Malaguzzi, fornece uma boa noção dos níveis de percep-
ção que já haviam sido alcançados. Da mesma maneira, o
impacto das declarações de Malaguzzi acerca dos direitos
da criança a um meio ambiente de qualidade também era
evidente. O direito a um meio ambiente, à beleza, o direito
de contribuir para a construção desse meio ambiente e des
sa ideia de beleza, uma estética compartilhada: um direito
de todos, educadores e adultos em geral, e que só poderia
se expressar por meio de um processo permanente de pes
quisa. Por um lado, uma pesquisa baseada na observação
atenta e acurada do uso que crianças e adultos fazem dos
espaços e da mobília e, por outro, diligente em relação2
tudo que estivesse sendo trazido à luz dos estudos referem
tes à forma pela qual os espaços e a arquitetura em geral são
percebidos.

146 | CARLA RINALDI

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Lembro-me com bastante clareza de um dos primeiros
(e, para mim, fundamental) grupos de estudo do qual parti-
cipei, em 1972. Era composto de atelieristas (na época, acho
que eram seis, e muitos deles tinham conseguido emprego
apenas pouco antes), alguns educadores e o arquiteto Tullio
Zini, amigo generoso e grande fonte de inspiração para o
conceito de meio ambiente e estética do meio ambiente
que havia sido elaborado em Reggio Emilia. A fim de estru-
turar nossas observações, usamos um sistema desenvolvido
por nós mesmos em que tentávamos conectar tempo € €és-
paço, quer dizer, tentávamos ligar o “que” com o “onde”
e o “quando”. O objetivo era capturar os valores reais que
estavam sendo atribuídos a certos espaços e à capacidade do
espaço de se adaptar ao que estava sendo experimentado ali.
Um exemplo é o almoço das crianças. Começamos a re-
fletir sobre o almoço, sobre seu significado em nossa cul-
tura, a pensar psicologicamente no assunto. Mas também
tivemos bastante cuidado de levar em consideração as ob-
servações feitas pelos educadores e as primeiras imagens
fotográficas que mostravam como as crianças se comporta-
vam durante o almoço. De fato, as imagens e as observações
realçaram que, para as crianças, o almoço era, em primei-
ro lugar e acima de tudo, um momento de socialização, e
que elas eram capazes de ser independentes se ajudadas
à valorizar as próprias competências. Também pensamos a
respeito da densidade de pessoas no refeitório e tentamos
isa

compreender como o espaço poderia ser organizado e equi-


pado de forma a evitar o barulho, para tornar a acústica
mais suportável. E como poderíamos fazer um espaço mais
Rsererr

Pessoal, mais acolhedor? Precisávamos de mesas menores

DiáLogos com Reccio EMiLIA | 147

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(com quatro lugares, seis no máximo), talvez pudéssemos
usar algumas divisórias para diminuir o “barulho” visual... e
assim fomos em frente, com toda a alegria e a empolgação
desse brainstorming tão envolvente.
Como eu disse, esse é um exemplo. Após essa experiên-
cia, os atelieristas continuaram a desenhar novas mobílias,
a construí-las e a experimentá-las. Nesse meio-tempo, as re-
lações com Tullio Zini e com outros arquitetos se tornaram
mais intensas, e eles receberam a incumbência de projetar
novas escolas municipais com os designers que se encar.
regariam de reinventar os mobiliários. Defini essa jornada
como “pesquisa permanente”, ou seja, uma pesquisa que,
mesmo com certos objetivos, tem como meta prioritária su-
plantar esses mesmos objetivos com novas questões.
Então a jornada prosseguiu até esse dia, até O diálogo
com a Academia Domus. Esta é uma das peças de pesqui-
sa mais orgânicas e estruturadas que já realizamos. Por um
lado, ela de fato promoveu a unificação do conhecimento
que tínhamos acumulado ao longo dos anos, e por outro,
provocou nosso conhecimento com novas questões, levan-
do-o a um ponto crítico e abrindo-o a novas percepções.
Mencionei há pouco que escrevi o texto que segue para
a publicação da pesquisa conduzida por Reggio e Domus,
num livro intitulado Children, Spaces, Relations: Metaproject
for an Environment for Young Children (Ceppi e Zini, 1998).
Mas a publicação, assim como o meu artigo, deve ser con:
siderada não apenas como um resultado, uma síntese, mas
também como um ponto de partida. Passados seis anos.
muita coisa avançou e mudou, em face daquilo que foi des
crito e discutido no livro. Diversos outros estudos, publica

148 | CartA RINALDI

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ções e projetos têm sido desenvolvidos utilizando-o como
ponto de partida. No entanto, ainda hoje, quando releio
aquelas linhas e penso naquela jornada, posso sentir o pra-
zer de ter presenciado uma mudança realmente paradig-
mática na descrição e na vivência dos espaços da infância.
Não somente as escolas, mas todos os espaços em que
vivem crianças e adultos estão pedindo grandes mudanças.
Eles necessitam de mais metaprojetos e de novas paixões e
entusiasmos.

Projetar o espaço de um nido ou uma scuola delPinfanzia —


ou talvez pudéssemos dizer apenas projetar uma escola — é
um processo altamente criativo, não apenas em termos de
pedagogia e arquitetura, mas também, de modo geral, em
termos sociais, culturais e políticos. Essa instituição pode,
de fato, desempenhar um papel muito especial no desenvol-
vimento cultural e uma experimentação sociopolítica real,
a ponto de que esse momento (o de projetar) e esse lugar (a
escola) poderem ser vivenciados não como tempo e espaço
de reprodução e transmissão de conhecimento estabeleci-
do, mas como local de verdadeira criatividade.
O nosso tempo é de transição, e a nossa geração é tran-
siente. Nossa tarefa é viver uma “temporada de projetos”,
na qual é impossível utilizar os velhos parâmetros e valores
pedagógicos, arquitetônicos, éticos, sociais e educacionais,
e na qual, assim, torna-se essencial aventurar-se no novo €
fazer planos para futuros reais. Embora seja, com certeza,
um momento de potencial desorientação e confusão, de
incertezas muito difusas e de contradições, é também um
momento emocionante, rico de possibilidades.

DiáLogos com Reggio EMiLis | 149

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Muitas coisas “novas” podem ser criadas quando aban.
donamos a presunção de que possuímos verdades indubj.
táveis ou, por outro lado, de que estamos no auge de uma
crise e, portanto, sem identidade ou valores com os quais
possamos confrontar as mutações genéticas” que estão sen.
do produzidas e que nos produzem. Nesse contexto, nos
veremos não como “mães” ou “pais” do novo, mas como
filhos em nosso próprio direito gerados pelo novo, desde
que sejamos capazes de buscar aquilo que une,
e nos une,
mais do que aquilo que nos separa.
Assim, projetar uma escola significa, essencialmente,
criar um espaço de vida e de futuro. Isso requer
pesquisa
conjunta de pedagogia, arquitetura, sociologia
e antropolo.
gia, disciplinas e campos de conhecimento que
são convo-
cados a expressar as próprias epistemologias e
a comparar
linguagens e sistemas simbólicos, com um novo tipo de Ii-
berdade, nascido do desejo de diálogo e de troca
de ideias.
Esse gênero de pesquisa também está aberto às contribui
ções de experimentações mais avançadas nas esferas da
música, da coreografia, do design, da atuação e da moda.
Somente trabalhando dessa forma conseguiremos garantir
que o projeto arquitetônico será em si uma pesquisa capaz,
assim, de avaliar dia a dia seus resultados, a efetividade da
sua linguagem e sua capacidade de dialogar com o proces-
so de “vir a ser”, que é a base da verdadeira educação. Isso
siginifica construir uma “metáfora do conhecimento” que

*
“Mutações genéticas” é uma metáfora para a profunda transformação que
estamos experimentando, uma transformação que está modificando a própni
essência, a própria maneira de ser da sociedade e das pessoas, pois transtorm?
nosso modo de estabelecer relacionamentos e de interagir e nossos conceitos
de espaço e tempo.

150 | “ARLA RINALDI

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representa e sugere, ao mesmo tempo, mudanças e ações
possíveis.
Nisso, há um claro contraste em relação a tudo que
já orientou O projeto e a construção mais convencionais
da arquitetura de escolas, em todos os níveis, na Itália e
no resto do mundo. Isso se torna evidente quando olha-
mos para trás, na história — ou melhor, na não história
— da típica arquitetura de instituições destinadas a crian-
ças pequenas (não história porque existem pouquíssimos
exemplos que merecem ser citados, o que não constitui
história). Muitos espaços para crianças pequenas foram
construídos em prédios de “segunda mão” (antigas esco-
las primárias, espaços inicialmente destinados a outros
propósitos); e mesmo naqueles espaços que vieram de
um projeto arquitetônico, este geralmente era desenvol-
vido de modo ad hoc e resultava de fatores aleatórios e de
uma grande falta de percepção. Em boa parte, a ideia era
fazer uma escola, raramente era dar um sentido de esco-
la, isto é, de um lugar que tivesse significado real para a
comunidade e a sociedade.”
Agora é hora de criar essa simbiose entre arquitetura,
pedagogia e as outras disciplinas, de modo a encontrar es-
paços melhores, mais apropriados. Não estamos em busca
de um espaço ideal, mas de um espaço capaz de gerar a
própria mudança, pois um espaço ideal, uma pedagogia

* Eu me refiro aqui a “dar um sentido de escola” porque a arquitetura não é


somente a junção de espaços, envolve também uma filosofia, uma forma de
pensar a educação, o aprendizado, a relação ensino /aprendizagem, o papel da
ação e da realização na construção do saber. O prédio de uma escola é um pro-
jeto pedagógico e, como tal, deve ser o resultado de um diálogo profundo e
cuidadoso entre as linguagens pedagógicas e arquitetônicas.

DiáLogos com REGGIO EMILIA | 151

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ideal, uma criança ou um ser humano ideal não existem,
O que existe é uma criança, um ser humano, em relação
com suas experiências, tempos e cultura. A qualidade do
espaço pode, enfim, ser definida em termos da quantida-
de, da qualidade e do desenvolvimento desses relaciona-
mentos. À tarefa primordial da pedagogia e da arquitetura
relacional é assegurar a existência e o fluxo desse
tipo de
qualidade.
Esse elemento relacional é substanciado
numa forma de
pensar que não é primariamente baseada em dogmas
filo-
sóficos ou científicos, mas nas relações
que possibilitamà
criança (e à pessoa) ser um “indivíduo sagaz” que,
portanto:

faz distinções, decide acerca


de limites e faz escolhas,
os quais constituem pedras fu
ndamentais da constru.
ção do conhecimento:
é o protagonista do ato de cogn
ição, mas também do
comentário, posto que o aprend
izado deve ser acom-
panhado de reflexão e Tevisitação. O
que temos em
mente, então, é um meio ambiente que se torna uma
espécie de superfície refletora na qual
os protagonis-
tas da experiência de aprendizado podem ver
os tra-
ços de sua ação e, com isso, têm a oportunidade de
falar sobre como estão aprendendo;
vivencia o aprendizado como prática, não tanto para
buscar um fim, mas para mudar a si mesmo, como
disse o cientista e filósofo biológico Bateson. A con-
dição essencial para pensar em termos de relaçõesé
uma epistemologia operante da ação, que seja, are
de tudo, uma forma de atuação. Na prática educacio

152 | Carta RINALDI

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nal, isso se torna uma maneira de trabalhar em “labo-
ratórios”, sendo a escola concebida como um grande
laboratório, uma “oficina de aprendizado e saber”;
expressa a dimensão estética como qualidade essencial
do aprender, do conhecer e do relacionar. O prazer,
a estética e a brincadeira são fundamentais em qual-
quer ato de aprendizado e de construção do conheci-
mento. O aprendizado deve ser prazeroso, atraente
e divertido. A dimensão estética, por conseguinte, se
torna uma qualidade pedagógica do espaço escolar e
educativo.

Essas foram as reflexões que emergiram ao longo de muitos


anos de experiência e de fecunda colaboração na pesquisa
conduzida em nossos nidi e nossas scuole dellinfanzia e con-
centrada no projeto dos espaços educativos.
Mas qual a contribuição dessa experiência para a busca
de uma nova epistemologia da arquitetura escolar? Podería-
mos começar com uma série de premissas fundamentais.

| PREMISSAS PSICOPEDAGÓGICAS E ANTROPOLÓGICAS

O espaço físico pode ser definido como uma linguagem que


fala de acordo com precisas concepções culturais e profun-
das raízes biológicas:

* A linguagem do espaço é muito forte e constitui um


fator condicionante. Embora seu código nem sempre
seja explícito e reconhecível, nós o percebemos e o
interpretamos desde muito jovens.

DIÁLOGOS com REGGIO EMiILIA | 153

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« Como qualquer outra linguagem, o espaço físico«
um elemento constitutivo da formação do pensa:
mento.
* A “leitura” do espaço físico é multissensorial e envol.
ve tanto Os sensores remotos (olho, ouvido e nariz)
quanto os receptores imediatos do ambiente circun-
dante (pele, membranas e músculos).
* As qualidades relacionais entre o indivíduo e seu habi.
tat são recíprocas, de modo que tanto a pessoa quanto
o ambiente são ativos e modificam um ao outro.
* À percepção do espaço é subjetiva e holística (tátil,
visual, olfativa e sinestésica). Ela se modifica durante
. as várias fases da vida e é fortemente ligada à pró.
pria cultura de cada um: nós não somente falamos
diversas línguas, como também habitamos mundos
sensoriais diferentes. No espaço compartilhado, cada
um de nós atribui um significado especial a esse espa-
ço, criando um território individual que é fortemente
[ afetado pelas variáveis de gênero, idade e, como afir-
mamos, cultura.
* Às crianças pequenas revelam, em relação ao espa-
ço circundante, uma sensibilidade perceptiva e uma
competência inatas e de nível extremamente elevado
— e que são polissêmicas e holísticas. Seus receptores
imediatos são muito mais ativos do que virão a ser
em estágios mais avançados da vida, e elas demons-
tram uma grande habilidade para analisar e distinguir
a realidade usando os receptores sensoriais além da
visão e da audição. Por essa razão, a máxima aten
ção deve ser dada às luzes e cores, assim como aos

154 | CapriAa RiNALDI

RE SE —d
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elementos olfativos, auditivos e táteis, que são tre-
mendamente importantes na definição da qualidade
sensorial de um espaço.
+ Considerando-se a idade e a postura das crianças (be-
bês passam uma parte substancial do tempo sentados
ou deitados e, durante um determinado período, se
movimentam apenas engatinhando), uma grande im-
portância deve ser atribuída às superfícies, que nor-
malmente são tratadas como meros elementos de
fundo, assim como pisos, tetos e paredes.
+ Devemos fazer o maior esforço para estar mais cien-
tes do espaço e dos objetos que colocamos ali, saben-
do que os espaços em que as crianças constroem suas
identidades e suas histórias pessoais são muitos, tanto
reais quanto virtuais. Televisão, computador e outros
aparelhos domésticos são agora instrumentos da vida
cotidiana, assim como a coexistência de elementos
reais, virtuais e imaginários constitui um fenômeno
diário, a ponto de modificar — de uma forma que tal-
vez nem imaginamos — a definição do espaço e do eu
que as crianças de hoje estão construindo.

À IMAGEM DA CRIANÇA

E importante ressaltar o papel determinante desempenha-


do pela definição da identidade, ou imagem, da criança
que se desenvolveu dentro da abordagem pedagógica dos
nidi ou das scuole delVinfanzia. Muitas imagens diferentes
seriam possíveis: realçando aquilo que a criança é e tem,
pode ser ou pode fazer, ou, ao contrário, enfatizando aqui-

DiáLOGOS com Regaio EMiILIA | 155

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lo que a criança não é e não tem, não pode ser e não pode
fazer. À imagem da criança é, acima de tudo, uma conven
ção cultural (e, portanto, social e política) que torna pos
sível reconhecer nelas (ou não) certas qualidades e poten.
ciais, € interpretar expectativas e contextos que dão valor a
qualidades e potenciais ou, ao contrário, os nepam, Aquilo
que pensamos sobre as crianças se torna, então, um tato!
determinante na definição de sua identidade ética e social,
de seus direitos e dos contextos educacionais que lhes são
oferecidos.
Um dos pontos focais da filosofia de Reppio Emilia,
como escreveu Loris Malapuzzi, é q imagem da criança
que, desde o nascimento, se encontra tão enpajada no de
senvolvimento de um relacionamento com o mundo e tão
desejosa de experimentar esse mundo que chepa a criar um
sistema complexo de habilidades aprendendo estratépias e
formas de organizar os relacionamentos,
Ela é

* Uma criança plenamente capaz de criar mapas pes


soais para sua orientação social, copnitiva, afetivae
simbólica.
Uma criança ativa, competente e crítica; uma criança
que é, portanto, “desafiadora”, porque produz mu
dança ce movimento dinâmico nos sistemas em que
está envolvida, inclusive a família, a sociedade e a es
cola. Ela produz cultura, valores e direitos, compt
tente para viver e aprender,
* Uma criança capaz de associar e desassociar realida
des possíveis, de elaborar metáforas e paradoxos cn
tivos, de construir os próprios símbolos e códigos

Digitalizado com CamScanner


a
agem
nto «aprende
enquanto a decodificar os símbolos e códigos ;|
stabelecido:
y EC los.
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E me a criança
ç que ainda bem cedo tem habilidade
nua | para|

: ibuir significados aos acontecimentos e que tenta


= Es
partilhar
riilhar osos significados
: e as histórias
ic : ,
da significação.
4 ' “ANA

jetórias e os processos de aprendizado


As tra
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ural € escEscol olar em que, como tal, deve haver um “am e
E b
v ê “

biente formador”, um espaço ideal para o desenvolvimento


que valoriza esses processos,
A competência e a motivação das crianças
podem ser
tanto acentuadas quanto inibidas, dependendo do gr
rau de
consciência e da força motivacional
do contexto circun-
dante, Diversos
am a importância do
estudos demonstrar
papel dos adultos no de senvol
vimento das crianças pe que-
nas,não apenas por meio de açõ
es diret as c almejadas, mas
também indire tame
nte, quando os adultos cri
educacion ais que estimulam am contextos
as crianças a utilizar suas
tdões competências, Essa implicação
e ap-
organização dos espaços tem relevância na
físicos de uma escola
Pequenas, Se, de fato —. como para crianças
Programação afirma Schaffer (1 990)
| inata” —., a
de cada criança estabe
Jetivos, então à lece novos ob-
busca desse s ob
Mu| m entr jetivos é uma aven
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são fr ações os objetos Se enpajam
de u mM proble
m a ou objeto de in
ves-

DiALrocos COM Ri Go Emil ta | 157

Digitalizado com CamScanner


tigação compartilhado. Os ambientes físicos e psicológicos
são definidos reciprocamente, a fim de dar às crianças a sensa-
ção de segurança, que vem do fato de se sentirem bem-vindas
e valorizadas, e, ao mesmo tempo, garante a oportunidade
para o desenvolvimento de todos os seus potenciais relacio.
nais. Acima de tudo, os nidi e as scuole dellinfanzia são espaços
vivos continuamente caracterizados e modificados por even.
tos e histórias, tanto individuais quanto sociais.
Com base nessas considerações, podemos partir para a
reformulação do conceito e para a reorganização da arqui-
tetura da escola, dos espaços e de suas formas de conexão,
assim como de sua capacidade de aceitar e apoiar tanto o
“eu” quanto o “nós”, o pequeno e o grande grupo, a me.
mória individual e a coletiva. Ao fazer isso, nosso objetivoé
dar suporte: à possibilidade de agir e refletir sobre a ação de
cada um: à legibilidade do espaço; à criação de transparên-
cia, mas também de opacidade (onde e quando as crianças
conseguem escapar do olhar dos adultos, a fim de resguar-
dar sua privacidade); à capacidade de estimular a curiosi-
dade, as ações e os gestos, as aptidões de manipulação e de
construção; e, ffnalmente, otimizar a efetividade comunica-
tiva do espaço.

À ESCOLA COMO UM SISTEMA

Seria um erro, contudo, enfatizar excessivamente o cunho


protagonista e a identidade da criança per se, pois o foco cen
tral é o relacionamento entre crianças e adultos. Os nidie
as scuole dellinfanzia devem ser vistos não como um sistemi
isolado, mas como um sistema de sistemas, um sistema de

158 | CARLA RINALDI

Digitalizado com CamScanner


relacionamentos e comunicação entre crianças, educadores
e pais.
De modo a ser considerado verdadeiramente racional,
esse tipo de interação deve se expandir para os relaciona-
mentos espaciais, com salas interconectadas que também
estejam ligadas às áreas de serviço (cozinha, refeitório, ba-
nheiros) e não sejam separadas por corredores ou passagens
isoladas. Deve haver espaços maiores e mais abertos (como
as áreas comuns ou pátios), mas também espaços menores,
que incentivam a experiência de trabalho em pequenos gru-
pos ou individualmente. Essas escolhas de “significado” que
estimulam o ambiente de relação /interação também su-
gerem a necessidade de transparência no interior (paredes
de vidro e janelas que permitam às pessoas se orientar pela
visão e que mantenham a relação espacial) e em direção ao
exterior,
O projeto pedagógico deve ser entrelaçado com o pro-
jeto arquitetônico, a fim de dar suporte aos processos que
ER

ocorrem nesse espaço, processos de aprendizagem, ensino,


partilha e compreensão, da parte de todos os protagonistas:
crianças, equipe e pais.
quero

A importância da presença dos adultos (equipe e pais)


traduz a organização dos espaços e do mobiliário, que faci-
litam e dão apoio ao trabalho profissional dos professores e
às relações entre os educadores e os pais, inclusive salas de
reunião bem-equipadas, arquivos, bibliotecas, estufas e fer-
ramentas de trabalho (como computadores, gravadores de
vídeos e outros equipamentos e materiais que possam aju-
dar na tarefa de discutir e refletir sobre as experiências que
envolvem crianças e pais); em outras palavras, tudo que é

DiáLoGos com Reggio Emilia | 159

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essencial ao trabalho e à participação diária dos educadores,
e indispensável, como suporte, para o envolvimento ativo
dos pais na escola.
A meta, portanto, é assegurar que os três sujeitos —
crianças, educadores, pais — possam efetivamente habitar
o espaço, mas, acima de tudo, garantir o bem-estar como
criadores e usuários desse espaço e do que acontece ali.
A escola — nido ou scuola dellinfanzia — é vista como
um “organismo vivo” que pulsa, muda, se transforma, cres-
ce e amadurece. Essa definição coloca uma questão que
poderiamos definir como “processos de entropia”, ou ad-
ministração da mudança. Um organismo vivo permanece o
mesmo, e a escola para crianças pequenas nunca é a mesma
de um dia para O outro. Por isso, devemos ser capazes de
assegurar a continuidade da identidade em meio à mudan-
ça, uma memória do passado e uma “memória” do fumro.
A escola que abre de manhã é diferente daquela que
foi fechada na tarde anterior, exatamente por causa das
muitas mudanças que ocorrem durante o dia. Quando
escolhemos materiais, por exemplo, devemos avaliar cui-
dadosamente essa questão das modificações que deixam
traços e memórias no espaço e no meio ambiente como
um todo. O espaço e o mobiliário dentro dele têm o direi
to de envelhecer e, assim, de mostrar as marcas do tem
po. Seria penoso dispor de um espaço preenchido com
materiais “estéreis”, impermeáveis ao tempo ou ao uso.
embora obviamente deva-se dar atenção à manutenção €
à higiene. A ideia é que devemos evitar qualquer escolha
ou solução que transforme o prédio da escola num lugar
estéril, e não num espaço vivo.

160 | Canta RiNALDI

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Levar em consideração a mudança é se referir àquilo que
acontece em longos períodos de tempo — no curso de um
ano, de um mês — e não apenas, como dissemos, em um dia.
A questão é saber quantas possibilidades existem para que a
criança individualmente e o grupo de crianças, os protago-
nistas da experiência, tenham uma história, deixem traços,
vejam que suas vivências são valorizadas e significativas. É a
questão da memória, da narração e da documentação como
um direito, que tem o dom de incorporar a qualidade vital
do ambiente educacional.
O espaço dos nidi requer certas considerações específi-
cas, embora permaneça dentro do projeto educativo geral
compartilhado com a scuola delPinfanzia. As necessidades de
segurança (física e psicológica) e de personalização (isto é,
uma estratégia que seja a mais personalizada possível para
cada criança) são mais claras e mais demarcadas no nido
(para crianças de três meses a três anos); a idade das crianças
e seu desenvolvimento perceptivo, cognitivo e afetivo de-
mandam um alto nível de noção em termos da arquitetura.
Dá-se cuidadosa atenção à organização dos espaços (nichos,
espaços mais íntimos), das superfícies (materiais utilizados
em pisos, paredes e tetos), dos aspectos percepcionais (som,
cheiro e toque, assim como luz e cor) e das mobílias e dos
materiais que respondem melhor às conveniências de segu-
rança e ao desejo de autonomia manifestado pelas crianças
dessa idade. A arquitetura do nido deve respeitar as diferen-
ças consideráveis que existem entre cada criança (de identi-
dade, ritmo, gênero, hábito), mas também deve satisfazer as
necessidades de descoberta, novidade, morfogênese e par-
ticipação, que são igualmente fortes, embora talvez menos

Diátocos com Reggio EMiLIA | 161

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O vce did
evidentes nas crianças dessa idade, quando comparadas a
outras crianças.
Gosto de pensar no ambiente do nido como uma espécie
de espaço japonês — simbólico, metafórico, leve, sensorial,
mutável, acolhedor e de dimensões apropriadas, qualidades
que parecem caracterizar o espaço de acordo com a tradi-
ção japonesa.
Acima de tudo, porém, tanto o nido quanto a scuola
del"infanzia (assim como outros espaços educacionais),
para serem de verdade lugares de produção, aprendizado,
cultura e experimentação sociopolítica, devem ser concebi-
dos e construídos como lugares de ação, mais do que de
palavras, uma verdadeira “ofici
na artesanal”, que, em nosso
caso, é uma clara referência cultural ao Ren
ascimento italia-
no. É agindo e fazendo que as crianças se
tornam capazes
de compreender a trilha de seu aprendizado
e a organização de
sua experiência, de seu conhecimento e do
significado dos
seus relacionamentos com os outros. Ao refl
etir sobre as
próprias ações, as pessoas ajudam a construir
a diferencia
ção que molda o sujeito inteligente, o objeto conhecido e as
ferramentas do saber.

CONCLUSÕES

O objetivo, portanto, é construir e organizar ambientes que


deem oportunidade às crianças de:

* expressar seu potencial, suas aptidões e sua curiosidade:


* explorar e pesquisar sozinhas e com os outros, tanto
colegas quanto adultos;

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erceber à si mesmas como construtoras de projetos
e do projeto educativo geral levado a cabo pela escola;
reforçar suas identidades, autonomia e segurança:
capalhar e se comunicar com os outros:
saber que suas identidades e sua privacidade ser ão
as.

do espaço devem permitir


construção e a organização
os professores:

sintam-se apoiados e integrados em seus relaciona-


mentos com as crianças e os pais;
disponham de espaços e mobiliário apropriados para
satisfazer suas necessidades de se reunir com outros
adultos, tanto colegas quanto pais;
+ tenham suas necessidades de privacidade reconhecidas;
« tenham apoio para seus processos de aprendizado e
de desenvolvimento profissional.

E, por fim, o espaço deve assegurar que os pais possam:

« ser ouvidos e informados;


* encontrar-se com outros pais e educadores, em con-
dições e horários que estimulem uma verdadeira co-
laboração.

Esse ambiente é uma arquitetura orientada pelo processo,


que incentiva a comunicação e é, ele próprio, uma comuni-
cação. Ele toma uma forma capaz de sustentar as intercone-
xões protetoras — esse sistema de sistemas — que são o nido

Diárocos com Regcio EmiLis | 163

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elVinfanzia. Ele cria um ambiente agrad
e a scuola d ável, que
e experimentado com todos os
pode ser explorado . Sentidos
posteriores no aprendiza do: um
e inspira avanços Mbiente
da vida
que é empático, que captura O significado
também lhe dá signif das Pes.
soas que o habitam, mas que Cação,

164 | CariA RINALD)

Digitalizado com CamScanner


7
QUESTÕES SOBRE A EDUCAÇÃO DE HOJE (1998)

É COMUM EU RELER MEUS DISCURSOS DEPOIS de algum tempo


e ter uma sensação de desconforto: gostaria de modificá-
Jos, acrescentar algumas coisas e eliminar outras, corrigir
palavras. O que quero dizer é que gostaria de adaptá-los à
minha forma atual de pensar, áquilo que mudou em mim.
Sinto que eles são inadequados.
No entanto, isso não acontece quando leio esta fala. Ela
foi escrita em 1998, para um encontro com pais. Queríamos
iniciar uma jornada de reflexões sobre a educação, que en-
volvesse os pais de todas as nossas escolas municipais, 32
escolas frequentadas por cerca de 2.500 crianças e suas famí-
lias. Naquela época, eu era diretora das escolas municipais
e me pediram para escrever um discurso introdutório. Com
colegas pedagogistas da equipe de coordenação das escolas,
decidimos que esse meu discurso seria apresentado a um
público de pais e educadores de todas as escolas e, depois,
seria distribuído para cada escola, onde poderia contribuir
para reflexão e discussão.
Inicia-se então uma jornada que duraria um ano leti-
vo inteiro. Os pais tomaram parte de forma entusiasma-
da, revelando aqui e ali alto grau de competência não só
para escutar, mas também para elaborar ideias e discutir.
Suas conversas foram gravadas, transcritas e apresentadas

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a todos os pais interessados, numa conferência realizada so
final do ano letivo. Os pais foram extraordinários, protaps
nistas ativos junto com os educadores.
De fato, na experiência de Reggio, o relacionamento es
cola / familia não é nutrido apenas como um relacionames
to individual entre pai/mãe e educador, e também não4
um relacionamento de subordinação no qual o educado
diz ao pai'à mãe o que se deve saber, o que é certo ce
rado. Ao contrário, trata-se de uma jornada comum par;
construirem juntos — pais e educadores — os valores e ox
modos de educar na sociedade contemporânea, dentro «
fora da escola.
Como já mencionei antes, escrevi esta fala para encora
jar encontros e debates. Desde 1998, muita coisa mudou es
mim e à minha volta. Em poucos anos, o mundo se moé
ficou profundamente e, após o 11 de Setembro, passamos
a viver num contexto marcado pelo medo e por uma pr
funda sensação de perda de direção. Todavia, penso que à
gumas das propostas, algumas das questões desta fala amê:
podem ser úteis ao leitor, como oportunidade para red:
xão acerca de temas e escolhas que a educação ainda colou
diante de nós.

Toda geração se questiona a respeito dos valores e doc»


nhecimento que vai transmitir à geração seguinte, c &
como transmitilos, embora durante séculos, em nossa o
tura — e também em outras —, as perguntas e resposa
fossem decididas por poucos, por uma elite. E esses po
cos definiam para todos os valores e o lugar da educaçõ
transmissão das habilidades técnicas era bastante smp

166 | CariA RinaiD!

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de pas para filho e de mãe para filha. Porém, com o adven-
to da era industrial, de uma definição distinta do conceito
ge Estado, de uma nova concepção de sociedade e com o
«econhecimento dos direitos do homem e do cidadão, uma
«ova ordem social e um novo conceito de democracia fo-
ram criados. Isso se manifestou no direito ao trabalho, ao
voto, à escola e à educação universal.
Mas foi somente após a Segunda Guerra Mundial que
essa nova ordem social começou a gerar mudanças profun-
das na Itália (em outros países, isso já tinha acontecido).
Novos direitos (e não apenas deveres) e valores surgiram.
Acima de tudo, porém, ocorreram grandes transformações
na identidade e na definição do papel da família, da mulher
e do homem.
As novas tecnologias e o fenômeno da globalização
modificaram — e continuarão modificando — a iden-
dade de muitos de nós como trabalhadores, cidadãos,
mães/pais e crianças. À sociedade de consumo propõe e
impõe novos valores, novas relações entre as pessoas e no-
vos conceitos de tempo e espaço. Parece que não há mais
tempo para a alegria, o medo, o luto, a celebração. Não
há tempo para os indivíduos ou para o grupo. O tempo
seleciona a parte da humanidade que desejamos viver e
transmitir, a qual se liga cada vez mais à dimensão do con-
sumo e da produção.
Não pretendo continuar com uma análise que pode-
ria se tornar superficial e talvez até enfadonha. Gostaria
apenas de introduzir uma série possível de questões para
refletir sobre o tema que temos em mãos: a família e suas
mudanças.

Diátogos com Recgeio EMILIA | 167


do a
porem

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de
e A família mudou nas últimas décadas: como e o queé
diferente hoje em dia?
* Por que o papel da mulher na sociedade se modificou
e, por conseguinte, o que se espera das mães?
e Será que a consciência dos indivíduos que constituem
a família mudou a ponto de haver hoje uma nova de.
finição e uma nova identidade para a família?
- O que se alterou no papel do pai, que parece — como
alguns afirmaram — estar cada vez mais “maternal”
*e Quem tem a autoridade? O que é a autoridade na
família de hoje? Autoritário ou com autoridade? Ou
alguma outra coisa?
* Em que medida se transformaram as expectativas da
sociedade em relação à família (se é que se transfor
maram)? E quanto aos direitos da família? E a política
da família?

Famílias nucleares, famílias reconstruídas, relações familiares


complexas: nada disso é suficiente (ou será que é?) para se en-
tender a crescente expressão de solidão e fraqueza da parte de
muitas famílias, compreendendo-as como mães, pais, avós,
responsáveis. Parece que existe, mais e mais, uma espécie de
renúncia à educação e ao cuidado das crianças, que, embor:
sejam motivo de preocupação, não são mais assistidas. Cad
vez mais delega-se a outros lugares e pessoas (escolas, avós, €&
portes) a responsabilidade que deveria ser assumida pelos pais
Ou não? Seria o oposto verdadeiro? Quer dizer, a famili
está tão solitária e carente que recebe pouco em termos &
ajuda e apoio cultural e econômico? Parece não haver um
projeto educacional para a criança.

168 | Carta RiINALDI

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Muitas vezes sabemos o que gostaríamos de dar a nosso
filho, mas não sabemos o que ele realmente é e, principal-
mente, o que ele quer. Estamos com medo dos nossos fi-
lhos? Dos que nascem e dos que são apenas desejados? Ou
isso ocorre porque queremos o melhor para eles, e o me-
lhor custa tempo e dinheiro? Mas o que é o melhor? Quem
decide isso? Com base em que parâmetros?
Esse raciocínio nos leva a outro tema possível e impor-
tante para reflexão: o relacionamento entre infância e so-
ciedade. O que é a infância? Quem a define? Como ela é
definida? Que identidades e direitos são dados à infância?
Como sabemos, a infância é uma interpretação e uma cons-
trução cultural. Cada sociedade, em cada período histórico,
define sua própria infância, o que ela significa, o que se deve
esperar dela e dedicar a ela.
Agora, creio que é importante, em nossa reflexão, olhar
para aquilo que considero o cerne da definição do relacio-
namento entre adultos e crianças. A questão fundamental
(fundamental para a nossa discussão anterior e para o rela-
cionamento adul tos é a construção cultural e indi-
/ crianças)
R+ vidual que fazemos da criança, a qual, na nossa experiência
em Reggio, chamamos de “a imagem da criança”. Imagem
como interpretação, como definição histórico-cultural.
e

:! Em essência, a criança é definida pelo nosso modo de


«É olhá-la e vê-la. No entanto, como vemos aquilo que conhe-
| cemos, a imagem da criança é aquilo que sabemos e aceita-
mos sobre as crianças. Essa imagem vai determinar nossa
: Maneira de nos relacionarmos com elas, nossa maneira de
elaborar nossas expectativas em relação a elas e ao mundo
que somos capazes de construir para elas.

DiáLoGos com Reggio EmiLia | 169

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j
Creio que todos vocês, agora, já estão familiariza,
com a imagem de uma criança competente, na qual! se ba
seia nossa experiência em Reggio. Mas competente em quê Je?
da

Em se relacionar com o mundo. Crianças não conhecem


mundo, mas possuem todas as ferramentas necessárias Dar
+

conhecê-lo, e querem fazer isso. Nesse relacionamento cod


o mundo, as crianças acabam por conhecê-lo e por conhe.
cer a si mesmas.
Eu disse uma criança competente. Competente porque
tem um corpo, um corpo que sabe falar e ouvir, que lhe ds
uma identidade e com o qual ela identifica as coisas. Um
corpo dotado de sentidos que podem perceber o meio ar
biente circundante. Um corpo que corre o risco de se af:
tar cada vez mais dos processos cognitivos se seu potencial
cognitivo não for reconhecido e aprimorado. Um Corpo que
é inseparável da mente. É cada vez mais claro que mente
e corpo não podem se separar, pois formam uma unidade
com qualificação recíproca.
Aprendemos com nosso corpo e nossa mente, asim
como com razão e emoção. Um corpo que também se ás
tingue pelo sexo. Não me refiro apenas aos órgãos genitais,
mas também à identidade sexual que deriva do fato de se
macho ou fêmea. As crianças são machos e fêmeas. meninas
e meninos, e isso faz uma grande diferença. Não é a única,
com certeza, mas é uma das mais importantes. Para nós,é |
tanto uma limitação quanto um recurso.
As formas de interpretar, de construir relacionamentos |
com o mundo, são diferentes entre meninos e meninas. D:
mesma maneira, nossas visões e expectativas sobre meninos
e meninas são totalmente distintas. As meninas, por exem

170 | CAriA RINALDI

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pio, parecem adquirir autonomia e conseguir encontrar
seus interesses mais cedo, mesmo em momentos de dificul-
ie. E é por isso que algumas questões se levantam diante
(a
o
c

de nós, para refletirmos sobre outro importante assunto:

* Como podemos cultivar essa diferença? Parece que a


sociedade nos conduz para uma não diferença cres-
cente entre os sexos (moda, linguagens, experiências).
* Que tipo de diferença devemos enfatizar e como po-
demos manter as diferenças no diálogo?
* Como podemos construir a diferença sem indiferen-
ça? No modo de ser de uma menina ou de um meni-
no, hoje em dia, em parte construímos a identidade
da mulher e do homem do futuro, da sociedade de
hoje e de amanhã.
* Estamos caminhando, talvez, para um futuro mais
“feminino”, como alguns afirmaram? Ou será justa-
mente o contrário?

Mas falar de crianças e sexualidade, do modo como elas


descobrem suas identidades sexuais, é também falar sobre
nossa própria identidade sexual, sobre como nos vemos
como mulheres e homens, sobre como, em nossa socieda-
de, temos falado, usado e abusado do sexo e da identidade
sexual,
Educar é uma tarefa difícil porque representa, acima de
tudo, refletir e falar sobre nós mesmos, nossos tabus, silên-
cios, hipocrisias, medos, sentimentos e emoções verdadei-
ros a respeito das crianças — nossas crianças — e de nós
mesmos. Certamente, o sexo e O corpo nu jamais estive-

Diárocos com Recaio EmiLia | 171

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ram tão acessíveis para qualquer um; e, num certo sentido,
nunca foram tão desconhecidos, e não estou me referindo

ata de ba df
à informação sobre reprodução sexual (como nascemos, a
relação sexual e assim por diante).
Em vez disso, peço a vocês que reflitam sobre a cduca.
ção sexual, a identidade sexual, sobre a identidade da pessoa
como um todo, incluindo corpo e sexo. O corpo como lu.
gar de conhecimento, prazer, afeição e desejos. Peço a vo.
cês que discutam sobre como podemos ajudar as crianças a
aceitar seus corpos, apreciá-los, amá-los e respeitá-los, assim
como deveriamos amar, apreciar e respeitar a nós mesmose
aos outros. Um corpo do qua] não devemos ter medo, e do
qual devemos cuidar e respeitar. Um corpo que é um meio
de obter conhecimento. Aprender por intermédio do cor.
po tem sido comum para a humanidade e, especificamente,
para os jovens. Como podemos oferecer apoio a isso sem
causar inibição, e proteger esse aprendizado sem negar 2
liberdade de expressão?
Essa é a tarefa difícil que temos diante de nós. É dificil
porque implica que nós também sejamos capazes de nos
libertar — graças às crianças — do “esplendor” cultural que
costuma envolver nosso corpo e nossa identidade sexual
E isso quer dizer que aquilo que transmiítimos às crianças
não é nosso medo, mas nossa coragem. Um corpo queé
familiar «e amado é melhor, mais protegido e mais fácil de st
proteger. Uma afetividade e uma sexualidade mais conhe
cidas « reconhecidas são menos suscetíveis a se confunár
com carícias «e atenções ambíguas.
Isso também é um problema de límites, de regras, entr
aquilo que é permitido e aquilo que não é. Uma ques*

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quanto às regras: quem as estabelece, e como? Regras de
casa, regras da escola: deveriam ser diferentes? Iguais? Que
tipo de consistência buscamos? Que diversidades?
Regras são algo difícil, tanto para a criança quanto para
o educador (professor e pai/mãe). Elas podem ser discuti-
das, comentadas, explicadas, acordadas, suplantadas. Mas,
em minha opinião, são necessárias. O problema causado
pelo fato de que os adultos vêm se esquivando de orientar
o crescimento das crianças não pode ser resolvido apenas
pela escola, Trata-se de um verdadeiro projeto educacional
que só pode ser produzido por meio do diálogo entre a casa
e a escola.
Um tipo de educação que não tem receio de termos
como trabalho pesado e esforço, concentração, erros, per-
das. E aqui temos um outro ponto focal a ser discutido. Tra-
balho pesado e esforço, a responsabilidade de educar e em
educar: não são apenas palavras que têm a ver com a escola,
mas são conceitos e valores sobre os quais devemos refletir.
Existem responsabilidades que competem apenas às famí-
lias? E o que queremos dizer com responsabilidade?
Também é interessante meditar sobre os conceitos de
segurança e risco: risco de crescer, risco de educar. Para
crescer, para se tornar adultas, as crianças correm riscos. O
que desejamos arriscar por elas e com elas? O que podemos
e desejamos deixar que elas arrisquem? Estou falando de
riscos físicos e também psicológicos.
Amizade, solidariedade, respeito pelas diferenças, diálo-
go, sentimentos, afeição são alguns dos mais importantes
valores que temos como educadores, em especial porque
trabalhamos em instituições da infância. São valores que só

DiáLogos com Reggio Emiia | 173

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podem ser transmitidos se forem vivenciados. Expcrimen.
tar a amizade, respeitar as diferenças, se engajar no diálogy
e na solidariedade. Queremos fazer isso? Queremos faze
isso numa sociedade que é quase sempre governada pel;
arrogância, pelo isolamento e pela separação? Pergunto;
vocês e também pergunto a mim mesma: com certeza de
forma gradual e sem jamais deixar crianças e jovens sozi
nhos, mas queremos de fato educar com amizade, solidarie.
dade, afeição, em um diálogo sem hipocrisia e fingimento
(isto é, “faça o que eu digo, mas não faça o que eu faço”?
É verdade que a infância e a adolescência estão cad:
vez mais imersas em violência, algumas vezes como suas
vítimas, outras como suas praticantes, e, em muitos casos,
como ambas. Nosso maior risco é ficarmos presos à impo-
tência e, assim, nos limitarmos a uma utopia que “está logo
ali na esquina”. Em minha opinião, porém, não podemos
ter nostalgia da “escola-fortaleza” ou das regras rígidas do
passado, e não podemos estabelecer com nossas crianças
aquilo que se pode chamar de “cultura da suspeição”: um:
cultura que nos encoraja a enxergar o outro como “hostil,
“inimigo”, “perigoso”; uma cultura que nos leva a ver ouin
terpretar os outros e o mundo como entidades hostis, sem
pre prontos a ultrajar nossa identidade física e psicológica.
Sem dúvida, não podemos ignorar o que lemos e ouv-
mos à nossa volta — na nossa cultura e nas outras — sobr
a violência cometida contra crianças. Mas precisamos ele
var nosso nível de escuta, nosso diálogo e nossa atenção em
relação às crianças, a fim de observá-las e ficar perto delas. |
sem esquadrinhá-las, sem espioná-las e sem impedir-lhes é
preservar sua privacidade e, acima de tudo, sem inibir su”

I74 | Carta RiINALDI

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curiosidade e sua postura feliz diante do mundo. Devemos
oferecer-lhes um apoio vigoroso, amoroso, firme e pacien-
te, que possa ajudá-las a crescer rumo à liberdade de viver.
Precisamos dar a elas — e a nós mesmos — mais tempo
para olhar para dentro, para dialogar com elas mesmas e
com os outros. Do contrário, vejo riscos enormes: de cres-
cerem numa atmosfera de suspeição, na solidão, na aridez;
de simplesmente sobreviver, mais do que viver. Podemos
ter valores e sentimentos sem saber o que fazer com eles
e a quem entregá-los. Isso é um verdadeiro desperdício de
humanidade.
Existem razões da mente e razões do coração, que nem
sempre coincidem. O mais importante é sermos capazes de
reconhecê-las e conhecê-las, dando forma e legitimidade a
ambas. Em geral, temos medo dessas razões do coração,
desses sentimentos, tais como amor, paixão, medo, pavor,
alegria, desapontamento. Mas as crianças não têm esse
medo. Se as escutarmos, se as legitimarmos, as crianças fa-
larão sobre eles, farão sua narrativa e os compartilharão, de
modo a dar-lhes forma e aceitação.
As emoções ajudam as crianças a explorar o mundo e
as ajudam a compreender e criar relações. Suas emoções
são intensas e fortes e, em alguns casos, deixam os adul-
tos assustados, a ponto de ou escaparmos da situação ou
a menosprezarmos com um sorriso. Isso acontece porque
estamos despreparados em termos de abertura às emoções,
especialmente “àquelas” difíceis.
Marco diz: “Dor e mágoa são a mesma coisa? Você está
falando de mágoa? Se você fica com raiva, que tipo de dor
você tem? Se você fica com raiva porque alguém lhe bateu,

DiáLogos com Reggio EMILIA | 175

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sente dor. Se você fica com raiva porque sua mãe grita com
você, sente outro tipo de dor. Quando isso acontece, você
vai e se esconde.”
Valentina diz: “Decepcionar quer dizer que alguém não
fez mesmo o que deveria ter feito.”
Sara diz: “Quando fico decepcionada, me torno amarela
e verde. Mas, para mim, isso passa em dez segundos. Não é
assim tão rápido para todo mundo, porque cada um é dife.
rente. Se passa rápido, então você pode fazer outras coisas
e se divertir mais.”
Laura diz: “Milo está apaixonado por mim, mas não gos-
to dele. Estou apaixonada por Samuele. Sei que é loucura
eu amar alguém na minha idade, até X [a professora] fala
isso toda hora, como se fosse piada, e minha mãe diz que
não tem importância porque ainda sou pequena, mas é uma
pena, porque para mim é muito importante.”
Quando se pode falar sobre sentimentos (repito: raiva,
amor, medo, confiança, tristeza, dor), eles deixam de ser as-
sustadores. Precisamos aprender a ter esse tipo de escuti
também. O desenvolvimento dos sentimentos, a educacão
na sensibilidade, permite-nos refletir de uma forma noi
crítica e eliminar velhos preconceitos. Os sentimentos nos
pedem para assumir responsabilidades em relação a eles
mesmos, o que demanda coragem: a coragem de admitilos
e descrevê-los.
Reconhecer e falar dos sentimentos nos leva a outra par
te de nossa identidade que, se não fosse por isso, ficaria ir
cógnita, mas poderia explodir de formas nem sempre mui
educadas. Ao reconhecer nossos sentimentos, nos abnimº
para os outros e compreendemos as diferenças que tem”

I76 ams
maria
Da ar
RINALDI
e

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em relação a eles, assim como, ao ver os sentimentos dos
outros e as coisas que temos em comum, aprendemos a nos
colocar em seu lugar.
Troca, escuta e divisão de sentimentos e emoções consti-
tuem uma parte essencial do nosso diálogo com as crianças,
que são tão diferentes de nós, mas totalmente capazes de
compreender — em especial quando são bem pequenas —
as “razões do coração”.

DiáLoGos com Reggio Emi


Lia | I77

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S
| DOCUMENTAÇÃO E INVESTIGAÇÃO (1999)

CoMO AFIRMEI NUMA INTRODUÇÃO ANTERIOR, alguns temas e


conceitos são recorrentes. Primeiro porque são identifica-
dores, isto é, sinalizam de fato características de nossa ex-
periência. Mas talvez também porque são mais difíceis de
ilustrar e, provavelmente, mais complexos de entender. De
fato, a fim de captar a novidade, esses conceitos requerem
uma mudança real de paradigmas por parte do ouvinte,
mas, acima de tudo, por parte daqueles que trabalham em
situações de ação pedagógica.
Um dessesumconceitos
+ou melhor, é o de[Tnvestigação pedagógica”)
entendimento do conceito de investigação
ao definir a relação ensino /aprendizagem tal qual acontece
na ação cotidiana. Como explico no texto que se segue, essa
não é uma declaração arrogante, mas uma tentativa de fa-
zer justiça à criatividade e à riqueza que ocorrem todos os
dias quando procuramos entender e apoiar o processo de
aprendizado da criança e do educador por meio da docu-
mentação pedagógica.
Não é coincidência que esta fala tenha sido preparada
para um simpósio internacional realizado em junho de 1999,
em Reggio Emilia, com o nome de Learning about Learning.
Naquela época, eu era diretora das escolas municipais de
Reggio, mas tinha decidido deixar o cargo e me dedicar mais

Digitalizado com CamScanner


É A

ao estudo e à pesquisa. Essa foi uma das razões pelas quais
senti, ou sentimos, a necessidade de promover um encontro
que pudesse realçar o argumento por trás deste enunciado:
a importância da investigação pedagógica.
Estávamos fazendo isso num período em que reformas
escolares vinham sendo discutidas na Itália. Mais importan-
te, buscávamos, outra vez, legitimação educacional para os
nidi e as scuole delVinfanzia, que, em geral, eram percebidos
e descritos mais como um serviço bascado em demanda
individual (p.76) do que como locais de educação. Quanto
mais se discutia o desenvolvimento do educador nos planos
nacional e internacional, sem uma ênfase suficiente na im.
portância do trabalho de grupo e da documentação, mais
relevante se tornava essa legitimação.
A presença de amigos e colegas de diferentes partes do
mundo tornou o evento extremamente valioso. Cada qual
trouxe uma contribuição que se entrelaçava com as dos
educadores, pedagogos e atelieristas das escolas munici-
pais de Reggio. Esses educadores apresentaram projetos
de investigação realizados nas escolas municipais sobre
assuntos considerados de grande
interesse na época, nos
debates nacionais e internacionais, tais como documenta:
ção e avaliação, participação da comunidade, a cidade de
Reggio Emilia, novas tecnologias, moral e ética, teatro,
espaço e meio ambiente, música e direitos especiais. As
teses que eles apresentaram, por meio de histórias com
palavras e imagens, propunham que o conhecimento
fosse uma forma de ação, entre outras: assim como não
existe ação sem conhecimento, também não há conhece
mento sem ação. O conhecimento entra no circuito da

IBo | Carta RinaLDi

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ação de modo permanente e a modifica em caráter contí-
nuo, ao mesmo tempo em que sofre modificação. Nesse
sentido, O significado profundo da pesquisa pedagógica se
tornou claro.

É com grande alegria que eu e todos de Reggio comparti-


lhamos com vocês essa experiência de vida. Sim, uma expe-
riência de vida, porque vejo esses dias que passaremos jun-
tos não somente como uma oportunidade de desenvolvi-
mento profissional, mas, acima de tudo, como um encontro
entre pessoas que estão buscando o significado de ensinar,
de ser educador.
Tentaremos introduzi-los em nossas experiências e, em
particular, nas razões e motivações que nos compelem a
viver cada dia como um dia único, especial, cheio de possi-
bilidades e de novidades. Saber que cada dia não é uma cai-
xa fechada, embrulhada, algo que foi preparado para você
por outros (esquemas, planos), mas, ao contrário, que é um |
tempo possível de se construir com os outros, sejam crian-

<q»
mf
ças ou colegas de trabalho — uma busca de significado que
somente as crianças podem nos ajudar a fazer —, é a coisa
mais maravilhosa que encontramos em nosso trabalho e
que gostaríamos de dividir com vocês. É o que denomina-
mos “investigação pedagógica”. )
E acreditamos que são precisamente a documentação
e a pesquisa que nos dão a força geradora que torna cada
dia um dia especial. Agora, gostaria de partilhar com vocês
algumas reflexões que espero que lhes ajudem a compreen-
der melhor. A primeira delas me veio de uma releitura dos
escritos de Maria Montessori. Eis o que Montessori escre-
eee

DiáLogos com Reggio EmiLia | 181

Digitalizado com CamScanner


RE

veu no começo do século XX, o mesmo século que zm;


estamos concluindo:

« “[Começar sempre] pela criança...) com a haDtsiade


de acolhê-la como eia é, livre dos milhares de róriio
com os quais agora se pretende identificá-lz"
- “Mudar a ação da escola de ensinar para aprené
concretamente e não apenas verbalmente. favorecs
do a ação construtiva e colaborativa das criançasez
presença do educador como ajudante que está sex
pre disponível para elas, mas sem ser opressíivo oz m-
trusivo. (...) Aquilo que as crianças sabem fazer junta
hoje elas saberão fazer sozinhas amanhã”
* “Construir, também junto com as crianças, um =
biente educacional para aprender. (...) Estabelecendo
espaços, mobílias, materiais, ferramentas, projetos
encontros, experiências colaborativas, trocando £
À
“«— comparando ideias.
N - - >

Perguntei a mim mesma e pergunto a vocês: o que mas


poderíamos dizer a nós mesmos e àqueles que nos assistem
e ouvem com interesse e curiosidade? O que mais poderz
mos oferecer às crianças além daquelas que estão contêz
nessas palavras de Maria Montessori?
Sei que muita coisa tem sido escrita, elaborada, enrique
cida e mais bem-definida a partir dessas palavras de Mar
Montessori. O contexto em que ela trabalhou era diferem
te, assim como eram distintas suas imagens. Um manandz
de pesquisas perpetradas em diversas áreas, e também
novos campos de conhecimento e aprendizado, permit>

182 | CARLA RINALDI

Digitalizado com CamScanner


-nos falar de “andaimes”, aprendizagem de grupo, aborda-
gens interdisciplinares, expressividade e linguagens, e ainda
sobre a reciprocidade entre ensino e aprendizagem. Mas
tenho receio — e gostaria muito de estar enganada — de
que muito pouco mudou de fato na forma de ser e de fazer
da escola, no cotidiano da escola, uma vez que a essência
das palavras de Maria Montessori, em inúmeras situações
na Itália e em todo o mundo), continua não realizada. São
árias as causas, oriundas das mais diversas áreas: política,
cultural, sindical e assim por diante.
4Para mim, entretanto, existe um fator determinante que
raramente é levado em consideração. É o fato de que con-
tnuamos a falar da escola, do ensino e da aprendizagem
utilizando apenas a linguagem verbal, a palavra falada e a
escrita. Gerações de educadores têm levado adiante sua
formação inicial e seu desenvolvimento profissional conti-
muado sem jamais refletir sobre a variedade de coisas que sa-
bemos acerca do aprendizado e sobre o relacionamento do
aprendizado com o seu contexto. E, em especial, abdicando
da busca por novas formas, novas linguagens, que possam
lhes permitir viver, partilhar, narrar e desempenhar os even-
tos do aprendizado.
Essas formas e essas linguagens, essa espécie de “conta-
minação” entre linguagens diferentes, poderiam abrir novos
horizontes (como aconteceu em outras disciplinas) e criar
novos papéis de liderança para as crianças e os educadores.
Estes, por exemplo, seriam promovidos da condição de me-
Í ros praticantes para a posição de autores dos processos e
trilhas pedagógicos. Eles seriam capazes de contribuir para
a superação, ao menos no campo da educação, da ideia ar-

DiáLocos com Reggio EmiLia | 183

Digitalizado com CamScanner


a
sn
a
its
rogante de uma separação continua entre teoria e prática,

fd
cultura e técnica. E teriam a possibilidade de parar de se ver,
e de serem vistos pelos outros, como aqueles que apenas
aplicam teorias e decisões desenvolvidas por terceiros.
A persistência dessa ideia (segundo a qual os educado.
res continuam a ser definidos como “praticantes”) é um
absurdo que precisa ser superado. Ele é o resultado de
conceitos de pesquisa, pedagogia e educação mal-elabo.
rados, intelectualistas e equivocados. A capacidade de re-
2 rage fletir e discutir as formas pelas quais as crianças,
- e todos $
o os seres humanos, aprendem (enriquecendo assim a hu.
Ryu manidade de cada indivíduo e de todos nós) é uma gran.
ds. . de possibilidade e uma necessidade que a escola até agora
of parece não ser capaz, ou não ter tido vontade de oferecer
É hora de mudar. Os locais em que se realizam pesquisas
sobre o aprendizado precisam ser ampliados para as esco-
las e devem permitir que tanto professores quanto alunos
reflitam, em seu cotidiano, sobre as maneiras pelas quais
aprendem e constroem o saber.
Sim. estou me referindo à documentação, na forma com
Úeau “que a desenvolvemos na experiência de Reggio: não como
Ness documentos para os arquivos, ou como painéis pendurados
1 nas paredes, ou ainda como uma série de belas fotografias
! - 4 mas como um traço visível e um procedimento que dá su
| porte ao aprendizado e ao ensino, tornando-os recíprocos
| por poderem ser vistos e partilhados. Creio que essa com
| tribuição da experiência de Reggio no campo da pedagog:
| (mas não apenas nesse campo) foi, tanto no plano nacionã
| quanto no internacional, muito importante, e poderá
|umais ainda no futuro.
".

Digitalizado com CamScanner


Mas também acredito que temos de ir além. A documen-
tação como escuta visível, como construção (por meio da
escrita, de slides, de vídeos etc.) de traços que não somente
testemunham as trilhas e os processos do aprendizado das
crianças, mas que podem realmente torná-los possíveis por-
que são visíveis. Um manancial de documentação (vídeos,
fitas cassete, notas escritas etc.) desenvolvido e utilizado du-
rante esses processos é importante porque:

* torna visível, ao menos em parte, a natureza dos


processos e estratégias de aprendizagem utilizados
pela criança. Isso significa que o professor e, acima
de tudo, as próprias crianças podem refletir sobre a
natureza do processo de aprendizagem enquanto es-
tão aprendendo; isto é, enquanto estão construindo
conhecimento. Não uma documentação de produtos,
mas de processos, de trilhas mentais.
tudo isso permite ler e interpretar, revisitar e avaliar
no tempo e no espaço. Então, essa leitura, reflexão,
avaliação e autoavaliação se tornam partes integran-
tes do processo de construção do saber da criança. asso

Para o educador, a capacidade de refletir sobre a forma com


que se dá o aprendizado significa que ele pode basear seu
CO

ensino não naquilo que deseja ensinar, mas naquilo que a


a

criança deseja aprender. Desse modo, ele aprende a ensinar e,


junto com as crianças, busca a melhor maneira de proceder.
De fato, aquilo que documentamos (e, portanto, faze-
mos existir) é um senso da busca que crianças e adultos fa-
zem juntos pelo significado e pela vida. É um senso poético

DiáLocos com Regcio EMiLIA | 185

Digitalizado com CamScanner


e tocante, que somente uma linguagem poética, metafórica e
analógica pode construir em sua plenitude holística.
” Um segundo fator que acredito ter inibido, ou mesmo
sufocado, as visões apresentadas por Montessori — e tam.
bém por Dewey, Piaget, Vygotsky, Bruner e muitos outros
— acerca do aprendizado é que foi negado à escola o aces.
so ao conceito de pesquisa. Todos nós temos consciência do
| que significa pesquisa científica: e do debate que cerca as
Sr*, | chamadas ciências “dura” e “eve”. Em Reggio, no entanto,
LO | sentimos que o conceito de pesquisa, ou melhor, talvez, um
| novo conceito de pesquisa, mais contemporâneo e vivo, pode
|
E
- .
AM

surgir se legitimarmos o uso desse termo para descrevera


tensão cognitiva que se cria sempre que ocorrem processos
/ autênticos de aprendizado e de construção do conhecimento.
“Pesquisa” como termo para descrever os percursos indiv
| duais e comuns percorridos na direção de novos universos de
| possibilidades. Pesquisa como surgimento e revelação de um
evento. Pesquisa como arte: a pesquisa existe, assim como
na arte, na busca pelo ser, pela essência, pelo significado. São
esses os sentidos que atribuímos ao termo “pesquisa” (ou po-
deríamos também empregar “pesquisas” no plural, se fosse
| possível em inglês), na tentativa de descrever a força vital que
f | pode ser comum a adultos e crianças, dentro e fora da escolz
E + Precisamos criar uma cultura de investigação.
Estou convencidade que essa “atitude de investigação”é
a única abordagem ético-existencial factível numa realidad
cultural, social e política como a nossa de hoje, sujeita a mu-
danças, colapsos e formações híbridas de raças e culturas
que são positivas e potencialmente arriscadas. É o valor dz
pesquisa, mas também a busca por valores.

Digitalizado com CamScanner


9
CONTINUIDADE NOS SERVIÇOS
PARA CRIANÇAS (1999)

À RAZÃO QUE ME LEVOU A JUNTAR OS dois próximos artigos


— “Continuidade nos serviços para crianças” e “Criatividade
como qualidade do pensamento” —, ainda que tratem
de temas distintos, é não apenas a proximidade em termos de
tempo, mas também o fato de que ambos foram prepara-
dos para duas conferências realizadas na Itália, em Parma e
Pistoia, para ser mais precisa. E é exatamente esse elemento
que quero enfatizar: o relacionamento entre a experiência
de Reggio e outras experiências italianas. Aliás, sinto que
esta é uma oportunidade para realçar dois aspectos desse
relacionamento.
Reggio é parte essencial (de essência como identidade)
da história pedagógica e política dos serviços para a primei-
ra infância na Itália. É um dos muitos lugares que expressam
a vitalidade, a riqueza e a qualidade da pesquisa pedagógica
italiana (especialmente em pedagogia ativista, em meu país)
tos corajosos investimentos das municipalidades nos servi-
ços para a primeira infância.
Mas, ao mesmo tempo, Reggio, em parte devido ao diá-
logo com muitas situações nacionais e internacionais e a
certas escolhas estruturais de sua pedagogia e de sua po-
lítica, tem cultivado e revelado uma identidade que torna

Digitalizado com CamScanner


suas diferenças óbvias e apreciáveis. Entre muitos outros
elementos de diferenciação, incluem-se: o projeto de con-
tinuidade Zerosei (de zero a seis anos); o valor atribuídoà
criatividade como qualidade do pensamento humano tam.
bém manifestado por meio do ateliê e da figura do mestre
de ateliê; o valor do relacionamento entre teoria e prática
simbolizado nas equipes de trabalho de professores e pe-
dagogos: e o valor da reflexão como elemento formador
apreendido na documentação pedagógica. Foi uma inova-
ção perseverar na afirmação da estética como um elemen-
to dos direitos, como parte dos direitos das crianças, junto
com a participação das famílias (entre outros), o que tam.
bém se definiu como um direito da família, mas, especial-
mente, da criança e do educador.
Esses elementos que, provavelmente, despertaram o in-
teresse de muitas pessoas cresceram por meio da troca e da
partilha com os colegas italianos e com as situações iniciadas
no começo da década de 1960. Eu me lembro das viagens de
carro e de trem com Malaguzzi e outros colegas (que logo se
tornaram amigos) para os mais variados destinos na Itália,
tanto no norte quanto no sul. Entre os inúmeros lugares que
visitamos e as diversas realidades ricas e generosas que encon:
tramos, recordo particularmente Pistoia e Parma por várias
razões — algumas diferentes, algumas semelhantes entre s.
Pistoia é uma cidade toscana, similar a Reggio em ta
manho, orientação política e cultura de escola municipal.
Estabelecemos diálogo sobre os temas da criatividade e do
Projeto Zerosei (de zero a seis anos), isto é, sobre a relação
entre nidi e scuole delVinfanzia, os relacionamentos comà
cidade, o papel do pedagogo e, de modo mais geral, a org”

188 | CariA RiINALDI

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nização. Creio que foi graças a esse diálogo que pudemos
construir nossas diferenças e, portanto, nossas corajosas
identidades, assim como nossa paixão comum pelos temas
da educação na primeira infância.
Para mim, Parma representa a riqueza do diálogo dentro
da mesma região, Emilia Romagna, graças em parte ao im-
portante trabalho das administrações e das equipes ao longo
dos anos. Em 1972 fui a Parma pela primeira vez com Lo-
ris Malaguzzi. Também se discutia um regolamento, medidas
regulatórias, na cidade para a organização e a consolidação
dos serviços para a primeira infância, e entre as questões
principais destacavam-se aquelas relacionadas à continuidade
entre nidi e scuole dellinfanzia. Reggio (como já observei an-
tes) havia optado pelo Projeto Zerosei (de zero a seis anos)
e dava grande ênfase na continuidade. Parma, por sua vez,
optara pela separação das duas experiências, e essa escolha se
caracterizou por diferenciar os dois tipos de serviço, tanto em
orientação pedagógica quanto organizacional. Assim, fiquei
intrigada, trinta anos depois, ao ser convidada para participar
de um seminário destinado a refletir sobre esse mesmo tema
da continuidade pedagógica entre nidi e scuole delPinfanzia,
que hoje, na Itália, tem ainda mais interesse e urgência do que
antes. De fato, quando os nidi são separados das scuole
del"infanzia, correm o risco de negar a identidade educacio-
nal e de se reduzir a uma mera solução para necessidades e
emergências sociais. Ao mesmo tempo, as scuole del'infanzia
Se arriscam a perder a centralidade da brincadeira e a criativi-
dade nos processos de aprendizado das crianças.
Talvez seja também por essa razão que os esforços de
Pistoia para colocar a criatividade no centro dos processos

DiáLoGos com Regaio EmiLta | 189

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recentes de desenvolvimento profissional tenham um valor
especial. À amizade entre nós e as razões que apontei aqui
me levaram a aceitar o convite de Annalia Galardini para
falar em Pistoia sobre criatividade. Num encontro subse.
quente, Vea Vecchi, atelierista, apresentou sua experiência
na scuola dellVinfanzia Diana. Lembro-me desse encontro
com grande prazer e gratidão: um reconhecimento que se
tem ao construir uma identidade junto com outras pessoas,
respeitando as diferenças.

Minha contribuição se baseia na minha experiência em Reg-


gio Emilia, onde trabalho há muitos anos e onde foi desen-
volvido um projeto para trabalhar com crianças de zero a
seis anos nos nidi e nas scuole delPinfanzia. Em resumo, a re.
levância dessa experiência se deve a algumas características
distintivas, inclusive: o mesmo departamento da comuna,
isto é, o Departamento de Formação Profissional, Ensino
Educação, é o responsável por todo o projeto; existe apenas
uma estrutura de apoio e coordenação pedagógica; e todos
os serviços partilham os mesmos valores, a mesma episte-
mologia, pedagogia e organização (isto é, o mesmo horário
de funcionamento, o mesmo número de horas de trabalho).
Por que um projeto de “zero a seis”? Quais as considera
ções que estão por trás disso? Que tipos de continuidade se
buscaram e ainda se buscam nessa espécie de escolha? Em
que medida essa questão é típica? Por que ainda é necessá
rio reafirmar o valor e a relevância desse projeto?
A reflexão sobre alguns conceitos e questões pode ajudar
a entender e discutir a nossa escolha em Reggio e também
contribuir para nossa meditação sobre o assunto.

190 | CARLA RiINALDI

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1) O CONCEITO DE CONTINUIDADE

Por que continuidade? Continuidade de quem? Continuidade


de quê? Uma continuidade de pensamentos e ações, que não
é, assim, identificável com reuniões — diálogos que caracte-
rizam estágios de desenvolvimento —, por mais importantes
que sejam. Uma continuidade que não pode ser resumida pelas
entrevistas entre professores dos nidi e das scuole delPinfanzia, e
com os pais, ainda que tenham grande relevância.
A continuidade é um fenômeno mais complexo e com-
posto do que a simples troca de informações sobre os ní-
veis que foram alcançados pelas crianças. Ela faz referência
à qualidade intrínseca ao próprio viver, ao homem, à sua
busca pelo significado, ao sentido do seu passado, presente e
futuro. A continuidade que a criança procura tem a ver com
fazer parte de um projeto, engajar-se nele; um “projeto de
vida” cujas várias frações e cujos lugares de educação (famí-
lia, nido, scuola dellinfanzia e contexto social) se conhecem
e dialogam entre si, a partir de suas diferentes identidades,
para ajudar nessa busca de identidade e sentido. Acima de
tudo, continuidade como um direito da criança e como qua-
lidade interior ao nido, envolvendo diálogo no nido e com o
mundo exterior; tudo isso no espaço e no tempo.

2) O CONCEITO DE MUDANÇA — EMBORA À PRIMEIRA VISTA


ELE POSSA PARECER CONTRADITÓRIO COM O CONCEITO DE
CONTINUIDADE

A mudança é um valor? Que mudança? De que mudança


estamos falando? Eu qualificaria como importante esse tipo

Drárocos com Reggio EMiLIA | 191

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de mudança que define a vida de um homem, essa forma de
mudança que gera e é gerada pela descontinuidade como
fator causador: um fato biológico e um valor cultural ines.
capáveis, mudança como transição de um “estado”. aquele
do ser, para outro, aquele do ser capaz de ser; a mudança
que nós etetvamos e pela qual somos afetados: a mudanca que
afeta a criança e que a criança não quer nem pode rechaçar
Embora a mudança não seja fácil e, algumas vezes. seja do-
sa.
lorosa, éé vital.
vi A
Vital em relaçãoa àSs vida. porque 1.
a vida é me. |
|
dança, e Os primeiros cinco anos da vida são
um período de |
grande transformação. |
Falamos sobre o direito de mudar: mudar é tanto um |
direito quanto um valor. É uma qualidade de vida
e de viver.
que exige atenção para dar a cada um sua dire
ção. O neces
sário é dar sentido à mudança e acompanhá-la
. As criancas
também nos pedem isto: que acompanhemos suas e
ças e a busca por novas identidades. pelo sentido
do cresc-
mento e pela identidade na mudança, a busca pelo sentido
da mudança. É uma questão de ver, ler, interpre
tar a mu-
dança pelos olhos de outras crianças e adultos. de modo:
entendê-la, admirá-la e apreciá-la.

3) NOSSA IMAGEM DA CRIANÇA E DA INFÂNCIA

Trazemos essas imagens dentro de nós. Elas são adquiridas


por meio do sistema de representações, que todo grupo so
cial desenvolve no curso de sua história, e são as expectar-
vas dirigidas à criança por seu contexto social. É por esss
representações e imagens que cada sociedade e cada indiv-
duo se relacionam com as crianças.

192 | Carta RisaLDI

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Em minha visão, essa virada de século que constitui a
nossa época, assim como a nossa região cultural do mundo,
se caracteriza por uma profunda discrepância entre aquilo
que se descreve na literatura psicopedagógica e se experi-
menta em algumas situações e aquilo que é realmente feito
e vivenciado na maior parte da vida cotidiana. Muito já se
disse e se escreveu a respeito da criança competente (que
tem capacidade para aprender, amar, se modificar e viver), a
criança que tem um manancial de potenciais, a criança po-
derosa em relação ao que é e pode ser desde o nascimento.
Na prática, porém, muito pouco tem sido feito para levar
essa imagem a sério.

4) O CONCEITO DE APRENDIZADO

Muito já se falou sobre as construções de conhecimento do


indivíduo, sua duração e seus métodos, e sobre a constru-
ção da identidade. Mas, na prática, nossa forma de agir e
de lidar com a criança demonstra uma negação total dessas
possibilidades.
Inúmeras abordagens pedagógicas, políticas e institui-
ções incumbidas da infância são inspiradas e legitimadas
pela ideia de uma criança frágil e fraca. E quanto à criança
pequena (em especial as menores de três anos), parece ser
ainda mais legítimo negar as diversas qualidades que a iden-
tificam.
Criou-se uma ruptura entre os primeiros dois ou três anos
de vida e os outros três que se seguem. As diferenças entre
esses grupos de idade, embora sejam importantes para sua
Caracterização, têm sido assumidas em total desvantagem

DiáLogos com Reggio EMmiLia | 193

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para as crianças menores, causando uma verdadeira eros, .
e distorção de seus direitos. Estamos testemunhando um;
verdadeira negação social, cultural e política da criançape
quena e de sua identidade pública como portadora de dire.
tos e de cidadania. A identidade da infância, portanto, es
sendo escondida.
Talvez essa seja a única maneira de as pessoas justiá.
carem os argumentos usados para o tratamento diferen
dado aos nidi. Os seus custos — que são inegavelmente
altos — jamais são encarados como investimentos sociais
são sempre vistos como simples gastos. É por isso que ques
tões como o salário diferenciado para educadores nos nigie
nas scuole delVinfanzia ou as decisões recentes a respeitoé
formação profissional (nível superior exigido somente dos |
professores das scuole delVinfanzia) não surpreendem mai |
ninguém. Também é a única forma de explicar (mas não &
justificar) a atitude dos professores das scuole dellinfanzi
que rejeitam comparações e trocas com os nidi: é o med:
de serem puxados para baixo.
O risco cada vez maior de padronização das sc
dellinfanzia e a tentativa de torná-las progressivament
mais parecidas com as escolas elementares” dão margem:
uma abordagem totalmente distorcida do relacionament"
entre nidi e scuole dellVinfanzia. A escassez de nidi em todo?
país e a lamentavelmente baixa visibilidade, tão comum.
sim como o pouco reconhecimento que têm recebido nº
esferas sociais e culturais), ameaçam separá-los ainda m%
das scuole delVinfanzia, com o risco de isolar o nido de toc
as outras partes do sistema educacional.

* Nível de ensino correspondente ao ensino fundamental no Brasil (NE

194 | CARLA RiINALDI

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A pesquisa que vem acontecendo no nido, mostrando
suas qualidades e seu valor, tem sido de pouca utilidade.
Aos olhos do público e do governo nacional, quase sempre,
o nido aparece como um lugar de “cuidado” e de “assistên-
cia social”; um espaço muito caro e que não educa.
Assim, existem diversas razões de natureza política, eco-
nômica e cultural que impossibilitam o verdadeiro desen-
volvimento do conceito de continuidade dentro do grupo
de zero a seis anos. O que parece óbvio, contudo, é a ne-
cessidade de romper o círculo vicioso em que o nido caiu
e começar uma perspectiva nova, não apenas em termos
da economia e do emprego, mas também em termos da
imagem da criança, dos direitos da criança, das formas de
aprendizado da criança, da construção de conhecimento e
identidade num contexto acolhedor e hospitaleiro, de modo
a identificar as qualidades educacionais dessas instituições.
É necessário, portanto, começar a reflexão a partir da
criança e das estratégias mais inclinadas a favorecer a ex-
pressão real de suas possibilidades. Somente daí em diante
poderemos começar a negociar e a enfrentar as questões eco-
nômicas (custos), sindicais (condições dos educadores) e as
necessidades que surgem da organização social (os horários
de trabalho da família etc.), a fm de encontrarmos soluções
flexíveis que sejam compatíveis com as conveniências e os
direitos dos outros sujeitos envolvidos (educadores e pais).
Apenas com esse procedimento poderemos falar de continui-
Y
equi

dade, ou melhor, refletir sobre o conceito de continuidade e


concordar com um novo significado para esse termo.
Continuidade, compreendida, essencialmente, como pro-
Par

gettualitã de longo prazo, um cronograma extenso que pos-

Drárocos com Regio EMILIA | 195

Digitalizado com CamScanner


sa sustentar não só a busca de significado, mas também

es
diferenças e semelhanças entre as identidades mutantes

o)
das crianças e as das instituições).
Continuidade, compreendida não no sentido de pagr,
nização, mas de desenvolvimento coordenado e cocrens,
do processo educacional. Isso deveria implicar a não erosi,
de métodos e meios, mas, ao contrário, deveria envolver;
busca de diferentes estratégias e contextos destinados a ur
objetivo comum (isto é. permitir que toda criança, ass
como todo adulto — educadores e pais —, divida significa.
dos comuns. dando origem a nidi e scuole dellinfanzia que
sejam não uma preparação para à vida, mas a própria vida e
a valores construídos juntos. Esses não são lugares onde os
os edu.
educadores tentam passar informações, mas onde
recíproco, com-
cadores e as crianças procuram, de modo
preender um ao Outro. no 2.4
No fim das contas, isso poderá garantir a identificação
das diferenças apropriadas e das semelhanças necessárias
estima
entre as duas instituições, num relacionamento de
o vem do sign- ificado.
respeito mútuos. Esse rela cionament
nto compartilhados,€
do conhecimento e do desenvolvime
alcançá-los, isto é, o pro
dos processos que lhes permitem
cesso de educar, o papel das instituições da primeira intan-

será possível à medida que eles


* O diálogo entre os nidi e as scuole dellinfanzia só
aquilo qx
forem capazes de expressar aquilo que Os diferencia, assim como
têm em comum. Eles compartilham ouvir a criança, cuidar do meio ambien:
valorizar o diálogo e a participação; mas suas estratégias e formas de organz
ção são diferentes. Por exemplo, a maneira de organizar o ambiente para vu”
bebê de seis meses é diversa daquela destinada a uma criança de quatro ar»
embora ambas sejam inspiradas por um alto nível de atenção dada à cnaç
de um contexto capaz de encorajar processos de aprendizado e interação nº
crianças e entre elas.

196 | CariA RiINALDI

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cia e à significação do ensino em relação ao aprendizado.
Em outras palavras, representa explicitar as teorias de re-
ferência e transformá-las em objeto de reflexão, discussão,
comparação e troca.
Essas conjecturas e esses objetivos permitiram que minha
cidade, Reggio Emilia, organizasse e seguisse processos de
educação comuns que permitem o diálogo com as diferenças
como ponto de partida. Diferenças essas que são conscientes
e discutidas e que ficam prontas para serem redefinidas por
meio da troca e da mudança. Nidi e scuole delVinfanzia podem,
assim, extrair grande vantagem mútua não só em termos de
diálogo, mas também de identidade e consciência.
A continuidade como uma progettualitã, em grande esca-
la e com extensas possibilidades em um tempo prolongado
(seis anos), é importante não apenas para a criança, para
seus processos e seu desenvolvimento, mas também para a
educação do educador (que deveria se concentrar no proje-
to infantil de zero a seis), o relacionamento com as famílias
(programas de seis anos influenciam o desenvolvimento da
experiência parental) e o impacto social, cultural e político
dessa experimentação. O nido é apresentado como um lu-
gar que não é único, mas que tem importância primordial
no desenvolvimento da “imagem da infância”. Uma ima-
gem forte da infância e da escola infantil representa uma
posição contratual mais forte.”
Continuidade aqui representa continuidade de valores, ou
seja:

* O que quero dizer com “posição contratual mais forte” é que o maior po-
der de negociação para as crianças advém do reconhecimento da infância e das
crianças como sujeitos sociais, sujeitos com direitos e que, como tais, não po-
dem ser ignorados nem ofendidos.

DiáLoGcos com Regeio EMILIA | 197

Digitalizado com CamScanner


- valor da formação profissional como autoformação;
e valor da educação, à medida que crianças, educado.
res e pais constroem o conhecimento e a identidade
juntos, abrangendo o valor da subjetividade no reco-
nhecimento de percursos e processos individuais de
memórias, documentos e registros;
valor da participação e da introdução como compara-
ção, troca e negociação;
valor do contexto em termos de espaço, períodos e ma-
teriais.

A continuidade em Reggio Emilia tem se traduzido num:


organização que concede o máximo respeito às
diferenca.
permitindo que se manifestem as qualidades
distintas de
cada instituição. Ao mesmo tempo, contudo, nossa orgz
nização estimula o diálogo e a comunicação em
todos os
níveis, por meio da presença conjunta de educadores (mais
de um educador trabalhando com o mesmo grupo, ao mes
mo tempo), de sessões de formação profissional superior
de sessões de participação dos pais e de formação continua
oferecida em encontros formais de instituições.

5) À FASE DE TRANSIÇÃO ENTRE O NIDO E A SCUOIA DELL INETI

Partimos da crença de que as crianças — e não apenas elas


— nos pedem e querem fazer previsões que deem supor
te ao seu entendimento e à sua estruturação do evento&
transição. Em geral, o que se define como o egocentrism

* Significa a criação de um currículo com continuidade em torno dos pros”


de aprendizagem. (Nota do Revisor Técnico)

198 CarLA RiIiNALDI

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da criança (mas também do adulto) é, na realidade, um fe-
nômeno de desorientação. Precisamos ajudar a eles e a nós
mesmos a prever as regras, os papéis e as expectativas que
permeiam O contexto.
Assim, no último ano do nido (e também da scuola
del'infanzia) fazemos um esforço mais intenso para desen-
volver arcabouços de previsão para as crianças, os pais e
os educadores. Embora levando em conta suas diferentes
preocupações, é importante que os três se tornem capazes
de manejar o período de transição, compreendendo, saben-
do-se aguardados e acolhidos, percebendo que a identidade
individual é reconhecida (admitindo-se o medo do anoni-
mato — em especial dos pais), tendo a sensação de serem
escutados (esperanças, desejos e ansiedades); em suma, sen-
tindo-se respeitados e aceitos.
É nesse sentido que algumas iniciativas adquirem valor
e significado; iniciativas como as visitas à scuola dellinfanzia
para pais e crianças, que podem ficar lá uma manhã intei-
ra como grupo; encontros de turma com os educadores da
scuola dellinfanzia para explorarem juntos as expectativas
(e continuidades); e disponibilização de informações bási-
cas e revalidações (inclusive informação material, panfle-
tos e publicações menores, em que as próprias crianças de
cinco anos falam com as outras sobre o começo na scuola
delPinfanzia e sobre suas experiências, com palavras, dese-
nhos e fotografias).
Oportunidades posteriores são oferecidas por intermédio
de uma espécie de “cartão de identidade” da scuola delVinfanzia
c da turma, com os nomes dos futuros amigos e professo-
res, e pelo convite às crianças que estão prestes a começar

DiráLogos com RecGio Emiia | 199

Digitalizado com CamScanner


na scuola dellinfanzia, para que reúnam suas memórias do
último verão, o que significa recolher histórias e narrativas
pessoais. Esse pequeno “diário de férias” vai ficar com a
criança durante Os seus primeiros dias na escola e pode aju-
dar a amenizar a transição entre um contexto e outro.
Todo esse material é entregue às famílias, em junho,
num encontro com as novas crianças, suas famílias e os no-
vos educadores, organizado de modo específico para esse
fim: tomar um sorvete ou uma xícara de chá é um bom
pretexto para se reunir como grupo e definir em conjunto
o aspecto físico, as identidades que formam o conjunto eo
caminho que se deseja seguir. Em agosto, fazemos entrevis
tas individuais e outro encontro com todos os envolvidos,
alguns dias antes do início das aulas, quando educadores
pais tentam fazer previsões e identificar estratégias. Além
disso, há entrevistas individuais com famílias e encontros
entre educadores do nido e da scuola dellinfanzia, que tenta
mos planejar no nido, de modo a dar grande valor aos mate
riais de documentação ali existentes — traços individuaise
de grupo que testemunham as experiências da criança.
Esses encontros têm de ser realizados segundo o enter
dimento de que não se vai descrever aquilo que a criançaé,
menos ainda aquilatá-la por meio de uma “avaliação fina;
mas, ao contrário, de que serão narradas as suas experiênda
naquele contexto particular — o nido —, por meio de dou:
mentos que falam em nome dela. Trata-se de uma conver
sação que pretende dar ao educador da scuola dellinfanz:
— que usa as mesmas linguagens do profissional do nidot
acima de tudo, compartilha valores e significados naque?
áreas que mencionei anteriormente — uma orientação º

200 . “ARLA RINALDI

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bre a melhor maneira de criar um ambiente de boas-vindas.
A história e as produções da criança são colecionadas em
álbuns, alguns como cadernos individuais e outros como
documentos de grupo.
Por fm, mas não menos importante, na progressão da
continuidade há sessões de desenvolvimento profissional e
reuniões para os educadores dos nidi e das scuole delinfanzia,
organizadas individualmente ou em grupo, a fim de prepa-
rar “o evento”, a mudança de uma instituição para outra,
inclusive o adeus e a festa de boas-vindas, para a qual os pro-
fessores se convidam mutuamente.
Muitas outras coisas acontecem ainda durante o outono,
quando, após o período inicial de organização, os educado-
res têm a oportunidade de se encontrar novamente para
trocas posteriores, sugestões e conselhos. Inúmeras ações,
incontáveis pensamentos, mas um único objetivo: tornar a
criança e sua família autoras das próprias histórias, abertas
à mudança, agradecidas ao passado e cheias de “nostalgia
do futuro”.

DiÁLocos com Reggio EmiLia | 201


pane

Digitalizado com CamScanner


ao
4
Digitalizado com CamScanner
10
CRIATIVIDADE COMO QUALIDADE
DO PENSAMENTO (2000)

ACREDITO QUE ALGUMAS DAS QUESTÕES mais importantes que


devemos nos fazer, como professores, mas também educa-
dores em geral, e adultos, são essas:

* Como podemos ajudar as crianças a encontrar o sen-


tido daquilo que fazem e vivenciam?
* Como podemos responder à sua busca pelo sentido
das coisas, pelo sentido da própria vida?
* Como podemos dar respostas às suas constantes per-
guntas, aos seus “por quês” e “comos”, à sua procura
por aquilo que gostamos de pensar que é não apenas
o sentido das coisas, mas o sentido da própria vida,
uma procura que começa no nascimento, no primei-
ro “por quê” silencioso da criança, e vai até aquilo
que, para nós, é o sentido da vida?

Essas são questões centrais.


Trata-se de uma busca difícil, especialmente para as
crianças de hoje, que têm tantos pontos de referência dis-
tintos em seu dia a dia: a experiência da família, a televisão,
os locais de socialização. Crianças pequenas fazem um es-
forço enorme para juntar todos esses fragmentos, normal

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mente desconexos, que elas encontram não durante toda
uma vida, mas no período de um único dia. E, nesse estos
ço, muitas vezes elas são deixadas sozinhas, tanto por suas
famílias quanto por suas escolas. Mas continuam sua busca
mesmo assim, com teimosia, sem cansar, cometendo erros
e. em geral, sozinhas, porém, perseverando. Desistir signif.
caria baldar todas as possibilidades e esperanças, impedindo
a oportunidade não só de ter um passado, mas também de
garantir um futuro. E as crianças fazem isso desde o come.
ço de suas vidas.
Essa procura pela vida e pelo eu nasce com a criança €
é por isso que falamos de uma criança competente e forte,
engajada nessa busca em direção à vida, em direção aos ou-
tros, em direção às relações entre o eu e a vida. Uma cnam-
ça, portanto, que não é mais considerada frágil, sofredora,
incapaz; uma criança que nos pede que olhemos para e:
com olhos diferentes, de modo a fortalecer seu direito de
aprender e saber, de encontrar o sentido da vida e da própria
vida, sozinha e com os outros. Nossa ideia e nossa antud:
em relação à criança pequena são diferentes, pois a vemos
de forma ativa, todos os dias, assim como nós, procurando
entender alguma coisa, extrair um significado, capturar um
pedaço de vida.
O grande problema é compreender o significado daguis
que estamos construindo, o porquê das coisas, é buscar re
zões e respostas. E isso não se prende a uma idade espec? .
1
a bao

ca — acredito que seja uma qualidade da vida humana Te


uma compreensão diferente da realidade não representa1º
direitos diferentes. No entanto, em geral, esse parece ser! eta W

caso de um tipo de hierarquia imposta, que cria certos nives

ARIA RINALDI

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de compreensão e depois os relaciona ao reconhecimento
dos direitos. É muito comum as teorias e os entendimen-
tos expressados pela criança serem definidos como “equi-
vocados” ou “ingênuos” e, como tais, não merecedores de
atenção ou de respeito. Isso coloca a criança num patamar
anferior, define como “imperfeita”, considera significante
sua contribuição.
No entanto, sabemos muito bem o que representa ser
o companheiro de viagem da criança nessa busca por sig-
nificados. Os sentidos que as crianças produzem, as teorias
explicativas que elas desenvolvem na tentativa de encon- a
trar respostas são da máxima importância, pois revelam, (Bu
de maneira vigorosa, como as crianças percebem, ques- : di
tonam e interpretam a realidade e seus relacionamentos dua
com ela. do)
Essas teorias, essas explicações que as crianças produzem |, o>
são maravilhosamente meigas: “Está chovendo porque o Mia
homem da TV disse que ia chover”; ou “Está chovendo por- >
que Jesus está chorando”. Essas afirmações, no entanto, não |
devem, de maneira nenhuma, ser tomadas como “equívo-
cos”, termo normalmente utilizado na cultura pedagógica
€ que quer dizer que alguma coisa deve ser corrigida. De- q
veriam, sim, ser vistos como algo muito mais importante: | —
a gênese do desejo da criança pequena de fazer perguntas
para si mesma, desde a mais tenra idade. Isso dá uma signi-
E
ficação maior às situações em que a criança fica observando |
uma flor, durante dez minutos, em que se encanta com a
chuva na janela e levanta suas várias indagações, seus “por |
quês”. Os momentos mais criadores da criança acontecem |
quando ela pergunta “por quê”. A

DiáLocos com Regcio EMILIA | 205

TO
ETR TT
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Desde a mais tenra idade as crianças tentam produzir
teorias interpretativas, dar respostas. Alguns podem consi-
derar essas teorias ingênuas e inocentes, mas isso tem pouca
importância: o que importa mesmo não é apenas dar valor
a alguma coisa, mas, acima de tudo, entender o que há por
trás dessas questões e teorias, e o que há por trás delas é
algo verdadeiramente extraordinário. Há a intenção de pro-
duzir questões e buscar respostas, o que constitui um dos
“aspectos mais excepcionais da criatividade.
” À criança competente tem um adulto que a enxerga des-
| se jeito: o nível de expectativas é um fator determ
inante
Acredito, por exemplo, que para nós, em Regeio Emili
a, foi
fundamental o afastamento da ideia
de “observação obje-
tiva. isto é, a eliminação da objetividade
em benefício do
sujeito, mas, em especial, a possibilidade de olhar
para a
| criança com amor, com cumplicidade.”
Essa visão cúmplice
também pode ajudar a compreender que os
elementos que
SR

fundamentam as observ ações das crianças são


os seus mui- |
| tos “por quês”, suas tentativas de explicar para si mesmas
por que uma flor é como é, por que a mamãe diz flor
que é uma flor. Mas na flor existe o sentido da vida
eo |
e no
relacionamento com uma flor existe a busca pelo
senndo
da vida.
É por essa razão que eu gostaria de refletir um momen-
to sobre aquilo que chamamos, embora não seja original,
CA,

a pedagogia relacional e da escuta”, que se origina prec:


samente da ideia de que as crianças são os mais ávidos in

* Uso “cumplicidade” aqui no sentido de aliança ou solidanedade, que tao”


as crianças e os adultos se sentirem como se estivessem unidos, ligados por =”
desejo comum de compreender e conhecer e de serem capazes de lutar e &º *
alegrar juntos.

206 | Canta RiNaLDI

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vestigadores do significado e da significância, e produzem
;onas interpretativas. Essa ideia constitui não apenas a gê-
nese dessa pedagogia relacional e da escuta, mas também
2 possível origem de uma “criatividade relacional”. Tan-
to para adultos quanto para crianças, como afirmei ante-
normente, entender significa elaborar uma interpretação, | ,
o que chamamos de “teoria interpretativa”, ou seja, uma 2?
teoria que dá significado às coisas e aos eventos do mundo,
uma teoria no senso de uma explicação satisfatória. Pega-
mos o termo “teoria”, que normalmente tem uma cono-
tação muito séria, e o transformamos num direito de todo
ia, reconhecendo esse direito na criança que definimos |
como “competente”. =
Uma criança de três ou quatro meses de vida é capaz de
desenvolver teorias? Gosto de pensar que sim, porque sinto
que essa convicção pode levar a uma abordagem diferente
e, em particular, aos conceitos de escutar e de criatividade
relacional. Uma teoria, portanto, é vista como uma explica-
bo
ção satisfatória, embora também provisória. É algo mais do
que simplesmente uma ideia ou grupo de ideias; deve ser |
prazerosa e convincente, útil e capaz de satisfazer nossas |
necessidades intelectuais, afetivas e ainda estéticas. Ou seja, ||
deve nos dar a sensação de completude, que produz a sen- |
sação de beleza e satisfação. E,
De certa maneira, se possível, uma teoria deve ser praze- )
Tosa para os outros também, e precisa ser ouvida pelos ou- ( y
tros, Isso permite transformar um mundo intrinsecamente
pessoal em algo partilhado: meu conhecimento e minha .
identidade também são construídos pelo outro. Comparti-
lhar teorias é uma forma de resposta à incerteza e à solidão.

Drátocos com Reggio EMiLIA | 207

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Eis aqui um exemplo. Uma criança de três anos disse q e
guinte: “O mar nasce da mãe onda.” Essa criança elabore
o conceito e está desenvolvendo a ideia de que tudo tem
uma origem. Reunindo todos os elementos que possui e
modo criativo. ela formula uma explicação satisfatória e

unida
enquanto elabora o conceito, divide-a com os outros. Es

a o ad
outros exemplos:

4 Dm do
ae
as ndo
* “O clima nasceu da tempestade.” Aqui, a crianca by
uma associação e só espera ser ouvida, não rejeita
da. Ela consegue criar representações compostas com
linguagens e combinações incomuns.
* “O vento nasceu do ar e tem o formato de bater nas
coisas”: uma declaração como essa confere dignidade
a expressão “criança competente”.
* “Mas quando uma pessoa morre, ela vai para a bar
riga da morte e depois nasce de novo?” É isso 0 mx
a busca de significado e a formulação de teoriares
presenta: aqui, a criança uniu todos os elementos q
tinha em mãos e, talvez, suas ansiedades.

A palavra “escutar”, então — não somente no sentido &


sico, mas também no metafórico —, deixa de ser ape
uma palavra e se torna uma abordagem sobre a vida. Ea
sim que entendemos seu significado: escutar é uma aumé
que requer a coragem de se entregar à convicção de ox
o nosso ser é só uma pequena parte de um conhecimen
mais amplo; escutar é uma metáfora para estar aberto 2º
outros, ter sensibilidade para ouvir e ser ouvido, em tod»
os sentidos. E uma palavra que não deveria ser dinz>

208 | Cansa RiNALDI

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somente às crianças. Em particular, escutar é dar a si pró-
crio € aos Outros um tempo para ouvir. Por trás de cada
ato de escuta, há um desejo, uma emoção, uma abertura
às diferenças, a valores e pontos de vista distintos. Por con-
seguinte, devemos escutar e dar valor às diferenças, aos

crianças, especialmente para lembrar que, por trás de cada


ato de escuta, restam a criatividade e a interpretação de
ambas as partes. Desse modo, escutar é dar valor ao outro;
não importa se você concorda ou não com ele. Aprender
a escutar é uma tarefa difícil; é preciso se abrir para os ou-
tros, e todos nós necessitamos disso. A escuta competente
cria uma profunda abertura e uma forte predisposição à
mudança.
Escutar é uma premissa para qualquer relacionamento
de aprendizado. É claro que o aprendizado é algo indivi-
dual, mas também sabemos que é possível elevá-lo a um
patamar mais alto quando existe a possibilidade de agir
e refletir sobre o mesmo. Representar o ato de aprender e
ser capaz de dividilo com os outros é indispensável para
a reflexividade que gera conhecimento. Desse modo, ima-
gens e intenções são reconhecidas pelo sujeito; elas to-
mam forma e evoluem por meio da ação, da emoção, da
expressividade e das representações icônicas e simbólicas.
Essa é a base geradora das linguagens, do aprendizado e
da criatividade.
O conceito que mencionamos antes sobre o mar e a onda
mãe foi provavelmente uma resposta dada a uma questão,
havia um contexto específico, e poderia ter sido ainda mais
maravilhoso e poderoso se pedíssemos à criança que o repre-

Diátocos com Reggio EMILIA | 209

Digitalizado com CamScanner


“o
sentasse graficamente. Para ser mais explícita: vamos pegar
o exemplo de um desenho feito por Federica (com a idade de três
anos e dois meses) e ver como ela resolve o problema de
retratar um cavalo correndo (ver a figural).
Federica sabe que cavalos têm quatro patas; ela vira a
folha de papel e desenha as outras duas patas no verso (ver
figura 2).
Ela conseguiu juntar linguagens múltiplas e aprendeu a
codificá-las: isso é expressividade, é criatividade. Uma solu-
ção semelhante foi encontrada por uma garotinha de cinco
anos que pegou o pedaço de papel e o colocou contra a ja-
nela, fazendo traços no outro lado.
Esses são momentos extremamente criativos, tanto no
nível cognitivo quanto no expressivo; as duas meninas bus-
caram a tridimensionalidade num meio bidimensional.

Figura 1
oe

210 | CARLA RINALDI

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O que emerge com clareza aqui é uma imagem parti-
cular da criança e do educador, assim como uma cultura
de escuta. Por um lado, há escolas que não ouvem nesse
sentido, pois têm um currículo a seguir e tentam corri-
gir os “erros” imediatamente, a fim de dar soluções rá-
pidas para os problemas, não permitindo que as crianças
tenham tempo para encontrar as próprias soluções. Por
outro, há escolas que consideram certo e apropriado es-
cutar com maior atenção e criar outras oportunidades em
que essas meninas possam continuar realizando a própria
investigação, de modo a avançar tanto no nível cognitivo
quanto no comunicativo.

Figura 2

O extraordinário na mente humana é não apenas a


capacidade de passar de uma linguagem para outra, de

Diárogos com Reggio Emicia | 211

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uma “inteligência” para outra, mas também a habilidade
de escuta recíproca, que é o que torna possível o diálogo
e a comunicação. Às crianças são OS ouvintes mais ex.
traordinários de todos; elas codificam e decodificam, in.
terpretando dados com incrível criatividade: as criancas
“ouvem” a vida em todas as suas facetas, ouvem os od
tros com boa vontade, percebendo rapidamente comoo
ato de escuta é essencial para a comunicação. As crian-
ças são biologicamente predispostas a se comunicar e
a estabelecer relacionamentos: é por isso que devemos
sempre lhes dar oportunidades plenas de representar
suas imagens mentais e conseguir representá-las para os
outros.
Assim, ao passar de uma linguagem a outra, de um cam-
po de experiências a outro, as crianças podem crescer com
a ideia de que os outros são indispensáveis para a identida-
de e a existência delas próprias. Essa é uma concepção fun-
damental de valores que podemos escolher seguir ou não.
Percebemos não só que o outro se torna imprescindível
para nossa identidade, nosso entendimento, nossa comu-
nicação e nossa escuta, como também que aprender junto
é prazeroso para O grupo, e que o grupo se torna um lv
gar de aprendizagem. Criamos, então, aquilo que chama
mos de “audiência competente”, que são sujeitos capazes de
ouvir, de ouvir reciprocamente e de se tornar sensíveis às
ideias dos outros, para enriquecer as próprias e gerar ideias
de grupo. Essa é, portanto, a revolução que precisamos t?
zer: desenvolver a sensibilidade natural das crianças par
apreciar e expandir as ideias dos outros, compartilhando
-as em conjunto.

o12 | CariA RiNaLDI

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É por isso que consideramos o processo de aprendiza-
gem um processo criativo. Por criatividade entendo a ap-
tidão para construir novas conexões entre pensamentos e
objetos, trazendo inovação e mudança, tomando elemen-
tos conhecidos e criando novos nexos. Eis um exemplo (ver
figuras 3, 4 e 5): uma criança de três anos está brincando
com um pedaço de fio. Primeiro, ela faz uma pulseira e,
depois, nas costas de uma cadeira, o fio se transforma num
cavaleiro montando seu alazão e, por fim, vira a orelha de
um cavalo.

Figura 3

Como sabemos, os seres humanos são equipados com


duas formas de pensamento: o pensamento convergente,
que tende à repetição, e o pensamento divergente, que ten-
de à reorganização dos elementos.

DiáLogos com Regcio EMILIA | 213

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Figura 4

O pensamento divergente é do tipo que vimos nes


exemplo. E a combinação de elementos incomuns, que a
crianças pequenas realizam com grande facihdade O
ne
meu

não possuem nenhum fundamento teórico particular os


nenhum relacionamento fixo. Por que, então, é tão &º
cil para os adultos utilizar o pensamento divergente” Em
primeiro lugar, porque o pensamento convergente e co
veniente, mas também porque mudar a mente em gere
representa perda de poder. As crianças, por outro lado. bs
cam o poder mudando a mente, com a honestidade qu
têm em relação às ideias e aos outros, com a honestas
para escutar. Entretanto, rapidamente aprendem que &
ideias divergentes das dos educadores ou dos pais e ese
sá-las no momento errado não é alpo positivo. Quando nº
acontece, então, O que morre não é O pensamento nado
mas a legitimação da criatividade do pensamento

Digitalizado com CamScanner


O pensamento criativo pode, ainda, levar à solidão. A
ssstvidade é relacional, precisa da aprovação para se tor-
«=: vm bem compartilhado. É muito comum, no entanto,
vemos medo dessa criatividade, mesmo da nossa, porque
vs sos torna “diferentes”.
4o brincar, como observou Piaget, as crianças pegam a
segbdade nas mãos, de modo a tomar posse dela; com liber-
inde, elas à decompõeme recompõem, consolidando essa
qúnlidade de pensamento convergente e divergente. Por
=es> da brincadeira, as crianças confrontam a realidade e a
actam, desenvolvem o pensamento criativo e escapam da
maldade, que é quase sempre opressiva. É aqui que alguns
dos nossos erros mais sérios criam raizes.

Fiçura 5

Davogos com Reggio EMILiA | 215

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Por conseguinte, a dimensão do brincar (com palavras,
“pregar” peças, e assim por diante) é um elemento esses,
cial ao ser humano. Se tirarmos essa dimensão das crian.
ças e dos adultos, estaremos eliminando a possibilidade dy
aprendizado, rompendo o relacionamento dual entre brin.
car e aprender. O processo criativo precisa, em vez disso, ser
reconhecido e legitimado pelos outros.
À criatividade não é somente a qualidade do pensamen.
to de cada indivíduo, é também um projeto interativo, reiz
cional e social. Exige um contexto que lhe permita exis
se expressar, se tornar visível. Nas escolas, a criatividade
deveria ter condições de se manifestar em todo lugar c em
todo momento. O que desejamos é aprendizado criativoe
educadores criativos, e não somente uma “hora da criativ
dade”. É por isso que o ateliê deve apoiar e garantir todosos
processos criativos que podem acontecer em qualquer am-
biente da escola, da casa e da sociedade. Devemos lembrar
que não há criatividade na criança se não há criatividade no

-
adulto: a criança competente e criativa existe se existir um

mim do
adulto competente e criativo.

li (io É
Pensemos em nossa relação com a arte: com muita fe

at Vi ad ae
quência, separamos a arte da vida e, assim como a criatm
dade, a primeira não tem sido reconhecida como um direx
cotidiano, como uma qualidade da vida. O desenvolvimer
to disciplinar das ciências trouxe inúmeros beneficios, ma
também nos legou problemas, como a superespecializaç:
e a compartimentalização do conhecimento. Em geral. nº
so sistema social também adere a essa lógica de separal
e fragmentação. Somos sempre ensinados a separar o 9% .
está conectado, a dividir em vez de juntar as disciplinasé

216 | CariA RiNALDI

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eliminar tudo o que pode levar à desordem. Por essa razão,
é absolutamente indispensável reconsiderar nosso relacio-
namento com a arte como uma dimensão essencial do pen-
«mento humano. A arte da vida cotidiana e a criatividade
da vida cotidiana devem ser direitos de todos. Para que a
arte seja, assim, parte de nossas vidas, de nossos esforços
para aprender e saber.
Concluo, então, em homenagem a Gianni Rodari, que
inspirou esta apresentação, com uma citação de seu livro
Gramática da fantasia: “Qualquer uso possível das palavras
deveria se tornar disponível para qualquer pessoa — isso me
parece um bom lema, com sonoridade democrática. Não
porque todo mundo deva ser artista, mas porque ninguém
deve ser escravo.”

DiáLocos com Reggio EMiLIA | 217

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ção EA E A > eae -

Ê
E
f

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11
À CONSTRUÇÃO DO PROJETO EDUCATIVO
ENTREVISTA COM CARLA RINALDI, POR LELLA
GANDINI E JUDITH KaMINSKY (2000)

Eu ME LEMBRO BEM DO MOMENTO em que Lella Gandini e Ju-


dith Kaminsky me pediram para conceder uma entrevista.
Para ser mais precisa, elas me pediram para organizar, em
formato de entrevista, as ideias que inspiraram muitas das
minhas palestras para grupos de estudo que visitaram as es-
colas municipais de Reggio. “Grupo de estudo” é um termo
que empregamos para designar grupos de pessoas (educa-
dores, pesquisadores, políticos, administradores) que pe-
dem para visitar nossas escolas e, assim, se familiarizar com
a nossa experiência. Eles vêm de todas as partes do mundo
(Nova Zelândia, China, Austrália, América do Norte e do
Sul, Europa). Em sua maioria, vivem em contextos sensíveis
e atentos aos problemas da educação, mas algumas vezes
ocorre o contrário e ir a Reggio abre seus corações para O
que é possível.
Entre 1994 e 2004, 112 grupos de estudo visitaram Reg-
gio Emilia, aproximadamente 14 mil pessoas de 79 países.
Os grupos são formados de cem a 150 pessoas (em alguns
casos, mais que isso), que normalmente vêm do mes-
mo país. Os visitantes possuem identidades diversas: por
exemplo, notam-se diferenças entre as posturas dos países

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de origem latina e aquelas dos anglo-saxões. Todos ces
no entanto, têm o mesmo desejo de conhecer e explora o

mais profundamente os elementos que caracterizam a es


periência de Reggio, ou seja, aquilo que faz de Repyi,
Reggio!
Assim, acompanhando as questões formuladas por eles
aprendemos a construir as nossas histórias, aquelas que 4;
lam da nossa identidade e, num certo sentido. da< Nossas
diferenças. Tomamos conhecimento de suas culturas « e
perencias, mas ao mesmo tempo nos tornamos
mais cies,
tes da nossa própria identidade e das razões históricas ques É
determinaram. Graças a esses grupos, passamos a aprecia
|
a coragem das escolhas difíceis e inconvenientes. sentimas
prazer e orgulho de pertencer a um projeto comunitise
que era não apenas a nossa experiência, mas a cidade eme
mesma.
Tenho sido convidada a participar de vários grupos de
palestrantes indicados para apresentar nossa expenênca |
Por essa razão, preparei notas variadas ao longo dos anos |
gue utilizei para embasar minhas falas. Então. quando Leia |
Gandini e Judith Kaminsky me propuseram a entrevisa
corremos a essas anotações que acumulei por mais de uma

E,
PE DR
década. A maior parte das perguntas nesta entrevista redes
as questões que nos foram colocadas; mas há também de
al

clarações, depoimentos que gostaríamos de fazer, aindaqu


não tenham sido explicitamente solicitados. Um exempit.
a questão da imagem da criança, que para nós fos e é funde.
mental, mas que raramente foi levantada.
“Assim, lendo a entrevista é possível encontrar algunsés
elementos que parecem definir a identidade da expentom

220. Carta Rimazpi

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de Reggio, conforme eu a percebi: a imagem da criança e da
efância; O conceito de educação e aprendizado; o relacio-
samento entre criança c educador, o relacionamento entre
esanças: O relacionamento com as famílias c a cidade; e o
papel fundamental que a documentação assumiu no apri-
moramento da qualidade da pedagogia nas escolas muni-
aspais de Reggio. Esses temas também são recorrentes em
cutros textos reunidos neste livro, pois nosso diálogo com
outras experiências tem sido baseado nesses mesmos ele-
mentos.
Na entrevista, será possível perceber a forte influência
que exerceram sobre mim os textos de Loris Malaguzzi €
de muitos outros autores, de Piaget e Vygotsky a Gardner,
Bruner é Hawkins. Minhas leituras de Bateson, Morin €
dos socioconstrutivistas, a começar pelos italianos Donata
Fabbri e Alberto Munari, foram especialmente importan-
tes. Mais recentemente, fiquei fascinada com autores def-
sidos como pós-modernos e com os livros de Umberto Eco
e Italo Calvino, e sempre li Gianni Rodari, a quem tive à
honra de conhecer e conviver, em companhia de Loris Ma-
iaguzzi. A todos eles, aos demais que não foram citados €
3os colegas de trabalho que conheci em todos esses anos,
meu profundo agradecimento. Peço licença para agradecer
mbém a Amelia Gambetti, que sempre foi minha amiga
e companheira de trabalho, a Paola Riccô e Emanuela Ver-
cal, pois graças a elas consegui sintetizar de modo efetivo
todas as questões que nos foram colocadas e colaborar com
: progettazione dos grupos de estudo, os quais representam
és forma mais cabal possível o nosso desejo de dialogar com
& perguntas dos visitantes. |

Diárogos com Reggio EMILIA | 221

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