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PARANAÍBA-MS
2019
Josavias Anthony Oshiro Costa
PARANAÍBA-MS
2019
Banca Examinadora
_________________________________________________________
Profª. Dra. Ana Luiza Martins Bossolani (Orientadora)
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul- Campus Paranaíba (UFMS – CPAR)
_________________________________________________________
Profº. Dr. Nilson Berechtein Netto (coorientador)
Universidade Federal de Uberlândia (UFU)
_________________________________________________________
Profº Dr. André Vieira dos Santos
Centro Universitário IBMR
_________________________________________________________
Profª Dra. Jassonia Lima Vasconcelos Paccini
Universidade Federal de Mato Grosso do Sul- Campus Paranaíba (UFMS – CPAR)
Dedico este trabalho às três mulheres que mudaram
radicalmente minha vida, minha mãe (Susan),
minha avó (Takeko) e meu amor (Hellen). E
também a todas as crianças da classe trabalhadora
que são escamoteadas da possibilidade de atingir
suas plenas capacidades devido a miséria humana
produzida pelo sistema capitalista (...)
AGRADECIMENTOS
Á minha família, minha mãe Susan, meus irmãos Jéssica e Rodrigo e aos meus avós Noboru e
Takeko. Guardo vocês em meu coração, e não tenho palavras para descrever o quanto vocês
foram importantes para essa caminhada que teve início em 2011.
À minha companheira Hellen que esteve comigo desde do início da vida acadêmica, passamos
por momentos bons e ruins, contudo nunca perdemos a ternura de se construir e reconstruir
quando necessário. Não tenho palavras para descrever o quanto foi e é importante durante nossa
graduação e a vida – na falta de um conceito para explicar meus sentimentos por você, te dedico
um trecho do nosso poema favorito:
Lá no futuro,
profundo horizonte róseo
da aurora dos trabalhadores
viveremos eu e você [e muitos outro].
[...]
Quando você chegar sem as olheiras que lá nunca teve
vai sorrir ao me ver de viola na mão.
e o perfume dos dedos exalados na canção
chegarão a ti como um encanto.
A minha segunda família que me recebeu e me acolheu com muito afeto, minha sogra dona
Edilene e minha cunhada Enny, muito obrigado por tudo guardo vocês em meu coração!
Aos meus amigos, Cabelo (agradece o Dorão e a Tuka por mim!), Gregor, Caihu, Rubini e
Zoreta que acompanharam minha trajetória acadêmica desde da Unimep em Piracicaba.
Obrigado por me receberem tão bem todas as vezes que eu pude visitar nossa cidade, espero
que nossa amizade continue por muitos anos. Destaco também nosso grupo de whatszapp
(Lanchonete do Maná) e toda a galera que faz rir todos os dias! Obrigado.
Ao grupo de estudos Troika e a todas as pessoas que enriqueceram nossas discussões de modo
direto ou indireto, cada discussão constitui parte de mim hoje e prometo nunca esquecer disso.
Além do desenvolvimento teórico, nosso grupo de estudos me presentou com amigos que
enriqueceram minha vida com afeto – em especial Amanda, Cristian, Marcelo e Pedro, obrigado
pela amizade e pela continuidade de nosso grupo.
As amizades que construí ao longo desses cinco anos, Dirceu, Babi, Ana Flávia, Rayanna, Gabi
Cararreto, Jean Bom. Me perdoem se esqueci de alguém.
Vanessa e Laís, pela amizade recente, espero que nossos laços se estreitem cada vez mais!
A minha orientadora Ana Luiza que aceitou o desafio de realizar esse trabalho comigo,
aguentando minhas queixas, lamentos e inseguranças, aprendi muito com vocês obrigado!
Ao Netto meu coorientador que também aguentou meus lamentos, queixas e inseguranças. Não
preciso dizer mas reforço que admiro você e o considero como um amigo, obrigado!
Ah Celinha! Obrigado por tudo, pela amizade e pelas dúvidas sanadas ao longo da produção
desse trabalho, você é uma mulher incrível e espero um dia estreitar nossos laços de amizade!
A professora Jassonia, por aceitar contribuir como banca examinadora para esse trabalho. E por
me acompanhar ao longo desses cinco anos na UFMS em estágios, projetos e eventos. Me
lembro até hoje das primeiras discussões de Vigotski que a de formação de monitores me
proporcionou, obrigado!
Ao professor André Vieira que aceitou contribuir como banca examinadora para esse trabalho.
Estou ansioso por suas contribuições! Espero que esse seja o primeiro de muitos diálogos entre
nós.
Ao núcleo 13 de maio e seus monitores pelas formações políticas, e ao PCB/UJC-MS pela
primeira iniciação partidária. Em breve, espero ter a chance de me organizar novamente pelo
partidão.
E por último e não menos importante, todas as pessoas que durante os atendimentos
compartilharam uma pequena parte de suas vidas comigo. Sem vocês minha formação não teria
a totalidade de sentidos que tem hoje, meus mais sinceros agradecimentos e prometo não
decepcionar como futuro profissional.
A crítica arrancou as flores imaginárias dos
grilhões, não para que o homem suporte
grilhões desprovidos de fantasia ou consolo,
mas para que se desvencilhe deles e a flor viva
desabroche. Marx (1843) em a Crítica da
filosofia do direito de Hegel.
É a véspera da batalha.
É a preparação de nossos quadros.
É o estudo do plano de luta.
É o dia antes da queda
De nossos inimigos.
The present research proposed an investigation about the hypothesis of mirror neuron
system dysfunction as the etiology of Autistic Spectrum Disorder (ASD). Starting from a
theoretical-conceptual methodology, our analyzes had the Psychology Historical-Cultural
(PHC) as guiding assumption, mainly based on its main classical and contemporary authors.
Therefore, the work was divided into three chapters - in the first one, we highlight the historical,
classificatory and etiological development of ASD, general questions about mirror neurons and
their respective psychological functions (imitation, understanding of emotions, theory of mind
and others), as well as, the impacts of its dysfunction as an etiological explanation of ASD. In
the second chapter, we highlight PHC from its main assumptions, from historical-dialectical
materialism to the central discussions about human development in the stages that we consider
critical for ASD research (from the first year to preschool age) and the main points of the PHC
about ASD. Closing the arguments, in the third chapter we highlight the position of PHC on the
dysfunction of the System Mirror Neurons (SMN) and its possible psychological functions. In
this final analysis, we consider the main points of criticism present in this hypothesis.
INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 13
1. O TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA E SEU CONTEXTO HISTÓRICO:
CLASSIFICAÇÃO E ETIOLOGIA ................................................................................ 14
1.1 A tríade de autores clássicos .......................................................................................... 14
1.2 O desenvolvimento histórico da etiologia do autismo ................................................... 19
1.3 A hipótese dos neurônios espelho .................................................................................. 25
1.4 A hipótese da disfunção do sistema de neurônios espelho e o transtorno do espectro
autista ................................................................................................................................... 37
2. REFLEXÕES DA PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL SOBRE O
TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA ................................................................. 42
2.1 Contextualizando a Psicologia Histórico-Cultural......................................................... 42
2.2 Desenvolvimento humano sob o enfoque histórico-cultural ......................................... 49
2.2.1 A unidade entre biológico e o social: a formação dos novos sistemas funcionais ..... 55
2.3 A periodização do desenvolvimento humano ................................................................ 60
2.3.1 As atividades principais e transformações: do primeiro ano à idade pré-escolar ....... 63
2.4 Apontamentos da Psicologia Histórico-cultural acerca do Transtorno do Espectro Autista
............................................................................................................................................. 70
3. O QUE A PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL TEM A DIZER SOBRE OS
NEURÔNIOS ESPELHO E SUA HIPÓTESE DE EXPLICAÇÃO ETIOLÓGICA DO
TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA? ............................................................... 76
3.1 Analisando a hipótese da disfunção do Sistema de Neurônios Espelho como etiologia do
Transtorno do Espectro Autista: O que a Psicologia Histórico-Cultural tem a dizer? ........ 76
3.2 Os Neurônios Espelhos apresentam saídas metodológicas para problemas ontológicos?
............................................................................................................................................. 88
CONSIDERAÇÕES FINAIS ............................................................................................ 97
REFERÊNCIAS ................................................................................................................. 98
INTRODUÇÃO
13
1. O TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA E SEU CONTEXTO HISTÓRICO:
CLASSIFICAÇÃO E ETIOLOGIA
O seguinte capítulo visa apresentar os aspectos históricos das pesquisas e estudos sobre
o Transtorno do Espectro Autista, de sua gênese à hipótese dos Neurônios espelho. Assim, será
composto por quatro sessões: 1.1 Tríade de pesquisadores clássicos: Uma breve descrição dos
trabalhos de Leo Kanner, Johann Hans Friedrich Karl Asperger e Grunya Efimovna Sukhareva;
1.2 O desenvolvimento histórico da etiologia do autismo; 1.3 A hipótese do Sistema de
Neurônios espelho; 1.4 Hipótese da disfunção dos neurônios espelho e o Transtorno do Espectro
Autista.
14
(1943, 20) [...]” (RIVIÈRE, 2001, p. 17). Assim, as síndromes observadas marcavam distinções
importantes para a diferenciação nosológica da esquizofrenia e das psicoses infantis:
Desde o início há uma extrema solidão autista, algo que, tanto quanto possível,
desprende, ignora ou impede a entrada de tudo o que a criança recebe de fora. Contato
físico direto, ou aqueles movimentos ou ruídos que ameaçam romper a solidão, são
tratados como se não estivessem lá ou, se isso não for suficiente, sente-se
dolorosamente como uma penosa interferência (KANNER, 1943, p. 20; apud;
RIVIÈRE, 2001, p. 18, tradução nossa).
Em 1944, um ano após as publicações dos achados de Leo Kanner, Hans Asperger
lançou em Viena seu artigo “Psicopatia Autística da Infância”. Klin (2006) chama-nos atenção
para o fato de que este clássico artigo e outros trabalhos de Hans Asperger foram tardiamente
conhecidos nas línguas anglófonas, popularizando-se a partir de 1980, pelas traduções de Lorna
Wing. O que justificou essa tardia recepção foi o contexto histórico da Segunda Guerra
Mundial, que dava pouca abertura a países dominados pelo nazifascismo alemão, caso da
Áustria neste período. Outro fator que dificultou a divulgação do trabalho científico de Hans
Asperger foi a perspectiva ariana, que encontrou na eugenia a justificativa necessária para
perseguir aqueles que apresentavam algum tipo de deficiência (GOLDSON, 2016).
No ano de 1938, Hans Asperger faz a sua primeira conferência sobre o autismo, tentando
conscientizar um grupo de oficiais nazistas sobre a importância de seu trabalho para o próprio
regime, tendo em vista que as perseguições políticas estavam direcionadas a seus pacientes da
universidade de Viena. Mesmo com esses esforços, o médico austríaco foi perseguido e quase
preso pelo regime vigente, sua sobrevivência só ocorreu devido à compreensão de um dos
oficiais sobre a importância do seu trabalho, entretanto, aparentemente não está claro se alguns
pacientes de Asperger tiveram a mesma oportunidade (GOLDSON, 2016).
Posto de lado este fúnebre período histórico, as descrições de Hans Asperger sobre o
autismo convergiram em aparentes semelhanças com as descrições de Leo Kanner, entretanto,
quando mais tarde os trabalhos de ambos os autores tornaram-se acessíveis, ambos discordaram
sobre essas semelhanças, alegando que as síndromes descritas eram distintas (FEINSTEIN,
2010). Sem aprofundar nestas polêmicas, o que se compreende como diferente nas descrições
de Asperger diz respeito, em primeiro lugar, à diversidade da faixa etária estudada pelo
pesquisador; em segundo lugar, aos indivíduos que o psiquiatra austríaco trabalhava, que
aparentemente não demonstraram graves comprometimentos, se comparados com as descrições
de Kanner.
15
Os sintomas descritos por Hans Asperger foram: os aspectos idiossincráticos da fala, a
linguagem pragmática, a pobreza de expressões gestuais, os movimentos estereotipados sem
um objetivo específico, os movimentos repetitivos, o caráter obsessivo do pensamento e das
ações, os interesses restritos, as atitudes atípicas com pessoas e objetos, o comprometimento
dos aspectos da abstração, bem como o da imaginação (BRASIL, 2015).
Para além das descrições do autismo, Hans Asperger preocupou-se com o cuidado e o
desenvolvimento das crianças atendidas pelo Heilpädagogik Station (Estação de Educação
Especial - ala de atendimento de transtornos neuropatológicos de crianças):
Asperger, por outro lado, seguindo a liderança de Lazar1, não via esses indivíduos
como "pacientes", mas como padeiros, barbeiros, músicos, acadêmicos e engenheiros.
Na Estação de Heilpädagogik, adotando uma abordagem multidisciplinar, ele
procurou ajudar cada criança a atingir seu potencial. Além disso, ele os viu caindo em
um espectro que chamou de "um continuum de autismo", cada um com traços únicos.
A clínica procurou ser um microcosmo de uma sociedade mais humana, em vez de
um lugar para tratar problemas psicológicos. Lazar criou um ambiente que Asperger,
mais tarde elaborou e expandiu, onde crianças poderiam aprender a interagir com os
outros em um contexto de respeito e apreciação. O currículo incluiu o estudo e a
participação em música, literatura, natureza, arte, atletismo e terapia da fala
(GOLDSON, 2016, p. 336, tradução nossa).
1 Irwin Lazar foi mentor e tutor de Hans Asperger, trabalhou com crianças e adolescentes vítimas da primeira
guerra mundial (FEINSTEIN, 2010).
2 O conto O Artista Autista faz parte da obra O Homem que Confundiu com um Chapéu, já Prodígios e o Um
Antropólogo em Marte, constituem a obra Um Antropólogo em Marte.
16
pacientes, em geral, não só condiziam com as descrições de Hans Asperger, como
correspondiam às características presentes atualmente no DSM-53 (MANOUILENKO;
BEJEROT, 2015).
Seu artigo denominado Die schizoiden Psychopathien im Kindesalter4, publicado na
Alemanha em 1926, descreve um estudo longitudinal de 2 anos, com 6 crianças atendidas pelo
Departamento Psiconeurológico Infantil de Moscou.
Aspectos do que viriam a ser reconhecidos como síndrome de Asperger, foram
cunhados por Grunya, como “Psicopatia Esquizóide Infantil” ou “Transtorno de Personalidade
Esquizóide”.
3 Embora essa afirmação ecoe anacrônica, a afirmação de Manouilenko e Bejerot (2015) descrevem que em termos
topográficos Sukhareva elaborou uma descrição detalhada que atualmente pode ser comparada com as descrições
do DSM-5. Não aprofundamos nesta questão, pois não é o objetivo deste trabalho.
4 As psicopatias esquizóides na infância. Segundo Wolff (1991), o termo descrito pode ser equivalente ao autismo.
17
atualmente presentes nos critérios diagnósticos do DSM-5, aprofundaremos no diagnóstico
atual em um momento ulterior.
Os casos clássicos de estereotipia de fala estavam presentes em todas as crianças;
neologismos, fala rítmica e dificuldade de modulação da voz. Haviam dificuldades em
compreender as convenções sociais como a leitura das emoções de outros e perguntas
insistentes; Monotonia de interesses (Ex: Focam apenas em brincadeiras de interesse), as
crianças apresentavam dificuldades em mudanças nas tarefas e atividades cotidianas
(necessidade de uma rotina); automatismo e comportamentos perseverantes encerram as
descrições mais gerais apresentadas por Grunya.
As descrições apresentadas pelo artigo de 1926 demonstram a importância de um
trabalho longitudinal, bem como as preocupações em não se restringir à descrição das
características do autismo, mas a compreendê-lo a partir das potencialidades apresentadas pelas
crianças. A pesquisadora se preocupou em analisar o curso do desenvolvimento daquelas
crianças ao longo dos dois anos de trabalho, o que mostrou evidências significativas da melhora
dos quadros durante esse período (MANOUILENKO; BEJEROT, 2015).
As descrições sobre a “Psicopatia Esquizóide Infantil” propostas por Sukhareva, embora
não abandonassem o termo esquizóide (referente à esquizofrenia), se mostraram à frente das
definições dos autores clássicos, mantendo-se, algumas delas, presentes até hoje.
Como eixo argumentativo, podemos enfatizar três pontos presentes no artigo de 1926:
O primeiro ponto se refere à preocupação da autora em delimitar o diagnóstico de
esquizofrenia, ela questionava que o diagnóstico abrangente proposto por Kretschmer era um
empecilho para o desenvolvimento conceitual do transtorno. Sukhareva (1926) argumenta que
as evidências demonstraram que o quadro de esquizofrenia se diferencia de suas definições
sobre os sintomas esquizóides (considerado autismo), pois no primeiro era possível observar o
declínio cognitivo/intelectual dos pacientes, já no segundo, os pacientes apresentavam um
prognóstico oposto, pois, com o passar dos anos, ocorriam melhoras significativas do quadro
esquizóide.
Sobre o segundo ponto, a psiquiatra soviética observou que os sintomas esquizóides,
independente de sua patogênese (ambiental ou biológica), surgiam nos primeiros estágios do
desenvolvimento, com ênfase na primeira infância. Esse aspecto novamente se diferencia dos
diagnósticos clássicos de esquizofrenia.
18
Por fim, ela foi uma das primeiras a associar a descrição dos sintomas do autismo a
possíveis déficits neurológicos, características vinculadas ao TEA apenas a partir das décadas
de 1980/1990 (FEINSTEIN, 2010).
As disfunções motoras, acompanhadas por uma série de outros sintomas: certa falta
de mimetismo e movimentos expressivos, peculiaridades da voz e da linguagem,
podem ser consideradas como anormalidades do desenvolvimento de sistemas
cerebrais específicos. Seria então possível encontrar um substrato
biológico/patogenético para a condição "esquizóide" com base em observações
clínicas. Nossas próprias observações são numericamente insuficientes para
conclusões definitivas a serem construídas, mas eles bastam como base para essas
especulações (SUKHAREVA, 1926, p.130, tradução nossa, grifos próprios).
O que para a autora aparecia como “especulação”, atualmente ganha respaldo pelo
consenso científico, que classifica o autismo como transtorno do neurodesenvolvimento (APA,
2014). Igualmente, a literatura no campo das Neurociências tem corroborado com a perspectiva
de estudos e causas do autismo pelo viés de déficits neurológicos. Isso se expressa na literatura
hodierna sobre as pesquisas que associam os neurônios-espelhos a esses déficits.
É iminente para o estudo do autismo o resgate, mesmo que breve, dos descritores
clássicos como Kanner e Asperger. Entretanto, o trabalho de Sukhareva (1926), conforme
exposto, também deve ser incorporado como clássico, considerando as contribuições que
ocorreram quase duas décadas antes dos supostos pioneiros.
19
Um dos fatores que fortaleceu a perspectiva emocional para a explicação do autismo foi
o posicionamento ambíguo proposto por Kanner neste período, ao não utilizar em suas
descrições a hipótese biológica/neurológica dos comportamentos apresentados por indivíduos
autistas. Kanner negou, a princípio, a relação entre as possíveis determinações neurofisiológicas
associadas ao transtorno (WING, 1997).
A partir de meados dos anos de 1960, o paradigma emocional/ambiental do autismo
perde força por três motivos: a) a falta de embasamento científico sobre as hipóteses
explicativas apresentadas pelas teorias psicodinâmicas voltadas ao autismo; b) críticas por parte
dos pais, principalmente mães, que foram culpabilizadas pelos distúrbios apresentados pelos
filhos; c) surgimento de estudos a partir de novos paradigmas psicológicos e médicos.
Rivière (2001), Feinstein (2010) e a cartilha do Ministério da Saúde (BRASIL,2015)
destacam que a organização dos pais em instituições filantrópicas, foi um dos fatores que
fortaleceram o desenvolvimento de novas pesquisas acerca do autismo, entre os anos de 1963-
1983. Dois pesquisadores importantes, como ativistas e pais de autistas, ganham destaque,
Lorna Wing (psiquiatra), que fundou em 1962, no Reino Unido, a National Autistic Society e
Bernard Rimland (psicólogo), fundador da Autistic Society of American, no ano de 1965. Esse
ativismo impulsionou o desenvolvimento de centros especializados em diagnóstico e
reabilitação de crianças e adolescentes.
A ênfase em um maior rigor científico para a explicação do autismo iniciou um
movimento por melhorias dos critérios diagnósticos, principalmente na diferenciação dos
aspectos essenciais do autismo e da esquizofrenia. Victor Lotter desenvolveu o primeiro estudo
epidemiológico do autismo, utilizando dois critérios elaborados por Leo Kanner: a)
distanciamento e indiferença a outros e b) resistência a mudanças e tendências a rotinas
repetitivas. Os dados obtidos demonstraram uma prevalência de cinco crianças a cada 10.000
com a síndrome. Wing (1997), a partir do trabalho de Lotter, desenvolveu uma nova definição
dos “comportamentos autistas” como uma síndrome (grupo de sintomas) que foram utilizados
como critérios para a construção de uma tríade comportamental, envolta em um espectro que
poderia estar relacionado a outras condições físicas ou psicopatológicas:
20
Nota-se que a autora agrupou o conjunto de sintomas apresentados pelo “espectro
autista”, incorporando as definições tanto de Kanner quanto de Asperger e outros “transtornos”
como a Deficiência Intelectual. Além disso, poderia haver uma associação entre eles sem uma
distinção muito clara para o diagnóstico diferencial (WING, 1981).
A organização da tríade comportamental do espectro autista e a busca por rigor
científico em novas pesquisas, engendraram novas teorias, sendo as principais correntes
vigentes da época, a Psicologia Cognitiva e a Análise do Comportamento Aplicada 5. A partir
do ano de 1970, autores como Beate Hermelin e Neil O’Connor estruturaram uma explicação
sobre o funcionamento cognitivo de indivíduos diagnosticados com autismo (SACKS, 2015).
Do ponto de vista etiológico, a ciência cognitiva abriu caminho para o desenvolvimento no
campo da psiquiatria e da medicina em geral, dando ênfase em aspectos neurológicos.
Diante desse contexto, a explicação para a etiologia do autismo se deu em dois campos
de pesquisa: a) as explicações fisicalistas, que enfatizavam os aspectos genéticos e
neuromorfopatológicos do autismo, que compreendiam o distúrbio como uma neuropatologia;
e b) os estudos neuropsicológicos, que visavam compreender e explicar a síndrome a partir de
constructos da Teoria Cognitiva (teoria da mente, coerência central e funções executivas)
(RIVIÈRE, 2001; FEINSTEIN, 2010).
Os pioneiros nos aspectos neuromorfopatológicos cerebral foram Thomas Kemper e
Margareth Bauman. Os pesquisadores descobriram anormalidades neuronais no hipocampo,
subículo e amígdala no cérebro de um sujeito de 29 anos diagnosticado com autismo. Esta
pesquisa pioneira resultou, não apenas no aprofundamento do estudo da morfologia cerebral,
mas levou os pesquisadores a concluir que as “anomalias” apresentadas estavam ligadas a
problemas associados à vigésima oitava semana de gestação. Neste ponto, possivelmente
observamos as primeiras pesquisas que sugeriram o autismo como um transtorno do
neurodesenvolvimento. Outras pesquisas, seguiram um percurso semelhante, propondo novas
hipóteses como: um desequilíbrio entre os neurotransmissores excitatórios (glutamato) e
inibitórios (gaba); pesquisas que relataram uma quantidade maior de neurônios no neocórtex
em cérebros dos sujeitos atípicos (autista); estudos de anomalias no hemisfério esquerdo, o que
possivelmente explicaria os problemas de linguagem; e malformações no sistema nervoso
central (FEINSTEIN, 2010; KAJIHARA, 2014).
5 A técnica Applied Behavior Analysis (ABA), data desse período. Essa técnica ainda é utilizada por correntes da
Psicologia como Análise do Comportamento e Teoria Cognitiva Comportamental.
21
Embora os estudos voltados à etiologia genética sejam contemporâneos, com destaque
a partir dos anos 2000, aos pesquisadores Reynoso, Rangel e Melgar (2017), que relatam que
em estudos de base populacional, familiares e de gêmeos diagnosticados com a síndrome, de
que existe uma taxa relativamente alta de componentes genéticos. A taxa de concordância entre
gêmeos monozigóticos está entre 60 e 92%. Outro dado importante é a proporção diferencial
entre os sexos, sendo de 4:1 para o sexo masculino.
As pesquisas genéticas relacionadas ao autismo tiveram um grande avanço, com o
desenvolvimento do sequenciamento de nova geração (NGS), surge então a possibilidade do
reconhecimento de mutações gênicas presentes em parte dos transtornos do
neurodesenvolvimento, uma fração destas mutações são variações do número de cópias
(CNVs), presentes em outros transtornos neuropsiquiátricos como esquizofrenia, deficiência
intelectual, depressão, além do autismo (BOSSOLANI-MARTINS, 2014). Em 2019, segundo
o banco de dados Sfari Gene, mais de mil genes foram detectados em indivíduos com TEA,
bem como, esses genes foram associados a algumas manifestações comportamentais do quadro,
como déficit na interação social e comunicação, atraso do desenvolvimento, alterações
sensoriais, entre outros (SFARI GENE, 2019).
Já no enfoque de estudos neuropsicológicos, Heinz Wimmer e Joseph Perner
desenvolveram a metodologia para o estudo da teoria da mente em crianças de três a quatro
anos. Simon Baren-Cohen, Uta Frith e Alan Leslie, em 1985, aplicaram os fundamentos da
teoria da mente para a compreensão dos “déficits sociais” apresentados no autismo. Em linhas
gerais, o constructo da teoria da mente explica a capacidade humana de prever os estados
emocionais, mentais e intencionais de outros e de si mesmo (BARON-COHEN, 2009;
MONTEIRO; QUEIROZ; RÖSSLER, 2010). Esta teoria sugeriu que os indivíduos com
autismo não desenvolvem, ou têm uma teoria da mente deficitária, o que possibilitaria explicar
os aspectos cognitivos subjacentes ausentes no transtorno, principalmente em compreender as
emoções de outros e as próprias.
Frith e Happé (1994) desenvolveram uma segunda hipótese, denominada “coerência
central fraca”. Em linha gerais, coerência central é a capacidade de processarmos as
informações com base nos contextos, ou impressões gerais do todo. Por exemplo, ao ouvirmos
uma história, “processamos” o essencial, os detalhes são integrados de maneira acessória ao
todo. Para os pesquisadores, a coerência central fraca explicava as dificuldades de sujeitos
autistas a integrarem os diversos estímulos ambientais como um “único”. Por exemplo, os
autistas demonstram uma tendência a focar em detalhes de uma história, perdendo o conteúdo
22
central. Essa dificuldade contextual pode ser ilustrada pela não compreensão de metáforas. Uma
vez que os detalhes predominam, as metáforas, para serem compreendidas, surgem de um
contexto muito específico, e é comum os sujeitos diagnosticados com autismo entenderem-nas
de modo literal (KAJIHARA, 2014).
Por volta de 1990, a teoria da disfunção das funções executivas é desenvolvida. Esta
terceira hipótese visou explicar as dificuldades de planejamento, organização das ações voltadas
a um objetivo e flexibilização a mudanças de perspectivas diante das tarefas executadas,
comportamentos comprometidos no autismo (BOSA; CZERMAINSKI; BRANDÃO, 2016).
Atualmente, associam-se a relação das funções executivas com outros aspectos da esfera social
como linguagem e relações interpessoais (FEINSTEIN, 2010).
O início do século XXI é marcado por uma imersão das Neurociências no estudo da
temática do autismo. Aparentemente, em consequência da aproximação da medicina
(neurologia/genética) com os estudos psico/neuropsicológicos na investigação etiológica do
autismo. Atualmente existem duas grandes tendências no campo neurocientífico: 1)
Aprofundamento dos estudos na busca pelo marcadores neurobiológicos do transtorno; e 2)
Neurodiversidade como um movimento que nega o autismo, enquanto transtorno
psicopatológico.
O objetivo da busca por marcadores neurobiológicos era desvelar a atividade cerebral
subjacente, para explicar o conjunto de sintomas do transtorno. Por exemplo, o
desenvolvimento de novas tecnologias como estudos de neuroimagem que incluem exames de
tomografia por emissão de pósitrons (PET), ressonância nuclear magnética funcional (fMRI) e
estimulação magnética transcraniana (LAMEIRA; GAWRYSZEWSKI; PEREIRA JR., 2006)
que constituem metodologias de pesquisa atuais. Já a Neurodiversidade ascendeu como um
movimento de oposição às teses neurológicas, genéticas e aos manuais diagnósticos que
classificam o autismo como uma patologia, ou em seus próprios termos, “transtorno”. Este
movimento tem origem, a partir da reivindicação dos indivíduos diagnosticados com autismo
(de alto funcionamento), sobre seus direitos - sendo um desses a defesa de que indivíduos
autistas “não estão doentes”. Para a neurodiversidade, as diferenças em relação aos indivíduos
típicos quando comparados aos autistas reside, principalmente, em um diferente funcionamento
neurológico, que deve ser compreendido e respeitado, assim como as diversidades sociais: de
raça, gênero, orientação sexual, entre outras. Para este movimento, o autismo é uma questão de
identidade, a ser reivindicada e reconhecida pela ciência (ORTEGA, 2008; SILBERMAN,
2015).
23
Inegavelmente, em tempos presentes, o aprofundamento do campo neurocientífico
mostra um aparente consenso sobre a determinação neurológica do autismo. Para reforçar nosso
argumento, é possível observar que a organização da 5ª edição do Manual Estatístico e
Diagnóstico de Transtornos Mentais atribuiu ao autismo e suas diferentes manifestações a
categorização de transtornos do neurodesenvolvimento. Cabe salientar que o DSM-5 não
oferece nenhuma definição sobre o conceito de neurodesenvolvimento, apenas descrevendo-o
da seguinte forma:
24
É evidente que o DSM-5 tem como função, ser uma ferramenta que auxilia a definição
dos diagnósticos de variados transtornos, sua principal característica é a descrição topográfica
dos sintomas, sem uma referência teórica/filosófica estabelecida diretamente, do ponto de vista
psicológico/psiquiátrico, em outras palavras o manual busca uma neutralidade neste sentido.
Neutralidade essa que sabemos que não há respaldo atual.
Em suma, os diferentes paradigmas de estudo do TEA expuseram o empenho das
ciências em áreas heterogêneas, na busca de desvelar essa enigmática condição do
desenvolvimento. Entretanto, Sacks (2015) descreve que os avanços são lentos e a construção
de consenso concreto ainda se apresentada distante.
No próximo tópico investigaremos uma das hipóteses atuais que tentam explicar não só
a etiologia mas, os mecanismos cerebrais subjacentes que explicam a díade comportamental do
TEA, descritos pelo DSM-5, sob o viés das Neurociências.
25
são captadas; c) axônios - ramificações mais extensas, cobertas pela bainha de mielina (isolante
natural); e d) terminais pré-sinápticos, são os locais de envio ou recebimento das informações
entre os neurônios (KANDEL; HUDSPETH, 2014). A descrição da estrutura básica de um
neurônio está descrita na Figura 1. As informações transmitidas por todo encéfalo ocorrem via
potenciais de ação que, em síntese, são sinais elétricos gerados, a partir de um estímulo
ambiental ou até mesmo interno. Por exemplo, se nos referimos a um neurônio motor, o
potencial de ação é produzido quando executamos um determinado movimento com as mãos
(A informação parte do SNC e chega em um órgão, glândula ou músculo), ou, um neurônio
sensorial que pode ser excitado por um estímulo visual (A informação é captada do ambiente
ou Sistema Nervoso Periférico e chega ao SNC) (LENT, 2010).
Cabe salientar, que estes neurônios funcionam como um grande sistema interconectado,
existindo do ponto de vista morfológico diferenças significativas entres eles, porém sua
organização funcional com relação a complexidade dos comportamentos humanos
principalmente, depende de como anatomicamente essas interconexões se formam (KANDEL;
HUDSPETH, 2014).
26
podem ser corados com substâncias fluorescentes ou corantes visíveis a iluminação comum, para mostrar
os neurônios com suas formas variadas na disposição dos dendritos e do axônio (acima, à direita). Os
desenhos representam neurônios de diversos tipos morfológicos, localizados em diferentes regiões do
sistema nervoso: pseudounipolar (A), estrelado (B), de Purkinje (C), unipolar (D) e piramidal (E). Os
neurônios da figura ilustram sua variedade morfológica.
Os estudos acerca dos Neurônios espelho sinalizam um período recente no campo das
Neurociências, ganhando destaque, a partir do fim do ano de 1990, com uma equipe de
pesquisadores italianos da Universidade de Parma, Vittorio Gallese, Leo Fogassi, Luciano
Fadiga e Giacomo Rizzolatti, líder da equipe. Essa descoberta ocorreu quando eles
investigavam os disparos dos neurônios da área F5 do córtex pré-motor, em primatas da espécie
Macaca nemestrina (CAETANO; FERREIRA, 2018). O experimento consistiu em analisar as
respostas dos disparos neuronais quando os animais executaram uma determinada ação (Ex:
empurrar caixas, ou mover os braços), entretanto, de modo inesperado os pesquisadores
perceberam que os neurônios analisados responderam quando os animais (controles)
observaram determinadas ações dos pesquisadores, ou outro animal (Ex: pegar um amendoim,
agarrar e manipular objetos, entre outras). Ou seja, os neurônios da área F5 foram ativados tanto
quando o animal executou uma ação, ou quando ele observou um outro executando uma ação
(DI PELLEGRINO et al., 1992). Iacoboni (2009a) ilustra de modo curioso a descoberta:
[...] cerca de vinte anos atrás, o neurofisiologista Vittorio Gallese estava andando pelo
laboratório durante um período de calmaria no experimento do dia. Um macaco estava
sentado em silêncio na cadeira, esperando pela próxima tarefa. De repente, quando
Vittorio pegou algo - ele não se lembra o quê - ele ouviu uma explosão de atividade
do computador que estava conectado aos eletrodos que haviam sido implantados
cirurgicamente no cérebro do macaco. Para o ouvido inexperiente, essa atividade teria
soado como estática; ao ouvido de um experiente neurocientista, sinalizou uma
descarga da célula pertinente na área F5. Vittorio imediatamente achou a reação
estranha. O macaco estava apenas sentado em silêncio, sem a intenção de apanhar
nada, mas mesmo assim esse neurônio com a ação de apanhar disparou. (p. 10,
tradução nossa).
27
Fonte: (WIKIMEDIA, 2014).
Figura 2a7. A área em vermelho ilustra a localização da área de Broca no encéfalo humano.
Com o aprofundamento dos estudos sobre o córtex pré-motor de primatas, esta área é
subdividida em outras da mesma estrutura, sendo F5 a mais relevante. Esta descoberta foi
29
Fonte: (WIKIMEDIA, 2010)
Figura 3. A área hachurada em amarelo ilustra a organização morfológica do lóbulo parietal. Destaque
para as regiões: Giro pós central (post central gyrus); sulco pós-central (postcentral sulcus); lóbulo parietal
superior (sup. parietal lobule); sulco intraparietal (intraparietal sulcus); giro supramarginal (supramarg.
gyrus); giro angular (ang. gyrus).
30
Fonte: Adaptado de (FABRI-DESTRO; RIZZOLATTI, 2008)
Figura 4. Respostas dos neurônios espelho (área F5). A. Ilustra uma pesquisadora executando ação de
pegar um alimento enquanto o animal observa. Ao lado direito é possível observar seis barras (seriam seis
neurônios da região F5) que mostram a atividade dos neurônios espelho da porção F5 do macaco. B.
ilustra a execução da ação de pegar um alimento. Ao lado direito é possível observar o disparo dos
neurônios espelho durante esta tarefa.
Ainda foi descrita uma relação homóloga da porção F5 do córtex pré-motor dos macacos
estudados com a área de Broca em humanos (ver figura 2 a). No momento que os primatas e
humanos compreendem a ação de outros, representando as ações motoras para si e na relação
com outro, devemos lembrar do SNE da área F5 e área da Broca e de sua ligação com os
movimentos da mão e boca/laringe. Isto significa que ao executar uma ação, exprimimos gestos
tanto com as mãos/braços, quanto com as expressões orofaciais, e em alguma medida isso
produziu sons como estalar da língua e dos lábios. É essencial pensar que se estamos falando
de evolução, essa primeira linguagem baseada em gestos (orofaciais) e sons primitivos, não
ocorria na relação entre apenas dois indivíduos, pelo contrário, o generalismo destas ações
estava aberto para outros indivíduos observarem e compreenderam essas ações, codificadas, a
partir dos neurônios espelho (RIZZOLATTI; ARBIB, 1998; RAMACHANDRAN, 2014).
Inclusive, as manifestações das emoções dependem das expressões faciais e essa relação
permitiu o desenvolvimento da área da Broca no cérebro humano. Uma consequência
importante desse novo uso funcional da vocalização foi quando o som adquiriu um valor
descritivo e, portanto, teve que permanecer o mesmo em situações idênticas e, além disso, teve
31
que ser imitado quando emitido por outros indivíduos. Essa nova situação, provavelmente foi a
causa do desenvolvimento da área de Broca humana, a partir de um precursor semelhante a F5
que já possuía propriedades espelhadas, controle de movimentos oro-laríngeos e uma estreita
ligação com o córtex motor primário que controla os movimentos orofaciais (RIZZOLATTI;
ARBIB, 1998).
É interessante pensar como um conjunto de células neuronais, que não são específicas
da espécie humana possibilitaram, do ponto de vista evolutivo/ontológico, o desenvolvimento
de uma função complexa humana como a linguagem. Ramachandran (2014), evidencia a
hipótese dos neurônios espelho para além desta aptidão, segundo o autor, essas células
constituem os aspectos mais desenvolvidos da espécie humana, ou seja, proporcionam desde a
execução de ações simples como aprender a beber em um copo, bem como, funções cognitivas
complexas como imitação, empatia e compreensão das emoções nas suas mais distintas formas.
Como se organizam no cérebro humano os neurônios espelho para além da área de
Broca? Primeiramente, é necessário frisar que os neurônios espelho constituem parte de um
grande sistema cortical. Neste sentido, devemos entender como se organiza, do ponto de vista
cerebral, o reconhecimento dessas ações, a partir do observador. As áreas do lóbulo parietal,
aparentemente têm um papel importante neste processo. Comumente, elas eram reconhecidas
como áreas associativas, entretanto, com a descoberta de neurônios espelho na região do lóbulo
parietal inferior, Fogassi et al. (2005) demonstram, a partir de experimentos com macacos, o
caráter multimodal desta área, isto é, ela realiza a conexão entre ação e percepção, codificando
as informações das ações observadas, em representações motoras, próprias do indivíduo, que
percebe a ação. Um ponto chave nesta codificação é que os neurônios espelho que pertencem a
essa região são ativados com maior frequência de disparos de potenciais de ação, quando há o
reconhecimento do objetivo da ação observada.
Fabri-Destro e Rizzolatti (2008), afirmam que o reconhecimento das ações de outros
não depende apenas da observação - estudos experimentais com símios concluíram que o SNE
desta região respondeu ao som da ação, sendo ativados também em situações das quais as ações
estavam ausentes (KOHLER et al., 2002). A codificação do SNE desta região, cria
representações motoras, que ao menor sinal destas ações, são emitidas como representações
motoras próprias do indivíduo, disparando as células espelhadas durante a observação, audição
e até mesmo em forma de representação mental, quando não há a presença de estímulos diretos.
O caráter multimodal dos neurônios espelho e suas diversas formas de representação motora,
pode ser exemplificado da seguinte forma: ao ouvir a fricção da ponta de um lápis sobre uma
32
folha de papel, podemos “imaginar” a ação da escrita de um sujeito, analisando suas pausas,
continuidade e em alguma medida a movimentação das mãos. A ação é representada pelo som
que dispara os potenciais de ação do SNE, responsáveis pela codificação destas informações.
Para os neurocientistas, as representações motoras identificadas pelo SNE dos primatas
e humanos, criam uma vantagem biológica essencial que é a de prever ações motoras de outros,
uma vez que essas representações tiveram origem na interação com outros indivíduos
(RIZZOLATTI; FOGASSI; GALLESE, 2001). A previsão das ações, proporciona aos seres
humanos (e também aos primatas) a capacidade de compreender as intenções por trás da ação
observada, pois a ligação do lóbulo parietal inferior com o córtex pré-frontal são os mecanismos
subjacentes responsáveis por essas habilidades, ligadas à codificação das ações motoras
(FABRI-DESTRO; RIZZOLATTI, 2008). Em humanos, essa habilidade tem um impacto
significativo no desenvolvimento das relações sociais. Compreender as intenções de outros,
reforça a existência de representações motoras que se tornam próprias do indivíduo que observa,
em outras palavras, é como se compreendêssemos estar no “lugar do outro”, ou seja, ter empatia.
Para Iacoboni (2005, 2009b) os neurônios espelho são responsáveis pelos
comportamentos de imitação e empatia. Iacoboni (2005, 2009b), baseado em dados
experimentais, afirma que a imitação é fundamental para nossa aproximação com outros
indivíduos, uma vez que os comportamentos socialmente aceitos facilitam o desenvolvimento
das relações interpessoais. Um segundo ponto que liga a imitação e a empatia é o fato de que,
quando imitamos pessoas, aumentamos nossa proximidade com relação a gostos pessoais,
consequentemente esse indivíduo se torna hábil em compreender e fazer a leitura das emoções
de outros, o que fortalece o caráter empático ligado à imitação.
As bases neurais que possibilitam a atividade subjacente dos neurônios espelho voltados
à imitação, funcionam em um sistema que engloba a parte Posterior do Giro Frontal Inferior e
a parte rostral do Córtex Parietal Posterior (Figura 5) essas duas áreas, além de conter neurônios
com propriedades espelho estão vinculadas à área de Broca (IACOBONI et al., 1999). A
vinculação de áreas responsáveis pela linguagem e a imitação fortalece a idéia do papel dos
neurônios espelho para a compreensão de ações motoras envolvendo movimentos orofaciais,
entretanto, é necessário salientar que a imitação nem sempre está ligada com aspectos da
linguagem.
33
PMd PF PMd
IPS IFG e
PMv
IFG e PMv
STS e
Hemisfério STS e pMTG Hemisfério
PF pMTG
esquerdo direito
Esta forma de aprender por imitação não se restringe apenas às ações motoras
observadas, elas incluem, aspectos culturais e até mesmo o modo como o indivíduo “aprende”
a se diferenciar de outros. Segundo Gallese (2003) e Mendonça (2018), os neurônios espelho
ao “traduzirem” as ações de outros, para aquele que observa a ação, possibilita o aprendizado
motor do que é observado, com base na imitação. Porém, sempre existe uma relação de
34
alteridade entre as ações que são do indivíduo e as ações que de outros, o reconhecimento da
diferença pode ser a base para o desenvolvimento da intersubjetividade.
Sendo assim, o SNE atua como um mecanismo cerebral que possibilita ao indivíduo
diferenciar entre as informações compartilhadas em ambiente social (as ações, emoções e
intenções), transformando-as em informações próprias que mostram como o indivíduo se
diferencia de seu ambiente social - ou em outras palavras, sua individualidade (GALLESE,
2003). A Figura 6 descreve as bases neurais da imitação e o como ocorre o fluxo de informações
neste sistema.
35
descoberto na ínsula, especificamente na sua porção anterior, com função de espelhamento. A
ínsula anterior é composta por quatro porções: sensório-motora; olfativa-gustativa; sócio-
emocional e cognitiva. As três primeiras porções estão associadas a áreas homólogas em símios,
porém a quarta é encontrada apenas em humanos. Esta responde à memória de curto prazo,
processamento da linguagem e fala, ou seja, existe uma relação com o hipocampo e as áreas
responsáveis pela linguagem (Broca e Wernicke). A ínsula anterior também responde ao
reconhecimento das emoções por meio de expressões faciais, estimulação elétrica direta e a
estímulos somatossensoriais (textura, viscosidade, estímulos gustativos, entre outros).
Para ilustrar a complexidade do funcionamento do SNE e sua relação com a área da
ínsula para a compreensão das emoções de outros, Di Cesare et al. (2015) realizaram um
experimento por meio de tarefas que imputavam aos participantes observarem, imaginarem e
executarem uma determinada ação motora sobre dois determinados estímulos emocionais:
alegre e bravo. Esses estímulos foram definidos pelos pesquisadores como formas vitais das
emoções8, em outras palavras, isso significa a nossa capacidade de reconhecermos os estados
emocionais distintos de outros, a partir do estado emocional interno do indivíduo observado.
Por exemplo, se um indivíduo demonstra mesmo sem expressar verbalmente, aborrecimento
com outro, suas ações tendem a se tornar mais rápidas, ou firmes em uma situação de pegar um
objeto, do ponto de vista do observador. A mudança destas ações demonstrou subjetivamente
que os padrões de ações anteriores do indivíduo antes do aborrecimento eram diferentes,
consequentemente, o sujeito que observa supõe que as emoções daquele que é observado
mudaram. A Figura 7 descreve quais áreas corticais foram acionadas durante os três tipos de
análise (observação, imaginação e execução) e as duas diferentes formas de emoções testadas
(alegre e bravo).
8 O conceito de afetos vitais ou formas de vitalidade, foi formulado pelo psicanalista Daniel N. Stern. Esse
constructo teórico explica como reconhecemos em outros sujeitos, as formas de expressões emocionais ligadas aos
aspectos sensíveis presentes no cotidiano nas distintas categorias emocionais como: tristeza, alegria, raiva, medo
e outros. Essas categorias emocionais, em geral, expressas no cotidiano, se manifestam, no espaço, tempo, relações
interpessoais e nas formas de expressão do próprio corpo (REIS, 2003). Isso justifica o resgate deste constructo
teórico para os experimentos de Di Cesare et al. (2015).
36
Fonte: Adaptado de (DI CESARE et al., 2015)
Figura 7. Ativação de áreas distintas diante das emoções rude e gentil (Áreas hachuradas em amarelo e
laranja), durante a realização das tarefas, sob as condições de observação, imaginação e execução de
ações. Legendas, hemisfério direito (RH), hemisfério esquerdo (LH), controle (Ctrl);
O SNE cumpre uma função essencial das atividades cerebrais subjacentes, e seus
desdobramentos na linguagem, imitação, empatia e o desenvolvimento da intersubjetividade
entre outros. Os pesquisadores (RIZZOLATTI; AIRBIB, 1998; FABRI-DESTRO;
RIZZOLATTI, 2008; RAMACHANDRAN, 2014; RIZZOLATTI; SINIGAGLIA, 2016) são
categóricos em afirmar a importância do SNE em relação a expressão destes comportamentos,
entretanto, ainda não há uma explicação unívoca nas Neurociências sobre estas células, em
outras palavras, o diálogo com outros campos, como por exemplo, da Psicologia é recorrente.
O que se estabelece de consenso aparente, conforme descreve a revisão de Rizzolatti e
Sinigaglia (2016) é que o SNE atua como um mecanismo básico de funcionamento cerebral,
que liga suas redes neurais às diversas informações e incorpora em representações próprias da
intersubjetividade de outros indivíduos, entretanto é necessário recordar que a produção destas
representações sempre parte do caráter motor das ações.
38
ondas mu tem relação com outros sistemas neuronais do córtex pré-motor, motor e sensório
motor. Deste modo, a mensuração das atividades dos neurônios espelho desta região está
atrelada a tarefas que envolvem a observação de movimentos das mãos, sendo as células
espelhadas, as únicas ativas nestas tarefas, o que indica uma forma de funcionamento
diferencial, uma vez que os neurônios espelho não podem ser diferenciados morfologicamente
de outros neurônios (OBERMAN; PINEDA; RAMACHANDRAN, 2007). Cabe salientar, que
a inibição das ondas mu ocorre quando o indivíduo executa, observa ou imagina uma ação
(PINEDA; ALLISON; VANKOV, 2000).
Identificar o funcionamento e o processo de assincronicidade (inibição) da frequência
mu, possibilitou a Oberman et al. (2005) uma investigação sobre a hipótese de disfunção dos
SNE em indivíduos com TEA fosse realizada. Este experimento teve a colaboração de 10
indivíduos diagnosticados com TEA9 e 10 indivíduos controles, todos pareados por idade e
sexo. A faixa etária dos participantes variou de 6 a 47 anos. As tarefas propostas, em síntese,
foram: a) mover a própria mão: os participantes deveriam abrir e fechar as mãos; b) observar
um vídeo em preto e branco de um experimentador repetindo o mesmo movimento de mão
executado pelos sujeitos; c) assistir ao vídeo de duas bolas quicando na vertical, de modo que
sua trajetória final atingisse o centro da tela, ilustrando, é como se observássemos deitados a
bola caindo de modo vertical sobre o rosto do observador; e d) observar a estática de uma
televisão como linha de base, sendo um estímulo neutro. Os eletrodos que identificaram a
frequência mu no córtex pré-motor de ambos os grupos se localizavam nas regiões (C3, Cz e
C4), descritas na Figura 8. Os resultados mostraram que no grupo controle e no grupo (TEA)
houve a inibição das ondas mu (ativação do SNE) na tarefa de movimento da própria mão.
Entretanto, no grupo (TEA) não foi observada a supressão da onda mu na tarefa de observar no
vídeo o movimento de mão executado pelo experimentador (tarefa b.). Em relação à tarefa da
bola quicando (tarefa c.), a supressão das ondas mu foi a mesma para ambos os grupos.
9 Segundo Oberman et al. (2005), os indivíduos diagnosticados com TEA foram considerados de alto
funcionamento, isto é, sem comprometimento cognitivo grave. Essa seleção ocorreu, pois, foi necessário que os
participantes compreendessem de forma clara as orientações de cada tarefa.
39
Fonte: Adaptado de (OBERMAN et al., 2005).
Figura 8. Supressão das ondas mu em participantes controle e sujeitos com TEA. C3, Cz e C4
correspondem à localização do córtex pré-motor. A. participantes controle. B. participantes com TEA. As
barras em branco representam a mensuração na atividade de observação da ação com bola; em cinza a
observação do vídeo demonstrando a ação com as mãos executadas pelo pesquisador; em preto a tarefa
da execução da ação com as mãos. A dimensão das barras indica a atividade dos neurônios espelho
mensurados (C3, Cz e C4).
41
2. REFLEXÕES DA PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL SOBRE O
TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA
Todo começo é difícil, e isso vale para toda a ciência (MARX, 2017, p. 77).
Conforme denominou Eric Hobsbawm (2007), o breve século XX, foi marcado por
grandes acontecimentos históricos, dentre eles, a vitória da Revolução Russa sobre o
Czarismo11, que ocorreu em outubro de 1917. É imperativo salientar que um processo
revolucionário tão incisivo, só foi possível, devido às condições de vida miseráveis da
população russa, principalmente de sua classe trabalhadora. Essas condições foram impostas
por uma profunda crise do capital e a participação do país eslavo na primeira guerra mundial
(TULESKI, 2009). Para tanto, uma mudança radical, a partir do socialismo, como um modelo
antagônico e alternativo, serviu de base para resgatar essa população dos atrasos sociais,
culturais, educacionais, considerando que se tratava de um país composto por 80% de uma
10 A inspiração para o desenvolvimento deste parágrafo partiu das reflexões de (MARTINS; PASQUALINI,
2015).
11 Czarismo foi um regime absolutista baseado em um modelo econômico feudal. Imperou na Rússia de 1547 até
1917.
42
população camponesa iletrada) e de feroz dominação e exploração (TONET, 2017). Sendo
assim, é sobre esse novo horizonte que surgem os trabalhos dos principais teóricos soviéticos.
Shuare (2016), compreende que as mudanças estruturais propostas pela revolução
socialista, transcenderam as esferas política-econômica. Essas modificações, foram expressas
no campo das artes, cinema e poesia com destaque para Eisenstein e Maiakovski, por exemplo.
No campo científico, essas expressões não foram distintas:
43
principalmente, a partir da influência de K. N. Kornilov (1879-1957)12, postos de lado, os
déficits teóricos dos autores deste período, o destaque deste congresso foi: o delineamento dos
principais problemas metodológicos e do objeto de estudo que deveriam ser pauta de
investigação e discussão da Psicologia Soviética:
Quando Vygotski se levantou para dar sua palestra, não portava consigo qualquer
texto, e nem mesmo notas. No entanto, falava fluentemente, e parecia nunca ter que
vasculhar a memória à procura da próxima idéia. Fosse prosaico o conteúdo de sua
fala, esta seria admirável pelo encanto de seu estilo. Mas sua fala não foi, de modo
algum, prosaica. Ao invés de atacar um tema menor, como talvez fosse conveniente
a um jovem de vinte oito anos que está falando pela primeira vez aos decanos de sua
profissão, Vygotski escolheu como tema, a relação entre os reflexos condicionados e
o comportamento consciente do homem (ibid, 1992, p. 43).
A partir dessa apresentação, o jovem pesquisador foi reconhecido como uma possível
referência para a construção da Psicologia Soviética naquele período, convidado a participar do
círculo do Instituto de Psicologia de Moscou, desembarcando na capital eslava em outubro de
1924. É nesse local, que ele conheceu seus dois principais colaboradores até sua morte,
Alexandre Romanovich Luria (1902-1977) e Alexis Nikolaevich Leontiev (1903-1979), a união
12 A perspectiva de Kornilov do psiquismo e da consciência humana foi marcada pela recusa da compreensão
desses fenômenos, a partir de uma perspectiva idealista, bem como a defesa do caráter monista da ciência
psicológica. Entretanto, reduziu o psiquismo e a consciência, como expressões reflexas determinadas pela
percepção do mundo exterior, sendo o mundo interno “apenas” uma imagem do externo. (REY, 2012; SHUARE,
2016).
13 Segundo Luria (1992), Vigotski, no período que lecionava na cidade de Gomel (antes de Moscou), tinha
experiência com crianças portadoras de deficiências congênitas, era crítico literário por formação (gênese de suas
análises psicológicas), bem como, estudava a relação e efeito da linguagem sobre o pensamento, a partir de autores
clássicos. Neste sentido, é interessante refletir, que as preocupações futuras de Vigotski seguiram caminhos
semelhantes a esta experiência anterior.
44
desses consolidou um círculo de discussões denominado troika (LURIA, 1992). É de
conhecimento dos pesquisadores contemporâneos, que a Psicologia Soviética não se restringiu
apenas a estas três figuras, a partir dos anos de 1930, o desenvolvimento da ciência psicológica
se expandiu, formando grandes centros de pesquisa em outras localidades, como Kharkov e
Leningrado, além de, Moscou. Entretanto, há um certo consenso de que uma das vias para essa
expansão foi justamente a figura de Vigotski (BOVO; KUNZLER; TOASSA, 2019).
A reunião deste círculo de colaboradores, possibilitou que Vigotski realizasse um
diagnóstico sobre a ciência psicológica de seu tempo, o clássico texto denominado “O
Significado Histórico da Crise na Psicologia” (1926)14. Retomando a crítica ao dualismo
cartesiano, o autor enfatizou que a ciência psicológica necessitava de novas bases para se
desenvolver. E, para que isso ocorresse, era necessário pôr fim ao movimento pendular entre o
idealismo subjetivo e o materialismo mecanicista pautado sobre o biologicismo (LORDELO,
2011). Essa discussão elevou o debate científico à produção ideológica, principalmente
proposta pela Psicologia ocidental:
Quando ele se refere à “velha psicologia” como psicologia burguesa, está referindo-
se à psicologia que reflete e referenda as relações burguesas, isto é, que explica o
homem burguês, seus sentimentos, seu funcionamento mental e sua ação no mundo.
Quando se coloca na luta com o objetivo de superar a psicologia burguesa, posiciona-
se no sentido de mostrar a necessidade de superação das relações burguesas no interior
da sociedade, as quais dão base material a essa psicologia. A construção da
sociedade comunista e, consequentemente do homem comunista, necessitaria de uma
nova psicologia que fosse capaz de explicar o funcionamento mental deste novo
homem (TULESKI, 2009, p. 104, grifo nosso).
14 Não há uma data exata deste texto, consideram que ele foi escrito entre 1926 e 1927. Porém, é comum alguns
autores utilizarem a data de 1927 (COSTA; MARTINS, 2018).
45
Fundamentar a ciência psicológica, a partir do materialismo histórico-dialético, é
polêmico, não só pelo apelo à neutralidade ideológica presente tradicionalmente em outras
correntes psicológicas, mas também pela questão de um “método” posto por Marx. Segundo
Netto (2011), Marx não se dedicou a escrever sobre o método de pesquisa em si mesmo, como
um conglomerado de passo a passo a serem seguidos para conhecer os objetos, pois seus
pressupostos não constituíram parte de um campo do saber como a sociologia, filosofia, política
ou economia. Diferente de outras tradições filosóficas ocidentais, o autor alemão se preocupou
em encontrar os fundamentos para a compreensão do movimento real de seu objeto de estudo -
a sociedade burguesa ou, em outras palavras, o capitalismo.
O Capital marca o auge de uma incursão teórica no âmago das ciências humanas, e isso
marcou a construção do materialismo histórico-dialético, enquanto método de análise de seu
objeto (YAMAMOTO, 1994). A preocupação de Marx para esta pesquisa era descobrir, quais
as reais contradições que moldavam o sistema econômico capitalista a se tornar dominante.
Para ele, a literatura de sua época não revelou as verdadeiras determinações presentes na
sociedade burguesa, por exemplo, nenhum teórico burguês demonstrou de modo concreto, as
causalidades produtoras da miséria material dos homens, ou descreveu como é possível que a
acumulação de mercadoria gerasse riqueza, ou mesmo de que modo as determinações
econômicas e políticas engendraram o desenvolvimento da consciência social dos homens e as
relações de produção de suas vidas.
Para resolver os problemas postos por seu objeto, Marx analisou que seria necessário ir
além da aparência e do idealismo, devendo buscar no próprio objeto, sua essência. Em outras
palavras, essência, para os marxistas, significa compreender a dinâmica e estrutura interna do
movimento real do objeto, ou seja, uma forma de apreensão subjetiva do pesquisador. Isso é
relevante, porque coloca o pesquisador como parte importante do processo de análise do objeto
(NETTO, 2011).
O conhecimento da essência do complexo funcionamento do capitalismo não se resumia
em apenas compreender ou contemplar a descoberta, inclusive, todo o arcabouço teórico
metodológico desenvolvido possuía fins práticos, com a perspectiva de superar as condições
impostas por esse modo de produção vigente, pelas mãos daqueles que tudo produzem. A tese
11 contra Feuerbach fora posta em fins práticos “Os filósofos apenas interpretaram o mundo de
diferentes maneiras; porém, o que importa agora é transformá-lo” (MARX; ENGELS, 2007, p.
539).
46
É sobre a concepção marxiana de transformação do objeto, que Vigotski traça as
primeiras tentativas para a construção de uma psicologia que supere a crise:
Pode-se distinguir os homens dos animais pela consciência, pela religião ou pelo que
se queira. Mas eles mesmos começam a se distinguir dos animais tão logo começam
a produzir seus meios de vida, passo que é condicionado por sua organização corporal.
Ao produzir seus meios de vida, os homens produzem, indiretamente, sua própria vida
material.
O modo pelo qual os homens produzem seus meios de vida depende, antes de tudo,
da própria constituição dos meios de vida já encontrados e que eles têm de produzir.
Esse modo de produção não deve ser considerado meramente sob os aspectos de ser a
47
reprodução da existência física dos indivíduos. Ele é, muito mais, uma forma
determinada de sua atividade, uma forma determinada de exteriorizar sua vida, um
determinado modo de vida desses indivíduos. Tal como os indivíduos exteriorizam
sua vida, assim são eles. O que eles são coincide, pois, com sua produção, tanto com
o que produzem como também com o modo como produzem. O que os indivíduos,
portanto são, depende das condições materiais de sua produção (MARX; ENGELS,
2007, p. 87, grifos no original).
O psicólogo soviético defende a utilização, pela pesquisa psicológica, daquilo que ele
chamava de “método inverso”, isto é, o estudo da essência de determinado fenômeno
através da análise da forma mais desenvolvida alcançada por tal fenômeno. Por sua
vez, a essência do fenômeno na sua forma mais desenvolvida não se apresenta ao
pesquisador de forma imediata, mas sim de maneira mediatizada e essa mediação é
realizada pelo processo de análise, o qual trabalha com abstrações. Trata-se do método
dialético de apropriação do concreto pelo pensamento científico através da mediação
do abstrato. Análise seria um momento do processo de conhecimento, necessário à
compreensão da realidade investigada em seu todo concreto. Vigotski adota assim, da
dialética de Marx, dois princípios para a construção do conhecimento científico em
psicologia: a abstração e a análise da forma mais desenvolvida (DUARTE, p. 84,
2000).
48
deve, antes de tudo, compreender o sujeito diagnosticado com TEA, enquanto alguém em
movimento, ligado a um contexto, às formas de relações sociais de seu tempo, sua classe,
gênero e outras diversas determinações. Entretanto, é insuficiente para a compreensão deste
caso e outros, apenas a descrição dessas determinações. Pensando em ir além, é necessário
elaborar explicações; sendo elas práticas, no sentido das intervenções e, teóricas, para refletir
sobre o caso.
A psicologia proposta por Vigotski e outros psicólogos soviéticos deste período, parte
de uma análise monista para compreensão do humano. Deste modo, a PHC, sobre os
fundamentos do materialismo histórico-dialético, divergiu radicalmente do monismo (vulgar)
presente na psicologia tradicional. Assim assumimos que o sujeito que se desenvolve sobre o
gênero humano é uma síntese entre o biológico e o social, determinado historicamente, e
propício a partir de sua atividade transformar a realidade externa e interna através da
apropriação da cultura (TULESKI, 2009).
É necessário compreender que o desenvolvimento da ciência psicológica, a partir dos
pressupostos de Marx/Engels, para Vigotski, não se resumia a encontrar nas obras destes
autores os conceitos psicológicos, pelo contrário, o materialismo histórico-dialético deveria
antes de tudo, ser o ponto de partida da construção da ciência psicológica (TULESKI, 2009).
Para isso, haveria a necessidade de desenvolver novos conceitos e metodologias que
superassem as vicissitudes da “velha psicologia”, assim como Marx assimilou e desenvolveu
sua crítica aos economistas burgueses. Vigotski chamou atenção de seus contemporâneos
comunistas que, para a psicologia de seu tempo, seria imperativo um método semelhante,
conforme descreve Duarte (2000, p. 80), “[...] uma teoria que desempenhasse para a psicologia
o mesmo papel que a obra O capital de Karl Marx desempenha na análise do capitalismo”.
Aparentemente, esse caminho encontra-se aberto.
49
de discutirmos os possíveis comportamentos atípicos expostos por crianças com esse
diagnóstico, devemos compreender o caminho do desenvolvimento típico do gênero humano15.
Vygotski (2012) compreende que qualquer ser da espécie Homo sapiens nasce sob
determinações diferentes de outras espécies animais, pois o desenvolvimento do gênero
humano segue uma linha distinta do desenvolvimento natural, isto é, o que rege a conduta
humana são as leis sócio-históricas.
O primeiro ato histórico, ou fundante do ser social (gênero humano), surge com o
trabalho16. Essa atividade especificamente humana é essencial, pois significou para a espécie
um salto ontológico. O trabalho, enquanto categoria ontológica, centralizou a construção da
natureza humana, a partir da unidade entre biológico e social. Essa unidade, criou condições
para a produção dos meios necessários para a produção, como as ferramentas, para a
transformação das causalidades dadas (condições naturalmente existentes), em causalidades
postas (novas objetividades e a construção de uma nova realidade, a partir destas) (LUKÁCS,
2013). O homem age ativamente sobre a natureza em uma espécie de intercâmbio metabólico,
isto significa que diferente da adaptação natural ao meio, conforme vemos no desenvolvimento
animal, o homem adaptou a natureza à sua necessidade. Esse ato tem dupla consequência. As
alterações artificiais criadas não só alteraram a natureza de seu ambiente, mas alteraram
igualmente a natureza do próprio gênero humano. Ilustrando esse aspecto, compreende-se que
o símio tem as mãos semelhantes do ponto de vista morfológico/fisiológico, quando
comparadas às dos homens. Entretanto, o animal é incapaz de reproduzir naturalmente (sem
treino), os aspectos mais simples do processo de humanização, presente em crianças na primeira
infância, quando realizam a imitação, por exemplo.
Leontiev (2004) descreve que a atividade sob o domínio do homem criou condições para
o surgimento da consciência, tendo origem, a partir da organização da atividade já posta ou
objetivada. Esta afirmação nega a consciência do homem como um produto inato do organismo,
ou produto de condições espirituais.
15
Consideramos gênero humano, todos os comportamentos presentes no ser social que surgem da apropriação da
história social.
16
Para Lukács (2013) e Marx (2017), trabalho é a capacidade do homem em transformar a natureza, produzindo
assim novas objetividades não presentes em ambiente natural.
50
Devemos acrescentar que essa atividade, enquanto processo inter-tráfico, sempre é
direcionada à satisfação de uma necessidade e acompanhada de um motivo. Não há atividade
sem motivo, tampouco sem necessidades (LEONTIEV, 1978). De modo geral, todo organismo
vivo responde às necessidades sob determinadas características; a primeira delas é que toda
necessidade deve ter um objetivo; em segundo, toda necessidade adquire um conteúdo concreto,
a partir das condições de sua satisfação, por exemplo, ao sentir fome busca-se comida. Neste
sentido, o estado interno do organismo sinaliza que a condição de fome deve ser eliminada, a
forma como essas necessidades se manifestam e são satisfeitas depende das condições externas
ao organismo; em terceiro, toda necessidade pode se repetir; a quarta regra expressa que as
necessidades se desenvolvem na medida em que os objetos e os meios de satisfação se ampliam
(LEONTIEV, 2017).
Tendo em vista, que essas quatro regras respondem a toda forma de organismo vivo,
deve-se compreender que as leis históricas do desenvolvimento humano complexificaram as
necessidades humanas a níveis superiores de organização.
Luria (1979a) sintetiza em três leis fundamentais a atividade consciente humana. A
primeira consiste no fato de que as necessidades humanas não são atendidas apenas por motivos
biológicos. As formas de relações engendradas pelo trabalho criaram novas necessidades, a
fome agora não é um simples ato a saciar, isto é, ela significa uma fome específica de algo
criado pela atividade humana - ou ato de socializar com outras pessoas, por exemplo, pode se
transformar em um motivo que de modo direto não está atrelado à saciação da fome.
A segunda lei consiste, em que o comportamento humano não é determinado por
relações aparentes de seu meio, ou mesmo pela experiência individual imediata. Em outras
palavras, a organização da atividade humana depende do conhecimento das leis que regem seu
ambiente conforme o exemplo:
Sabe-se que o homem pode refletir condições do meio de modo imediatamente mais
profundo que a do animal. Ele pode abstrair a impressão imediata, penetrar nas
conexões e dependência profunda das coisas, conhecer a dependência causal dos
acontecimentos, e após interpretá-los, tomar como orientação não impressões
exteriores, porém leis mais profundas. Assim, ao sair a passeio num dia claro de
outono, o homem pode levar um guarda-chuva, pois sabe que o tempo é instável no
outono. Aqui ele obedece a um profundo conhecimento das leis da natureza e não à
impressão imediata de um tempo de sol e céu claro (LURIA, 1979a, p. 72,).
51
A terceira lei descreve que o comportamento animal é regulado por dois princípios: a)
os comportamentos herdados filogeneticamente da espécie; e b) a experiência ontogenética do
animal, expressa como forma de aprendizagem imediata do meio e seus antecedentes. Não há
como negar que essas duas formas de regulação do comportamento animal também se
encontram no homem. Contudo, a forma de regulação da atividade humana ocorre através da
apropriação da história social, transmitida por meio da aprendizagem.
O desenvolvimento do ser social, é o marco principal para o surgimento de funções
psíquicas reorganizadas e próprias do gênero humano, como a consciência. A consciência,
enquanto função psicológica, pode ser definida como reflexo da realidade concreta, que se
estabelece quando há condições de domínio humano sobre a natureza orgânica e social.
Devemos compreender esse reflexo consciente como um produto do desenvolvimento histórico,
isto significa que a consciência distingue a realidade objetiva, como uma reflexão própria do
sujeito que a percebe. Esse movimento permite que o homem compreenda a realidade externa
a ele, ao mesmo tempo que desenvolve a percepção de si como sujeito consciente (LEONTIEV,
2004).
O psiquismo humano surge então, como produto das relações sociais estabelecidas por
meio do trabalho e da vida em sociedade. Cabe dizer que toda forma de atividade humana, seja
objetiva ou subjetiva, é mediada. Mediada no sentido que sempre entre atividade humana e sua
finalidade há um instrumento, um signo ou ambos (VYGOTSKI, 2012). Vygotski (2012) define
o instrumento (ferramenta) como mediações que modificam diretamente a realidade concreta,
por exemplo, os meios de trabalho. Isto significa que o instrumento do ponto de vista
psicológico, orienta a atividade humana de modo externo. Já os signos, têm como principal
característica agir como meio social de comunicação, sua definição é “[...] todo estímulo
condicional criado artificialmente pelo homem e usado como meio de dominar o
comportamento - seja próprio ou o de outros - é um signo.” (VYGOTSKI, 2012, p. 83, tradução
nossa). Deste modo, o signo orienta a conduta humana de modo interno, tendo esse conceito,
uma relação direta com a função da linguagem.
O homem, ao se apropriar de formas culturais como os instrumentos e os signos, desde
os primórdios de seu desenvolvimento histórico (LEONTIEV, 2009), modificou de modo
qualitativo, as funções psicológicas inatas da espécie. Com o apoio das ferramentas houve
aumento significativo da amplitude das atividades, a ponto de transformar seu meio e o emprego
de signos como forma de comunicação e controle voluntário do próprio comportamento e do
52
comportamento de outros. Essas funções passaram a agir a um nível superior de organização,
devido à cultura, sobrepondo-se às funções elementares17:
17
Funções elementares são todas aquelas que são herdadas pela filogênese do organismo, consideramos como as
funções naturais da própria espécie.
53
a distância impede o alcance. Se analisarmos apenas a tentativa de alcance da criança, podemos
afirmar que não existe gesto, o que existe é a ação malsucedida da criança em direção ao objeto
desejado. Entretanto, se um adulto observa a ação executada por ela, a relação entre o objeto e
criança se altera radicalmente, pois o adulto interpreta essa ação em forma de gesto ao mesmo
tempo que possibilita que a criança obtenha o objeto desejado. O adulto, neste caso, interpreta
a ação da criança em um primeiro momento, e somente em um segundo momento este gesto
ganha um significado para a criança. Quando essa segunda etapa ocorre a forma de atividade
muda bastante, no sentido que se estabelece uma relação entre sujeitos, a criança irá direcionar
seus gestos ao outro indivíduo indicando suas necessidades.
No momento em que o adulto compreende a ação da criança como gesto indicativo, este
ganha a qualidade de signo, pois seu comportamento foi orientado pela indicação de outro, neste
caso, a criança. Nesta acepção, quando a criança de forma consciente, orienta sua conduta e de
outros, significa que o interpsíquico, agora se estabelece enquanto relação intrapsíquica, isto é,
a função anteriormente externa, pertencente à sociogênese, agora se estabelece internamente na
ontogênese deste indivíduo. Toda função psicológica superior é inicialmente desenvolvida entre
duas pessoas, para que só de modo posterior pertença a um indivíduo.
Em síntese, é possível definir que todo comportamento humano não presente na
filogênese foi adquirido ao longo da história social, a partir de outro humano, por meio da
aprendizagem e internalizado, e em razão disso são considerados funções psicológicas
superiores.
54
2.2.1 A unidade entre biológico e o social: a formação dos novos sistemas funcionais
As raízes de uma criança normal na civilização estão quase sempre fundidas com os
processos de maturação orgânica. Ambos os níveis de desenvolvimento - o natural e
a cultura - coincidem e se fundem uns com os outros. As mudanças que ocorrem em
ambos os planos se intercomunicam e, na realidade, constituem um processo único de
formação biológico-social da personalidade da criança. Na medida em que o
desenvolvimento orgânico ocorre em um ambiente cultural, ele se torna um processo
biológico historicamente condicionado. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento
cultural adquire um caráter muito peculiar que não pode ser comparado a nenhum
outro tipo de desenvolvimento, pois ocorre simultaneamente e em conjunto com o
processo de maturação orgânica e seu portador é o organismo infantil em mudança no
processo de crescimento e maturação (VYGOTSKI, 2012, p. 36, tradução nossa).
[...] a psique não deve ser considerada como uma série de processos especiais que
existem em algum lugar na qualidade de complementos acima e separados dos
cerebrais, mas como expressão subjetiva desses mesmos processos, como uma faceta
especial, uma característica qualitativa especial das funções superiores do cérebro
(VIGOTSKI, 2004, p. 144).
19 Ramachandran (2014) descreve o mesmo problema abordado por Vigotski em 1930. O neurocientista denomina
esse assunto como problema de Wallace. Isso é importante, pois vemos que a preocupação de Vigotski sobre o
papel do cérebro sobre o psiquismo ainda não foi resolvido.
56
Luria (1981, 2002) e Vygotski (2013) diante desse problema, e da compreensão errônea
da fisiologia e psicologia em entender os processos psicológicos superiores por meio da
identidade com o funcionamento neurofisiológico, revisaram as duas grandes tendências de
organização dos processos neurológicos - o localizacionismo estreito e as teorias holísticas.
Para os soviéticos, essas duas tendências pouco explicaram a relação da atividade cerebral e
dos processos psíquicos superiores.
A teoria localizacionista ou localizacionismo estreito conforme denominado por Luria
(1981) reduziu os processos psíquicos complexos a uma relação direta com as regiões cerebrais.
Como representante importante desta corrente, podemos citar Paul Broca (1824-1880), que
através do estudo das lesões cerebrais conseguiu identificar o centro da fala motora. Ainda
assim, as teorias holísticas, ameaçaram essa forma de compreensão da atividade cerebral, uma
vez que sem deixar de reconhecer que os processos elementares têm bases estabelecidas e
localizadas ao longo sistema nervoso central, o mesmo não era passível de explicação para as
funções complexas.
Os holistas como Hughlings Jackson (1835-1911), compreenderam que para que os processos
psíquicos superiores fossem expressos, era necessário que toda atividade cerebral estivesse
acionada. O que reforçou a argumentação desta corrente, foi que em casos de lesões específicas,
foi observado que ao longo do tempo os sujeitos retomavam a função psicológica perdida. Luria
(1981) então propõe uma nova forma de compreensão da organização da atividade cerebral e
das funções psicológicas superiores, partindo da síntese entre as teorias localizacionistas e
holistas, o autor define sua perspectiva como localizacionismo dinâmico.
O localizacionismo dinâmico enquanto forma organizada da atividade cerebral, se pauta
na compreensão dos sistemas psicológicos (VIGOTSKI, 2004). Isto é, o cérebro conforme
afirma o localizacionismo tem áreas específicas para funções inatas/elementares e que essas
funções não poderiam operar de modo isolado. Contudo, um adicional dessa nova proposição,
foi a compreensão de que as formas de comunicação internas do cérebro se iniciam sempre na
relação com o mundo externo, de modo extracortical. Ou seja, a organização das funções
psicológicas superiores, além de complexas, dependem de meios externos para se
desenvolverem, não existindo nas estruturas cerebrais.
Por exemplo, podemos afirmar que a fala não se localiza na área de Broca, para que
essa função surja no homem é necessário todo um processo de desenvolvimento, caso o
contrário, o sujeito que não se apropria da fala e tem seu sistema neurológico intacto. Isso
significa que seu cérebro contém apenas a potencialidade do desenvolvimento da fala. A
57
compreensão do desenvolvimento das funções psicológicas superiores, a partir de um grande
sistema, afirma que a organização cerebral deve ser dinâmica e sua organização funcional muda
conforme o desenvolvimento. Em outras palavras, a organização funcional de uma criança não
é a mesma que a de um adulto. Bem como dois adultos em atividades laborais distintas podem
ter uma organização funcional diferente (LURIA, 1979a).
Como ilustração para as mudanças dos nexos das funções ao longo do desenvolvimento,
observamos que a relação entre pensamento e memória muda quando comparamos uma criança
e um adolescente. No caso da criança, a memória tem um papel central na organização de seu
sistema psicológico. Em síntese para que ela consiga pensar, ela necessita da memória. Por
exemplo, se perguntarmos para a criança o que é um ônibus, para pensar sobre o ônibus, ela
retoma em sua memória uma série de elementos para responder a pergunta, que podem
descrever o ônibus, sua função, a relação com um contexto do ônibus entre outros elementos.
Já na adolescência, existe uma inversão destes papéis, o pensamento passa a reger a memória e
outras funções como linguagem, percepção, atenção entre outras, essa mesma pergunta para o
adolescente será respondida, possivelmente por uma ordem lógica muito específica.
Resumidamente, para a criança pensar é lembrar, e para o adolescente lembrar é pensar
(VIGOTSKI, 2004).
No processo de reorganização funcional do cérebro ao longo da ontogênese, os meios
externos (instrumentos e signos) constituem o principal meio de formação dos novos nexos das
funções psicológicas superiores. O que muda ao longo do desenvolvimento, não é
necessariamente a morfologia das estruturas cerebrais, e sim as relações interfuncionais que
conectam de maneira artificial (ou seja, não ocorrem de modo espontâneo) diferentes áreas do
cérebro.
58
Vigotski (2004) de maneira esquemática explica como a memória, a partir de uma
mediação externa é reorganizada:
Em outras palavras, meios externos como o instrumento, criam novos caminhos para o
funcionamento cerebral, proporcionando às funções psicológicas uma nova qualidade. Vemos
que a memória não deixa de cumprir seu papel, porém as novas relações entre dois pontos
diferentes, proporcionam a essa memória agora instrumentalizada, uma nova qualidade.
Vigotski (2004) chama atenção para o fato de que durante todo o processo de
desenvolvimento humano, os novos nexos ocorrem em nível cortical e psicológico. Ao se
apropriar do instrumento, por exemplo, existe um aumento do raio de ligações entre as funções
psicológicas que possibilitam novas formas do sujeito lidar com o real. Cabe salientar que,
assim como não é possível localizar uma função psicológica superior em uma região do cérebro
(Ex: área da escrita), as funções que formam esse novo sistema psicológico no homem não
podem ser separadas. Os novos nexos impossibilitam, por exemplo, que atenção e memória
estejam separadas durante a atividade humana.
O mais interessante é que o dinamismo do funcionamento cerebral humano se expressa
no mesmo contexto das funções psicológicas ao longo do desenvolvimento. Neste sentido, o
estudo da organização cerebral e das funções psicológicas superiores deve seguir a mesma
dinamicidade do complexo processo de desenvolvimento humano (VIGOTSKI, 2013). As
descrições expostas, servem, para demonstrar a preocupação metodológica da psicologia
soviética na compreensão integral do desenvolvimento humano, o que reforçou o caráter
monista da PHC no entendimento da unidade entre biológico e social.
Na próxima seção, será enfatizado como ocorre esse desenvolvimento nas etapas
ontogenéticas da primeira infância até o fim da idade pré-escolar.
59
2.3 A periodização do desenvolvimento humano
62
conteúdo psicológico de cada período são sintetizados pela atividade principal (LEONTIEV,
2010; ELKONIN, 2017).
63
uma criança por volta de nove meses, expressando algumas palavras como “au au”, “mu” ou
“mama, mamãe”, devemos estar atentos para o fato de que essa imitação essencialmente é
intermediada pelo adulto. Essas palavras nunca são a expressão direta da imitação do som do
animal e sim da forma e significado expresso pelo outro.
Com base em Vigotski (2006), podemos afirmar que a imitação é um ponto crucial
quando pensamos o desenvolvimento infantil e sua avaliação entre os diferentes períodos; a
imitação é um marco para dois conceitos elaborados pelo autor, que são a zona de
desenvolvimento real e a zona de desenvolvimento próximo20. A zona de desenvolvimento real
é o conjunto de habilidades e comportamentos já aprendidos pela criança ao longo de sua
história, é a relação entre a idade e o que é esperado para aquele período. Já a zona de
desenvolvimento próximo, mostra o raio de ação entre a zona real e o potencial da criança, uma
das formas de avaliar e compreender essa relação está na análise da imitação:
Ao falarmos de imitação não nos referimos a uma imitação mecânica, automática, sem
sentido, mas uma imitação racional, baseada na compreensão da operação intelectual
que se imita. [...] empregamos a palavra <<imitação>>, aplicando a toda atividade que
a criança não realiza por si só, mas em colaboração com o adulto e outras crianças.
(VYGOTSKI, 2006, p. 268, tradução nossa)
20 Os termos que adotamos no texto “desenvolvimento próximo” condiz com a tradução da fonte que utilizamos.
Existe um debate proposto por Zoia Prestes (2011), que merece destaque, porém não abordaremos aqui essa
polêmica.
64
nesse período que varia entre o primeiro ano de vida à crise dos três anos, observamos uma
criança mais ativa na relação com os objetos. A relação com o adulto ainda é essencial,
entretanto, os objetos se tornam o centro de atenção da criança, o fundamento novo deste
período é o desenvolvimento da inteligência prática (VYGOTSKI, 2017) e ascensão da
linguagem nas relações que a criança estabelece com as pessoas
De um ser privado da palavra, que utiliza para a comunicação com os adultos meios
emocionais mímicos, a criança se converte num ser falante, que emprega um léxico e
formas gramaticais relativamente ricos. Contudo, a análise dos contatos verbais da
criança mostra que a linguagem é utilizada por ele, no fundamental, para organizar a
colaboração com os adultos dentro da atividade conjunta com os objetos, ou seja, a
linguagem atua como meio de contatos “de trabalho” da criança com o adulto
(ELKONIN, 2017, p. 164).
65
inicia o processo de mudanças dos processos psíquicos e o início do desenvolvimento da
personalidade (SMIRNOV et al., 1978). Em um primeiro momento, ao se apropriar da função
dos objetos, a criança representa as ações dos adultos com os objetos. Por exemplo, ela observa
um adulto bebendo água em um copo, ao representar isso em uma boneca, o objeto deve ser o
mesmo daquele percebido, ou seja, um copo. Entretanto, em um segundo momento, quando a
linguagem e o domínio das ações alcançam outro nível por volta dos três anos, aquelas ações
percebidas começam a se tornar mais gerais, assim como a percepção da criança, ou seja,
aqueles objetos têm a possibilidade de serem representados por outros. Ou seja, ao brincar de
boneca, a criança pode usar um palito de dente para representar um termômetro, não sendo
necessário a representação idêntica ou o objeto real. Neste contexto, ao generalizar as ações
com os objetos em conjunto ao desenvolvimento da linguagem e o desenvolvimento como um
todo, a criança ganha mais autonomia e se torna mais ativa em seu meio social (SMIRNOV et
al., 1978; VYGOTSKI, 2006).
Ouvir e entender o que os adultos dizem sobre o que a criança não percebe diretamente
em um dado momento é uma aquisição importante, pois cria a possibilidade de usar a
linguagem como um meio de transmitir conhecimento. No final dos três anos, o
entendimento da linguagem atinge um nível tão alto que permite regular o
comportamento da criança e ensiná-la a usar objetos diferentes, não apenas mostrando
diretamente o que deve ser feito e como fazê-lo, mas também através de indicações
verbais (SMIRNOV et al., 1978, p. 509, tradução nossa).
Quando a criança atinge esse nível, observamos que a crise dos três anos apresenta os
primeiros “sintomas”. Vygotski (2006) descreve que a relação da criança com os adultos neste
período crítico muda, no sentido de como o adulto interpreta a crise, entendendo que a criança
começa a se opor a ordens e apresenta dificuldades em ser “educada”, entretanto, à luz da
criança, ela busca a necessidade de realizar suas vontades. Para o autor é necessário analisar
alguns aspectos dessa oposição para que o período crítico seja compreendido não pelo aspecto
negativo de oposição da criança, mas sim do aspecto positivo que mostra um ser em constante
transformação.
Segundo Silva (2017), as reações como negativismo, teimosia, rebeldia e
insubordinação, geralmente apresentados na crise dos três anos, na realidade mostram que a
criança atingiu um nível de autonomia e contradição cotidiana e que o adulto, nesse momento,
apresenta-se como um “empecilho” na realização de suas vontades. É comum nesta idade, a
criança receber uma ordem como ir para a cama, e se recusar pelo fato de que naquele momento
66
ela não está com sono. A partir deste fato, o adulto interpreta essa relação como oposição, o que
cria um antagonismo entre ambos.
Uma menina no quarto ano de vida, com uma prolongada crise de três anos e um
negativismo muito explícito, quer que a levem a uma conferência onde se fala sobre
crianças. Inclusive se prepara para ir. Eu a convido. Porém como eu a convidei, se
nega a ir. Se nega com todas as suas forças. <<Então vá para o seu quarto>>. Não
obedece. <<Bom então vamos. >> Se nega. Quando a deixam em paz, chora, e está
magoada porque não a levaram. Vemos, portanto, que o negativismo obriga a criança
a se pôr contra seu desejo afetivo. A menina gostaria de ir, mas como proposto, se
negou (VYGOTSKI, 2006, p. 370, tradução nossa).
No processo de superação da crise dos três anos, a criança inicia a organização de seus
próprios motivos e novas necessidades que se complexificam, pois ela começa a compreender
que há um choque entre os motivos dos adultos e suas necessidades. A procura por uma
independência impossível de se realizar nesse momento, cria uma nova atividade que se torna
principal, denominada de jogos de papéis.
O jogo de papéis abre o período da idade pré-escolar (três a sete anos) no
desenvolvimento infantil. Em linhas gerais, os jogos de papéis são brincadeiras que expressam
as relações entre as pessoas, diferente da primeira infância em que a criança estabelece uma
67
relação de manipulação e compreensão das funções dos objetos, agora a criança, através dos
jogos de papéis, está imersa em uma nova relação:
Seu principal significado consiste no fato que, por conta de procedimentos peculiares
(a apropriação, pela criança, do papel da pessoa adulta e de suas funções sociolaborais,
o caráter representativo generalizado da reprodução das ações objetais, a transferência
dos significados de um objeto a outro etc.), a criança modela no jogo a relação entre
as pessoas. Na própria ação objetal, tomada isoladamente, “não está escrito” para que
deve ser realizada, qual é o seu sentido social, seu motivo eficiente. Só quando a ação
com o objeto inclui-se no sistema das relações humanas, põe-se em evidência nela seu
verdadeiro sentido social, sua orientação na direção de outras pessoas (ELKONIN, p.
164, 2017).
Somente na idade pré-escolar podemos observar pela primeira vez essas correlações
de motivos, de tipo superior, formados com base na separação dos motivos mais
importantes, aqueles que subordinam os demais. Anos atrás, tivemos a oportunidade
de observar essas correlações em uma investigação experimental. Uma criança estava
68
muito angustiada porque não conseguiu resolver a tarefa proposta; foi-lhe dito que
tudo estava indo bem, que, da mesma forma, ela receberia, como as outras crianças,
um pequeno presente: um delicioso caramelo. O garoto, no entanto, pegou o caramelo
sem sentir prazer e se recusou a comê-lo; sua aflição não diminuiu e, pelo fracasso, o
doce que ele recebeu se tornou um <<doce amargo>> para ele. Em nosso laboratório,
chamamos muitas vezes "fenômeno do caramelo amargo" as reações semelhantes, que
observamos em crianças (e não apenas em crianças!) (LEONTIEV, 1987, p. 60,
tradução nossa).
Observamos, nesse exemplo, que o doce para criança passa a um segundo plano,
enquanto a resolução da tarefa se mostra como verdadeiro motivo de sua atividade. Para o
desenvolvimento infantil esse aspecto é essencial, pois observamos na criança da idade pré-
escolar, as primeiras formas de comportamento voluntário. Neste sentido, o próprio Leontiev
(1987, 2017) afirma o papel importante do adulto para a formação desses e outros motivos que
se expandem nesse processo, aqui a preocupação central da criança está na relação com o adulto,
a sensação de falha por exemplo, não se restringe ao ganho do caramelo e sim ao fracasso em
comparação aos olhos do experimentador, ou seja, a preocupação da criança se volta às relações
sociais às quais ela pertence.
A possibilidade de hierarquização dos motivos na idade pré-escolar produz na criança a
compreensão do funcionamento das relações humanas, os comportamentos isolados
apresentados em etapas anteriores do desenvolvimento, se encaixam diretamente sobre uma
nova base, a complexidade da vida humana (LEONTIEV, 1987; SILVA, 2017). Nesse exemplo,
podemos observar como é essencial a hierarquização dos motivos para o desenvolvimento. Se
hipoteticamente observamos uma criança brincar de caixa de supermercado, vemos que ela
“incorpora”, a partir desse ato, uma série de características necessárias para realizá-lo. A
necessidade de cumprir corretamente esse papel produz na criança, do ponto de vista
psicológico, a unidade entre a esfera afetiva e cognitiva; a organização da sua atenção, memória
e todo sistema funcional desse período; a necessidade de domínio mínimo da aritmética (as
possíveis para esse período); o controle da conduta, pois há regras para esse tipo de função - a
criança deve se comportar exatamente como indica a função de trabalho reproduzida na
brincadeira.
Neste exemplo observamos que os jogos de papéis desenvolvem na criança a
compreensão da vida cotidiana, assim como os aspectos político-sociais de cada papel
representado. Com o aumento do círculo de relações com as pessoas, existe um consequente
acúmulo da sua experiência, bem como o aumento de sua experiência de vida, adquirido com
essa consequência, obtendo assim um domínio maior da vida dos adultos. Da mesma forma, a
atividade com jogos influencia o desenvolvimento intelectual da criança na relação de todas as
69
funções como, percepção, processos verbais, imaginação e principalmente, a transição do
pensamento objetivo ao abstrato (SMIRNOV et al., 1978).
O último ponto de destaque das características essenciais da idade pré-escolar, está
vinculado ao desenvolvimento da linguagem, mais especificamente ao desenvolvimento da fala
egocêntrica. O controle voluntário do comportamento, bem como, da hierarquização dos
motivos da criança, perpassa a organização da fala. Segundo Vygotski (2017), a linguagem
passa a cumprir um papel importante de “planificação” do comportamento da criança para a
resolução das tarefas cotidianas, “[...] o comportamento da criança alcança um nível mais
elevado, conseguindo uma relativa liberdade a respeito da situação que a atrai, as tentativas
impulsivas se transformam em um comportamento planificado e organizado” (VYGOTSKI,
2017, p. 29, tradução nossa).
Quando a fala egocêntrica passa a organizar o comportamento da criança, observamos
um processo denominado de intelectualização da fala e verbalização do pensamento
(VIGOTSKI, 2001). Isso significa que a fala egocêntrica é uma condição transitória para a
internalização do pensamento, que em uma etapa posterior do desenvolvimento passa ao plano
intelectual interno. Basicamente, na idade pré-escolar a fala passa a ser a forma pela qual a
criança pensa.
Essa forma de “pensamento” do pré-escolar, além de ser um marco para a internalização
das funções psicológicas superiores, auxilia no desenvolvimento e manejo dos signos e
consequentemente no desenvolvimento do plano simbólico/abstrato. A fala egocêntrica,
premeditada às ações da criança, organiza a atividade desenvolvida em operações e com isso se
originam as primeiras formas de planejamento. Essa é gênese do desenvolvimento do plano
simbólico e das relações mais desenvolvidas que a criança irá estabelecer com a linguagem em
períodos posteriores (VYGOTSKI, 2017).
Descrevemos neste tópico as questões essenciais do desenvolvimento infantil (do
primeiro ano à idade pré-escolar). No próximo tópico faremos alguns apontamentos sobre o
TEA e desenvolvimento com base no enfoque Histórico-Cultural.
70
Com base nas discussões expostas até o momento, neste tópico apresentaremos algumas
reflexões sobre PHC e o TEA.
Vigotski (2004) afirma que uma das formas para o desenvolvimento da psicologia geral
estava no estudo das “patologias”, pois a partir da compreensão do desenvolvimento complexo,
era possível entender os aspectos gerais do desenvolvimento típico. No ano de 1930, duas linhas
principais de pesquisa da ciência psicológica soviética foram descritas: a genética e a
patológica. Considerando por este ponto, é possível definir que o TEA engloba essas duas
linhas, pois envolve alterações presentes no início do desenvolvimento. Destaca-se que não há
produções sobre a temática, a partir dos autores clássicos e há poucas pesquisas atuais com base
no enfoque histórico-cultural (CASTRO, 2017), contudo, como a pista central atual para o TEA
está no desenvolvimento (RIVIÈRE, 2007), firma-se um caminho interessante para reflexão
dessa temática.
Retomando os sintomas essenciais do TEA, Wing (1991) realizou uma síntese com as
principais descrições de Kanner e Asperger. Os comprometimentos estavam nas interações
sociais “Asperger descreveu como suas crianças (pacientes), ‘tocariam estranhos como se
fossem móveis. ” (p. 96); isolamento social e pouco interesse em sentimentos e ideias de outras
pessoas (egocentrismo); a utilização da linguagem nas relações sociais de modo idiossincrático
e pouco funcional, a troca de pronomes, a invenção de palavras e perguntas repetitivas;
imaginação pouco flexível, estereotipias em brincadeiras, fixação em alguns objetos; apego a
rotina; dificuldades em mudanças de tarefa; e déficits motores. Em relação ao quadro atual, o
DSM-5 apresentada dois critérios principais para o diagnóstico de TEA: a) Déficits persistentes
na comunicação social e na interação social em múltiplos contextos; b) Padrões restritos e
repetitivos de comportamentos, interesses e atividades. Em comparação às descrições dos
autores clássicos, vemos que há um padrão de classificação diagnóstico semelhante.
Como ponto de partida, observamos que no TEA possivelmente ocorre o
desenvolvimento deficitário das funções psicológicas superiores, ou seja, as características que
se desenvolvem apenas a nível social. Neste sentido, as relações interfuncionais entre as funções
que se modificam ao longo do desenvolvimento, não se organizam de modo esperado durante
os períodos iniciais, o que aparentemente resulta nas síndromes21 descritas.
21 O termo síndrome faz referência ao conceito de análise sindrômica de Luria (1981). O autor estuda o conjunto
de sintomas de uma lesão cerebral, e a partir desse conjunto de sintomas “localiza” as áreas cerebrais
comprometidas. Isso não faz uma alusão direta à análise do TEA, pois não se trata de uma lesão, entretanto quando
ocorre uma lesão no cérebro todo o sistema funcional do sujeito entra em colapso. Podemos ver que o TEA não é
um sistema funcional que entra em colapso, mas na realidade um sistema funcional que se forma de modo atípico
71
Diante do exposto, podemos levantar três eixos centrais para análise do TEA - a)
dificuldades de interação social; b) problemas no desenvolvimento da linguagem; c) os padrões
restritos de interesses e atividades. Com base nas discussões sobre o desenvolvimento,
aparentemente, o que se apresenta como um conjunto de sintomas, na realidade constitui uma
relação causal em cadeia. Isto significa, que em caso de dificuldades de interações sociais da
criança com o mundo, a relação entre linguagem e as atividades serão comprometidas como
consequência.
Outro fator que possivelmente pode surgir dessas dificuldades, são as estereotipias. As
dificuldades de comunicação e interação social, por exemplo em uma criança que não fala, pode
causar prejuízo no desenvolvimento das atividades gerais próprias para cada período, bem como
a unidade entre afetivo e cognitivo. Em outras palavras, não falar é diminuir o raio de atuação
da criança sobre sua situação social de desenvolvimento, e isso como consequência pode atrasar
ou mesmo produzir um desenvolvimento atípico das expressões emocionais e cognitivas.
Gerando assim, os comportamentos estereotipados.
Neste sentido, toda criança é um ser sociável por natureza, uma vez que o bebê é
estritamente dependente dos cuidados dos adultos. “Quando nasce um bebê, temos ali um
‘candidato à humanização’, um representante da espécie homo sapiens. ” (PASQUALINI,
2016, p. 70). A criança estabelece as primeiras formas de contato com o mundo social através
da comunicação emocional direta e entende a necessidade que estabelece com as pessoas à sua
volta. Entretanto, conforme descreve Vygotski (1997), sob qualquer circunstância de
deficiências, sejam elas físicas como cegueira ou surdez, ou mesmo deficiência intelectual
congênita, vemos a modificação dessa criança com o mundo, principalmente nas suas relações
sociais alteradas. Inclusive, a família possui papel principal como ponte de sociabilidade para
a criança na sociedade.
Essa alteração do desenvolvimento da criança com TEA prejudica o aprendizado do seu
caráter afetivo em relação às pessoas que a circundam. O papel dos adultos em seu cuidado e a
organização da comunicação emocional estão diretamente associadas às suas necessidades
elementares. Se os déficits se estruturam deste modo, as formas de aprendizagem espontâneas
do cotidiano, como a conversa da mãe com a criança, não se apresentam como vias efetivas de
desenvolvimento, quando comparamos com a dinâmica do desenvolvimento típico
(VYGOTSKI, 1997).
no início do desenvolvimento, deste modo a análise sindrômica nos auxilia a compreender as “causas imediatas”
deste desenvolvimento atípico.
72
Diante deste aspecto, um dos comprometimentos centrais, não incluído como critério
diagnóstico pelo DSM-5, é a linguagem. Castro (2017) explica que um desenvolvimento atípico
na linguagem, prejudica todo o sistema psicológico, que tende a ser formado na criança e
consequentemente seu desenvolvimento integral (desenvolvimento motor, inclusive). Isto
significa que quando o adulto fala com a criança, ele direciona sua atenção aos objetos, organiza
a percepção da criança para compreensão da cadeia de ações de uma determinada atividade e
serve como meio de comunicação da criança na sua apropriação dos conhecimentos do mundo
e dos objetos durante a primeira infância:
Nesse âmbito, pensa-se em casos de crianças com autismo, nos quais muitas vezes sua
atenção não se subordina às mesmas intensidades/forças de estímulos sensoriais, e,
assim, algumas vezes, pode não gerar reflexo de orientação como acontece nas
crianças com desenvolvimento típico. Reflete-se, portanto, que possivelmente quando
o adulto for chamar sua atenção para interagir, nomeando objetos e requisitando sua
participação na relação, provavelmente pode ter mais dificuldades em conseguir que
a criança direcione sua atenção para ele e que sustente um período de relação
compartilhada. Esse fato pode dificultar que o adulto consiga auxiliá-la a dirigir sua
própria conduta por meio da instrução verbal externa, e depois interna (autoinstrução),
o que implica na redução de oportunidades para a aprendizagem e formação da
linguagem interna (CASTRO, 2017, p. 34).
73
O que podemos inferir com relação ao TEA é que aparentemente um dos marcos
deficitários é a passagem da ação objetal manipulatória para os jogos de papéis. É um fato que
a maior dificuldade no TEA, não é na relação com os objetos, como consta nas descrições de
Kanner e Asperger, mas sim na compreensão das relações sociais.
Neste sentido, Elkonin (2017) afirmou que a periodização do desenvolvimento, segue
duas regularidades gerais: a primeira, na relação criança e adulto/social, que significa que nas
atividades guia de comunicação emocional direta e nos jogos de papéis, a criança aprende,
principalmente os motivos de ordem social, as normas e relações entre as pessoas, o sentido da
atividade humana e seus objetivos e a assimilação dos objetos - os marcos desse período são o
pós-natal e a idade pré-escolar. A segunda regularidade condiz com a relação criança/objeto
social, a criança aprende, então, os procedimentos socialmente elaborados de ação com os
objetos (uso dos instrumentos e ulterior dos signos) - o marco deste período é a primeira
infância com a ação objetal manipulatória como atividade principal.
Vemos então que no período pós-natal e a idade pré-escolar, se apresentam os pontos
de maior dificuldade de desenvolvimento das crianças diagnosticadas com TEA. Há
dificuldades na compreensão das normas e relações sociais e a hierarquização dos motivos de
ordem social. Deste modo, podemos ponderar que um comprometimento nas relações sociais
da criança com TEA, produz outros déficits que se expressam na linguagem e na restrição de
interesses e atividades.
Além dos aspectos gerais sobre os déficits, apresentados no TEA, outro fator que
devemos destacar é a situação social do desenvolvimento dessas crianças (FACCI; EIDT;
TULESKI, 2006). Isso significa, que a promoção do desenvolvimento é justamente mediada
pelas pessoas e a sociedade da qual ela está inserida. Neste sentido, as possibilidades ou mesmo
impossibilidades de desenvolvimento não estão na criança, mas sim no que pode ser
proporcionado a ela, enquanto a apropriação do desenvolvimento cultural, da inserção deste
sujeito em um ciclo de vida comum e a educação adequada para o desenvolvimento, o que
compensa os déficits (VYGOTSKI, 1997).
Vygotski (1997) afirma que as deficiências, em um primeiro momento, não são
reconhecidas pelas crianças. Assim, uma criança que nasce cega não percebe a ausência de
visão, o que faz com que ela perceba que sua condição são as próprias impossibilidades de viver
em uma sociedade que não abarca formas para o seu desenvolvimento. “As consequências
sociais do defeito acentuam, alimentam e consolidam o próprio defeito. Neste problema não
74
existe aspecto algum onde o biológico pode ser separado do social. ” (VYGOTSKI, 1997, p.
93, tradução nossa).
Algumas reflexões expostas como a condição de superação das barreiras biológicas,
através das compensações e das vias colaterais do desenvolvimento, serão melhor discutidas no
terceiro capítulo.
Em síntese, os apontamentos realizados neste tópico tiveram uma finalidade reflexiva,
no sentido de compreender os déficits do desenvolvimento presentes no TEA. Esses déficits
possivelmente têm origem no desenvolvimento social atípico. Em segundo lugar, a análise da
síndrome é causal, pois não estabelece as relações sociais que acarretam prejuízo na formação
dos sistemas psicológicos de modo global, em outras palavras, os diversos comportamentos
fazem parte de um conjunto de atrasos do próprio desenvolvimento que não podem ser
analisados de forma isolada; e em terceiro lugar, a superação e melhora das condições
deficitárias, devem ocorrer por via de relações sociais que permitam que o sujeito seja
compreendido para além do aspecto negativo de sua “deficiência”.
75
3. O QUE A PSICOLOGIA HISTÓRICO-CULTURAL TEM A DIZER SOBRE OS
NEURÔNIOS ESPELHO E SUA HIPÓTESE DE EXPLICAÇÃO ETIOLÓGICA DO
TRANSTORNO DO ESPECTRO AUTISTA?
Nesta sessão iremos resgatar as discussões dos capítulos anteriores com o intuito de
produzir uma síntese a respeito de toda temática descrita até o momento. Para isso, o capítulo
será divido em duas partes: 1) Analisando a hipótese dos Neurônios Espelho como etiologia do
Transtorno do Espectro Autista: o que a Psicologia Histórico-Cultural tem a dizer? Nesta
primeira parte abordaremos os principais conceitos levantados com base nos déficits dos
Neurônios Espelho e sua relação com o TEA, a partir da concepção de desenvolvimento da
Psicologia Histórico-Cultural e de pesquisadores que partem de uma concepção crítica acerca
da disfunção do SNE; 2) Os Neurônios Espelho apresentam saídas metodológicas para
problemas ontológicos? Nesta segunda parte serão analisadas as relações entre neurônios
espelho, cérebro e comportamento, e quais as possibilidades e impossibilidades de “diálogo”
com a PHC.
76
Uma das primeiras críticas é sobre as questões metodológicas das pesquisas que visam
investigar a hipótese das disfunções do SNE. Hamilton (2012) analisou 25 artigos empíricos,
com diversas técnicas de exames médicos. Uma das investigações criticadas são os exames de
EEG (eletroencefalografia) propostos inicialmente por Oberman et al. (2005), conforme
exposto no primeiro capítulo. Essa técnica verificava a forma de ocorrência da supressão das
ondas mu em sujeitos diagnosticados com TEA, caso não ocorresse a supressão, problemas
funcionais seriam detectados.
Neste sentido, Hamilton (2012) afirma que a mensuração das ondas mu não era efetiva
para localização dos SNE. Isto significa, que outras áreas do cérebro, além das avaliadas, podem
ter influenciado os resultados, o que caracteriza uma mensuração pouco acurada da atividade
do SNE. Os estudos que reproduziram essa metodologia apresentaram resultados mistos, o que
torna a hipótese da não supressão do ritmo mu em indivíduos diagnosticados com TEA, frágil
em evidências. Outras metodologias que investigaram de forma indireta a função do SNE como
eyetracker (movimento de olhos), TMS (Estimulação Magnética Transcraniana), MEG
(Magnetoencefalografia) e EMG (Eletromiografia), também apresentaram resultados mistos e
mostraram pouca eficácia na localização do SNE. Deste modo, poucas evidências concretas
foram apresentadas (HAMILTON, 2012).
Os exames de fMRI (ressonância magnética funcional) apresentaram uma clareza
maior de identificação de áreas que contém o SNE durante a resolução de tarefas cognitivas,
apesar disso “[...] estudos estruturais de ressonância magnética mostram diferenças sutis entre
cérebros neurotípicos e de autistas em estrutura e conectividade que parecem ser amplamente
distribuídas e não são específicas do sistema de neurônios espelho. ” (HAMILTON, 2012, p.
100, tradução nossa). Conclui-se, ainda, que a disfunção do SNE não se apresenta como eixo
principal dos déficits descritos no TEA (HAMILTON, 2012).
Hickok (2014) pressupõe que a disfunção do SNE para explicação etiológica do TEA é
insustentável, além de corroborar com as proposições de Hamilton (2012), o autor tece críticas
centrais a todas as funções que os neurônios espelho são responsáveis, dentre elas, a imitação e
sua relação com a teoria da mente.
Segundo Willians et al. (2001), Iacoboni e Dapretto (2007), Iacoboni (2009a), a
imitação é um dos déficits centrais no TEA, que tem como causa direta a hipótese da disfunção
do SNE. Destaca-se que a imitação tem uma estreita relação com a teoria da mente e a empatia.
Para esboço de uma crítica às disfunções do SNE e sua relação com a imitação, devemos
retomar qual a sua principal função. Para Rizzolatti e Fogassi (2014), Rizzolatti e Sinigaglia
77
(2016), o SNE tem como função captar as informações sensoriais relativas às ações e emoções
de outros sujeitos, transformando-as em representações motoras próprias do indivíduo que
recebe as informações sensoriais. Neste sentido, ao nos apropriarmos das ações de outros, os
neurônios espelho codificam essas ações e, com base nessas informações, podemos inferir os
objetivos e metas das ações observadas e consequentemente da intenção por trás das ações de
outros. O SNE também pode cumprir com a função de planejamento e compreensão destas
ações (RIZZOLATTI; CRAIGHERO, 2004). Com base nessa afirmação, desenvolveram a
hipótese de que o SNE compreende parte das redes responsáveis pela imitação em símios e
humanos (IACOBONI, 2005; IACOBONI, 2009a). Na questão do TEA, vemos que o possível
déficit compromete a forma como os sujeitos transformam essas informações em
representações próprias. Deste modo, as emoções, a compreensão dos estados emocionais e a
condição inata prevista na teoria da mente estão comprometidos (IACOBONI; DAPRETTO,
2007; IACOBONI, 2009a).
Em oposição a essa tese, Hickok (2014) argumenta, com base nos trabalhos de Antonia
Hamilton, Morton Gernsbacher e Cecília Heyes, que na realidade não existe “disfunção”
significativa na imitação em sujeitos diagnosticados com TEA.
[...] há várias descobertas recentes sugerindo imitação intacta no autismo, que não são
facilmente sistematizadas. Por exemplo, indivíduos com autismo mostram um efeito
de imitação automática aprimorado e efeitos normais de interferência ao observar uma
ação incompatível. Além disso, crianças com autismo podem executar uma variedade
de tarefas de imitação corretamente quando são explicitamente instruídas a imitar.
Esses resultados não são compatíveis com a proposta de disfunção dos neurônios
78
espelho de que crianças com autismo têm uma dificuldade fundamental em combinar
as ações do eu e do outro (SOUTHGATE; HAMILTON, 2008, tradução nossa).
Para fortalecer e embasar a crítica sobre a disfunção do SNE e a imitação, podemos citar
como Temple Grandin, uma das autistas mais reconhecidas mundialmente, que explica seu
modo de “aprender a desenhar” através da observação. Sacks (2015) descreve:
[...] ela não sabia que podia desenhar, fazer projetos, até completar 28 anos, quando
conheceu um desenhista e o observou fazendo plantas. “Vi como fazia”, ela me
contou. “Fui e comprei exatamente os mesmos instrumentos e lapiseira que ele usava
- uma Pentel HB com ponta de cinco milímetros - e comecei a fingir que era ele. O
desenho saiu por si mesmo e quando acabei não pude acreditar que era eu que o tinha
feito. Não precisei aprender a desenhar ou projetar, fingi que era David - apropriei-
me dele, do desenho e tudo o mais.”
Temple passa com frequência “simulações”, como as chama em sua cabeça:
“Visualizo o animal entrando na calha, de diferentes ângulos, diferentes distâncias,
aproximando-me ou abrindo o campo de visão, até o ponto de vista de um helicóptero
- ou transformo-me em animal e sinto o que é entrar na calha” (p. 267).
Obviamente o relato de uma pessoa diagnosticada com TEA não pode servir como base
para explicação geral dos processos imitativos, devido à heterogeneidade desta condição.
Entretanto, Temple destaca nossos argumentos e fortalece as reflexões da pesquisa - na citação
ela se “apropria de David” e no parágrafo seguinte, ela toma diversos pontos de vistas ao
“simular” as diferentes formas de pensar sobre as calhas e os animais - deste modo o
encadeamento e a compreensão destas ações estão “presentes” em Temple. Outro fator
importante, quando afirma que se apropria de David, ela toma o lugar do outro, ou seja, além
da possibilidade de compreensão das ações, ela aparentemente “consegue” se colocar no lugar
de David, mais especificamente o que é ser o David desenhista. Sendo assim, pelo menos nas
pesquisas citadas por Hickok (2014) e no relato de Temple não é possível afirmar que os déficits
imitativos estão presentes em todos os sujeitos com TEA com base na disfunção do SNE.
Hickok (2014) afirma que quando relacionamos a imitação como papel central para a
compreensão das ações e das emoções como parte da teoria da mente há um problema de lógica,
pois essa função está subordinada a outros processos cognitivos de ordem social, ou seja, ela
não é causa mas consequência da evolução cognitiva do homem:
79
porque eles não têm os sistemas cognitivos para tirar o máximo de imitação possível
como os humanos fazem (HICKOK, 2014, p. 475, tradução nossa).
O autor ainda explica que a imitação, embora tenha um caráter inato na espécie humana,
assim como em símios, não representa um sistema autônomo e imutável. Por exemplo, os
recém-nascidos podem apresentar uma capacidade de imitação, entretanto, com o
desenvolvimento, ela passa a um nível cada vez mais seletivo, devido à experiência da criança
com o mundo:
Neste sentido para a PHC, compreendesse que na realidade, o que torna o processo de
imitação cada vez mais refinado é justamente aqueles processos cognitivos advindos das
experiências sociais. Assim, longe de um módulo inato, a imitação se modifica ao longo da
experiência e do desenvolvimento.
Embora Hickok (2014) tenha pressupostos teóricos e filosóficos distintos da PHC, neste
ponto há concordância, pois a imitação além de marcar a transição no desenvolvimento infantil,
e isso serve para o TEA, tem como sua principal natureza, o social (VYGOTSKI, 2006). Não
concordamos com Hickok (2014) de que o cérebro humano é literalmente construído para
aproveitar o melhor da imitação, mas sim que apropriação da história humana e da cultura
moldam esse cérebro para tirar o melhor proveito desta capacidade (VIGOTSKI, 2004;
VYGOTSKI, 2012).
Observamos portanto, que ao descentralizar o papel da imitação como gênese do
desenvolvimento da teoria da mente e da empatia (IACOBONI, 2009a), os argumentos que
sustentam essas afirmações caíram como evidências da disfunção do SNE.
Para sustentar nossa argumentação, nos remetemos à revisão realizada por Heyes
(2018), com base em pesquisas com animais, bebês, adultos e robôs, tendo como objetivo
investigar os aspectos que determinam a empatia. Os resultados da pesquisadora apontam que,
ainda que a comunidade científica estabeleça a empatia como um mecanismo inato e herdado
filogeneticamente, as evidências mostram o oposto. Para a autora, a empatia é uma emoção
socialmente moldada e aprendida ao longo do desenvolvimento. Ela se forma por mecanismos
80
associativos que relacionam os estados emocionais exteroceptivos e interoceptivos,
principalmente na relação dos cuidadores com criança.
Heyes (2018) não nega o possível papel dos neurônios espelho na compreensão desses
processos, pois as emoções expressam mudanças motoras, contudo não são os neurônios
espelho que determinam o aprendizado do sentimento de empatia, mas a aprendizagem do
sentimento de empatia que determina como os neurônios espelho responderão aos estímulos.
Assim, para o desenvolvimento de aspectos da compreensão das emoções, o adulto é
imprescindível para esse processo. Por este ângulo, existem evidências atuais de que o outro
para o bebê é o principal centro psicológico (VYGOTSKI, 2006).
Hickok (2009) ainda argumenta que grande parte das disfunções do SNE para
explicação do TEA, são inferências de como os neurônios espelho nos símios podem
hipoteticamente ser a base para os neurônios espelho em humanos. Bem como, as disfunções
nestas células podem interferir em todos os complexos comportamentos deficitários no TEA
(OBERMAN et al., 2005).
O problema desta relação direta hipotética, foi a grande generalização da disfunção dos
neurônios espelho para uma série de outras condições distintas do TEA como, esquizofrenia,
obesidade, membros fantasmas, gagueira - e até em condições extremas eles aparentemente
possibilitam a compreensão das atitudes políticas (HICKOK, 2014).
Buscamos argumentar como a hipótese da disfunção do SNE como explicação para o
TEA é questionável. Contudo, um dos aspectos mais críticos para nós está em uma afirmação
descrita no primeiro capítulo que aparentemente indica, que a disfunção no SNE em sujeitos
com TEA é crônica.
Oberman et al. (2005) descreve: “A falta adicional de qualquer correlação significativa
entre a idade e a supressão das ondas mu também sugere que essa disfunção não é algo que
melhora ao longo da vida. ” (p. 195, tradução nossa), os autores chegaram a essa conclusão
devido à diversidade de idades (6 a 47 anos) dos participantes com diagnóstico de TEA. Essa
afirmação é contraditória, pois o TEA é considerado atualmente como um transtorno do
neurodesenvolvimento pelo DSM-5 e do desenvolvimento humano (RIVIÈRE, 2007), ou seja,
os sintomas iniciais estão presentes em períodos anteriores ao ingresso na vida escolar. O
próprio DSM-5 (APA, 2014) afirma que a gravidade dos sintomas podem variar a depender do
contexto e do tempo.
Não concordamos com o DSM-5 sobre o desenvolvimento se resumir ao
neurodesenvolvimento, pois, como observamos no segundo capítulo - o desenvolvimento
81
humano não se resume à maturação do cérebro, ele depende, inclusive, da possibilidade da
criança se apropriar da história social, por meio do convívio em sociedade, seja para o
desenvolvimento típico ou atípico (VYGOTSKI, 1997; VYGOTSKI, 2012). Contudo, o ponto
de partida do desenvolvimento é fundamental para compreendermos que o termo disfunção é
problemático para a análise do TEA, principalmente a disfunção de um sistema de neurônios
aparentemente responsável por comportamentos humanos complexos.
Por que o termo disfunção é problemático? Em primeiro lugar porque segundo Huang
(2017), a disfunção pode ser definida de dois modos, focal e global. Na focal, a disfunção pode
ter como gênese alterações estruturais, como tumores, lesões, traumas, malformações, entre
outros; a global pode envolver distúrbios tóxicos-metabólicos, inflamação difusa, câncer
disseminado, entre outros. O que há de comum nesses tipos de disfunção é que existe um
marcador biológico evidente, marcador esse não evidente na hipótese da disfunção do SNE.
Em segundo lugar, a palavra disfunção se refere a um mal funcionamento de um
determinado conjunto de células, nesse caso os neurônios espelho. Entretanto, quando
resgatamos a revisão de função proposta por Luria (1981), compreendemos que sob a
perspectiva das funções elementares presentes no cérebro, por exemplo, há uma lógica, pois de
fato há tecidos com funções específicas. Todavia, quando pensamos na complexidade das
funções responsáveis pelo SNE (compreensão das intenções, imitação e empatia), isso não se
mostra real, pois esse trabalho não pode ser realizado de modo isolado por apenas células
específicas, por três motivos: primeiro que os neurônios espelho não se diferenciam
morfologicamente de outros neurônios (OBERMAN; PINEDA; RAMACHANDRAN, 2007),
ou seja sua relação é funcional e não estrutural; segundo, existe uma porcentagem pequena de
neurônios espelho da área F5 em símios, como a mensuração dessas células em humanos ainda
não é clara, principalmente devido a utilização de exames indiretos (HICKOK, 2009), é
problemático, do ponto de vista lógico, atribuir comportamentos humanos complexos a uma
quantidade de células, provavelmente pequena, em nosso cérebro. O terceiro ponto, talvez o
mais delicado, é a afirmação de que “[...] disfunção não é algo que melhora ao longo da vida.
” (OBERMAN et al., 2005, p. 195, tradução nossa). Aparentemente, essa colocação encerra a
possibilidade de mudanças funcionais presentes no desenvolvimento humano, do ponto de vista
psicológico e principalmente da organização funcional que se forma no cérebro.
Diante do exposto, a condição de disfunção pode ser contínua? Bem como as relações
funcionais que o cérebro estabelece podem ser as mesmas? Aparentemente, a literatura atual
demonstra de maneira oposta à descrição de Oberman et al. (2015). Para ilustrar essa afirmação,
82
trabalharemos três exemplos, presentes nos trabalhos de Doidge (2015, 2016) e Fletcher-
Watson et al. (2014).
Doidge (2015), descreve dois casos, Jordan e Timothy. No primeiro caso, os sintomas
clássicos de TEA ocorreram após uma gastroenterite (infecção), quando ele tinha 18 meses. No
segundo caso, os sintomas de TEA surgiram aos 18 meses como uma forma de “regressão”, o
quadro apresentado pela criança era considerado grave pelos médicos. O que há de comum
nestes dois casos é que ambos foram expostos sobre uma intervenção denominada terapia da
escuta, de Paul Madaule. Após a intervenção, o quadro sintomatológico melhorou, Jordan se
formou e Timothy ganhou autonomia e transitou de uma classificação grave para leve
(DOIDGE, 2015).
O mesmo Doidge (2016) descreve que Lauralee, uma criança de oito anos com sintomas
clássicos de TEA (dificuldades de comunicação social, estereotipias e sensibilidade sensorial a
sons). Ao ser direcionada a uma intervenção pautada no método Fast ForWord durante oito
semanas, houve uma melhora considerável dos sintomas e os déficits de comunicação, por
exemplo, foram extintos.
Fletcher-Watson et al. (2014) realizaram uma revisão de 22 ensaios clínicos
randomizados, sobre as intervenções que tiveram como foco geral, a teoria da mente ou seus
subcomponentes imitação, atenção compartilhada e o reconhecimento das emoções. Apesar dos
autores concluírem que grande parte das questões metodológicas são problemáticas, foi
possível afirmar que os sujeitos que passaram pelas intervenções obtiveram efeitos positivos,
principalmente na aprendizagem das funções associadas à teoria da mente.
Não há como aprofundar em cada um desses estudos (DOIDGE 2015; 2016;
FLETCHER-WATSON et al., 2014), pois não é objetivo de nosso trabalho, contudo, esses
exemplos podem ilustrar como as intervenções expressam as possibilidades de superação e até
extinção de algumas manifestações do TEA. Neste sentido, os exemplos descritos mostram
como a disfunção do SNE é falha do ponto de vista comportamental, pois as intervenções
surtiram efeito, promovendo mudanças substanciais em quadros distintos de sujeitos com TEA.
Para a PHC, as intervenções utilizadas nos exemplos de Doidge (2015; 2016) e Fletcher-
Watson et al. (2014), expressam um conceito que Vygotski (1997) denominou de compensação.
Para compreendermos os processos compensatórios, devemos retomar brevemente alguns
aspectos do desenvolvimento, discutidos no segundo capítulo deste trabalho.
Como dito anteriormente, o desenvolvimento humano depende de uma série de fatores
externos aos sujeitos. De modo geral, a sociedade deve criar as possibilidades para que os
83
sujeitos se apropriem da história social (cultura), presentes em determinado período histórico.
Neste sentido, os aspectos culturais para além das relações sociais, são expressos a partir dos
produtos da cultura: os instrumentos e signos, que contêm em sua essência parte de processos
históricos cristalizados (VYGOTSKI, 2012).
O elo central da compensação está no que diferencia as funções elementares
(filogenéticas), das funções psicológicas superiores, diferença que podemos sintetizar de três
modos: a) as funções psicológicas superiores sintetizam a unidade entre natureza e cultura, o
que não significa a soma de dois elementos diferentes, mas que a cultura subordina os processos
naturais; b) todos os comportamentos socialmente desenvolvidos são mediados por
instrumentos e signos. Em síntese, os instrumentos agem sobre a realidade concreta criando a
possibilidade de alterá-la; já os signos, têm como principal característica o controle do próprio
comportamento (autocontrole da conduta) e do comportamento alheio, uma relação que se
estabelece entre os homens (social); c) a introdução de mediadores no psiquismo humano
alterou as formas que as funções psíquicas naturais se organizavam. Por exemplo, a memória
natural, quando se estabelece de modo direto, fica restrita às informações imediatas e às
estruturas inatas do cérebro. Contudo, quando inserimos uma via indireta, como um nó na ponta
do dedo, ou mesmo escrevemos em um papel para recordarmos de algo, alteramos o caminho
natural da memória. Essas novas conexões “instrumentais” das funções psíquicas, são formadas
por esses mediadores e alteram, em nível de córtex cerebral, a organização das conexões neurais
(VIGOTSKI, 2004).
Essas alterações se modificam ao longo do desenvolvimento humano. A organização do
cérebro de uma criança, não é a mesma que a do cérebro de um adulto, porém, isso não ocorre
de maneira espontânea, mas mediada pelos objetos da cultura e pela experiência do sujeito, a
partir de sua situação social do desenvolvimento (VIGOTSKI, 2018).
Com essa explicação, observamos que os aspectos compensatórios são as vias indiretas
do desenvolvimento humano. Vygotski (1997) descreveu, como isso ocorre, a partir dos estudos
de Binet sobre a memória. O pesquisador conseguiu diferenciar sujeitos que possuíam uma
memória acima da média, de sujeitos com uma memória mediana. O que diferencia nos dois
casos é que o primeiro possui as habilidades de reter uma série de informações de modo direto.
Já o segundo, consegue reter uma quantidade grande de informações, contudo, esses métodos
são indiretos, intelectualizados, o sujeito pensa, faz relações entre os estímulos mnemônicos e
outros neutros.
84
Vygotski (1997) enfatiza que as vias indiretas das funções psicológicas superiores são
regras do desenvolvimento:
Isso demonstra que o SNE é passível da influência direta da experiência humana em seu
contexto social. Contudo, nos artigos que utilizamos como base para a compreensão da
disfunção do SNE, aparentemente isso não é considerado no TEA.
O fato de que atualmente o TEA tem origem nos períodos iniciais do desenvolvimento,
é um indicativo positivo para a nossa análise, devido à possibilidade de relacionar o
desenvolvimento típico com o atípico. Podemos supor, com base nos exemplos de Doidge
(2015; 2016), Fletcher-Watson (2014) e Sacks (2015), com o caso de Temple Grandin, que
quanto mais precoce os processos compensatórios, maior a probabilidade de ganhos funcionais,
devido à própria habilidade de reorganização plástica do sistema nervoso central. O que pode
promover um melhor desenvolvimento das funções psicológicas superiores em sujeitos com
TEA.
Destacamos que para a PHC, a neuroplasticidade e a compensação são indissociáveis
nas intervenções. Entretanto, como os comportamentos sociais são o foco das mudanças
87
necessárias para o TEA, em última instância o que determina as mudanças neuroplásticas no
sistema nervoso são as compensações que devem ser pensadas de forma específica para o
sujeito atendido, tendo em vista que o desenvolvimento das funções psicológicas superiores
pode ter diversos caminhos (VYGOTSKI, 1997) e que cada sujeito opera de uma forma.
Um dos trabalhos com perspectiva interventiva baseada no déficit de neurônios espelho
e TEA, foi o de Vivanti e Rogers (2014), que mostrou-se relevante, pois os autores se
fundamentam na perspectiva desenvolvimental vigotskiana, e com isso apresentam um
posicionamento crítico com relação à disfunção do SNE. Salientando que compreendem que os
“déficits” do SNE podem ser provocados justamente pelas dificuldades de interação social
presentes no TEA, ou seja, o déficit ocorreria como consequência das dificuldades de interação
social/comunicação, assim, mais estudos são necessários para compreensão desta hipótese.
Em síntese, para a PHC, a hipótese da disfunção do SNE como explicação etiológica do
TEA se mostra insuficiente por três motivos: a) Não produzir evidências concretas devido a
suas metodologias e resultados mistos; b) Por reduzir processos complexos, como as emoções,
relações sociais, imitação e aprendizagem a processos motores e neurais, o que indica um
reducionismo conceitual desses fenômenos; e c) Não considerar os aspectos do
desenvolvimento cultural da criança diagnosticada com TEA, uma vez que para a PHC,
biológico e social são indissociáveis, inclusive, em última instância, a cultura determina o curso
do desenvolvimento biológico.
Luria (1992) destaca que “Se alguém quer estudar os fundamentos cerebrais da atividade
psicológica, deve estar preparado para estudar tanto o cérebro quanto o sistema de atividade,
tanto quanto o permitir a ciência contemporânea. ” (p. 176). Neste sentido, para a PHC todo o
tipo de deficiência ou “desvio” do desenvolvimento representam um processo vivo. Isso
significa, que além de um cérebro “disfuncional” há um sujeito que pode responder de modo
positivo quando sua situação social do desenvolvimento possibilitar que isso ocorra. Mesmo
que em condições desfavoráveis de seu aparato biológico. O grande diferencial está no sujeito
e quais as possibilidades que seu contexto social oferece de superação de sua condição.
Prevejo que os neurônios espelhos farão pela psicologia o que o DNA fez pela
biologia: eles fornecerão uma estrutura unificadora e ajudarão a explicar uma série de
habilidades mentais que até agora permaneceram misteriosas e inacessíveis às
experiências (RAMACHANDRAN, 2000, online, tradução nossa).
88
A afirmação emblemática de Ramachandran (2000) na citação, enfatiza que a pesquisa
com os neurônios espelhos tem recebido nos últimos anos. De 2000 à 2010, segundo Hickok
(2014), as publicações têm dobrado a cada ano, passando de quatro para 135 trabalhos, nos
respectivos anos citados.
Conforme descrito no primeiro capítulo, os neurônios espelhos são associados a uma
série de comportamentos humanos complexos como linguagem, imitação, compreensão das
emoções, entendimento das intenções por trás das ações, desenvolvimento da
intersubjetividade, entre outros (GALLESE; GOLDMAN, 1998; RIZZOLATTI; AIRBIB,
1998; RIZZOLATTI; FOGASSI; GALLESE, 2001; IACOBONI, 2005; 2009a; 2009b; FABRI-
DESTRO; RIZZOLATTI, 2008; RIZZOLATTI; SINIGAGLIA, 2016). O interessante de todas
as habilidades citadas, é que essas são traduzidas pela atividade dos neurônios espelhos em
informações motoras, que são apropriadas, a partir do outro (RIZZOLATTI; SINIGAGLIA,
2016).
É interessante como os autores Rizzolatti e Airbib (1998) e Ramachandran (2014),
descrevem o SNE do ponto de vista evolutivo, como o auge do desenvolvimento cognitivo
presente no homem - em outras palavras, essa rede neural foi a responsável pelo salto
ontológico.
Ramachandran (2014), em sua obra O que o cérebro tem a dizer: desvendando os
mistérios da natureza humana, evidencia que os neurônios espelhos tiveram um papel decisivo
na transformação do natural em cultural. O quarto capítulo da obra citada Os neurônios que
moldaram a civilização, destacando o posicionamento do autor quanto à importância dessas
células nervosas:
Sugiro que houve uma mudança genética no cérebro, mas ironicamente essa mudança
nos libertou da genética, aumentando nossa capacidade de aprender uns com os outros.
Essa habilidade única liberou nosso cérebro de seus grilhões darwinianos, permitindo
a rápida difusão de invenções singulares – como fazer colares com conchas de cauri,
usar fogo, construir ferramentas e abrigo, ou de fato até inventar palavras novas. Após
6 bilhões de anos de evolução, a cultura finalmente decolou, e com ela as sementes da
civilização foram plantadas. A vantagem desse argumento é que não precisamos
postular mutações separadas ocorrendo quase simultaneamente para explicar a
coemergência de nossas muitas e únicas habilidades mentais. Em vez disso, a maior
sofisticação de um único mecanismo – como a imitação e a dedução de intenções –
poderia explicar a enorme discrepância comportamental entre nós e os macacos (p.
116).
Impõe-se uma ressalva. Não estou afirmando que neurônios espelho sejam suficientes
para o grande salto ou para a cultura em geral. Estou dizendo apenas que eles
desempenharam um papel decisivo. [...] Nesse aspecto, poderíamos dizer que
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neurônios espelho desempenharam na evolução do hominínio 22 primitivo, o mesmo
papel que a Internet, a Wikipédia e os blogs desempenham hoje (p. 117).
É intrigante que no início deste mesmo capítulo o próprio autor problematiza que o
cérebro atingiu seu auge evolutivo há 300 mil anos, contudo os comportamentos cognitivos
reconhecidos como tipicamente humanos surgiram por volta de 75 mil anos. Neste sentido,
como observamos na citação, o que explica o hiato entre um período e outro é o surgimento dos
neurônios espelho e seu papel decisivo, por exemplo na aprendizagem pela imitação e
linguagem (RAMACHANDRAN, 2014).
Na visão de Ramachandran (2014) observamos a presença da dicotomia entre natureza
e cultura. O autor se questiona porque o desenvolvimento dos aspectos cognitivos superiores
no homem tem origem a partir de mudanças tecnológicas como a invenção de ferramentas. Ou
seja, aparentemente o autor sugere que as mediações produzidas pelo homem têm alguma
relação com seu desenvolvimento cognitivo, contudo, como observamos na citação, a saída
para o autor foi delegar esse salto às mutações biológicas.
Com base na análise que propomos neste trabalho, que parte do materialismo histórico-
dialético enquanto pressuposto, observamos que a problemática do neurocientista está
direcionada sobre a perspectiva cartesiana/positivista. Neste sentido, não se trata de que forma
o organismo produziu a cultura, mas sim sobre como a cultura possivelmente surge das
condições biológicas - essa resposta não está unicamente no cérebro ou na atividade externa,
mas na unidade entre esses processos complexos
Lukács (2013) descreve que as investigações propostas pelos primeiros darwinistas na
busca pelo elo perdido entre homem e símios foi infrutífera, pois suas formulações
comparativas do ponto vista biológico apresentavam apenas estágios anteriores de transição,
não o salto ontológico. Do mesmo modo, as investigações psicofisiológicas que indicam as
diferenças entre esses organismos, desta maneira expressam apenas os estágios transitórios.
Como ilustração desta última afirmação, podemos relembrar que os neurônios espelhos foram
descobertos no cérebro do macaco, mais especificamente na área F5 que é considerada
homóloga à área de Broca em humanos (DI PELLEGRINO et al., 1996; RIZZOLATTI;
AIRBIB, 1998).
Para o filósofo húngaro, a saída para compreendermos o real salto entre o nível orgânico
e o ser social está na atividade produtora do novo, denominada de trabalho:
Uma tribo que vaga pela água, eles aprendem a nadar antes de aprender a andar e
passam mais da metade da vida em barcos no mar aberto, onde frequentemente
nascem e morrem. Sobrevivem da coleta de moluscos e pepinos-do-mar. As crianças
mergulham até 9 metros de profundidade, e colhem sua comida, inclusive pequenos
bocados de vida marinha, e vêm fazendo isso há séculos. Aprendendo a reduzir o
batimento cardíaco, eles podem ficar debaixo da água duas vezes mais tempo do que
a maioria dos nadadores. Fazem isso sem nenhum equipamento de mergulho. Uma
tribo, a sulu, mergulha mais de 20 metros para coletar pérolas. [...] A pesquisadora
sueca Anna Gislén estudou a capacidade dos ciganos do mar de ler placas debaixo da
água e descobriu que eles eram duas vezes mais habilidosos do que as crianças
europeias. Os ciganos aprenderam a controlar o formato de seus cristalinos e, mais
importante, a controlar o tamanho das pupilas, contraindo-as em 22% (p. 231).
Com base nesta citação, observamos que as diferenças biológicas presentes nesta tribo
em comparação com a sociedade europeia, não está no cérebro ou mesmo na hereditariedade,
mas na atividade denominada trabalho, que é culturalmente desenvolvida por esse modo de se
organizar socialmente. Com esse exemplo (atual), podemos compreender que o hiato temporal,
que Ramachandran (2014) estabelece entre o “amadurecimento” biológico do cérebro e o
surgimento das formas culturais de comportamentos, pode ser respondido pela chave heurística
do trabalho, enquanto produtor e construtor ontológico do ser social (LUKÁCS, 2013). Ou seja,
podemos inverter a lógica proposta pelo neurocientista - ao invés da afirmação de que os
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neurônios espelho moldaram nossa civilização, compreendemos como a civilização moldou os
neurônios espelho - e essa hipótese está no trabalho enquanto categoria ontológica.
Lewontin (2010) destaca que a dicotomia entre ambiente e organismo tem causado
problemas também na própria forma como a biologia compreende a vida. Ele é categórico em
afirmar que, mesmo em nível orgânico (p.e. animais), não existe uma ação restrita adaptativa
desses organismos em seu ambiente. Isso significa que organismos podem mudar ecossistemas
inteiros, da mesma forma que o ambiente pode atuar sobre eles. A exemplo, a introdução de
lobos no parque de Yellowstone, que estavam ausentes a mais de 70 anos, mudou não só os
níveis tróficos, como a diminuição e alteração de comportamentos dos alces, que
consequentemente deslocaram-se de ambiente devido ao comportamento predatório dos lobos
- mas essa inserção dos lobos alterou toda a fauna, a flora e a geografia do local, aumentando
consequentemente toda a diversidade da vida neste “novo” ecossistema (MONBIOT, 2014).
Deste modo, só podemos descrever o ambiente de um determinado organismo, a partir
de sua atividade (LEWONTIN, 2010), quando isolamos a atividade do organismo sobre o meio,
reduzimos não só a descrição ambiental, como o reconhecimento do próprio organismo.
Neste sentido, não queremos equiparar nível orgânico a nível social, contudo se a
atividade é vital para compreender os organismos simples - a atividade humana ganha um grau
qualitativamente distinto na análise do conjunto dos comportamentos sociais. Ou seja, as
funções atribuídas como responsáveis pelos neurônios espelho não estão exclusivamente
dependentes da estrutura morfológica, mas do caráter histórico-social e cultural da atividade
humana.
Hickok (2014) afirma que a popularidade de estudos sobre o papel dos neurônios
espelho tem aumentado, devido a um motivo - a simplicidade da explicação. O pesquisador
argumenta que a simplicidade não é um problema, na realidade é um ponto forte da ciência
contemporânea. Contudo, uma série de comportamentos associados à atividade dos neurônios
espelho é inferência direta de estudos com símios, o que torna esse tipo celular interessante,
mas neurônios espelho em símios e humanos funcionam de modo diferente, mesmo pertencente
a áreas homólogas.
Outro ponto a ser discutido acerca do SNE, é sua aparente relação com a doutrina
localizacionista. Conforme discutimos ao longo do segundo capítulo, a doutrina localizacionista
era a crença de que existiam áreas específicas e estreitamente localizadas no cérebro que
representavam de modo isolado e simplificado as funções psicológicas (LURIA, 1981).
92
As tentativas de explicações reducionistas não são recentes, Vigotski (2004) destaca que
os pesquisadores de sua época o criticaram devido à:
93
Para Luria (2002), os “sistemas cognitivos” representam as funções psicológicas
superiores, que ao longo da apropriação da história social são reorganizadas com base em
conexões extracerebrais:
A história social une os nós que produzem novas correlações entre certas zonas do
córtex cerebral, e se o uso da linguagem e seus códigos fonéticos criam novas relações
funcionais entre as áreas temporal (auditiva) e cinestésica (motor-sensorial) do córtex,
então este é o produto do desenvolvimento histórico que depende de “conexões
extracerebrais” e da formação de novos “órgãos funcionais” no córtex cerebral
(LURIA, 2002, p. 22, tradução nossa).
O motivo de destacarmos o método genético proposto por Vygotski (2012), ao fim deste
capítulo, ilustra que o posicionamento da PHC sobre a hipótese da disfunção de funções
psicológicas controladas pelo SNE como um equívoco teórico/filosófico e metodológico, que
indicam a necessidade de uma reformulação. Reformulação essa que pode seguir como
95
indicativo futuro para as Neurociências e os estudos do TEA, os caminhos do método genético
proposto pela PHC, os estudos de Luria e a relação entre cérebro e comportamento humano
podem agregar proposições positivas para uma nova forma de abordar esses problemas.
Devemos salientar que as questões aqui abordadas necessitam de outras pesquisas que
busquem detalhar a temática sob a perspectiva da PHC e permitir a apropriação de modo crítico
do que as Neurociências têm produzido ao longo desses anos, aparentemente os neurônios
espelhos se destacam como um caminho de investigação desafiador e interessante.
96
CONSIDERAÇÕES FINAIS
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