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Psicanálise na Vida Cotidiana

Psicanálise na Vida Cotidiana


O que o feminicídio aponta do
horror ao feminino
Thaís Limp Silva
Luciano Pachêco de Lacerda
Em março de 2015, a então presidenta do Brasil, Dilma
Rousseff sancionou a Lei 13.104 alterando o Código Penal
brasileiro para prever o ferninicídio como um qualificador
do crime de homicídio e incluí-lo na lista de crimes hedion-
dos. No decreto, o ferninicídio é definido como um crime
"contra a mulher por razões da condição de sexo feminino".
Quatro anos após essa mudança na legislação, em 8 de mar-
ço de 2019, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), divulgou
estatísticas que apontam que entre 2016 e 2018 houve um au-
mento de 34% nos crimes de feminicídio registrados. Essa
cifra computa uma média de doze mulheres assassinadas por
dia no ano de 2018, uma a cada duas horas. Nos tribunais,
o número de processos pendentes que envolviam violência
doméstica passaram de um milhão {Bandeira, 2019). Tama-
nha quantidade de mulheres assassinadas não pode deixar
de provocar os psicanalistas a lerem esse fenômeno.
Como explicar esse rápido aumento dos casos de fe-
minicídio mesmo após a mudança na lei e a introdução
gradual de campanhas educativas para evitar a violência
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Psicanálise na Vida Cotidiana Psicanálise na Vida Co,t'd•1ana
mulheres. Nosso modo de tratar a qu tã _
contra a mulher? Num primeiro momento, pode-se supor . es o nao passa por uma
tentativa de apagamento das diferenças
que tenha havido um aumento dos registros após a tipifica- entre os sexos já u
acompanhamos a assertiva freudiana d . ' q e
ção penal - estimativa que ainda pode ser submensurada . . . e que as diferenças
-, mas é fato que apenas a adoção de regras rígidas não é anatôlillcas unphcam consequências psi'qu· S
icas. e também
capaz de conter essa forma de violência. Nem mesmo é pos- pensamos com Lacan, a assimetria está present .
e nas intera-
sível afirmar que a educação, sozinha, seja a solução para o ções simbólicas que caracterizam a experiênci·a h
umana,na
problema, visto que esse fenômeno está presente em pra- qual a presença de uma alteridade é algo indispensável. Na
ticamente todos os meios e círculos culturais, até mesmo psicanálise de orientação lacaniana, o ser mulher ou O
ser
naqueles que se propõem a ser educativos. homem não é tomado como uma questão de expressão de
Além disso, chama atenção a simplicidade com a qual gênero ou uma simples partição anatômica, mas trata-se de
a legislação define esse crime, levando em conta apenas a uma posição sexuada que implica modos distintos de gozo.
condição de sexo: masculino/feminino. O fenômeno da Nesse sentido, destaca-se que a questão ultrapassa
violência contra a mulher acompanha a própria história um horror à mulher, enquanto fêmea da espécie homo sa-
da humanidade, não podendo ser tratado apenas como piens, e se estende a um horror ao feminino. Isso pode ser
resultado de uma suposta inclinação instintual do animal melhor compreendido a partir da afirmação de Alvarenga
humano e nem sequer é possível explicá-lo sem levar em (2015): "A violência contra as mulheres ataca nelas o hétero,
conta seu caráter multifatorial e transversal (Bassols, 2012) . a diferença, e por isso pode se manifestar também contra
Bassols (2012) indica que, na psicanálise, podemos os homens homossexuais" (p. 3). Nesse caso, o que está em
pensar a universalidade da violência contra a mulher a jogo é o ponto do feminino como campo de gozo diverso.
partir de dois fatores: a diferença sexual, que implica dissi- Assim, trabalharemos a partir da seguinte pergunta:
metria e não complementaridade entre os sexos, e a agres- por que tamanho horror ao feminino? Tentaremos res-
sividade constitutiva do sujeito. Desse primeiro fator, deri- ponder a isso por meio de dois eixos: 1) O horror à falta
vamos nosso ponto de investigação: o horror ao feminino - uma perspectiva freudiana; 2) O horror ao inapreensível
como advindo da dissimetria entre os sexos. do feminino - o não-todo de Lacan. DeS t acamos que não
É preciso destacar que a psicanálise considera a expe- - complexa como essa à ló-
. uma questao
buscamos reduzrr
riência subjetiva da sexualidade de modo diferente que o
gica inconsciente, mas compreender como a sexuação se
campo jurídico ou o social e político, que buscam a simetria
apresenta como fator transversa1a, exp eriência humana em
como forma de sanar a questão da violência voltada para as
qualquer cultura e sociedade.
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a todos os sexos e sua primeir _ Cot,diana
O horror à falta - as contribuições freudianas a reaçao a este
negação. O menino acredita qu encontro é a
e O 6rgao da col · h
Freud eleva a questão da mulher à condição de conti- da irmãzinha está lá e ainda irá egum a ou
crescer. Somente d 15 .
nente obscuro em sua teoria, ao indicar que há algo sobre o quando ele não puder mais evitar c . epo ,
• A • om suas teorias a an ús-
campo feminino que permanece inassimilável. Ele explica tia que a ausenc1a de pênis lhe desp rt g
. e a, por temer perder
a partição sexual a partir dos complexos de Édipo e de cas- seu própno, que a falta de pênis na m lh
. u er passará a ser
tração e localiza que nessa partilha a menina sai com uma considerada como consequência de uma cas t raçao. _ Contu-
ferida narcísica derivada do penisneid, da inveja do pênis do, Freud adverte que o menino não generaliza tão rapida-
(Freud, 1933/2018). mente a todas mulheres sua observação da falta de pênis.
Em 1923, Freud faz uma importante correção na sua A criança acredita que "teriam perdido o genital apenas as
teoria da sexualidade infantil ao indicar que na organiza- pessoas indignas do sexo feminino, que provavelmente se
ção genital infantil, o que está em jogo não é o primado tornaram culpadas como ela, pelas moções proibidas. Po-
genital, mas o primado do falo, pois "para ambos os sexos, rém, pessoas respeitáveis como sua mãe conservariam o pê-
apenas um genital, o masculino, possui um papel" (Freud,
nis por mais tempo" (Freud, 1923/2018, p.241).
1923/2018, p.239). Não se trata de um não reconhecimento
A certificação de que a mãe também perdeu o pênis
da diferença entre homens e mulheres, e sim de que essa
só se efetiva quando o menino se depara com a questão de
diferença não é posta a partir de uma distinção dos genitais.
onde vêm os bebês, pois constata que apenas as mulheres
O menino, Freud (1923/2018) adverte que falta conhe-
podem dar à luz às crianças. Ainda assim, o menino cons-
cimento sobre o processo nas meninas, supõe a todos os
trói complicadas teorias que explicam a troca do pênis pelo
seres vivos um órgão como o seu.
Essa parte do corpo facilmente excitável, filho; sabendo que a criança fica no ventre, supõe que são
alterável, tão rica em sensações, ocupa em geradas no intestino e nascem pela única saída conhecida
alto grau o interesse do menino e incessan-
temente coloca novas tarefas à sua pulsão dali. Desse modo, "o genital feminino nunca é descoberto"
de investigação. Ele quer vê-lo também em (Freud, 1923 /2018, p.241) enquanto um órgão diferente, mas
outras pessoas, para compará-lo com seu
próprio e comporta-se como se tivesse uma como um igual ao seu que fora perdido.
vaga ideia de que esse órgão poderia e deve- Do lado da mulher, portanto, permanece uma falta .
ria ser maior (p. 239).
Freud (1923/2018) afirma que "é sabido o quanto a deprecia-
Ao longo de suas investigações sexuais, o menino , h d" ·ção à homosse-
ção da mulher, o horror a mui er e a 1spos1 • .
acaba por constatar que o seu precioso órgão não é comum xualidade derivam da convicção final sobreª falta de pems
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na mulher" (p. 2 4o-241, itálico nosso).
mesmo às custas de seu total desaparecimento.
. ~si~, no final da fase genital infantil tem-se apenas Na direção da afirmação de Freud (1912/2018), na se-
ass1m1laçao de um único sexo, o masculino, pois a antítese
gunda parte de suas "Contribuições para a psicologia da
e entre a posse do genital masculino e sua perda pela castra-
vida amorosa", de que o homem "só desenvolve sua plena
ção. Somente na puberdade a polaridade sexual passará a
potência, quando tem diante de si um objeto sexual ~eg~a-
ser entre masculino e feminino. Mas, ainda assim, a mulher
dado" (p.145}, o abusador escora sua integridade ps1qU1ca
continua marcada por um menos, pela ausência do falo.
na disjunção entre sua condição de sujeito poderoso e da
Miller (2016} esclarece que essa relação da mulher
com a marca de menos "se trata de uma ideia, é uma ideia parceira como objeto degenerado.
que se enraíza na comparação imaginária dos corpos" (p. ) Essa disjunção seria, então, causada pela impossibili-
4
que tem como consequência o fato do sexo masculino ser dade de simbolização do ponto de falta . Desse modo, como
pensando como completo e o sexo feminino ser "marcado afirma Bassols (2012), um homem encontra na violência
por uma irremediável incompletude" (p.5} . Desse modo, um modo de golpear no outro, a falta que não conseguiu
se por um lado a experiência do complexo de castração é o integrar a seu próprio eu. Para proteger sua imagem nar-
princípio da ideia de degradação no ser feminino, por outro císica, o sujeito repele aquilo que marca a alteridade, que é
lado, esse ser pode encarnar para o homem uma ameaça, já heterogêneo à própria unidade egoica.
que a mulher castrada não teria nada a perder.
O ódio ao feminino se instalaria, então, como meca-
Aquele que maltrata a mulher de maneira sistemática
nismo sistemático que busca golpear no outro aquilo que o
pode lançar mão da passagem ao ato violento, como forma
de se proteger disso que, no feminino, se apresenta como in- sujeito não pôde simbolizar e que, ao não conseguir tradu-
completo. Essa dificuldade, como sugere Ubieto (2008}, re- zir em palavras, executa na realidade, num transbordamen-
laciona-se a uma fantasia de anulação enquanto sujeito que to da fantasia. A posição sádica que os abusadores podem
"toma forma imaginária de uma falta de valor, de um poder muitas vezes ocupar diz respeito a uma encenação fantas-
diminuído[ ...] de um sentimento íntimo de sentir-se 'a me- mática, na qual sua potência pode ser provada mediante a
nos"' (p.2, tradução nossa). Nesses sujeitos, a solução para agressão. O estágio mais absoluto desse mecanismo seria a
esse temor seria extrapolar o limite da fantasia e projetar essa
recusa radical da marca faltosa do feminino através da pas-
anulação na pessoa da parceira enquanto ser que encarna um
sagem ao ato violento, seja ela direcionada a mulheres ou a
menos, quer seja tomando-a como objeto de desprezo ou até
qualquer um que encarne o impossível de dizer.
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O horror ao inapreensível do feminino - o não-todo mem, Lacan define: existe ao menos um homem para quem
de Lacan
a castração não se inscreve (3 x · 4> z). Trata-se do pai da
Jacques Lacan aborda o feminino a partir de um aves- horda primeva - referência ao texto freudiano "Totem e
so da proposição de Freud. Se o fundador da psicanálise Tabu" (1913). Sobre esse ponto de exceção uma regra é funda-
pensa a subjetivação feminina sobre a marca de um menos, da e isso produz o grupo dos homens. Como consequência,
o psicanalista francês, a partir da década de 1970, o faz pela para todo homem, a função fálica se inscreve (V x · 4> .x), já
via do mais, pelo excesso. Clotilde Leguil (2015) adverte que que a exceção do pai primevo fundou o grupo dos homens
Lacan aborda a feminilidade em sua obra a partir da lou- castrados.
cura, pois o feminino será pensado desde aquilo que está Já do lado mulher não existe essa mulher que faça ex-
não-todo localizado no campo fálico. ceção, de modo que não existe uma mulher para quem a
No Seminário 20, Lacan (1972-1973/2008) distribui os função fálica não se inscreve (3 x • 4> x). E então, Lacan
sujeitos de acordo com duas maneiras de se inscrever em (1972-1973/2008) insere uma novidade e vai dizer que para
relação à função fálica. Ele formula a tábua da sexuação, não-toda mulher a função fálica se inscreve (V x . 4> x).
dividida entre lado homem (esquerdo) e lado mulher (di- Dizer "não-toda mulher" remete ao aforisma lacaniano A
reito), usando recursos da lógica aristotélica. mulher não existe. Isso tem o sentido de que, como ela é
não-toda inscrita na função fálica, ela não é toda coberta
3X 3X
\/ X q)X VX q)X
pelo significante, de modo que não existe um significante
que possa definir A mulher, e assim só podemos falar das
,8
,,. mulheres uma a uma.
41 Essa partição lacaniana implica também que o modo
Tábua da sexuação
de gozo é diferente para cada um dos lados: no lado homem
trata-se do gozo fálico e do lado mulher, do gozo feminino.
Essa dissimetria de gozos é o que expressa o aforisma laca-
Na parte superior, ele define o homem e a mulher a
niano de que não há relação sexual ou, dito de outro modo,
partir de sua relação com a função fálica: <l>x. No lado ho-
que não é possível uma complementariedade ou simetria
1No "O seminário, livro 10, A angústia", Lacan (1962-63/2005) já havia indicado
que no campo do gozo o sinal de menos está do lado do homem e não do lado entre os sexos.
da mulher, já que no gozo é o órgão masculino que detumesce. Já temos aí a raiz
Lacan (1972-1973/2008) toma os místicos como exem-
do que vai ser formalizado a partir da década de 1970.
plos para falar do gozo feminino. Ele se refere à Santa Tere-
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za D'ávila:
do corpo, não limitado pelo falo.
basta que vocês vão olhar em Roma a estátua Ao separar a sexuação pelos modos de gozo faz com
de Bemini para compreenderem logo que ela
está gozando, não há dúvida. E do que ela que a mulher se desloque do campo do menos para o do
goza? É claro que o testemunho especial dos excesso. Leguil (2015), ao falar da loucura feminina, indica
místicos é justamente dizer que eles o expe- que não se trata, contudo, de fazer com que a mulher volte
rimentam, mas não sabem nada dele. Essas
ejaculações místicas, não é nem lorota, nem à razão, mas compreender o que cada uma pode fazer com
só falação, é em suma o que se pode ler de sua hybris. A hybris é um termo grego que indica aquilo que
melhor. Eu creio no gozo da mulher, no que passa de uma medida.
ele é a mais, com essa condição de que esse a
mais vocês coloquem um anteparo antes que Uma mulher, tomada nesse não-limitado pelo falo,
eu o tenha explicado bem (p. 82). oferta ao homem um perigo. Lacan (1971/2009) diz inclusi-
Vamos às palavras da própria Santa Teresa: ve que a mulher é a hora da verdade para um homem, pois é
somente a partir da relação com sua mulher que o homem
Um dia me apareceu um anjo com uma bele-
za nunca vista antes. Eu vi em sua mão uma saberá se o falo está apto a lhe significar como homem:
longa lança de ouro cuja ponta parecia ser
uma ponta de fogo. Ela parecia penetrar vá- Para o homem, nessa relação, a mulher é
rias vezes no meu coração e perfurar minhas precisamente a hora da verdade. No tocante
entranhas. A dor era tão grande, que me fez ao gozo sexual, a mulher está em condição
gemer, muitas vezes, em alta voz, ainda assim de pontuar a equivalência entre gozo e sem-
foi superando a doçura desta dor excessiva, blante. É justamente nisso que jaz a distân-
eu não pude querer livrar-me dela. Nenhuma cia a que o homem se encontra dela. Se falei
felicidade terrestre pode dar um prazer assim em hora da verdade, é por ser a ela que toda
tão grande. Quando o anjo tirou a sua lança, formação do homem é feita para responder,
senti um enorme amor por Deus. mantendo, contra tudo e contra todos, o
status de seu semblante. É certamente mais
Ora, o que a mística aí relata é um gozo não enqua- fácil para o homem enfrentar qualquer ini-
migo no plano da rivalidade fãlica do que
drado pelo falo. Miller (2012) diz que a igreja católica se de- enfrentar a mulher como suporte dessa ver-
parou com este gozo antes mesmo da psicanálise e como dade, suporte do que existe de semblante na
modo de enquadrá-lo numa ordenação, casou essas mulhe- relação do homem com a mulher (p. 33).
res com Deus e lhes imputou votos de pobreza e castidade.
Entretanto, devido a essa estrutura do feminino, a mu-
Em oposição ao gozo fálico, que Lacan (1972-1973/2008)
lher busca algo que faça alguma contenção a esse sem limite
define como o gozo do órgão, localizado e que termina com
de gozo. Diante do excesso, ela pode encontrar urna possível
a detumescência do membro1, o gozo feminino é um gozo
resposta na parceria amorosa. Aí, ela pode ocupar a posição
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de objeto causa de desejo para um homem que, por sua vez, Podemos pensar que com a passagem ao ato, o agres-
faz dela sintoma. Isso o permite dar uma resposta frente ao sor quer fazer limite a esse gozo sem limite do feminino,
real da não complementariedade entre os sexos. Todavia um limite temporal, que muitas vezes compreende não só
'
nem sempre as parcerias ocorrem sem contratempos. a eliminação da vida da parceira, mas sua própria, como
As particularidades de cada sujeito interferem nessas frequentemente se vê nos casos de feminicídio seguidos de
posições. Assim, uma mulher pode escorregar da posição suicídio (Ubieto, 2008).
de objeto causa de desejo para a de objeto de gozo, sobretu- No texto que preparou como contribuição da Asso-
do se faz parceria com um sujeito que não consiga lidar mi- ciação Mundial de Psicanálise para a 15ª sessão da Commis-
nimamente com a própria falta, no sentido freudiano. Para sion on the Status of Women, na sede das Nações Unidas
que exista o amor, e isso Lacan nos ensina em Direção do em Nova Iorque no ano de 2013, Bassols (2012) destacou
tratamento... (1958), é preciso que se reconheça a própria dois pontos nodais para abordar o ódio ao feminino, encar-
falta e que se possa ser capaz de colocá-la no outro. "Se o nado na violência contra as mulheres.
Primeiramente, ele declara que a violência é sempre
amor, por definição, alude a posição de debilidade de cada
um sinal da incapacidade de sustentar uma palavra verda-
sujeito (bobo, cego, frouxo) é justamente isso o insuportá-
deira e que a psicanálise se opõe a qualquer tipo de violên-
vel para o abusador e o que ele evita mediante a violência"
cia pelo simples fato de respeitar radicalmente a palavra do
(Ubieto, 2008, p. 3).
outro. Na violência exercida contra as mulheres, ele enxer-
Ubieto (2008) ainda propõe que, mesmo que a parceira
ga que tanto os homens, como as instituições falham em
permaneça fixada a uma posição de objeto de gozo, buscando
"escutar a palavra do sujeito feminino, mas também de es-
sem êxito um signo de amor do Outro, o campo do feminino
continua se apresentando como uma ameaça ao abusador. cutar o feminino que há em cada sujeito" (Bassols, 2012, p.
O que o feminino possui de demanda insistente ao Outro, 3). Ele defende que é necessário criar e favorecer espaços
"o que você quer•: é prontamente respondido com base na onde possa haver a articulação dessa palavra tanto na esfera
construção fantasmática: "você quer meu gozo, minha ruína, privada quanto na pública.
meu desaparecimento" (Ubieto, 2008, p. 2). Implicado pelo Por fim, ele enfatiza que apenas um respeito radi-
sentimento de impotência, essa resposta toma-se inflexível e cal pela diferença, sobretudo aquela relativa ao registro da
a passagem ao ato agressivo se mostra como uma saída. Mes- diferença sexual em cada cultura, poderá resultar em mais
mo que a parceira afirme sua posição de objeto de gozo, sua igualdade social e de direitos. "O ato de violência qualifica-
afirmação será sempre insuficiente, pois a fantasia já confir- do de machista se revela, finalmente, como um ato que pre-
mou que a falta está ali, sem limites. tende apagar, abolir a diferença que a feminilidade encarna
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e reintroduz em cada vínculo da realidade social" (Bassols, Referências bibliográficas
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pela UFMG, especialista em Clínica Psicanalítica e Editora. (Trabalho original publicado em 1912).
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universitária em cursos de graduação e pós-gradu- - - Organização genital infantil. ln S. Freud, Obras in-
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interface entre psicanálise e política.
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2019 A Psicanálise na vida cotidiana / Eduardo Lucas Andrade;
Paulo Roberto Ceccarelli; Victor Cruz de Freitas (orga-
nizadores.); ilustrações da capa Indries Andrade.1.ed.
Bom Despacho : Literatura em Cena, 2019.
28op.
ISBN : 978-65-80149-14-8
1. Psicanálise. I. Freitas, Victor Cruz de, org. II. Andrade,
Indries; Il. III. Titulo.
CDD: 150
Diná Maria Mendonça- Bibliotecária- CRB-6 : 2044

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