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Gabrielle Leite Rocha, Hugo Ribeiro Lanza & Sarug Dagir Ribeiro

Transfobia, masculinidades e violência


sob a ótica da psicanálise
Gabrielle Leite Rocha
Hugo Ribeiro Lanza
Sarug Dagir Ribeiro

Resumo
Pretendemos discutir a transfobia utilizando a teoria da sedução generalizada e a categoria de
códigos tradutivos de Jean Laplanche, bem como a noção de enquadramentos proposta por Ju-
dith Butler para entender as posturas violentas de homens contra mulheres transexuais. A partir
disso, discutiremos o papel do abalo narcísico das identidades masculinas como uma das possíveis
causas psicológicas das violências cometidas por homens cis contra mulheres trans e travestis.

Palavras-chave: Transfobia, Códigos tradutivos, Psicanálise, Abalo identitário.

Introdução Susana Muszkat (2006), pontuamos que


Entendemos que as violências transfóbicas os homens, ao se perceberem ameaçados
são multideterminadas, agregando reitera- pela percepção que têm das mulheres trans
das violações, de caráter físico e simbólico. e travestis, podem enxergar na passagem
Dessa forma, visamos abordar, pela psica- violenta ao ato uma alternativa para fazer
nálise, pontuações sobre os rudimentos cessar suas angústias e se reaproximar de
da transfobia. Neste trabalho contextua- um ideal masculino.
lizamos a transfobia no cenário brasileiro
enquanto um dispositivo de violência Sobre a transexualidade
genocida, que atua sobre a vida de pessoas e o transfeminicídio
trans e travestis, que, no enquadramento A população trans e travesti do Brasil é
proposto por Judith Butler (2015), não são sujeita a estigmas, preconceitos e mar-
vivíveis ou passíveis de luto. ginalização. A não conformidade com
Posteriormente, utilizando da Teoria a cis-heteronormatividade expõe tal
da Sedução Generalizada, proposta por população à exclusão social e diferentes
Jean Laplanche (2003; 2015), situamos a formas de violência e violação de direitos
violência transfóbica na origem alteritária fundamentais e constitucionais.
dos processos constitutivos do psiquis- Consideramos a cis-heteronorma-
mo. Para isso, analisamos a facilitação tividade como uma imposição social de
tradutiva proporcionada por códigos normas de gênero e sexualidade, ocasio-
tradutivos socialmente consolidados, que nando uma padronização das identidades
subjazem às masculinidades e à violência. de forma binária e biologizante, na qual
Sustentamos, então, que a violência é aqueles que fogem da cisgeneridade e da
uma manifestação subjetiva e expressiva heterossexualidade não são reconhecidos
utilizada por muitos homens quando têm (Sousa, 2018)
comprometida ou ameaçada a masculini- A transfobia é o dispositivo que pro-
dade ideal. Por fim, a partir dos estudos de duz os preconceitos, a exclusão estrutural,
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a violação de direitos, os diversos tipos de Segundo Butler (2015), o que sen-


violência que atingem especificamente timos é condicionado pelo modo como
pessoas transgêneras, devido ao gênero interpretamos o mundo, ou seja, condi-
que performam (Jesus, 2014). cionado pelos enquadramentos postos e
Já o transfeminicídio, o entendemos, pelos dados. Assim, sentimos mais horror
a partir de Berenice Bento (2014, p. 1), e repulsa por violências cometidas contra
algumas vidas do que por outras: aqueles
[...] como uma política disseminada, cuja vida não importa, não geram como-
intencional e sistemática de eliminação ção pública ao serem violados.
da população trans no Brasil, motivada Em se tratando de sujeitos cujos cor-
pelo ódio e nojo. pos são inscritos à margem das normas de
gênero e sexualidade, é conferido às trans
É importante ressaltar que Jaque- e aos travestis um status de abjeção. Esse
line Gomes de Jesus (2014), a partir enquadramento denota, assim, vidas que
do elevado número de assassinatos podem ser destruídas, cuja perda não é
de transexuais no Brasil e do caráter lamentada, pois nunca foram vividas, ou
discriminatório da violência transfóbi- seja, nunca foram consideradas como uma
ca, considera que, para compreender vida (Butler, 2015).
o caráter estrutural da transfobia, é Dessa maneira, é instituído um ge-
preciso concebê-la como uma tenta- nocídio silencioso, que não perturba a
tiva de genocídio, além de conceber o percepção da violência, pois esses são
transfeminicídio na esfera interpessoal corpos que não importam. Consequen-
como um crime de ódio. temente, não há comoção pública ou
A tentativa sistemática de eliminação distúrbio na percepção da ordem social,
dos corpos trans e travestis ocorre em apenas manifestações isoladas de luto,
função da maneira como a sociedade os quando tanto.
identifica – ou não.
Em Quadros de guerra: quando a Alguns apontamentos
vida é passível de luto?, Butler (2015) psicanalíticos e a Teoria
trabalha com a ideia de que existem da Sedução Generalizada
enquadramentos epistemológicos que Optamos por utilizar a Teoria da Sedução
organizam as experiências sensoriais e Generalizada, proposta pelo psicanalista
ontológicas do sujeito, diferenciando vi- francês Jean Laplanche como modelo
das que são reconhecidas e apreendidas para problematizar o caráter subjetivo das
daquelas que não o são. A partir desses violências em sua relação com a masculi-
enquadramentos, existem vidas que são nidade, uma vez que essa teoria acentua
qualificadas como vivíveis e outras que o papel da alteridade na constituição
são qualificadas como não vivíveis, além subjetiva.
de corpos passíveis de luto e corpos não
passíveis de luto. [...] resposta que, certamente subjetiva,
Segundo a autora, adota linguagens culturalmente estabe-
lecidas na tentativa de traduzir enigmas
A capacidade epistemológica de apreen- associáveis ao inconsciente sexual, infan-
der uma vida é parcialmente dependente til e recalcado (Andrade, 2011, p. 46).
de que essa vida seja produzida de acordo
com normas que caracterizam como uma Conforme a teoria laplancheana, está
vida ou, melhor dizendo, como parte da situado na “situação antropológica funda-
vida (Butler, 2015, p. 16). mental” o encontro assimétrico entre o
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adulto, dotado de seu inconsciente, sexual passa a operar como um corpo estrangeiro
e recalcado, e a criança (infans), passiva e interno e a atacar o ego (Bacelete; Ribei-
desprovida de um inconsciente. ro, 2016).
Nesse cenário, o adulto, ao cuidar Segundo Laplanche (2015), as prin-
da criança, transmite a ela mensagens cipais mensagens desse tipo são as men-
que são enigmáticas, tanto para ele, que sagens de designação de gênero, que
desconhece que as transmite, quanto consistem em
para o bebê, vulnerável às mensagens,
uma vez que ainda não dispõe de recursos [...] um conjunto complexo de atos que
simbólicos e narcísicos para integrá-las se prolongam na linguagem e nos com-
(Belo, 2004). portamentos significativos do entorno.
Todavia, o encontro com a criança Poder-se falar de uma designação contí-
suscita nos pais algo do sexual infantil, nua ou de uma prescrição (Laplanche,
que é anárquico, polimorfo, perverso e, 2015, p. 123).
portanto, tal qual um ruído, o inconsciente
do adulto se infiltra nas mensagens pré- A criança, nesse processo, ocupa tam-
-conscientes-conscientes, interferindo bém uma posição passiva, ou seja, passa
e comprometendo o que é transmitido por um processo de identificação no qual
(Laplanche, 2015). é identificada pelo adulto como perten-
Portanto, a veiculação da sexualidade cente a um gênero. Esse giro em direção à
no corpo e no psiquismo infantil é necessa- primazia da alteridade é fundamental para
riamente traumática, uma vez que resulta a compreensão dos códigos propostos pela
de um encontro desigual entre um adulto cultura, como aqueles relativos à perfor-
e uma criança em situação de extrema mance de um dado gênero, pois
passividade em relação ao mundo externo
(Bacelete; Ribeiro, 2016). [...] nos primórdios da vida psíquica, o
Enquanto trauma, a mensagem enig- verbo identificar não pode ser usado na
mática endereçada ao infante se consolida voz reflexiva eu me identifico, mas antes
em dois tempos, na voz passiva eu sou identificado: são
os adultos com os quais a criança con-
[...] no primeiro tempo a mensagem é vive que designam e definem seu gênero
simplesmente inscrita, ou implantada, (Lattanzio, 2011, p. 64).
sem ser compreendida (Laplanche, 2003,
p. 407). Os códigos tradutivos
e as normas de gênero
Em um segundo momento, essa men- Em seus esforços de tradução das men-
sagem sagens emitidas de adultos, a criança
encontra apoio nos códigos que estão
[...] é revivificada do interior. Ela age disponíveis para ela na cultura, o que La-
como um corpo estranho interno que é planche (2003, apudFerreira, 2012, p. 3)
preciso a todo preço integrar, controlar define como universo do mito simbólico.
(Laplanche, 2003, p. 95). Esses códigos configuram para a criança
uma ajuda para a tradução da tarefa de
Ou seja, da operação inevitavelmente conter, de simbolizar as mensagens do
falha de tradução, sobram ‘restos’, exci- adulto.
tações não traduzidas e não ligadas pelo Tomando esse caminho predefini-
ego incipiente da criança, que compõem o do pela cultura, o Eu e o narcisismo da
objeto-fonte da pulsão (Belo, 2004), que criança são:
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[...] formados a partir da erotização foi recalcado pelo agressor em sua vida.
originária inconsciente e dos códigos Ressaltamos a ligação entre a conduta
de tradução que lhe advêm do adulto, violenta e o interesse do Eu em obter se-
algo a que a criança se apega em face gurança total em relação aos ataques de
de seu desamparo perante o pulsional. seu inconsciente, projetados sobre a figura
Isso gera o apego apaixonado às normas, do objeto externo:
à sujeição, aos códigos que orientam as
traduções constitutivas do sujeito, que A violência é, por definição, como bem
permitem seu aparecimento (Lima; Belo, aponta Laplanche (1994), um fenômeno
2018, p. 10). estritamente humano, já que potencial-
mente carregado de significados de natu-
Os códigos tradutivos são impreg- reza sexual: “ela está ligada às fantasias
nados pela sexualidade inconsciente dos sexuais que habitam nosso inconsciente
adultos, uma vez que, no encontro com [...]”. Luís Maia (1991, 1993), na esteira
a criança, os adultos têm a própria sexu- de Laplanche, desenvolveu a tese de que,
alidade infantil reativada (Laplanche, na violência, o traço sexual tem uma
2015). conformação que, além de sádica, pode
O processo em questão é, portanto, ser também (senão primariamente) nar-
císica: o desejo de autonomia em relação
[...] sujeito a diversas vicissitudes, impon- à alteridade, o desejo de autossuficiência
do à criança um trabalho de simbolização está na raiz da violência, a qual nega a
do excesso que lhe chega (Lattanzio, dependência em relação aos outros que
2011, p. 64-65). são submetidos ou destruídos (Andrade,
2011, p. 47).
A codificação do gênero geralmente
segue a cis-heteronormatividade, gerando Fundamentalmente, a violência pode
dois polos: masculino-feminino, relacio- ser mais compreendida em sua relação
nados à noção de atividade-passividade e com o sexual implantado pela alteridade,
correlatos à lógica de simbolização (Lima; pois:
Bedê; Belo, 2017).
Se observarmos as condutas violentas [...] essa concepção nos faz pensar que o
e transfóbicas dentro desse paradigma, desamparo original que experimentamos
podemos localizar a dimensão defensiva pode nos levar a participar de práticas
de tais posturas. Frente aos enigmas da de crueldade (Bacelete, Ribeiro, 2016,
alteridade e aos ataques internos ao Eu, o p. 95).
homem, em postura ativa, pode recorrer
à violência, E a passagem ao ato do agressor frente
à vítima pode ser apreendida como uma
[...] entendida aqui como todo ato em solução precária e cruel, que toma para
que haja o intencional abuso de força para si a atividade frente às ameaças de, por
subjugar, humilhar ou mesmo eliminar algum motivo, se situar no polo oposto,
outra(s) pessoa(s) na relação de poder o da passividade, o que o faria tencionar
estabelecida socialmente (A ndrade , a própria identidade, se aproximar de seu
2011, p. 47). desamparo originário, sua passividade ra-
dical. A angústia experimentada é relativa
O desejo pulsante de clamar para si ao que lhe é estranho, o outro. Embora
o poder da atividade e fazer o outro se projetados na vítima, os ataques sentidos
submeter, aparece no retorno daquilo que pelo Eu advêm do que lhe é interno, do
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pulsional implantado pelo outro na situa- estruturais, ou seja, constituem o tecido


ção antropológica fundamental. social e pautam todas as relações sociais,
e o patriarcado, portanto.
Sobre as masculinidades e a violência A produção de práticas discursivas
As relações de gênero são trocas simbóli- pelos homens, a partir das masculinidades,
cas, nas quais há preponderância mascu- implica uma negação de tudo aquilo que
lina sobre o feminino, configurando uma se afasta da postura hegemônica mascu-
dominação masculina nas relações de lina reiterada pela cultura e aproxima as
gênero, sendo o homem detentor de poder masculinidades subalternas das feminilida-
simbólico. Podemos, então, entender a des. A violência é muitas vezes utilizada,
masculinidade como uma produção prá- pelos homens, como uma manifestação
tica de símbolos e discursos em torno da subjetiva.
posição dos homens nas relações (Connel;
Messerschmidt, 2013). Sendo assim, o sentido da violência de
As masculinidades são pautadas por gênero praticada pelo homem é a reafir-
ações reais e concretas, com um sentido mação de sua preponderância na socie-
definido, dentro dos mais diversos âmbitos dade: demarcando sua dominação sobre
da sociedade e suas instituições, como a as mulheres, sua superioridade diante
família, a igreja, o trabalho, a escola, entre de outros homens e reafirmação de sua
outros. Por ser um construto social, estão virilidade (Silva, 2014, p. 2811).
inscritas em contextos específicos: são pro-
duzidas a partir de um contexto histórico, Abalo narcísico
cultural e social, fazendo sentido em tem- Resultante do conflito violento entre a
pos e espaços geográficos determinados. passividade e a atividade, e a revivescência
Os estudos sobre as masculinidades do traumatismo da veiculação do sexual
comumente demonstram a existência de adulto, podemos situar no campo de defe-
diversas hierarquias masculinas, que são sas do Eu uma insurgência contra o abalo
pautadas por marcadores como classe, narcísico sofrido pelo homem frente aos
raça e sexualidade, considerando que as corpos trans e travestis.
masculinidades permeiam múltiplas rela- Em seu trabalho com homens autores
ções de poder. de violência doméstica, a psicanalista Su-
A partir de nossa leitura de Connel sana Muszkat (2006) identificou que eles
e Masserschmidt (2013) e Silva (2014), recorriam à violência, pois sentiam um
entendemos a masculinidade hegemô- abalo narcísico de sua identidade mascu-
nica como aquela que pauta uma forma lina, considerando que a masculinidade
normativa de exercer os papéis do gênero hegemônica permite papéis de gênero
masculino, no topo das hierarquias do pouco flexíveis. Quando esses homens
gênero, subordinando não somente as exercem papéis que não condizem com
feminilidades, mas também as masculini- o padrão de masculinidade – ou seja, há
dades subalternas. uma contradição entre um ideal de ho-
A relação entre violência e a forma- mem, marido, provedor e/ou pai e o real
ção da subjetividade masculina tem sido experienciado –, eles têm abaladas sua
apontada desde o início dos estudos das identidade e a própria noção de existência
masculinidades. As assimetrias das rela- enquanto homens. Há, portanto, o que a
ções de gênero configuram narrativas em autora denomina por abalo identitário.
que a submissão da mulher e as domina- Homens que não mais se viam como
ções masculinas correspondem à dinâmica provedores financeiros da família ou cujas
de poder pleiteada. Essas relações são companheiras não correspondiam ao
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padrão de feminilidade que idealizavam, das e nem naturais: são artificiais. A partir
são exemplos de homens que Muszkat da cis-heteronormatividade, é produzido
(2006) identificou sofrerem desse abalo sobre os corpos um discurso que entende
identitário, que ameaça a integridade do que há uma relação natural entre sexo e
Eu desses sujeitos. A partir da necessida- gênero, legitimando a existência de dois
de de autopreservação, o homem pode gêneros: homem e mulher. Essa produção
recorrer à violência, fundamentada como discursiva binariza os dois gêneros, sinali-
comportamento legítimo dentro do esque- zando a existência de diferenças inatas e
ma narrativo das masculinidades, como antagônicas entre ser homem e ser mulher,
ferramenta de defesa. hierarquizando-as (Bento; Pelucio, 2012,
Em Silva (2014) a violência de gênero p. 575).
cometida por homens pode ser entendida Entretanto, esse discurso é produzi-
como uma resposta imediata, ou algum do, já que o binarismo de gênero é uma
tipo de lição, a um outro que põe em construção histórica. Assim, é possível
questão sua autoridade masculina ou entender que tais práticas discursivas em
incita um prejuízo à sua masculinidade. torno do gênero são artificiais e existem
Assim, há sentimentos de humilhação e “[...] múltiplas possibilidades de experiên-
ofensa quando homens se veem distantes cias e práticas de gênero” (Bento; Pelucio,
do ideal de masculinidade, quando têm 2012, p. 576).
seu ideal do Eu abalado. Portanto, a vio- A partir do conceito de abalo identi-
lência de gênero praticada é uma tentativa tário, entendemos que, frente a corpos que
de preservar esse ideal abalado e afirmar rompem com a cis-heteronormatividade
uma identidade pautada na masculinidade com experiências dissidentes de gênero,
hegemônica. possíveis agressores têm seu Eu compro-
metido. Esse comprometimento pode se
Deste prisma, o ato violento praticado, dar a partir da exposição de que a relação
tem como finalidade principal a preserva- entre gênero e sexo não é natural e que
ção narcísica do ego, sendo a destruição o gênero é uma artificialidade. Portanto,
do outro consequência e não o objetivo o próprio gênero de um agressor não é
que leva ao ato (Muszkat, 2006, p. 171). natural, é também um construto, uma
produção discursiva, de tal modo que é
Dito isso, é possível pensar a violên- passível de desconstrução e modificação.
cia transfóbica como sendo operada por
semelhantes mecanismos de defesa de um Conclusão
Eu comprometido nesses homens. Como o Em suma, devido à carência na literatura
transfeminicídio é a máxima da violência acadêmica, sobretudo psicanalítica, sobre
transfóbica, é possível considerar que o a transfobia e o transfeminicídio, os apon-
agressor possui um forte abalo identitário, tamentos e as hipóteses por nós levantadas
um grande afastamento da experiência carecem de estudos mais aprofundados.
real de sua masculinidade de seu ideal do Os processos intrapsíquicos relacionados
Eu. Diante de corpos cujas experiências ao ato transfóbico são múltiplos, de modo
são discordantes da cis-heteronormativi- que é possível estabelecer diversas relações
dade, existem sujeitos que entendem que e explicações, não só para a existência,
a própria identidade enquanto cisgêneros mas também para a manutenção dessa
e heterossexuais está comprometida. violência.
Além disso, as experiências diversas A partir dos estudos de Muszkat
de gênero e sexualidade evidenciam que as (2006), entendemos que os tensionamen-
identidades rígidas e binárias não são da- tos entre o Eu e as masculinidades são
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pontos fundamentais para a compreensão


desse fenômeno. Referências
É a ausência de flexibilidade das
normas sexuais que incita a violência ANDRADE, F. C. B. Horror, resposta e responsa-
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que não incitam comoção. BACELETE, L.; RIBEIRO, P. C. Violência e sexua-
Por fim, se o gênero e a sexualidade lidade: uma reflexão a partir da teoria psicanalítica.
Estudos de Psicanálise, Belo Horizonte, n. 45, p.
experienciadas de modo dissidente pela
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população trans e travestis configuram Brasileiro de Psicanálise.
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sujeito transfóbico, essas vidas são con- BELO, F. Os efeitos da violência na constituição
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Recebido em: 20/02/2020


Aprovado em: 03/04/2020

Sobre os autores

Gabrielle Leite Rocha


Graduanda em Psicologia
pela Universidade Federal de Minas Gerais.

Hugo Ribeiro Lanza


Graduando em Psicologia
pela Universidade Federal de Minas Gerais.

Sarug Dagir Ribeiro


Psicóloga Clínica.
Psicanalista.
Doutora em Psicologia
pela Universidade Federal de Minas Gerais.
Mestra em Teoria da Literatura - Pós-Lit/UFMG.

Endereço para correspondência

Gabrielle Leite Rocha


E-mail: gabrielleleiterocha@gmail.com

Hugo Ribeiro Lanza


E-mail: hugo.rlanza@gmail.com

Sarug Dagir Ribeiro


E-mail: sdagir@gmail.com

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