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Resumo
Pretendemos discutir a transfobia utilizando a teoria da sedução generalizada e a categoria de
códigos tradutivos de Jean Laplanche, bem como a noção de enquadramentos proposta por Ju-
dith Butler para entender as posturas violentas de homens contra mulheres transexuais. A partir
disso, discutiremos o papel do abalo narcísico das identidades masculinas como uma das possíveis
causas psicológicas das violências cometidas por homens cis contra mulheres trans e travestis.
adulto, dotado de seu inconsciente, sexual passa a operar como um corpo estrangeiro
e recalcado, e a criança (infans), passiva e interno e a atacar o ego (Bacelete; Ribei-
desprovida de um inconsciente. ro, 2016).
Nesse cenário, o adulto, ao cuidar Segundo Laplanche (2015), as prin-
da criança, transmite a ela mensagens cipais mensagens desse tipo são as men-
que são enigmáticas, tanto para ele, que sagens de designação de gênero, que
desconhece que as transmite, quanto consistem em
para o bebê, vulnerável às mensagens,
uma vez que ainda não dispõe de recursos [...] um conjunto complexo de atos que
simbólicos e narcísicos para integrá-las se prolongam na linguagem e nos com-
(Belo, 2004). portamentos significativos do entorno.
Todavia, o encontro com a criança Poder-se falar de uma designação contí-
suscita nos pais algo do sexual infantil, nua ou de uma prescrição (Laplanche,
que é anárquico, polimorfo, perverso e, 2015, p. 123).
portanto, tal qual um ruído, o inconsciente
do adulto se infiltra nas mensagens pré- A criança, nesse processo, ocupa tam-
-conscientes-conscientes, interferindo bém uma posição passiva, ou seja, passa
e comprometendo o que é transmitido por um processo de identificação no qual
(Laplanche, 2015). é identificada pelo adulto como perten-
Portanto, a veiculação da sexualidade cente a um gênero. Esse giro em direção à
no corpo e no psiquismo infantil é necessa- primazia da alteridade é fundamental para
riamente traumática, uma vez que resulta a compreensão dos códigos propostos pela
de um encontro desigual entre um adulto cultura, como aqueles relativos à perfor-
e uma criança em situação de extrema mance de um dado gênero, pois
passividade em relação ao mundo externo
(Bacelete; Ribeiro, 2016). [...] nos primórdios da vida psíquica, o
Enquanto trauma, a mensagem enig- verbo identificar não pode ser usado na
mática endereçada ao infante se consolida voz reflexiva eu me identifico, mas antes
em dois tempos, na voz passiva eu sou identificado: são
os adultos com os quais a criança con-
[...] no primeiro tempo a mensagem é vive que designam e definem seu gênero
simplesmente inscrita, ou implantada, (Lattanzio, 2011, p. 64).
sem ser compreendida (Laplanche, 2003,
p. 407). Os códigos tradutivos
e as normas de gênero
Em um segundo momento, essa men- Em seus esforços de tradução das men-
sagem sagens emitidas de adultos, a criança
encontra apoio nos códigos que estão
[...] é revivificada do interior. Ela age disponíveis para ela na cultura, o que La-
como um corpo estranho interno que é planche (2003, apudFerreira, 2012, p. 3)
preciso a todo preço integrar, controlar define como universo do mito simbólico.
(Laplanche, 2003, p. 95). Esses códigos configuram para a criança
uma ajuda para a tradução da tarefa de
Ou seja, da operação inevitavelmente conter, de simbolizar as mensagens do
falha de tradução, sobram ‘restos’, exci- adulto.
tações não traduzidas e não ligadas pelo Tomando esse caminho predefini-
ego incipiente da criança, que compõem o do pela cultura, o Eu e o narcisismo da
objeto-fonte da pulsão (Belo, 2004), que criança são:
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Transfobia, masculinidades e violência sob a ótica da psicanálise
[...] formados a partir da erotização foi recalcado pelo agressor em sua vida.
originária inconsciente e dos códigos Ressaltamos a ligação entre a conduta
de tradução que lhe advêm do adulto, violenta e o interesse do Eu em obter se-
algo a que a criança se apega em face gurança total em relação aos ataques de
de seu desamparo perante o pulsional. seu inconsciente, projetados sobre a figura
Isso gera o apego apaixonado às normas, do objeto externo:
à sujeição, aos códigos que orientam as
traduções constitutivas do sujeito, que A violência é, por definição, como bem
permitem seu aparecimento (Lima; Belo, aponta Laplanche (1994), um fenômeno
2018, p. 10). estritamente humano, já que potencial-
mente carregado de significados de natu-
Os códigos tradutivos são impreg- reza sexual: “ela está ligada às fantasias
nados pela sexualidade inconsciente dos sexuais que habitam nosso inconsciente
adultos, uma vez que, no encontro com [...]”. Luís Maia (1991, 1993), na esteira
a criança, os adultos têm a própria sexu- de Laplanche, desenvolveu a tese de que,
alidade infantil reativada (Laplanche, na violência, o traço sexual tem uma
2015). conformação que, além de sádica, pode
O processo em questão é, portanto, ser também (senão primariamente) nar-
císica: o desejo de autonomia em relação
[...] sujeito a diversas vicissitudes, impon- à alteridade, o desejo de autossuficiência
do à criança um trabalho de simbolização está na raiz da violência, a qual nega a
do excesso que lhe chega (Lattanzio, dependência em relação aos outros que
2011, p. 64-65). são submetidos ou destruídos (Andrade,
2011, p. 47).
A codificação do gênero geralmente
segue a cis-heteronormatividade, gerando Fundamentalmente, a violência pode
dois polos: masculino-feminino, relacio- ser mais compreendida em sua relação
nados à noção de atividade-passividade e com o sexual implantado pela alteridade,
correlatos à lógica de simbolização (Lima; pois:
Bedê; Belo, 2017).
Se observarmos as condutas violentas [...] essa concepção nos faz pensar que o
e transfóbicas dentro desse paradigma, desamparo original que experimentamos
podemos localizar a dimensão defensiva pode nos levar a participar de práticas
de tais posturas. Frente aos enigmas da de crueldade (Bacelete, Ribeiro, 2016,
alteridade e aos ataques internos ao Eu, o p. 95).
homem, em postura ativa, pode recorrer
à violência, E a passagem ao ato do agressor frente
à vítima pode ser apreendida como uma
[...] entendida aqui como todo ato em solução precária e cruel, que toma para
que haja o intencional abuso de força para si a atividade frente às ameaças de, por
subjugar, humilhar ou mesmo eliminar algum motivo, se situar no polo oposto,
outra(s) pessoa(s) na relação de poder o da passividade, o que o faria tencionar
estabelecida socialmente (A ndrade , a própria identidade, se aproximar de seu
2011, p. 47). desamparo originário, sua passividade ra-
dical. A angústia experimentada é relativa
O desejo pulsante de clamar para si ao que lhe é estranho, o outro. Embora
o poder da atividade e fazer o outro se projetados na vítima, os ataques sentidos
submeter, aparece no retorno daquilo que pelo Eu advêm do que lhe é interno, do
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Gabrielle Leite Rocha, Hugo Ribeiro Lanza & Sarug Dagir Ribeiro
padrão de feminilidade que idealizavam, das e nem naturais: são artificiais. A partir
são exemplos de homens que Muszkat da cis-heteronormatividade, é produzido
(2006) identificou sofrerem desse abalo sobre os corpos um discurso que entende
identitário, que ameaça a integridade do que há uma relação natural entre sexo e
Eu desses sujeitos. A partir da necessida- gênero, legitimando a existência de dois
de de autopreservação, o homem pode gêneros: homem e mulher. Essa produção
recorrer à violência, fundamentada como discursiva binariza os dois gêneros, sinali-
comportamento legítimo dentro do esque- zando a existência de diferenças inatas e
ma narrativo das masculinidades, como antagônicas entre ser homem e ser mulher,
ferramenta de defesa. hierarquizando-as (Bento; Pelucio, 2012,
Em Silva (2014) a violência de gênero p. 575).
cometida por homens pode ser entendida Entretanto, esse discurso é produzi-
como uma resposta imediata, ou algum do, já que o binarismo de gênero é uma
tipo de lição, a um outro que põe em construção histórica. Assim, é possível
questão sua autoridade masculina ou entender que tais práticas discursivas em
incita um prejuízo à sua masculinidade. torno do gênero são artificiais e existem
Assim, há sentimentos de humilhação e “[...] múltiplas possibilidades de experiên-
ofensa quando homens se veem distantes cias e práticas de gênero” (Bento; Pelucio,
do ideal de masculinidade, quando têm 2012, p. 576).
seu ideal do Eu abalado. Portanto, a vio- A partir do conceito de abalo identi-
lência de gênero praticada é uma tentativa tário, entendemos que, frente a corpos que
de preservar esse ideal abalado e afirmar rompem com a cis-heteronormatividade
uma identidade pautada na masculinidade com experiências dissidentes de gênero,
hegemônica. possíveis agressores têm seu Eu compro-
metido. Esse comprometimento pode se
Deste prisma, o ato violento praticado, dar a partir da exposição de que a relação
tem como finalidade principal a preserva- entre gênero e sexo não é natural e que
ção narcísica do ego, sendo a destruição o gênero é uma artificialidade. Portanto,
do outro consequência e não o objetivo o próprio gênero de um agressor não é
que leva ao ato (Muszkat, 2006, p. 171). natural, é também um construto, uma
produção discursiva, de tal modo que é
Dito isso, é possível pensar a violên- passível de desconstrução e modificação.
cia transfóbica como sendo operada por
semelhantes mecanismos de defesa de um Conclusão
Eu comprometido nesses homens. Como o Em suma, devido à carência na literatura
transfeminicídio é a máxima da violência acadêmica, sobretudo psicanalítica, sobre
transfóbica, é possível considerar que o a transfobia e o transfeminicídio, os apon-
agressor possui um forte abalo identitário, tamentos e as hipóteses por nós levantadas
um grande afastamento da experiência carecem de estudos mais aprofundados.
real de sua masculinidade de seu ideal do Os processos intrapsíquicos relacionados
Eu. Diante de corpos cujas experiências ao ato transfóbico são múltiplos, de modo
são discordantes da cis-heteronormativi- que é possível estabelecer diversas relações
dade, existem sujeitos que entendem que e explicações, não só para a existência,
a própria identidade enquanto cisgêneros mas também para a manutenção dessa
e heterossexuais está comprometida. violência.
Além disso, as experiências diversas A partir dos estudos de Muszkat
de gênero e sexualidade evidenciam que as (2006), entendemos que os tensionamen-
identidades rígidas e binárias não são da- tos entre o Eu e as masculinidades são
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