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Transfobia e crimes de ódio: Assassinatos de pessoas transgênero como


genocídio

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Jaqueline Gomes de Jesus


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Transfobia e crimes de ódio: Assassinatos de pessoas transgênero como genocídio

Jaqueline Gomes de Jesus1

Resumo: Vivências identitárias de gênero divergentes das socialmente aceitas são


patologizadas e submetidas a preconceitos e discriminações que, no extremo, terminam com o
assassinato de pessoas pelo fato de serem da população transgênero (transexuais e travestis).
O Brasil é identificado, entre outras 55 (cinquenta e cinco) nações, como aquela na qual mais
se registram assassinatos de tal natureza, no período entre 2008 e 2011. Essa violência letal de
gênero, em que as mulheres transexuais e as travestis são alvos recorrentes, afigura-se, em um
nível superficial, na categoria dos crimes de ódio, e em um nível mais profundo, como uma
forma de genocídio. Este artigo apresenta o panorama nacional de violência estrutural contra a
população transgênero e o analisa tendo como horizontes conceituais as categorias de crimes
de ódio e de genocídio.
Palavras-chave: Identidade de gênero, população transgênero, violência

Transphobia and hate crimes: Murders of transgender people as genocide

Abstract: Experiences of gender identity different from those socially accepted are
pathologized and subjected to prejudices and discriminations that, in the far end with the
murder of people because they are from the transgender population (transsexuals and
transvestites). Brazil is identified, among other 55 (fifty five) nations, as the one in which are
enrolled more murders of this nature, in the period between 2008 and 2011. This lethal
violence of gender, where transsexual women and transvestites are recurring targets, appears,
on a superficial level, in the category of hate crimes, and in a deeper level, as a form of
genocide. This article presents an overview of the national structural violence against
transgender people and analyzes it bearing as conceptual horizons the categories of hate
crimes and of genocide.
Keywords: Gender identity, transgender population, violence

Historicamente, a população transgênero (composta por travestis e pessoas transexuais 2) é


estigmatizada, marginalizada e perseguida, devido à crença na sua anormalidade, decorrente
do estereótipo de que o “natural” é que o gênero atribuído ao nascimento seja aquele com o
qual as pessoas se identificam e, portanto, espera-se que elas se comportem de acordo com o
que se julga ser o “adequado” para esse ou aquele gênero (HERDT, 1996).
Entretanto, a variedade de experiências humanas sobre como se identificar a partir de seu
corpo mostra que esse estereótipo é falacioso, especialmente com relação às pessoas
transexuais, que mostram ser possível haver homens com vagina e mulheres com pênis.
1
Doutora em Psicologia Social, do Trabalho e das Organizações pela Universidade de Brasília.
Professora do Centro Universitário Planalto do Distrito Federal. Integrante da Associação Brasileira de
Psicologia Social e investigadora da Rede de Antropologia Dos e Desde os Corpos. Endereço
eletrônico: jaquelinejesus@unb.br.
2
“Transexual” é um termo genérico que caracteriza a pessoa que não se identifica com o gênero que
lhe foi atribuído quando de seu nascimento. Adotando-se uma perspectiva inclusiva que valoriza a
forma como as pessoas se reconhecem e vivem, entende-se que mulher transexual é aquela que
reivindica o reconhecimento social e legal como mulher; homem transexual é aquele que reivindica o
reconhecimento social e legal como homem (JESUS, 2012a).
A fim de tornar inteligíveis as pessoas transexuais, diferentes culturas lhes estabeleceram
papeis de gênero claramente definidos.

Pessoas trans3: cultura e patologização

Entre os povos nativos norte-americanos, pessoas que hoje identificaríamos como transexuais
eram conhecidas como “Berdaches” 4, atualmente mais conhecidos como Two-Spirit (Dois
Espíritos), referindo-se à ideia de que eram pessoas que viviam papéis de dois gêneros ou que
eram de um terceiro gênero.
No povo Mohave, que habita a região do Rio Colorado, no Deserto de Mojave, pessoas que
hoje identificaríamos como mulheres transexuais eram chamadas de Alyha, eram tratadas com
nomes femininos, referências de gênero femininas e precisavam assumir hábitos considerados
femininos, como costurar; já os homens tidos por nós como transexuais eram chamados de
Hwame, tratados como homens e, quando casados, seguiam os “tabus requeridos de maridos
quando suas esposas menstruavam” (ROSCOE, 1996, p. 361).
Nos relacionamentos afetivos, tanto hwame quanto alyha eram referidos pelos companheiros,
respectivamente, como “marido” ou “esposa”, tratamento coincidentemente similar ao que
ocorre no Brasil contemporâneo. Inclusive, as alyha usavam “a palavra mohave para clitóris
pra se referir aos seus genitais masculinos, o termo para grandes lábios pra descrever seus
testículos e a palavra para vagina para se referir aos seus ânus” (ROSCOE, 1996, p. 360), o
que também é uma prática comum entre mulheres transexuais brasileiras.
Harry Benjamim (1966) cunhou o termo “transexual” e criou os procedimentos clínicos para
identificação e atendimento a pessoas transexuais. No campo clínico, até então, compreendia-
se essas pessoas como incluídas no fenômeno do “travestismo fetichista”, entendido na época,
especialmente por psicanalistas, como uma patologia, um tipo de psicose, tendo em vista a
visão de que o gênero identificado pela pessoa “normal” estaria submetido ao seu sexo
biológico (LEITE JR, 2011).
A recepção às contribuições de Benjamim no Brasil foi parcial e tardia, prevalecendo uma
concepção restrita da transexualidade, qual reduz essa condição a uma categoria clínica, a

3
O termo “trans”, ao longo do texto, será utilizado como referência a “transgênero”.
4
O termo “Berdache” tem uso clássico, porém tem sido criticado por ser antiquado e ofensivo, tendo
em vista que não era utilizado pelas pessoas às quais se referia, foi imposto por antropólogos que se
basearam na palavra francesa para homem que se prostitui (garoto de programa, “michê”), bardache, a
qual, por sua vez, derivou-se do árabe bardaj ( ‫) ُ جَدْ َر لب‬, que significa “cativo, prisioneiro” (JACOBS,
THOMAS & LANG, 1997).
uma patologia, e essas pessoas a seres abjetos, para os quais procedimentos cirúrgicos trarão a
“cura”, conforme critica Bento (2006, 2008).
Exemplo da recepção tardia do conceito de transexual no Brasil foi o martírio impingido ao
médico Roberto Farina, primeiro cirurgião a fazer uma cirurgia de redesignação sexual no
Brasil, em 1971, na mulher transexual Waldirene Nogueira. Apesar de o procedimento não ser
uma novidade, tendo em vista o caso supracitado de Coccinelle, em 1978 Farina foi
processado pelo Conselho Federal de Medicina – CFM, sob a acusação de lesões corporais
graves (FARINA, 1982). Foi primeiramente condenado, e somente foi absolvido, em uma
instância superior, porque uma junta médica do Hospital das Clínicas de São Paulo, onde
ocorrera o procedimento, havia dado um parecer favorável à intervenção, fazendo uso do
conceito de Benjamim do procedimento como solução terapêutica.
Algumas afirmações do juiz que condenou Roberto Farina são significativas da visão do sexo
biológico como destino e, surpreendentemente, até hoje são utilizados como argumentos na
sociedade sexista e transfóbica 5 para dificultar ou impedir a integração completa das pessoas
transgênero, mesmo que não se justifiquem: (1) a “vítima” de Farina não poderia jamais ser
uma mulher, porque não tinha os órgãos genitais internos femininos; (2) a cirurgia poderia
criar condições para uniões matrimoniais espúrias; e que (3) o tratamento da transexual, uma
doente mental, deveria ser psicanalítico, e não cirúrgico, pois a cirurgia impediria a sua
recuperação (REYS & SALOMONE, 1978). Como parte desse clima de confusões
conceituais e preconceitos, a acusação chegou a afirmar que Farina “quer que os bichinhas de
21 anos de idade entrem na fila para conseguirem ser operados” (IDEM, p. 92).
Até 1997 o CFM proibiu no Brasil, as cirurgias de redesignação sexual para pessoas
transexuais, mesmo com o advento, já em 1979, da nona versão da Classificação Internacional
de Doenças – CID 9 (http://www.cdc.gov/nchs/icd/icd9.htm), manual de orientação dos
profissionais de saúde em geral, na definição e tratamento de transtornos mentais, editada pela
Organização Mundial de Saúde – OMS, que pela primeira vez incluiu a definição de
“transexualismo” como um transtorno de identidade de gênero, e indicava o procedimento
cirúrgico como uma forma de tratamento, o que, apesar de patologizar as pessoas trans,
possibilitava aos médicos fazerem a intervenção sem serem acusados de cometerem lesões
corporais.
O CID 9 vigorou até 1998, quando foi substituído pela 10ª edição do CID (ORGANIZAÇÃO
MUNDIAL DE SAÚDE, 2008), no qual a transexualidade continuou sendo identificada como
um transtorno. A quarta edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais –
DSM IV (AMERICAN PSYCHIATRIC ASSOCIATION, 1994), que passa por revisões,

5
Termo que se refere a “transfobia”, medo ou ódio com relação a pessoas transgênero.
adota a mesma visão. Laudos médicos ou psicológicos no Brasil são ainda hoje guiados por
protocolos que excluem do “diagnóstico” da transexualidade (rotulada clinicamente de
“transexualismo”) pessoas que, apesar de adequarem o seu corpo ao seu gênero, por meio de
hormônios ou de roupas, não desejam passar por cirurgias de redesignação sexual.
Essa classificação parte de uma compreensão biologizante dos gêneros, que trata gênero como
uma configuração puramente genética, senão meramente genital, confundindo-o com sexo
biológico, de modo que qualquer expressão de gênero diferente da atribuída ao nascimento e
esperada socialmente para pessoas com vagina ou com pênis é considerada anômala e
classificada como um transtorno.
Tal perspectiva se contrapõe à que trata o gênero como um conjunto de atos performativos,
norma que se materializa discursivamente (BUTLER, 2003), mosaico de identidades
construído socialmente, visão esta que permitiria compreender as vivências trans fora de
modelos patológicos.
Como relatam Bento (2008) e Pelúcio (2009a), a partir da ótica da Teoria Queer, de
contestação a qualquer normalização, o controle sobre os corpos é reconhecido como um
dispositivo de poder e saber (remetendo ao pensamento de Foucault): pessoas trans ainda não
são vistas como seres humanos, mas como seres abjetos, porque não são inteligíveis para os
padrões hegemônicos de gênero (fundamentados no binarismo) e até mesmo de sexualidade.
As pessoas travestis e transexuais, e seus parceiros, têm se mobilizado internacionalmente
contra a psiquiatrização das identidades trans e pelo reconhecimento de direito ao gênero,
independentemente do sexo biológico (REDE INTERNACIONAL PELA
DESPATOLOGIZAÇÃO TRANS, 2012), em uma luta pelo direito à autodefinição.
Esse é um dos aspectos políticos centrais da ação coletiva relacionada às pessoas transgênero:
a luta pelo direito — atualmente negado por diversos profissionais de saúde, operadores do
direito e outras autoridades — de poderem se nomear, de serem autônomas para falarem de si
mesmas.
Na conjuntura brasileira, o espaço reservado a homens e mulheres transexuais, e a travestis, é
o da exclusão extrema, sem acesso a direitos civis básicos, sequer ao reconhecimento da
identidade. São cidadãs e cidadãos que ainda têm de lutar muito para terem garantidos os seus
direitos fundamentais, tais como o direito a vida, ameaçado cotidianamente.
A partir de um delineamento do panorama brasileiro de violência estrutural contra pessoas
transgênero, o presente artigo objetiva analisá-lo a partir do uso de conceitos como o de
crimes de ódio e o de genocídio.
Identidade de gênero e classificações sociais brasileiras

No que se refere ao seu cotidiano, as pessoas transgênero são alvos de preconceito,


desatendimento de direitos fundamentais (diferentes organizações não lhes permitem utilizar
seus nomes sociais 6 e elas não conseguem adequar seus registros civis 7 na Justiça), exclusão
estrutural (acesso dificultado ou impedido a educação, ao mercado de trabalho qualificado e
até mesmo ao uso de banheiros) e de violências variadas, de ameaças a agressões e
homicídios, o que configura a extensa série de percepções estereotipadas negativas e de atos
discriminatórios contra homens e mulheres transexuais e travestis denominada “transfobia”.
A categorização da população transgênero na cultura brasileira contemporânea pode ser
descrita a partir de 6 (seis) dimensões: biológica (relativa ao sexo biológico); identitária
(referente ao gênero com o qual a pessoa se identifica); clínica tradicional (visão ortodoxa,
relacionada à nomeação dada por profissionais de saúde a partir do modelo patologizante);
clínica identitária (visão nova e ainda heterodoxa, decorrente da apropriação da visão
identitária sobre gênero pela clínica, que assume um papel inclusivo para as pessoas
transgênero); laboral (decorrente da aproximação atribuída socialmente a determinados
grupos profissionais); e política (consequente da identificação da pessoa com o gênero e a
busca por uma desvinculação ao modelo patologizante).
Identifica-se a categorização laboral brasileira com a forte associação e a naturalização
construída historicamente entre pessoas trans, especialmente as travestis, e sexo comercial,
relacionado aos espaços sujos e perigosos das cidades (PELÚCIO, 2009a, 2009b).
Essa aproximação estereotipada entre a população transgênero e a prostituição, tão presente
na linguagem cotidiana (o termo “travesti” é utilizado popularmente e mesmo em meios de
comunicação como sinômino de “profissional do sexo travesti”), até 2011 era adotada pelo
Estado, que a oficializava por meio da Classificação Brasileira de Ocupações – CBO do
Ministério do Trabalho e Emprego – MTE, instituída pela portaria ministerial nº. 397, de 9 de
outubro de 2002.
Disponível online, a CBO “tem por finalidade a identificação das ocupações no mercado de
trabalho, para fins classificatórios junto aos registros administrativos e domiciliares”
(Ministério do Trabalho e Emprego, 2012, p. 1). No código 5198-05, que define e dá
sinônimos para a ocupação “Profissional do Sexo”, tais como: “Garota de programa, Garoto
de programa, Meretriz, Messalina, Michê, Mulher da vida, Prostituta, Trabalhador do sexo”;

6
Aquele pelo qual a pessoa transexual ou travesti se identifica e é identificada socialmente.
7
Nome civil e sexo registrados na certidão de nascimento. Os registros civis brasileiros não adotam o
conceito de gênero, ainda se restringindo ao sexo biológico.
estavam incluídos, também, os termos “Transexual” e “Travesti”, os quais somente foram
retirados no ano de 2011, ante a protestos do movimento social transgênero.
A categorização clínica tradicional, que prioriza a condição transexual como um transtorno, e
o sexo em detrimento do gênero com o qual a pessoa se identifica, entra em distensões
semânticas e práticas com a categorização identitária (LEITE JR, 2011) e com a clínica
identitária, que reconhece o direito de as pessoas trans advogarem suas próprias identidades.
A tabela 1 enumera as possibilidades de auto e de heteroidentificação de homens e mulheres
transexuais, segundo cada lógica e considerando a natureza da abordagem: se inclusiva
(reconhece as pessoas trans pela forma como se identificam), excludente (nega o direito a
autodeterminação das pessoas trans, patologizando-as) ou neutra8.

Identidade de Gênero
Categorização Abordagem Mulher Homem Travesti
transexual transexual
Biológica Neutra Macho Fêmea Macho
Identitária Inclusiva Mulher Homem Homem e
mulher; homem
ou mulher; ou
apenas travesti
Clínica Excludente Homem Mulher Travesti
tradicional transexual ou transexual ou
transexual transexual
masculino feminino
Clínica Inclusiva Mulher Homem Travesti
identitária transexual transexual
Laboral Excludente Profissional do Profissional do Profissional do
sexo sexo sexo
Política Inclusiva Mulher Homem Travesti
transexual transexual
Tabela 1: Categorizações da população transgênero brasileira.

8
Concepção factual e amoral, que dependendo da importância atribuída ao fato, pode não ter qualquer
preponderância, ou ter alguma hierarquia, sobre a forma como as pessoas se identificam e/ou são
identificadas, no que tange a identidade de gênero.
Desse modo, as diferenças ideológicas nas percepções sobre a população transgênero, a partir
de óticas mais ou menos inclusivas, incorrem em categorizações distintas das mesmas
pessoas, a partir da autopercepção, e da heteropercepção que valoriza a autoidentificação das
pessoas trans ou que a psiquiatriza as identidades trans.

Exclusão e violência

A situação atual de violência e assassinato de pessoas trans será apresentada com base nas
informações coletadas pelo projeto de pesquisa quali-quantitativa “Transrespect versus
Transphobia Worldwide” (TvT), conduzido pela TransGender Europe – TGEU, Organização
Não-Governamental (ONG) com sede em Viena, na Áustria.
Esse projeto de pesquisa objetiva monitorar a situação dos direitos humanos de pessoas trans
em diferentes partes do mundo e analisa os dados sobre assassinatos a partir de informações
encaminhadas por instituições internacionais de direitos humanos, pelo movimento
transgênero e por qualquer pessoa que queria denunciar uma violência, geralmente com base
em notícias veiculadas pelos meios de comunicação.
A opção feita neste artigo de trabalhar com uma fonte não oficial (informações analisadas por
uma ONG, com base em notícias) se deve ao fato de que não existe no mundo uma coleta de
dados sobre violências contra pessoas trans tão apurada quanto à da TGEU, e que no Brasil,
em particular, inexiste um sistema de informações oficial que contabilize as mortes de pessoas
trans, exceto iniciativas isoladas de ONGs como o Grupo Gay da Bahia – GGB.
Críticas ao uso de fontes não oficiais são comuns, tanto quanto o reconhecimento de que é
possível estudar violência com base em dados decorrentes de notícias (OLIVEIRA,
GERALDES, LIMA & SANTOS, 1998). A mídia brasileira é contumaz em reproduzir
estereótipos de gênero sobre as mulheres, e especialmente aqueles que desumanizam pessoas
transexuais e travestis (JESUS, 2012d). As notícias veiculadas pelos meios de comunicação
não são responsáveis pela naturalização da violência, mas oferecem pistas para essa
naturalização (SPINK & SPINK, 2006).
Ao recuperar esse olhar e desconstrui-lo, este estudo rompe o silêncio sobre o assunto e tenta
colaborar com alguma transformação social.
Dados do projeto TvT indicam, a partir de notícias coletadas ao redor do mundo, um total de
816 (oitocentos e dezesseis) assassinatos de pessoas transgênero em 55 (cinquenta e cinco)
países, entre primeiro de janeiro de 2008 e 31 de dezembro de 2011 (TRANSGENDER
EUROPE’S TRANS MURDER MONITORING, 2012a). A figura 1 expressa a distribuição
global dessa realidade.

Figura 1: Distribuição mundial dos assassinatos de pessoas transgênero (fonte:


TRANSGENDER EUROPE’S TRANS MURDER MONITORING, 2012b).

Desses 816 homicídios, a maioria absoluta ocorreu na região da América Latina (643 –
78,80% do total), com expressiva participação brasileira, que conta com 325 assassinatos no
período de 3 anos pesquisado, seguida da Ásia, com 59 (cinquenta e nove). A tabela 2
expressa os principais locais de ocorrência dos crimes, causas das mortes e profissões das
vítimas, configurando um perfil das circunstâncias mais frequentes.

% do total global
N
(n = 816)
Rua 134 16,42
Locais dos crimes Residência 73 8,95
Veículo 14 1,72
Alvejamento 310 37,99
Esfaqueamento 159 19,48
Causas das mortes
Espancamento 80 9,80
Apedrejamento 42 5,15
Profissional do sexo 227 27,82
Profissões das vítimas
Cabelereiro(a) ou dono(a) de salão 25 3,06
Tabela 2: Distribuição das principais características dos assassinatos.
São significativas as informações de que a maioria dos crimes contra mulheres e homens
transexuais e travestis ocorrem no espaço público das ruas (16,42%), tendo em vista que
grande parte deles trabalhava como profissionais do sexo (27,82%), profissão marginalizada
geralmente atribuída à população transgênero, especialmente às travestis, devido à exclusão
educacional e laboral que sofrem historicamente.
Também chama atenção que sejam geralmente executadas com tiros (37,99%), o que indica
planejamento por parte dos autores. Notável ainda haver apedrejamentos (5,15%), método
arcaico de punição para indivíduos considerados desviantes.
O Brasil é responsável, isoladamente, por 39,8% dos assassinatos de pessoas transexuais
registrados no mundo entre 2008 e 2011, e no mesmo período por 50, 5% desses crimes na
América Latina.
Somente em 2011, 248 pessoas foram assassinadas por serem transexuais ou travestis
(TRANSGENDER EUROPE’S TRANS MURDER MONITORING, 2012c). O Brasil é o
país onde mais foram reportados assassinatos de pessoas integrantes da população transgênero
nesse ano: 101 (cento e um), seguido do México, com 33 (trinta e três) assassinatos, e da
Colômbia, com 18.
A América Latina é a região com os piores índices: 204 (duzentos e quatro), 82,26% do total
global, seguida da Ásia, com 17 (dezessete), apenas 6,85% das mortes em todo o mundo.
Pode-se considerar que a tradição machista e sexista da cultura latino-americana tenha alguma
influência nesses resultados extremamente negativos.
A gravidade dos dados coletados no Brasil, entre 2008 e 2011, acentua-se quando se
comparam os números de assassinatos transfóbicos deste com os de outros países com nível
semelhante de liberdade de imprensa e de mobilização social, fatores que aumentam a
probabilidade de divulgação de crimes de ódio, em diferentes continentes, conforme a tabela
3.

Estados África
País Brasil Argentina Portugal Índia
Unidos do Sul
Número de
325 18 52 1 1 10
assassinatos
Porcentagem
94,46% 84% 99,69% 99,69% 96,92%
em comparação —
menor menor menor menor menor
com o Brasil
Tabela 3: Quadro comparativo de assassinatos em diferentes países e no Brasil.
Demonstra a tabela 3 que, internacionalmente, o número de assassinatos é menor se
comparado ao Brasil, país em que a extrema transfobia estrutural, processo sociocultural que
nega a cidadania das pessoas transgênero, torna-se mais visível quando se remete a dados
precisos e tangíveis como o de assassinatos supracitados.
A tabela 4 apresenta a descrição de algumas vítimas brasileiras, identificadas pelos seus
nomes sociais, quando informados, e as circunstâncias dos crimes.

Local do Causa da
Nome Idade Circunstâncias
crime morte
Rua em Tinha se mudado da capital Aracaju
Gabi 17 Lagarto Alvejada para trabalhar como faxineira. Foi
(SE) alvejada na rua.
Trabalhava como profissional do sexo.
Rodovia em Um carro com dois sujeitos estacionou
Não
Adriana Cariacica Alvejada próximo a ela. Um deles saiu do
informada
(ES) veículo e, sem falar nada, disparou
várias vezes.
Segundo testemunhas, discutia dentro
Rua no
de um carro com alguém. Ela foi
Centro de
Márcia 30 Alvejada alvejada no pescoço e jogada para fora.
Jaraguá do
O assassino fugiu, ela morreu em um
Sul (SC)
hospital.
Casa em Foi encontrada morta com 20 facadas
Não Não
São Paulo Esfaqueada no rosto e no estômago. O acusado
informado informada
(capital) morava na redondeza.
Avenida em Ela já tinha sido alvo de duas tentativas
Natasha 26 Curitiba Apedrejada de homicídio, em uma delas um de seus
(PR) parentes ficou gravemente ferido.
Avenida em O corpo foi encontrado com três tiros
Não
28 Curitiba Alvejada no rosto, suas calças estavam
informado
(PR) abaixadas.
Rua em
Não Vivia em Aracaju, visitava a mãe em
Carla Penedo Alvejada
informada Alagoas quando foi morta.
(AL)
Rua em São Ela discutia com alguém em frente ao
Não Não
Paulo Esfaqueada Jockey Club quando ele a esfaqueou e
informado informada
(capital) fugiu numa picape.
Vivia com moradores de rua. Na noite
anterior, alguém ateou fogo nos
Rua em pertences deles e efetuou tiros, sem
Não Belo acertar ninguém. No dia seguinte, o
Mona Alvejada
informada horizonte suspeito, um morador ou comerciante
(MG) local que não queria travestis nas
redondezas matou Mona com 3 tiros,
nas costas e no pé.
Morreu após levar um tiro no rosto.
Rua em
Alguns meses antes uma mulher de 28
Bruninha 19 Apucarana Alvejada
anos a esfaqueara no rosto e no peito,
(PR)
mas ela não quis registrar a ocorrência.
Rua em Saia de um bar quando Renan Donizeti
Não Pouso Tomas, que mantinha um
Claret Apedrejada
informada Alegre relacionamento com ela, matou-a com
(MG) pedradas na cabeça.
Ela era mobilizadora social da
Rua em
Suely comunidade desde os anos 80. Foi
41 Campinas Espancada
Scalla morta de manhã, na principal avenida
(SP)
da cidade.
Tabela 4: Descrição de vítimas brasileiras e circunstâncias (adaptada de TRANSGENDER
EUROPE’S TRANS MURDER MONITORING, 2012d).

Nessa curta listagem se evidenciam os inúmeros casos de transfobia expressa pelo homicídio
de travestis e transexuais, especialmente as mulheres, algumas jovens, ainda adolescentes,
outras adultas.

Crimes de ódio

No que tange às questões de gênero, nos assassinatos das travestis e das mulheres transexuais
se verifica a mesma lógica das violências conjugais comuns em casais tradicionais,
heteronormativos e pautados por relações machistas, caracterizadas pela agressão da mulher,
por parte do homem, quando em uma situação de conflito, como uma estratégia de controle
sobre o corpo feminino (BANDEIRA, 2009); além de desamparo aprendido e descrença das
vítimas ante à inoperância das instituições sociais de suporte (SANTI, NAKANO &
LETTIERE, 2010).
As violações supracitadas, de forma geral, repetem o padrão dos crimes de ódio, motivados
por preconceito contra alguma característica da pessoa agredida que a identifique como parte
de um grupo discriminado, socialmente desprotegido, e caracterizados pela forma hedionda
como são executados, com várias facadas, alvejamento sem aviso, apedrejamento
(STOTZER, 2007), reiterando, desse modo, a violência genérica e a abjeção com que são
tratadas as pessoas transexuais e as travestis no Brasil.
Stotzer (2007) considera que o grupo composto pelas pessoas transexuais e travestis é alvo
significativo de crimes de ódio, dada principalmente a sua desproteção social. O autor
identificou, em 1997, 213 crimes de ódio nos Estados Unidos da América, decorrentes da
identidade de gênero das vítimas; e 321 em 2004.
Conforme afirma Martins (2008), o uso de imagens fixas (fotografia) ou em movimento
(vídeo), como documentos sociológicos de registro factual, apresenta limitações e
possibilidades para a análise da realidade social. No que se refere a situações de conflito e
violência urbana contemporânea, o material gravado pelas câmaras postadas em diferentes
locais, para monitoramento de trânsito ou com a finalidade de salvaguardar a segurança dos
cidadãos — muito embora, em grande parte, apenas registrem as ocorrências e sirvam como
provas ex post facto —, apresenta enorme potencial para composição da vivência e
experiências diferenciais dos sujeitos e coletividades.
Uma cena, gravada em 15 de abril de 2011, é significativa do caráter de ódio que orienta a
transfobia no Brasil: o assassinato brutal, ocorrido em Campina Grande, na Paraíba, da
travesti Idete (o seu nome social foi pouco divulgado na mídia, ao contrário do civil, além do
tratamento em termos masculinos), morta com mais de 30 facadas por um grupo de 3 jovens
(YOUTUBE, 2011). O link para o vídeo consta da bibliografia9.
Esse foi mais um crime de ódio, em uma de suas formas mais brutais: o ataque físico; e
covarde: a ação em grupo. A escala de Allport (1954) para as formas de expressão do
preconceito contra grupos sociais coloca o ataque físico, incluindo linchamentos, como o
nível mais grave depois do extermínio, quando o Estado colabora para que um grupo seja
liquidado, a exemplo do Holocausto. Isso nos remonta aos fins do século XIX e até meados

9
Devido ao elevado grau da violência retratada, as imagens somente podem ser acessadas mediante
login e identificação como maior de 18 anos de idade.
do século XX, quando das ações de grupos que perseguiam e matavam pessoas pelo fato de
serem negras, como a Ku Klux Klan.
No que se refere especificamente às travestis e às mulheres transexuais, não há informação
oficial de como órgãos públicos brasileiros têm-se articulado para pensar e auxiliá-las, no que
envolve a possibilidade de serem atendidas nas Delegacias Especializadas de Atendimento à
Mulher; a proteção pela Lei Maria da Penha; o respeito à sua identificação no trabalho e
outros espaços.
Há decisões judiciais favoráveis à aplicabilidade da Lei Maria da Penha para violências
conjugais em casais formados por homens cisgêneros10 e mulheres transexuais. Conforme
relato de Mendonça (2011), uma mulher transexual, cujo nome social não foi divulgado,
apelou à Justiça do estado de Goiás ante às reiteradas agressões do ex-companheiro.
Pontuando a condição marital do relacionamento e salientando a condição de mulher da
vítima, sobretudo o fato dela ser reconhecida socialmente como tal, a juíza Ana Claudia
Magalhães, da 1ª Vara Criminal de Anápolis, conferiu à ofendida tratamento jurídico
equivalente ao de outras mulheres, nas posturas que a Lei Maria da Penha combate, e manteve
o acusado na prisão, proibindo-o, quando em liberdade, de estar a menos de mil metros da
ofendida e de seus familiares, bem como de manter contato com ela e seus entes em linha reta,
por qualquer meio de comunicação.
Faz-se mister destacar a compreensão da juíza de que, sendo o sexo determinado ao
nascimento e o gênero construído ao longo da vida humana, a Lei Maria da Penha não teria
sentido se objetivasse proteger apenas a um sexo biológico, e não à constituição de gênero, o
de mulher, que formatado por características sociais, culturais e políticas impostas a homens e
mulheres, independe das diferenças biológicas.
No aspecto da visibilidade, apesar de haver pessoas transexuais nos diferentes espaços
políticos, técnicos ou acadêmicos brasileiros, a sua visibilidade na sociedade e nos meios de
comunicação é concentrada no aspecto marginal, e pouco no seu cotidiano e demandas.

Violência estrutural

O pequeno espaço conquistado por homens e mulheres transexuais é fruto de mobilização,


geralmente individual, pelo respeito a suas especificidades e direitos fundamentais, e tem sido
potencializado pela inserção dos coletivos trans e seus simpatizantes na lógica dos novos

10
São conceituadas como “cisgêneros” as pessoas cuja identidade de gênero está de acordo com o que
socialmente se estabeleceu como o padrão para o seu sexo biológico (JESUS, 2012a).
movimentos sociais, caracterizados por políticas de identidades ou identitárias (JESUS,
2012c).
O movimento transgênero se encontra cada vez mais visível, a partir de manifestações
públicas, mas principalmente pelo ativismo em rede, instrumento pelo qual fabricam novas
realidades sociais, reconfigurações das relações de gênero, por meio da combinação de
elementos cotidianos e extra-cotidianos, demarcando suas identidades pessoais e sociais e
demonstrando, na sua práxis cotidiana, que a sua identidade de gênero não esgota sua
subjetividade, sendo, portanto, seres humanos complexos, como quaisquer outros.
Identifica-se, entretanto, considerando-se a perspectiva político-identitária desta análise, a
necessidade do desenvolvimento de uma linguagem propositiva em comum, para que as
diferentes militâncias trans, além de ocupar um lugar questionador, sejam capazes de:

dizer publicamente sobre si e sobre aquilo que desejam para si. Nesse sentido, a
luta militante lhes possibilita participação ativa em processos de formulação de
políticas públicas a cada vez que pensam ações possíveis de governo, mas também
em um controle social efetivo daquelas políticas públicas que são implementadas
(SILVA & BARBOZA, 2009, p. 274).

No que se refere às ações protetivas do Estado, há avanços formais, porém pouca repercussão
efetiva. O Governo Federal subscreve o Plano Nacional de Promoção da Cidadania e Direitos
Humanos de Lésbicas, Gays, Bissexuais, Travestis e Transexuais – LGBT11, resultante das
discussões realizadas durante a 1ª Conferência Nacional LGBT, ocorrida em Brasília entre 5 e
8 de junho de 2008; e adotou o nome social de servidores públicos federais travestis e
transexuais, com a publicação da Portaria nº 233 da Secretaria de Recursos Humanos do
Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão, de 18 de maio de 2010, que foi reiterada,
na esfera do Ministério da Educação, pela Portaria nº 1.611, de 17 de novembro de 2011.
Entretanto, o formato do novo documento de identidade, o Registro de Identificação Civil –
RIC, desenvolvido no âmbito do Ministério da Justiça com base no Decreto presidencial nº
7.166, de 5 de maio de 2010, o qual gerará um número único de identificação civil para todos
os cidadãos brasileiros, apresenta-se como um retrocesso na questão dos direitos da população
transgênero, porque expõe o sexo biológico das pessoas, conforme se observa no destaque em
vermelho na figura 2.

Figura 2: Destaque da imagem oficial do RIC divulgada pelo Ministério da Justiça (fonte:
http://portal.mj.gov.br/portal/ric).

11
Disponível eletronicamente em http://portal.mj.gov.br/sedh/homofobia/planolgbt.pdf.
O atual Registro Geral – RG (CI – Carteira de identidade) não mostra o sexo das pessoas.
Evidentemente, o RIC não adota o conceito de gênero, mas o de sexo, e o apresenta em seu
formato impresso.
Esse documento, como se encontra, causará mais constrangimentos para as pessoas
transexuais e travestis que não conseguiram adequar seus registros civis ao gênero com o qual
se identificam, considerando as dificuldades enfrentadas nos Tribunais para adequação dos
registros civis, ante à inexistência de uma legislação a respeito do tema e da lentidão no
andamento de projetos existentes, como a estratégica Ação Direta de Inconstitucionalidade –
ADI 4275, que está sendo analisada no Supremo Tribunal Federal pelo Ministro relator Marco
Aurélio de Mello, apresentada em 21 de julho de 2009 pela Procuradoria-Geral da República,
com a finalidade de reconhecer o direito das pessoas transexuais modificarem nome civil e
sexo na documentação civil, a fim de que esses registros se adequem a sua realidade
identitária, social e de gênero.

Genocídio

“Genocídio”, união dos termos gregos genos (grupo) e cide (matar). Etimologicamente,
significa “matar um grupo”. Decerto a expressão genocídio tem sido utilizada levianamente,
por leigos e até mesmo por acadêmicos, em casos em que o seu emprego indiscriminado, para
se referir tanto a extinção de animais quanto a massacres em larga escala (CHALK &
JONASSOHN, 1990), pede uma qualificação do uso do conceito antes de emprega-lo.
No presente trabalho, genocídio é definido com base no artigo II da Convenção das Nações
Unidas para a prevenção e punição do crime de genocídio 12 (ASSEMBLEIA GERAL DAS
Nações Unidas, 2012), como qualquer ato cometido com a intenção de destruir total ou
parcialmente um grupo, dentre os abaixo citados:

a) Assassinato de membros do grupo;


b) Atentado grave à integridade física e mental de membros do grupo;
c) Submissão deliberada do grupo a condições de existência que acarretarão a sua
destruição física, total ou parcial;
d) Medidas destinadas a impedir os nascimentos no seio do grupo;
e) Transferência forçada das crianças do grupo para outro grupo (ASSEMBLEIA
GERAL DAS NAÇÕES UNIDAS, 1948, p. 1).

Considerando o contexto da violência letal contra pessoas trans no Brasil, e aplicando-se a ele
os critérios para a definição de um genocídio supracitados, têm-se que, dentre os atos listados
como característicos de genocídios, os diretamente relacionados à violência estrutural a que a
população transgênero brasileira é submetida, e que culmina nos assassinatos, são os
relacionados à alíneas a, b, c e d.
A citação da alínea d, em particular, justifica-se pelo fato de que, no Brasil, pessoas
transgênero que buscam legalmente adequar o seu registro civil ao nome e ao gênero com o
qual se identificam encontram obstáculos desumanizadores, sendo em geral demandadas,
mesmo as que não desejam, a se submeterem a arriscadas cirurgias de redesignição genital
para que lhes seja concedido o direito fundamental à identidade. Isso, além de ser uma
violência institucional, é uma prática eugenista de esterilização forçada contra um grupo
populacional, em pleno século XXI. Em síntese, significa afirmar que o Estado brasileiro tem
exigido de pessoas transexuais e travestis a sua esterilização antes que possam ter o direito ao
reconhecimento legal de sua identidade social.
Ante ao exposto, em virtude da sua expressividade numérica com relação a outros países; do
seu enquadramento como crime de ódio, dada sua natureza de cunho discriminatório; da sua
identificação com a maioria dos atos relacionados a genocídios; e com base em uma
perspectiva teórica útil, o assassinato de pessoas transgênero no Brasil pode ser designado
como um genocídio.

Considerações finais

12
Aprovada em 9 de dezembro de 1948 e em vigor desde 12 de janeiro de 1951.
Essa caracterização dos assassinatos de travestis e de mulheres e homens transexuais no
Brasil, no nível micro, como crimes de ódio, e no nível macro como parte de uma tentativa de
genocídio dessa população, visa elucidar as consequências da violência estrutural contra as
pessoas trans, para que se deixe de invisibilizar o que sofrem como se fosse apenas uma série
de assassinatos isolados, e revelar seu mecanismo de intolerância generalizada, que encerra a
ideia da impossibilidade de conviver com “esse” outro, porque sua vivência de gênero é
diferente da “nossa”.
No mundo contemporâneo, mais que vivenciar uma identidade de gênero, ser transgênero
corresponde a representar uma identidade política, pautada pela desconstrução da crença em
papéis de gênero considerados “naturais”, construídos biologicamente; e pela visibilização de
identidades particulares historicamente estigmatizadas, tornadas invisíveis em determinados
espaços sociais considerados “normais” porque, como ocorre com qualquer ser humano com
características pessoais ou sociais associadas a um estigma corporal, psicológico ou de
caráter, “acreditamos que alguém com um estigma não seja completamente humano”
(GOFFMAN, 1980, p. 15).
Entre avanços e retrocessos decorrentes de ofensivas reacionárias, ainda estamos distantes,
principalmente na realidade brasileira, do ideal delineado por Joan Roughgarden (2005), para
quem a sociedade um dia poderá amadurecer e o fato de uma pessoa se assumir como
transexual não mais seria considerado uma razão de luto para ela, os familiares e amigos, mas
de enorme alegria, quem sabe com direito a uma festa, visto a pessoa estar se encontrando, em
uma espécie de segundo nascimento.
A possibilidade de progredir nessa direção está, sob a ótica da mobilização social como forma
de influência dos grupos sociais marginalizados, em que as pessoas que vivenciam a
dimensão das transgeneridades (ou transgeneralidades), orientadas por políticas de cunho
identitário, tornem a sua realidade cada vez visível, e continuem lutando, dentro dos sistemas
legais e políticos, para propiciar um maior reconhecimento de sua humanidade e da justeza de
suas várias demandas. Dentre elas, o direito à identidade, e antes desta, o direito à vida.

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