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A transexualidade em face do crime de feminicídio

Transsexuality in the face of the crime of feminicide

Alyne Maria Emerick Rabelo*


Jaime Ribeiro de Oliveira Júnior**

Resumo: O presente artigo visa analisar o crime de feminicídio quando na condição de vítimas estão as
mulheres transexuais. Consideram-se como paradigma da pesquisa tanto a Lei nº 13.104/2.015 (Lei do
Feminicídio) quanto a Lei nº 11.340/2.006 (Lei Maria da Penha), ambas tendo como objeto de proteção
a mulher, no sentindo amplo. Partindo desse pressuposto, através de pesquisas cuja metodologia foi
quantitativa, de revisão bibliográfica, buscou-se abordar a situação do transexual nesse contexto, como
membro de uma comunidade que é minoria, entender quais leis os protegem e como tornam-se vítimas
desse sistema. Diante dos fatos mencionados, chegou-se à conclusão de que as mulheres transexuais são
consideradas mulheres se o registro civil for modificado, mas ainda não há doutrina que enquadre suas
mortes nos quadros de feminicídio, mesmo que morram em detrimento de seus gêneros.
Palavras-chave: Mulheres; Transexuais; Feminicídio; Direito.

Abstract: The present work aims to analyze the crime of femicide when transsexual women are victims.
Both Law nº 13.104/2015 (Feminicide Law) and Law nº 11.340/2006 (Maria da Penha Law) are considered
as a research paradigm, both having women as the object of protection, in the broadest sense. Based
on this assumption, through research whose methodology was quantitative, of bibliographic review, we
sought to address the situation of transsexuals in this context, as members of a community that is a
minority, to understand which laws protect them and how they become victims of this system. In view
of the aforementioned facts, it was concluded that transsexual women are considered women if the civil
registry is modified, but there is still no doctrine that fits their deaths in the frames of femicide, even if they
die to the detriment of their genders.
Keywords: Women; Transsexuals; Femicide; Right.

Recebido em: 5/3/2023


Aprovado em: 1/6/2023

*
Pós-Graduanda em Direito Ambiental pela FAVENI, Direito Processual Penal; Direito Civil e Direito
Processual Civil pela Faculdade LEGALE. Graduada em Direito pela Faculdade de Direito e Ciências Sociais
do Leste de Minas (Fadileste).
**
Professor dos cursos de gradução e da pós-gradução da Faculdade de Direito e Ciências Sociais do
Leste de Minas (Fadileste). Pós-Graduado em Direito Processual Penal pela Faculdade Anhanguera; e em
Ciências Criminais pela Fadileste. Graduado em Direito pela Pontifícia Universidade Católica de Minas
Gerais (PUC-Minas). Advogado Criminalista. E-mail: jaimejunior19@yahoo.com.br.

Revista Vox, n. 17, p. 111-123, jan.-jun. 2023. ISSN: 2359-5183. 111


Alyne Maria Emerick Rabelo e Jaime Ribeiro de Oliveira Júnior

Introdução

O
crime de feminicídio, instituído pela lei nº 13.104 de 2.015 para punir com
mais rigor o homicídio praticado contra mulher por razões da condição de
sexo feminino, também remete à discussão sobre ter como vítima as mulheres
transexuais, considerando a eventual validade da Lei Maria da Penha (lei nº 11.340/2.006)
em favor também destas, situação a qual já foi reconhecida em decisão do Superior
Tribunal de Justiça no Recurso Extraordinário 1.977.124/SP de Relatoria do Ministro
Rogério Schietti Cruz, julgado em 05/04/2.022 e publicado em 22/04/2.022.
A lei nº 13.104/2.015 que incluiu no artigo 121 do Código Penal o feminicídio como
qualificadora do homicídio; e no artigo 1º da lei nº 8.072/1.990 como crime hediondo,
foi uma das primeiras conquistas para a defesa dos direitos fundamentais das mulheres,
efetivando assim as conquistas da Lei Maria da Penha e da Convenção Interamericana para
Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará, 1994).
O feminicídio é uma realidade que atinge corriqueiramente a população feminina
do país, começando com a grave violência no âmbito doméstico. Portanto, a inclusão
ou não das mulheres transexuais é fato a ser discutido e considerado, principalmente
na esfera penal (CAPEZ, 2017).
É notável que ainda não há legislação própria ou alterações legislativas sobre o
crime de feminicídio também incluir mulheres transexuais, porém é importante destacar
que correntes modernas, visando a harmonia do cenário atual, possuem argumentos
fundamentais para que transexuais sejam sujeitos passivos do crime, considerando,
para tanto, apenas o registro civil constando o sexo, sem a necessidade da cirurgia de
mudança de sexo (BARROSO, 2020).
Deste modo, discute-se se a qualificadora do feminicídio (artigo 121, §2º, inciso VI,
e §2º-A, do Código Penal) seria ou não aplicada às mulheres transexuais em razão do
caráter civil apresentado, bem como do caráter subjetivo da própria vítima.
Com o crime de feminicídio, nasceu a polêmica quanto ao sujeito passivo,
considerando a possibilidade ou não da mulher transexual figurar como vítima (STF,
2020). Em relação ao referido tema, há duas posições consideráveis. A primeira corrente
defende que transexual pode ser vítima de feminicídio desde que faça cirurgia de
alteração de sexo irreversível, devendo ser tratado conforme a realidade biológica, com
a alteração também do registro civil. Por sua vez, a segunda corrente defende apenas a
alteração do registro civil para que seja considerada mulher trans, conforme o critério
jurídico (BARROSO, 2020).
Como bem diz o jurista Rogério Greco (2017, p. 80-81), o critério jurídico é o que
traz segurança necessária para efeitos de reconhecimento do conceito de mulher. Com

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isso, a lei nº 13.104 de 2.015, em conjunto com a Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006),
visa proteger o polo mais vulnerável da sociedade, seja biologicamente ou juridicamente,
sendo relevante a discussão que engloba a transexualidade (CUNHA, 2016).
Consoante o tema, no ano de 2018, considerando o princípio da dignidade
da pessoa humana, houve a autorização do Supremo Tribunal Federal para que os
transexuais pudessem mudar o nome social e sexo no registro civil mesmo sem ser feita
a cirurgia de mudança de sexo ou ter uma decisão judicial para tal ato, diminuindo,
deste modo, constrangimentos, que ainda são pertinentes (STF, 2020).
Assim, diante do número crescente de assassinatos de mulheres no âmbito
doméstico/familiar, o crime de feminicídio se tornou importante na esfera penal, e
considerar que mulheres transexuais também são vítimas deste crime é imprescindível,
ao passo que, para alguns doutrinadores, persiste a ideia de gênero feminino e que o
Brasil lidera o ranking de assassinatos de LGBTQIA+.
A título de curiosidade, o Brasil atual, de acordo com a Transgender Europe, é o
país líder mundial de assassinatos de pessoas transexuais no mundo, demonstrando
quão urgente é a necessidade de políticas públicas e sociais.

Considerações sobre a terminologia

É considerado transgênero o indivíduo que não se identifica com o gênero que


nasceu, não havendo correspondência do sexo com o gênero, rejeitando, muitas vezes,
sua genitália para que possa assumir o gênero que é desejado. Em contrapartida, o
cisgênero se identifica com o gênero que lhe fora atribuído no nascimento.
Importante destacar a Resolução do Conselho Federal de Medicina nº 2.265/2019
que dispõe:

Art. 1º Compreende-se por transgênero ou incongruência de gênero


a não paridade entre a identidade de gênero e o sexo ao nascimento,
incluindo-se neste grupo transexuais, travestis e outras expressões
identitárias relacionadas à diversidade de gênero.

A identidade de gênero é o reconhecimento do próprio gênero, é o modo de como


a pessoa se identifica. Já a transexualidade é quando não há a efetiva identificação entre a
identidade sexual física com a psicológica, justificando o critério de natureza psicológica.
Além disso, difere-se, ainda o conceito de travesti, que é quando a pessoa não se sente
incomodado com a sua genitália, somente se identificando com o outro gênero.

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Em seu livro, Sérgio de Almeida (2009, p. 50) definiu transexualidade:

Transexuais são pessoas, homens e mulheres, que apresentam


identidade cruzada. De uma maneira quase geral, a identidade de cada
um é igual ao seu sexo biológico. Assim, homens teriam identidade
masculina e mulheres teriam feminina. Com os transexuais ocorre o
oposto. Assim, homens transexuais possuem identidade feminina e
mulheres transexuais, identidade masculina. Isto significa que pensam,
atuam, agem, falam e amam como se fossem do sexo oposto.

O Manual Diagnóstico e Estático de Transtornos Mentais classifica a transexualidade


como disforia de gênero, define:

Transexual indica um indivíduo que busca ou que passa por uma


transição social de masculino para feminino ou de feminino para
masculino, o que, em muitos casos (mas não em todos), envolve
também uma transição somática por tratamento hormonal e cirurgia
genital (cirurgia de redesignação sexual) (AMERICAN PSYCHIATRIC
ASSOCIATION, 2014, p. 451).

De acordo com a CID-10 (1993, p. 210), a transexualidade é classificada como:

Um desejo de viver e ser aceito como um membro do sexo oposto,


usualmente acompanhado por uma sensação de desconforto ou
impropriedade de seu próprio sexo anatômico e um desejo de se
submeter a tratamento hormonal e cirurgia para tornar seu corpo tão
congruente quanto possível com o sexo preferido.

Ainda sobre terminologia, os homossexuais são pessoas que sentem atração


física e emocional por pessoas do mesmo sexo, sendo uma categoria de orientação
sexual, juntamente com a bissexualidade, quando sente atração por ambos os sexos, e
a heterossexualidade, que é atração pelo sexo oposto.

Movimento LGBTQIA+ e direitos alcançados

Durante a Ditadura Militar, houve a criação do movimento social que agora se


denomina como LGBTQIA+, que nasceu com o intuito de conquistar direitos básicos
para seus integrantes, como a igualdade e a liberdade de expressão.

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Consoante, no Brasil, as conquistas do movimento LGBTQIA+ foram muitas, como o


casamento e a união estável homossexual legalizado em 2013, pela Resolução nº 175, do
Conselho Nacional de Justiça, bem como a autorização do Sistema Único de Saúde para
realizar cirurgia de mudança de sexo para aqueles que realmente sentem incomodados
com o próprio corpo, sendo necessário avaliação e acompanhamento médico e psicológico
adequado, além do consentimento livre e esclarecido da pessoa transexual.
Ademais, o Supremo Tribunal Federal, com o julgamento da Ação Direta de
Inconstitucionalidade 4275 (ADI, 2019), reconheceu o direito dos transexuais em alterar
o nome e gênero no registro civil, sem a realização de procedimento cirúrgico de
redesignação de sexo ou ter decisão judicial para o ato, com observância do princípio
da dignidade da pessoa humana e o desenvolvimento da sociedade (PEREIRA, 2015).
O Superior Tribunal de Justiça também já reconhecia a prevalência da identidade
psicossocial em relação à biológica, devendo ser considerados os gêneros que se
identificam, não sendo a intervenção médica requisito para a alteração de documentos
públicos (RE-SP, 2021).
Com relação direta às mulheres transexuais, em 2022, o Superior Tribunal de
Justiça estabeleceu, de forma unânime, que a Lei Maria da Penha (lei nº 11.340/2006) se
aplica aos casos de violência doméstica ou familiar também contra mulheres transexuais.
Sendo que, para a aplicação da lei, mulher trans é mulher também.
A transfobia, aversão aos transexuais, foi criminalizada, junto com a homofobia,
configurando racismo as condutas que envolvem aversão odiosa à orientação sexual ou
à identidade de gênero de alguém, nos termos dos incisos XLI e XLII do art. 5º da Carta
Magna e da Lei nº 7.716/1989, até que haja legislação específica para tanto.
Contudo, o Brasil é um dos países que mais mata LGBTQIA+, principalmente
os transexuais. Segundo pesquisa feita pela Associação Nacional de Travestis e
Transexuais (ANTRA) no ano de 2021, 135 mulheres transexuais brasileiras foram
assassinadas, em cada 10 homicídios contra transexuais no mundo, 4 ocorreram no
Brasil (BENEVIDES, 2022).
Mesmo diante de alguns direitos já conquistados, é fato que a minoria ainda não
possui a garantia desses direitos, ante o Estado e a sociedade. Visto que, considerando
aqui a questão sobre a transexualidade, a falta de domínio das novas expressões e
percepções de sexualidade, as formas como as pessoas lidam com a desigualdade dos
desiguais, e também a falta de legislação específica, deve-se à discriminação social, de
gênero, orientação sexual, raça e de ideologia.
Deste modo, observa-se que a supremacia da heterossexualidade e do machismo,
bem como o preconceito, estão arraigados de tal forma que não há dados oficiais sobre
a população transexual (SARMENTO, 2016).

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Aspectos constitucionais com relação à transexualidade

Por tudo até aqui exposto, razões assiste citar os aspectos constitucionais que
norteiam o tema. O Estado Democrático de Direito é aquele referente ao respeito
pleno dos Direitos Humanos, visando estabelecer a igualdade, ligando-se aos direitos
fundamentais de um todo e os protegendo (STF, 2020).
Com isso, expor e entender a evolução desse Estado em relação aos desafios
atuais, como a proteção dos transexuais, principalmente as mulheres, em um país como
o Brasil, que lidera o ranking de assassinatos de LGBTQIA+ como já citado, é de grande
relevância para o mundo jurídico (BENEVIDES, 2022).
De início, salienta-se que o princípio da dignidade da pessoa humana dispõe
sobre as garantias das necessidades de cada pessoa, sendo este um dos principais
fundamentos do Estado Democrático de Direito, segundo a Constituição Federal de
1988. Tal princípio é um valor soberano, e cada indivíduo deveria possuir a mesma
garantia e respeito por parte do Estado, o principal garantidor dos direitos básicos, para
viver uma vida saudável e participativa na sociedade.
A dignidade da pessoa humana tem como objetivo a erradicação da pobreza, das
desigualdades sociais e a marginalização, proporcionando integral proteção a pessoa
(CAETANO, 1993).
O professor Daniel Sarmento (2016, p. 73) destaca, em seu livro sobre a dignidade
da pessoa humana, que:

A Constituição de 88, interpretada à luz do seu sistema e da moralidade


crítica, endossa a ideia de que o Direito e o Estado existem para a pessoa,
e não o contrário. A pessoa, nesse sentido, tem um valor intrínseco, e
não pode ser instrumentalizada. Isso vale para absolutamente toda e
qualquer pessoa, não importa o seu status social, ou os atos heroicos ou
hediondos que tenha porventura praticado: todos têm igual dignidade.

Ainda, Luís Roberto Barroso (2020, p. 244), cita que:

Como valor e como princípio, a dignidade humana funciona tanto


como justificação moral quanto como fundamento normativo para os
direitos fundamentais. Na verdade, ela constitui parte do conteúdo dos
direitos fundamentais.

Seguindo este pensamento, o artigo 5º da Carta Magna impõe que todos são
iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo a vida, a liberdade,

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a igualdade, a segurança e a propriedade. Sendo assim, os direitos das pessoas


transexuais também devem ser respeitados, considerados e garantidos, observando a
intensa evolução da sociedade brasileira, ao passo que os indivíduos são livres.
A discriminação contra os transexuais é algo incompatível com a Constituição
Federal, que estabelece os direitos fundamentais das minorias e demonstra a forma
igualitária que os indivíduos deveriam ser tratados, independentemente de raça, cor,
religião, sexo, cultura, identidade de gênero ou orientação sexual (SARMENTO, 2016).
A intolerância e o preconceito estão enraizados no povo brasileiro. A orientação
sexual de outrem, mesmo que seja direito de todo indivíduo exercer suas liberdades e
preferências, é, por vezes, restringida pela sociedade.
Os direitos das minorias sexuais e seus espaços na sociedade atual estão sendo
conquistados por meio do judiciário, através do direito à autodeterminação do
gênero e da sexualidade, o reconhecimento da união estável e casamento de relações
homoafetivas, mudança de sexo por meio do Sistema Único de Saúde, mudança do
nome e gênero em registro civil mesmo que não haja cirurgia de redesignação sexual e
a criminalização da homofobia e transfobia.

Considerações sobre a Lei 13.104 de 09 de março de 2015

A Lei nº 13.104/2015 alterou o artigo 121 do Código Penal, passando a prever o


feminicídio como qualificadora do crime de homicídio, e o artigo 1º da Lei nº 8.072/1990
que incluiu tal crime no rol dos crimes hediondos, foi parte do início da defesa dos
direitos fundamentais das mulheres.
Na interpretação ampla e específica da lei, o feminicídio é o crime cometido contra
mulher por razões da condição de sexo feminino, quando envolve violência doméstica e
familiar, menosprezo ou discriminação condição de mulher.
É notório que o crime de feminicídio vem a ser cometido diante da violência
doméstica e familiar, mas também fora deste âmbito, sendo a principal causa da morte
de mulheres o simples fato de serem do sexo feminino, o sentimento de aversão, repulsa,
repugnância que o sujeito ativo do crime possa ter contra a mulher.
A violência contra a mulher é também considerada como violência de gênero,
estando a vulnerabilidade da mulher interligada ao machismo estrutural, herança
da ordem patriarcal. A masculinidade traz a ideia de que o homem tem o controle
da sexualidade e da vida das mulheres, abarcando vários pontos culturais, morais,
psicológicos e sexuais.

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Neste sentido, a filósofa Nancy J. Hirshmann (2003) ressalta que “a construção


de comportamentos e regras sociais tem vida própria e se torna constitutiva não só do
que as mulheres podem fazer, mas também do que a elas é permitido ser”, ou seja, os
comportamentos são condicionados pelo meio social.
Imperioso salientar que a criação da Lei nº 13.104/2.015 pelo Poder Legislativo
ocorreu diante das movimentações sociais existentes para a garantia dos direitos das
mulheres, podendo, na atual conjuntura jurídica, exigir proteção especial e adequada
do Estado, sendo uma das principais lutas feministas.
Preleciona Jeferson Botelho Pereira (2015) acerca do tema:

A doutrina costuma dividir o feminicídio em íntimo, não íntimo e por


conexão.
Por feminicídio íntimo entende aquele cometido por homens com os
quais a vítima tem ou teve uma relação íntima, familiar, de convivência
ou afins.
O feminicídio não íntimo é aquele cometido por homens com os quais
a vítima não tinha relações íntimas, familiares ou de convivência.
O feminicídio por conexão é aquele em que uma mulher é assassinada
porque se encontrava na ‘linha de tiro’ de um homem que tentava
matar outra mulher, o que pode acontecer na aberratio ictus.

O sujeito passivo do crime de feminicídio é a mulher, sendo que o crime precisa


ter sido cometido por razões da sua condição de sexo feminino. Já o sujeito ativo pode
ser qualquer pessoa, do sexo feminino ou masculino.
No entanto, a discussão sobre quem pode ser considerada “mulher”, para a
configuração do feminicídio, envolve variantes entre doutrina e jurisprudência, refletindo
na natureza psicológica (acredita ser do sexo oposto), biológica (identifica homem ou
mulher pelo sexo morfológico, genético e endócrino) e jurídica (registo oficial com o
sexo especificado) da vítima.
De acordo com as lições de Rogério Greco (2017, p. 80-81), entende-se como o
único critério para estabelecer se as mulheres transexuais serão vítimas de feminicídio
é o jurídico, discorrendo que:

Assim, somente aquele que for portador de um registro oficial


(certidão de nascimento, documento de identidade) em que figure,
expressamente, o seu sexo feminino, é que poderá ser considerado
sujeito passivo do feminicídio.
Aqui, pode ocorrer que a vítima tenha nascido com o sexo masculino,
havendo tal fato constado expressamente de seu registro de

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nascimento. No entanto, posteriormente, ingressando com uma


ação judicial, vê sua pretensão de mudança de sexo atendida, razão
pela qual, por conta de uma determinação do Poder Judiciário, seu
registro original vem a ser modificado, passando a constar, agora,
como pessoa do sexo feminino. Somente a partir desse momento é
que poderá, segundo nossa posição, ser considerada como sujeito
passivo do feminicídio.

Assim, para caracterização do crime de feminicídio é significativo preencher alguns


dos requisitos presentes no artigo 121, do Código Penal, sendo eles:

Art. 121. Matar alguém: [...] VI - contra a mulher por razões da


condição de sexo feminino: [...] § 2º -A Considera-se que há razões
de condição de sexo feminino quando o crime envolve: I - violência
doméstica e familiar; II - menosprezo ou discriminação à condição de
mulher. [...] § 7º A pena do feminicídio é aumentada de 1/3 (um terço)
até a metade se o crime for praticado: I - durante a gestação ou nos
3 (três) meses posteriores ao parto; II - contra pessoa maior de 60
(sessenta) anos, com deficiência ou com doenças degenerativas que
acarretem condição limitante ou de vulnerabilidade física ou mental;
III – na presença física ou virtual de descendente ou de ascendente da
vítima; IV - em descumprimento das medidas protetivas de urgência
previstas nos incisos I, II e III do caput do art. 22 da Lei nº 11.340, de
7 de agosto de 2006.

É importante ressaltar que pelo menos três mulheres morrem por dia simplesmente
por serem mulheres (CARDIM, 2016) no país, sendo que uma mulher é vítima de
feminicídio a cada sete horas. Neste diapasão, fazendo um adendo ao tema, a Lei
nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), atualmente adota que as mulheres transexuais
também configuram como vítimas nos casos de violência doméstica ou familiar.
O Superior Tribunal de Justiça estabeleceu, de forma unânime, que, para a aplicação
da lei, mulher trans é mulher também.
Com todo o exposto, nota-se que é imprescindível a tipificação e aplicação do
crime de feminicídio, ante ao crescente número de assassinatos de mulheres, pelo fato
de simplesmente serem mulheres.
Ademais, em relação às mulheres transexuais, é dever do Estado assegurar
proteção dos seus direitos, considerando o gênero que se identificam, com o objetivo
de transformar a realidade da sociedade, que está em constante evolução.

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Do reconhecimento da mulher transexual como vítima nos casos de feminicídio

A tipificação do artigo 121, §2º, inciso VI, do Código Penal é taxativa quando
considera o feminicídio contra a mulher em razão da condição do sexo feminino,
querendo o legislador proteger diretamente a pessoa do sexo feminino.
Sendo assim, partindo do ponto de vista apresentado pela Lei nº 13.104/2015,
o termo “mulher” refere-se, além da concepção biológica e psicológica, também a
identidade social da mulher transexual.
Com isso, o Superior Tribunal de Justiça decidiu, no âmbito de habeas corpus
(HC 541.237), que cabe ao Tribunal do Júri debater sobre a eventual aplicação da
qualificadora em crime contra a vida de uma vítima mulher transexual, dependendo do
caso concreto, ante provas de possível ocorrência, considerando indícios de autoria e
materialidade, nos termos do artigo 413, do Código de Processo Penal.
Neste sentido, Rogério Sanches Cunha (2016) diz que a mulher que se trata a
qualificadora do feminicídio é aquela reconhecida juridicamente. Considerando que
mulheres transexuais possuem o direito de serem identificadas como mulher, sendo
necessário apenas o seu registro civil, é por óbvio que o artigo 121, §2º, inciso VI, do
Código Penal, pode e deve ser aplicado.
Contudo, para Fernando Capez (2017) o sujeito passivo é a mulher, e por força
do princípio da legalidade estrita, a tutela do feminicídio não protege o transexual, não
cabendo, deste modo, a analogia in malan partem (CASTELLO, 2011). Considera-se que não
pode o crime ser interpretado de maneira diferente do tipificado, utilizando da analogia
para punir o autor do crime de feminicídio, sendo que o legislador, quando da edição da Lei
nº 13.104/2.015, teve a oportunidade de incluir como vítima a mulher transexual.
Há, ainda, alguns outros doutrinadores que acreditam que mesmo realizando a
cirurgia de readequação sexual e a mudança de nome e sexo em seu registro civil, a
mulher transexual não poderá ser protegida pela Lei 13.104/2015, com a justificativa de
que a cirurgia muda apenas a questão estética, mas não a cromossômica, sendo que,
para fins penais, ainda é considerado “homem”. Ante os comentários tecidos, observa-
se que a divergência entres doutrinadores, jurisprudências e lei ainda é vultuosa, com
considerações de extrema importância sobre o tema.

Conclusão

Diante do exposto, o presente trabalho teve como objetivo discutir sobre o


feminicídio e a possibilidade de mulheres transexuais figurarem no polo passivo nestes

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casos. Portanto, notável que a violência de gênero em relação às mulheres, ao longo


dos anos, obteve um grande crescimento, considerando principalmente o machismo
estrutural enraizado no país e o menosprezo à condição de mulher.
Com isso, para tentar reverter a problemática da violência contra as mulheres,
com muita determinação da luta feminista, houve a criação da Lei Maria da Penha (lei
nº 11.340/06) e a posterior Lei do Feminicídio (Lei nº 13.104/15).
Por conseguinte, foi apresentado ainda sobre os aspectos constitucionais que
englobam o tema, bem como o princípio da dignidade da pessoa humana, apresentando
acerca do gênero e a transexualidade, expondo o direito e as garantias fundamentais
que as mulheres transexuais possuem no ordenamento jurídico brasileiro.
Conforme a pesquisa idealizada, é notável que ainda não há uma legislação
específica para a proteção das mulheres transexuais, muito menos para considerá-
las também como vítimas de feminicídio. Gerando, assim, certa discriminação e
marginalização contra elas no contexto atual.
Por fim, a Lei nº 13.104/2015, tem como objetivo principal a proteção das
mulheres, ante à tanta violência por elas sofrida ao longo dos anos, vivendo em uma
atual sociedade que é fundamentada ainda no patriarcalismo. Ainda, considera-se de
extrema importância a Lei Maria da Penha, que também declara a mulher transexual
como vítima, demonstrando não ter diferença no tratamento quanto a mulher cis e a
transexual.
Para finalizar, conforme descrito, há doutrinadores que afirmam que mulheres
transexuais possuem o direito de serem identificadas como mulher, considerando
apenas o registro civil, podendo ser abarcadas pela Lei do Feminicídio. No entanto,
conclui-se, assim, que na doutrina não há posição específica para considerar ou não
mulheres transexuais como vítimas de feminicídio, percebendo a falta de legislação e o
crescimento do preconceito, não tendo a efetiva aplicação dos direitos inerentes a cada
indivíduo, desconsiderando o princípio da dignidade da pessoa humana.

Referências

Documentação jurídica

DECRETO nº 1.973 de 01 de agosto de 1996. Promulga a Convenção Interamericana


para prevenir, punir e erradicar a violência contra a mulher, concluída em Belém
do Pará, em 09 de junho de 1994. Diário Oficial da União, 02 ago. 1996, p. 14471.

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DECRETO-LEI nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940. Código Penal. Diário Oficial da União,


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Julgado Em 13/06/2019, Processo Eletrônico Dje-243 Divulg 05-10-2020 Public
06-10-2020.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. RE 670422, Relator(a): Dias Toffoli, Tribunal Pleno,
julgado em 15/08/2018, Processo Eletrônico Repercussão Geral - Mérito Dje-051
Divulg 09-03-2020 Public 10-03-2020.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. RE SP 1977124 / SP. Recurso Especial. 2021/0391811-
0. STJ- Superior Tribunal de Justiça – Lei Maria da Penha é aplicável a violência
contra mulheres trans, decide sexta turma – Relator(a): Rogério Schietti Cruz,
julgado em 05/04/2022, publicado em 22/04/2022.
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Recurso Especial Nº 1.626.739 - RS (2016/0245586-
9). Recorrente: Ministério Público do Estado do Rio Grande do Sul. Interes.: M D da
L R. Advogado: Carla Maria Souto Jardim - RS020032
SUPERIOR TRIBUNAL DE JUSTIÇA. Relator: Dias Toffoli, Tribunal Pleno, julgado em
15/08/2018, Processo Eletrônico Repercussão Geral - Mérito Dje-051 Divulg. 09-
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