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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SÃO PAULO

ESCOLA DE FILOSOFIA, LETRAS E CIÊNCIAS HUMANAS

CURSO DE CIÊNCIAS SOCIAIS

VALENTIN CANEVEZZI

TRABALHO DE CONCLUSÃO DE CURSO

ALICE JÚNIOR E VALENTINA. A construção da personagem transvestigênere no


cinema brasileiro contemporâneo

GUARULHOS
2023
Valentin Canevezzi

ALICE JÚNIOR E VALENTINA. A construção da personagem transvestigênere no


cinema brasileiro contemporâneo

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à


Universidade Federal de São Paulo como requisito
parcial para obtenção do grau em Bacharelado em
Ciências Sociais.
Orientador: Prof. Dr. Mauro Luiz Rovai

GUARULHOS
2023

2
Na qualidade de titular dos direitos autorais, em consonância com a Lei de direitos autorais no
9610/98, autorizo a publicação livre e gratuita deste trabalho no Repositório Institucional da
UNIFESP ou em outro meio eletrônico da instituição, sem qualquer ressarcimento dos direitos
autorais para leitura, impressão e/ou download em meio eletrônico para fins de divulgação
intelectual, desde que citada a fonte.

Canevezzi, Valentin.
“ALICE JÚNIOR E VALENTINA. A construção da personagem
transvestigênere no cinema brasileiro contemporâneo” – Guarulhos, 2023.
39 fs.
Trabalho de Conclusão de Curso (Bacharelado em Ciências Sociais) –
Universidade Federal de São Paulo, Escola de Filosofia, Letras e Ciências
Humanas, 2023.
Orientador: Mauro Luiz Rovai.
Título em inglês: “Alice Júnior e Valentina. The transgender characters
building in the contemporary Brazilian cinema”
1. Sociologia 2. Ciências Sociais 3. Cinema brasileiro 4. Gênero 5.
Transvestigênere 6. Análise fílmica.

3
VALENTIN CANEVEZZI

ALICE JÚNIOR E VALENTINA. A construção da personagem transvestigênere no


cinema brasileiro contemporâneo

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado à


Universidade Federal de São Paulo como requisito
parcial para obtenção do grau em Bacharelado em
Ciências Sociais.
Orientador: Prof. Dr. Mauro Luiz Rovai

Aprovação: ____/____/____

_______________________________________________________
Prof. Dr. Mauro Luiz Rovai
Universidade Federal de São Paulo

_______________________________________________________
Profa. Dra. Andréa Barbosa
Universidade Federal de São Paulo

4
À minha mãe, Luci Aparecida de Souza Canevezzi, e à toda a minha família. Por
terem me proporcionado viver a experiência da Universidade Pública, e chegar até
este momento de conclusão de curso.

5
AGRADECIMENTOS

Meu primeiro agradecimento não pode ser para outra pessoa que não seja eu. Agradeço
a mim por ter acreditado, que aos 27 anos, não era tarde demais para ingressar em uma
Universidade. Agradeço por ter tido a coragem de voltar à uma sala de aula para estudar
conteúdos de vestibular, conteúdos que há muito tempo eu não visitava ou que talvez nem
tivesse aprendido. Agradeço pela coragem que tive de sair de casa, do interior de São Paulo, e
ter me mudado para Guarulhos, para morar com pessoas que eu não conhecia e que estavam ali
tão perdidas quanto eu. Agradeço a todas as pessoas que compartilharam comigo casas e
quartos, porque muitos estudantes só conseguem se manter na Universidade dessa forma,
dividindo aluguéis e contas. Agradeço também pela minha coragem de iniciar a transição de
gênero aos 27 anos e ter construído uma identidade da qual hoje posso me orgulhar.
Agradeço à minha mãe por absolutamente tudo, desde sempre. Tenho certeza de que eu
não poderia ter sido criado de forma melhor, pois acredito que tive tudo o que eu mais precisei:
carinho e respeito. Enquanto homem trans e pertencente à comunidade LGBTIA+, sei que o
apoio dos pais, infelizmente, é um privilégio, e eu agradeço por ter sido abraçado pela minha
mãe desde o início. Estendo esse agradecimento para todas as pessoas da minha família, pelo
apoio financeiro e pelo apoio emocional.
Agradeço do fundo do meu coração à Bateria Malaguetta, o meu lugar desde quando
ingressei na UNIFESP. Muito se questiona sobre o papel da bateria dentro da Universidade, e
o papel é muito simples: política de permanência. Alguns alunos entrarão para Coletivos, outros
para grupos de estudos, grupos de dança ou teatro, e outros entrarão para a bateria. Todos os
grupos promovem integração e colaboram para que os estudantes se sintam parte da
Universidade, para que não enlouqueçam em meio a tantos textos e provas, e a Bateria
Malaguetta foi esse lugar para mim. O lugar onde eu pude conhecer pessoas, fazer amigos,
participar de festas, apresentações e competições, além de resgatar minha história com o samba.
Agradeço ao Núcleo TransUnifesp pelo seu papel na assistência de pessoas trans.
Agradeço, primeiramente, como um estudante que é assistido pelo Núcleo desde 2018, sendo
sempre muito bem acolhido. Em segundo, agradeço por ter tido a oportunidade de ser bolsista
de extensão no Núcleo, e ter conhecido pessoas maravilhosas, engajadas e dispostas a lutar por
uma Universidade mais inclusiva e por um sistema de saúde mais humanizado e acolhedor. Por
isso, gostaria de nomear essas pessoas, como forma de admiração: Denise Vieira Leite, Renan
Quinalha, Magnus Dias da Silva, Fernando de Almeida Silveira, André Dalben, Ísis Gois, Igor

6
Trindade, Natalia Tenore Rocha, Danielle Admoni, José Lincoln e Renata Rangel Azevedo.
Agradeço também às pessoas que foram bolsistas comigo, Luana, Aelin e Felipe. Obrigado pela
experiência, pela aprendizagem e por tudo que compartilhamos.

Agradeço ao professor Mauro Rovai por ter me guiado até este momento, por ter sido
atencioso e paciente comigo. Não posso deixar de agradecer também à professora Andréa
Barbosa, por ter iniciado comigo essa caminhada lá em 2020 e por ter me ajudado a organizar
minhas ideias, para que esse trabalho começasse a ganhar forma.
Agradeço à minha namorada, Giovanna Bastos, por todo apoio e por tudo que
compartilhamos ao longo da graduação. Agradeço às colegas de sala, principalmente Gabriela
e Luísa, que se tornaram grandes amigas e que sempre estiveram presentes em minha vida,
compartilhando as dores e as delícias da Universidade.

7
RESUMO

Este trabalho pretende abordar a construção das personagens transvestigêneres no cinema


brasileiro contemporâneo, utilizando-se de dois dos filmes mais recentes com essa temática.
Sob metodologia destacada por Pierre Sorlin em seu livro Sociología del cine: la apertura
para la historia de mañana, os filmes Alice Júnior (2019) e Valentina (2020) serão foco de
investigação profunda para que se possa apreender a construção das personagens e das relações
que elas estabelecem ao longo do filme, sendo estas relações com terceiros, com o ambiente
ou com elas mesmas. Para além disso, o trabalho abordará questões básicas de gênero com base
na bibliografia sobre o tema.

Palavras-chave: sociologia, ciências sociais, cinema brasileiro, gênero, transvestigênere,


análise fílmica.

8
ABSTRACT

This paper intends to address the transgender characters building in the contemporary Brazilian
cinema using two recent movies with this theme. Under the methodology by Pierre Sorlin in
his book Sociología del cine: la apertura para la história de mañana, the movies Alice Junior
(2019) and Valentina (2020) will be the focus of this investigation to understand the characters
building and the relationships they establish throughout the movie, and these relationships with
third parties, the environment or with themselves. Furthermore, the paper will address basic
gender questions based on the bibliography about the theme.

Keywords: sociology, social science, brazilian cinema, gender, transgender, film analysis.

9
SUMÁRIO

1. Introdução …………………………………………………….……..………. 11
2. Problema de pesquisa e Justificativa ……………...…………………………. 14
2.1 Transvestigêneres e o Cinema …………………………………….…… 14
2.2 Deslocamento de Gênero ……………………………….……………… 16
3. As Personagens Transvestigêneres no Cinema Nacional …………….……… 17
4. Os Sistemas Relacionais em Alice Júnior …………………………………… 23
5. Os Sistemas Relacionais em Valentina ……………………………………… 28
Conclusão ………………………………………………………………….…… 34
Referências Bibliográficas ………………………………………………….….. 38

10
1. Introdução

Para introduzir este trabalho, começo a introduzir a mim mesmo. Sou homem
trans. Iniciei minha transição de gênero em janeiro de 2018, ao mesmo tempo em que ingressei
na universidade, e ambas têm andado juntas desde então. Conforme ganhava arcabouço teórico
e simultaneamente entendia minha própria identidade, algumas coisas começaram a
me incomodar, como o fato dos autores, na grande maioria das vezes, serem homens
cisgêneros1 escrevendo sobre toda e qualquer coisa, inclusive sobre pessoas trans. Esse fato se
estendeu para além dos textos acadêmicos, se esparramando pelas produções cinematográficas
que trabalham personagens transvestigêneres — termo cunhado por Erika Hilton2, que visa
abranger todas as identidades que fogem do padrão cis-normativo — de forma desagradável e
cômica. Tive a oportunidade de observar com mais cautela alguns filmes que envolviam a
temática transvestigênere quando cursei a matéria de “Antropologia Visual”, na qual
desenvolvi um trabalho, junto a uma colega de sala, sobre a evolução positiva das personagens
transvestigênere em três filmes brasileiros, Carandiru: O Filme (Héctor Babenco, 2003), A
Glória e a Graça (Flávio Ramos Tambellini, 2017) e Alice Júnior (Gil Baroni, 2019). A prática
do transfake3 foi deixada de lado no processo de construção das personagens transvestigêneres
trabalhadas. O movimento que observei se constrói da seguinte maneira: Rodrigo Santoro
(homem cisgênero) interpreta a travesti Lady Di em Carandiru, Carolina Ferraz (mulher
cisgênera) interpreta Glória em A Glória e a Graça, para que então finalmente tivéssemos Anne
Motta (travesti) interpretando a travesti Alice em Alice Júnior.

Esse movimento de mudança na construção dessas personagens transvestigêneres me


chamou a atenção e se uniu a uma vontade que já havia em mim de pesquisar algo relacionado
a comunidade transvestigênere e adentrar um pouco mais em estudos de gênero. Dessa forma,
o trabalho final de "Antropologia Visual" foi um grande passo para o trabalho de conclusão de
curso. Posteriormente, confirmei meu caminho de pesquisa cursando a matéria de “Sociologia
e Cinema: Métodos e Técnicas”, na qual pude conhecer a metodologia de Pierre Sorlin, que
será usada no decorrer da pesquisa para a análise dos filmes com os quais escolhi trabalhar.

1
Pessoas cisgêneros são aquelas pessoas que se identificam com o gênero designado a elas logo que
nascem. Também vale pensar que pessoas cis são aquelas que não são transvestigêneres.
2
Erika Hilton é negra e transvestigênere. É ativista dos direitos negros e LGBTIA+, foi eleita como a primeira
vereadora transvestigênere do Estado de São Paulo, sendo a mais votada do país, com mais de 50 mil votos.
3
Quando atores ou atrizes cisgêneros interpretam personagens transvestigêneres.
11
Os filmes foram selecionados para análise em diálogo com a perspectiva
metodológica de Pierre Sorlin, autor do livro Sociología del cine: la apertura para la historia
de mañana (1992), no qual desenvolve seu ponto de vista sobre o cinema e sua metodologia de
análise fílmica. É de extrema importância ressaltar que, apesar da metodologia de Sorlin ser
base para este trabalho, não será seguida à risca, pois algumas de suas técnicas não caberiam
aqui, como, por exemplo, selecionar amostra de filmes para análise com base em seu sucesso
de bilheteria e trabalhar com uma amostra de seis ou mais filmes como ele entende ser o ideal.
O que será usado de Sorlin é seu passo a passo para sair do filme e chegar ao que está no social.

Primeiramente, aproximar-se do filme fazendo uma decomposição dos seus


“sistemas relacionais”4, ou seja, destacando o protagonista e como ele foi construído (seus
comportamentos, roupas, aparência física). Além disso, observar a relação da personagem
principal com as outras personagens que o cercam (família, amigos, cônjuges, amantes) e com
os ambientes nos quais ele é inserido ao longo do filme. Para que essa imersão seja feita, é
necessário assistir ao filme várias e várias vezes, observando suas zonas visíveis e zonas
obscuras. Mas, apesar de assistir e reassistir, é bom que se evidencie que as descrições que
aparecerão neste trabalho não poderão dar conta dos filmes por completo e, por esse motivo,
haverá seleção de cenas que possibilitarão mostrar a construção da personagem
transvestigênere. Para concluir, fazer a relação dos pontos principais dos filmes selecionados
na amostra, apontando suas convergências e divergências. Será feita uma aproximação com os
dois filmes selecionados para que depois se relacionem uns com os outros. No decorrer do
trabalho, esse processo acontecerá seguindo essa ordem.

O objetivo deste trabalho — visto que grande parte dos filmes/séries brasileiros
são pensados e escritos por pessoas cisgêneros — é entender como essas personagens estão
sendo construídas, ou seja, como se dão as relações delas consigo mesmas, com seus
corpos considerados “errados”, com a família, os amigos ou com os lugares que frequentam.
Como são construídos seus comportamentos, gestuais e vestimentas, se correm para um
estereótipo de gênero ou não. Berenice Bento quando fala em “aparência de gênero” questiona
exatamente isso: “Como cobrir o corpo?”5. Segundo a autora, a moda é um dispositivo

4
SORLIN, Pierre. “Sociología del cine: la apertura para la historia de mañana”. Fondo de Cultura Económica,
México, 1985. (p. 133)
5
BENTO, Berenice. “A Reinvenção do Corpo – Sexualidade e Gênero na Experiência Transexual”. São
Paulo: Devires Editora, 3ª edição, 2019. (p. 162)
12
fundamental para pessoas transexuais que ainda não iniciaram a hormonização 6 ou passaram
por procedimentos cirúrgicos, é através das roupas que o corpo-sexuado consegue passar
despercebido porque a estética de gênero é bastante marcada na sociedade. Penso que cabe a
mim, enquanto homem trans, lançar o meu olhar — que carrega um pouco de experiência e
conhecimento da causa trans — sobre essas produções e analisar a construção dessas
personagens por uma perspectiva diferente, da perspectiva de alguém que está inserido na
comunidade trans e que olhará de forma crítica por entender a importância da representação
bem construída de uma minoria que é frequentemente atacada e morta no Brasil.

A proximidade da experiência pessoal com a temática abordada será trabalhada na


pesquisa como mais um dado a ser considerado e não um impedimento para sua
realização. Como Weber nos ajuda a pensar: “Não existe qualquer análise científica
‘objetividade’ da vida cultural, ou das ‘manifestações sociais’, que seja independente de
determinadas perspectivas especiais e parciais(...)”7. Ainda que eu decidisse trabalhar uma
temática completamente diferente dessa, ainda seria uma escolha minha e ainda teria certo grau
de parcialidade. Não vejo formas de fazer uma pesquisa imparcial e extremamente rigorosa
imitando as leis naturais como propôs Durkheim. Dito isto, minha proximidade com o tema é
apenas uma contribuição para o estudo, porque assim como escreve o antropólogo Gilberto
Velho “(...) o estudo do familiar oferece vantagens em termos de possibilidades de rever e
enriquecer os resultados das pesquisas”8. O trabalho em si já é uma forma de contribuir para a
comunidade LGBTIA+, na qual os espaços para nós estão quase sempre fechados ou com difícil
acesso, e também para a comunidade científica oferecendo uma abordagem numa perspectiva
situada.

Para além disso, segundo o conceito de “distância” de Velho — que pode ser social ou
psicológica — as vivências cotidianas que nos parecem extremamente familiares não
necessariamente são conhecidas. Ele cita o exemplo da vista que tem da janela de seu
apartamento, dos grupos distintos de pessoas na fila do pão ou dos trabalhadores civis que
compõem a paisagem, e que tudo isso parece muito familiar, mas que, ao mesmo tempo, ele

6
Processo pelo qual pessoas transvestigêneres passam para obter características físicas do gênero com o qual se
identificam, como por exemplo o uso de testosterona por homens trans e o uso de bloqueadores hormonais
pelas mulheres trans/travestis.
7
WEBER, Max. Ensaios sobre a Teoria das Ciências Sociais. São Paulo: Centauro, 2003.
8
VELHO, G. Observando o familiar. In: VELHO, G. Individualismo e cultura: notas para uma antropologia
da sociedade contemporânea. Rio de Janeiro: Zahar, 1987. (p. 131)
13
não conhece essas pessoas com profundidade. Portanto, ainda que eu seja um homem trans
pesquisando sobre algo que vivo cotidianamente “o meu conhecimento pode estar
seriamente comprometido pela rotina, hábitos, estereótipos. Logo, posso ter um mapa mas
não compreendo necessariamente os princípios e os mecanismos que o organizam”9. É
no confronto intelectual e emocional com outros materiais que abordam questões de gênero
que vou obter conhecimento e também as respostas, satisfatórias ou não, para o problema que
escolhi investigar.

2. Problema de Pesquisa e Justificativa

2.1 Transvestigêneres e o Cinema

No Cinema Mundial, a presença de personagens transgêneros é uma realidade e tem


se intensificado ao longo dos anos, principalmente após os anos 2000. É possível encontrar
essas personagens como coadjuvantes ou protagonistas em filmes bastante conhecidos e
aclamados pela crítica, como Transamérica (2004), Clube de Compras Dallas (2013), A
Garota Dinamarquesa (2015) e Meu Nome é Ray (2015). Outro filme que surgiu com bastante
potência no Cinema Mundial foi o filme chileno Uma Mulher Fantástica (2017), sendo este o
primeiro longa com a participação de uma atriz trans (Daniela Vega) a ganhar o Oscar de
Melhor Filme Estrangeiro em 2018. Embora não seja objeto de análise neste trabalho, vale
ressaltar a presença de personagens transgêneros em séries internacionais como Orange is the
New Black (2013), Sense8 (2015), The OA (2016), Pose (2018), Euphoria (2019), entre outros.

No Brasil, também a partir dos anos 2000, acontece uma crescente construção
de personagens transvestigênere no Cinema Nacional, assim como filmes com temáticas
LGBTIA+10. Entre os filmes mais conhecidos está Carandiru (2003), produção de Hector
Babenco baseada no livro Estação Carandiru (1999), do médico Dráuzio Varella. Além deste,
há também o longa-metragem A Glória e a Graça (2017) do diretor Flávio Ramos Tambellini,
e os mais atuais no cenário nacional envolvendo a temática trans: Alice Júnior (2019), dirigido
por Gil Baroni; Bate Coração (2019), de Glauber Filho; e Valentina (2020), do diretor Cássio
Pereira do Santos. Além destes filmes, houve também uma presença significativa de

9
Idem, ibidem. (p. 128)
10
Lésbicas, gays, bissexuais, transexuais, intersexuais, assexuais/agênero, entre outras identidades possíveis.
14
personagens trans/travestis na TV aberta, compondo elenco de novelas como A Força
do Querer (2017), novela de Glória Perez que trouxe a personagem Ivan, homem trans; A
Dona do Pedaço (2019) de Walcyr Carrasco, com a personagem Britney Macondo interpretada
por Glamour Garcia, a primeira mulher trans a ganhar um prêmio de “Melhores do Ano”
pelo programa Domingão do Faustão, da TV Globo. Em Malhação - Vidas Brasileiras
(2018/2019), aparece Priscila, a primeira personagem trans de todas as temporadas de
Malhação, interpretada pela atriz Gabriela Lohan, mulher trans. Deve-se destacar a existência
de algumas séries nacionais que abordam de alguma forma a temática transvestigênere como
Segunda Chamada (2019), série de Carla Faour e Julia Spadaccini, na qual uma das
personagens é a travesti Natasha, vivida pela cantora e atriz Linn da Quebrada, e Manhãs de
Setembro (2021), de Josefina Trotta, Alice Marcone e Marcelo Montenegro, que conta a
história de Cassandra, uma mulher trans interpretada por Liniker. Após esse pequeno passeio
por algumas produções brasileiras envolvendo a temática transvestigênere, percebemos a onda
crescente de personagens transvestigêneres no cinema brasileiro, mas não há como deixar de
dizer que o cinema — principalmente produções norte-americanas — pode ter colaborado com
a rejeição de pessoas transvestigênere pela sociedade no geral. No documentário Disclosure,
atualmente disponível na plataforma de streaming Netflix, pessoas trans ligadas ao cinema ou
ao movimento trans colocam suas opiniões sobre como o cinema apresentou personagens trans
ao público. Para Nick Adams, diretor de mídias trans na GLAAD (Gay & Lesbian Alliance
Against Defamation), Hollywood ensinou a sociedade a como reagir a pessoas trans: pelo riso
ou pelo medo. Pelo medo, porque algumas personagens trans foram construídas para serem
psicopatas, serial killers ou pervertidas. São citados filmes de Alfred Hitchcok, Psicose (1960)
e The Hitchcok Hour (1965) em que “transgressores de gênero” interpretam assassinos. Assim
como Psicose teria criado um efeito cascata de seriais killers crossdressers, o filme The Crying
Game (1992) teria criado o efeito cascata da reação negativa dos homens ao corpo da mulher
trans, principalmente pelo fato de terem pênis. A reação é de nojo. E por fim, pelo riso, segundo
a atriz Laverne Cox, pessoas são treinadas a rir de pessoas trans em circunstâncias rotineiras.
Um exemplo disto é o filme Married With Children (1994), em que uma crossdresser entra em
cena e arranca risos da plateia pelo simples fato de entrar em cena.

Tendo em mente como a construção de uma personagem transvestigênere pode


impactar uma sociedade, entendo a análise fílmica como um caminho frutífero para a
compreensão dessa questão, porque “o cinema é, sim, produto das formas pelas quais uma
sociedade constrói suas representações e idealizações. Um filme opera códigos culturais da
15
sociedade da qual é originário”11, sendo assim, a problemática da construção das personagens
transvestigênere vem da própria sociedade brasileira e em uma representação fílmica pode
reforçar ou não um estereótipo equivocado ou contribuir para o apagamento ou inferiorização
de pessoas já marginalizadas pela sociedade ao longo de décadas. Para isso, dois filmes serão
utilizados como objeto de estudo: Alice Júnior (Gil Baroni, 2019) e Valentina (Cassio Pereira
do Santos, 2020). Optei por estes dois filmes porque são os mais recentes e porque, de certa
forma, são parecidos no seu enredo, ambos trabalham com personagens transvestigêneres
adolescentes que vão enfrentar uma mudança de cidade por conta do trabalho dos pais, além
do desafio de se adaptar em uma nova escola. Outro fator importante que me levou a optar por
esses filmes é o fato de que ambas as atrizes acompanham a identidade de gênero de suas
personagens. Anne Mota, travesti, é quem dá vida a personagem travesti Alice Júnior e Thiessa,
mulher trans, é quem dá vida à também mulher trans Valentina.

2.2 Deslocamento de Gênero

Embora este trabalho não tenha como proposta um estudo sobre as identidades
de gênero e seus desdobramentos, é fundamental para a pesquisa nos inteirarmos sobre esse
debate e sobre a conceituação que este campo produz. Importante perceber que essa produção
está inserida em um intenso debate dado que é um tema tão complexo e em constante mudança,
visto que as categorias de gênero — antes apenas binárias, feminino ou masculino — têm
ganhado novas configurações.

Segundo a socióloga Berenice Bento, “a experiência transexual caracteriza-se pelos


deslocamentos”12. O primeiro deslocamento é entre o gênero e o corpo-sexuado a partir da
afirmação de gênero da própria pessoa, ou seja, quando determinada pessoa transexual se
afirma homem ou mulher, ela está criando uma disputa entre o gênero com o qual se identifica
e o seu corpo-sexuado. Dessa forma “deparamo-nos com toda a plasticidade dos corpos: seios
não lactantes; úteros não-procriativos; clitóris que, mediante a utilização de hormônios,
crescem até se transformarem em órgãos sexuais externos (...)”13. O segundo deslocamento
ocorre quando, além do primeiro, a pessoa transexual também desloca sua
sexualidade, desejando alguém do mesmo gênero que o seu. Por fim, o terceiro deslocamento,

11
BARBOSA, Andrea. “São Paulo Cidade Azul: Ensaios Sobre as Imagens da Cidade no Cinema Paulista dos
Anos 1980”. São Paulo: Alameda Editorial, 1ª edição, 2012. (p. 89)
12
BENTO, 2019. (p. 106)
13
Idem, ibidem. (p. 106)
16
que leva em conta o olhar do outro em relação às pessoas transexuais. Aqueles olhares curiosos
e desconfortáveis, que nos olham sem conseguir nos enquadrar na caixinha dos gêneros
binários. Berenice comenta sobre esses olhares em sua participação em um programa de TV
com o tema transexualidade:

(...) observei os olhares dos convidados para os/as militantes do Grupo de Identidade
de Gênero e Transexualidade (GIGT), de Valência. (...) eram olhares
fixos, agressivos, confusos, penetrantes perguntando-nos silenciosamente: ‘Será um
homem? Será uma mulher’14

Portanto, ao analisar a construção da personagem transvestigênere nos


filmes mencionados acima, é impossível que se deixe de lado as questões de gênero, porque,
apesar de não ser uma questão primária, ajuda a nortear para qual caminho essa construção
está seguindo, se está abandonando estereótipos enraizados, frutos da própria sociedade, ou se
está tentando introduzir um novo olhar, uma nova forma de representar que não se apoie sobre
o riso ou sobre o medo, como acontecia com as produções hollywoodianas.

3. As Personagens Transvestigêneres no Cinema Nacional

A primeira lista oficial — talvez a única até o momento — sobre filmes nacionais que
retratam de alguma maneira personagens LGBTIA+, aparece na tese de mestrado de Antônio
do Nascimento Moreno A Personagem Homossexual no Cinema Nacional15, defendida em 13
de dezembro de 1995 na Universidade Estadual de Campinas - Instituto de Artes (UNICAMP).
A tese, que busca analisar como o cinema nacional retrata as personagens homossexuais, conta
com análises fílmicas, levantamento de fichas técnicas e sinopses, além de contar com a
catalogação de 125 filmes sobre essa temática, produzidos no Brasil de 1923 a 1995.

Antes de começar as pequenas descrições sobre os filmes e suas respectivas personagens


transvestigêneres, é importante ressaltar que, embora o título da tese de Moreno mencione de
forma evidente a palavra “homossexual”, há também, entre os filmes catalogados pelo autor,
personagens transexuais/travestis; por este motivo recorri a essa lista. Esse desencontro entre
os termos que expressam sexualidade e gênero pode ter ocorrido porque a diferenciação entre
identidade de gênero e orientação sexual, naquela época, era extremamente pequena ou difícil

14
Idem, ibidem. (p. 108)
15
MORENO, Antônio do Nascimento. “A Personagem Homossexual no Cinema Nacional”. Universidade
Estadual de Campinas – UNICAMP, 1995.
17
de compreender. No fundo, não sabemos até que ponto o autor tinha acesso a esse tipo de
informação — visto que já haviam estudos sobre sexo e gênero na época —, nem se era de seu
interesse trazer aos leitores essa diferenciação. Das confusões causadas por alguns termos
usados em sua tese, a que pode ser explicada é a confusão entre “travesti” e “transformista”.
Ao que tudo indica, segundo escritos de Jorge Leite Jr. para sua tese Nossos Corpos Também
Mudam: Sexo, Gênero e a Invenção das Categorias, “Travesti” e “Transexual” no Discurso
Cientifico16, a palavra “travesti” teve origem na França, no século XVI, e significa,
resumidamente, “disfarce”. É nesse contexto que ela chega ao Brasil e acaba sendo rapidamente
incorporada ao teatro: “Creio que é neste contexto que esta palavra chegou ao Brasil e logo foi
incorporada aos meios artísticos e das festividades populares: no sentido de se “disfarçar” do
sexo oposto (...)”17. Segundo João Silvério Trevisan, a prática do travestismo já havia sido
identificada no Brasil colônia, quando, por um decreto promulgado em 1780, as mulheres foram
proibidas de participar das trupes teatrais e sua absoluta ausência deu espaço aos homens, que
assumiram e se especializaram em interpretações de papéis femininos disfarçados de mulher18.
O autor ainda ressalta que a prática do travestismo foi tão incorporada aos costumes da época
que não causava estranheza ao público, o “travestismo podia até mesmo atrair o público”19.

Acompanhando a cronologia de Trevisan, em 1920, mais ou menos, essa prática do


travestismo começa a ser absorvida pelo “recatado” cinema nacional e ganha um viés
estritamente profissional, passando a ser chamada de “transformismo”20. Quando Trevisan
apresenta o termo "transformismo", ele usa como exemplo o filme Augusto Aníbal Quer Casar
(1923), que conta com a presença de um ator-transformista. Veremos mais sobre esse filme no
decorrer deste trabalho.

Após esse breve contexto histórico dos termos “travesti” e “transformista” usados por
Moreno, conseguimos entender melhor o porquê dessas palavras terem sido trazidas sem
nenhuma distinção de significado. Por muito tempo, “travesti” se misturou com a ideia de
“travestismo” e posteriormente com a de “transformista”, tendo todas elas recebido o mesmo
entendimento, por séculos, como a de homens que se travestem de mulheres para fins de shows

16
LEITE, Jorge. “Nossos Corpos Também Mudam”: Sexo, Gênero e a Invenção das Categorias “Travesti” e
“Transexual” no Discurso Científico, São Paulo, 2008.
17
Idem, ibidem. (p. 195)
18
TREVISAN, João Silvério. “Devassos no Paraíso - A homossexualidade no Brasil, da colônia à
atualidade”, Editora Record, 3ª edição, Rio de Janeiro e São Paulo, 2000. (p.231)
19
Idem, ibidem. (p.240).
20
Idem, ibidem. (p.243).
18
e espetáculos teatrais, como personagens temporárias, exóticas e cômicas; também ligadas à
marginalidade e à prostituição. É dessa forma confusa que os conceitos de “travestismo” e
“transformismo” se enraizaram na sociedade brasileira colonial e que perduram até o século
XXI. Pois sabemos que não é difícil, ainda hoje, encontrar em dicionários online a definição
ultrapassada de travesti como sendo: “1. Disfarce sob o traje de outro sexo; 2. Papel de um
ator com vestuários usuais no outro sexo; 3. Pessoa que pratica o travestismo. =
transformista”21. Isso explicaria porque, ao ler a tese, não identificamos diferença entre
“travesti” e “transformista”.

Em conclusão, tudo o que fugia do padrão hétero-cis-normativo foi configurado como


homossexualidade pelo autor da tese. Ao longo da apresentação dos filmes e das personagens,
será possível notar que não se faziam distinções entre transformistas, travestis e gays, portanto,
algumas informações podem parecer contraditórias ou soar como apagamento, principalmente
da identidade travesti.

O primeiro filme da lista é um curta-metragem escrito e dirigido por Luiz de Barros e


Vittorio Verga, baseado no conto de Carlos Verga. Augusto Aníbal Quer Casar é uma comédia
do cinema mudo, na qual a graça está na situação em que um homem (Augusto Aníbal) acaba
se casando com uma mulher e, para sua grande surpresa e espanto, na noite de núpcias, descobre
que se casou com uma travesti. Segundo a tese de Moreno, quem interpretou a travesti foi um
ator da companhia francesa de espetáculos Bataclan, cujo nome era Aberto Silva. Na página de
internet Memórias Cinematográficas22 de Diego Nunes, tanto Darwin quanto Ivaná são
apontadas como “as primeiras travestis no cinema brasileiro”, mas como vimos anteriormente,
o significado de travesti usado tanto na tese de Moreno quanto na matéria de Diego não
corresponde ao significado atual da palavra; logo corrigiria para “as primeiras transformistas
no cinema brasileiro”.

Nos anos 30, surgiram no Brasil os musicais com temáticas carnavalescas produzidas
pela produtora carioca Atlântida Cinematográfica. Esse tipo de produção nacional ficou
conhecida como Chanchadas da Atlântida. Suas produções contavam com um caráter de humor
e em muitas produções trouxeram performances de transformismo. Homens que se vestiam de

21
<https://dicionario.priberam.org/travesti> acesso em 20/09/2021 às 14h10.

22
<https://www.memoriascinematograficas.com.br/2019/02/darwin-e-ivana-as-primeiras-travestis.html> acesso
em 18/09/2021 às 16h02.

19
mulher apenas para proporcionar alívio cômico aos espectadores. Um exemplo citado por
Moreno é a produção de Watson Macedo Carnaval de Fogo (1949), estrelada por Grande Otelo
e Oscarito, sendo Grande Otelo o intérprete de Julieta.

Nos anos 50, aparece a suposta primeira travesti no cinema nacional. Ivaná, que
interpreta ela mesma no filme Mulher de Verdade (1954) de Alberto Cavalcanti. Ivaná faz uma
performance de canto durante uma festa luxuosa. Como citado acima, o que se entendia como
homossexual, transformista e travesti, no passado, diverge muito do que se entende atualmente.
Ivaná foi destacada como sendo uma das primeiras travestis — junto de Darwin — no cinema
nacional, mas em uma reportagem na revista Manchete essa questão é colocada em xeque:

A publicidade foi formidável apresentando Ivana como a grande atração da revista.


Metido em longos vestidos prêtos e capas estampadas, fumando em longas piteiras
não foi dito nada sobre seu sexo, se homem ou mulher. E quando chegou ao palco
ninguém imaginou que na verdade fosse um homem. Cantava como mulher, trajava-
se como mulher e apresentava o “charme” e o “sexy” das grandes francesas das
"boates" cariocas. Depois o público descobriu que Ivana era apenas um homem
desempenhando o papel travesti23.

Ao que tudo indica, se virmos a situação com as lentes atuais, Ivaná está mais próxima
de ser uma transformista do que uma travesti. Essa hipótese fica comprovada na matéria de
Samuel Averbach para a Revista da Semana em setembro de 1953, o repórter escreve:

É incrível a metamorfose que se opera quando êle entra no seu camarim alguns
minutos antes de ter início a apresentação da peça “É Fogo na Jaca” fazendo sua
própria maquilagem, com rapidez e precisão, Ivan forma em Ivana e aparece diante
dos olhos ávidos dos espectadores entre os quais, muita mocinha passa a invejar a
“possuidora” daquele corpo magnífico24.

23
SERRA, Ivo. Ivaná – A grande dúvida, Manchete, Rio de Janeiro, nº 75, pp. 22-23, 26 de setembro de 1953.
24
AVERBACH, Samuel. “Muié macho, sim sinhô”, Revista da Semana, Rio de Janeiro, nº 36, p. 20 e 50 de
setembro de 1953.
20
Além disso, na sequência da matéria, há uma curta entrevista com o artista no camarim,
na qual ele deixa claro que seu nome é Ivan, e que Ivaná é uma caracterização, um papel de
vedete que ele exerce durante as apresentações.

Nos anos 70, inicia-se no Brasil uma forma de se fazer cinema com um tom mais sensual
e erotizado, que foi denominada como Pornochanchada. Apesar desse ar mais sensual em suas
produções, a pornochanchada não abandona o lado humorístico presente nas chanchadas. É uma
soma de erotização, nudez e comédia. Nesse contexto aparece o filme Os Machões (1972) de
Reginaldo Faria. Conta a história de três rapazes que conhecem uma linda mulher chamada
Denise, e depois descobrem que Denise é uma travesti. Seguindo essa mesma lógica, o filme
seguinte é Os Mansos (3o. episódio - O Homem, a Mulher e o etc.) de Aurélio Teixeira (1973),
que é mais uma demonstração de personagem travesti servindo como comédia:

(...) mostra as decepções de três amigos a procura de aventuras: run descobre a


infidelidade da mulher; outro provoca um escândalo numa festinha de aniversário na
casa da namorada; o terceiro se interessa por uma "mulher'' que, descobre tarde
demais, e um travesti. É uma pornochanchada corriqueira onde a presença do
homossexual estereotipado, afetado, um travesti, era obrigatória. Para ridicularizar
e fazer rir25.

Em 1974, o filme Ainda Agarro Essa Vizinha de Pedro Carlos Rovai:

O mais importante é a personagem vivida pelo ator Carlos Leite, que interpreta o
porteiro do edifício treme-treme onde vive Tatá. Ele atende pelo nome de Gilda, usa
cílios postiços, o gestual é extremamente escrachado, estereotipado, seu uniforme de
porteiro é apertado26.

Na pornochanchada de 1975 O Roubo das Calcinhas (1o.Episódio título) de Braz


Chediak:

25
MORENO, 1995. (p. 23).
26
Idem, ibidem. (p. 24).
21
E outra pornochanchada habitual que se utiliza do artifício da gestualidade do
travesti num corpo masculino somando a isso elementos de comédia de erros quando
o leão-de-chácara se apaixona pela figura do travesti. O objetivo é fazer rir tirando
partido da estereotipação e exagero dos gestos27.

Em O Sexualista (1975), de Egydio Eccio, aparece uma figura travesti que veio a se
tornar conhecida e consagrada no cinema brasileiro, Rogéria. Nesse filme, diferente do formato
cômico das pornochanchadas em que as travestis e transformistas são colocadas como o centro
da comédia, isso não acontece. O papel do humor fica por conta do ator Agildo Ribeiro.

Após alguns anos, aparece o filme Sábado Alucinante (1979) dirigido por Claudio
Cunha. A história acontece na New York City Discoteque, uma casa noturna no Rio de Janeiro,
onde as personagens se encontram e vivem suas frustrações. A travesti da vez é Soraya,
interpretada por Kiriaki. Seu drama é viver a solidão da travesti, rejeitada por ser vista como
alguém que esconde sua verdadeira identidade para enganar os homens. No ano seguinte,
República dos Assassinos (1979), de Miguel Faria Junior, traz uma travesti envolvida com o
crime. Quem interpreta a travesti Eloína é o ator Anselmo Vasconcelos.

Na década seguinte, o filme de Hector Babenco Pixote - A Lei do Mais Fraco (1980),
traz Lilica, personagem transvestigênere adolescente que ganha vida através do ator Jorge
Julião. Nas palavras de Moreno, ele considera Lilica como uma personagem homossexual,
como um gay que se veste “de forma afeminada”, e que, a partir dessa diferença de visual e
gestual, a personagem ganha destaque entre os demais. Em 1984, o filme Além da Paixão, de
Bruno Barreto, coloca em cena Miguel, vivido por Paulo Castelli, que trabalha em, segundo
Moreno, um “show de travestis” no Café Concerto "La Bomboniere". Ainda nesse filme,
Patrício Bisso interpreta Bombom, uma travesti de trinta e poucos anos. É bastante confuso
definir entre essas personagens quais realmente são travestis e quais são “gays afeminadas”. É
possível observar essa confusão nas falas do autor da tese: “(...) Bombom (Patricio Bisso),
travesti de trinta e poucos anos que está muito feliz por ter recebido convite para atuar em
Paris (...)” e em seguida:

27
Idem, ibidem. (p. 24).
22
A presença de Bombom, transformista vivida por Patrício Bisso, apresenta um
personagem gay extremamente feminilizado, que se comporta como uma mulher. Este
e mais urn filme que comporta urn dos estereótipos marcantes na composição do
personagem gay: "vai para Paris fazer show" 28.

Também em 1984, foram produzidos dois filmes que não estão na lista de Moreno. Sexo
dos Anormais, de Alfredo Sternheim e Volúpia de Mulher, de John Doo, contam com a presença
da travesti Claudia Wonder29. Ambos os filmes são de conteúdo erótico e em ambos Claudia
interpreta uma travesti, Jessica e Lili, respectivamente.

Em Vera (1986) de Sérgio Toledo, finalmente aparece um esboço do que seria um


personagem transmasculino. A atriz Ana Beatriz Nogueira, que interpreta Vera, também
interpreta Bauer - uma identidade masculina. Bauer tenta se impor como homem perante a si
mesmo e as pessoas próximas.

A partir dos anos 90, a produção de longas-metragens com a temática LGBTIA+ tem
queda significativa no Brasil. Mas foi também nos anos 90 que a produção de curtas-metragens
ganhou força, principalmente com o surgimento de festivais, como o Mix Brasil. Nos anos
2000, como dito na introdução, a temática transvestigênere retoma as telas com Carandiru: o
filme (2003), filme de Hector Babenco, adaptação do livro Estação Carandiru, do Dr. Dráuzio
Varella. Em Carandiru se destaca a história de Lady Di (interpretada por Rodrigo Santoro), uma
travesti que está presa em uma penitenciária masculina e lá mesmo acaba se casando com um
detento chamado Sem Chance. Em 2017, o filme A Glória e Graça conta a história da travesti
Glória, que, após longos anos afastada da família, é procurada por Graça, sua irmã. Graça
descobre um aneurisma e teme que seus filhos fiquem desamparados caso ela venha a falecer,
por isso procura Glória, para que ela assuma o papel de responsável pelas crianças.

4. Os Sistemas Relacionais em Alice Júnior

28
Idem, ibidem. (p. 56).
29
Cláudia Wonder (São Paulo, 15 de fevereiro de 1955 — São Paulo, 26 de novembro de 2010) foi
uma artista performer, escritora, cantora-compositora, colunista e militante travesti brasileira pelos Direitos
LGBT.
23
Alice Júnior é um filme do diretor Gil Baroni, lançado na plataforma de streaming
Netflix no ano de 2019. Pela sinopse, fica claro que Alice é uma adolescente travesti e que
enfrentará problemas ao se mudar de cidade com o pai.

A primeira imagem do filme nos convida a adentrar um mundo provavelmente não


muito conhecido pela maioria das pessoas, e também pode servir como uma reflexão. Uma frase
pichada em um muro da cidade de Recife nos dá as boas-vindas: “existem corpos que você nem
imagina, mulheres com pau, homens com vagina”. Essa cena acontece com a câmera bem
fechada nesse muro pichado, nos permitindo ler o picho, em seguida, a câmera vai se afastando
e mostrando a cidade de Recife — aparece um escrito identificando a cidade para o espectador
— enquanto a câmera já com o foco bem aberto mostra uma faixa da areia da praia de Boa
Viagem, a rua e os prédios que se estendem paralelos à praia. A câmera segue seu movimento
se aproximando de um prédio próximo à praia, prédio alto e espelhado, e vai adentrando como
se fosse por uma de suas janelas e começa a passear por dentro de um apartamento, começando
pela sala – espaçosa para um apartamento, diga-se de passagem. Na sala, é possível ver um sofá
e as almofadas em cima dele, um tapete, retratos na parede, uma mesinha de centro com alguns
objetos em cima, um abajur no canto, uma janela de cozinha americana atrás do sofá e uma
escada no canto esquerdo da tela. A câmera segue seu rumo, passando rapidamente pela
cozinha, entra por um corredor, passando pela porta de um quarto, onde se vê um homem
sentado, e chega até outro quarto, ao fim do corredor. Tanto a vista externa quanto a interna do
prédio deixam explícito que se trata de um apartamento de classe média alta. É um apartamento
grande e muito bem localizado. Quando se mudam para Araucária do Sul - RS, por causa do
trabalho do pai de Alice, embora a paisagem ao redor se modifique, o padrão de casa continua
o mesmo: casa grande e espaçosa, com dois andares, lago com pedalinho em frente à casa…
Não se sabe ao certo se o apartamento em Recife pertence ao pai de Alice, mas a casa em
Araucária do Sul aparenta ser alugada pela empresa na qual ele trabalha. O segundo quarto do
apartamento em Recife apresenta um típico — pensando em estereótipos de gênero — quarto
de menina adolescente, com muitas cores; seja na parede verde atrás da cama junto com um
pisca-pisca branco, nos pôsteres colados na parede, no jogo de cama rosa, nos ursos de pelúcia.
Esses estereótipos se estendem do quarto para a própria Alice. Em grande parte das cenas –
exceto as que ela está na escola de uniforme — a jovem está maquiada, com roupas e sapatos
chamativos, brilhantes, coloridos — com predominância da cor rosa. Possui até um case com
várias capinhas de celular dentro para que ela possa escolher qual capinha usar de acordo com
o seu look. Parece uma ideia de patricinha-trans-blogueira – levando em conta que Alice tem
24
um Vlog. No Vlog, Alice responde a perguntas sobre sua transição de gênero, entre outras
coisas, como questões de adolescentes à espera do primeiro beijo. Ao que parece a jovem não
tem vergonha de falar sobre esse tipo de assunto, que envolvem sua vivência enquanto travesti,
e isso fica claro quando fala de tucking — prática usada para esconder o volume do pênis —
para uma colega que acabou de conhecer atrás da nova escola e que visivelmente nem sabia o
que isso significava.

O pai de Alice provavelmente é um estrangeiro que mora no Brasil há algum tempo, é


possível notar isso pelo sotaque carregado ao falar português. Aparece como um grande aliado
da filha na causa trans. É ele quem toma a frente das lutas que a filha tem de enfrentar na nova
escola, como a falta de respeito com o nome social dela — há uma sequência de cenas,
interrompidas por cortes, na qual vai aparecendo cada professor de uma vez fazendo a chamada,
especificamente no momento em que seria a vez de Alice responder, e apenas um dos
professores usa o nome “Alice” — ou o fato de que algumas alunas a impedirem de usar o
banheiro feminino. A escola católica, Colégio Nossa Senhora da Sagrada Redenção, em que
Alice começará a estudar, tem como representação do seu conservadorismo a figura da diretora
autoritária. Sempre de cara fechada e vestida de preto, roupas longas quase lembrando trajes de
uma freira. É com ela que o pai de Alice se confronta em defesa dos direitos da filha. O pai se
apresenta na escola após a filha passar por situação constrangedora; na sala da diretora, trava
esse embate com ela, a corrige quando ela erra propositalmente os pronomes de Alice — que
neste momento não está presente. Com um tablet em mãos, o pai de Alice se conecta com uma
advogada em chamada de vídeo, que virtualmente participa dessa conversa, trazendo
informações sobre as leis atuais que garantem uso de nome social e uso de banheiros ou
vestiários de acordo com a identificação de gênero da pessoa. Sobre a mãe de Alice, não se sabe
como era a relação das duas — visto que a mãe faleceu quando Alice tinha 11 anos.

Outro momento em que se destaca o apoio do pai é logo que eles se mudam para
Araucária do Sul e Alice está “de mal” com o pai pois não queria se mudar. Em conversa com
uma amiga pelo celular, recebe um vídeo da amiga; é um vídeo dela com o pai, no dia em que
o pai a surpreendeu com a notícia de que tinha conversado com a endocrinologista e
consequentemente conseguido que a filha iniciasse sua hormonização. Percebe-se que a relação
de Alice com o pai é ótima, que ele a apoia, a protege e coloca para cima, sempre disposto a
escutá-la ou a elogiá-la: “você existe para brilhar”, responde o pai quando a filha pergunta
porque ela existe. Aproveitando o aparecimento da questão do brilho para comentar sobre como
isso é explorado durante o filme, como é um filme adolescente e é mais voltado para a comédia,
25
aparecem efeitos visuais em algumas cenas — como se fossem onomatopeias muito comuns
nos gibis — sempre de forma brilhante e chamativa, assim como as vestimentas de Alice. Esse
brilho todo que a personagem carrega desaparece quando ela começa a frequentar a escola. As
roupas brilhantes e chamativas de Alice dão lugar ao uniforme da escola, que tem tom escuro
na parte de cima. Além disso, Alice tem de usar o uniforme masculino — camiseta, calça e tênis
— por ordens da diretora, e, dessa forma, há uma descaracterização da personagem, que desde
o início do filme emanava cores vibrantes em sua forma de se vestir e em seus acessórios.

Alice tem a casa como lugar de proteção e a escola como lugar de luta. As poucas
amizades que faz são com duas meninas que aparecem meio rejeitadas ou isoladas dos demais
alunos, Viviane e Taísa, respectivamente. Outro que acaba se aproximando de Alice é Bruno,
namorado de Taísa. Seu círculo de amizades se restringe à essas três personagens ao longo do
filme, fora as amigas de Recife que falam com ela via celular. A relação de Alice com o restante
dos alunos é basicamente ela sendo alvo e olhares e piadas, constrangimentos, como no dia que
ela acaba fazendo xixi na calça — por todas as questões que tem com o uso do banheiro — e
acaba tendo um vídeo seu indo parar na internet com o título “viado se mija na aula”. A partir
desse momento muitos passam a chamá-la de mijona. Outro momento do filme em que Alice
sofre preconceito e nesse caso, agressão, é em uma pool party na casa de uma colega. Alice está
de camiseta e com enchimento por baixo da roupa para dar mais volume aos seios, sentada à
beira da piscina conversando com Viviane, quando dois meninos se aproximam, seguram-na e
rasgam sua camiseta. Um deles pega o enchimento levantando-o como se fosse um troféu,
enquanto o outro menino empurra Alice na piscina. As meninas se solidarizam com o
acontecido e enquanto a câmera filma Alice embaixo d’água cabisbaixa, biquínis começam a
aparecer no enquadramento boiando ao seu redor, logo as meninas pulam na piscina: “mexeu
com uma, mexeu com todas”.

No dia seguinte na escola, a câmera filma de dentro da escola um grupo de meninas


chegando e entrando pela porta, com cartazes nas mãos e gritando “Revolução na Nossa
Senhora do Sagrado Coração”. Alunas colam “banheiro feminista” em cima da placa de
“banheiro feminino” e comemoram lá dentro o feito histórico. Momento interessante também
porque o movimento feminista em muitas vezes acaba sendo trans-excludente, mas nessa cena
Alice faz parte do movimento junto com as outras garotas, e não apenas isso, é por causa dela
que as meninas se uniram por uma causa.

26
Quando o trabalho do pai de Alice termina, ele anuncia que eles voltarão para Recife,
então ela resolve dar uma festa de despedida em sua casa. Embalada por uma trilha sonora bem
LGBTIA+ (Glória Groove e Pabllo Vittar, ambas drag queens), a festa de Alice acontece, agora
com novas amizades presentes. Muitas fotos, música, iluminação colorida e claro, o look de
Alice: uma blusa prateada e uma saia prateada — apenas se diferindo pela tonalidade das peças
— colar, batom e lantejoula como sombra nos olhos. Em meio a festa, uma brincadeira de passar
um adesivo em formato de beijo, de boca em boca. Quando chega na vez de Alice ela fica um
pouco perdida sem saber para quem repassar o adesivo. Viviane puxa Bruno para perto de Alice
e, no momento em que ela vai passar o adesivo, ele cai, e um selinho entre eles acaba
acontecendo. A câmera dá um close no rosto dos dois alternadamente e em seguida mostra o
rosto de Taísa — namorada de Bruno — observando a cena; não muito contente. Taísa vira as
costas e sai. Alice vai atrás dela e a encontra no banheiro; pede desculpas a ela, diz que foi só
uma brincadeira, que nem foi um beijo de verdade e que o primeiro beijo dela não seria assim;
mas enquanto falava isso Alice é surpreendida com um beijo de Taísa. Ao som de uma música
romântica a câmera vai pegando detalhes do beijo, como as mãos perdidas de Alice que logo
encontram a cintura de Taísa. A câmera sobe para enquadrar o rosto das duas ao mesmo tempo
em que vai girando ao redor delas mostrando por diversos ângulos. Assim que acaba o beijo,
elas se olham fixamente e Taísa sai.

O primeiro beijo de Alice acontece com uma garota. O autor explora a sexualidade trans
de uma forma mais moderna, mostrando que identidade de gênero e sexualidade são duas coisas
independentes. Muito se imagina que pessoas trans são apenas heterossexuais, que transicionam
porque sentem atração por alguém do mesmo gênero, pensamento extremamente
heteronormativo.

O filme vai chegando ao seu final com uma cena que reúne Alice e alguns amigos: Taísa,
Bruno, Viviane e Lino, observando o nascer do sol no dia seguinte a festa, todos com um
semblante de paz, esboçando sorrisos. A câmera fecha no rosto de cada um deles. Taísa e Alice
são enquadradas juntas pela câmera, trocando olhares e sorrindo. Durante a cena, ao fundo
pode-se ouvir a voz de Alice falando sobre superação. Na cena seguinte, a voz ganha uma
imagem: é Alice dentro do carro gravando um vídeo para seu canal, enquanto o pai dirige
voltando para Recife. Alice com uma tiara de unicórnio, com sua gata no colo, brilho no rosto;
sorri e pergunta: “e você, quem é?”.

27
A câmera começa a filmar o carro na estrada até que ele saia do enquadramento,
deixando apenas a mata e a cidade de Araucária do Sul aparecerem. O filme termina com a
imagem de um arco íris — representado na bandeira LGBTIA+ — que cruza a tela, da esquerda
para direita.

5. Os Sistemas Relacionais em Valentina

Valentina é um filme de Cássio Pereira dos Santos que retrata um drama vivido por uma
menina trans ao se mudar de cidade com a mãe.

O filme começa com uma tela preta ao fundo enquanto as primeiras informações
trazidas são sobre a produção do filme: apoiadores, distribuidora etc. Após essas informações,
é exibido o nome do filme, em branco, contrastando com o fundo e ocupando a tela toda,
evidenciando o nome Valentina. O fundo preto vai desaparecendo e dando lugar a imagem de
uma menina, deixando com que ela e o nome do filme ocupem a tela ao mesmo tempo. Pode-
se entender como uma possível indicação de que aquela menina é Valentina e isso ficará
provado em cenas posteriores. Nesses primeiros movimentos da personagem ela caminha pela
calçada de um lugar que parece ser o centro da cidade, é possível ver os carros passando na rua
e também carros estacionados, assim como algumas lojas vão aparecendo atrás dela enquanto
ela caminha. A garota está indo de encontro a duas amigas e juntas as três vão entrar em matinê.
Os problemas de Valentina enquanto garota trans começam desde os primeiros minutos de
filme. O problema da vez é sua entrada na matinê, há um segurança na porta conferindo o RG
das pessoas que entram. As amigas de Valentina conseguem entrar sem maiores complicações,
mas na vez dela o segurança percebe, após conferir com atenção, que seu RG é falso e proíbe
sua entrada. As amigas tentam convencer o segurança e a própria Valentina o questiona se ela
tem cara de 11 anos, mas, de qualquer maneira, sua entrada não é liberada e ela desiste, se
despedindo das amigas e indo embora. Uma das amigas vai atrás dela e a convence a voltar,
dizendo ser aquela a despedida delas e que ela não poderia deixar o babaca do segurança
estragar isso. Valentina acaba voltando e apresenta seu RG verdadeiro ao segurança, que olha
para o documento e pensa que Valentina está zombando dele tentando entrar na festa com o RG
do irmão. Valentina diz “essa daí sou eu há cinco anos atrás”.

28
Esse problema com a divergência de informação entre documentação e aparência vai
ganhar novas questões ao longo do filme. Nessa cena citada acima, fica óbvio que Valentina
não tem documentos com nome e gênero retificados e nem com nome social, e isso acaba sendo
um empecilho para ela em algumas ocasiões nas quais ela precisa apresentar documento com
foto. A questão do nome vai aparecer em outro momento ao longo do filme, logo que Valentina
e a mãe se mudam para a cidade de Estrela do Sul, em Minas Gerais. É uma cidade pequena do
interior de Minas, pequena a ponto de só ter uma escola na cidade. Valentina e Márcia, sua mãe,
procuram a escola fora do período de matrícula para conversar com a diretora sobre algumas
dúvidas. Márcia comenta que a filha largou os estudos há cinco meses e que talvez tivesse que
repetir o ano. Questionadas pela diretora sobre esse abandono da escola, mãe e filha se olham
e Márcia acaba finalmente dizendo a que veio: quer saber sobre como matricular Valentina com
o nome social dela. Completa dizendo que há uma lei garante às pessoas trans o uso de nome
social na escola. Apenas no dia seguinte mãe e filha obtêm resposta sobre a matrícula. Após
conversar com a Superintendência Regional de Ensino, a diretora constata que elas estavam
certas e que podem sim matricular Valentina com o nome social e que, para isso, precisaria de
uma autorização assinada pelos pais da jovem. Outra questão entra em pauta nesse momento,
que é a busca pelo pai de Valentina. Separado de Márcia, ninguém sabe por onde ele anda.

A família de Valentina é basicamente composta por ela e pela mãe, já que o pai não é
presente na vida dela. É uma família simples, e isso aparece bem tanto na habitação quanto nas
vestimentas. Na noite anterior à mudança, uma única cena apresenta ao telespectador o interior
da casa. É bastante simples, não tem as paredes pintadas, apenas rebocadas. Nesta cena, em que
mãe e filha estão na cozinha, a mãe guardando as coisas do armário em uma caixa de papelão
e Valentina cozinhando, é possível ver justamente esse armário do qual a mãe tirava alguns
utensílios domésticos, e pode-se constatar que é simples, talvez até antigo. Poderia também
dizer que a iluminação da casa era precária, mas essa iluminação dura aparece em todas as cenas
em que não há luz natural. De qualquer forma, essa luz dura e contrastada dá esse efeito de casa
mal iluminada.

A casa em que moram em Estrela do Sul também é bem humilde. É a casa de uma
senhora que também mora no local. Vânia recebe Márcia e Valentina, disponibilizando para
elas um quarto na casa. Logo quando se mudam, a câmera as segue pelas costas conforme vão
entrando na casa e dona Vânia vai apresentando os cômodos. Na sala, uma pequena estante de
madeira onde fica uma TV antiga de tubo; um sofá de três lugares aparentemente em bom estado
e alguns quadros/fotos antigas nas paredes. A câmera para na entrada da cozinha enquadrando
29
Valentina de costas, encostada no batente da porta da cozinha, e Márcia e Vânia no centro da
imagem; é nos espaços complementares que podemos observar alguns detalhes, como o filtro
de barro em cima da pia, bacias penduradas na parede e uma porta de madeira típica de casa de
sítio, que dá acesso ao quintal. No quarto dividido por mãe e filha, há um guarda-roupa antigo
de madeira, duas camas de madeira com um criado-mudo entre elas. Há uma cômoda também
no canto do quarto.

Outra casa em que Márcia e Valentina vão morar é a casa de Alfredo, namorado de
Márcia. Também é outra casa simples. A parte de fora as paredes pintadas de azul claro
desgastadas com o tempo e com a chuva. Na parte de dentro, o teto sem forro, paredes
descascadas em algumas partes da casa, até mesmo rachaduras são possíveis de encontrar, como
no quarto que Valentina ocupa, por exemplo. Além disso, exceto em momentos de festa, em
que Valentina está um pouco mais produzida, suas roupas são bem comuns, roupas do dia-a-
dia, que não chamam atenção nos seus cortes ou em suas cores.

Márcia, a mãe de Valentina, é o porto seguro da filha. Envolvida com as questões da


transgeneridade, entende a importância do respeito à identidade de gênero de Valentina. Sabe
que o uso do nome social é uma importante conquista para a comunidade trans e, em conversa
com a diretora, deixa claro que está ciente dos direitos da filha. Márcia se preocupa e chora com
as violências que a filha sofre ao longo do filme. A primeira violência acontece naquela matinê
mencionada no início da descrição desse filme, na qual Valentina já teve problemas para entrar
na festa. No interior do local, onde a festa acontecia, Valentina acaba ficando sozinha na pista
de dança enquanto as amigas vão ao banheiro. Ela continua dançando ao som de um funk. A
câmera corta para um rapaz encostado no balcão do bar que está a observando de longe. Esse
rapaz se aproxima de Valentina a elogiando, perguntando qual o nome da “mina mais gata da
festa”. Valentina não escuta o que o rapaz diz por conta do som alto da festa e se aproxima dele
tentando entender o que ele dizia, nesse momento o rapaz tenta beijá-la e ela se afasta do beijo,
mas continua ali com ele dançando. Na tentativa do rapaz de beijá-la novamente, ela cede ao
beijo. Após o beijo, o rapaz volta ao bar para buscar refrigerante para eles e, enquanto espera
encostado no balcão, outro rapaz se aproxima para lhe contar algo — no momento não sabemos
qual o conteúdo da conversa. Depois dessa conversa, o rapaz volta até Valentina com o tom de
voz alterado questionando “é verdade que tu é homem?”. O rapaz segue irritado reclamando
que Valentina não contou a verdade para ele antes do beijo. Valentina por sua vez confronta o
rapaz dizendo que ele já chegou querendo beijar e nem teve tempo de conversar. O garoto então
joga refrigerante no rosto de Valentina, que irritada com a agressão ataca a masculinidade do
30
garoto dizendo que o pênis dele nem levanta na hora de beijar uma menina. Claramente esse
ataque surte efeito e o jovem segura o pescoço de Valentina empurrando-a até a parede, onde a
enforca, e o ato só é interrompido porque Valentina acerta uma joelhada nas partes íntimas dele.
Em seguida aparecem os seguranças da festa para retirarem o garoto. A continuação não nos
mostra exatamente o que acontece depois disso, pois a cena seguinte é de Márcia e Valentina
chegando em casa, então se pressupõe que Márcia teve de buscá-la.

A segunda cena de violência é mais pesada e, portanto, comove muito mais a mãe da
garota, que enquadrada no centro da imagem chora após ouvir o relato da filha. Valentina conta
que, na noite em que foi a uma festa de fim de ano – já na cidade de Estrela do Sul –, com
amigos que fez na nova escola, foi assediada sexualmente por um garoto. Como já mencionado
anteriormente, as cenas em que não há iluminação natural são feitas com iluminação muito
dura, que é o caso dessa cena, na qual a luz vinha de fora da casa e entrava pela janela,
iluminando o rosto de Valentina deitada na cama. Valentina bebeu demais na festa e se deitou
no que parecia uma espécie de quarto, no qual havia uma cama. Enquanto a câmera permanecia
imóvel, observando a garota dormindo, podemos ouvir que alguém entra no quarto, pelo
barulho dos passos e depois com a sombra da pessoa que vai tampando o rosto iluminado de
Valentina. A pessoa está fantasiada de vampiro retrô, com uma máscara preta que cobre todo o
rosto e com chifres na cabeça. Essa pessoa vai se aproximando de Valentina ao mesmo tempo
em que sua respiração vai ficando ofegante. A sequência da cena é a mão dessa pessoa indo de
encontro às partes íntimas de Valentina, que, ao sentir o toque, se senta na cama num
movimento de susto e segura a mão do fantasiado, a afastando. O fantasiado se assusta e vai
embora do quarto saindo do enquadramento da cena, sobrando apenas Valentina, assustada e
com a capa da fantasia na mão, que conseguiu arrancar do assediador. A princípio a garota não
conta o acontecido para a mãe, ela só conta depois de descobrir junto com os amigos quem era
o mascarado: um colega da escola. Valentina o intimida e como consequência recebe ameaças
do irmão mais velho do colega.

A mãe de Valentina a acompanha até a delegacia em duas ocasiões: após saber do


assédio sofrido pela filha e após outra violência física. Essa violência física é cometida por
Lauro – irmão de Marcão e responsável pelo garoto, o colega responsável pelo assédio – e outro
homem que não é identificado no filme. A agressão acontece em uma noite em que Valentina
está voltando para casa sozinha, quando um carro se aproxima do seu lado. Nessa noite,
Valentina é abordada por dois homens encapuzados, sendo que um deles a agarra pelas costas,
tampando sua boca para que não grite e, ao mesmo, a imobilizando, e um outro homem que
31
corta seus cabelos com uma tesoura. Na cena seguinte, Lauro aparece entrando no carro e
tirando o capuz e a máscara que usava para tampar o rosto, revelando sua identidade ao
espectador. Quem está dentro do carro o esperando é Marcão. Ambos vão embora de carro
deixando Valentina novamente sozinha no meio da rua. A câmera enquadra a garota no centro
da imagem enquanto ela chora e, com a ponta dos dedos, toca seus cabelos cortados, um misto
de pavor e tristeza. O fato é que, nas duas ocasiões, Márcia estava ao lado de Valentina, tentando
consolá-la e protegê-la enquanto também sofria pelas violências direcionadas à filha, inclusive,
é pensando no melhor para Valentina que Márcia aceita a ideia de a filha ir morar com o pai em
outra cidade. Em nenhum momento do filme Márcia se coloca contra a identidade de gênero da
filha, desrespeita seu nome ou pronomes de tratamento. Valentina é muito querida pela mãe.

Na escola, antes de poder se matricular para o ano letivo, Valentina frequenta as aulas
de recuperação, incentivada pela diretora quando soube que a jovem estava há 5 meses afastada
da escola, como uma forma de relembrar um pouco do conteúdo das matérias. Lá ela faz dois
amigos, Júlio e Amanda. Júlio é um menino negro e gay que ainda busca por um afeto
verdadeiro, não apenas momentos de diversão com caras que gostam apenas de sexo no sigilo.
Amanda é uma menina branca que está prestes a ganhar um bebê e não tem muitos planos para
o futuro por conta disso, nem sabe se conseguirá acabar o ensino médio. Amanda entende muito
sobre computadores e é ela quem ajuda Valentina a entrar em contato com o pai, é o presente
de Natal de Amanda para Valentina: o novo número de telefone do pai dela. Júlio e Amanda
são as companhias de Valentina nos momentos mais difíceis e também nos momentos de
descontração. Eles a apoiam quando Valentina decide contar a eles que “não nasceu menina”.
Como já foi citado anteriormente, são eles que a ajudam a descobrir quem a assediou na festa
de virada de ano. Júlio e Valentina ajudam Amanda com os preparativos do chá de bebê dela.
Há uma troca de apoio entre eles que vai ganhando força conforme o filme vai acontecendo.

Renato, o pai de Valentina, entrará em cena depois que a filha sofrer a agressão em que
seus cabelos são cortados. Ele também parece ser um homem bem simples, quando chega, está
com uma calça jeans e uma camisa de botão meio larga. Tem um carro quatro portas, um corsa,
com as calotas danificadas e pneus sujos de terra. Enquanto está na cidade, Renato tenta fazer
o que é possível para ajudar a filha, como ir até a delegacia pressionar o delegado para que puna
quem agrediu a filha. Ele também acompanha Márcia até a escola para assinar a autorização
requerida para o uso do nome social de Valentina. Durante a passagem de Renato pelo filme,
não fica evidente o motivo que o levou a se afastar da filha e da ex-mulher, mas sabe-se que ele
tem uma outra família, porque ele comenta sobre a esposa quando Valentina aceita a ideia de ir
32
morar com o pai. No quarto, em conversa com a filha, Renato comenta já ter falado com Joana,
a esposa dele, e que ela havia separado um quarto para Valentina na casa deles. A mudança não
acontece porque Joana faz um único pedido: que eles não comentem com a família dela que
Valentina é uma menina trans, devido ao fato de que os pais dela são religiosos. No momento
em que o pai conta isso para Valentina, a menina questiona se ele nunca comentou com a família
de Joana que ele tinha uma filha trans. O pai responde que não tem intimidade o suficiente com
a família de Joana. Nesse momento, Valentina, que estava arrumando sua mala para a mudança,
fica paralisada por alguns segundos, com um semblante de quem não está contente com o que
acabou de ouvir, e questiona o pai: “não tem intimidade ou não tem coragem?”.

Embora o pai seja ausente da vida de Valentina, fica difícil dizer que ele não apoia. A
cena posterior a essa conversa no quarto é uma cena em que os três, pai, mãe e filha estão saindo
do Cartório de Registro Civil, Valentina sorridente e abraçando a mãe. No carro, a câmera dá
um close em um papel que está nas mãos de Valentina, e podemos ver que com a autorização
dos pais a menina fará sua retificação de nome e gênero. Apesar desse apoio tímido do pai, na
hora de se despedirem, ainda dentro do carro, o contato entre eles é inexistente, a despedida
acontece apenas com palavras, não há um abraço sequer.

Chegando na reta final do filme, Valentina tem mais um desafio para enfrentar e superar
já no primeiro dia de aula. No corredor da escola, as mães de outros estudantes conversam com
a diretora sobre a permanência de Valentina. Há um conselho de pais e mães que recolheu
assinaturas para que a menina não pudesse se matricular. Nesse mesmo corredor, Valentina é
abordada por Lauro, que a chama de menino, dizendo que aquele é um local de família e tenta
impedi-la de entrar na sala de aula. A diretora tenta intervir dizendo que chamará a polícia se
Lauro não deixar Valentina passar. Uma professora também aparece para pegar Valentina e
colocá-la dentro da sala de aula, onde já se encontram outros alunos sentados em seus lugares.
A professora tranca a porta da sala, mas Lauro a arromba e entra, exigindo que Valentina saia,
a garota o confronta: “daqui ninguém me tira”. Na frente de toda a sala, Lauro puxa um canivete
para Valentina, logo se ouve do meio da sala uma voz que diz “deixa minha colega em paz”.
A colega que disse isso se levanta da cadeira e vai para a frente da sala ficando em um espaço
entre Valentina e Lauro. Outros alunos também saem em defesa de Valentina, menos Marcão,
que permanece sentado. Ao ouvir a sirene do carro da polícia, Lauro vai embora dizendo que
isso não ficaria assim.

33
A professora retoma a chamada de onde havia parado, na letra “P”. Enquanto ela chama
os nomes que faltam, a câmera vai se aproximando de Valentina já sentada em seu lugar.
Quando o close no rosto dela acontece, um sorriso aparece em seu rosto, é o momento em que
a professora chama seu nome na chamada: “Valentina”. Ela responde: “presente”.
Algumas informações importantes aparecem ao final do filme, como a porcentagem de
evasão escolar entre pessoas trans (82%) e a expectativa de vida de pessoas trans (35 anos).

Conclusão

Para concluir esta análise, retomarei alguns pontos importantes que já haviam sido
mencionados ao longo das análises individuais dos filmes Alice Júnior e Valentina. Ambos os
filmes chamam a atenção por trabalharem especificamente com adolescentes transvestigêneres.
O local onde as adolescentes enfrentam dificuldades em relação a sua identidade de gênero é
principalmente na escola, e isso coloca em destaque as pessoas que dirigem essas escolas.
O fato de Alice estudar em um colégio católico parece dificultar mais sua presença na
escola e isso passa muito pela figura da diretora Rosa. A diretora, como citado anteriormente,
é uma mulher mais velha que aparenta ter uns sessenta anos; é uma figura conservadora, e isso
fica nítido não apenas no seu desconhecimento sobreas questões transvestigêneres, mas no seu
modo de se vestir e se colocar frente às situações A vestimenta dessa personagem mostra uma
mulher dura e fria, sempre vestida com roupas escuras e compridas, para que não se mostre
muito o corpo, sempre com cara de brava e postura rígida. As roupas lembram um pouco a
vestimenta das freiras, só que sem o véu. Rosa também se mostra como alguém que desconhece
o direito que pessoas transvestigêneres têm de usar banheiros/vestiário de acordo com sua
identidade de gênero — Resolução 12, de janeiro de 2015, do Poder Executivo30 —, além de
sempre tratar Alice com pronomes masculinos ou quando compara Alice com outros “meninos
delicados” que também frequentam a escola. A diretora Rosa não permite que as regras sejam
quebradas, e através dessas mesmas regras, violenta simbolicamente a identidade travesti de
Alice, impedindo-a de ser vivida em sua plenitude. Isso acontece quando Alice não pode usar
o uniforme feminino como as outras meninas, quando a maioria dos professores e a própria
diretora não respeitam seu nome social ou quando é impedida de usar o banheiro feminino.

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<https://www.blend-edu.com/mitos-duvidas-sobre-banheiros-por-pessoas-
trans/#:~:text=O%20artigo%206%C2%BA%20do%20ato,de%20g%C3%AAnero%20de%20cada%20sujeito%E
2%80%9D> acesso em 23/04/2023 às 01:24.
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Essas violências podem passar despercebidas pelo espectador, por não haver violência física
envolvida, como socos e chutes, talvez até pela leveza da construção do filme, mas são
violências cotidianas que pouco a pouco vão fazendo com que a Alice se mostre desanimada e
deseje não ir mais àquela escola. Então, pode-se retomar o ponto sobre a personagem de Alice
ser alguém que nasceu para brilhar; para além de suas roupas que perderam o brilho, a própria
personagem perde o brilho com os desafios que tem de enfrentar na escola. Esse brilho só será
retomado na reta final do filme, quando Alice recebe apoio de suas colegas de sala e de repente
se vê acolhida por elas.
Ainda falando sobre a diretora Rosa, o filme não mostra como ela lidou com o assunto
após ser alertada pela advogada do pai de Alice sobre os direitos da jovem, muito
provavelmente porque Alice acaba voltando para Recife com o pai e para de frequentar aquela
escola.
Em contraponto à diretora de Alice Júnior, a diretora da escola em que Valentina começa
a frequentar — embora não saiba sobre as legislações que garantem nome social na escola ou
a questão com os banheiros — se mostra aberta a entender a situação. A diretora busca contato
com a Superintendência Regional de Ensino para se inteirar de um assunto que ela desconhecia
e dessa forma conseguir auxiliar Valentina e a mãe para que a adolescente fizesse o uso do
nome social na escola. Nesse caso, é importante trazer como informação as normatizações e
resoluções que garantem o uso do nome social na educação básica e nos registros escolares,
sendo eles o Parecer CNE/CP nº 14/2017, aprovado em 12 de setembro de 201731 que
normatiza o uso do nome social na educação básica e a Resolução N°1, de 19 de janeiro de
201832, que define o uso de nome social de travestis e transexuais nos registros escolares.
Ao longo do filme, não há nenhuma questão quanto ao uso do banheiro feminino por
Valentina, mas há cenas de violência física no decorrer do filme e uma reação negativa dos
responsáveis pelos demais alunos ao saberem que uma aluna transexual frequenta a mesma
escola que os filhos deles, inclusive na parte final do filme, em que um desses responsáveis
ameaça Valentina com um canivete.
Em Valentina, o papel da escola é tentar acalmar os pais e preservar Valentina de algum
tipo de violência. A diretora, professores e colegas de sala de Valentina se colocam em defesa
dela e é esse movimento que garante sua permanência na escola. Em Alice Júnior, as colegas

31
<http://portal.mec.gov.br/sesu-secretaria-de-educacao-superior/30000-uncategorised/61941-nome-social>
acesso 23/04/2023 às 00:30.
32
Idem
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— em sua maioria meninas — também se uniram em defesa de Alice, a diferença é que a
diretora Rosa nunca deu o braço a torcer e se manteve fechada em seu conservadorismo.
Outro ponto bem trabalhado em ambos os filmes é a relação das adolescentes com os
pais. Tanto a relação de Alice com o pai e a relação de Valentina com a mãe são interessantes,
porque mostram um pai e uma mãe que são muito presentes na vida das filhas. Márcia, mãe de
Valentina — e Jean Genet — pai de Alice — estão comprometidos com a luta transvestigênere,
com a defesa dos direitos de suas filhas e com a segurança física e psicológica delas. Nas
questões que envolvem uso de nome social na escola, Márcia e Jean vão até a escola para
conversar com as diretoras a respeito deste assunto, a diferença — como citado acima — foi a
disposição oposta das diretoras em resolver o problema, mas o fato é que pai e mãe estavam lá
para cobrar que os direitos de suas filhas fossem respeitados. O ponto fora da curva nessa
questão da família fica com a personagem de Renato, pai de Valentina. Renato só aparece
porque, com muito esforço, Valentina e Márcia conseguem contatá-lo por telefone e explicam
a situação de Valentina — que precisava da assinatura dele para que Valentina pudesse usar o
nome social na escola. Mas, as cenas de Renato e Valentina não mostram nenhum tipo de afeto
entre eles; apesar de ter viajado para ver a filha, a sensação é que estava ali só por obrigação.
Em suma, Alice Júnior e Valentina têm muitos pontos em comum, trabalham com a
questão dos direitos transvestigênere e com a luta para que esses direitos não fiquem apenas na
teoria. Trazem uma questão muito pertinente à comunidade transvestigênere, que é a relação
com os pais. Sabe-se que, no Brasil, pessoas LGBTIA+ são expulsas de casa pelos pais, que
muitas vezes não aceitam a orientação sexual ou identidade de gênero dos filhos. Alice Júnior
e Valentina colocam um pai e uma mãe que amam suas filhas independente de qualquer coisa,
que atuam como porto seguro e dão forças para que suas filhas vivam suas identidades sabendo
que são amadas. Os dois filmes trabalham a adolescência transvestigênere, tendo suas
particularidades, mas tentam demonstrar como as relações se desenvolvem no ambiente escolar.
Em ambos os filmes, a escola exerce um papel de campo de batalha e ao mesmo tempo, é onde
Alice e Valentina encontram aliados para lutar junto a elas. Além disso, ao analisar a construção
dessas duas personagens centrais, nota-se uma grande diferença com as personagens
transvestigêneres representadas em filmes brasileiros nas décadas passadas com essa mesma
temática, como constatado no capítulo 3 deste trabalho. O alívio cômico que marcava as
personagens — construídas apenas para arrancar risadas dos espectadores — passa por uma
reformulação a partir dos anos 2000 e alcança, com esses dois filmes, um lugar para além do
entretenimento, que é o de disseminação de informações jurídicas e de direitos já garantidos

36
para a população transvestigênere, além da apresentação de uma vida cotidiana pouco explorada
anteriormente, uma vida que tem conteúdo para além do humor e que vale a pena ser
representada nas telas.

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38
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<https://www.memoriascinematograficas.com.br/2019/02/darwin-e-ivana-as-primeiras-
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cada%20sujeito%E2%80%9D.> acesso 23/04/2023 às 01:24.

<http://portal.mec.gov.br/sesu-secretaria-de-educacao-superior/30000-uncategorised/61941-
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