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Resumo
Os Desenhos de Couro são os desenhos executados em couro através de técnicas que
permitem a criação de relevo, ornamentando a indumentária e acessórios de montaria do
vaqueiro sertanejo da caatinga. Este artigo investiga o desenho de couro enquanto
desenho-registro: o desenho como evidência material de culturas e práticas no tempo. A
trajetória dessa atividade gráfico-projetual vernacular no sertão tem seus vestígios nas
técnicas corioplásticas em si; em suas suas variantes técnicas; nas nomenclaturas das
mesmas e nas ferramentas usadas pelos sujeitos desse tipo de desenho: os seleiros e
coureiros - mestres do couro. O levantamento bibliográfico de estéticas preexistentes em
corioplastias de Portugal e Espanha permitiu a identificação de diferentes trajetórias
gráficas dos Desenhos de Couro no sertão. Concluiu-se assim que os Desenhos de
Couro são o resedenho de técnicas e estéticas dos chamados couros guadameci,
mormente conhecidos por cordobán, Os Desenhos de Couro portanto, são a nachleben
(“pós-vida”) do guadameci, memória que remonta ao Al-Andaluz ibérico. A
investigação dos vestígios gráficos desse desenho de superfície requer o descolamento
dos tradicionais estereótipos sobre a cultura sertaneja, atentando sobremaneira para a
diversidade cultural dentro do espaço “sertão”, de que os desenhos de couro são
testemunho e diálogo.
Abstract
Desenhos de couro are designs with texture produced for ornate clothing and
accessories of brazilian cowboys local to the ecoregion known as caatinga. This article
aims to investigate the desenho de couro as a historical record, interpreting material
evidences as the techniques used and interviews with the artisans about those designs.
The bibliographic survey about leather art traditions on Brazil, Portugal and Spain
allowed the identification of the evidences found. Therefore, the conclusion is that
desenhos de couro are originated from the redesign of an ancient type of leather known
as guadameci, known also as cordobán. As a historical record, desenhos de couro are
the nachleben (“afterlife”) of memory dating back to the Iberic Al-Andalus. The
investigation of traces of the historical processes of this type of leather surface design
requires detachment from traditional cultural stereotypes within the brazilian space
known as "sertão" and attention to its cultural diversity, of which the desenhos de couro
are testimony and dialogue.
1
UEFS. E-mail: suria.seixas@gmail.com
2
UEFS. E-mail: gaulisy@gmail.com
1 Introdução
Este artigo se origina de pesquisa desenvolvida na área de Desenho, a qual
analisa o percurso formativo, ou processo historio-gráfico do desenho de superfície da
indumentária vaqueira sertaneja. Ao analisar o referido ornamento desenhado sobre
couro e em couro, em aspectos estéticos e visuais, foram pesquisadas coleções museais,
particulares e fontes bibliográficas das chamadas artes coureiras. O objetivo em
averiguar o desenho coureiro tradicional do Brasil, Portugal e Espanha, foi buscar
possíveis antecedentes visuais do ornamento coureiro do sertão do Brasil, dada a
história da colonização sertaneja. Para entender as práticas relacionadas a tais desenhos
e analisar possíveis vestígios do processo histórico formativo do ornamento vaqueiro
tradicional do sertão, entrevistamos um universo de desenhadores vernaculares que
executam esse tipo de expressão gráfica: os chamados mestres seleiros ou mestres
coureiros, residentes e atuantes no espaço do sertão da caatinga.
3
Título da obra de Durval Albuquerque Junior, “ A Invenção do Nordeste e outras artes”.
“rústico” que se sobressai, como na clássica citação de Capistrano de Abreu - a quem
frequentemente se atribui a expressão “civilização do couro”4: “De couro era a porta das
cabanas, o rude leito aplicado ao chão duro [...] a roupa de entrar no mato, os bangüês
para curtume [...]” (ABREU,1998, p.135). Essa digressão é relevante na medida em que
demonstra razões para que o desenho de couro tenha sido mais ou menos borrado da
memória em função das “artes de inventar o Nordeste”. Uma vez que ele existe e, como
desenho, tem capacidade documental e natureza de registro histórico – o Desenho-
registro, portanto, como narrativa histórica (REIS; TRINCHÃO, 2010, p.130) – é que
não devemos recalcar seus recursos enquanto documento de história cultural.
Assim, nosso entendimento é que se fazem necessários novos olhares sobre os
desenhos de couro, considerando sua materialidade em si, suas variações e sua
historicidade. Se em relação ao imaginário do Nordeste, “[...] devemos sempre libertar
as imagens e enunciados do passado, os temas que o constituíram, os conceitos que os
interpretaram, de seu sentido óbvio, problematizando-os” (ALBUQUERQUE JR., 2011,
p. 347), o mesmo se pode dizer dos desenhos de couro, de modo a pensar sua
potencialidade discursiva, imagética, documental e estética.
4
Não pudemos localizar essa expressão em quaisquer obras do autor. Já o parágrafo acima, por sua vez, é
extensamente citado em publicações acadêmicas.
de lã para manter a forma da figura. Já as “vistas” são chamadas assim pelos mestres
coureiros porque os desenhos e motivos recortados nos couros são costurados sobre
outra superfície de couro (sela, indumentária e acessórios), permitindo que o segundo
plano seja “visto”; daí o nome. O relevo se dá pelas camadas, normalmente duas, de
couros de diferentes cores (branco; cru, claro ou escuro) conseguidas com tratamentos
artesanais, ou com courino colorido, e mesmo estampado, de fatura industrial.
Figura 1: Desenhos de couros em técnica de Figura 2: Gibão à esquerda, e colete azul com
“rebaixos”, sobre sela. Mestre Dorinho Seleiro, técnica de “vistas” feitos por Mestre Aprijo,
Ipirá-BA. Fonte: Suria Seixas Neiva, 2016. Ouricuri–PE. Fonte: Suria Seixas Neiva, 2016.
Fonte das figuras 2 e 3: A CASA - Museu do objeto brasileiro. Arquivo. Item OB- 02077.
Disponível em: < http://www.acasa.org.br/reg_mv/OB-02077/>. Último acesso em: 29/04/2018.
4 Considerações Finais
O processo histórico não-linear e com escassos registros a respeito das técnicas,
da comercialização de guadameci ou de seu desenvolvimento estilístico, o desenho de
couro vaqueiro sertanejo deixa uma série de perguntas a serem feitas e investigadas. No
entanto, o desenvolvimento do desenho de couro e das pesquisas sobre os mesmos,
demanda, incontinenti, que não folclorizemos tal produção de desenho vernacular, tão
rica e elaborada. Inversamente, ao observarmos esse fenômeno do Desenho livre de
estereótipos deterministas, foi-nos possível rastrear o desenho de couro como desenho-
registro de uma economia de produção e circulação de bens cuja extensão passada ainda
não temos as dimensões. Sua força estética, porém, sobrevive em suas transformações
aos séculos e se recobre de mais e mais camadas de memória e significados, que
demandam um estudo de contornos étnico-culturais, técnicos e patrimoniais.
Referências
COSTA, Joan. La forma de las Ideas. Barcelona: Costa Punto Com Editor, 2008.
PEREIRA, Franklin. Artes do couro no sul peninsular. In: A Cidade de Évora. Évora:
Câmara Municipal. 1-2, série: 1995. p.371-395.