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MEMÓRIA DA CORIOPLASTIA SERTANEJA:

O DESENHO DE COURO NA INDUMENTÁRIA VAQUEIRA

NEIVA, Suria Seixas 1


TRINCHÃO, Gláucia Maria Costa 2

Resumo
Os Desenhos de Couro são os desenhos executados em couro através de técnicas que
permitem a criação de relevo, ornamentando a indumentária e acessórios de montaria do
vaqueiro sertanejo da caatinga. Este artigo investiga o desenho de couro enquanto
desenho-registro: o desenho como evidência material de culturas e práticas no tempo. A
trajetória dessa atividade gráfico-projetual vernacular no sertão tem seus vestígios nas
técnicas corioplásticas em si; em suas suas variantes técnicas; nas nomenclaturas das
mesmas e nas ferramentas usadas pelos sujeitos desse tipo de desenho: os seleiros e
coureiros - mestres do couro. O levantamento bibliográfico de estéticas preexistentes em
corioplastias de Portugal e Espanha permitiu a identificação de diferentes trajetórias
gráficas dos Desenhos de Couro no sertão. Concluiu-se assim que os Desenhos de
Couro são o resedenho de técnicas e estéticas dos chamados couros guadameci,
mormente conhecidos por cordobán, Os Desenhos de Couro portanto, são a nachleben
(“pós-vida”) do guadameci, memória que remonta ao Al-Andaluz ibérico. A
investigação dos vestígios gráficos desse desenho de superfície requer o descolamento
dos tradicionais estereótipos sobre a cultura sertaneja, atentando sobremaneira para a
diversidade cultural dentro do espaço “sertão”, de que os desenhos de couro são
testemunho e diálogo.

Palavras-chave: desenho de superfície, desenhos de couro, vernacular.

Abstract
Desenhos de couro are designs with texture produced for ornate clothing and
accessories of brazilian cowboys local to the ecoregion known as caatinga. This article
aims to investigate the desenho de couro as a historical record, interpreting material
evidences as the techniques used and interviews with the artisans about those designs.
The bibliographic survey about leather art traditions on Brazil, Portugal and Spain
allowed the identification of the evidences found. Therefore, the conclusion is that
desenhos de couro are originated from the redesign of an ancient type of leather known
as guadameci, known also as cordobán. As a historical record, desenhos de couro are
the nachleben (“afterlife”) of memory dating back to the Iberic Al-Andalus. The
investigation of traces of the historical processes of this type of leather surface design
requires detachment from traditional cultural stereotypes within the brazilian space
known as "sertão" and attention to its cultural diversity, of which the desenhos de couro
are testimony and dialogue.

Keywords: surface design, desenhos de couro, vernacular.

1
UEFS. E-mail: suria.seixas@gmail.com
2
UEFS. E-mail: gaulisy@gmail.com
1 Introdução
Este artigo se origina de pesquisa desenvolvida na área de Desenho, a qual
analisa o percurso formativo, ou processo historio-gráfico do desenho de superfície da
indumentária vaqueira sertaneja. Ao analisar o referido ornamento desenhado sobre
couro e em couro, em aspectos estéticos e visuais, foram pesquisadas coleções museais,
particulares e fontes bibliográficas das chamadas artes coureiras. O objetivo em
averiguar o desenho coureiro tradicional do Brasil, Portugal e Espanha, foi buscar
possíveis antecedentes visuais do ornamento coureiro do sertão do Brasil, dada a
história da colonização sertaneja. Para entender as práticas relacionadas a tais desenhos
e analisar possíveis vestígios do processo histórico formativo do ornamento vaqueiro
tradicional do sertão, entrevistamos um universo de desenhadores vernaculares que
executam esse tipo de expressão gráfica: os chamados mestres seleiros ou mestres
coureiros, residentes e atuantes no espaço do sertão da caatinga.

1 Abordando o Desenho de couro


A referida investigação onde se delineiam os desenhos de couro pertence a um
campo interdisciplinar, ao qual concorrem: o Desenho, a História Cultural e a História
da Arte. Um desenho é, simultaneamente, registro em sua materialidade; memória em
sua imaterialidade e forma visual enquanto imagem percebida. Um desenho (ou um tipo
de desenho) atesta seu tempo e seu espaço de criação: é uma entidade histórica capaz de
“permitir o diálogo crítico entre temporalidades distintas que esperam um reencontro.
Os registros gráficos carregam consigo essa possibilidade, são interpretáveis e não têm
uma só versão”. (REIS; TRINCHÃO, 1998, p.158). As próprias técnicas utilizadas, bem
como as práticas envolvidas são, também, vestígios do tempo-espaço do Desenho.
Nesse sentido, ambas as disciplinas Desenho e História se debruçam sobre a
interpretação e a preservação de dados, informações, conexões (REIS; TRINCHÃO,
1998, p.158) – registros, portanto. Desenho-registro, assim, é o desenho enquanto
análise de vestígios do passado; documento das percepções das pessoas de determinado
tempo, através do registro gráfico.
As representações, interpretações e levantamentos sobre os processos históricos
dos desenhos de couro, aqui, não se norteiam por um objetivo estetizante: antes,
buscamos como fundamento na pesquisa histório-gráfica a sobrevivência das imagens,
no dizer de Aby Warburg (DIDI-HUBERMANN, 2013, p.24). A nachleben (“vida após
a morte”, literalmente, do alemão; em Warburg, “sobrevivência”, no sentido de “pós-
viver”, continuidade após um período de esquecimento) é o entendimento da
transmissão anacrônica das imagens, temporalmente não-linear. A sobrevivência de
formas gráficas traz o potencial de “[...] desenclausurar” a imagem e o tempo que ela
carrega - ou que a carrega” (DIDI-HUBERMANN, 2013, p. 34). Diretamente
relacionado com o chamado paradigma indiciário ou semiótico da investigação histórica
(GINZBURG, 1989, p. 177), o desenho é também registro, vestígio, sintoma gráfico de
uma prática cultural.
Tradicionalmente a História da Arte não se preocupa com a permanência
deslocada e sintomal de desenhos, de formas (DIDI-HUBERMANN, 2013, p.47) mas
sim com uma sucessão de estilos que são vulgarmente interpretados como a essência de
uma época; um zeitgeist (“espírito do tempo”, em alemão). Os tempos sucessivos
seriam imitação e/ou ruptura com o tempo imediatamente anterior: uma espécie de
“evolução das espécies” da visualidade (DIDI-HUBERMANN, 2013, p.75).
O Desenho sobrevivente é indício ele mesmo de “um limbo ainda mal definido
de uma “memória coletiva” (DIDI-HUBERMANN, 2013, p.55), onde as ideias de
tradição e transmissão ganham duas dimensões simultâneas - a histórica e a anacrônica.
Tal noção pode ser definida como tendo, cada período histórico, seu próprio nó de
antiguidades, anacronismos e propensões para o futuro, criando paradoxos para a nossa
“compreensão retilínea da história” (DIDI-HUBERMANN, 2013, p.69; p. 71).
Dessa maneira, imbricadas metodologicamente a História Cultural e a História
da Arte, o Desenho é a agulha do
“[...] historiador-sismógrafo [...]descritor dos movimentos visíveis que ocorrem
aqui e ali; é, principalmente, aquele que inscreve e transmite os movimentos invisíveis
que sobrevivem, que são urdidos sob o nosso solo, que se aprofundam que aguardam o
momento - inesperado - de se manifestar subitamente. ” (DIDI-HUBERMANN, p. 112).
A nachleben difere, portanto, da “perpétua comemoração de seu passado” que
constitui a “Invenção do Nordeste”. O regionalismo não se interessa por rupturas, por
descontinuidades, mas sim por clichês. Os desenhos de couro, presentes em todas as
peças da indumentária vaqueira, inclusive acessórios de montaria como também
estiveram nos chapéus cangaceiros (estrelas de oito pontas – e não de seis, flores de lis,
etc.) as operações simbólicas na criação do ideário de sertão e seus grupos sociais são
“estereótipos [...] pretensão de saber prévio sobre o outro” (ALBUQUERQUE, 2011,
p.353), nos quais o desenho de couro é facilmente descaracterizado porque não foi
identificado como tal. O desenho de couro encoberto pelo regionalismo desconstitui não
só memória e cultura, mas também processo histórico, trajeto e transmissão.
Uma vez associado exclusivamente a um “povo, mestiço, pobre, inculto e
primitivo em suas manifestações sociais” (ALBUQUERQUE, 2011, p.123),
paradoxalmente, esse mesmo povo destituído de tudo é o mesmo que vive na região do
país que é “embebida em história”, “região da memória e da natureza”, “arcaica”,
“feudal”. (ALBUQUERQUE, 2011, p. 121) São saberes prévios estereotipados,
caricatura de povo desumanizado - porque incapaz de criar - a memória só é interessante
quando morre, não quando sobrevive: a sobrevivência implica em deslocamentos,
redesenhos, recriações, novas relações de uma imagem com sua nova pós-vida.
Aby Warburg, bem como Burckhardt, propõem uma perspectiva que abraçamos,
que é se colocar criticamente “(...) no problema mais geral da relação entre uma cultura
e sua memória: uma cultura que recalca sua própria memória, suas próprias
sobrevivências, está tão fadada à impotência quanto uma cultura imobilizada na
perpétua comemoração de seu passado” (DIDI-HUBERMANN, 2013, p. 64).
A preexistência dos desenhos de couro, ou sua “vida anterior”, está assim
conectada a gerações de desenhos-registro anteriores, a relativamente longeva
corioplastia ibérica de matriz mudéjar: o guadameci. Os couros de superfície desenhada,
coloridos e com relevos que floresceram na península Ibérica tem origem nos “[...]
antigos reinos do Al-Andalus Islâmico, os usos do couro – seja nas vertentes “popular”
e “artística” atingiram enorme qualidade e fama [...] (PEREIRA, 1995, 371) tiveram
originalmente seus expoentes técnicos associados aos couros de carneiro e couro de
cabra ou bode. A conexão entre o guadameci e o desenho de couro foi localizada
através de pesquisa bibliográfica e documental (desde a história da colonização dos
sertões até registros sobre exportação e importação de couros) o cruzamento de
informações históricas, visuais e pesquisa de campo.
Dentre os primeiros indícios o uso corrente do seguinte termo: os mestres do
desenho de couro das cidades pesquisadas (da Bahia e do Cariri cearense e
pernambucano) se referiam a um dos métodos de desenho de couro como rebaixado, e o
seu produto, rebaixos.
Os mais ativos mestres coureiros entrevistados foram: na Bahia, seu Naio,
mestre do couro da comunidade do Malhador de Ipirá, com o apoio da esposa, Dona
Elisa; ambos da mesma comunidade de Seu Dorinho Seleiro; Seu Galego do Couro,
jovem mestre coureiro de Feira de Santana. Em Pernambuco: Mestre Luizinho do
Couro, primeiro alfaiate do couro de das indumentárias de Luis Gonzaga, da zona rural
de Exu; Seu Antônio Leopoldo, da cidade de Serra Talhada; Mestre Aprijo, de Ouricuri,
e seu filho Romildo: aquele, mestre afamado por dar continuidade na produção das
roupas do Gonzagão, e autor de muitas das peças expostas no Museu Cais do Sertão, em
Recife; Seu Zé do Mestre, filho de mestre coureiro e pai de Irineu do Mestre, da fazenda
Cacimbinha, zona rural de Salgueiro, Pernambuco; seu Antonio Maciel Seleiro, da zona
urbana de Exu; e do Cariri cearense, fronteiriço à Pernambuco, Mestre Espedito Seleiro,
o mais famoso de todos os mestres do couro. Dentre estes, o nome dessa técnica
permaneceu: (couro de, com) rebaixo: indício do termo rebajado em espanhol. Seu
complemento é o gravado ou repuxado (técnica de alto-relevo, inverso do rebaixado),
(PEREIRA, 2015b) são termos correntes quando se fala do guadameci ibérico.
Uma tentativa de correlação precisa entre quais estilos, padrões e origens (se
guadameci de Córdoba, ou de Barcelona; se do Alentejo, ou de Alto Douro) com os
desenhos de couro sertanejos nos parece, considerando os objetos de couro
remanescentes, improvável. No entanto, alguns motivos recorrentes nas diferentes fases
do guadameci, como a estrutura em voluta ou padrões de grafismos; terminologia;
técnicas e usos, foram determinantes para localizar o desenho de couro do sertão
brasileiro, como sobrevivência do guadameci ibérico.

2 Do desenho de couro, sertão e superfície


O desenho de couro não é aquele da modelagem da indumentária, e sim os
ornamentos inscritos na superfície das peças vaqueiras. As peças indumentárias do
vaqueiro têm como função original o uso no pastoreio de gado vacum; são vestidas
socialmente em missas, festas e vaquejadas, etc. A indumentária é aqui objeto gráfico
(tridimensional) que traz a mensagem gráfica dos desenhos de couro: desenho de
superfície com relevo ou representação tridimensional - informações para os olhos e
para as mãos também (COSTA, 2008, p. 140). Desse modo, nessas indumentárias, ou
ainda, “sobre su superficie se incribe un dibujo, un relato, un mensaje, una información
en imagem. O en imágenes” (COSTA, 2008, p. 140).
A superfície necessária para esse tipo de desenho é o couro; como não havia
tipologia específica para a identificação do ornamento em questão, denominamos
desenho de couro ao ornamento de indumentária vaqueira sertaneja brasileira. Este tipo
de desenho se manifesta equilibrado entre dois vetores de referência: o seu uso
indumentário, originalmente laboral, e o espaço do sertão ou caatinga sertaneja. Aqui
cabe breve relembrar, sem prejuízo ao nosso tema, que pedimos permissão ao leitor.
O sertão é um termo que aporta no processo mesmo de exploração do Brasil
Colônia, e se referindo a toda a terra longe da orla. A palavra era grafada “certam” e
“certão” e vem de mulcetão, (corruptela portuguesa de vocábulo angolano mbunda
muchitum) que significa “interior” ou “região distante da costa”. (PERICÁS, 2010,
p.24). Essa localização etimológica é relevante para desfazer um mal-plantado equívoco
que reza que o sertão é um deserto. Tponímia portanto generalista (o “certam” em
Portugal, por exemplo, nunca foi deserto – e o termo era corrente, até o século XVIII,
para se referir ao interior do país), “sertão” ganhou uma circunscrição espacial e
derivadas construções de imagens bem características sobre esse espaço de “oposição à
orla”; tal delineação se dá a partir da obra Os Sertões, de Euclides da Cunha, de 1906
(ALBUQUERQUE JR., 2011, p.66). O processo de “Invenção do Nordeste” 3 de que
trata Albuquerque é o desenho nacional de espaço territorial impreciso, de recortes
muito mais ideológicos que geográficos, “um espaço visto como repositório de uma
cultura folclórica, tradicional, base para o estabelecimento da cultura nacional”
(ALBUQUERQUE JR., 2011, p.67).
Entendemos que a chamada “figura do vaqueiro” é parte desse agenciamento de
imagens, personagens e paisagens para a criação de um imaginário nordestino,
fortemente definido pela idéia de “sertão” como um deserto, morto, sem vida, sem
possibilidade de superação do determinismo geográfico. Uma breve leitura sobre a
Caatinga nos mostra que é bioma único no mundo, com fauna e flora superiores em
número a outros com temperatura e clima similares no mundo (BRASIL, 2002, p.134).
Os desenhos de couro, como parte da indumentária vaqueira deixam de ter
relevo particular e se misturam com a imagem do cangaceiro, do beato ou do sertanejo
miserável. A indumentária vaqueira – que movimenta economia e práticas em torno de
si – quando referida, raramente descreve seus desenhos. É a imagem do “couro cru” ou

3
Título da obra de Durval Albuquerque Junior, “ A Invenção do Nordeste e outras artes”.
“rústico” que se sobressai, como na clássica citação de Capistrano de Abreu - a quem
frequentemente se atribui a expressão “civilização do couro”4: “De couro era a porta das
cabanas, o rude leito aplicado ao chão duro [...] a roupa de entrar no mato, os bangüês
para curtume [...]” (ABREU,1998, p.135). Essa digressão é relevante na medida em que
demonstra razões para que o desenho de couro tenha sido mais ou menos borrado da
memória em função das “artes de inventar o Nordeste”. Uma vez que ele existe e, como
desenho, tem capacidade documental e natureza de registro histórico – o Desenho-
registro, portanto, como narrativa histórica (REIS; TRINCHÃO, 2010, p.130) – é que
não devemos recalcar seus recursos enquanto documento de história cultural.
Assim, nosso entendimento é que se fazem necessários novos olhares sobre os
desenhos de couro, considerando sua materialidade em si, suas variações e sua
historicidade. Se em relação ao imaginário do Nordeste, “[...] devemos sempre libertar
as imagens e enunciados do passado, os temas que o constituíram, os conceitos que os
interpretaram, de seu sentido óbvio, problematizando-os” (ALBUQUERQUE JR., 2011,
p. 347), o mesmo se pode dizer dos desenhos de couro, de modo a pensar sua
potencialidade discursiva, imagética, documental e estética.

2.2 Peças e técnicas do desenho de couro


A superfície desenhada do couro, se investigada, naturalmente tem suas
“coordenadas positivas” (ou seja, possui “autor, data, técnica e iconografia” (DIDI-
HUBERMAN, p.33). Mas como técnica de desenho transmitida familiarmente ou em
aprendizagem oficinal, esses dados não se tornam relevantes – exceto a autoria: os
mestres seleiros/coureiros desejam reconhecimento pela sua expertise e até mesmo
reconhecem os desenhos de seus pares mais antigos no ramo (NEIVA, 2017, p.67).
Em termos gerais, o desenho de couro se preocupa – assim como sua
preexistência, o guadameci, com o relevo na superfície. O relevo do couro pode
objetivar um efeito de baixo-relevo, ou os “rebaixos”; e em alto-relevo, em “vistas” ou
costuras. Os rebaixos são frequentes na selaria, e podem ser produzidos por meio de
ferros (que funcionam como clichês, ou carimbos de pressão). Por meio de costuras se
consegue um alto-relevo delicado ao toque: as linhas tensionam o couro, produzindo o
relevo entre duas linhas (normalmente onduladas e paralelas), que acontecem nos
chapéus e nos contornos das peças de roupa. Quando nas selas, possuem um enchimento

4
Não pudemos localizar essa expressão em quaisquer obras do autor. Já o parágrafo acima, por sua vez, é
extensamente citado em publicações acadêmicas.
de lã para manter a forma da figura. Já as “vistas” são chamadas assim pelos mestres
coureiros porque os desenhos e motivos recortados nos couros são costurados sobre
outra superfície de couro (sela, indumentária e acessórios), permitindo que o segundo
plano seja “visto”; daí o nome. O relevo se dá pelas camadas, normalmente duas, de
couros de diferentes cores (branco; cru, claro ou escuro) conseguidas com tratamentos
artesanais, ou com courino colorido, e mesmo estampado, de fatura industrial.

Figura 1: Desenhos de couros em técnica de Figura 2: Gibão à esquerda, e colete azul com
“rebaixos”, sobre sela. Mestre Dorinho Seleiro, técnica de “vistas” feitos por Mestre Aprijo,
Ipirá-BA. Fonte: Suria Seixas Neiva, 2016. Ouricuri–PE. Fonte: Suria Seixas Neiva, 2016.

Os desenhos são produzidos a partir de modelagem criada pelo mestre em


plástico ou papel-vegetal (para as vistas), ou do grafismo (no ferro ou clichê, que os
mestres também chamam por “ligas”) escolhido pelo mestre em seu ferreiro de
confiança (NEIVA, 2017, p.137), implicando em determinados tratamentos da linha, do
ponto e dos planos, com motivos mais ou menos frequentes.
O plano da imagem do desenho, ou o suporte, é o couro; porém, os desenhos de
couro possuem uma moldura de referência que influenciam na lógica relacional entre os
seus elementos visuais: o corte (vestível ou usável). Dito de outra forma, os cortes de
couro que, costurados, se transformam na indumentária do vaqueiro, conformam as
informações gráficas na vestimenta e em seus acessórios. Ao mesmo tempo, pode-se
dizer que a aparência vaqueira sertaneja é a imagem resultante produzida pelos
desenhos de couro. Vejamos, então, quais são as partes da aparência vaqueira sertaneja.
A indumentária vaqueira sertaneja consiste em
Chapéu de fundo cônico ou redondo, cujas abas levantadas o
transformam em um verdadeiro bicórnio setecentista; gibão levado ao
ombro como uma peliça de hussardo e somente vestido no momento
de entrar no mato; colete formado por um peitoral, às vezes de fantasia
- couro de onça, de maracujá ou de caititu, cobrindo o tórax do
pescoço à cintura; longas perneiras de polaina, defendendo pernas e
coxas, deixando livres unicamente as nádegas; e grossas luvas sem
dedos. (BARROSO, 1954, p.32)

Figura 4 - Traje vaqueiro completo. Figura 3: Detalhe do guarda-peito,


Mestre Espedito Seleiro, Nova Olinda - CE parte interna do conjunto da Figura 4.

Fonte das figuras 2 e 3: A CASA - Museu do objeto brasileiro. Arquivo. Item OB- 02077.
Disponível em: < http://www.acasa.org.br/reg_mv/OB-02077/>. Último acesso em: 29/04/2018.

O colete que Barroso menciona localizei com o nome “guarda-peito”. Mais


parecido com um avental, estreito e pequeno, só para proteger o tórax na área da
abertura do gibão, amarrado por tiras. Há o colete, propriamente dito, aberto na frente e
sem mangas nos moldes que usamos hoje, e que os vaqueiros por vezes usam também
sem o gibão. As perneiras, assim como as luvas (ou “guantes”), são também peças de
couro desenhado.
Sobre essas peças, desde a sela e acessórios de montaria até a indumentária e
acessórios da vestuária, os seguintes motivos são comumente identificados na técnica
das “vistas” na tipologia dos mestres entrevistados: variações em volutas são os “ésses”
(plural: “essada”); flores de lis em diversas estilizações; sóis com rosto e/ou como
figuras radiais; corações, mesclados com coroas ou formados no negativo de flores de
lis ou volutas. Nos rebaixos e costuras, o figurativo é raro: o interesse está em criar um
padrão, sobre um recorte da superfície ou em faixa decorativa, de modo a contornar as
peças. Os grafismos são variantes de ponto / circulo / linha / linha curva / linha sinuosa
em “s” / asterisco / forma radial. Ambas, “vistas” e “rebaixos”, são derivados da estética
e da técnica clássica do guadameci.

3 Técnicas e processos históricos


O guadameci tem variações técnicas que são características relevantes para a
compreensão do desenvolvimento do desenho de couro sertanejo. Produto de alto valor
comercial pela aplicação de folhas de ouro, em figuras ou no fundo, e pintura colorida.
As figuras normalmente tinham alto-relevo e o fundo, uma área texturada em baixo
relevo. Cumpre citar o tallado rural ibérico, para confecção de safões de couro e artes
utilitárias como porta-retratos - de processo semelhante ao das “vistas” – mas sem as
cores e com outro universo de motivos. (PEREIRA, 2008, p.8). Torres descreve os usos
que foram dados aos guadamecis ibéricos:
Aunque los procedimientos empleados para la ornamentación
de los cueros se usan también en outras artes, no cabe duda de
que en cada materia adquiren modalidades específicas. Además,
no puede extrañarnos la variedad de técnicas empleadas, por la
extraordinaria diversidad de objetos de cuero, entre los que
hallaremos estuches, cajas, arcas, maletas, altares portátiles,
sillas de montar, guarniciones, literas, alfombras, papeleras,
bargueños, tapizados de muro, frontales de altar, retablos,
encuadernaciones, carpetas para libros, indumentaria popular,
adargas, broquelilos, cinturones, etc. (TORRES, 1955, p.11)

A semelhança de usos, também, e não só pelas “indumentárias populares” ou


as “selas de montaria”, mas pela as adargas, por serem de uso equestre, ainda que
bélico. Além de descrever as técnicas (como repujado, grabado, ferreteado, rebajado,
idênticas ou similares as do desenho de couro sertanejo), Torres ainda conclui que com
dois ou três ferros, todas as técnicas fundamentais eram realizadas.
Como explica Pereira, a hipótese de que “guadameci” é nome oriundo da cidade
africana islâmica de Ghadamés (que produzia muitos dos couros e profissionais do
ramo), é uma falsa coincidência, remontando a etimologia a wad al-másir ou “folhas e
ramos”. Na Espanha muçulmana, a referência ao couro provém da junção da referência
botânica com gueld, “couro”, resultando em gueld al-másir, raíz da palavra (PEREIRA,
2012, p.3). Percebe-se aqui um longo processo de desenvolvimento de um tipo de
desenho de superfície. O guadameci não teve um processo estável de desenvolvimento;
pelo contrário, teve sua produção praticamente extinta quando os Países Baixos
desenvolveram sua variante industrial (PEREIRA, 2015a, p.109): couro desenhado em
relevo e dourado, em um único golpe de prensa, o goudleer.
O fim do guadameci português é o marco do início da “[...] cadeira em couro
lavrado, a partir de inícios do séc. XVII. É precisamente nestes couros bovinos que se
encontra um rico espólio de arte mudéjar” (PEREIRA, 2015b, p.3-5). A cadeira lavrada
portuguesa se desenvolve num período em que móveis escuros ditavam a moda; assim,
poucas cores eram aplicadas no guadameci ou nos “couros lavrados” ou “repuxados
portugueses”, demonstrando qual a técnica mais procurada à época naquele país. O
desenho de couro sertanejo, porém, não é o único registro do trânsito de estéticas e
saberes desenhísticos de couro; Pereira localiza alguns exemplares de couros lavrados
em Portugal, onde
Num conjunto de cadeiras em couro lavrado, está um indígena com
cocar e tanga de penas, segurando arco e flecha, entre ornamentos
rococó; de novo, o desfasamento entre a decoração e a estrutura destas
cadeiras – repetindo aquela de meados do século XVII – revela a sua
execução no Brasil colonial, e outro capítulo na História do móvel de
assento no espaço lusófono: o anacronismo entre estrutura e lavrado,
uma “paragem no tempo” dos carpinteiros/ensambladores e um
avanço estético por parte dos correeiros/gravadores de couro, ambos
idos de Portugal para o Brasil, onde tiveram continuidade laboral.
(PEREIRA, 2015b, p.6)
Figura 5: Cadeira em guadameci,de Figura 6: Detalhe da cadeira descrita.
aprox. séc XVII/XVIII, Malines – Holanda. Museu dos Patudos, Portugal
Fonte: PEREIRA, 2015a. Foto do autor. Fonte: PEREIRA, 2015b. Foto do autor.

Essa continuidade laboral deve ter tomado diversos espaços do Brasil-Colônia;


mas por motivos práticos, um mestre coureiro vai se aproximar de onde há couro, pois
há trabalho e matéria-prima: o sertão bovinocultor. Assim é que os indícios deixados
pelo desenho de couro traçam um percurso, uma motriz de circularidade entre culturas e
desenvolvimento visual e técnico original, justificando um nome próprio: desenhos de
couro sertanejos, distintos de suas matrizes. A seleção dos locais onde foram
entrevistados os mestres se deu cruzando informações de paradeiro de mestres coureiros
com as rotas coloniais do gado, notadamente as oriundas da Casa da Torre dos Garcia
D’Ávila. O tema não se encerra, todavia: onde quer que exista produção coureira na
caatinga, mestres coureiros podem estar desenhando: novos processos, novos materiais
talvez, novos desenhos a continuarem a memória da corioplastia sertaneja do Brasil.

4 Considerações Finais
O processo histórico não-linear e com escassos registros a respeito das técnicas,
da comercialização de guadameci ou de seu desenvolvimento estilístico, o desenho de
couro vaqueiro sertanejo deixa uma série de perguntas a serem feitas e investigadas. No
entanto, o desenvolvimento do desenho de couro e das pesquisas sobre os mesmos,
demanda, incontinenti, que não folclorizemos tal produção de desenho vernacular, tão
rica e elaborada. Inversamente, ao observarmos esse fenômeno do Desenho livre de
estereótipos deterministas, foi-nos possível rastrear o desenho de couro como desenho-
registro de uma economia de produção e circulação de bens cuja extensão passada ainda
não temos as dimensões. Sua força estética, porém, sobrevive em suas transformações
aos séculos e se recobre de mais e mais camadas de memória e significados, que
demandam um estudo de contornos étnico-culturais, técnicos e patrimoniais.

Referências

ABREU, João Capistrano de. Capítulos de História Colonial. Brasília: Conselho


Editorial do Senado Federal, 1998. p.135. Disponível em:
<https://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/1022/201089.pdf?sequence=4>.
Acesso em: 1 Maio 2016.
ALBUQUERQUE JÚNIOR, Durval Muniz de. A invenção do nordeste e outras artes.
5ª ed. São Paulo: Cortez, 2011.

BRASIL. Biblioteca Nacional Digital. Fundação Biblioteca Nacional: Hemeroteca


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Biodiversidade brasileira: avaliação e identificação de áreas e ações prioritárias para a
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DIDI-HUBERMANN, Georges. A imagem sobrevivente: história de arte e tempo


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GINZBURG, Carlo. Mitos, emblemas, sinais: morfologia e história. São Paulo:


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COSTA, Joan. La forma de las Ideas. Barcelona: Costa Punto Com Editor, 2008.

NEIVA, Suria Seixas. Desenhos de couro: registro e memória do encouramento do


vaqueiro sertanejo. Feira de Santana, BA: 2017. Originalmente apresentada como
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