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DE ESCRAVOS

A INDÍGENAS
O longo processo de
instrumentalização dos africanos
(séculos XV - XX)
Isabel Castro Henriques

DE ESCRAVOS
A INDÍGENAS
O longo processo de
instrumentalização dos africanos
(séculos XV - XX)
TÍTULO
De escravos a indígenas.
O longo processo de instrumentalização dos africanos (séculos XV-XX)

AUTOR
Isabel Castro Henriques

IMAGEM DA CAPA
Fotografia de José Christiano Júnior, MHNRJ, Colecção Particular, 1865.

DESIGN E PAGINAÇÃO
Maria Timóteo

ISBN
978-989-???

DEPÓSITO LEGAL
463475/19

DATA DE EDIÇÃO
2019

EDIÇÃO
CALEIDOSCÓPIO – EDIÇÃO E ARTES GRÁFICAS, SA
Rua Cidade de Nova Lisboa, Quinta Fonte do Anjo, 1-A. 1800-108 Lisboa. PORTUGAL
Telef.: (+351) 21 981 79 60 | Fax: (+351) 21 981 79 55
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11 PREFÁCIO

15 CAPÍTULO 1
ESCRAVIZADOS, MERCANTILIZADOS, DESUMANIZADOS:
A construção do africano-escravo (séculos XV-XIX)
17 Angola, a Escravização dos Homens e o Comércio Negreiro
(Séculos XV - XIX )
17 Angola e a escravatura africana: quadro teórico geral
22 A escravização dos africanos: concepções, práticas, funções
48 A organização do tráfico de escravos em Angola
(Séculos XVII-XIX)
99 Os dois lados do mar: da liberdade à escravidão.
A liberdade tardia
129 Ideologias e Práticas da Escravatura no Espaço Português
(Séculos XV-XX)
130 A utilização do escravo africano na sociedade
e na economia portuguesas
132 Índios e africanos: a problemática existência da “alma”
134 Escravatura e comércio negreiro:
a criação de formas inéditas de socialização
136 Crueldade esclavagista e réplicas africanas
139 Para uma revisão da história do Atlântico
143 Ser Escravo em São Tomé no Século XVI
145 Colonizar
147 Um regime de trabalho “muito curioso”
157 A Revisão da Escravatura e do Tráfico Negreiro em Moçambique na
Obra de José Capela
158 Uma nova epistemologia da escravatura
162 O comércio negreiro europeu no Índico e a relação com o Brasil
166 Violências esclavagistas/fragilidades da resistência
169 Os “efeitos do tráfico”
173 Como legitimar a escravatura e o comércio de escravos?
Introdução a Déraison, esclavage et droit
185 CAPÍTULO 2
ICONOGRAFIA:
A instrumentalização dos Africanos através do discurso imagético
188 Produzir, comerciar e “usar” os escravos:
da África para as Américas (séculos XV a XIX)
220 A exclusão dos africanos e a prática civilizadora portuguesa:
(des)classificados, ridicularizados, “civilizados” (séculos XIX e XX)

245 CAPÍTULO 3
AS MUITAS FORMAS DE UTILIZAÇÃO
E EXCLUSÃO DOS AFRICANOS NOS SÉCULOS XIX E XX
Selvagens e indígenas, assimilados e civilizados
247 Do esclavagismo ao racismo : entrevista a Isabel Castro Henriques
263 A (falsa) passagem do escravo a indígena
267 A antropologia científica justifica a inferiorização do Outro
270 O heroísmo europeu fabrica a “bestialidade” africana (e vice-versa)
273 O trabalho como ideologia do enselvajamento
279 Virtudes “Brancas”, Pecados “Negros”:
Estratégias de Dominação nas Colónias Portuguesas
282 A dissimulação das evidências ou a construção dos mitos
286 Os mitos e a política colonial: fases da sua evolução
292 Acerca do “trabalho e do ensino para o preto”
ou a evidência da exploração portuguesa
303 A África “Portuguesa” e a Primeira República:
Paradoxos, Estratégias e Práticas Coloniais
305 Ideais republicanos e realidades coloniais:
uma associação paradoxal
308 A missão civilizadora, pilar do projecto colonial republicano
320 Estratégias coloniais:
a “portugalização” dos espaços e dos homens africanos
341 Os Africanos Na Sociedade Portuguesa:
Ambiguidades Classificatórias e Realidades Coloniais
342 Ambiguidades e categorias classificatórias
344 Percursos e estratégias de integração dos africanos
(séculos XV-XVIII)
350 Representações coloniais e impacto na sociedade portuguesa
(até 1974)
372 Conclusão
375 BIBLIOGRAFIA
382 SIGLAS
383 ORIGEM DOS TEXTOS
Isabel Castro Henriques

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DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

À memória dos meus Pais.

Este livro
é também uma homenagem
aos muitos Africanos escravizados
ao longo de séculos de história.

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PREFÁCIO

“Vimos a bordo do vapor portuguez África enquanto ahi esteve fundea-


do, umas 37 peles humanas com pretos dentro, que nos disseram ser restos
de 200 e tantos valentes que foram in-illo-tempore prestar serviços em S.
Thomé. Francamente, para o estudo anatómico do cadáver do preto, acha-
mos dispendioso o transporte de tais esqueletos e muito infame, pouco digno,
pouco humano, o tratamento que se dá a seres humanos até aquele estado
de lindesa. S.Thomé, serviçais indígenas e escravatura, são três tremendos
poemas a fazer que não acham facilmente poeta que os rime em verso sono-
ro. Sonoro são as libras que todo este bando de miseráveis deixa aos nego-
ciadores de cabeças d’alcatrão”. Jornal O Africano, 15 de Junho de 1912.

A violência das palavras deste articulista do periódico moçambicano põe


em evidência a brutalidade de uma situação ainda corrente no século XX, onde
se articulam as constantes ideias de desumanização dos Africanos associadas a
factos históricos que remetem para um longo processo de instrumentalização
dos homens africanos, que se inicia e se desenvolve com a sua escravização,
a partir dos finais do século XV e durante um longo período secular, prosse-
guindo com as operações portuguesas de “civilização” destinadas a assegurar a
reconversão do escravo em indígena, e do indígena em assimilado, ao serviço
do colonialismo novecentista.
Esta é a problemática geral deste livro, que reúne um conjunto de textos,
alguns já anteriormente publicados*, associados a outros posteriormente es-
critos e dispersos em publicações de natureza diversa, nem sempre de acesso

*1 HENRIQUES, Isabel Castro, Os Pilares da Diferença. Relações Portugal- África –Séculos XV-XX, Lisboa, Caleidoscópio, 2004.

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fácil, que constitui um eixo central da minha reflexão teórica e histórica, cen-
trada no estudo da África e dos Africanos. Quase cinquenta anos de estudo e
de investigação, que resultam, em parte, da minha formação na Universidade
de Paris I – Panthéon-Sorbonne, da minha longa actividade docente na Facul-
dade de Letras da Universidade de Lisboa e também, de forma pontual, em
outras universidades europeias, africanas e brasileiras, traçando o meu percur-
so intelectual de historiadora marcado por preocupações de natureza social,
centradas na realidade histórica portuguesa muito marcada pelo preconceito
e pela persistência de situações de discriminação racial dos homens e das mu-
lheres de África.
Neste estudo, eliminei algumas publicações por me parecerem algo pleo-
násticas, modifiquei outras, mas deixei o essencial, consciente das inevitáveis
repetições, da natureza e do peso científico distintos de cada um dos estudos
apresentados, que resultam da sua função originária, das minhas investigações
e dos meus conhecimentos no momento em que foram redigidos. Só assim
me pareceu possível dar conta deste meu percurso consagrado ao estudo de
questões históricas centrais no quadro global da história da África, como os
processos esclavagistas organizados pelos Europeus e as formas de dominação
impostas aos Africanos pelo colonialismo novecentista.
Os textos aqui reunidos, segundo temas e problemas que me inquietaram e
me inquietam, procuram contribuir para uma renovação da historiografia rela-
tiva às relações entre Portugal e África, no domínio concreto das formas de ins-
trumentalização dos Africanos levadas a cabo pelos Portugueses durante quase
cinco séculos. Um longo processo cuja natureza interna se revelou capaz de me-
tamorfose e reconversão nos séculos XIX e XX, assegurando a continuidade do
“uso” violento das populações africanas, recorrendo a um aparelho classificató-
rio novo - selvagens, indígenas, assimilados - destinado a manter os Africanos na
esfera da inferiorização e dominação portuguesas, contribuindo para legitimar a
sua escravização e fixar interpretações deformadoras da História.
Juízos de valor, mercantilização, coisificação, exploração, ridicularização
dos homens africanos fabricaram imaginários portugueses que reduziram o
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

preto/africano a escravo, o selvagem/indígena a preguiçoso, ladrão e bêba-


do, o assimilado/“civilizado” a cópia ridícula e negativa do branco/português,
consagrando a inferiorização dos Africanos, e no mesmo movimento, hierar-
quizando as humanidades, glorificando a “raça” portuguesa e valorizando, pri-
meiro, a dimensão e a natureza das acções portuguesas esclavagistas, depois,
colonialistas, num passado ainda recente, que deixaram marcas até hoje na
sociedade portuguesa.
Numa obra desta natureza, as repetições são inevitáveis. Eliminei algumas,
mas mantive a maioria pois elas traduzem a constância da minha própria in-
vestigação e sobretudo reflectem os vários ângulos de análise – horizontais,
verticais, transversais – exigidos pela complexidade do objecto histórico de
que me ocupo: do esclavagismo ao colonialismo, as formas de exclusão dos
Africanos, marcadas por mitos e estereótipos legitimadores das acções portu-
guesas e falsificadores das realidades sociais e culturais africanas. Acrescento,
que mantive as bibliografias específicas dos textos incluídos – embora integra-
das numa bibliografia geral -, por me parecer mais ajustado fornecer esta indi-
cação complementar, permitindo que o leitor se possa dar conta dos suportes
teórico e documental utilizados.
Um livro claro e útil é o meu propósito: tratar com rigor problemáticas
tão complexas, anular as falsas ideias que procuram esvaziar a responsabilida-
de histórica portuguesa – contrapondo com alguma frequência, e com uma
justeza que não anula a crueldade portuguesa, a participação dos próprios
africanos nas violências cometidas –num processo de “uso” longo, violento,
continuado e doloroso dos Africanos, que como escravos, indígenas ou assi-
milados foram objecto de práticas de desumanização e de inferiorização, de
manifestações de troça, de preconceito, de discriminação racial e social, vendo
negada durante séculos a sua identidade cultural e a sua autonomia histórica.

Lisboa, Março de 2019.

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DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

CAPÍTULO 1

ESCRAVIZADOS,
MERCANTILIZADOS,
DESUMANIZADOS:
a construção do
africano-escravo
(séculos XV-XIX)

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DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

ANGOLA, A ESCRAVIZAÇÃO
DOS HOMENS E O COMÉRCIO
NEGREIRO
(SÉCULOS XV - XIX )

“o direito de escravizar é aquele que


permite cometer todas as espécies de crimes “1

A denúncia da escravatura exprimida pelo Abade Raynal, na segunda me-


tade do século XVIII, simboliza um momento de viragem na história do mun-
do. Se Raynal procura sobretudo chamar a atenção da Europa que se quer civi-
lizada para a brutalidade do sistema de exploração dos escravos africanos nas
colónias das Américas, as suas palavras revelam também a longa duração das
práticas da escravatura das mais diferentes populações, na Europa e no mun-
do. Fenómeno universal, tão antigo quanto os textos nos permitem recuar, a
escravatura - nas suas mais diferentes formas - atingiu características particu-
larmente violentas com a invenção do comércio moderno de escravos negros
para o continente americano.

ANGOLA E A ESCRAVATURA AFRICANA:


QUADRO TEÓRICO GERAL

O início da expansão europeia, que podemos datar dos primeiros anos


do século XV, permite o inventário dos espaços mundiais e a criação de
uma visão do mundo completamente inédita. Passa-se da geografia de

1 RAYNAL, G. Th., Histoire philosophique et politique..... des Européens dans les deux Indes, 1ªed.1770), vol.III, Livro
XI, cap. XXIV, 3ª edição, 1781.

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Isabel Castro Henriques

Ptolomeu à geografia do Renascimento, que fornece os meios de com-


preender, enfim, a distribuição dos continentes, assim como as particula-
ridades dos homens.
A expansão europeia sempre se caracterizou por dois aspectos comple-
mentares: o reforço do conhecimento e a produção de riquezas. Esta parelha
revela-se fundamental, pois à medida que o conhecimento avança, aumenta o
apetite de riquezas, que por sua vez implica a modificação das relações com a
natureza e o recurso a trabalhadores autóctones ou importados.
A primeira grande fase da expansão centra-se em torno da ‘revolução eco-
lógica’, que veio reforçar o capitalismo nascente e o recrutamento dos ho-
mens. A circulação das plantas, como a cana do açúcar, a mandioca, o milho, a
bananeira, a pimenta, transforma a ecologia das regiões descobertas, mobiliza
capitais, permite lucros, exige força de trabalho abundante, barata e passiva.
Os escravos são por isso absolutamente indispensáveis.
São-no ainda mais quando a esta primeira forma de exploração, se acres-
centam outras actividades extractivas, como a mineração ou a captura de ani-
mais que fornecem âmbar, pérolas, marfim ou peles. Nestas condições, o co-
mércio negreiro não podia deixar de aumentar século após século. Não se trata
de mobilizar colonos, mas sim de criar escravos, sem vontade e sem direitos.
A organização da expansão, da colonização dos “novos mundos” e do capita-
lismo que as permite, as suscita e as reforça, não é possível sem a escravatura,
como compreendeu muito bem Frei Bartolomé de Las Casas, o encomende-
ro castelhano que, perante a rápida extinção da população índia, propôs, em
1514, que os Índios fossem substituídos pelos Africanos2.
Esta proposta encontrou um eco profundo, que durou séculos, autorizan-
do a organização do tráfico negreiro, que feriu todas as populações africanas,
primeiro na costa ocidental, depois na oriental. No caso angolano, estas ope-
rações começaram cedo, com escravos destinados à Europa, mas também à
ilha açucareira de São Tomé.

2 LAS CASAS, (1514), 1951, livro III, cap. 102 e 129.

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DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

O desenvolvimento de uma economia-mundo fez-se por isso apoiado na


modificação da ecologia, operação que não podia ser levada a cabo sem o
recrutamento maciço de trabalhadores. Quando os indígenas não eram sufi-
cientes ou recusavam a violência do trabalho foram substituídos por escravos
africanos. Uma máquina comercial europeia, gigantesca e lucrativa, permitiu
a transferência de milhares de Africanos para os espaços americanos, até aos
finais do século XIX.
Pode-se facilmente compreender a importância deste fenómeno históri-
co para a consolidação do capitalismo europeu; é fundamental sublinhar o
papel determinante que desempenhou na criação das sociedades americanas
e na transformação dos espaços africanos. Fenómeno dramático e polémico,
simultâneamente denunciado e silenciado pelas historiografias mundiais,
muitas vezes deturpado, o comércio de escravos africanos exige uma investi-
gação sistemática de todas as fontes disponíveis, uma reflexão profunda sobre
as noções e os conceitos utilizados, e o estudo rigoroso - caso a caso - de todas
as vertentes, africanas, europeias, asiáticas e americanas, que permitem com-
preender a sua criação, consolidação e persistência, no tempo e no espaço.
Tanto o escravo como a escravatura são, na história cultural do mundo,
termos bastante recentes, visto que o escravo (do latim medieval sclavus, pro-
vindo de slavus, eslavo) só aparece no século XVI.
Quer dizer, que a utilização dos dois termos se deve a uma operação bana-
lizadora que, em certo sentido, cria uma espécie de homogeneidade das prá-
ticas sociais, negando o próprio sentido da história. Trata-se todavia de uma
operação em que estão associadas as sociedades antigas - como o mostram os
estudos de Moses Finley e de Pierre Vidal-Naquet -, assim como as sociedades
africanas analisadas, entre outros, por Claude Meillassoux3.
Mesmo se os historiadores e os antropólogos procuram manipular esta si-
tuação com o cuidado indispensável, podemos verificar que a vasta soma de
conceitos que definem as posições de cada indivíduo na grelha social, é substi-

3 Ver a obra pioneira de Meillassoux consagrada ao estudo da escravatura africana, que marcou de forma exemplar a historiografia
mundial.

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Isabel Castro Henriques

tuída por dois conceitos rígidos que negam a própria flexibilidade da socieda-
de. A nossa leitura das sociedades antigas, tal como a das sociedades africanas,
estrutura-se hoje em função da importância e da generalização da escravatura.
Tais são, em primeiro lugar, as difíceis coordenadas que nos são impos-
tas por este trabalho: a necessidade de definir o campo científico em que se
inscreve, assim como as implicações sociais das acções de todos. Os efeitos
perversos da escravatura impõem um corte profundo entre o mundo anterior
a este sistema, e o mundo posterior, que é também o nosso.
Em segundo lugar, é necessário salientar as dificuldades resultantes de um
espaço de análise heterogéneo e complexo - Angola -, inexistente no tempo
histórico que é o deste trabalho.
A Angola actual é o resultado de uma longa operação histórica em que
participam Africanos de diferentes nações, mas também Portugueses e Bra-
sileiros. Até aos finais do século XIX, esse espaço define-se pela presença de
diferentes sociedades africanas, cujas fronteiras não coincidiam e/ou trans-
bordavam o espaço nacional angolano de hoje. Essas sociedades, que man-
tinham entre elas relações históricas complexas, de complementaridade e de
confronto, ocupavam posições de poder diferenciadas e hierarquizadas, num
espaço regional que se estendia do Atlântico à África Central. As formas de
interdependência no quadro regional condicionavam as relações económicas
e políticas, directas ou indirectas com os Portugueses, instalados desde os fi-
nais do século XVI no litoral atlântico, sobretudo nas regiões de Luanda e,
mais tarde, de Benguela.
Esta situação de heterogeneidade e de complexidade que caracteriza o es-
paço “angolano” anterior ao século XIX, implica escolhas no que respeita aos
exemplos a estudar, e exige uma grande prudência de maneira a evitar genera-
lizações abusivas e falsificadoras das diferentes realidades históricas africanas.
Uma terceira dificuldade resulta da natureza do estudo que pretendemos
elaborar: destinado a mostrar também as diferentes realidades da escravatura e
do tráfico de escravos, não podia deixar de privilegiar a imagem. Esta situação
impõe uma articulação entre essas realidades descritas e analisadas - em que os

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DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

actores são sobretudo Portugueses e Africanos - e a sua apresentação iconográ-


fica (desenhos, gravuras, pinturas - aguarela, óleo, guacho-, mais tarde, fotogra-
fia, etc. ). Ora, a iconografia portuguesa relativa à África em geral e a Angola,
em particular, revela-se muito reduzida até ao último quartel do século XIX.
Efectivamente, não parece ter havido muitos artistas portugueses trabalhan-
do nos diferentes espaços coloniais que Portugal procurava controlar. Podemos
comparar, no caso brasileiro, certamente muito revelador, a produção holandesa
com a portuguesa, no curto período da dominação holandesa em Angola.
Tanto em número como em qualidade, os Holandeses superam ampla-
mente os Portugueses, como se estes últimos tivessem sentido uma grande
dificuldade em integrar os trópicos, africanos ou americanos, na sua produ-
ção plástica. Sabemos que a representação plástica do outro foi sempre difícil,
como diz expressamente Jean de Léry ( 1578 ) no texto que consagrou aos
Tupinambá da região do Rio de Janeiro. Mas esta situação pode ser vencida
pelos outros Europeus. Jamais pelos Portugueses, o que explica que nos fal-
tem representações das cidades, das populações, dos portos, das embarcações,
dos navios negreiros, em particular, dos homens e mulheres envolvidos nestas
operações sempre dolorosas.
Por sua vez, as representações plásticas africanas também não nos permi-
tem dar conta destas situações, embora possamos admitir que muitas repre-
sentações desapareceram, seja devido ao material preferencial - a madeira -,
seja devido ao tipo de representação - figuras religiosas ou civis, caricaturas ou
retratos de Europeus.
O que explica que tenhamos sido obrigados a recorrer a produções plás-
ticas europeias, de maneira a permitir uma leitura do imaginário plástico que
a Europa consagrou às regiões angolanas, onde o reino do Congo, ou o de
Matamba, mobilizam a atenção dos artistas europeus, ou dos missionários ou
militares, como no caso notável do capuchinho italiano Cavazzi da Montecuc-
colo (1686 ).
É enfim conveniente e necessário salientar a natureza deste estudo desti-
nado a um público mais vasto, o que aconselha a redução do aparelho crítico,

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Isabel Castro Henriques

que o tornaria demasiado pesado. Pretende-se elaborar uma síntese destinada


a pôr em evidência os problemas que são hoje as preocupações fundamen-
tais da historiografia mundial consagrada a um tema que continua a suscitar
polémicas por vezes muito acesas. Por essas razões não é possível utilizar a
totalidade dos materiais consagrados ao caso angolano. Duas condições o im-
pedem: uma de carácter teórico, a outra de natureza prática.
A primeira diz respeito ao quadro conceptual do tráfico de escravos: trata-
-se de uma questão atlântica e globalizante, que não pode esquecer a participa-
ção do Índico e da costa oriental. Foi por isso necessário pôr em evidência os
dados históricos e as preocupações conceptuais que, sendo originadas muitas
vezes pelo caso angolano, são igualmente válidas para os demais espaços afri-
canos envolvidos no comércio negreiro. A segunda condição, que não podia
deixar de impôr limitações a esta obra, reside no facto de a investigação ango-
lana, levada a cabo pelos investigadores angolanos, se encontrar ainda numa
fase heurística, o que não permite formalizar uma síntese dos diferentes traba-
lhos já elaborados, sendo que a maioria está ainda em fase de pré-publicação.

A ESCRAVIZAÇÃO DOS AFRICANOS:


CONCEPÇÕES, PRÁTICAS, FUNÇÕES

O debate consagrado às relações entre as formas de dominação individual


e sobretudo à escravatura em África e a criação e alargamento do tráfico ne-
greiro, entre os finais do século XV e os primeiros cinquenta anos deste século,
não conseguiu até hoje definir claramente as responsabilidades de cada um dos
grupos envolvidos no processo. Embora se possa dizer que sem embarcações
e sem animais de tiro não teria sido possível criar e banalizar o tráfico negreiro.
A literatura ocidental tem multiplicado os documentos e as análises desti-
nados a provar que, feitas as contas, os Europeus não tinham inventado nem
a escravatura nem o comércio de escravos em África. A escravatura seria já,

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DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

muito antes do século XV, uma prática generalizada nas sociedades africanas,
onde o critério principal assenta no parentesco, que condiciona as formas de
exploração económica, mas procura analisar as condições em que as inter-
venções europeias, sobretudo portuguesas, no espaço angolano, conduziram
à passagem das diferentes formas da escravatura interna à escravatura imposta
do exterior.

A Escravatura em África

Origens e condições da escravatura

Comecemos por uma constatação: nenhuma língua africana conhecia, an-


tes da chegada dos Europeus, a palavra escravo e menos ainda escravatura. Se
bem que não possamos atribuir à língua os efeitos perversos desencadeados
nas sociedades africanas pelo tráfico negreiro, a verdade é que esta banaliza-
ção rejeitou as formas africanas, mais subtis e mais apropriadas. Hoje, estamos
perante a secura violenta da terminologia e a obrigação de a utilizar, para pôr
em evidência a maneira como as sociedades implicadas no processo foram
marcadas, em graus diferentes, por esta situação.
As formas de escravatura africanas eram bastante ténues e implicavam, a
prazo mais ou menos longo, a integração nas estruturas familiares. O paren-
tesco permitia tornar flexível o sistema e repelir as formas violentas de domi-
nação e de exclusão.
O simples facto de existirem mecanismos que permitiam a alguém - ho-
mem ou mulher - tornar-se voluntariamente escravo de outra pessoa, sublinha
a enorme flexibilidade do sistema, pois aquele que optava pela escravatura o
fazia para resolver um problema pessoal – fome ou dívida, por exemplo – re-
cuperando a liberdade, apoiado pelo proprietário, logo que as circunstâncias
se tornassem mais propícias. Da mesma maneira, em muitas sociedades africa-
nas, o escravo dispunha de formas legais, quer dizer socialmente aceites, para
mudar de proprietário, caso o desejasse.

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Isabel Castro Henriques

No espaço angolano, numa vasta região que abrange Cassanje, o Bié e


Luanda, podemos dar-nos conta, através dos documentos existentes, que os
homens e as mulheres escravos se inserem numa situação muito mais comple-
xa do que aquela que considera o escravo como coisa ou bem de alguém. Não
só estes escravos angolanos podem pôr em acção estratégias pessoais, aceites
pelas regras da sociedade, mas as suas condições, categorias e funções não são
de maneira nenhuma homogéneas.
Segundo as informações esparsas de que dispomos, algumas das condições
que permitem a escravatura dos homens são: a hereditariedade, a dívida, a
compra e a venda, a guerra e a ‘feitiçaria’.
A hereditariedade: Nestas sociedades matrilineares, os filhos de pais es-
cravos ou simplesmente de mãe escrava nascem escravos, o que subentende a
existência de casamentos entre escravos/as e homens/mulheres livres. Ques-
tão complexa cuja explicação passa pelo conhecimento das regras de parentes-
co existentes nesta sociedade.
A dívida: A situação de escravatura por dívida é sempre provisória, apesar
de se poder tornar definitiva, no caso de o débito não ser satisfeito. Esta dívi-
da pode resultar do não pagamento de bens recebidos, ou da não satisfação
de indemnizações, ou de multas, provocadas por infracções cometidas, entre
as quais contam as práticas que os Europeus denominam de adultério. Nas
sociedades matrilineares, que dominam esta região, o indivíduo reduzido à
escravatura raras vezes é o devedor, substituído por um sobrinho ou sobrinha
maternos (filhos das irmãs ), que este requisita para o efeito.
A compra/venda: Um homem, uma mulher, uma criança podem ser vendi-
dos - por exemplo, em períodos de fome ou trocados por mercadorias, como
o sal - por um parente a quem o estatuto de parentesco dá esse direito, tornan-
do-se escravos daqueles que os compram. Podem ser revendidos e sujeitos a
castigos corporais. Mas no caso de agressões violentas ou morte pelo proprie-
tário, este deve pagar ao soba (chefe político) uma importância em mercado-
rias. Este mecanismo permite que as situações de violência sejam muito raras.
A guerra é uma das situações mais favoráveis para assegurar a “produção”

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DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

de escravos. A captura faz-se no campo de batalha, entre os adversários, as-


sim como na sequência de ataques inesperados que desencadeiam combates
sangrentos. Os vencidos tornam-se escravos, arrastando consigo as suas linha-
gens, tornando-se todos património vitalício dos vencedores/proprietários.
A “feitiçaria” é, segundo o húngaro Magyar, que descreveu com pormenor
a escravatura africana, no centro de Angola, no século XIX, outra situação que
reduz um homem ou uma mulher à escravatura. Acusadas pela sociedade de
práticas e de poderes nefastos, estas pessoas e as suas famílias são escravizadas,
quando não são condenadas à morte. É o único caso em que o escravo se torna
um dependente não desejável, a sociedade vende-o para bem longe, geralmen-
te para o tráfico negreiro europeu. Isto permite-nos pôr em evidência a im-
portância do facto religioso, que obriga a sociedade a separar-se rapidamente
destes escravos “malditos”, sem por isso renunciar ao seu valor comercial.
Estas diferentes origens da escravatura permitem-nos sublinhar a comple-
xidade do problema, ao mesmo tempo que dão conta da importância do es-
cravo africano na organização da sociedade. Não só a redução à escravatura
implica maneiras de fazer aparecer o parentesco e os seus laços particulares,
mas a existência de regras de protecção ao escravo e as diferentes categorias de
escravos, portadoras de designações precisas, preenchem funções particulares
na manutenção da coesão social e do equilíbrio económico da sociedade.

Funções do escravo nas sociedades africanas

Integrado no espaço doméstico, sendo tratado não como um dominado


sem direitos, mas como membro do grupo, dispondo de mecanismos de pro-
tecção, o escravo africano não era repelido pela sociedade, nem sentido como
uma ameaça. Pelo contrário, tratando-se de sociedades onde o poder, o prestí-
gio e a riqueza dos homens se media através do número de dependentes e, em
particular, do número de escravos, estes deviam e podiam integrar-se nas prá-
ticas sociais normais, podendo exercer as suas competências. São muitos os ar-
tesãos reduzidos à escravatura, que não renunciam contudo às suas actividades

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Isabel Castro Henriques

normais, as quais são quase sempre uma ajuda para a recuperação da liberdade.
Tratando-se de homens dependentes de outrém, a sua participação no sistema
produtivo contribui para reforçar o poder económico do proprietário.
Deve, por isso, sublinhar-se a função económica do escravo na socieda-
de em que está integrado. Se por um lado, o escravo constitui o símbolo da
riqueza do proprietário, por outro, ele contribui para a realização das tarefas
da produção, quer se trate da agricultura familiar, quer da produção artesanal.
Produção agrícola e produção artesanal constituem os pilares do desenvolvi-
mento das actividades comerciais, que dominam o espaço económico ango-
lano. A função comercial do escravo não se limita à sua possível condição de
mercadoria. Desempenhando frequentemente as funções de comerciante ao
serviço do seu proprietário, o escravo é igualmente utilizado como carregador
- função igualmente desempenhada por homens livres - nas imensas caravanas
do comércio africano, que, antes e depois da chegada dos Europeus, atravessa-
vam o centro-sul do continente, do Atlântico ao Índico.
Não se trata, por isso, de uma situação fechada e caracterizada pela desquali-
ficação profissional. É certo que, na maior parte dos casos, a situação de escravo
impede que sejam levadas a cabo certas operações, mas trata-se quase sempre
de impedimentos temporários, que a sociedade procura eliminar, para evitar
que os escravos se transformem num corpo autónomo, capaz de perturbar as
regras sociais. Não há, que se saiba, nenhuma revolta levada a cabo pelos escra-
vos africanos anterior ao século XV: a flexibilidade do sistema não o permitia.
Também o desempenho de funções políticas é possível no quadro da es-
cravatura. Em não poucos casos, os escravos podem alcançar o poder político
e em mais de uma história político-familiar se refere que a família exercendo
o poder descende de um antigo escravo. Mesmo que esta origem seja simples-
mente mítica, ela revela a vontade de integrar o escravo na estrutura hierárqui-
ca da sociedade.
Uma das situações conhecidas nesta região de que nos ocupamos é a da
utilização do escravo pelos chefes lundas, para assegurar a consolidação e a ho-
mogeneização do maior império da África central até aos finais do século XIX.

26
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

Os imperadores lundas ou os seus representantes confiavam a gestão de regiões


económica e politicamente importantes, geralmente distantes da Musumba, a
capital do Império, a escravos, nomeados chefes políticos, com todos os privi-
légios e as honras devidas à função. É o caso do reino de Cazembe - dependente
dos Lundas e rico em sal - que, nos finais do século XVIII, é confiado a um
escravo do imperador lunda como relata o pumbeiro angolano Pedro João Bap-
tista - escravo de um comerciante português, comandante da feira de Casan-
je -, nos princípios do século XIX. O carácter controlável do escravo pelo seu
proprietário e sobretudo, o facto de, sendo um homem sem família, não estar
sujeito às obrigações e às responsabilidades impostas pelo parentesco, permi-
tiam o controle dos espaços, o reforço do poder central e a coesão do império.
Esta caracterização da escravatura africana permite-nos afirmar de forma
mais peremptória que a escravatura moderna, em que o homem perde as suas
qualidades humanas para se transformar em ‘pura mercadoria’, é uma inven-
ção decorrente da intervenção violenta dos Árabes e dos Europeus. Os Afri-
canos cativos ou escravos ficavam no continente, integrados em sociedades
africanas que dependiam de valores homólogos. Tal não era o caso a partir
do momento em que a escravatura e o comércio de escravos praticados pelos
Europeus modificaram as relações humanas e inter-continentais.
Com efeito, os escravos exportados perdiam a relação com o continente,
tal como perdiam a relação confortável com os valores sociais conhecidos:
as estruturas do parentesco, elemento essencial do sistema africano, eram
recusadas pela escravatura europeia, da maneira mais cruel, como lembra o
documento de Gomes Eanes de Zurara, que descreve a primeira partilha de
escravos realizada em território português - em Lagos -, em Agosto de 14444.
A grande modificação que representa, em África, o desenvolvimento de
um comércio exterior de escravos, é o resultado da dupla intervenção dos es-
clavagistas, que são autorizados a fazê-lo pela estrutura das religiões teocên-
tricas. Pode dizer-se que nas religiões dos espíritos, dominantes em África, a

4 ZURARA,(1453), 1973, caps. 25 e 26, pp. 121-128.

27
Isabel Castro Henriques

própria estrutura religiosa exclui a escravatura permanente, a não ser nas si-
tuações castadas que, na quase totalidade dos casos, caracterizam sobretudo
as regiões onde se verifica uma forte presença islâmica. São por consequência
os defensores de uma certa ideia da religião, que são também os defensores de
uma certa ideia do capitalismo, que põem em movimento a máquina terrível
da escravatura e do tráfico negreiro.
O escravo-mercadoria é, por essa via, violentamente separado das sociedades
africanas. O seu valor não se mede em termos humanos, mas numa relação com
as mercadorias preferenciais, oferecidas pelos traficantes e procuradas pelas so-
ciedades africanas. A banalização do escravo-mercadoria, que serve sobretudo
as normas da economia-mundo inventadas pelo capitalismo originariamente
mediterrânico, altera de maneira radical as relações internas das sociedades afri-
canas. A relação mais flexível é substituída pela violência que caracteriza as rela-
ções com quantos podem ser qualificados como mercadoria potencial.
A eficácia do sistema árabe-europeu pode ser medida pela aceitação da
prática da produção de escravos. Se alguns Europeus, e muitos mestiços, não
hesitam em promover expedições destinadas a “produzir” escravos, deve di-
zer-se que a maior parte desta “mercadoria” é produzida pelas sociedades afri-
canas, que suscitam os intermediários que as transportam até aos lugares onde
se processa a sua comercialização, não hesitando em levá-los até à costa, onde
os termos de troca são mais favoráveis. A banalização desta relação comercial
opera-se em detrimento da coesão africana, permitindo por isso mesmo o au-
mento das formas hegemónicas europeias, em detrimento dos valores intrín-
secos das sociedades africanas.

2- Portugal e os primeiros escravos Africanos ( XV-XVI )

A utilização e a visão dos Africanos no espaço português

As operações de reconhecimento da costa ocidental africana caracteriza-


ram-se pela banalização da razia dos homens e das coisas. Portugueses, Es-

28
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

panhóis e outros Europeus, aceitavam a banalização e a necessidade da es-


cravatura, tal como a Europa a vivera, tanto na prática como nas explicações
teóricas e morais.
Os escravos provindos da Europa de leste, que tinham permitido a criação
da própria palavra, iam sendo pouco a pouco substituídos pelos escravos cap-
turados a sul, e transferidos para a Europa em condições que continuamos a
desconhecer.
A crueza destas operações foi descrita muito cedo, já no século XV, por
comerciantes como Alvise da Ca da Mosto. Todavia, o reconhecimento da
violência destas operações de captura e de domesticação, não pôs termo a es-
tas práticas, que se foram agravando à medida que se registava a necessidade
de homens para assegurar o povoamento das terras, e sobretudo das ilhas en-
contradas despovoadas.
A Europa age, nesse período, sem o menor sentimento de culpa: o escra-
vo pode, por via do trabalho violento, purgar pecados e crimes. Escrevendo
a propósito da organização das tarefas na Utopia, Thomas More procede ao
inventário das diferentes formas de escravidão, entre as quais aparecem os es-
cravos provindos do exterior: “a servidão atinge particularmente os cidadãos
culpados de grandes crimes, e os condenados à morte que pertencem ao es-
trangeiro. Esta última espécie de escravos é deveras numerosa em Utopia; os
Utopianos vão eles próprios procurá-los ao exterior, onde os compram por
quase nada, e algumas vezes obtêm-nos de graça”5.
Havia por consequência, neste período histórico das culturas europeias,
uma justificação moral, que convenceu os Europeus que não só a escravatura
não era condenável, mas que havia explicações funcionais eficazes para conti-
nuar a sua prática.
São de resto numerosos os textos em que os defensores da escravatura nos
explicam que os Europeus agiram para reduzir a violência que impedia sobre
os escravos, poupando-os à morte violenta a que estavam destinados.

5 MORE, (1516), 1976.

29
Isabel Castro Henriques

Os escravos capturados ou comprados em África são, em primeiro lugar,


destinados ao consumo europeu. Algumas cidades europeias, como Lisboa
e Sevilha estão, já no século XVI, inçadas de habitantes “exóticos”, africanos,
índios, mestiços, como lembra entre outros a peça que Gil Vicente consagrou
a uma tal Maria Parda, sendo pardo o termo extraído do mundo animal para
designar os mestiços e os índios americanos.
O apetite europeu de escravos parece deveras significativo, pois, diz Clenar-
do em 1535 6, haveria em Lisboa mais escravos do que “Portugueses livres de
condição”. E se bem que nos pareça, no estado actual da investigação, que o la-
tinista excedeu-se, arrastado pela singularidade da situação, podemos em todo
o caso dar-nos conta da rápida integração dos Africanos, “negros e mouros ca-
tivos”, nas práticas sociais portuguesas, como mostram algumas representações
plásticas da época. “Dificilmente se encontrará uma casa onde não haja pelo
menos uma escrava destas. É ela que vai ao mercado comprar as coisas necessá-
rias, que lava a roupa, varre a casa, acarreta a água e faz os despejos à hora con-
veniente: numa palavra, é uma escrava não se distinguido de uma besta de carga
senão na figura. Os mais ricos têm escravos de ambos os sexos e há indivíduos
que fazem bons lucros com a venda dos filhos dos escravos, nascidos em casa”7.
O juízo sobre os Africanos é anterior à sua banalização e apoia-se em pre-
conceitos somáticos, alguns dos quais, como a denúncia dos narizes achata-
dos, se encontra já na Bíblia. O Outro africano não chega a ser visto com auto-
nomia, na medida em que os caracteres somáticos enselvajantes, o deslocam
imediatamente para uma zona exterior à espécie humana.
Não será possível apreciar a constituição da figura do Africano preto, na-
turalmente escravo, senão a partir dos elementos que permitem ou antes exi-
gem o preconceito. Se não havia ainda na Europa, pelo menos até ao século
XV, uma grelha de apreciação firme, esta é elaborada pelos autores portugue-
ses, à medida que os Africanos são desembarcados em Portugal, vítimas das
operações de razia.

6 CLENARDO, (1535), publicado por CEREJEIRA, 1974.


7 Id., ibid., p.

30
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

Encontramos assim duas séries de textos, reforçados ou completados por


uma operação plástica. No primeiro caso, Gomes Eanes de Zurara elabora a
primeira grelha que se estrutura em função do modelo civilizado, quer dizer
o branco. Na costa ocidental africana encontram-se assim cativos de “razoada
brancura” que podem ser comparados aos Europeus, embora não se possam
confundir com eles. Os dois graus de brancura ainda não desapareceram, pois
distinguem os Europeus dos Magrebinos, entre outros, exactamente como se
verifica no texto fundador de Zurara8.
O segundo grupo é constituído por cativos que não podem ser confun-
didos com os brancos: em primeiro lugar os pardos, e depois, em último
lugar, os pretos. Verifica-se que os Portugueses, arrastados pela necessidade
de bem classificar, não hesitam em criar categorias novas, como os pardos,
que estão simultaneamente longe dos brancos e dos pretos. Todavia, e para-
doxalmente, os pardos estão mais perto dos pretos do que jamais o estarão
dos brancos.
Trata-se de uma operação classificatória essencial, inclusivamente do pon-
to de vista etimológico, pois que, afastadas as propostas etimológicas fantasis-
tas, se verifica que a côr parda remete para a pele das éguas. O novo Outro é as-
sim radicalmente animalizado, operação que precede de pouco a criação dos
mulatos, que também são arrancados ao catálogo vasto das muares. A primeira
fase desta organização somática, sublinha a distância que separa os brancos
dos quase brancos, assim como estes estão separados de pessoas que podiam
ser confundidas com eles.
A base desta grelha assenta nos pretos, que o texto de Zurara exclui dos
valores e das formas das espécies humanas. Essas “coisas” não podem ser
integradas na espécie humana, visto apresentarem formas de parentesco com
as figuras diabólicas, não pertencendo nem ao céu, nem à terra, mas sim ao
ctónico, ao subterrâneo, onde habitam desde sempre as forças diabólicas. A
nudez seria, na lógica dos Portugueses, a prova complementar mas suficiente

8 ZURARA,(1453), 1973, cap. 25, p. 122.

31
Isabel Castro Henriques

deste caracter diabólico, pois Deus marcou com pelos aquelas partes que o
homem deve cobrir.
Deve contudo notar-se que estes Africanos, estes pretos, não são antropó-
fagos. Não se regista a menor referência a este comportamento infraccional,
tal como são perfeitamente integráveis na vida normal dos Europeus. É Go-
mes Eanes de Zurara que nos diz que alguns destes escravos chegados a Portu-
gal se cristianizaram, tendo casado e tido descendência. Com quem casaram?
O texto é omisso, mas nada haveria de escandaloso se o casamento fosse com
Europeus, tanto mais que uma parte destes Africanos foram rapidamente in-
tegrados na vida doméstica portuguesa, não suscitando o menor escândalo, a
não ser pelo gosto pronunciado pelo vinho.
Os problemas particulares são simples: os Africanos manifestam uma cer-
ta dificuldade em dominar a língua portuguesa, mas, em contra-partida inte-
gram-se perfeitamente no plano musical, nanjá com instrumentos e ritmos
africanos, mas tocando música sacra, recorrendo a instrumentos europeus.
Também se revelam perfeitamente adaptados às actividades domésticas,
como mostram os documentos plásticos, assim como algumas peças de auto-
res clássicos portugueses, como é o caso de Gil Vicente, de António Ribeiro
Chiado e de Anrique de Mota.
Em qualquer destes autores se regista uma profunda integração dos escravos
africanos nas práticas culturais. Verificam-se até, certos juízos contraditórios. Gil
Vicente, em Frágua de amor, sublinha a impossibilidade africana de se adaptar à
sintaxe e à fonética portuguesas, embora não se verifique um desfasamento se-
mântico9. Ou seja, se o sentido da língua é bem entendido, tal não quer dizer que
a fonética seja escorreita, e durante séculos a tradição portuguesa porá sempre
em evidência as dificuldades africanas perante os rr, constantemente adoçados
em ll. A contradição aparece contudo nas informações provindas da correspon-
dência de Clenardo, a quem ofereceram dois escravos durante a sua estadia em
Lisboa, e que lhes ensinou latim para poder entender-se com eles10.

9 Gil VICENTE, Frágua de Amor, peça de teatro apresentada em Évora em 1524.


10 CLENARDO, in CEREJEIRA, 1974.

32
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

Trata-se de uma grelha de leitura que depende da tradição europeia, como


não podia deixar de ser, mas revista em função dos cativos que entretanto,
provindos da costa ocidental, iam desembarcando ora em Lagos, ora em Lis-
boa. Naturalmente esta grelha serviu também para ler os Africanos em África.
O que é que os distingue? Em primeiro lugar o habitat, pois se bem que em
Lisboa as chamadas casas pardas fossem cobertas de palha, a verdade é que
as cubatas, essas casas “palhaças”, provocam uma reflexão negativa sobre os
espaços urbanos africanos.
Alinham depois alguns defeitos essenciais, entre os quais os físicos, onde
avultam a circuncisão, as tatuagens e as escarificações, assim como as mar-
cas físicas já evocadas: o nariz evidentemente, assim como os cabelos que os
Portugueses, como os demais Europeus, consideram ser antes uma espécie
de lã. No plano mais estritamente mais estritamente social, os Europeus co-
mentam as faltas de regras da sexualidade, devido à ausência do adultério (o
que rompia não só com a tradição católica, mas sobretudo com as regras que
provinham da Grécia e foram afinadas pelos Romanos), assim como a prática
corrente, sobretudo por parte dos chefes políticos, da poligamia. Enfim, úl-
timo traço terrivelmente negativo, os Africanos não tinham nem horas para
comer nem maneiras de estar à mesa, e esta desordem das maneiras de mesa
não podia deixar de confirmar a desordem da produção.
Tal é a violência desta negatividade, que expulsa os Africanos de qualquer
lógica civilizacional, que os impede de pertencer inteiramente à espécie huma-
na. O primeiro grande paradoxo, que abre já caminho à banalização da escra-
vatura torna-se transparente: se os Africanos feitos cativos em África, podem
inserir-se sem sobressaltos na vida cultural e social portuguesa, semelhante
situação prova a eficácia da captura e da escravatura, pois, como salienta, Zu-
rara, a quase totalidade destes escravos foi catequizada, tendo-se inserido sem
dificuldades de maior nas práticas religiosas portuguesas11.

11 ZURARA, (1453), 1973, o.c., p.124.

33
Isabel Castro Henriques

Não parece possível considerar o eixo religioso como uma simples máscara
do projecto económico. Parece mais útil e mais eficaz pensar que - e já muito
antes das análises de Calvino - a religião cristã não pode ser separada da lógica
económica. Catequizar é por isso uma tarefa essencial, não só para expulsar
os “ídolos” em que acreditam os Africanos - frequentemente destruídos em
autos de fé, seja no Congo, seja na Senegâmbia -, mas sobretudo para agir de
tal maneira que a religião seja o motor fundamental das regras económicas.

Das operações de razia às operações comerciais

As operações de reconhecimento da costa ocidental africana, já integradas


no projecto da descoberta pelos Portugueses do caminho marítimo para a Ín-
dia, são precedidas pelas operações de guerra do corso, que banalizam a razia
e a pilhagem. Trata-se de operações de carácter industrial, que exigem fortes
investimentos de capital.
Também são exigidos capitais para levar a cabo as operações de reconhe-
cimento da costa africana: os navios à vela eram, nesse momento da história
das técnicas europeias, os instrumentos mais sofisticados e por conseguinte
os mais caros, exigindo a participação de um número considerável de espe-
cialistas.
As tripulações também custavam caro, além de serem difíceis de recrutar,
pois que o mar era, como mostrou Jean Delumeau, o elemento que desenca-
deava o medo em todo o Ocidente. Não admira por isso que as tripulações
fossem recrutadas pela violência, e esta maneira de o fazer durou até aos finais
do século XIX.
Os Africanos não tinham, na costa ocidental, conhecimentos que lhes per-
mitissem a navegação a grande distância, pelo que, sublinham todos os textos,
foi considerável a surpresa quando viram chegar do mar as embarcações euro-
peias, que não recorriam aos remos, mas utilizavam sobretudo o vento.
Tendo encontrado homens e mulheres desgarrados, os Europeus captu-
raram-nos, e estas primeiras capturas institucionalizaram-se rapidamente,

34
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

dando origem às operações de razia, que permitiram aprisionar centenas de


homens que não esperavam ser atacados pelo mar e não estavam preparados
para resistir.
A resistência não tardou a organizar-se e os Europeus caíram, vítimas das
técnicas de combate e do recurso às técnicas da guerra de guerrilha ou então
das famosas flechas envenenadas, que tanto os intimidaram. A morte em com-
bate dos primeiros Europeus obriga a uma reflexão que, por sua vez, arrasta
consigo a necessidade da mudança.
Estas medidas são resultado da intervenção do Infante D. Henrique que
impôs a renuncia à razia, substituída por relações comerciais normais. Tal não
quer dizer que os Europeus tenham jamais renunciado à razia, técnica que
sobreviveu pelo menos até ao século XIX, mas sim que a maior parte das ope-
rações é transferida para o foro comercial.
Trata-se, num caso como no outro, de assegurar a “produção” de escravos,
que se revelam cada vez mais indispensáveis, à medida que se regista a integra-
ção dos escravos africanos nas práticas sociais europeias, situação reforçada
pelas condições de exploração e de povoamento dos arquipélagos atlânticos,
como a Madeira, os Açores, as Canárias, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe.
Nesta primeira fase os escravos são muitas vezes uma curiosidade, mas
depressa são eles integrados nas actividades domésticas ou produtoras euro-
peias, sendo a única força de trabalho de que dispõem os colonos e os capi-
talistas europeus nos arquipélagos de Cabo Verde e de São Tomé e Príncipe.
O reforço do comércio de escravos verifica-se quando após 1492 e 1500,
os Europeus, e mais particularmente os Espanhóis e os Portugueses, decidem
explorar o novo continente. A demografia dos dois países, assim como a si-
tuação europeia, não permite recrutar a força de trabalho suficientemente nu-
merosa para assegurar a exploração da natureza, seja nas plantações, seja na
recolecção, seja nas minas.
Nessas condições os Europeus tentam mobilizar os Índios, que se revelam
pouco rendíveis, sendo que as situações de conflito levam os Europeus à liqui-
dação maciça destas populações. Foi perante esta situação que o Frei Bartolo-

35
Isabel Castro Henriques

mé de Las Casas sugeriu a substituição dos Índios pelos Africanos, sugestão


universalmente aceite pelos Europeus12.
O tráfico negreiro estava por isso implícito nas condições existenciais da
América: necessidade de obter rendimentos que tornam atraente a operação,
ausência das especiarias esperadas, invenção de formas de exploração particu-
lares, sendo as primeiras do tipo recolector, com o pau-brasil como produto
principal, mas havendo já projectos de implantação da cana de açúcar.
Dada a maneira como os Europeus julgavam os Africanos, o tráfico negrei-
ro e a escravatura foram encarados como soluções naturalmente integradas nos
valores culturais praticados pelas nações civilizadoras. Esta situação permitiu
a boa consciência dos negreiros, dos escravocratas e das populações.
A normalização comercial das relações com a costa ocidental, foi substituí-
da pelo comércio, que aumentou de maneira considerável à medida que pros-
seguia a exploração do continente americano. Situação agravada pela maneira
como foram utilizadas estas forças, em condições precárias ou violentas, que
reduziram a esperança de vida dos escravos, como já acontecera em Roma.
Para que o comércio prosseguisse, foi indispensável aumentar o número de
embarcações, o que implicou a mobilização de uma massa crescente de capi-
tais, que deviam ser rendíveis.
A regularização das condições de transporte intervém neste quadro geral,
não por razões humanistas, mas levando em conta a necessidade de reduzir as
mortes, que por sua vez amputavam as taxas de rendimento. Os Portugueses
começam a elaborar a sua legislação bastante cedo, pois o primeiro regula-
mento consagrado a esta questão, data de 8 de Fevereiro de 1519, redigido
pela burocracia da Corte de D. Manuel I.
As recomendações centram-se em torno de alguns problemas essenciais,
o primeiro dos quais é a qualidade da tripulação, sobretudo os pilotos e os
mestres. Não é todavia indiferente a qualidade dos marinheiros e grumetes.
Compreende-se que assim seja, pois estes homens devem assegurar o equilí-

12 LAS CASAS, (1514), 1951, livro III, caps. 102 e 129.

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DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

brio interno de embarcações carregadas com 300 a 500 escravos, que devem
ser alimentados, e mantidos em paz. A função policial que cabe aos diferentes
membros da população, impõe condições de recrutamento singulares, não
sendo de admirar que se registe a presença de tantos sádicos.
Estes marinheiros são pagos em cabeças (escravos), de acordo com uma ta-
bela decrescente, que reflecte a hierarquia socio-profissional existente a bordo
destas embarcações. Todavia, o que mais importa é constatar que o tráfico ne-
greiro envolve tudo e todas as coisas. Não se trata de uma actividade normal,
pois não se transportam animais, qualquer que seja a tentativa de animalizar
estes escravos. São seres que pensam, que chegam a bordo com a sua história
e as suas memórias. É em nome da sua experiência que procuram agir, esbar-
rando contra a violência das condições de captura e de transporte.
Quando desembarcarem, terão de fazer face às condições em que serão
vendidos, assim como à novidade da natureza, das relações sociais, e das con-
dições de trabalho. Falaremos mais adiante desta última estação da criação do
perfeito escravo, que corta os homens das suas origens, tal como lhes anula
esperanças e expectativas.
As condições dos barcos negreiros devem ser modificadas, como diz este
regulamento que intima os armadores a mudar as pontes que “devem ser soa-
lhadas de pau branco que lá têm (em África, como é evidente) para virem os
escravos bem guardados do frio e da chuva e suas camas feitas do dito tabuado
debaixo da coberta”. Delicada atenção da burocracia negreira! Simplesmente
estes cuidados não são destinados às pessoas, sendo apenas indispensáveis à
salvaguarda dos homens-mercadorias que devem irrigar o mecanismo da pro-
dução das Américas.
Estamos perante as exigências da racionalização, a qual tem sobretudo a
ver com custos, embora não possamos separá-la da necessidade por vezes pre-
mente de força de trabalho, uma vez que as agriculturas industriais criadas
pelo capitalismo, são enormes consumidoras da energia humana. Esta instru-
mentalização dos homens obrigou à criação de categorias, de modo a dispôr
de uma grelha permitindo classificar, dando imediatamente um valor e uma

37
Isabel Castro Henriques

função. Os adultos, os adolescentes e as crianças são por essa razão defini-


dos de maneira tão precisa quanto possível. António Carreira fornece-nos as
indicações necessárias a compreensão das diferentes categorias de escravos
criados pelos Portugueses13:

“Adultos: Cabeça; peça; peça-da-Índia; marfim ou ébano da Guiné; escra-


vo ou negro lotado; escravo ou negro com ponta de barba; escravo ou negro
boçal; escravo ou negro ladino; escravo de grilhão; escravo mulato; escravo
fujão; escravo mascavo ou mascavado.
Adolescentes: Moleque ou moleca; moleque ou moleca lotado; molecão ou
molecona; molecona de peito atacado ( a que tivesse os seios bem formados);
mocetão ou mocetona.
Crianças: Minino; cria de peito ( a que mama ); cria de pé ( a que anda ).
Peça-de-Índia definia o escravo jovem, alto, robusto e sem defeitos físicos.
Em época adiantada do tráfico, usou-se a bitola de 1,75 m de estatura para
designar a peça-de-Índia.
Escravo ou moleque lotado era aquele que, pela sua compleição física, podia
fazer parte de um lote para efeito de venda.
Escravo barbado ou com ponta de barba correspondia ao adolescente com
barba bem formada. Era já homem.
Escravo boçal era todo aquele que não se soubesse expressar em crioulo
ou português, e não tivesse ainda sido submetido à catequese e baptismo; ou
ainda o que tivesse dificuldade em aprender a rezar e a falar crioulo.
Escravo ladino era o escravo esperto que se fazia compreender facilmente
em crioulo ou português, ou que tivesse alguma profissão ou ofício (carpin-
teiro, pedreiro, ferreiro, cozinheiro, doceiro, trapicheiro, alambiqueiro, tecelão
e outros).
Escravo de grilhão era todo aquele que tivesse sido alguma vez castigado
com a pena de prisão com grilhão nos pés.

13 CARREIRA, 1983, pp. 84-85.

38
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

Escravo mulato correspondia ao produto de mestiçagem de sangue entre


homem branco e mulher preta ou mesmo de pais mestiços.
Escravo fujão era aquele que tivesse propensão para fugir ao trabalho ou à
tutela do seu senhor, ou o tivesse feito uma ou mais vezes e depois recapturado.
Escravo mascavado era aquele que possuísse aleijão ou deformidade física,
permanente ou temporária, de nascença ou acidental. Por vezes também se
designava mascavado o portador de úlcera ou de doença de pele do tipo tro-
pical.”
Esta operação não se destina a classificar homens, pois tem em vista a ob-
jectualização dos escravos, assim transformados em coisas. A estas categori-
zações estão ligados os preços, como não podia deixar de ser, assim como as
funções a exercer nas diferentes actividades destinadas aos escravos. Por outro
lado, fornece indicações aos transportadores, não só no que se refere ao espa-
ço a ocupar, mas também nos cálculos que envolvem água e alimentos.
Um dos elementos que mais serviu para justificar as operações de captura e
comercialização dos Africanos, foi certamente a antropofagia. Não encontra-
mos a menor referência a estas práticas nos primeiros documentos portugue-
ses e não há exemplo de uma referência a práticas antropofágicas em Portugal,
mau grado a grande quantidade de escravos africanos que se registava no país.
Também se não encontram referências a esta prática seja em Cabo Verde, seja
em São Tomé e Príncipe.
Ou seja, os primeiros Africanos, livres ou escravos, que emergem nos do-
cumentos portugueses, não manifestam a menor tradição antropofágica. É de
recear que esta “qualidade”, tenha sido descoberta após os textos espanhóis
que denunciam as práticas dos Caribes, depois reforçadas pelos dos Índios do
Brasil e mais particularmente dos Tupinambás. É evidente que a antropofagia
aparecia então, como ainda hoje, como o elemento mais violento da falta de
civilização de qualquer grupo. O carácter selvagem dos Africanos fica assim
reforçado14.

14 Sobre a questão da antropofagia africana fabricada pelos Europeus, ver HENRIQUES, Isabel Castro, (1999), 2004, pp. 225-246.

39
Isabel Castro Henriques

No texto elaborado por Duarte Lopez e Filippo Pigafetta, regista-se a pre-


sença de uma gravura que nos dá a ver a carne humana oferecida num açougue
de carne humana que, na descrição de Filippo Pigafetta existiria na cidade ca-
pital15. Nenhum outro viajante conseguiu ver estes talhos mas estes serviram
para reforçar a opinião corrente que os Africanos eram antropófagos. Cavazzi
da Montecuccolo reforçou esta maneira de ver, ao descrever as práticas antro-
pofágicas utilizadas pelos Jagas, que comiam todas as crianças que nasciam no
espaço urbano do quilombo. Os nascimentos só podiam realizar-se em plena
floresta, e por isso as mães eram castigadas sempre que, esquecendo esta regra,
davam à luz em pleno quilombo16. O substantivo quilombo ( kilombo ), cuja ori-
gem provavelmente angolana – em língua kimbundo - está ainda por estudar,
foi banalizado essencialmente por Cavazzi, no século XVII. O termo apresen-
ta nas regiões do centro e norte de Angola, diferentes conteúdos:
1- Sociedade de iniciação de origem ovibundo, destinada a concentrar
guerreiros.
2- Sede de chefe imbangala; concentração de casas.
3- Cidade - capital do reino de Kasanje onde está instalado o Jaga ( o chefe
político dos Imbangalas ) assim como os homens e as instituições que gerem
a nação imbangala.
4- Acampamento das caravanas comerciais.
5- Acampamento militar.
No Brasil, o termo serviu e serve para designar as instalações criadas no
interior de difícil acesso pelos Africanos - sobretudo escravos - fugidos ao con-
trole dos Portugueses.
Não deixa de ser curioso verificar que os testemunhos mais taxativos pro-
venham de testemunhas italianas, pois Pigafetta organizou como quis as de-
clarações que lhe ia fornecendo o embaixador do Congo. Deve por isso re-
cear-se estarmos perante um dos mitos mais enselvejadores dos Africanos que
ainda hoje encontra ecos. No caso português, basta consultar a obra de Hen-

15 PIGAFETTA E LOPEZ, (1591), 1951, p. 43.


16 CAVAZZI, (1680), 1965, vol.I, p. 178.

40
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

rique Galvão, Antropófagos (1947), para encontrar a confirmação das velhas


informações que fazem da antropofagia uma prática comum, a que não escapa
nenhum grupo social africano.
O facto de esta “qualidade” atribuída aos Africanos só se ter verificado
depois de se ter banalizado o canibalismo dos Índios do centro e do sul da
América, não pode deixar de ser considerado, pois sublinha a existência de
uma estratégia dos Europeus para os autorizar a “civilizar” os Africanos, com-
prando-os, raptando-os, impondo-lhes a mudança de continente, retirando-
-lhes não só a liberdade, mas qualquer esperança de vida digna.
Esta situação contrasta com as práticas culturais: ninguém, na Europa, re-
ceia qualquer surto de antropofagia praticada pelos escravos africanos, que
em alguns países - como é o caso de Portugal - ainda chegaram ao século XIX.
Também se não receiam as manifestações antropofágicas nos países impor-
tadores e particularmente nas Américas: não há, de resto, nenhuma prática
antropofágica que tenha vindo confirmar a denúncia que pesava sobre os Afri-
canos no seu continente. É certo que Hegel, que os integra simplesmente na
natureza, não lhes atribui a menor prática antropofágica, embora saliente o
facto de eles não pertencerem ao mundo do Espírito17.
Ou seja, se há certamente situações de antropofagia ritual, elas são pouco
numerosas, e não autorizam a acusação genérica que faz dos Africanos os antro-
pófagos por excelência, incapazes de dominar os seus impulsos. Mas quão útil
se revelou esta acusação inventada nos anos finais do século XVI, e constante-
mente reiterada, independentemente das provas e das probabilidades! No caso
de Angola, mas também na Europa em geral, como revela a Grande Encyclopédie,
são os Jagas que constituem o modelo do perfeito antropófago. Mas não há Ja-
gas, afirma Joseph C. Miller no seu famoso Requiem for the Jaga18. Nesse caso,
onde podia ter-se anichado essa antropofagia? É evidente que os Jagas existiram,
fazem parte integrante da trama histórica angolana, mesmo se esta designação
lhes foi imposta pelos Portugueses, mas não eram antropófagos.

17 HEGEL, (1830), 1965.


18 MILLER, 1973.

41
Isabel Castro Henriques

Quantos missionários não pensaram que estavam a libertar os Africanos


da sua prática antropofágica, quando os estavam a encerrar no sepulcro sór-
dido da escravatura? Tal é a função do preconceito: preparar para o impossí-
vel. A antropofagia generalizada era certamente inexequível, pelo que foram
necessários os esforços conjugados dos missionários e dos comerciantes,
associados aos militares, para convencer a Europa, e até d’Alembert e Di-
derot, da pesada verdade da antropofagia. A escravatura e o tráfico negreiro
pretendiam, assim, ocultar a função de instrumentos de guerra contra o con-
tinente africano. Se não há praticamente tráfico negreiro, salvo nas regiões
que ligam o corno de África à Arábia Saudita e aparentados, a verdade é que
os efeitos do preconceito permaneceram ao longo do século XX e são ainda
hoje, na Europa, alimento de piadas e de grafismos. Retenhamos a anedota
parisiense, que conta a réplica do tasqueiro, recusando servir o seu cliente
negro: - “não pode ser, a antropofagia acabou!” Esta réplica traduzia a sua
indignação perante o mesmo pedido do cliente negro, que queria, todas as
manhãs, “un petit blanc sec”19!

A criação de espaços inéditos: açúcar e escravos nas ilhas do Atlântico africano

Os Europeus, Portugueses em particular, mostraram-se incapazes de se


instalar na costa africana ao longo dos séculos XV e XVI, se exceptuarmos al-
guns poucos pontos menores. A única instalação costeira de valor significativa
registou-se em Mbanza Kongo, na capital do do Reino do Congo. Por esta ra-
zão, premidos pela necessidade de dispôr de pontos de apoio, os Portugueses
ocuparam as ilhas africanas atlânticas.
Não se trata de operações absolutamente idênticas às verificadas no caso
dos dois arquipélagos adjacentes, Madeira e Açores, e que se procurara alargar
com as Canárias que a Coroa espanhola conseguiu conservar. Os dois arqui-
pélagos de Cabo Verde e de São Tomé e Príncipe, e particularmente as ilhas

19 “Um pequeno branco seco”, referindo-se naturalmente a um pequeno copo de vinho branco seco.

42
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

de Santiago e de São Tomé, desempenham funções decisivas na relação com o


continente, mas também com o próprio espaço portugalizado.
Com efeito, os dois arquipélagos não possuíam população. Há quem in-
sista no facto de os dois arquipélagos serem já conhecidos pelas populações
costeiras africanas. É muito possível; todavia, para nós, o elemento essencial
não é esse. O que nos interessa saber é que estes dois arquipélagos não tinham
sociedades organizadas, embora oferecessem vantagens aos Portugueses, quer
como bases de apoio para as operações a realizar na costa africana, quer como
espaços de produção.
As operações marítimas portuguesas tinham como objectivo descobrir
o caminho marítimo para a Índia, que se supunha ser possível, embora a
ideia de que o Índico fosse um “mar fechado” tornasse esta operação muito
duvidosa. O sub-produto desta operação residia naturalmente na ocupação
e na exploração das novas terras africanas, e mais particularmente das ilhas
atlânticas.
O modelo de povoamento é praticamente o mesmo, embora as consequên-
cias estejam longe de poder ser confundidas. Sobretudo, e mais particularmen-
te no caso de São Tomé, semelhantes operações permitem um acordo deveras
pragmático entre os Africanos interessados nas operações comerciais no Atlân-
tico e os Portugueses decididos a instalar culturas e homens nos arquipélagos.
A grande novidade civilizacional reside no recurso maciço aos Africanos,
para levar a cabo uma das operações civilizacionais mais complexas do século
XV. O motor da operação é a cana de açúcar, cuja cultura já fora transferida de
Portugal para a Madeira, com o apoio dos capitais italianos, sobretudo geno-
veses. A operação provara a sua rendibilidade, pelo que havia capitais disponí-
veis para continuar esta expansão da cultura da cana de açúcar.
Não esqueçamos que estas operações implicavam duas modificações subs-
tanciais e complementares: alteração do sistema ecológico, por via da liqui-
dação de uma parte substancial da flora autóctone, substituída pelas culturas
preferenciais do Mediterrâneo: a vinha, o trigo, e a cana de açúcar. Esta, por
sua vez, exigia a mobilização da força de trabalho, livre ou escrava, assim como

43
Isabel Castro Henriques

por uma severa disciplina da produção ajudada pelas técnicas das queimadas
que já tinham sido usadas na Madeira.
O êxito da operação madeirense, que encontra confirmação na operação
açoreana, permite que os Portugueses e os seus associados estrangeiros, parti-
cularmente italianos, se lancem nesta operação. Para a levar a cabo, impunha-
-se uma vez mais a modificação da cobertura vegetal, assim como a eliminação
dos animais perigosos, das serpentes aos crocodilos. Os crocodilos desapare-
ceram para sempre, mas as serpentes deixaram ainda as duas variedades mor-
tais da cobra preta, com ou sem colar.
As operações do povoamento dos dois arquipélagos não podiam fazer-se
com Europeus, se bem que a corte portuguesa tivesse recrutado nas prisões
portuguesas os candidatos ao exílio recorrendo à técnica dos lançados. Não
podendo abordar a costa, os Portugueses lançavam ao mar estes condenados
que deviam alcançar a costa e instalar-se entre as populações africanas como
pontos de apoio dos Portugueses.
Nas ilhas verifica-se que os Portugueses se associaram, em condições que não
podemos esclarecer de maneira satisfatória, a Africanos livres. Se estes homens
não eram ricos, enriqueceram, graças as actividades organizadas pelos Portu-
gueses. Se produziam açúcar, serviam também de agentes do comércio na costa
africana, fornecendo escravos aos próprios chefes africanos. A articulação ilhas-
-Portugal-poderes africanos, era completada por outra, homens livres (Europeus e
Africanos)-poderes políticos africanos-banalização do comércio de escravos.
Quais as consequências? A primeira reside naturalmente na modificação
do próprio sistema ecológico. A introdução da cana de açúcar constitui um
passo importante, na medida em que se revelou naturalmente necessário en-
sinar os Africanos a cultivar esta planta desconhecida. A operação foi, como é
sabido, um êxito, o que transformou a ilha de São Tomé, assim como mais tar-
de o Príncipe em terra de produção do açúcar, com as vantagens económicas
decorrentes de semelhante operação.
O grande choque português registou-se no plano da gestão dos homens,
dos escravos. Importados da costa ocidental, contando possivelmente com al-

44
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

guns Bakongos negociados com os aristocratas congoleses, os escravos nem


sempre aceitaram de boa mente a situação a que estavam condenados. Talvez
também os Europeus não soubessem ainda decapitar os poderes religiosos e
políticos, o que veio a tornar possível a sua organização.
São Tomé fornece-nos duas indicações fundamentais na evolução das re-
lações com os Africanos. A primeira diz respeito às relações produtivas entre
brancos e pretos: São Tomé e Cabo Verde são os dois primeiros arquipélagos
onde se regista uma produção constante de mulatos, grupo que não estava
previsto nem nos projectos portugueses, nem nos projectos africanos. Ora sa-
bemos, graças ao Piloto anónimo, que as Africanas casavam com os Europeus,
o que não podia deixar de criar mulatos. Esta novidade biológica perturba as
práticas sociais portuguesas, pois que a tendência era considerar que os filhos
de escravas deviam ser também escravos.
Sem se dar conta, os Portugueses estavam enleados por uma armadilha,
pois que uma parte importante de pais europeus tratou estes filhos mulatos
como se fossem legítimos, pelo que se registou um choque entre as regras da
Corte e os pais, os filhos e as mães africanas, quando a administração quis tra-
tar os mulatos como se de escravos se tratasse. Considerados livres pela Corte,
os mulatos levaram à libertação das mães, algumas das quais receberam auto-
rização para ser vendedeiras.
Trata-se de uma fase significativa deste processo, na medida em que se
davam os primeiros passos para a criação de sociedades mestiças, numa si-
tuação em que convergiam os interesses europeus e os africanos. Sobretudo,
esta situação alterava de maneira definitiva a grelha somática, marcada de
resto pela imprecisão, pois não poucas vezes os mulatos foram classificados
como pardos. Todavia, esta situação deixou em aberto um conflito, que re-
solvido em São Tomé levou séculos a ser esclarecido no Brasil, onde os pais
e a administração brancos não hesitavam em considerar escravos os descen-
dentes mulatos.
O outro aspecto, talvez o mais significativo, reside na maneira como os es-
cravos africanos, e talvez até os Africanos livres, geriram as relações com os

45
Isabel Castro Henriques

Portugueses. Os escravos fugiram das plantações, para se refugiar no mato,


onde apareceram os primeiros mocambos, que são por sua vez as primeiras
figurações dos quilombos brasileiros. Se os Portugueses e os Europeus procu-
ravam tornar rendível o território, forçando-o a passar da situação original à
política da plantação, os Africanos queriam sobretudo recuperar a liberdade,
abandonando as plantações europeias e as suas regras de trabalho.
Trata-se de uma operação, que também se registou, embora em menor es-
cala em Cabo Verde, destinada a africanizar a ilha. Estabeleceu-se assim uma
dicotomia, opondo por um lado o mato africanizado, à plantação europeiza-
da. Semelhante situação não podia deixar de desembocar em conflitos perma-
nentes, agravados pelo facto de os antigos escravos organizarem estruturas do
poder político, sobretudo no caso dos Angolares. As operações portuguesas
sofriam o peso das opções de dois grupos que possuíam experiências e projec-
tos que, na maior parte dos casos, eram radicalmente opostos.
O paradoxo reside no facto de esta situação não ter travado a construção de
soluções mestiças, tanto mais que os Portugueses, e certamente os Africanos,
estavam interessados na circulação das plantas. Os Africanos traziam as plan-
tas africanas ou africanizadas, como a bananeira e o coqueiro, ao passo que os
Europeus introduziam não só a cana de açúcar, mas muitas plantas provindas
do Mediterrâneo. Se bem que a contribuição mais significativa se verifique
na importação de plantas asiáticas, como a jaca ou a bananeira, de espécies
americanas, como a batata doce, a mandioca, o ananás, o abacate, o cajú, o mi-
lho e tantas outras, ou africanas como os inhames e a palmeira dendém. Esta
situação impôs um perfil radicalmente mestiço aos dois arquipélagos, situação
que se veio a acentuar em Cabo Verde, mas já no século XIX. Portugueses e
Africanos tinham conseguido dar origem a populações inéditas, cujo espaço
tem aumentado constantemente século após século, mau grado a incomodi-
dade que este grupo provoca, tanto entre os Europeus, como talvez sobretudo
entre os Africanos. A verdade porém é que foi graças a estas populações mes-
tiças que as operações coloniais e escravocratas portuguesas e europeias se
puderam estruturar em toda a costa ocidental africana.

46
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

Esta situação resulta da soma de dois grupos possuíndo características


somáticas particulares, que acabam por se fundir para criar um tipo novo de
homem. Mas é também a consequência de uma associação que modifica ra-
dicalmente a natureza, permitindo a importação de plantas inéditas, as quais
por sua vez permitiram novas actividades de produção. De resto, aberto este
processo do século XV pela importação da cana de açúcar, foi reforçado nos
séculos XVIII e XIX pela importação primeiro do café, depois do cacau. O
ciclo das mutações e das metamorfoses ainda não parece encerrado e haverá
ainda, pode prever-se, novas modificações.
Escravos e gestores de escravos, os Africanos integram-se na economia-
-mundo, que sempre pediu força de trabalho abundante, vigorosa e obedien-
te. Se o tráfico negreiro parece ser uma invenção árabe e europeia, a verdade
é que os Africanos, assim como os mulatos, não recusaram participar nestas
operações, que lhes não repugnavam. Esta disponibilidade para a actividade
negreira não deixou de criar sérios conflitos entre os mestiços e os Africanos
na medida em que estes mostravam tendência para denunciar mais severa-
mente os mulatos do que os brancos.
Compreende-se melhor a razão pela qual todos os Europeus, sem excep-
ção, alguma, puderam participar não só na banalização da escravatura como
na invenção do tráfico negreiro, destinado a assegurar o povoamento e a ex-
ploração dos vastos territórios americanos.
De resto, esta operação apresenta duas faces: a primeira põe em evidência a
resistência dos Índios, que recusaram integrar-se no sistema colonial, e foram
por isso lenta mas constantemente dizimados; ainda no século XVI, o governo
espanhol decidiu devolver à América os Índios que se tinham instalado em
Sevilha: os escravos necessários para assegurar a exploração das novas terras,
quer na produção agrícola, quer na extracção mineira, assim como na cons-
trução e na organização das novas instalações urbanas. A segunda exige que
se importe força de trabalho indispensável à exploração dos territórios. Roger
Bastide define, numa síntese admirável, a violência da operação: a América

47
Isabel Castro Henriques

vermelha transformou-se em América negra20.


A valorização dos territórios faz-se em nome da lógica capitalista, que as-
senta primeiro no açúcar, antes de, e sobretudo a partir de 1616, explorar o
algodão do sul dos Estados Unidos.
Ou seja, a evolução da escravatura é inseparável da organização da produ-
ção colonial. Face à lentidão da emigração europeia, considerada pouco apta
aos serviços prestados pelos escravos, organizou-se o tráfico negreiro. Se os
colonizadores hispânicos organizam o sistema de ideias do tráfico em 1514, os
puritanos protestantes adoptam os mesmos princípios a partir de 1616. Açú-
car, algodão, mais tarde café ou ouro, eis os motores da operação.

A ORGANIZAÇÃO DO TRÁFICO DE ESCRAVOS EM ANGOLA


(SÉCULOS XVII-XIX)

Faltam-nos, até hoje, elementos capazes de nos permitir descrever a manei-


ra como os escravos e as sociedades africanas viveram esta situação. As litera-
turas esclavagistas insistem em salientar que o tráfico negreiro não teria sido
possível sem a participação directa e constante das populações e das autorida-
des africanas, sobretudo costeiras.
A explicação peca pela facilidade, e pretende sobretudo transferir para as
sociedades africanas a total responsabilidade destas operações, cuja cruelda-
de é evidente. Os documentos portugueses sublinham que só embarcavam
nos portos negreiros 10% dos escravos capturados. O facto de haver 90% de
perdas, seja durante as operações de captura, seja durante o transporte, seja
ainda durante a espera do embarque, não pode deixar de nos levar a refazer a
demografia do tráfico.
Simplesmente esta maneira de julgar a situação acaba por ocultar um dos
dados fundamentais do problema: como é que os Africanos aceitam a situa-

20 BASTIDE, 1967.

48
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

ção? Nos documentos africanos redigidos em língua portuguesa, encontra-


mos o protesto precoce do rei do Congo, que denuncia ao rei português a ba-
nalização e o alargamento da escravização, que atinge até membros da família
real congolesa.
O rei de Portugal salienta, na resposta, que sem esta “mercadoria”, as rela-
ções comerciais com o Congo nada valem. Ou seja, a argumentação da corte
portuguesa exacerba os interesses económicos, convidando o rei a renunciar
a qualquer interpelação em nome do humanismo ou dos indivíduos. O des-
fasamento fica todavia a nu: são os Europeus, neste caso os Portugueses, que
procuram desenvolver este comércio a todo o custo.
Já nos séculos XVII e XVIII, algumas nações angolanas aceitam participar
de maneira activa nestas operações comerciais: as estruturas políticas, che-
fes e seus conselheiros, procuram utilizar os benefícios que lhes advêm deste
comércio com os Europeus, para consolidar os seus poderes, seja no plano
simbólico, seja no plano mais estritamente económico. Não é de admirar, por
isso, que alguns destes chefes se tornem despóticos, na medida em que uma
parte da sua autoridade depende cada vez mais do exterior.
Por estas razões, não parece possível compreender a organização do tráfico
de escravos angolanos, destinados preferencialmente ao Brasil sem a organiza-
ção de um sistema de relações directas entre as duas costas do Atlântico, sem
ter em conta as estruturas internas africanas, pois a maior parte dos escravos
é “produzida” pelos próprios Africanos. É certo que os sistemas europeus de
comércio criados no litoral acicatam estas mudanças africanas, dando origem
a um espaço afro-português, que influencia de maneira constante os espaços
ainda inteiramente africanos.

As “ Fronteiras da Escravatura ”

O mapa proposto por Joseph C. Miller permite dar conta dos diferentes
estratos históricos do tráfico negreiro, pondo em evidência as datas em que
começaram a funcionar as capturas e o comércio das diferentes regiões ango-

49
Isabel Castro Henriques

lanas. Como não podia deixar de ser, estas integram também a costa do Loan-
go, onde o tráfico começa extremamente cedo, quer dizer a partir de 1520, tal
como se verifica na região, povoada por Bakongos, a nordeste de Luanda. O
segundo período estende-se de 1570 a 1620. A década que vai de 1620 a 1630
permite alargar a zona costeira do tráfico a Benguela e às regiões mais a sul ou
mais a leste. O período iniciado em 1680, que se caracteriza pela recuperação
do poder político português, seja em Portugal, seja também em Angola, em-
purra o tráfico cada vez mais para o interior, verificando-se o alargamento des-
tas fronteiras já no século XVIII, a partir de 1720. De resto, o século XVIII ca-
racteriza-se pelo recrutamento de escravos em novas regiões, o que aumenta
de maneira sensível a intervenção, directa ou indirecta dos negreiros, e permi-
te verificar que a distribuição da geografia política angolana se foi construindo
e soldando graças à intervenção do tráfico negreiro. O século XIX não podia
escapar a esta situação, mas este mapa permite verificar que certas zonas só
muito tardiamente entram neste quadro: já não servirão para reforçar o tráfico
negreiro, mas sublinham a importância da circulação dos escravos na estrutu-
ra social angolana. Naturalmente estas operações empurram as “fronteiras da
escravatura” para Leste, para o Norte e o Nordeste e para o Sul e o Sudeste de
Angola.

50
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

MAPA 1 - As “Fronteiras da Escravatura”21

Hegemonias africanas e relações com os Portugueses

Tal como Miller, nos últimos anos, os investigadores desta região africa-
na têm-se preocupado com a definição das fronteiras, não no estrito sentido
político, mas em função de conjunções ou de rupturas culturais e políticas
indispensáveis para podermos compreender a relação entre as sincronias e as
diacronias neste espaço histórico. Neste caso, pretendemos muito modesta-
mente salientar as modificações ocorridas, que não só permitem compreen-
der as linhas de penetração deste comércio, mas também as transformações
internas de cada um dos espaços considerados.
Podemos até afirmar que a operacionalidade desta noção é ainda mais vas-
ta: se ela permite compreender a evolução do tráfico interno dominado pelos

51
Isabel Castro Henriques

Africanos, embora associados, pelo menos no plano da exportação, aos Euro-


peus, é sobretudo utilíssima para pôr em evidência as alterações dos poderes
locais e regionais africanos, determinados pelos avanços e pelas inevitáveis re-
composições deste comércio de escravos. Todos participam nestas operações,
quando mais não seja cobrando direitos de circulação, que se transformam em
presentes obrigatórios.
Sendo assim, verifica-se que esta noção permite pôr em evidência a impor-
tância dos controles africanos nos seus próprios espaços e consequentemen-
te a necessidade de articulação interna entre todas as autoridades africanas:
a falta de diplomacia, a violência utilizada de maneira prematura, só podem
provocar estragos nas relações, e reduzir por isso o volume dos negócios au-
mentando os seus custos.
É pois difícil desenhar as múltiplas “fronteiras da escravatura”, no território
angolano. Em primeiro lugar, porque os primeiros territórios a ser explorados
pelos esclavagistas primeiro, pelos negreiros depois, dependiam do continuum
Loango-Congo. O reino do Loango forneceu muitos escravos ao tráfico ne-
greiro, já a partir do século XVI. O reino do Congo fornecera os primeiros
Africanos aos Portugueses desde a primeira viagem de Diogo Cão, em 1483.
Mais tarde, os escravos provenientes de Mbanza Kongo, capital do reino - a
que os Portugueses chamavam S. Salvador do Congo - são exportados a partir
dos portos de Mpinda, na foz do Zaire, e de Ambriz, a norte de Luanda.
A criação de Luanda vai permitir organizar uma outra - a mais importante
- “fronteira da escravatura”, alimentada numa primeira fase com escravos pro-
venientes sobretudo do reino de Ndongo.
A instalação dos Portugueses em Luanda verifica-se em 1575, mesmo se
em condições precárias. Basta pensar que as autoridades portuguesas se mos-
traram incapazes de recuperar a pesca das conchas nzimbu - propriedade do
rei do Congo e apanhadas pelas mulheres congolesas na ilha de Luanda -, que
constituíam contudo a moeda utilizada pela corte congolesa. Semelhante si-
tuação, de resto estigmatizada por um funcionário como Domingos Abreu e
Brito, traduz as dificuldades experimentadas pelos Europeus - e naturalmente

52
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

mais particularmente pelos Portugueses - para impôr a sua autoridade aos res-
ponsáveis políticos africanos22
De resto, para conseguir a sua instalação na costa, as autoridades portu-
guesas não hesitam em recorrer à política de terra queimada, que lhes permite
recuperar centenas ou até milhares de escravos.
O melhor exemplo regista-se no primeiro quartel do século XVII, no go-
verno de João Correia de Sousa. Irritado pelo comportamento de alguns ha-
bitantes da Ensaca de Casanje, o governador mandou destruir as árvores e
as plantações, obrigando o rei a tentar atravessar o rio Bengo. Capturado, foi
decapitado a 15 de Maio de 1622.
O governador convocou então os macotas, tendalas, maculuntos - diferentes
membros da aristocracia e das chefias locais -, os quatro gingos (isto é, os her-
deiros do trono), assim como as morindas - quer dizer as populações das di-
ferentes aldeias - que mandou embarcar imediatamente em navios negreiros,
então em Luanda, indicando que deviam ser enviados para as minas de ouro
de São Vicente. É certo que esta operação foi apaixonadamente contestada
pelos Jesuítas, mas a verdade é que cerca de sete mil pessoas, transformadas
em escravos, foram assim transferidas para o Brasil.
Os Portugueses puderam, pois, aumentar a zona do recrutamento dos es-
cravos ao longo dos séculos, graças aos chefes africanos, como Ngola, Jinga,
Jaga de Cassanje e outros. Sem contudo terem sido capazes de submeter os
espaços políticos africanos como a Quissama e Cassanje. O alargamento das
fronteiras deve-se sobretudo aos Africanos, que aceitam as regras do comércio
negreiro, recebendo mercadorias preferenciais em troca dos homens.
Sabe-se, pelo menos a partir da expedição de Manuel Correia Leitão
(1756) que o impacto da procura portuguesa, ou europeia, se fez sentir no
interior, embora as autoridades e os comerciantes se tenham mostrado inca-
pazes de definir uma verdadeira geografia da escravatura. Com efeito, Correia
Leitão introduz no texto uma referência aos Moluas, que se aceita desde o

22 BRITO, Domingos Abreu e, finais do século XVI, 1931.

53
Isabel Castro Henriques

século XIX designar como Lundas. Estes seriam obrigados a servir-se dos Im-
bangalas como agentes preferenciais.
Do ponto de vista da extensão e da banalização do comércio negreiro esta
informação é fundamental, pois revela a maneira como as sociedades africa-
nas procuraram utilizar em seu proveito as regras envenenadas e venenosas do
tráfico. De um ponto de vista meramente técnico, podemos contudo aceitar
estar perante a prova da eficácia dos sistemas africanos, que procuram recupe-
rar a iniciativa num campo comercial que lhes parece promissor.
Desde o início do século XVII o comércio negreiro permitiu que apareces-
se e se desenvolvesse o reino imbangala de Cassanje - outra Cassanje -, a cerca
de 300 quilómetros de Luanda. Grande produtor de escravos, ocupando uma
posição hegemónica numa vasta região da África Central, Cassanje impediu
até meados do século XIX a intervenção directa dos Portugueses ou dos seus
agentes, nas terras orientais, para além do rio Quango..
A historiografia tem hesitado muito na definição do primeiro encontro en-
tre o chefe de Cassanje e os Portugueses. Não parece que tal seja muito impor-
tante, pois o mais significativo reside na maneira como esta estrutura política
concentrou os Imbangalas, que pouco a pouco adquiriram força para impedir
a livre circulação dos Portugueses. O paradoxo reside no facto de alguns do-
cumentos afirmarem que nos primeiros anos de existência, o Jaga de Cassanje
mobilizou os Portugueses para se livrar dos ataques de que era alvo.
O pagamento durante alguns anos de uma daxa, quer dizer de um tributo
regular devido aos Portugueses confirmaria essa versão dos factos, que con-
tudo já não era pago no século XVIII, como informa Manuel Correia Leitão,
encarregado de proceder a uma operação de reconhecimento das instalações
de Cassanje e sobretudo de descrever o rio Quango e as suas margens. O resul-
tado desta expedição não é muito claro, pois confirma por um lado o poder do
Jaga de Cassanje, mas não consegue saber de maneira precisa qual o volume
das relações comerciais com as populações da margem direita do rio.

54
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

Já procurei demonstrar, em outro texto23 , que é muito provável que Ma-


nuel Correia Leitão tenha sido ludibriado pelas autoridades imbangalas, que
não permitiam que os estrangeiros, e mais particularmente os Europeus, se
aproximassem de um rio que não podia ser atravessado a vau, estando as em-
barcações, os dongos, controlados pelo poder político. Nestas condições, o rio
era utilizado como uma muralha liquida contra os apetites dos Portugueses.
A situação era todavia mais complexa, pois as relações com os Lundas ou
se faziam por intermédio dos Quiocos, ou sobretudo recorrendo aos Songos.
Ou seja, a leitura simplista que tem sido feita pelos historiadores revela uma
situação muito mais complexa, na medida em que se verifica um encavalga-
mento de autoridades e de controlos. Se, entre Luanda e Cassanje, a mercado-
ria preferencial é o sal gema, já no caso das populações da outra margem do
Quango se verifica a procura e o consumo de sal provindo das ervas salgadas,
cujos centros de produção estão amplamente dispersos.
Verifica-se assim que a produção de escravos é inseparável de uma miría-
de de situações que implicam o conhecimento das pirâmides nacionais, de
maneira a definir o espaço onde cada uma pode intervir de maneira continua
e eficaz. Podemos e devemos sublinhar a existência de duas técnicas de pro-
dução de escravos para exportação: através das guerras, gerais ou limitadas,
e por via das trocas comerciais regulares, autorizadas pelos chefes políticos,
conforme a hierarquia das autoridades e das nações.
Estas actividades comerciais apoiavam-se na organização de caravanas,
que obedeciam às regras políticas, assim como às articulações internas das re-
lações inter-regionais e de parentesco. Por outro lado, o funcionamento das
caravanas era obrigado a respeitar as regras religiosas, seja na sua organização,
seja no seu funcionamento, seja ainda nas relações com os territórios dos Ou-
tros, sempre ocupados por forças religiosas que não podiam, que não deviam
ser agredidas ou desrespeitadas.
Ou seja, se o comércio de escravos se tornou indispensável ao funciona-

23 Sobre esta questão, vêr HENRIQUES, Isabel Castro, 1998, pp. 205-206 e 251.

55
Isabel Castro Henriques

mento de um grande número de nações angolanas, ou africanas, tal não quer


dizer que as regras sociais tenham sido abolidas, situação fundamental para a
análise das implicações políticas, económicas e religiosas.
Estas caravanas, organismos comerciais utilizados por todos os grupos, in-
cluindo os Europeus, estão associados por sua vez às feiras, ou antes aos mer-
cados. As sociedades africanas não funcionam sem mercados, cuja importân-
cia varia conforme o seu objectivo: assegurar a circulação de produtos locais,
ou articular-se em função das mercadorias regionais ou até internacionais.
O comércio local encontra-se sempre, por essas razões, ligado ao comércio a
longa distância, na medida em que a aprendizagem das regras do mercado se
processa tanto nos espaços familiares, como, sobretudo, no conhecimento das
regras a respeitar e dos preços a impôr ou a obter.
Cassanje aparece hoje, na historiografia angolana, como o eixo comum da
circulação das mercadorias destinadas - ou provindas - de leste. O comércio
afro-português, pelo menos até aos finais do século XVIII, não pode deixar de
negociar com as autoridades políticas da região e mais particularmente com o
Jaga. Todavia, esta situação hegemónica não pode deixar de sublinhar a relati-
va dependência em que se encontra o próprio Jaga: se os Songos e os Quiocos
não agissem a Leste e a Norte de maneira eficaz, é evidente que estes fluxos
comerciais estariam condenados a secar, pondo em perigo a própria comer-
cialização levada a cabo pelos Portugueses.
Não se pode esquecer que, em pelo menos um momento conhecido, em-
bora tardio, as autoridades de Cassanje decidem interromper as actividades
comerciais, estando a nação inteiramente mobilizada pelos problemas rituais
internos, a respeito dos quais as informações são reduzidas.
Se esta manifestação da hegemonia de Cassanje não asfixiou o comércio
afro-português, tal se deve ao facto de outros grupos, entre os quais aqueles
já citados, disporem de meios para prosseguir na produção de escravos e na
sua comercialização. É de resto neste sentido, também, que importa definir as
“fronteiras da escravatura”, para pôr em evidência tanto a sua complexidade,
como a sua carga histórica.

56
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

Se o comércio se fixa precocemente em Luanda numa articulação com


Cassanje, leva ainda algumas dezenas de anos a instalar-se confortável e
definitivamente a Sul. A cidade de Benguela, também porto exportador
de escravos, só é criada em 1617. Também neste caso a criação portugue-
sa depende da maneira como a pressão interna das sociedades africanas
faz aparecer escravos na costa. De resto, Benguela, que será irrigada com
comerciantes brasileiros ou com desterrados - frequentemente políticos
- brasileiros, não depende contudo do mesmo fornecedor, pois man-
tem relações preferenciais com o planalto do Bié, isto é, com os reinos
ovimbundos, o que lhe permite, por um lado, e já nos anos finais do século
XVIII, assegurar relações comerciais e outras com os Quiocos no Alto
Tchicapa - na região conhecida como sendo a “ mãe das águas”, onde nas-
cem todos os grandes Rios da zona - e, mais a Leste, já em plena África
central, com as populações do Loval.
Estas operações, que aparecem nos documentos escritos de maneira por
vezes litótica, permitem manter relações com as regiões de Leste e do Centro,
sem passar pelo controle dos Imbangalas, ao mesmo tempo que alargam as
fronteiras da escravatura tanto para Leste como para Sul.
Na primeira metade do século XIX, esta “fronteira da escravatura” torna-se
ainda mais complexa, graças ao aparecimento de um eixo vertical, unindo o
planalto do Bié, já ligado ao Loval e aos Quiocos, às terras mais a norte do
Império lunda. Os mapas que procuram desenhar os diferentes percursos do
comércio interno, esquecem constantemente que o tráfico negreiro nunca pôs
termo à produção e à comercialização dos escravos destinados à utilização em
África, nas sociedades africanas. O que obriga a proceder à revisão dos gráfi-
cos comuns, que manifestam uma predilecção pelas correntes que se dirigem
uniformemente para a costa atlântica.
Não se dispõe até hoje de informações que permitam aceitar ou recusar as
remessas de escravos para a costa oriental. É certo que alguns textos, como a
Memória de Brant Pontes, não hesita em afirmá-lo. A leitura do texto revela
apenas a existência de relações míticas ou mitificadas, pois não se fornece a

57
Isabel Castro Henriques

menor prova24. Em contra-partida, estas regiões participam com grande inten-


sidade na produção e na comercialização de escravos, até muito tarde. Rodri-
gues de Areia recorre à história da vida de um adivinho quioco, homem velho
é certo, que deve ter nascido entre 1905 e 1915, que sempre tivera escravos
que justificavam o seu poder25.
A releitura dos documentos consagrados às regiões orientais da Angola de
hoje, e à África central, não permitem a menor dúvida: as correntes destinadas
ao tráfico negreiro não anulam as operações da escravatura africana normal.
Ou seja, haveria não uma, mas certamente mais fronteiras da escravatura. A si-
tuação é menos lisível nas regiões a sul de Benguela, em parte devido à presen-
ça dos pigmóides, mas também em consequência da rareza da ocupação terri-
torial. Aparentemente as operações comerciais não ofereciam muitos lucros.

MAPA 2 - As principais rotas comerciais no século XVII26

24 PONTES, Brant, (1800), in Felner, 1940.


25 AREIA, M. Rodrigues de, 1985.
26 PARREIRA, Adriano, 1990, p. 78.

58
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

MAPA 3 - As principais rotas comerciais antes e depois de 185027

No plano que mais directamente nos interessa, verifica-se assim que a


“produção” dos escravos não diz respeito a um único grupo, pois mobiliza to-
das as nações, as quais controlam os fluxos internos dos escravos, e recebem
comissões ou presentes de acordo com o número e o valor venal dos escravos.
A boa consciência europeia manifesta-se constantemente, atingindo o seu
ponto crítico nos momentos em que as autoridades africanas manifestam o de-
sejo de pôr termo ao tráfico interno. Não se procedeu ainda ao inventário destas
situações, todavia reveladoras de situações internas envolvendo a denúncia dos
malefícios provocados pela constância e pelo volume do tráfico negreiro.
Sempre que tal acontece, os Portugueses e os Europeus denunciam a “in-
gratidão” dos Africanos, que só graças a este comércio puderam obter a maior
parte dos bens de prestígio que servem para confirmar a autoridade política
ou religiosa. Para os Portugueses, os Africanos não podem pôr termo a este
comércio - e voltamos a encontrar o argumento já utilizado por D. Manuel I e
por D. João III - para não serem privados das mercadorias como as armas de
fogo, os tecidos, e mais tarde a geribita, a famosa aguardente de cana brasileira
e, último produto entrado no processo, o tabaco.
Não podemos duvidar do formidável impacto das mercadorias, pois sem
elas não teria havido tráfico negreiro: já se disse em tempos que onde não vão

27 HENRIQUES, Isabel Castro, 1998, pp. 700-701.

59
Isabel Castro Henriques

os Europeus, vão as mercadorias, e estas não são apenas um bem material,


sendo sempre portadoras de uma carga simbólica, que age em dois sentidos: o
centrífugo, sublinhando a existência de forças produtoras impossíveis de con-
trolar, e um movimento centrípeto, que reforça a estrutura dos poderes, pelo
menos num longo primeiro tempo.
Se este mecanismo onde se misturam o ideológico e o pragmático se revela
eficaz, não pode ele contudo travar o apetite dos Europeus que, se desejam lu-
cros, não renunciam ao poder. É assim que os agentes portugueses procuram
impôr as condições de “vassalagem” a todas as autoridades angolanas, provo-
cando conflitos, resultantes da relação de forças que na maior parte dos casos
os Portugueses avaliam mal, confundindo a aceitação das regras comerciais,
com a renúncia aos princípios das hegemonias africanas.
De resto os Africanos são sempre mais pacientes do que os Europeus, ins-
talando-se na longa duração, que não coincide com os tempos comerciais e
económicos dos Europeus. Este desencontro, que ainda hoje se verifica, explica
muitas acções extemporâneas dos Europeus que apostam sempre na violência
como aguilhão suficiente para submeter as sociedades africanas. Pura ilusão, de
resto catastrófica para as sociedades africanas, que se vêem por isso envolvidas
em operações punitivas que, em alguns casos, são de pura terra queimada, como
lembrei já a propósito da destruição da Ensaca luandense de Cassanje.
Ou seja, o comércio dos homens, sendo embora gerido pelos Africanos, não
passa nunca de uma arma de guerra dos Europeus contra as estruturas sociais
do continente. Faltou talvez a capacidade de criar uma frente unida contra o
tráfico negreiro, mas não podemos deixar de pôr em evidência as agudas crises
de consciência que sublinham o mal-estar das instituições e dos homens.

Os espaços de contacto afro-português: cidades, presídios, feiras.

Talvez o título deste curto capítulo seja demasiado restritivo, pois que os
espaços de contacto servem também as sociedades africanas: os mercados,
criação específica das sociedades africanas, servem não só para trocar mer-

60
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

cadorias, mas também para assegurar a comunicação. Estes lugares, como de


resto se verifica em todas as sociedades que dispõem deste instrumento civili-
zacional, não se limitam a propôr mercadorias. As mercadorias arrastam com
elas os homens e com estes as ideias e as informações.
Os Portugueses não podiam deixar de se interessar por esta rede de comer-
cialização e de contacto, que os Africanos quiseram defender, proibindo a pe-
netração dos brancos, e alargando estas regras proibitivas aos pretos calçados,
considerados como menos africanos, por razões estritamente religiosas: os
espíritos africanos instalados debaixo da terra, comunicavam aos vivos a sua
energia através dos pés. O calçado rompe a relação: os homens calçados são
por isso aqueles que romperam esta relação directa e fecunda com o panteão
onde estão instalados os espíritos africanos.
Estas condições, que tão profundamente caracterizam esta ampla região de
nações que falam línguas bantas, marcavam as relações entre os Portugueses e
os Africanos, tendo sido reforçadas pela criação de instalações diferentes, que
procuram caracterizar-se pela sua condição trans-étnica. Os Portugueses ins-
talados na capital do reino do Congo, Mbanza Kongo, não podiam deixar de
intervir na distribuição urbana, em nome dos interesses políticos, económicos
e religiosos, como de resto mostram as ruínas da arquitectura portuguesa.
A passagem das formas africanas ao urbanismo político português, pri-
meiro em Luanda (1575), depois em Benguela (1617), é acompanhada pela
instalação de fortalezas e de presídios. Como não podia deixar de ser, os Por-
tugueses esbarraram continuamente na afirmação da hegemonia africana. As
diferentes nações angolanas transformam-se por isso em “inimigos do inte-
rior” e compreende-se melhor o sentido do título da primeira obra portugue-
sa, escrita por António de Oliveira de Cadornega (1680-1681), consagrada às
relações com as nações angolanas: História Geral das guerras angolanas28 Todas
as mais relações, de qualquer tipo que sejam, são condicionadas pelo estado
de guerra permanente.

28 CADORNEGA, (1681), 1972.

61
Isabel Castro Henriques

A tarefa dos aparelhos políticos e militares africanos é, por isso, complexa:


assegurar a hegemonia, sem renunciar ao comércio, e mais particularmente ao
comércio de escravos, mercadoria continuamente solicitada pelos Europeus
em toda a costa ocidental. Verificaram os Portugueses, em primeiro lugar, que
os mercados africanos eram essenciais na organização das estratégias comer-
ciais; constataram também que as fortalezas, que se opunham aos Africanos
não eram as melhores instalações para prosseguir as relações comerciais. Por
essas razões o dispositivo técnico incluiu também os presídios e as feiras. Fre-
quentemente de resto, os presídios estavam associados às feiras.
Verifica-se, de resto, que os Portugueses foram obrigados a aceitar as re-
des comerciais africanas já existentes, pelo que as suas instalações dependem
sempre das organizações africanas, seja em que região for. É certo que estas
instalações portuguesas aparecem como uma espécie de ilhas disseminadas
através dos territórios africanos. Não poderia ter sido de outra maneira, face à
impotência militar e política dos Portugueses e dos seus associados. Todavia,
como não podia deixar de ser, esta situação atraiu uma fracção de Africanos
que procurou aproveitar as novas condições para obter lucros e poder. Se não
poucos Europeus se africanizam - ou se cafrealizam, como se dirá já no século
XIX - há também milhares de Africanos que não hesitam em europeizar-se.
Esta situação é reforçada pelo aparecimento, sempre crescente, de mestiços,
que de resto são brutalmente repelidos pelos Europeus.
Digamos pois que estas novas instalações não podem deixar de propôr so-
luções que se devem designar como mestiças, na medida em que são forçadas
a funcionar em função de duas forças igualmente interessadas em soluções
comerciais: os Africanos que não querem renunciar à sua hegemonia, os Eu-
ropeus que querem manter a progressão do comércio de escravos - sem renun-
ciar aos lucros obtidos no comércio dos bens comerciais correntes -, reduzin-
do ao mesmo tempo o campo da autoridade africana. O mais surpreendente é
constatar que, mau-grado estas contradições, as actividades comerciais pros-
seguem, como revelam os números dos escravos saídos pelas costas angolanas,
do norte, Cabinda, Ambriz, ao sul, Benguela e Moçamedes, mais tarde.

62
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

Estas diferentes formas de urbanismo salientam a indispensabilidade da


articulação entre os interesses comerciais e o escudo militar, o que traduz a
impossibilidade de os Europeus se instalarem no interior sem o recurso a mu-
ralhas e a armas de fogo, das espingardas aos canhões. As consequências desta
maneira de proceder a uma suposta ocupação do território, que só se concre-
tizará nos inícios do século XX, e de construir as relações com o Outro, são
sempre as mesmas: já na Índia, os Portugueses associavam o mecanismo da
pilhagem à banalização do comércio e dos comerciantes, como salienta uma
passagem de uma carta de D. João de Castro enviada a seu filho D. Álvaro de
Castro, denunciando o facto de os militares se transformarem em chatins, quer
dizer em traficantes.
Não há nenhuma variação na filosofia política portuguesa nestas operações
coloniais, razão pela qual se verifica uma dissolução das regras morais destes
homens, que se transformam em agentes comerciais, adoptando comporta-
mentos infraccionais. Os campos entrincheirados procuram instalar cunhas
portuguesas nos espaços africanos, em todas as nações angolanas, de maneira
a permitir a prossecução do comércio de escravos, procurando desestabilizar
as autoridades africanas, que devem submeter-se às regras portuguesas. Esta
estratégia nem sempre se revelou a mais eficaz, não só por se verificar a afri-
canização de partes significativas dos Europeus - e esta situação reforçou-se
quando as autoridades portuguesas se viram obrigadas a importar soldados
brasileiros, a maior parte dos quais eram mulatos -, mas por se renunciar ao
combate em proveito do comércio.
Paradoxalmente, os Portugueses servem-se constantemente das “guerras
pretas”29 (forças auxiliares do exército português constituídas por soldados
africanos) para levar a cabo algumas operações militares e repressivas: trata-se
de operações em que os estrategas portugueses conseguem utilizar os confli-
tos internos africanos em proveito da sua política de desmantelamento das
estruturas africanas. Semelhantes operações, que são numerosas e constantes,

29 Ver CADORNEGA, (1681), 1972, vol.1, p.349.

63
Isabel Castro Henriques

permitem a recuperação de milhares e milhares de escravos, que são remetidos


para os diferentes portos de embarque, e mais particularmente para Luanda.
Se quisermos definir o sentido destas operações verificamos a existência de
uma articulação entre as grandes cidades portuárias costeiras, como é o caso
de Luanda e de Benguela, com um rosário de fortalezas e de presídios, que
funcionam como agentes de penetração e de comercialização. Os presídios,
convém lembrá-lo, são sempre construídos em lugares já caracterizados pela
presença de autoridades africanas, e pela existência de estradas comerciais ou
de mercados gozando de uma reputação comercial significativa. Digamos as
coisas mais simplesmente: não podendo agir sós, os comerciantes dependem
de um guarda-sol militar, que os presídios estruturam. Ora o presídio, com
a sua paliçada de madeira não é mais do que um arremedo de fortaleza, em
momentos e em regiões onde não há pedra, nem pedreiros. A madeira e o bar-
ro fornecem as matérias primas indispensáveis: esta situação africaniza esses
lugares, embora as construções procurem manter a relação com a arquitectura
europeia.
As relações entre a constelação dos chefes africanos - sobas e sobetas - e as
autoridades portuguesas deviam ser estabelecidas por meio de documentos
escritos, onde os chefes africanos se deviam declarar vassalos das autoridades
portuguesas. O fantasma medieval que resistia no quadro dos projectos colo-
niais portugueses não foi ainda analisado, mau grado ter suscitado o interesse
do historiador Jean Devisse30. O desfasamento entre as concepções políticas
africanas e portuguesa é por demais evidente, e talvez explique a impotência
portuguesa face às autoridades africanas. Estes termos de vassalagem impu-
nham o pagamento de tributos - em escravos, em produtos artesanais como as
esteiras e os balaios, em víveres, sobretudo milho e mandioca - que permitiam
a sobrevivência das guarnições.
No século XVII e XVIII, os principais presídios eram Massangano (1583-
1585), Muxima (1599), Cambambe, criado perto da importante feira africana

30 Curso de Doutoramento em História de África, Universidade de Paris I, Panthéon-Sorbonne, 1990-1991.

64
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

do Dondo (finais do século XVI, princípios do século XVII), Ambaca (1611),


Pungo Andongo (1671), instalado junto da corte do rei de Ndongo, Caconda
(1685), em Hanha, no sopé do planalto do Bihé, Pedras de Encoje ou S. José
de Encoje, ou ainda Nkoje (1759) e Novo Redondo (1769), no litoral, entre
Luanda e Benguela.
O simples enunciado salienta a situação europeia, pois estas instalações
militares-comerciais pretendem sobretudo penetrar nos espaços africanos,
quando são também, ou mesmo sobretudo, pontos de defesa contra a massa
das nações africanas, de que se desconhecem os perfis, assim como as forças.
A descompressão registada nas relações com os Africanos, talvez em conse-
quência do esvaziamento das regiões mais perto da costa - como pudemos já
verificar no caso específico da Ensaca de Cassanje -, permitiu reduzir a pressão
africana, que se manteve todavia praticamente intacta na Quissama, por ra-
zões que a historiografia ainda não esclareceu completamente.
Ou seja, os efeitos do tráfico de escravos e a soma de operações militares le-
vadas a cabo pelos Portugueses, eventualmente pelos Holandeses, associados
aos Jagas ou às “guerras pretas”, parece terem permitido eliminar uma fracção
significativa das populações africanas, o que por sua vez autorizou os Euro-
peus a deslocar-se ou a desenvolver as suas instalações comerciais sem ter de
sujeitar-se às exigências das autoridades africanas.
Não há, até ao século XVIII, outras instalações criadas pelos Portugueses,
a não ser algumas feiras, onde o dispositivo militar era cada vez menos impor-
tante, embora não estivesse completamente ausente. As feiras utilizadas pelos
agentes do comércio afro-português eram feiras africanas, integradas nas re-
des comerciais internas, cada vez mais marcadas pela presença destes agentes.
As feiras que irrigavam o interior africanos de mercadorias europeias, estavam
instaladas nas principais estradas do comércio africano entre os rios Dande e
Quanza, em locais onde convergiam os múltiplos caminhos que ligavam re-
giões distantes do interior.

65
Isabel Castro Henriques

MAPA 4 - Expansão da colónia portuguesa de Angola31

A circulação terrestre assim como as travessias dos cursos de água estavam


sujeitas ao pagamento de impostos estipulado pelas autoridades africanas locais.
Nestas feiras, o comércio interno africano desenvolvia-se e articulava-se com o
comércio afro-português. Missangas e pérolas de várias cores e feitios, ao gosto
das populações, conchas e búzios, barras e manilhas de cobre, espelhos e ob-
jectos de vidro, tecidos de cores, desenhos e matérias diversas, instrumentos e
utensílios de ferro destinados ao trabalho artesanal e agrícola e ao uso domésti-
co, tabaco, aguardente, armas de fogo e pólvora, constituíam a panóplia de mer-
cadorias solicitadas pelos Africanos. Algumas vão desempenhar funções sim-
bólicas e económicas importantes, como é o caso de certas conchas (os cauris
provenientes das ilhas Maldivas ), tecidos e barras de metal que adquirem valor
monetário por vezes substituindo ou circulando paralelamente aos produtos

31 RANDLES,1968, p.213.

66
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

africanos utilizados também como moeda de troca como é o caso dos panos de
raphia. A troca fazia-se sobretudo contra escravos e marfim, as produções africa-
nas preferidas pelos Portugueses até ao final do século XVIII, ambas sujeitas até
1834 e 1836, ao regime de monopólio da Coroa portuguesa.
As informações disponíveis relativas aos preços dos escravos são insufi-
cientes, parcelares e frequentemente confusas. Não é possível, no estado ac-
tual do conhecimento estabelecer quadros credíveis nem séries de valores
suficientemente estruturadas. Limitamo-nos, assim, a fornecer o quadro ela-
borado por Adriano Parreira que recorre sobretudo às fontes portuguesas do
século XVII32:

“ESCRAVOS - PREÇOS”
a) Em produtos africanos
b) Em produtos europeus

Mercadorias
b) 1 escravo peça de índia = 8 pintados ( tecido branco com flores ), Ma-
sanga-a-Kaita, 1629
a) 1 escravo = 6 bungo, Masanga-a-Kaita, 1629
a) 1 escravo = 1 banzo de fato ( fardo de mercadorias constituídas por rou-
pas ), 1612
b) 1 escravo = 1/6 de torno de caramelo, 1612
b) 1 escravo = 60 peças de oito em mercadorias, 1641
a) 1 escravo = 1 colar de aboco, 1645-70
a) 1 escravo = 3 kofu de nzimbu, 1645-70
b) 1 escravo = 1/2 almude de vinho, 1646
b) 1 escravo = 0,9 motete ( medida de comprimento; pode também desig-
nar um cesto feito de ramos de palmeira ) de pano, 1648
b) 1 escravo = 5-6 pés e 2 «ponce» de pano inglês

32 PARREIRA, 1990, pp. 88-89.

67
Isabel Castro Henriques

a) 3 escravos = 1 cauda de elefante


a) 1 escravo = 667 pêlos de elefante, 1600

Moedas Europeias
1 escravo moleque = 6 pistoles, Kongo, 1600-1
1 escravo = 21-22 000 rs, Luanda, 1610
1 escravo = 10 000 rs, Ndongo, 1610
1 escravo = 10 ducados, 1630
1 escravo peça de índia = 22 000 rs, Luanda, 1632
1 escravo peça de índia = 22 000 rs, Luanda, 1628
1 escravo = 22 000 rs = 165 florins, 1640
1 escravo = 40 florins, Angola, 1641
1 escravo = 55 florins, Angola, 1641
1 escravo moleque = 13,33 florins, Angola, 1641
1 escravo = 18 000 rs, Masangano, 1646
1 escravo = 25-30 000 rs, 1648
1 escravo peça da índia = 22 000 rs, Luanda, 1656
1 escravo barbado = 16-18 000 rs, Luanda, 1656
1 escravo velho = 14 000 rs, Luanda, 1656
1 escrava velha = 14 000 rs, Luanda, 1656
1 escravo molecão = 18-20 000 rs, Luanda, 1656
1 escrava molecona = 17-19 000 rs, Luanda,1656
1 escravo moleque = 12-16 000 rs, Luanda, 1656
1 escrava moleca = 14-6 000 rs, Luanda, 1656
1 escravo molequete = 12 rs, Luanda, 1656
1 escravo criança = 11 000 rs, Luanda, 1656
1 escravo = 22 000 rs, Luanda, 1661
1 escravo = 2 dobras de ouro, 1645-70
1 escravo moleque = 3 kofu de nzimbu, Kongo, 1645-70
1 escravo moleque = 6 pistoles, Kongo, 1680-1
1 escravo = 4 libras esterlinas, Kongo, 1700

68
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

1 escravo = 8 peças, Kongo, 1700


1 escrava = 8 peças, Kongo, 1700 ”33

Acrescentem-se alguns valores fornecidos por Carreira34: “ Duas crianças


de 4 a 8 anos, contavam como uma peça; três pretinhos de 8 a 15 anos , por 2
peças. Dava-se também desconto à idade. Dos 35 a 40 anos, dois negros valiam
uma peça. Recordemos que, então, estava calculada a duração média de vida
do escravo entre 7 e 10 anos para um labor útil e proveitoso”.
Espaços urbanos, presídios, feiras, eis as três componentes do sistema de
ocupação português em Angola, que tinha em vista substituir a posição hege-
mónica que os Africanos mantiveram até aos finais do século XIX. A eficácia
da gestão portuguesa pode ser medida através da simples consulta dos mapas:
o avanço é lento mas imparável.
No século XIX criam-se novos presídios, depois distritos, mais tarde subs-
tituídos nesta função pelas “povoações comerciais”, o que torna visível a forma
como os colonos vão procurar impor aos Africanos a sua autoridade, os seus
modos de produção e as suas mercadorias.

Os agentes do comércio afro-português e a banalização dos valores europeus

Se a historiografia colonial portuguesa repete incansavelmente os cinco


séculos de colonização portuguesa, este clangor heróico esquece os particula-
rismos das operações coloniais, e elimina a vontade das diferentes nações an-
golanas perante a violência dos apetites coloniais, sobretudo durante o amplo
período do tráfico negreiro.
As dificuldades experimentadas pelos Portugueses não eram inéditas, pois
já vimos que os Europeus tinham sido simplesmente impedidos de se instalar
de maneira duradoira na costa ocidental, seja em território berbere, seja nas re-

33 Ver o significado dos diferentes termos relativos aos escravos na pp. 36 e 37. Ver também PARREIRA, Dicionário Glossográfico e
Toponímico, 1990.
34 CARREIRA, 1983, p.85.

69
Isabel Castro Henriques

giões controladas pelas autoridades africanas, como foi o caso da Senegâmbia.


Para permitir o conhecimento das estruturas africanas, os Portugueses re-
correram aos lançados, isto é, a homens que eram lançados à água; devendo
alcançar a costa a nado, para se instalarem entre as populações locais, de ma-
neira a permitir que a Corte portuguesa e os seus dependentes e associados
pudessem conhecer as estruturas locais. A violência da operação é-nos trans-
mitida na Carta de Pero Vaz de Caminha, de 22 de Abril de 1500, que descreve
as lágrimas dos dois lançados abandonados na costa das terras de Vera Cruz
pelos imperativos do “regimento” que guiava os passos e as decisões de Pedro
Álvares Cabral.
Esta técnica do conhecimento não se mostrou tão perfeita como o tinham
certamente pensado os estrategas portugueses: a maior parte destes homens,
quando os deixavam viver, integrou-se rápida e completamente nos valores
africanos. Esta africanização passou pela renúncia ao vestuário europeu, pela
circuncisão e pela escarificação, assim como pelo casamento africano com
mulheres locais, cuja descendência pertencia ao sogro putativo, que era sem-
pre o chefe político. Foram estes homens que permitiram a emergência dos
tangomaos que parece terem sido Africanos já conhecedores das maneiras de
agir dos Europeus.
Mais tarde, na Costa da Mina, regista-se uma multiplicidade de agentes
africanos, referidos por Pierre Verger35, que organizam as relações comer-
ciais com os vendedores locais. Assim encontramos o Africano que lançava
o bando “abrindo o negócio”, os “negros ladradores” que procuravam cativos,
o “moço-do-chapéu-de-sol” do capitão, o “moço-do-chapéu-de-sol” do escri-
vão, o director do tronco, o aboga, quer dizer uma espécie de burocracia for-
mada por Africanos, ao serviço dos interesses dos negreiros.
Tal se verifica também em Angola, onde o interior está praticamente proi-
bido aos Europeus e até por vezes aos Africanos que com eles se identificavam.
Durante dezenas de anos, os “pretos calçados” não podiam penetrar no sertão,

35 VERGER, 1968.

70
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

proibidos de o fazer pelas autoridades africanas, que os consideravam como


brancos. Os agentes mais precoces deste comércio foram certamente os pom-
beiros, que se mantiveram em actividade durante séculos.
Num plano de violência, os agentes mais eficazes para a angariação de es-
cravos parece sido os Jagas, isto é, grupos formados por Africanos, que adop-
tavam um comportamento “jaga”, caracterizado pela ferocidade e, tal como já
referimos, de acordo com a documentação portuguesa, pela banalização da
antropofagia. Os investigadores têm posto em causa a existência autónoma
dos Jagas, mas a verdade é que estes comportamentos serviram para assegurar
a violência portuguesa, desencadeando guerras que só podiam decompor as
estruturas africanas, permitindo a produção de escravos.
O recrutamento dos associados ou agentes africanos foi essencial para a
estruturação do comércio de escravos. É certo que se tem posto continua-
mente em evidência a importância das guerras, eixo de análise que começa
em Cadornega e vai em linha recta até Pélissier36. A verdade, porém, reside
na singular mas eficaz associação existente entre a guerra e o comércio. As
instalações portuguesas no interior - ou no mato - encontram um duplo nas
próprias organizações africanas, que ou dispõem de forças especializadas, ou
assentam na associação caçador ou agricultor/guerreiro.

36 PÉLISSIER, 1977.

71
Isabel Castro Henriques

MAPA 5 - A Angola “portuguesa” em meados do século XIX37

Aparentemente os primeiros especialistas do comércio costa-interior-cos-


ta, foram os pombeiros, cuja etimologia tem sido sempre discutida. Não pre-
tendo lançar-me nesta análise, que W. Bal38 já esclareceu, embora deixando
ainda em suspenso alguns elementos que merecem análise. Estes pumbeiros ou
pombeiros são inicialmente Africanos, escravos, descalços, embora esta activi-
dade profissional tenha mobilizado mais tarde os mulatos e até brancos. Estes
agentes africanos foram indispensáveis pelo menos enquanto as autoridades
e as populações recusaram aceitar a livre circulação dos brancos, ou até dos
calçados.
Alargou-se depois, mas outros Africanos vieram juntar-se a este primeiro
grupo: os aviados, os ambaquistas, os quimbares, os feirantes ou funantes, os ser-
tanejos, os maculuntos e os quilambas. Se uma parte destes termos encontra a
sua raiz no Kimbundo e no Kikongo, quer dizer que a investigação ainda não
se alargou a este importante segmento das relações entre os Africanos e os

37 PÉLISSIER, 1977, p.63.


38 BAL, Willy, 1965.

72
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

Europeus, que se destina certamente a burocratizar as relações, de maneira a


preservar seja as autoridades, seja as estruturas clânicas de contactos considera-
dos pouco recomendáveis. A multiplicação dos agentes comerciais possui uma
dupla explicação: traduz ela por um lado, o alargamento das zonas que aceitam
participar nas operações comerciais, e que, segundo aspecto da questão, en-
tendem controlar de maneira mais estrita possível as operações levadas a cabo.
A criação destes agentes possui por isso o duplo sentido que se podia pen-
sar: são indispensáveis aos Portugueses e aos Europeus, mas não podem ser
dispensados pelas sociedades africanas, que receiam - e com razão - as altera-
ções que podem provir de uma generalização das regras comerciais europeias.
Receia-se essencialmente a desordem, embora se verifique ser impossível
romper com a banalização dos produtos e das regras que permitem ou im-
põem a sua comercialização. Não se trata, como se pode ver, de uma simples
submissão às regras económicas importadas do exterior, mas sim de uma ten-
tativa, antecipadamente condenada, de resistir à pressão das regras importa-
das da Europa, ou do Brasil.
Esta operação de criação de agentes afro-europeus, parece ter alcançado
o seu posto supremo na criação dos ambaquistas, ou mbaquistas, negros ou
mestiços que aprendem a ler e a escrever e que, por isso mesmo, agradam e
desagradam aos Portugueses. Agradam porque essa escrita permite um rela-
tivo rigor das contas e das operações comerciais; desagradam porque esta es-
crita é frequentemente acusadora, pondo em causa a própria estabilidade das
operações comerciais ou ideológicas. O “espírito ambaquista”, que espera uma
história e uma análise sistemáticas, aparece claramente nas operações cultu-
rais de hoje, como se verifica na prodigiosa invenção de Mestre Tamoda, por
Uanhenga Xitu 39 Esta continuidade angolana, sublinha a importância destes
homens, falsos portugueses, mas autênticos angolanos, que utilizam as técni-
cas ensinadas pelos Portugueses, para reforçar a importância dos valores e das
estratégias angolanas.

39 XITU, Uanhenga, 2001.

73
Isabel Castro Henriques

Até certo ponto, o ambaquista é apenas o antepassado legítimo do calçinhas,


quer dizer do Africano que procura na “aculturação” não uma submissão aos
Portugueses, mas a recuperação das armas e dos símbolos que permitam o re-
forço da oposição: o calçinhas, como o ambaquista, não renunciam à sua condi-
ção de Angolanos, embora não hesitem em recuperar os valores das ideologias
coloniais para as pôr ao serviço do nacionalismo angolano. Treinados na mis-
são de Cahenda, por jesuítas e capuchinhos, estes ambaquistas eram conside-
rados como brancos, como se verifica no caso do pombeiro mulato e escravo
Pedro João Baptista, que os chefes africanos classificaram como branco.
Esta produção de agentes específicos do comércio, recrutados entre os
Africanos, é reforçada pela importância crescente do crédito. Ou seja, não po-
dendo proceder a instalações fixas no interior, ou no mato, ou no sertão, os
comerciantes europeus, seja nas sedes, seja nas filiais ou agências, são força-
dos a conceder crédito a estes comerciantes, os quais penetram ao sertão ou
para trazer homens, ou para conseguir mercadorias preferenciais que, já no
século XVIII, e sobretudo XIX, são o marfim, a cera, e mais tarde a borracha
e a urzela. Trata-se de uma estrutura singular, por não poder funcionar sem a
participação dos Africanos, os quais em muitos casos aparecem “fardados” de
Portugueses. Todavia, a ambiguidade está continuamente presente: vestidos à
europeia, os agentes africanos vivem em casas africanas, e alimentam-se como
os Africanos. Esta fronteira culinária, que pode parecer muito frágil, já fora
contudo registada no século XVI pelo Piloto Português Anónimo que, em São
Tomé, salientava a impossibilidade de os Europeus aceitarem os produtos e
as preparações utilizadas pelos Africanos. Por esta razão, sublinhava então o
Piloto Português, verificava-se a necessidade de importar a alimentação desti-
nada aos Europeus40.
Não quer isto dizer que os Africanos desconhecessem as regras do crédito:
creio até que se trata de uma das operações em que se pode registar a exis-
tência dessa antropologia ingénua de que nos fala tão justamente Paul Mer-

40 PILOTO PORTUGUÊS, (1545),s/d., p. 53.

74
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

cier41. É precisamente por se terem dado conta da importância das operações


de compra e venda a crédito, que os comerciantes portugueses se integram no
espírito e na prática de tais operações que permitem comprar dezenas, cente-
nas, milhares de escravos. As guerras destinadas à produção de escravos, não
podem trazer os escravos para a costa. Semelhante acção, cuja complexidade
não pode ser menosprezada, só pode ser levada a cabo pelos comerciantes
especializados em tais operações, que não podem renunciar à importância do
crédito.
Todas as explicações que, no caso angolano, encaram a guerra como o agen-
te principal capaz de assegurar a “produção” de escravos - quer dizer de antigos
cativos - pecam pelo carácter brutal da explicação. O escravo não é produzido
pelos guerreiros, mas sim pelos comerciantes. A lenta caminhada para o litoral
implica relações entre os captores e os capturados: se esta mercadoria marcha,
ela não pode renunciar ao que conhece, tal como não pode aceitar a violência
sem a passar pelo crivo da sua vontade. Ou seja, a obediência não é um dado
natural, pelo que a submissão do escravo deve ser pensada em termos mais
dinâmicos, menos “naturalmente” passivos. Sendo assim, ter-se-á de proceder
a uma profunda revisão das explicações existentes.
Podemos afirmar, em síntese, que perante o reduzido número de Euro-
peus, reforçado pelo facto de estes brancos estarem proibidos de se instalar
no interior, foi necessário recorrer aos agentes africanos, sendo muitos des-
tes recrutados entre os mestiços, que começaram a multiplicar-se a partir do
momento em que os Portugueses puderam instalar-se na capital do reino do
Congo. Mestiços físicos, reforçados pelos mestiços culturais.
Estes agentes não agem apenas no sentido de assegurar a produção e so-
bretudo a comercialização dos escravos: são agentes da aculturação, introdu-
zindo os valores europeus junto das populações do interior, como é o caso
do crédito. Se é certo que os Europeus não podem furtar-se à necessidade de
africanizar, podemos mostrar que os Africanos acatam um certo número de

41 MERCIER, 1966.

75
Isabel Castro Henriques

valores e de práticas europeias. Não se europeizam, como se pretende, mas


aceitam valores europeus, integram-nos, africanizam-nos.
O mais importante reside por isso na demonstração de que o comércio
negreiro não podia ter sido levado a cabo sem a criação do que podemos de-
signar como sendo a “burocracia do tráfico”, essencialmente formada por Afri-
canos, alguns Mestiços que, na primeira fase, são essencialmente criados pelos
Portugueses. Esta burocracia foi-se alargando à medida que aumentava o rit-
mo do tráfico e só desapareceu quando, após 1850, as autoridades europeias e
americanas conseguiram eliminar o tráfico.

Homens em trânsito: do interior ao litoral angolano

A aprendizagem da escravatura moderna: transporte, armazenamento e con-


trole

Um documento holandês de 1643 sublinha o que lhe parece ser uma das
razões para qualificar os Portugueses como mais eficazes no negócio negreiro:
“além disso, acostumam já os negros na África à vida de escravos para que não
sintam no Novo Mundo o peso do cativeiro”. Este elogio parece perfeitamente
justificado, na medida em que sistema português começou por utilizar as ilhas
atlânticas - sobretudo Santiago de Cabo Verde e São Tomé - como depósito de
escravos, que daí eram remetidos para outros destinos, fosse na costa africana,
fosse na Europa, fosse ainda nas Américas e mais especialmente no Brasil.
A “produção” do escravo obriga, na maior parte dos casos, a alguma pru-
dência, pelo que se multiplicam as técnicas de contenção e de coerção. O
transporte dos escravos recorria ao sistema de caravana e controle, a muitas
técnicas de contenção, como as cordas, as forquilhas, as algemas e sobretudo
os famosos libambos. O termo é de origem angolana (kimbundo, lubambu, cor-
rente de ferro; kikongo, luvambu, corrente) e a sua produção, feita na Europa,
foi também assegurada pelos ferreiros de diferentes nações angolanas, em par-

76
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

ticular na região de Bié, como refere Silva Porto, no século XIX42. Cada libam-
bo ou corrente de ferro prendia os escravos pela mão direita ou pelo pescoço,
uns após outros, com pouco espaço de intervalo, o que tornava a deslocação
extremamente difícil. As mulheres e os homens são presos em libambos sepa-
rados e as “crias”, as crianças que já podem andar marcham livres. Formam-se
assim “comboios” de escravos, cada um levando o seu “carapetal”, isto é, o saco
do farnel, como descreve Luís António de Oliveira Mendes, em 179343. Estas
viagens internas até ao litoral duram meses, os agentes do comércio abaste-
cendo-se nos presídios por onde passam. Mas a dureza destas condições de
viagem fragiliza os escravos: muitos deles chegam já sem forças, espancados
quando recusam andar, e doentes, aos portos do litoral, onde, geralmente, se
mantêm presos pelos libambos até serem vendidos aos comerciantes das gran-
des casas comerciais do litoral. É evidente que os traficantes preferiam que os
escravos aceitassem desde logo a sua nova condição sem protestos evitando a
violência, mas a verdade é que os valores envolvidos na operação aconselha-
vam a prudência.
O homem ainda há pouco livre, acentua a sua nova condição de escravo à
medida que vai sendo afastado da sua região de origem, isto é, da sua condição
nacional, o que elimina as relações de parentesco, nas quais estava integrado
e que determinavam a sua vida. O escravo é pois aquele que é rápida e bru-
talmente afastado da sua nação, da sua ecologia, dos seus espíritos e sobre-
tudo do seu parentesco. Esta nova condição aprende-se todos os dias, sendo
o escravo obrigado, sob pena de morte, a aprender as novas regras, as novas
línguas e até as novas religiões. Ao longo do percurso, do interior até à costa,
o escravo é por vezes armazenado temporariamente nos presídios. Na primei-
ra fase da sua instalação em África, e esta prática manteve-se durante muito
tempo, os negreiros portugueses depositavam nas ilhas atlânticas os escravos,
onde ficavam instalados durante largos meses e até anos. Se estas operações
contribuíram poderosamente para a africanização das ilhas, criaram uma si-

42 PORTO, Silva,1986, p 230.


43 MENDES, L. A. de Oliveira, (1793), 1977, p. 45.

77
Isabel Castro Henriques

tuação nova de homens em trânsito, que a partir dos primeiros anos do século
XVI serão preferencialmente exportados para as Américas e, no caso portu-
guês, para o Brasil.
Esta operação era essencial: os escravos tomavam contacto com a língua
portuguesa, eram vestidos com as roupas portuguesas ou europeias, sendo al-
gumas vezes obrigados a praticar actividades completamente desconhecidas
ou que não lhes competiam nas sociedades de origem: é o caso da agricultura,
por exemplo, actividade essencialmente feminina.
Tal é o sentido desta operação, que ensina ao homem livre a sua condição
de homem-mercadoria, ou homem-objecto, situação que não ocorre sem re-
voltas. Se bem que alguns estudos queiram insistir na importância da resistên-
cia, quer activa quer passiva, a verdade é que os Africanos procuraram sobre-
tudo sobreviver e inventar, sempre que tal lhes foi possível, formas culturais e
até políticas próprias. As línguas crioulas, que os filólogos alemães do século
XIX, consideraram formas degeneradas das línguas europeias, são invenções
destinadas a assegurar a autonomia linguística de populações obrigadas a re-
nunciar à língua materna.
Quer dizer que não há praticamente nunca uma aceitação global dos valo-
res do colonizador: os escravos não são uma casca vazia, à qual se pode impor
o que o proprietário mais deseja. Podemos até dizer que essa denúncia, esse
combate contra os valores da escravatura, continua como mostram os protes-
tos dos Norte-Americanos ou dos Brasileiros contra as condições que lhes são
impostas por sociedades que exaltam apenas os valores mais brancos que pos-
suem. É nessas condições, e dentro desses limites, que podemos compreender
a importância da aprendizagem.
É certo estarmos perante uma situação ambígua: o escravo que aprende,
sobrevive, mas a sua sobrevivência implica uma alteração das suas próprias
regras. Não podemos contudo duvidar que a tarefa essencial seja a de sobre-
vivência, única via para a recomposição das células africanas dilaceradas pela
violência do tráfico, e depois pela redução permanente, vitalícia, à condição
de escravo. Para os proprietários, a aprendizagem é uma condição indispensá-

78
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

vel, e ela foi completada pela integração dos escravos em actividades normais
de produção: como, por exemplo, a integração nas tripulações dos barcos,
incluindo nos negreiros. Como nas sociedades mediterrânicas, os senhores
recorrem às especializações dos escravos, mas não hesitam em lhes ensinar
novas profissões.
Se no interior, o armazenamento dos escravos se fazia nas fortalezas e/ou
nos presídios que dispunham de espaços fechados para o efeito, nas cidades
do litoral onde os escravos eram vendidos e aguardavam o embarque, a logísti-
ca do escravo apresentava diversas modalidades: pátios abertos de altos muros
e com ou sem telheiros para se abrigarem, espaços fechados - armazéns térreos
sem quaisquer condições -, escravos em aparente liberdade aprendendo a ser
escravo do senhor branco. As rações alimentares continuavam a ser escassas,
permaneciam sem vestuário e iam “em pelotões, a que chamam lotes, lavar-se
ao mar”44 .
São ainda hoje conhecidos os “quintalões” de Benguela, quer dizer espaços
fechados, atinentes à casa do comerciante ou do exportador, no qual eram
concentrados os escravos destinados à exportação. As zonas costeiras multi-
plicaram por isso os mercados - que em alguns casos são as “feiras” -, assim
como as forças militares que deviam proteger os comerciantes e impedir a vio-
lência sempre possível, sempre receada, dos escravos.
Estes quintalões e instalações aparentadas servem para treinar os escravos:
habituação à condição de agrilhoado, pois muitos destes homens, ainda ontem
livres e até chefes, viviam muito mal a situação de dependência. Pode contudo
afirmar-se que as técnicas de domesticação dos Europeus conseguiram impor-
-se, permitindo a exportação contínua de centenas de milhar de homens, que
foram trabalhar e produzir - e reproduzir-se - sobretudo nas Américas. Não
conhecemos todas as técnicas utilizadas, que não devem ter posto de lado a
violência, como se vê nos instrumentos de contenção e de tortura banalizados
tanto nos Estados Unidos como no Brasil.

44 MENDES, L. A. Oliveira, (1793),1977, p.47.

79
Isabel Castro Henriques

A táctica africana contra a escravatura foi, em Angola, a deserção: os gru-


pos ameaçados não hesitam em abandonar as aldeias, as florestas, as lavras,
para procurar abrigo algures, onde pudessem estar a salvo da ameaça. A fuga
foi outra constante, como se podia verificar nos casos em que os “serviçais
contratados”, destinados a ser enviadas para as plantações de cacau e café
santomenses, preferiam afrontar o espaço e a penúria, para regressar à sen-
zala e à família. Foi de resto esta a táctica utilizada nas Américas, mas sobre-
tudo no Brasil onde os quilombos repetem as estruturas aldeãs-militares dos
Angolanos.

MAPA 6 . As direcções das fugas dos escravos no século XVII 45

Nestas condições, regista-se a necessidade de proceder ao treino dos escra-


vos, partindo do princípio de que a escravatura se torna mais irremediável e
mais eficaz quando o escravo fica longe do seu grupo. Tal foi a táctica utilizada
pelos escravocratas, quer europeus quer africanos, para assegurar a produção
contínua de escravos.

45 HEINTZE, Beatrix, 2007.

80
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

Todavia o tráfico negreiro modificou as estratégias africanas, em todos os


comportamentos: os comerciantes de escravos são frequentemente utilizados
para resolver as querelas internas das sociedades africanas, embora não seja
essa a sua função principal.
Brant Pontes contou a história do escravo Domingos, que entrementes se
transformara em marinheiro competente ao serviço do seu senhor, e que fora
roubado por um homem na aldeia de Quissuca-Quialanda, onde existiam sete
imbondeiros, árvore preciosa por servir de depósito de água46.
Após ter percorrido os caminhos do interior durante três luas (84 dias),
este jovem escravo foi vendido perto de Novo Redondo, tendo sido embar-
cado para o Brasil. Em 1782, encontrou o seu raptor numa galé do Rio de Ja-
neiro: seu pai obtivera autorização do soba para perseguir este raptor, tendo-o
capturado com mais cinco pessoas.
O texto não esclarece se se tratava de parentes ou de moradores da mesma
aldeia, embora se possa pensar que tal era o caso. O pai de Domingos retivera
para si, dois desses homens, tendo vendido os quatro restantes a um comer-
ciante de Benguela, que os remeteu para o Brasil.
No Brasil, o grupo desfizera-se: o raptor de Domingos ficara no Rio de
Janeiro, nas galés, ao passo que os três outros tinham sido remetidos para dife-
rentes destinos. Assim o raptor e o raptado encontram-se uma vez mais no Rio
de Janeiro, reconstituindo a história das suas relações angolanas.
Esta história é certamente muito significativa, na medida em que se verifica
que a organização social angolana se estrutura em função não só do tráfico
negreiro, mas da própria relação com o Brasil. Domingos, que circula entre
as duas costas, serve de laço entre as duas culturas, e permite compreender a
maneira como o tráfico negreiro intervem na vida de cada Angolano.
A técnica do rapto, que não passa de uma simples variante da razia, modifi-
ca radicalmente a vida do capturado, mas provoca ecos ainda mais profundos,
pois mobiliza a cólera da família e modifica também a vida do raptor. Todos se

46 PONTES, Brant, (1800), in Felner, 1940.

81
Isabel Castro Henriques

vão encontrar na outra margem do Atlântico, ao serviço de patrões brasileiros,


definitivamente afastados das suas vidas angolanas.
Nestas condições podemos verificar que a ameaça dos traficantes e dos
seus agentes, se estendia sobre todos os territórios do interior, pois qualquer
pessoa se podia transformar em agente do comércio de escravos, tal como cada
angolano podia ser vítima dos apetites dos vizinhos. Não seria difícil avançar
a hipótese de um corte horizontal no comportamento das sociedades, antes e
depois da banalização do tráfico.
Os Europeus fornecem a chave do sistema, pois são eles que armam os na-
vios, pagam os escravos que lhes são oferecidos, são eles ainda que fornecem
trabalho aos Angolanos que foram capturados e vendidos pelos seus compa-
triotas. De resto, a livre circulação dos escravos no interior de Angola, subli-
nha a existência de uma norma social, que autoriza as operações de captura e
de venda.

A "construção" dos escravos: escolhas e marcas

A transformação dos homens africanos em escravos destinados às tarefas


americanas passa por uma série de operações, que procuram não só transfor-
má-los na mercadoria solicitada nas Américas, como também desligá-los da
sua própria origem. Não basta ser escravo: tal como qualquer outra mercado-
ria, esta deve também apresentar as características procuradas pelo comprador.
É da maior utilidade proceder à organização de uma “antropologia do trá-
fico” 47, que de resto poderia confortar um segundo estudo tendo como objec-
tivo a “antropologia da escravatura”, tanto entre os próprios Africanos, como
entre os Europeus. É Henrique de Carvalho que, sempre atento, descreve as
caravanas de comerciantes africanos, que procuram encontrar mercado para
algumas jovens luenas, muito estimadas na região, e que devem obter um pre-
ço elevado no mercado.

47 Formulação de Claude MEILLASSOUX, 1986.

82
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

Quer dizer que os comerciantes procuravam as zonas onde o abastecimento


era mais certo e mais rápido, sem esquecer contudo as qualidades ou defeitos
reconhecidas. Uma grande parte das regiões costeiras forneciam escravos pou-
co estimados nas Américas, sobretudo quando se tratava de homens repontões,
pouco dispostos a aceitar a disciplina da plantação, ou das actividades urbanas.
Os corpos africanos são portadores de “informações”, tal como as línguas
faladas servem de indicador. As tatuagens e as escarificações funcionam como
autênticos bilhetes de identidade, informando não só quanto à origem do su-
jeito, mas fornecendo as informações complementares quanto à iniciação, ou
antes às iniciações. Por sua vez, havia na sociedade brasileira, e certamente a
situação caracterizava todos os lugares que recebiam escravos, uma espécie de
catálogo das tatuagens e das escarificações que identificava as origens, assim
como a situação hierárquica. “São os Pretos de África sadios, fortes, robustos
e de um boa compleição (...). Entre outras demonstrações, a que mais por ora
nos desengana e nos convence, vem a ser; que eles na sua menoridade, e ainda
já adultos, fazem pôr por enfeite, e sinal em as suas faces muitos lanhos (...) Es-
ses ditos lanhos não só têm por fim o enfeite que eles presumem; mas também
são indicativos da família, do Reino, do Presídio, e do lugar onde nasceram, e
são moradores; como por exemplo, de Ambaca, Ginga, Caçancha, Gólo, Da-
landula, Chicamba, Mixicongo, Congo & Ca.”48
Se estas marcas africanas referidas por Oliveira Mendes não podiam - nem
deviam por serem informadoras - ser eliminadas, elas eram o símbolo da carga
diabólica atribuída aos Africanos. Para poderem integrar o espaço branco e di-
vino, estes homens deviam ser escravizados e sujeitos a rituais purificadores. A
sua coabitação com a humanidade só era possível através do sofrimento. Aliás,
o sofrimento como meio de impôr uma religião e alcançar o reino de Deus, foi
banalizado na iconografia cristã - católica sobretudo -, que põe em evidência
os vários tormentos inflingidos aos cristãos durante o proselitismo, antes que o
cristianismo se transformasse na religião dos Reis e do Estado. O sacrifício é en-

48 MENDES, L. A. Oliveira, (1793), 1977, pp. 28-29.

83
Isabel Castro Henriques

carado como um meio de prestar a homenagem mais extrema a Deus e muitos


missionários partiam para os diferentes continentes, com a esperança confessa-
da de sofrerem o martírio, tornando-se assim iguais aos santos fundadores.
É nestas condições que se processa a escravatura: os Africanos capturados
são transformados em escravos, como o são também aqueles que, sendo já
escravos africanos, são comprados para se tornarem escravos dos Europeus.
Com os corpos remarcados, arrancados ao seu território, ao seu grupo, ao seu
continente, são remetidos para uma zona de inferioridade absoluta. Sem fa-
mília, sem deuses, deixam de pertencer ao espaço “diabólico” africano, para
se tornarem coisas do espaço considerado humanizado, o espaço da violência
colonial. As torturas que lhes são infligidas servirão para compensar a violên-
cia que a sua simples existência maculadora exerce contra os homens, os cris-
tãos, contra o espaço da divindade.
É por esta via que se pode explicar a função da violência exercida contra os
escravos africanos, que se integra numa concepção religiosa que, por um lado
recorre ao sacrifício, e pelo outro considera a violência física exercida pelos
sacrificadores como normal, quando não indispensável.
A primeira operação é pois modificar o corpo: os Africanos circuncisos,
tatuados ou escarificados são violentamente arrancados ao seu quadro civili-
zacional com as marcas a fogo que inscrevem na sua pele o nome do proprie-
tário, isto é, “sofrem o sinal privativo do Sertanejo, que os leva na escravidão,
para serem conhecidos e achados, no caso de fuga. (...) Chegando ao Porto
Marítimo, onde hão-de ser embarcados, aí tornam a ser marcados no peito
direito com as Armas do Rei e da Nação, de quem ficam sendo vassalos... cujo
sinal a fogo lhes é posto com um instrumento de prata no acto de pagar os
Direitos: e a esta marca lhe chamam Carimbo de mais outra marca ou carim-
bo, que a fogo também lhes manda pôr o privativo senhor deles, debaixo de
cujo nome, e negociação eles são transportados para o Brasil; a qual lhes é
posta, ou no peito esquerdo, ou no braço“49. A sua própria topografia física

49 MENDES, o.c., p.29.

84
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

era assim profundamente alterada. O homem africano perde a relação com


o seu grupo, para ser transferido para o grupo dos dominados em via de ani-
malização. Com efeito, as marcas anteriores - circuncisão, tatuagem, escari-
ficação, modificações dentárias, penteados - não faziam mais do que tornar
visível e lisível o laço com as suas estruturas sociais. A marca a fogo purificador
age como uma borracha que apaga o que existia, considerando-o nulo, para
colocar o acento tónico na marca nova que indica a situação inédita daquele
que era Africano livre: escravo dos Brancos, destinado primeiro ao comércio
negreiro e confiado depois aos plantadores americanos. O facto de os gestores
do comércio negreiro terem imposto em determinado momento o baptismo
como mecanismo integrador do escravo africano, é nitidamente insuficiente,
pois que só as marcas físicas podem assegurar a importância da transferência.
Só a lisibilidade da marca do fogo no corpo nu - tal como nos animais - impede
a dissimulação.
Trata-se da primeira grande operação de “barroquização” do corpo do es-
cravo. Portador de um nódulo de fogo, o escravo está condenado a não poder
circular livremente na sociedade dos Brancos. Perde a sua autonomia indivi-
dual para se transformar em mercadoria, em coisa denunciada pela sua marca.
Os corpos dos escravos começam pois a ser modelados para a América nos
espaços africanos. Em Luanda, os corpos modelados dos escravos à espera do
embarque para o Brasil associavam as marcas do fogo e dos chicotes ao rigor
dos libambos, das algemas, das peias, dos machos, das calcetas, dos grilhões, das
gargalheiras, das golilhas, das máscaras. Toda uma panóplia de instrumentos de
contenção que tinham como objectivo restringir os movimentos das mãos e dos
pés dos escravos e que, no Brasil, atingiram o ponto máximo de sofisticação.
A “antropologia do tráfico” não se destina por isso a autorizar a diferença,
mas, como era corrente nas práticas para-antropológicas, a identificar a dife-
rença negativa. O mais importante residia na liquidação da diferença, para
obrigar o escravo a acatar os valores da sociedade esclavagista, de maneira a
saber “estar no seu lugar” e a transformar-se num “preto de alma branca”.

85
Isabel Castro Henriques

Inventário de Escravos de 1738

Este documento datado de Abril de 1738, publicado por Miller, de que re-
produzimos aqui a primeira de quatro páginas que o compõem e que transcre-
vemos integralmente, procede ao inventário dos escravos enviados de Benguela
para Luanda. Trata-se dos “quintos devidos a Vossa Majestade”, isto é, de um
escravo em cada cinco, que cabiam ao Rei, em consequência da “guerra feita” aos
chefes africanos da região de Benguela e do presídio de Caconda. Este primei-
ro elemento salienta a importância das operações militares organizadas pelos
Portugueses, assim como a parte que cabe sempre à Coroa, e que o documento
avalia segundo as cotações do mercado exportador. O inventário leva em conta
as classes de idade, assim como as condições físicas dos escravos: repare-se no
número de crianças agonizantes, que não possuem o menor valor comercial.50

50 MILLER, 1988, p.II. Documento de 29 de Abril de 1738, A.H.U., ANGOLA, CX. 30.

86
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

«Avaliação das cabeças que chegaram de Benguela em ... de Abril de 1738

NEGROS
Sunba 4$000
Cabeto 20$000
Camumo 6$000
Caputto mulequinho 1$000
Caita 25$000
Quitte 5$000
com uma bebida (2)
Quipallaca 6$000
no olho direito
67$000

Sunba 5$000
Mle. pelo da terra (1)
Bindando 4$000
Cangullo mulequinho (3) $500
Gallo 4$000
Cahiuca 6$000
86$500

e barbado (4) com uma ferida


Suba 3$000
na perna esquerda
Canhungo 8$000
Quellengue 8$000
125$500

87
Isabel Castro Henriques

MULECONAS (5)

Quepigi 16$000
Calhoca $000
Quicoco 6$000
Zumba 12$000
Matunbo 8$000
Catunbo 14$000
Ussoa 5$000
Catunbo 10$000
Cayeco 9$000
Quicunbo 12$000
Ussoa 3$000
Mª pelo da terra (1) 224$500

Catua 3$000

aleijada no joelho esquerdo


Muco $500
com uma queimadura de fogo

Iaballa 3$000
Catumbo 9$000
Candunbo 5$000
Ussôa 6$000
Ussôa 12$000
263$000

NEGRAS E CRIAS
com cria por nome Cambia e mostra
Mama 6$000
estar morrendo
Bissoa com cria por nome Bivalla de pé (6) 8$000
sem cria por estar já avaliada no título
Mª pelo da terra (1) Camia 3$000
dos machos com o nome de Cangullo
Biabo com cria Catunba 7$000
com cria Caceyo, mostra esta cria estar
Banba 4$000
morrendo

88
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

Tembo com cria Cabeto 8$000


com cria de pé Ligongo(6)que mostra
Camia 4$000
estar morrendo
Tundo 3$000
Quimano sem cria por dizer morrera no caminho 3$000
com cria de peito quase morta por
Banba 3$000
nome Sonbi
Canengo sem cria por dizer morrera no caminho 1$000
Nangonbe 6$000
Oongo 5$000
324$000

digo Marongo aleijada em um dedo do


Mª pelo da terra (1) Lundo 3$000
pé eaquerdo
aleijada digo com chagas em ambas as
Nhâma $500
pernas
Camia 5$000
Cahunda sem cria por dizer morrera no mato 5$000
Sungo mulequinha 1$000
Sungo muleca 2$000
Ullunga 6$000
Catana muleca 4$000
Ussoa 2$000
Eraô 1$000
Tembo mulecona 12$000
365$500

Uma cria a quem se não saber o nome pelo não dizer por estar morrendo,
e um macho sem valor.
E uma mulequinha Callenbo sem valor por estar morrendo.
E uma mulequinha Catunbe sem valor por estar morrendo.

68 cabeças (7) 901$000


E como as ditas cabeças acima nomeadas foram avaliadas pelos avaliadores

89
Isabel Castro Henriques

que assinaram esta avaliação (*)»51

As incertezas da demografia do tráfico negreiro

Têm-se multiplicado os cálculos - apoiados nos documentos disponíveis,


que são, em relação aos três primeiros séculos, bastante reduzidos - para calcu-
lar o número de escravos exportados para as diferentes partes do mundo, devi-
do à existência de mercados e de negociantes negreiros, cristãos, muçulmanos
ou hindus. Trata-se de uma investigação altamente polémica, na medida em
que alguns historiadores, arrastados por interesses patrióticos pouco aceitá-
veis, tendem a reduzir - ou a aumentar - o número de escravos provocados pela
intervenção do tráfico negreiro europeu e americano.
Como os documentos não parecem muito fiáveis, procura-se compensar a sua
pouca consistência multiplicando - operação corrente nos últimos anos - a “retro-
-história”. Esta técnica é completada por uma segunda; que pretende sobretudo ler
o não dito, o não escrito dos documentos, o que talvez seja possível quando se trata
de ideias, mas já parece impossível quando se trata de proceder a cálculos exactos,
o que não se pode fazer sem fontes escritas indiscutíveis e numerosas.
Se bem que se tenham registado grandes progressos no que se refere ao
conhecimento da evolução demográfica das várias nações que formam hoje o
Estado angolano, a demografia do tráfico mantém-se no campo da incerteza.

* Assinaturas ilegíveis.
51 Notas do documento:
1) Esta expressão “ Mle. pelo da terra ” (masculino) e “ Mª pelo da terra ” (feminino) significa “Moleque ou Muleque ou Moleca
ou Muleca (escravo ou escrava) proveniente da terra ”, isto é, do território de um chefe (soba) ao qual pertencia o indivíduo escra-
vizado. Sendo assim, o nome referido é o do Soba e não do escravo ou escrava, excepto no que se refere às crias que acompanham
sempre as mães.O termo moleque e seus derivados, que fazia parte do vocabulário normal da colonização, reflecte a importância da
participação africana nas operações do tráfico. Escravizar diz-se em quimbundo kubangesa muleke (António da Silva Maia, Lições
de gramática quimbundo, e.a., Cucujães, 1964 (2ª edição). Nas formas modernas, em bundu e em kikongo, moleké significa rapaz
e moleka rapariga (Solano Constâncio, Dicionário, Paris, 1852). O termo, salienta o dicionarista “ foi introduzido no Brasil pelos
negros ” e aparece também como sinónimo de “negrinho”. A complexidade das relações criadas pela escravatura e pelo tráfico
negreiro não podiam deixar de aparecer na complexa trama linguística onde se associam o português e as línguas africanas.
2) Belida é uma mancha branca que se forma na córnea do olho e turva a vista; névoa (Dicionário de Moraes, 10ª edição).
3) Mulequinho/a ou molequinho/a designação dadas às crianças-escravas dos 4 aos 8 anos.
4) Barbado: designação destinada a classificar o escravo. Segundo Parreira (1990) “O escravo barbado tinha menos valor do que
o escravo classificado “Peça de Índia”, e mais valor do que um escravo classificado de moleque ”. Para Parreira (1990) trata-se de
“um adolescente com barba bem formada ... já homem”.
5) Mulecona ou Molecona, mulecão ou molecão, designa as/os escravas/os entre os 8 e os 15 anos de idade (Parreira,1990)
6) Cria de pé, criança que anda, geralmente até 4 palmos de altura (4 anos aproximadamente).
7) Cabeça, termo genérico - tal como peça - para designar todos os escravos com mais de 4 palmos.

90
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

Estamos perante a necessidade de definir duas séries demográficas, a pri-


meira reportando-se ao volume global dos escravos africanos transferidos pe-
los negreiros para outras regiões e continentes, a segunda dizendo respeito
a Angola e às suas diferentes nações. Registam-se incertezas nos dois casos,
embora no primeiro dispunhamos de cálculos organizados a partir da segun-
da metade do século XIX, quando o tráfico parecia completamente abolido.
O quadro que se segue põe em evidência a extrema variação das estimativas
fornecidas pelos vários autores que estudaram a questão52 :

Autores Estimativas
E. D. Dunbar (1861) 13 887 500
O. Martins (1880) 20 000 000
W.E.B du Bois (1915) 15 000 000
R.R. Kuczynski (1936) 14 650 000
N. Deer (1949) 111 970000
Ph.D. Curtin (1969) 9 566 100
J.J Ajayi e J.E. Inikori (1978) 15 400 000
Lovejoy (1983) 11 698 000
C. Coquery-Vidrovitch (1985) 11 698 000

Nenhum destes cálculos mereceu jamais a plena aprovação da comunida-


de científica, que tem multiplicado as críticas. Todavia, em relação à nossa
modernidade, o eixo da discussão foi restabelecido por Ph. D. Curtin, um in-
vestigador norte-americano que se mostrou incapaz de resistir ao peso da sua
própria nacionalidade e do complexo de culpa experimentado por uma parte
substancial da sociedade norte-americana perante este problema. Talvez por
essas razões, Curtin procurou definir a situação demográfica com algum rigor,
tendo fornecido à crítica histórica e sobretudo demográfica um documento
singularmente revelador 53.

52 DAGET, 1990, p.171.


53 CURTIN, 1969.

91
Isabel Castro Henriques

José C. Curto, que se tem empenhado em analisar as condições da evolução


da demografia angolana, diz muito justamente que “os números (de Curtin ),
são números atlânticos, não africanos”54. Mau grado esse compromisso, encon-
tramos a evidência: a África foi esvaziada para contribuir para a transformação
das Américas. Se Angola não contribuiu muito para aumentar o número de es-
cravos na América do Norte, já encontramos Angolanos nas Caraíbas e sobre-
tudo na América do Sul. Se o Brasil não foi criado apenas pelos Angolanos, uma
parte substancial das suas estruturas depende inteiramente desse oceano de ho-
mens e de mulheres, arrancados às suas nações e aos seus hábitos.
Publicado em 1944, o estudo que Edmundo Correia Lopes consagrou à
escravatura em geral, e à escravatura portuguesa em particular, fornece, no que
diz respeito a Angola, os números que parecem mais credíveis, sabendo-se
embora que terão de ser revistos 55. António de Oliveira de Cadornega quis, ao
proceder ao inventário das guerras angolanas, dispôr de uma informação de-
mográfica consagrada do tráfico negreiro. Sugere ele que até ao ano de 1680,
e começando pois em 1485, o número de escravos exportados oscilava entre
800 000 e 1 milhão. Este número impressionante foi levemente corrigido por
Edmundo Correia Lopes (1944), que depois desta correcção para mais, pro-
cura inventariar a situação:

Escravos saídos pelos portos de Luanda e Benguela


Até 1680 1 500 000
Até 1758 897 000
Até 1803 642 000
Até 1836 600 000
total 3 639 000

Pode pensar-se que estes números pecam por defeito, mas fornecem já
uma indicação significativa, a que devemos acrescentar o número dos escravos

54 CURTO, José, 1993-1994.


55 LOPES, Edmundo Correia, 1944, p. 103.

92
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

exportados de contrabando, para escapar aos impostos, ou para se furtar aos


controles marítimos. Também não dispomos de informações precisas para
calcular o número de escravos exportados após 1836 até 13 de Maio de 1888
(data da abolição da escravatura no Brasil). Tal como parece difícil proceder a
um cálculo exacto das dezenas de milhar de escravos angolanos exigidos pela
economia capitalista de São Tomé e Príncipe.
Joaquim José Monteiro calculava o contrabando anual angolano em 100
000 escravos, incluindo a região congolesa ao norte e Benguela ao centro-sul.
Esta proposta não é contestada por Edmundo Correia Lopes, que tempera até
os cálculos, ao sublinhar que esta exportação era assegurada pelos Portugue-
ses, certo, mas associados aos Espanhóis e aos Franceses.
Joseph C. Miller desenhou um gráfico baseado na longa duração do tráfico
que permite ver o irresistível crescimento desta actividade predadora, que só
começa a diminuir a partir da década 1820-1830.
A leitura do gráfico deve fazer-se - uma vez mais - tendo em conta que se
trata apenas dos números fornecidos pelo comércio legal, que não contabili-
zam por isso o contrabando. A queda dos anos 1820-1830 é menor, e o tráfico
não se extingue da maneira abrupta e definitiva que o gráfico parece descrever.

MAPA 7 - Gráfico dos escravos exportados anualmente56

56 MILLER,1988, p.233.

93
Isabel Castro Henriques

Já o quadro proposto por Klein permite-nos dispôr de estimativas relativas


às exportações de escravos angolanos no século XVIII, procedendo à compa-
ração com as estimativas de Curtin 57

Décadas Luanda Benguela Total: Angola Estimativas de Curtin

1701-1710 ... ... ... 70


1711-1720 58,841 ... ... 55,3
1721-1730 73,488 ... ... 67,1
1731-1740 98,632 17,035 115,667 109,3
1741-1750 106,575 12,796 119,371 130,1
1751-1760 107,697 23,709 131,406 130,1
1761-1770 82,842 49,465 132,307 123,5
1771-1780 97,533 54,732 152,265 131,5
1781-1790 104,429 64,106 168,535 153,9
1791-1800 103,616 74,908 178,524 168

R. Wätjen avança a hipótese de, entre 1807 e 1947, se ter verificado a trans-
ferência de mais de cinco milhões de Africanos para as Américas: a parte an-
golana seria de 300 000 pessoas.
Recorremos mais uma vez ao trabalho do demógrafo canadiano José C.
Curto, por ser, no que se refere ao tráfico negreiro angolano, aquele que nos
permite concentrar a totalidade de informação disponível, sem nos esconder
as vastas zonas de incerteza que ainda dominam esta zona da história. José
Curto procura, nos quadros que se seguem, sintetizar o conhecimento relati-
vo às exportações de Benguela durante cerca de 50 anos - 1730-1828 -, apre-
sentando em 2 séries os números propostos pelos diferentes autores que têm
trabalhado a questão 58.

57 KLEIN, 1978, p.27.


58 CURTO 1993-1994, pp.112-115. Estes quadros - 1ª e 2ª série -, remetem para as seguintes fontes:
David Birmingham, Trade and Conflict in Angola: The Mbundu and Their Neighbours Under the Influence of the Portuguese,1843-1790.
Oxford, 1966, pp. 154-155; Herbert S. Klein (a), “ The Portuguese Slave Trade from Angola in the Eighteenth Century ” Journal of
Economic History. Vol. XXXII, 1972, p.918 e (b) idem, “ The Portuguese Slave Trade from Angola in the 18th Century ” in Herbert
S. Klein, The Middle Passage: Comparative Studies in the Atlantic Slave Trade. Princeton. 1978, pp. 255-256; Maurício Goulart, A
Escravidão Africana no Brasil. São Paulo, 1950, pp.206; Edmundo C. Lopes, A Escravatura: Subsídios para a sua História. Lisboa,
1944, p.103.

94
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

1ª Série Curto Birmingham Klein(a) Klein(b) Goulart


1730 2,035
1731
1732
1733
1734
1735
1736
1737
1738 1,793 1,793 1,793
1739
1740 898 898
1741 774 774
1742 898
1743
1744 1,311 1,295 1,295
1745
1746
1747 963 963 963
1748 328 328 328
1749 916 916 916
1750 1,704 1,704 1,704
1751 1,378 1,378 1,378
1752 1,921 1,921 1,921
1753 2,819 2,819 2,819
1754 2,787 2,787 2,787 2,787
1755 2,196 2,137 2,137 2,137
1756 2,541 2,541 2,541 2,541
1757 1,461 1,461 1,461 1,461
1758 2,419 2,419 2,419 2,419
1759 3,412 3,192 3,192 3,192 3,412
1760 2,507 2,506 2,506 2,507
1761 3,94 3,889 3,889 3,907
1762 4,18 3,924 4,18 4,18 4,144
1763 3,445 3,423 3,445 3,445 3,428
1764 3,867 3,821 3,867 3,867 3,827
1765 6,183 6,183 6,183 6,183 6,103
1766 5,16 5,16 5,16 5,16 5,095
1767 6,635 6,584 6,635 6,635 6,595
1768 5,658 5,643 5,643 5,658 5,658
1769 5,598 5,531 5,598 5,598 5,546
1770 4,733 4,726 4,726 4,733 4,733
1771 5,293 5,276 5,293 5,293 5,293
1772 5,021 5,021 5,021 5,021 5,021
1773 5,367 5,363 5,363 5,367 5,367
1774 4,328 4,321 4,321 4,328 4,328
1775 5,739 5,739 5,739 5,739 5,739

95
Isabel Castro Henriques

2ª Série Curto Klein(a) Klein(b) Goulart


1776 5,983 5,983 5,983
1777 3,967 3,967 3,967
1778 5,51 5,51 5,51
1779 7,072 7,069 7,069
1780 6,455 6,455 6,455
1781 6,488 6,488 6,488
1782 6,437 6,437 6,437
1783 6,436 6,302 6,302
1784 7,832 7,832 7,832 3,055
1785 6,192 6,192 6,192
1786 5,508 5,508 5,508
1787 7,215 7,026 7,026
1788 6,211 6,131 6,131
1789 6,157 6,04 6,04
1790 6,243 6,15 6,15
1791 6,499 6,339 6,339
1792 10,867 8,915 8,915
1793 11,668 11,179 11,179
1794 9,973 9,493 9,493
1795 10,399 8,594 8,594
1796 8,115 8,115 7,899 7,899
1797 7,075 6,062 6,062
1798 6,654 5,61 5,428 5,428
1799 3,942 3,942 3,942
1800 7,065 7,065 7,065
1801 6,942
1802 8,687 Lopes
1803 5,639
1804 7,35 7,35
1805 5,706 5,36
1806 5,902 5,296
1807 4,963 4,963
1808 4,828 4,828
1809 5,325 5,129
1810 5,463 5,511
1811 4,97 4,855
1812 5,015 4,345
1813 4,64 4,404
1814 4,504 4,504
1815 3,776 3,576
1816 4,868 4,868
1817 3,48 3,48
1818 3,547
1819 4,867 4,243
1820 3,36 3,36
1821
1822
1823
1824
1825 4,408 4,408
1826
1827
1828 4,808 4,692

96
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

O gráfico consagrado por Curto à exportação de Benguela permite verifi-


car que o pico da exportação foi alcançado entre 1790 e 1800, tendo-se toda-
via mantido bastante elevado até 1830.

MAPA 8 - Gráfico da exportação de escravos a partir de Benguela59.

O inventário comparatista deste autor, autoriza a leitura de construção


desta história e sublinha a violência do tráfico negreiro, ano após ano. O rigor
do historiador assenta na necessidade de dar a ler, de dar a ver o carácter san-
grento destas operações comerciais, destinadas ao lucro: lucro dos captores,
lucro dos vendedores, lucro dos transportadores, lucro dos utilizadores e até
lucro dos enterradores.
José C. Curto mostra, nesta série demográfica, que o Atlântico Sul viveu do
sangue dos escravos africanos.
As consequências destas operações são naturalmente inversas, em relação
ao Brasil e Angola. O Brasil pode desenvolver a sua economia industrial, pois

59 CURTO, o.c., p.115.

97
Isabel Castro Henriques

que os escravos permitiram o alargamento da cultura de cana de açúcar e a


produção de açúcar, ao passo que o comércio negreiro em Angola permitiu
aos Brasileiros uma produção considerável de aguardente de cana, a famosa
geribita ou cachaça, assim como o tabaco cuja cultura iniciada nos finais do
século XVI, conheceu uma evolução crescente, devido ao consumo africano,
que aceitava sobretudo o tabaco de terceira qualidade, recusado por quaisquer
outros mercados. Homens e plantações, eis os ganhos reais dos Brasileiros,
que podemos traduzir por outra fórmula: homens e capitais.
Que recebiam os Angolanos pelos escravos fornecidos? Os preços também
têm a sua história, e só podem ser apreciados na diacronia e assegurando as
correlações com todas as economias envolvidas no sistema, o que não seria
possível fazer aqui.
O historiador nigeriano J.E. Inikori salienta que a queda demográfica, em re-
lação com a queda da taxa de reprodução - que, de acordo com Manning se teria
feito sentir sobretudo após 1730 - teriam impedido a criação de um mercado
fundiário, tal como teriam tornado impossível o desenvolvimento de uma pro-
dução agrícola intensiva, devido à falta de um amplo mercado consumidor 60.
A falta de simetria entre as duas situações, não pode deixar de se agravar se
quisermos comparar esta situação com o que se verifica na Europa, onde a revo-
lução industrial britânica se inicia graças ao têxtil, e à contribuição do algodão
produzido nos Estados Unidos pela mão de obra escrava fornecida pela África.
O triângulo de valores que condena o continente a uma situação de inferiorida-
de demográfica, técnica e capitalista, seria, nesta visão sem hesitações, a conse-
quência por assim dizer natural de uma modificação dos parâmetros demográfi-
cos do continente. Os quais nunca poderiam ser compensados por contra-parti-
das constituídas por mercadorias que não se podiam reproduzir.
Os preços dos escravos por unidade, sendo embora importantes, são-no
menos do que o inventário dos produtos recebidos pelos vendedores africa-
nos, e pelas consequências que desencadeiam na organização socio-técnica e

60 INIKORI, 1978 e 1982.

98
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

socio-política do continente. Ora uma parte destes bens não permite as mu-
danças técnicas indispensáveis, salvo no caso das armas de fogo. Mas não estão
os Africanos dependentes da pólvora que não produzem? Os becos-sem-saída
multiplicam-se à medida que os Europeus e os Americanos só desejam es-
cravos. E, no caso angolano este desejo nunca chegou a extinguir-se: quando
acabou a exportação, registou-se a agravação da exploração dessa mesma força
de trabalho pela via do trabalho compelido.

OS DOIS LADOS DO MAR:


DA LIBERDADE À ESCRAVIDÃO. A LIBERDADE TARDIA

Escrevendo nos anos finais do século XVIII, um antigo escravo, que fora
comprado em Caiena (na Colômbia actual), liberto e educado em Londres
pelo seu antigo patrão, descreve com horror o momento em que fora captu-
rado na costa, possívelmente da Nigéria actual: “ pensei que ia ser comido “.
Ou seja, os brancos eram antropófagos e os escravos embarcados nas costas
africanas estavam condenados a ser comidos.
Trata-se, como se pode verificar, da réplica à banalização da antropofa-
gia africana a que iam procedendo os Europeus. Face a face, os dois grupos
descobrem a mesma prática antropofágica. Correndo embora o risco de ser
anacrónica, encontramos a confirmação desta ideia nas práticas culturais das
regiões do nordeste angolano, pois os operários que trabalhavam nas minas
da Companhia de Diamantes de Angola explicavam a força das máquinas pela
integração da força vital africana.
Esta maneira de ler as relações entre os dois grupos sublinha a violência da
escravatura europeia e do tráfico negreiro, pois os homens e as mulheres assim
envolvidos renunciam a qualquer esperança, aceitando a condição de simples
alimento dos apetites europeus. Trata-se, certamente, da situação mais violen-
ta, na medida em que os Africanos remetidos para a Europa ou para as Améri-
cas não regressam, tal como não dão notícias.

99
Isabel Castro Henriques

Do lado americano sabemos que se procura encontrar uma explicação,


procurando manter as relações pela via religiosa, mobilizando os espíritos
dos antepassados. O sistema religioso afro-americano não se limita a uma
simples operação sincrética, pois se trata sobretudo de assegurar as relações
dos escravos com o mundo dos espíritos, único laço com o além e com a
linhagem.
Falta-nos, até hoje, a contra-partida africana destas operações. Não encon-
tramos nenhuma referência a qualquer manifestação destinada a assegurar os
laços com os “exportados”. Sabemos que alguns grupos ligados à Quissama,
exportaram para o Brasil o sal gema da região, que possuía virtudes curativas -
tanto no sentido físico como psíquico -, provocando a necessidade de manter
os laços com o continente. Mas que fizeram os grupos angolanos para manter
vivos e operatórios esses laços?

Partir e chegar: a violência do Novo Mundo

O quotidiano da viagem: a alimentação, o espaço, a manutenção da ordem


branca

É certo que alguns investigadores portugueses, fiéis à excelência do trato


dado pelos Portugueses aos escravos africanos, sublinham a diferença entre os
barcos holandeses e os portugueses, com vantagem nítida para estes. A médias
transportadas variam: no século XVII os Holandeses possuíam embarcações
variando entre 450 e 1000 toneladas, sendo os navios portugueses muito mais
pequenos, embora com muito melhores acomodações e mais limpos, o que
lhes permitia transportar uma carga muito maior .
Um inspector da Companhia Holandesa das Ilhas Ocidentais sublinhou
num relatório respeitante a uma viagem a Angola em 1643 que “os portugue-
ses são muito melhores negociantes de escravos do que nós. Levam numa
pequena caravela com facilidade 500 escravos, enquanto os nossos grandes
navios apenas podem levar 300 de cada vez. Com a limpeza a bordo, a boa

100
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

alimentação, as boas acomodações dos negros nas cobertas, conseguem os


portugueses que as baixas na escravaria sejam muito raras”.
Estamos no direito de nos perguntar quais eram os objectivos deste rela-
tório e deste inspector, pois o historiador brasileiro Elias Alexandre da Silva
Corrêa descreve as técnicas utilizadas pelos armadores e capitães, para conse-
guir obter o maior espaço possível, de maneira a contornar a Provisão respei-
tante à arqueação dos navios utilizados na escravatura. Esta medida legislativa
fora considerada necessária devido à elevada mortalidade verificada entre os
escravos nas travessias marítimas, pois “usam os Carregadores e Mestres das
Naus a violência de os trazerem tão apertados e unidos uns com os outros, que
não somente lhes falta o desafogo necessário para a vida, cuja conservação é
comum; e natural, para todos, ou sejam livres ou escravos, mas do aperto em
que vem, sucede maltratarem-se de maneira que morrendo muitos, chegam
impiamente lastimosos, os que ficam vivos”61.
O artigo 5º desta Provisão determina as condições de transporte e retoma
um problema que já fora tratado pelo Regimento de 1519 e que procurava re-
gularizar a questão da alimentação, exigindo que as embarcações fossem bem
providas de inhames e azeite de “palma caroço”, e alguma malagueta e “seus
paus para roer”. Verifica- se, por este documento, que a mandioca ainda não se
banalizara nestas viagens, tal como ainda não parece produzida nos arquipé-
lagos atlânticos. Na primeira fase respeita-se o sistema alimentar africano, e a
malagueta, o jindungo angolano, deve dar sabor às refeições apressadas e fre-
quentemente indigestas preparadas pelos cozinheiros em condições infernais.
Trata-se de uma alimentação que procede a uma combinatória, de resto
muito africana: os inhames, acompanhados pelo óleo ou azeite de palma, mas
também pela malagueta, que alguns textos transformam em pimentos. Esta
fase corresponde ao período inicial do tráfico negreiro, que alcança a foz do
Congo em 1492. Podemos dar-nos conta da ausência de qualquer produto
europeu, e também estamos em condições de verificar a ausência de produtos

61 CORRÊA, Elias Alexandre da Silva,(1792), 1937, vol. I.

101
Isabel Castro Henriques

que, mais tarde, se tornaram populares ou indispensáveis, como a mandioca,


a banana, a batata doce.
No século XVIII, a farinha de mandioca será o eixo deste sistema alimentar
juntamente com o milho e o feijão. A preparação desta alimentação obrigou
os negreiros a prodígios de imaginação, pois era necessária uma grande re-
serva de água, assim como uma quantidade bastante importante de lenha. A
conservação dos alimentos, quase sempre em barricas, também obrigava os
capitalistas-armadores e os capitães a operações significativas, que dependiam
da qualidade dos alimentos comprados, assim como da competência dos ma-
rinheiros encarregados da operação.
A questão de organização do espaço e da segurança aparecem como essen-
ciais para compreender o quotidiano de viagem. Nos primeiros documentos
respeitantes às razias, não há noticias que nos permitam explicar as condições
de transporte: mas nestes navios de pequeno calado, a diferença principal opõe
o porão ao convés. Podemos pensar que os capturados eram encerrados no po-
rão, embora sem correntes, talvez já atados com cordas. Todavia a instituciona-
lização destas operações, obrigou a uma recomposição do sistema, de maneira
a permitir o transporte em grandes quantidades, mas com poucas perdas.
As embarcações de pequeno calado não podiam transportar tantos escra-
vos como pretendia o apetite dos negreiros, pois havia o risco das desordens
e, ainda mais temível, o receio da doença e da morte.
Elias Alexandre da Silva Corrêa diz-nos claramente que os navios negreiros
eram preparados para não respeitar as regras de 1684, o que alterava as condi-
ções do espaço, assim como o regime de vida. No plano do espaço os respon-
sáveis eliminavam tudo, incluindo o indispensável à vida e ao uso marítimo:
camarotes, oratório, fogões, amarras, aguada ligeira, massame, velame, etc. No
que respeita ao regime de vida eliminam-se mesas, cadeiras, baús, caixas fras-
queiras, balsas, sacos, etc. Nestas condições a viagem é brutal, tanto para os
passageiros - que os navios negreiros também transportavam -, como sobre-
tudo para os escravos. Daí que o testemunho de Elias Corrêa seja importante,
pois relata as condições em que viajou de Luanda para o Rio de Janeiro.

102
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

Não conseguimos encontrar nenhuma descrição credível da organização


das tripulações e das suas competências, que todavia existem em francês ou
inglês. De duas uma: ou as investigações nos arquivos têm sido mal organi-
zadas, ou teremos de aceitar a existência de um vazio da escrita que, acres-
cente-se, estaria longe de ser inédito, pois não faltam vazios na nossa reflexão
histórica ou social. É, no entanto evidente ser indispensável pelo menos um
tanoeiro, para assumir a responsabilidade da gestão das barricas que conser-
vavam a água ou os alimentos. Podemos pensar que devia haver carpinteiros,
assim como um cirurgião, embora a medicina utilizada ou respondesse aos
conhecimentos tradicionais dos Africanos, ou a saberes adquiridos de manei-
ra empírica.
Um dos graves problemas destas operações foi sempre o da água doce, que
devia ser embarcada em grande quantidade, em condições deploráveis de hi-
giene. A distribuição da água foi sempre uma cerimónia ritualizada, tamanha
era a sua importância para a tranquilidade do barco e sobretudo para a sobre-
vivência dos escravos.
Sabemos, por exemplo que, nos anos finais do século XVIII descritos em
terra e no mar por Elias Corrêa, se regista a falta de água e de alimentos. Nesta
viagem, numa embarcação que devia carregar seiscentas pessoas - e era esta a
média de transporte nesse século - se verificou a redução da água para meia-
-ração já no vigésimo dia de viagem, quando faltavam ainda 40 para alcançar
a costa brasileira. Também se verificou a falta de mandioca, sendo o barco
obrigado a arribar na capitania do Espírito Santo onde comprou mandioca
num avançado estado de putrefacção. Não admira por isso, que um agonisan-
te tenha sido lançado ao mar, ainda vivo, conforme a técnica utilizada pelos
negreiros.
As duras condições de viagem não podiam ser asseguradas sem a utilização
da violência sobre os escravos entulhados nos porões, sem ar para respirar. Por
outras palavras, a ordem era assegurada pelo recurso aos porões e às corren-
tes, que prendiam os escravos ao casco do navio, impedindo-os de circular.
Em muitos barcos os escravos permaneciam deitados, de maneira a ocupar o

103
Isabel Castro Henriques

menor espaço possível, em proveito, por conseguinte, do número de escravos


transportados.
O inventário das diferentes técnicas para impedir os movimentos livres,
que ou chumbam os homens ao navio, ou os sobrecarregam de ferros de di-
ferentes tipos permite dar conta tanto da vontade de liberdade dos escravos,
como do estado de pânico em que vivem os negreiros que não podem deixar
de se considerar constantemente ameaçados. Falta-nos também uma análise
psiquiátrica destes homens, embora nos sejam descritos, pelo menos no caso
da cidade francesa de Nantes, como perfeitos homens do mundo.
Estas condições draconianas parece terem assegurado a ordem do negrei-
ro, pois não existem muitos documentos que nos descrevam insurreições ou
revoltas a bordo - os revoltosos eram mortos e lançados ao mar servindo de
ração aos tubarões -, o que contrasta vigorosamente com os documentos que
descrevem as muitas mortes provocadas pelas doenças - escorbuto, disenteria,
febres - ou pelas deploráveis condições alimentares, e a escassez de água.
Se no século XIX se verificam tratamentos menos brutais, tal se deve não
a um projecto humanista, mas à necessidade de reduzir a mortalidade, única
maneira de aumentar substancialmente os lucros. De resto, verificava-se um
equilíbrio entre a violência registada nas duas costas, no embarque e depois
no trabalho, e a maneira como os escravos, despojados de individualidade,
eram tratados a bordo.
Esta situação de violência leva as autoridades portuguesas a intervir, a 28
de Fevereiro de 1810, em documento já elaborado no Rio de Janeiro, certa-
mente sob a pressão dos Ingleses. As autoridades portuguesas são obrigadas
a dar-se conta de que as regras respeitantes à arqueação dos navios há muito
tinham deixado de ser cumpridas, comprometendo séria, constante e grave-
mente a vida dos escravos. O documento explica também que esta interven-
ção da burocracia portuguesa, que é também a burocracia da escravatura e do
tráfico negreiro, não se deve a nenhuma pulsão inesperadamente humanista
mas sim para “influir no Conceito que devemos [os Portugueses] esperar de
outras nações.”

104
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

Pode afirmar-se sem o menor rebuço que estas medidas são tomadas para
“inglês ver”, embora se pudesse esperar que os escravos viessem a ser benefi-
ciados, mas duvidamos que tal tenha acontecido. Os dois problemas centrais,
o do espaço e das condições de instalação a bordo, e da qualidade e quantida-
de de géneros e mantimentos que se transportavam, voltam a ser reconsidera-
dos, embora com parquíssima influência na prática negreira legal, e nenhuma,
como é evidente, na prática negreira clandestina. Os Europeus e Americanos
que se opunham à continuação do tráfico negreiro não deixaram escapar esta
oportunidade para fazer dos Portugueses o paradigma dos negreiros intonsos
e brutais, constantemente descritos por Livingstone, que os transformou em
praga daninha da África.
O que se pode dizer é que não houve negreiros bem-intencionados, tal
como seria absurdo esperar encontrar humanistas entre eles, pelo que os Por-
tugueses não são melhores do que os Franceses, ou os Ingleses. Trata-se de
um espécie de comerciantes que se coloca à margem da humanidade e que
adquire, defende e pratica o que lhe parece conveniente para tornar rendível
o capital investido.
Não o duvidemos, pois que a ideologia das sociedades esclavagistas afir-
ma constantemente o carácter animal, selvagem e enselvajador do escravo.
Animalizados, os escravos são expulsos do espaço dos homens, para serem
reduzidos à mais extrema animalidade. O paradoxo reside no facto de que,
apesar desta animalização, os escravos pensam, podendo organizar estratégias
destinadas a recuperar a liberdade e a liquidar os proprietários.

Do choque da chegada às formas de integração e de recusa africanas

Devemos, pois, encarar o tráfico negreiro como uma operação cruel, im-
posta pelas regras da economia-mundo, mas que resultou: milhões de Africa-
nos foram transferidos sobretudo para as Américas, tendo assegurado a mo-
dificação da natureza americana, e contribuindo para o enriquecimento dos
capitalistas europeus, e dos capitalistas e das populações americanas.

105
Isabel Castro Henriques

As grandes plantações americanas, de algodão, de cana de açúcar, de café,


são autênticas máquinas industriais, que funcionaram graças ao trabalho es-
cravo, tendo modificado as competências técnicas e sociais dos Africanos
envolvidos na operação. Como relata o missionário jesuíta Antonil nos prin-
cípios do século XVIII, as plantações açucareiras foram também o laborató-
rio do treino profissional dos escravos que puderam adquirir o estatuto dos
artesãos.
Esta operação nunca foi simples: os escravos que chegavam às diferentes
costas americanas, ou se destinavam ao armador da embarcação em que ti-
nham viajado, ou se destinavam ao mercado. Neste caso, passavam pelo mer-
cado, onde eram inspeccionados pelos “especialistas”, que os analisavam com
o cuidado que se consagrava aos cavalos nas feiras europeias. Tudo devia ser
considerado, de maneira a rejeitar os que pareciam diminuídos, fosse pela
doença, fosse por defeitos físicos.
Os efeitos desta operação são múltiplos, mas destinam-se também a trans-
formar o antigo africano, eventualmente livre e até dispondo de autoridade
política ou religiosa na sua nação, em pura coisa, em puro animal que deve
ser comercializado conforme as regras adoptadas para as muares. Tal é a pri-
meira grande violência que devem afrontar os escravos no seu novo território.
Trata-se da primeira e feroz lição do destino: continuar a aprendizagem do
estado de escravo, de tal modo que o comportamento se adapte às exigências
da sociedade escravocrata.
Nos países destinatários, os escravos desembarcados encontram-se, à me-
dida que o tempo passa, perante outra categoria de escravos, que são mais
estimados pelos senhores, e que servem de reguladores dos comportamentos:
trata-se dos escravos já nascidos nos países da escravatura, e que não tiveram
por isso nenhum contacto físico com a África.
No seu texto, Grandeza e Opulência do Brasil Antonil, sublinha que os pro-
prietários preferem os escravos já nascidos no Brasil, por estes compreenderem
melhor as regras sociais, e sobretudo por se mostrarem mais capazes de apren-
der as actividades indispensáveis ao funcionamento da sociedade escravocrata.

106
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

Alguns destes escravos pertenciam de resto à categoria dos mulatos, grupo que
perturbou constantemente a organização normal da sociedade brasileira62.
A situação divergia, neste caso, entre o comportamento dos proprietários
e da sociedade norte-americana e a sociedade brasileira: os norte-americanos,
embora tivessem criado uma grelha que permite classificar os escravos con-
forme a parte de sangue branco de que são portadores, nunca lhes reservaram
um tratamento particular. Já tal não é o caso no Brasil, onde o sangue branco
permite intervenções mais radicais na sociedade, frequentemente apoiadas
pelos mais brancos.
Por essas razões, parece difícil falar de uma situação constantemente sin-
crónica, na medida em que a sedimentação das sociedades americanas exige
o recurso à diacronia, única maneira de compreender as diferentes condições
em que se verificam o recrutamento e depois a integração no quadro escravo-
crata. A diferença que se regista entre o negro boçal e o negro ladino constitui
uma das chaves do comportamento dos dois grupos, pois é considerado bo-
çal, e tratado como tal, o escravo que, fiel ao seu treino social, linguístico e re-
ligioso, se mostra incapaz de entender as regras da sociedade escravocrata. É o
exacto inverso do ladino, escravo que, seja pela inteligência, seja pelo treino, se
mostra capaz de assegurar a gestão das relações com a sociedade esclavagista.
A esta primeira forma de criar uma hierarquia de escravos deve acrescen-
tar-se uma outra que tem a ver com a origem étnica - e as correspondentes
capacidades de trabalho - dos homens escravizados, logo que os Europeus
aprenderam, mesmo se grosseiramente, a identificar os diferentes grupos. No
princípio do século XVIII, Antonil dá conta desta preocupação: “É necessário
comprar cada ano algumas peças e reparti-las pelos partidos, roças, serrarias e
barcas. É porque comummente são de nações diversas e uns mais boçais que
outros e de forças muito diferentes, se há-de fazer a repartição com reparo e
escolha e não às cegas. Os que vêm para o Brasil são Ardas, Minas, Congos, de
S. Tomé, de Angola, de Cabo Verde e alguns de Moçambique... os de Angola,

62 ANTONIL, (1711), 1989, p. 40.

107
Isabel Castro Henriques

criados em Luanda, são mais capazes de aprender ofícios mecânicos.... Entre


os Congos há também alguns bastantemente industriosos e bons... para o ser-
viço da cana,... para as oficinas e para o meneio da casa”63.
Muito mais tarde, Gilberto Freyre confirmava as indicações de Antonil ao
informar-nos involuntáriamente, da grande divisão registada na sociedade bra-
sileira, entre os homens baixos e entroncados, do grupo Ba-Kongo, destinados
aos trabalhos rurais, e os homens mais esbeltos e mais altos das regiões da Nigé-
ria que, “mais aristocratas”, eram recrutados para os serviços domésticos.
A estes caracteres acrescentaram-se pouco a pouco as preocupações re-
ligiosas, na medida em que os Africanos procuraram transferir para as dife-
rentes regiões americanas os seus princípios religiosos. Os proprietários de
escravos procuraram sobretudo extirpar as práticas religiosas, na medida em
que elas reforçavam a capacidade de resistência e por isso de independência
dos escravos.
Verifica-se assim, a atenção que os negreiros e os proprietários de escra-
vos davam às práticas religiosas africanas, às quais veio a somar-se, já bastante
tarde, a ameaça dos grupos muçulmanos, importados sobretudo da Nigéria.
O que quer dizer que os comportamentos dos negreiros e sobretudo dos fa-
zendeiros, se caracterizou sempre por uma certa ambiguidade, consentindo
o que, assegurando a coesão e o equilíbrio dos grupos, não comprometia a
produção e o trabalho.
Também neste caso se verifica que, em muitos casos, os “reis” foram iden-
tificados, reconhecidos e mantidos em funções simples, como mostra por
exemplo o trabalho, infelizmente interrompido precocemente, do dr. Nelson
de Senna 64.
Os diferentes relatos de que dispomos, permitem pensar que as sociedades
escravocratas são dominadas pela violência, que parece a única técnica capaz
de permitir a utilização socio-económica dos escravos. O inventário dos ins-
trumentos de coacção e de tortura salientam essa situação, e os desenhos e

63 ANTONIL, (1711), o.c., p. 39.


64 SENNA, Nelson de, 1938.

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DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

as gravuras, seja de Debret, seja de Rugendas, que representam as situações


normais, urbanas e agrícolas, do Brasil no século XIX, não permitem a mínima
dúvida: uma parte dos escravos domésticos urbanos são portadores de instru-
mentos de coacção, mais ou menos brutais.
Não podemos por isso duvidar da existência de situações conflituais, que
não podem deixar de reduzir a rendibilidade dos escravos. É essa certamen-
te a razão principal para multiplicar os instrumentos de coacção e de tortura,
que mostram a extraordinária imaginação e capacidade de inventar a mons-
truosidade dos escravocratas, pois se encontra tudo, desde os instrumentos
que, como o velho tripalium serviam para pear e domesticar os animais na
velha Roma, para travar os movimentos até aos mais sofisticados que im-
pediam os escravos de comer, beber ou falar. É o caso da máscara de lata,
fabricada especialmente pelos latoeiros, que deve ser aplicada de maneira a
impedir os escravos seja de falar, seja de beber. Esta máscara não podia ser
retirada senão pelo proprietário ou pelo feitor, sendo mantida na nuca por
um cadeado fechado à chave. Têm sido dadas várias explicações no que diz
respeito à sua função, e não falta quem tenha sugerido que esta máscara se
destinava a impedir que os escravos pudessem beber a cachaça, já então a
bebida preferida dos Brasileiros.
Trata-se contudo de uma operação singular destinada a desumanizar o es-
cravo que perde a possibilidade de se dirigir ao seu semelhante: é a terrível
amputação da voz, acompanhada quase sempre pela sede. Dupla desumaniza-
ção, que todavia povoava as ruas das cidades, como no caso da famosa escrava
Anastácia que se tornou paradigma desse tipo de violência.
Mas outros instrumentos foram aperfeiçoados, como as gargalheiras; o es-
cravo é condenado a carregar consigo uma espécie de gola alta, com ferros que
se prolongam para cima, destinados a dificultar as fugas para a floresta. Este
instrumento, incómodo e pesado, não impedia porém o portador de assegurar
o seu trabalho quotidiano, sem protestos. É por isso evidente que as socieda-
des escravocratas só conseguiram assegurar o seu funcionamento quase nor-
mal recorrendo à violência.

109
Isabel Castro Henriques

Existe todavia um paradoxo, que não será possível deixar de lado, na medi-
da em que a violência dos comportamentos africanos a que replica violência
dos proprietários - castigos, torturas e morte -, não impediu a integração da
maior parte dos escravos. A primeira fase da integração é física: os escravos
são integrados num sistema ecológico inédito, que implica regras de trabalho
e práticas alimentares que também não eram conhecidas. A mudança é total:
na língua, na religião, na sexualidade, no palato.
As formas de protesto são naturalmente múltiplas, pois podem ser discre-
tas e domésticas, ou, ao invés, públicas e estrepitosas. A “guerra” doméstica
existiu sempre, opondo os patrões aos dependentes, e a “guerra” íntima entre
patrões e criados já mobilizou reflexões de escritores como as de Swift ou
de Genet. O que não impede que não se registe uma habituação: os patrões
aprendem a conviver com as agressões dos empregados, mesmo quando os
castigam, ao passo que os criados têm tudo a ganhar em aprender os hábitos
dos patrões, para evitar os actos violentos.
Nos últimos anos a sociedade brasileira, e sobretudo os Afro-Brasileiros
e em geral os Afro-Americanos, preferem interessar-se pelas situações confli-
tuais mais barulhentas. No caso brasileiro, trata-se de proceder ao inventário
dos diferentes quilombos organizados pelos escravos que abandonam as plan-
tações ou as casas dos senhores.
O que caracteriza a multiplicação dos quilombos, não escapa ao campo pa-
radoxal que tínhamos definido: os escravos não aceitam de boa mente o ensel-
vajamento a que os condena a escravidão, razão pela qual preferem instalar-se
no mato, criando as comunidades auto-geridas – das quais a mais célebre é o
Quilombo de Palmares - que caracterizavam quase todas as sociedades africa-
nas, e mais particularmente as angolanas, arrastadas pelo precipício do tráfico.
Já tínhamos encontrado, nos primórdios da instalação da sociedade san-
tomense, uma situação idêntica, que permitira a africanização progressiva do
arquipélago65. Repete-se o esquema, tendo como resultado a ocupação do

65 Sobre esta questão ver HENRIQUES, Isabel Castro, 2000, pp. 110-116.

110
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

mato brasileiro, com valores, populações e práticas sociais, que dependendo


embora da situação africana, já são também brasileiras. Retenha-se todavia o
elemento mais significativo que reside, como é evidente, na lenta mas cons-
tante africanização do Brasil, tanto mais que os colonos procedem à liquida-
ção física e cultural dos Índios.
Sublinhava-se mais atrás a existência de um paradoxo, que assim se confir-
ma, na medida em que as fugas condenam os escravos a integrar-se mais pro-
fundamente na natureza americana, seja no norte, seja no sul. O resultado é
por assim dizer inevitável: se a natureza é africanizada, se os escravos africanos
se vêem forçados a submeter-se às condições naturais brasileiras, procuram
eles resistir, recusando a dissolução cultural e moral, mau grado a pressão dos
Brancos. Esta resistência manifestava-se, por vezes de maneira violenta, outras
vezes recorrendo ao suicídio, mas convém sobretudo reter a importância do
espaço religioso, que por sua vez mobiliza a música.
A existência de religiões afro-brasileiras, de carácter eminentemente sincré-
tico reforça a importância da presença brasileira na estrutura brasileira, mas
obriga a por em evidência o choque religioso, que não faz mais do que sublinhar
a vitalidade das formas religiosas africanas. Estas permitiram que os escravos
dispusessem de um nicho religioso que lhes dava uma certa unidade, recom-
pondo as estruturas abaladas ou até destruídas pela escravidão, e reformular
as suas condições existenciais, situações naturalmente reforçadas pelos quilom-
bos, onde a ausência de templos cristãos e de teólogos, mantinha a autonomia
religiosa. Não podemos esquecer que o quilombo era, na Bahia, como relatava
Gregório de Matos, um espaço religioso, votado à iniciação religiosa-musical
dos escravos e dos seus descendentes já nascidos em terra brasileira. Não é pos-
sível esquecer a função vital deste sistema, que associa dois dos vectores mais
significativos das formas de resistência e de autonomização dos escravos66.
Aquilo a que se pode chamar a ‘luta pelo além’ conta certamente entre os
choques mais significativos, tendo os escravocratas mobilizado os missioná-

66 Vêr a obra seiscentista de Gregório de Matos, que criticou fortemente, nos seus poemas satíricos, a sociedade baiana da época.

111
Isabel Castro Henriques

rios, cristãos ou muçulmanos, para desalojar as religiões africanas que teima-


mos em chamar tradicionais. Se os Africanos foram obrigados a renunciar às
estruturas do parentesco, às iniciações e até ao complexo de máscaras que as
acompanhava, verifica-se que o nó central da resistência se articulou sempre
em função dos diferentes sistemas religiosos que lhes permitiam a relação
com o além e os espíritos.
Estamos aqui perante uma zona de conflitualidade que nem sempre é as-
sim encarada, como se a criação de religiões sincréticas fosse uma operação
por assim dizer natural. Trata-se, na verdade, de uma das frentes mais virulen-
tas da oposição entre os senhores – todos Brancos – e os dominados - prati-
camente todos negros. A fidelidade às estruturas religiosas assegura não só a
relação com a história, mas recusa a ruptura com o continente. É de resto pela
via religiosa, e pelo sistema musical que a acompanha, que os Afro-america-
nos conseguiram ou conservar a sua autonomia, ou pesar de maneira decidida
na organização cultural dos Americanos.
Há, nesta situação de recusa e integração duas hipóteses a reter por parte do
historiador: ou a exaltação sistemática das formas de recusa, das mais simples
às mais complexas, ou a valorização das práticas que salientam a importância
das maneiras de integração. Os últimos anos têm permitido o inventário e a
sobre-valorização das formas de contestação, que fizeram até da capoeira a téc-
nica de ataque mais utilizada pelos Afro-Brasileiros e em via de se transformar
em forma cultural traduzindo uma certa maneira de ser brasileiro.
Esta maneira de ver replica de maneira evidente aos dois movimentos ante-
riores, o primeiro constante na sociedade branca brasileira, que negava qualida-
des aos Africanos e, por isso os afro-brasileiros, e o segundo importado da Eu-
ropa, que procurou encontrar nas práticas científicas europeias a razão de ser de
uma leitura negativa dos Afro-Brasileiros e mais particularmente dos Mulatos.
A violência da exclusão que violou constantemente a consciência dos es-
cravos africanos, não se apoiava, como já se procurou pôr em evidência, em
argumentos científicos. A sua razão de ser dependia sobretudo de um sistema
ideológico que tinha as suas raízes nas práticas históricas do Mediterrâneo,

112
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

confirmadas pelos valores e pelas ideologias religiosas. A “pureza de sangue”,


que a Inquisição tanto valorizou, implicava que as famílias rejeitassem toda e
qualquer possibilidade de mestiçagem, pois os sangues negro, mouro ou judeu
condenavam os portadores a situações de manifesta e brutal inferioridade.
O século XIX transformou esta leitura das sociedades, fornecendo-lhe um
suporte científico, que foi elaborado pela Escola de Antropologia de Paris, cuja
figura central foi Paul Broca, embora acompanhado pela plêiade de homens
ilustres que permitiram os avanços da medicina francesa e europeia ( Buf-
fon, Cuvier, Saint-Hilaire, Daubenton, Vicq d’Azir, Lamarck e alguns mais).
A constância do preconceito encontrou apoio no vocabulário científico, im-
portado para o Brasil pela Escola da Bahia, e mais particularmente por Nina
Ribeiro e Manuel Querino.
O Mulato aparece contudo com a figura mais negativa deste processo, que
prolonga e afina o que fora já a prática dos escravocratas, constantemente
perturbados - até hoje, de resto - pela existência dos Mulatos, que entretanto
chamamos Mestiços, para atenuar ou ocultar a violência do vocabulário clas-
sificatório. Se Nina Rodrigues organiza a primeira vaga da patologização do
Mulato, essa tarefa é completada pela intervenção de Euclides da Cunha67.
Habitualmente não se consideram os textos de Euclides como remetendo
para a reorganização do discurso escravocrata e racista brasileiro, consideran-
do o relatório respeitante ao messianismo de António Conselheiro em Canu-
dos, o melhor exemplo da tolerância religiosa e racial brasileira. Todavia, o
texto não esconde as suas intenções, empenhado em pôr em evidência a falta
de carácter dos Mulatos, ameaçados por diferentes formas de vesânia. Ou seja,
a desqualificação dos homens prolonga interminamente as consequências da
escravatura.
Para devolver aos Afro-Brasileiros e aos Mulatos um lugar e um papel na
construção e no funcionamento da sociedade brasileira, inventou Gilberto
Freyre o luso-tropicalismo, destinado a provar não só a excelência das relações

67 RODRIGUES, Nina, 1976 e CUNHA, Euclides da, 1978.

113
Isabel Castro Henriques

dos Portugueses - quer dizer dos Brasileiros - com os não - Europeus e em par-
ticular com os Africanos mas sobretudo o carácter indispensável da presença
dos Afro-brasileiros na estrutura social do Brasil68 .
A reacção dos Estados Unidos é bastante diferente, hesitando entre a de-
volução dos Africanos à África, ou a criação de um estado autónomo, onde
fossem concentrados os Afro-americanos. Os próprios Afro-americanos en-
cararam essa hipótese, não só por via do movimento pan-africanista69, mas
sobretudo através do movimento Come back Africa, animado por Marcus Gar-
vey70. Os sistemas ideológicos separam-se radicalmente, embora os Afro-bra-
sileiros tenham transformado o desejo do regresso em práticas pontuais como
o mostram as colónias de Afro-brasileiros na costa nigeriana.
Para explicar tais reacções, poder-se-ia recorrer ao síndroma de Fanon, mas
pretendemos, para uma explicação mais sintética, sublinhar a que ponto as
sociedades escravocratas continuam a contas com a sua má consciência, que
contribui para a violência das exclusões sociais.

O fim do comércio dos escravos e da escravatura: percursos de um


longo século XIX

Legislações e práticas sociais

As relações do Brasil com a Metrópole portuguesa, já bastante pre-


judicadas pela Inconfidência e pelas manifestações pró-nacionalistas de
Pernambuco (1817), alteram-se ainda mais devido à revolução liberal do
Porto de 1822, que consegue, enfim, impôr os pontos de vista modernistas
que já se registavam na conspiração organizada em torno de Gomes Freire
de Andrade, em 1817.

68 Ver FREYRE, em particular 1933 e 1940.


69 Vêr a personalidade e a obra de William E. B. Dubois, fundador do movimento panafricalista, que marcou o pensamento afro-a-
mericano e africano do século XX.
70 GARVEY, juntamente com outras figuras maiores percursoras do movimento pan-africanista, como Blyden, Dubois, desem-
penhou um papel central na valorização da África e da sua história, bem como dos Africanos, denunciando as violências a que
estavam submetidos nas Américas e na colónias europeias em África.

114
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

A economia brasileira continuava a precisar de escravos e a comprá-los, mas


o estatuto dos comerciantes e das embarcações brasileiras modificara-se, tor-
nando mais complexas as operações negreiras. Os diferentes acordos e modus-
-vivendi entre Portugueses e Britânicos concediam vantagens importantes aos
Portugueses, e autorizavam a compra e a circulação de escravos entre colónias.
Esta situação foi resolvida graças a um reforço das relações entre Portu-
gueses, Angolanos e Brasileiros, embora a situação revelasse a existência de
fracturas significativas entre as três burguesias envolvidas no processo. Com
efeito e nesta conjuntura crítica, vieram ao de cima as pulsões nacionalistas
brasileiras que, por sua vez, alimentaram a consciência nacional angolana.
A legislação consagrada aos circuitos da escravatura ia-se entretanto acu-
mulando, sendo a maior parte elaborada já no Rio de Janeiro, onde a Cor-
te portuguesa se refugiara por razões ainda hoje sujeitas a polémica. É ela o
resultado das pressões inglesas que, de resto, a maior parte dos historiadores
e teóricos portugueses, atribuem exclusivamente à defesa dos interesses
económicos da Grã-Bretanha.
O primeiro documento da longa série que modifica as relações entre o Bra-
sil, a Inglaterra e Portugal é o tratado anglo-portugês de 1810, cujo artigo 10
limita as zonas de comercialização de escravos permitidas aos Portugueses,
que só poderão negociar na África ocupada pelos Portugueses. Esta restrição
insere-se no projecto britânico que pretende conseguir a abolição gradual do
tráfico, o que estava longe de interessar às burguesias coloniais portuguesas e
brasileiras.
De resto, os ofíciais da marinha britânica, ou de motu próprio, ou respei-
tando instruções da sua hierarquia, acirram a situação, procedendo ao aprisio-
namento de embarcações portuguesas, por vezes sob pretextos mais do que
fúteis, e em todo o caso difíceis de sustentar em direito.
O que não impede que se assista à ressurreição de regras que mal tinham
sido aplicadas, com a “lei das arqueações”, que datava de 1684, e que não fora
nunca realmente aplicada. O escândalo internacional é suficientemente ulu-
lante para que as autoridades portuguesas decidam, a 24 de Novembro de

115
Isabel Castro Henriques

1830, regularizar a arqueação dos navios negreiros, o que não pode deixar de
ter incidências sobre o número de escravos transportados, aumentando a co-
modidade de todos.
Uma decisão de 26 de Janeiro de 1818 confirma o que se pensava a respeito
das trágicas condições de transporte dos escravos, pois os armadores são au-
torizados a contratar pretos-sangradores, sempre que fosse impossível encon-
trar um cirurgião. É difícil conceber uma concentração de 500 a 600 pessoas
sem assistência médica competente, mas tal era o que se passava nos navios
negreiros, que também não parece terem disposto de remédios em quantida-
de e qualidade suficientes.
A conferência de Viena de 1815, que, após Waterloo, procedeu à divisão
das tarefas internacionais pelas grandes potências, reforça a necessidade de
proceder à liquidação do comércio negreiro, agravando mais a situação dos
comerciantes de língua portuguesa.
Pode contudo afirmar-se, e será esse um dos elementos dramáticos da rela-
ção entre Portugueses e Brasileiros, que o tráfico negreiro mantém assaz liga-
das as duas colónias. É certo que tal não impede que os Brasileiros reforcem
o seu sentimento nacional, inclusivamente devido à independência do Haiti,
em 1805, que altera de maneira sensível a distribuição do poder político na
região das Caraíbas, com forte influência nas colónias espanholas.
Não se pode certamente atribuir o descontentamento do Paraíba do Sul a
esta independência, mas em 1816 verificam-se incidentes diversos que são o
sinal da revolução de 6 de Março de 1817. Esta operação nativista e necessaria-
mente anti-portuguesa, provoca reacções angolanas, onde alguns armadores
não hesitam em prestar ajuda às forças de repressão, enquanto o governador
ordena o sequestro das embarcações e das mercadorias chegadas a Luanda,
provenientes de Pernambuco.
A situação política encaminha-se para o agravamento dos conflitos, mas
nem Angola nem o Brasil se tinham preparado para a ruptura do comércio
negreiro. De resto, a proclamação da independência, a 7 de Setembro de 1822,
provoca uma dupla reacção: em 1823 o governador Avelino Dias quis proibir

116
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

o tráfico como represália contra a Declaração de Independência, ao passo que


se verificava a criação de partidos brasileiros em Luanda, Benguela e Rios de
Sena, na costa oriental.
Esta situação levou à intervenção das autoridades britânicas, graças ao pro-
jecto do tratado de reconciliação e amizade, datado de 9 de Agosto de 1824
que obrigava o Brasil a renunciar a qualquer eventual oferecimento de qual-
quer domínio português para se integrar na federação brasileira.
Os sobressaltos das relações entre Portugueses e Brasileiros encontram
sempre um eco poderoso em Angola, não só devido à importância do tráfico
negreiro, mas também porque Angola recebia então os deportados e os con-
denados civis e militares. E se muitos destes homens não possuíam as carac-
terísticas indicadas para viver na sociedade colonial angolana, a maior parte
contribuíra de maneira decisiva para a estruturação do país, tal como ele se
encontrava.
Se bem que o nosso projecto seja o de mostrar que os incidentes políticos
se limitavam a complicar e possivelmente a encarecer as operações, sem toda-
via as extinguir. E a legislação portuguesa, sempre sob a pressão dos interesses
políticos e filantrópicos ingleses, procurava acertar as agulhas pela Europa,
sem jamais perder de vista os interesses das burguesias, que não podiam dei-
xar de integrar os negreiros. Não todos, mas os mais poderosos do ponto de
vista económico.
A modificação do sistema é por isso, sempre, consequência da evolução
dos juízos religiosos e filantrópicos, que nem sempre são reconhecidos pelos
historiadores que se limitam a considerar os aspectos económicos. Seria cer-
tamente um erro menosprezar esta situação, na medida em que, livres de qual-
quer compromisso político ou económico, os filantropos agem em função da
ética ou da moral.
A conjunção dos interesses económicos e dos valores da filantropia transfor-
maram-se numa mistura explosiva que não podia deixar de incomodar os ne-
greiros, sem todavia os travar. Em 1836, o marquês de Sá da Bandeira consegue
publicar a legislação que pretende pôr termo ao tráfico negreiro, embora não

117
Isabel Castro Henriques

se oponha, muito pelo contrário, à prossecução do comércio e da circulação de


escravos entre colónias portuguesas, e no interior de cada território colonial.
Ou seja, a medida portuguesa é de alcance deveras limitado, embora possa
ter poupado alguns milhares de vida. Deve dizer-se contudo que a legislação
fica sem efeito: o aparelho colonial e escravocrata português, a que estão asso-
ciados os Africanos, pretos e mulatos, que participam na burguesia angolana,
ignoram pura e simplesmente a lei.
Os interesses em causa são demasiado importantes, para poderem ser liqui-
dados por via de uma simples medida legislativa: a revolução dos espíritos não
se fizera, tanto mais que só numa colónia se estava procedendo à reconversão
económica: no arquipélago de São Tomé e Príncipe a conjunção cacau/café
estava em via de obrigar à recomposição das tarefas e das hierarquias sociais,
o que se traduzia numa situação paradoxal: eram cada vez mais indispensáveis
os escravos que a legislação de Sá da Bandeira impedia de produzir, de com-
prar e de importar!
As relações tão íntimas entre fracções das burguesias de língua portuguesa,
permitiram que o tráfico prosseguisse, só tendo sido seriamente abalado pela
legislação brasileiro do conselheiro Euzébio de Queiroz (1850), que nascera
de resto em Angola. Ao impedir que os negreiros pudessem utilizar os portos
e as costas brasileiras vibrava um golpe decisivo nestas operações clandesti-
nas. Não nos iludamos contudo: se o tráfico se ia extinguindo, não se esgotava
a necessidade de escravos: os Brancos, Galegos, Portugueses, Italianos, Tur-
cos, substituíram, nas plantações brasileiras, o trabalho africano.
A 14 de Dezembro de 1854 o governo português ordena o registo dos es-
cravos existentes, passando estes futuros “resgatados” à categoria de libertos.
Mas a decisão legislativa não consegue esconder o veneno: juridicamente li-
vres, estes libertos são obrigados a servir os seus senhores durante dez anos!
A hipocrisia da decisão não parece incomodar os responsáveis políticos euro-
peus, e, que se saiba, também não provocou a menor emoção na esfera religio-
sa: a escravatura continuava a ser encarada como uma benesse que os Brancos
concediam aos Negros, contando que estes trabalhassem e produzissem.

118
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

Em 20 de Abril de 1868 volta-se ao mesmo tema: decreta-se a abolição


integral da escravatura, mas no prazo máximo de vinte anos. Regista-se, ao
mesmo tempo, uma querela com os Ingleses a respeito do regime dos traba-
lhadores de São Tomé e Príncipe que parece ser a primeira de uma longa série
que só virá a apaziguar-se após 1910.
Enfim, por decisão de 25 de Fevereiro de 1869 põe-se termo à escravatura,
o que por sua vez não podia deixar de asfixiar o comércio negreiro, manten-
do-se contudo a escravatura no interior. Ou seja, a legislação portuguesa não
cessa de titubear, consciente dos prejuízos provocados aos colonos mais po-
bres. Não falta quem saliente que esta situação iria prejudicar sobretudo os
Mulatos, os Brancos pobres e até alguns Pretos.
Trata-se naturalmente de desculpas de péssimos pagadores: o problema
residia na modificação dos projectos económicos de cada uma das colónias,
incluindo a de Cabo Verde, constantemente fustigada pelas fomes provocadas
pelos famosos “ventos leste”. Simplesmente os Portugueses não conseguiam
mobilizar os capitais suficientes para estas operações que, de resto, só vieram
a aparecer muito tarde.
Os esforços mais consequentes do aparelho colonial português orienta-
vam-se sempre no mesmo sentido: os Europeus não são capazes de asse-
gurar o aproveitamento das terras africanas, pelo que só podem recorrer à
mão de obra africana. Esta concepção era reforçada pela convicção de que o
trabalho seria capaz de provocar o movimento “civilizador” dos Africanos.
Esta conjunção tão particular – fragilidade fisiológica dos Europeus, recusa
das regras do trabalho pelos Africanos - alimentou com vigor notável todas
as acções levadas a cabo pelos Europeus e mais particularmente pelos Por-
tugueses.
A lei de 29 de Abril de 1875 obriga, no seu artigo 5, os antigos libertos a
contratarem-se com os antigos patrões por dois anos, submetendo-os a uma
tutela pública que terminou a 29 de Abril de 1878. Iludindo uma vez mais a
lei, os patrões continuaram a tratar os serviçais como anteriormente tratavam
os libertos.

119
Isabel Castro Henriques

Vamos ver mais adiante que, na verdade, o aparelho colonial português não
pode pôr termo à sua nostalgia da escravatura. O relatório elaborado por An-
tónio Ennes e mais alguns ilustres colonialistas portugueses concluía ser abso-
lutamente indispensável não só utilizar o trabalho dos Africanos, mas torná-lo
obrigatório. Ennes, que fora o genial organizador das operações militares portu-
guesas de 1895, cuja glória foi atribuída a Mouzinho de Albuquerque, fora con-
vidado a reconsiderar as questões decorrentes do fim das campanhas, em 1897.
Tendo retomado serviço, eis que elabora o famoso Relatório da Comissão en-
carregada de estudar o problema do trabalho dos indígenas, tendo como objectivo
essencial obrigá-los a um “trabalho regular”, não devendo hesitar perante a neces-
sidade das “imposições”. A filosofia de António Ennes e dos seus colegas é simples
mas brutal: o dever dos “naturais” consiste em não se recusarem ao trabalho71.
Estamos, nesse ano final do século XIX, perante uma situação que con-
traria tanto as leis como os regulamentos liberais que, aos tropeções embora,
aceitavam a validade dos princípios do marquês de Sá da Bandeira. Tal não é
contudo o caso neste ano da graça de 1899, que, recuperando a legislação de
Luís Napoleão Bonaparte (decreto de 13 de Fevereiro de 1852 ), decide tor-
nar obrigatório o trabalho nas províncias de indigenato.
Esta decisão enraíza directamente na longa tradição escravocrata e na con-
vicção de que, não dispondo de um fluxo emigratório branco significativo,
nem de capitais para adquirir máquinas, “só o negro pode fertilizar a África
adusta”72. Está assim aberta a porta ao trabalho obrigatório, seja qual for a ma-
neira como ele for designado nos documentos oficiais. Ou seja, a escravatura
nunca chegou realmente a ser extinta nas antigas colónias portuguesas.

As sobrevivências: os “serviçais contratados” em São Tomé

A situação de São Tomé e Príncipe no século XIX, onde uma fracção da


população era já livre desde o século XVI, colocou o colonialismo português

71 ENNES, António, (1899), 1946.


72 ENNES, o.c.

120
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

em situação delicada, sobretudo a partir do momento em que se procedeu


à reconversão da economia. Esta alteração é de resto assaz coerente: na pri-
meira fase da colonização o arquipélago produzira açúcar para os mercados
europeus. A instalação dos Portugueses no Brasil provocou a emigração e os
engenhos foram desmontados para serem instalados no Brasil, onde o açúcar
produzido era de melhor qualidade.
A reconversão da economia agrícola faz-se em função de duas monocultu-
ras industriais, o cacau e o café, que são devoradoras de força de trabalho. A
população santomense recusara submeter-se à dura disciplina das plantações
agrícolas, dada a violência do tratamento imposta pelos Brancos. As ilhas divi-
diram-se nesse momento em dois grupos fortemente opostos: os Brancos que
recuperaram a terra cultivável, e os “Filhos da terra”, quer dizer os autóctones,
que foram expulsos das suas propriedades, por vezes das suas casas, perdendo
a autonomia económica.
Esta situação leva a compromissos singulares, como se regista em 1853,
por via de um decreto destinado a favorecer o Conselheiro João Maria de
Sousa e Almeida, a quem, o artigo 5, autoriza a transportar os 100 escravos
que possuía em Angola para a ilha do Príncipe. Estes escravos deviam ser al-
forriados, devendo na sua nova condição de libertos, servir gratuitamente o
seu ex-proprietário, durante sete anos. Para controlar esta e outras operações,
é então criada a Junta de Superintendência dos Libertos, que não parece ter
jamais funcionado.
Tornava-se evidente que a administração portuguesa queria manter a si-
tuação da escravatura, não encarando outra solução para resolver o problema
da força de trabalho, que se agudizava à medida que prosseguia à extensão das
monoculturas: cacau na planície e nas encostas, café a partir dos 200 metros
de altitude. A maneira como os ‘Filhos da terra’ foram despojados das suas
terras agravou a situação, dando origem a uma total rejeição do trabalho nas
propriedades dos Europeus e até das populações autóctones.
As modificações introduzidas nas diferentes situações da escravatura
apressaram a liberdade dos libertos, como se verificou em São Tomé pela lei

121
Isabel Castro Henriques

de 3 de Fevereiro de 1876, que antecipava em dois anos a libertação. Criou-se


então, no arquipélago, o grupo social conhecido pela autonomásia de Grego-
rianos , estando os colonos convencidos que só a precipitação do governador
Gregório José Ribeiro provocara a desorganização da ordem do trabalho, e
por conseguinte da escravatura do arquipélago. Este alimentava-se sobretudo
de força de trabalho angolana. As novas condições da costa ocidental tornam
esta tarefa perigosa, quer dizer impossível.
A economia das roças exigia trabalhadores: não era possível contratá-los na
Europa, foram procurados e encontrados em África. Em 1875 são recrutados
3000 trabalhadores na Nigéria, os quais exerceram uma influência considerável
no arquipélago. Na Exposição Internacional de Paris, em 1899, foram expostas
esculturas representando as figuras religiosas do país yoruba, o que salienta a
importância desta presença, que se combinou com muitas outras, sobretudo a
partir de 1903. Foi com efeito neste ano que começou a desenrolar-se a campa-
nha dos chocolateiros ingleses e mais particularmente da empresa Cadbury Bro-
thers, contra os roceiros santomenses acusados de continuar a comprar escravos
em Angola, depois transportados para o “inferno” das roças do arquipélago73.
Esta campanha anti-esclavagista foi encarada pelos roceiros como uma
mera campanha destinada a favorecer a produção de cacau da Trinitá e de Ac-
cra, quer dizer do Ghana. Mais prudente, o governo português decidiu-se por
medidas que pensou serem suficientemente eficazes: o decreto de 29 de Janei-
ro de 1903, permitia e regularizava a emigração dos Africanos contratados de
Angola, Guiné, Moçambique e Cabo Verde para serviços “domésticos, indus-
triais e agrícolas” em São Tomé e Príncipe. Na prática, esta legislação preten-
dia apenas fornecer aos roceiros e à administração os meios para promover o
recrutamento e assegurar o transporte destes trabalhadores livres, que “volun-
tariamente tinham aceite o trabalho contratado” no arquipélago, por três anos.
A “recontratação” era depois automática e estes homens também nunca mais

73 A violência das críticas inglesas baseadas em provas e a ameaça britânica de boicotar nos mercados internacionais o excelente
cacau produzido no arquipélago de São Tomé e Príncipe, constituiram um "travão de fachada" às práticas portuguesas, ao mesmo
tempo que avivaram a velha ferida que sempre caracterizou o processo colonial português: o recurso constante aos escravos
africanos, como trabalhadores e como mercadoria.

122
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

regressaram ao país de origem.


Os resultados são certamente inesperados, mas as vítimas não são só os
Angolanos, como receavam alguns nativistas: as vítimas são também escolhi-
das entre os Cabo-verdianos. Com efeito, estes são forçados a renunciar à emi-
gração para o Senegal e mais particularmente para Dakar, onde os Franceses
tinham começado a construir o porto, assim como tiveram de abandonar a
ideia de emigrar para os Estados Unidos. As necessidades dos roceiros levaram
as autoridades portuguesas a obrigar os Cabo-verdianos a aceitar contratos
para São Tomé, que era então, como depois, o destino mais detestado pelos
Cabo-verdianos. Todos sabiam que a mortalidade era extremamente elevada
na ilha do Príncipe, onde a doença do sono provocava taxas de mortalidade
amplamente superiores à média geral de São Tomé.
Simplesmente a campanha inglesa não só não se calou, mas agravou-se en-
tre 1907 e 1910, em consequência dos relatórios respeitantes à maneira como
os agentes dos roceiros, ou a própria administração angolana, procediam ao
recrutamento dos trabalhadores “voluntários’” Paiva Couceiro sublinha, em
1910, com a autoridade que lhe advém da sua função de governador-geral de
Angola, que a quase totalidade dos 40.000 trabalhadores agrícolas do arqui-
pélago são de origem angolana74. Podemos calcular a rede de interesses as-
sociados a estas operações de captura, de compra e de remessa dos Angola-
nos para São Tomé e Príncipe. No seu relatório publicado em 1910, William
Cadbury analisa a forma como se fazia este recrutamento: “Nas três cidades
de Benguela, Catumbela e Novo Redondo, parece haver umas seis firmas que
negoceiam em serviçaes contratados, obtendo-os por meio dos seus próprios
agentes no interior ou directamente de particulares”, acrescentando que estas
cidades enviam “uma corrente de talvez cinco mil almas por ano, para fornecer
os mercados de braços de Angola, S.Tomé e Príncipe”75. Ou seja, a escravatura
apresentava duas faces, que mantinham viva a situação já secular do país: em
primeiro lugar, as actividades de compradores de trabalhadores, mais homens

74 COUCEIRO, 1910, p.12.


75 CADBURY, 1910.

123
Isabel Castro Henriques

do que mulheres, destinados a assegurar a produção do arquipélago de São


Tomé e Príncipe e o enriquecimento dos já ricos roceiros do arquipélago. É
contudo a segunda face desta medalha que nos interessa mais profundamen-
te, pois ela impõe as regras do trabalho obrigatório, que mais não é do que a
negação das leis liberais e o regresso à escravatura.
Melhor ainda: a situação degradava-se, na medida em que os consumidores
de trabalho escravo não eram obrigados a dispor ou a dispensar capitais, pois a
administração fornecia-lhes a força de trabalho, graças às forças de coerção de
que dispunha o aparelho administrativo. Não é por isso de surpreender que, já
nos anos 1930, mas mais particularmente após 1948, o trabalho das roças de
São Tomé e Príncipe, e a situação dos trabalhadores contratados, se transfor-
mem nos argumentos mais utilizados contra o aparelho colonial português.
É certo que, no que se refere a São Tomé e Príncipe, o aparelho político
utilizou as medidas legais - as medidas de 1903 estiveram em vigor até 1908,
tendo sido alteradas por um novo decreto de 23 de Abril, o qual foi modifica-
do por novo decreto a 9 de Dezembro de 1909 - para banalizar a violência da
situação. A 30 de Março de 1912, um novo diploma procurou regular o prazo
dos contratos e recontratos dos serviçais de Angola e Moçambique.
Estas medidas não são provocadas por nenhuma revisão da perspectiva co-
lonialista dos Portugueses. Ninguém o disse melhor do que o antigo Ministro
das Colónias, Joaquim Silva Cunha: “as sucessivas modificações da legislação
sobre trabalho em S. Tomé e Príncipe, devem-se, por um lado, ao desejo de, pro-
gressivamente, ir aperfeiçoando o sistema de forma a conciliar os legítimos in-
teresses das empresas proprietárias das plantações, com a necessária protecção
dos trabalhadores; por outro, ao desejo de o governo português pôr termo às
campanhas internacionais que se moviam contra o regime de trabalho indígena
nas colónias portuguesas, especialmente na colónia de S. Tomé e Príncipe”76.
Basta ler com atenção o texto para explodirem as minas individuais semea-
das por Silva Cunha: os interesses estão todos do lado das empresas proprietá-

76 CUNHA, Silva, 1949.

124
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

rias das plantações, enquanto, do lado dos Africanos, havia apenas que cuidar
da protecção. Protecção contra quem, senão contra esses mesmos proprietá-
rios que o governo português pretende e consegue defender? O que vem a ser
esta defesa, a não ser um autêntico, constante e rude ataque contra os valores
humanos? É certo que esta armadilha dos conceitos e da semântica não fun-
ciona apenas no caso de Silva Cunha. Analisando a situação, Francisco Tenrei-
ro também se deixa arrastar pela armadilha patriótica: “revisto o assunto com
a serenidade que o tempo confere aos estudiosos imparciais, sem dúvida que
nem as condições de trabalho nem o processo de recrutamento de pessoal em
Angola eram humanamente aceitáveis. Mas não se pode deixar de reconhe-
cer que, sob os justos sentimentos humanistas da opinião pública inglesa, se
escondia o interesse dos chocolateiros de, pelo aviltamento do cacau de São
Tomé, promoverem o desenvolvimento das plantações dos nativos da Costa
do Ouro, que, do ponto de vista comercial, se encontravam nas suas mãos”77.
A simples consulta das medidas legislativas permite compreender a pre-
cipitação das autoridades portuguesas, face a uma terrível operação de des-
crédito que, ainda por cima, se apoiava em testemunhos. Quem, de resto, em
Portugal, e nos meios “africanistas ”, podia ignorar a violência dos tratamentos
reservados aos trabalhadores africanos, e até aos Brancos, recrutados, por via
de regra, entre camponeses sem a menor cultura?
No caso angolano, as medidas dos roceiros e das autoridades vão mais lon-
ge: renuncia-se pura e simplesmente, durante alguns anos, ao recrutamento de
trabalhadores em Angola, deslocando para isso o eixo da contratação: entre
1908 e 1915, o arquipélago importa cerca de 30000 trabalhadores moçambi-
canos. É possível que esta operação fosse também provocada por razões finan-
ceiras, pois em 1908, o preço de um escravo adulto era, em Benguela, de 16
libras esterlinas. Ou seja, a compra de 30000 trabalhadores representaria nada
menos de 480000 libras, o que seria uma soma astronómica, que as finanças
santomenses poderiam suportar, é certo, mas amputando severamente os re-

77 TENREIRO, Francisco, 1961.

125
Isabel Castro Henriques

sultados financeiros.
O Relatório de António Ennes, de 1899, que permitira a publicação do
decreto regulador de 9 de Novembro desse mesmo ano (proprietários e ad-
ministradores estavam todos à espera de uma decisão desta qualidade e in-
tenção), autoriza, enfim, o mais legalmente do mundo, a recorrer ao trabalho
obrigatório. Todas as medidas tomadas pelas autoridades portuguesas serão,
no futuro, inspiradas por este Relatório e pelo decreto de Novembro de 1899.
Os acertos que foram feitos no futuro - que é já o nosso passado - não des-
mentiram, nem na Monarquia, nem na República, nem no Estado Novo, a
estrutura da reflexão e das conclusões de António Ennes, que é certamente a
figura mais singular do domínio colonial português78.
Lembremos simplesmente que, após a proclamação da República, foi pu-
blicado a 27 de Maio de 1911, um decreto que mantem, com leves modifica-
ções, os 66 artigos do decreto de 1899. Em 1914, é publicado o decreto nº 95,
de 4 de Outubro, consagrado ao Regulamento Geral do Trabalho dos Indígenas
nas Colónias Portuguesas, ao passo que a Ditadura Militar, que confiara o Mi-
nistério das Colónias a um agente conhecido dos interesses de Moçambique,
o comandante João Belo, começa por publicar, a 23 de Outubro de 1926, o Es-
tatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas de Angola e Moçambique. O Código
do Trabalho Indígena só será publicado em 1928.
É este Código que, sem o menor rebuço, utiliza nada menos de três
maneiras de dizer a mesma coisa: trabalho obrigatório, trabalho forçado e
trabalho compelido são considerados como simples sinónimos. Nada podia
dizer melhor as coisas do que esta falta de cuidado sintáxico, tanto mais que
este Código abre caminho para uma situação de escravatura talvez mais vio-
lenta, que é a das “culturas obrigatórias”, que se revelaram extremamente duras
para as populações no caso do algodão, seja em Angola, seja em Moçambique.
O despertar da consciência nacional levou os nacionalistas a denunciar as
formas grosseiras de escravatura utilizadas pelos Portugueses. A emigração

78 ENNES, (1899), 1946.

126
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

para São Tomé e Príncipe, emigração forçada, que fora já denunciada pelos
intelectuais cabo-verdianos de A Voz de Cabo Verde, fornecem um poderoso
alimento político à “geração de 1958”, a geração do Suplemento Cultural. To-
davia, esta mesma emigração foi asperamente denunciada pelos Angolanos,
que, por outro lado, se empenhavam em pôr a nu a situação dos serviçais ou
contratados, fornecidos aos empresários portugueses pelos funcionários tam-
bém portugueses.
O Império estava pois apoiado na escravatura, como se verificava também
em Moçambique onde os trabalhadores moçambicanos exportados para as
regiões anglófonas, eram pagos em ouro pelos cofres da África do Sul, ouro
que revertia a favor do Estado colonial português. Tal era a vertente moçambi-
cana desta operação, cuja brutalidade não contradiz as muitas situações de do-
minação angolana. Se o país sofre ainda hoje, uma das razões deste sofrimento
deve ser atribuída à violência da escravatura, que deixou cicatrizes indeléveis
na consciência nacional do país.

CONCLUSÃO

O facto de a história do tráfico negreiro ter sido, até hoje, essencialmente


feita por Europeus e Americanos, ainda não permitiu desembaraçar-nos total-
mente de preconceitos tenazes que tornam difícil a análise de um fenómeno
desta importância. A relação entre as condições específicas da colonização
portuguesa e a evolução do Atlântico sul explica de maneira suficiente como
Angola foi obrigada a participar de maneira constante neste sistema. Se, nos
primeiros tempos da colonização, foi São Tomé e Príncipe que exigiu a criação
do tráfico, esta situação foi amplamente reforçada quando o Brasil e os territó-
rios circunvizinhos foram integrados na economia-mundo.
A falta de documentos nos arquivos portugueses constitui certamente um
obstáculo importante, no que diz respeito à demografia da escravidão, e mais
particularmente do tráfico negreiro. Sem pretender de maneira alguma deixar-
-me arrastar por uma qualquer pulsão necrofílica, a verdade é que o carácter

127
Isabel Castro Henriques

letal deste sistema, que interessa apenas à obtenção de juros elevados para os
capitais empregados, sublinha a extrema violência da escravatura, que procu-
rou proceder à desumanização dos homens.
Como demonstrou Memmi, a alienação do Outro não pode fazer-se sem
a alienação paralela do Mesmo. O que não nos deve levar contudo a ocultar a
violência de que é vítima o escravo. Mutilado físicamente, não pode ele deixar
de o ser também psíquicamente. Não posso deixar de me lembrar da senhora
Maria, uma velha “escrava”, tal como ela própria se definia, que encontrei na
minha infância numa das residências rurais de uma família portuguesa. Dizia,
nas suas muitas estórias contadas, ser de origem angolana e ter sido vendida
em criança, como escrava, para São Tomé, provavelmente acompanhando a
mãe levada como serviçal. Bem tratada em Portugal? Certamente, como “cria-
da de servir”.... Mas definitivamente amputada do território, de parentes, de
memória que não fosse a do seu estado de “antiga escrava”.
É esta situação que continua a incomodar todos: os Euro-Americanos por
terem inventado e alimentado o tráfico negreiro atlântico, os Africanos por
não terem sido capazes de uma oposição mais firme, mais contínua e mais efi-
caz. As marcas profundas da violência esclavagista, longa, tenaz, continuada,
permanece nos imaginários, contribuindo também para dificultar a pacifica-
ção das sociedades que viveram este fenómeno histórico, que hoje, sob outras
fisionomias, persegue a Humanidade.
Lisboa, Setembro de 1996

128
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

IDEOLOGIAS E PRÁTICAS DA
ESCRAVATURA NO ESPAÇO
PORTUGUÊS
(SÉCULOS XV-XIX)

Uma das ideias mais correntes no Mediterrâneo e regiões limítrofes, reside


na convicção de que a escravatura só pode ser natural, tanto biológica como
sociologicamente. É este o enunciado de Aristóteles, em As Políticas, e pode
também aceitar-se a ideia de que à banalização do pensamento aristotélico
corresponde o reforço da escravatura, à qual o filósofo forneceria a sua sapata
ideológica.
Podemos todavia – e talvez devamos – encarar a situação de maneira mais
abrupta, aceitando o princípio de que o carácter “natural” da escravatura per-
tencia ao sistema de pensamento do Mediterrâneo, tendo sido integrado no
discurso de Aristóteles, na medida em que esta ideologia não só era geral, mas
permitia justificar a dominação do Outro.
Esta articulação teórica permite, inclusivamente, compreender os primei-
ros livros de As Políticas, na medida em que dá importância acrescida às for-
mas de dominação, o que põe também em evidência o laço unindo Hegel a
Aristóteles. A lógica polémica da relação entre o senhor e o escravo provém
das regras sociais – incluindo as antropológicas – de Aristóteles. Ou seja, a
obediência – sem a qual não pode haver dominação – depende desta estrutura
mediterrânica.
Compreende-se assim que os ibéricos, entre os quais os portugueses, te-
nham sempre considerado a servidão, o cativeiro, a escravatura, como práticas
sociais normais, servindo menos para humilhar e mais para exaltar o poder
dos senhores ou até dos simples burgueses, aceitando-se que a burguesia apa-

129
Isabel Castro Henriques

rece já nos começos do século XI, como salienta Régine Pernoud1. A estrutura
social estava ideologicamente preparada para criar e integrar escravos.

A utilização do escravo africano na sociedade


e na economia portuguesas

Tornou-se felizmente banal o recurso à Crónica de Guiné de Gomes Ea-


nes de Zurara para datar a primeira grande partilha de cativos em Lagos, em
Agosto em 14442. Os cerca de 250 homens, mulheres e crianças não eram os
primeiros africanos a aparecer no país, mas a quantidade modificava as regras
conhecidas como dá a ver a africana da cantiga de maldizer do rei Alfonso X
de Leão e Castelo3. A operação é notável por várias razões, entre as quais con-
ta a modificação das relações com a costa ocidental africana, encarada como
lugar de captura ou de compra dos escravos.
A escravatura portuguesa possui características particulares no quadro da
Península Ibérica, região analisada recentemente por Alessandro Stella4. A
partir desta operação de Lagos, mas já anteriormente, encontramos raríssimos
escravos brancos: os castelhanos compram-nos habitualmente em Génova,
para servir sobretudo como remadores nas galés do Mediterrâneo. O Atlân-
tico não permitindo o recurso sistemático a tais embarcações, parece proibir
este comércio alimentado então pelas populações de Leste, entre as quais os
eslavos.
Se deixarmos de lado as lágrimas de crocodilo vertidas por Zurara, verifi-
camos facilmente que os africanos são rapidamente integrados na sociedade
portuguesa: se esta criara bairros especiais para os judeus – as judiarias – ou
para os mouros – as mourarias – já não se verifica a criação de bairros espe-

1 PERNOUD, Régine, A burguesia, Lisboa, Europa-América, 1973.


2 ZURARA, Gomes Eanes de, Crónica de Guiné, (1453), Porto, Civilização, 1973.
3 Ver MARGARIDO, Alfredo, “As normas gramaticais de duas cantigas de maldizer”, Revista da Academia Brasileira de Filologia, Rio
de Janeiro, 2002, Ano I, n.º I, Nova Fase.
4 STELLA, Alessandro, Histoires d’esclaves dans la Péninsule Ibérique, Paris, Éditions de l’EHESS, 2000.

130
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

cificamente destinados aos africanos.5 Uma parte significativa dos africanos


escravizados estava integrada nos espaços familiares como revelam tanto os
documentos iconográficos como os arquivos6.
O que retém mais a atenção dos portugueses são por um lado alguns carac-
teres somáticos, nariz, lábios, sobretudo o famoso “cabelo revolto” e um traço
fisiológico-cultural: a impossibilidade de falar a língua portuguesa respeitan-
do a norma linguística. O teatro do século XVI trará para a cena este particu-
larismo, que todavia não impede que esta maneira de falar seja compreendida,
tanto no teatro, como sobretudo na vida urbana quotidiana7. De resto esta
língua será perenizada como a “língua de preto”, fórmula que se utiliza pelo
menos em Lisboa até ao século XX.
Esta situação ajuda a compreender a maneira como os portugueses quise-
ram utilizar os escravos africanos nas suas grandes tarefas geográficas e eco-
nómicas. Por outro lado, verifica-se a criação de um preconceito favorável, na
medida em que estes escravos, disseminados pelo país não praticam crimes
violentos, devendo a sua criminalidade ser considerada idêntica à dos euro-
peus. E, sobretudo, nunca se registou entre nós nenhuma sublevação africana,
que tenha levado à formação de mocambos ou de quilombos. Se bem que a
população africana tenha representado, no século XVI8, cerca de 10% da po-
pulação global, não se registam tais incidentes. Ou, se quisermos, não são os
africanos que africanizam a sociedade portuguesa, são os europeus que im-
põem a europeização aos africanos.
O recurso aos africanos e aos escravos regista-se nas operações ultramari-
nas, não tanto na Madeira, mas sobretudo em Cabo Verde (ilhas de Santiago

5 Esta afirmação é hoje historicamente incorrecta. Uma investigação que desenvolvi em 2008, permitiu-me revelar uma outra rea-
lidade: a existência do Bairro do Mocambo, bairro de africanos, sobretudo livres e forros, situado na zona ocidental de Lisboa,
onde hoje se localiza a Madragoa, registado como o 2º bairro da capital por alvará régio datado de 1593. Ver Isabel Castro Henri-
ques, A Herança Africana em Portugal, Lisboa, CTT, 2009, pp.47-65.
6 Ver os estudos de SAUNDERS, A.C. de C.M., História social dos escravos e dos libertos negros em Portugal (1441-1555), Lisboa,
Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1994; TINHORÃO, José Ramos, Os negros em Portugal, Lisboa, Caminho, 1988; e FONSE-
CA, Jorge, Escravos no sul de Portugal, séculos XVI-XVIII, Lisboa, Vulgata, 2002. Ver também, com prudência, dada alguma falta de
rigor metodológico, o catálogo da exposição O Negro em Portugal, Lisboa, CNCDP, 2001.
7 VICENTE, Gil, “Frágua de Amor”, in Copilaçam de todalas obras, Lisboa, Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1983, vol. II.
8 CLENARDO, in Roersch ed., Correspondance de Nicolas Clenard, Bruxelas, 3 vol., 1940-1941. Ver também Cerejeira, Manuel
Gonçalves, O renascimento em Portugal, vol. I, Clenardo e a sociedade portuguesa, Coimbra, Coimbra Editora, 1974.

131
Isabel Castro Henriques

e do Fogo) e em São Tomé e Príncipe (particularmente em São Tomé). A


cultura industrial da cana-de-açúcar exigiu milhares de braços que a Europa
não podia fornecer, pelo que se recorreu de maneira intensa aos africanos, im-
portados da costa ocidental, da Senegâmbia ao reino do Congo. São estes afri-
canos que se revoltam em São Tomé contra as condições de trabalho, abando-
nado as plantações europeias para africanizar o mato, o famoso “obó”9.
A situação não perde contudo o seu carácter paradoxal, pois estas revoltas
não impedem a produção regular do açúcar, que encontrava mercado na Euro-
pa, embora os pães de açúcar produzidos revelassem um excesso de humidade
que os tornava friáveis. Situação que, mais do que qualquer outra, levou os
proprietários dos engenhos a transferir-se para o Brasil, onde contavam re-
correr sobretudo ao trabalho fornecido pelos índios. A fragilidade física ou a
recusa dos índios tinha levado Frey Bartolomé de Las Casas a propor, no qua-
dro da colonização castelhana – em 1506, na sua condição de encomendero – a
substituição dos índios pelos africanos10.

Índios e africanos: a problemática existência da “alma”

Os laudatários do dominicano não deixam de salientar que Las Casas se


arrependeu de ter feito esta sugestão: a verdade, porém, é que ela modificou
de maneira definitiva as sociedades americanas onde o vermelho da pele dos
índios foi substituído pelo negro da pele dos africanos, como salienta Roger
Bastide11. Tendo feito face aos africanos em São Tomé, pois a multiplicação de
mocambos e de quilombos não impediu a produção do açúcar, os portugue-
ses dispõem de informação suficiente para assegurar a importação dos escra-

9 HENRIQUES, Isabel Castro, São Tomé e Príncipe. A invenção de uma sociedade, Lisboa, Vega, 2000.
10 LAS CASAS, Bartolomé de, Brevísima Relatión de la Destrucción de las Indias, (1542), Edição de I. Perez Fernández, Madrid,
Editorial Tecnos, 1992.
11 BASTIDE, Roger, “Lusotropicology, race, nationalism, and class protest and development in Brazil and portuguese Africa”, in
Protest and Resistance in Angola and Brazil. Comparative Studies, Ronald H. Chilcote, ed., Berkeley, University of California Press,
1972.
Ver MARGARIDO, Alfredo, “La vision de l’Autre (Africain et Indien d’Amérique) dans la Rennaissance portugaise”, Paris,
Centre Culturel Gulbenkian, 1984.

132
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

vos africanos – capturados ou comprados – destinados a assegurar o trabalho


e a produção que os índios não podiam ou não queriam fornecer.
O destino dos índios não pode ser separado das tarefas aceites pelos africa-
nos. Regista-se no Brasil e de uma maneira geral nas regiões americanas uma
recusa obstinada dos índios, que rejeitam a sua transformação em simples
força de trabalho. Deve contudo assinalar-se que não se encontram entre os
índios do futuro Brasil, estruturas políticas idênticas aos aztecas, aos maias
ou aos incas. Situação que talvez ajude a explicar a violência do genocídio,
em parte autorizado pela condenação do canibalismo ritual12, o qual, de resto,
foi alargado ao continente africano sob a forma de antropofagia. Na verdade
e seja onde for, os europeus consideram legítimo e necessário o recurso à es-
cravatura para impor tanto aos africanos como aos índios a dura disciplina do
trabalho13.
Talvez encontremos nesta diferença de organização das sociedades índias
a justificação de, por um lado, o genocídio precoce organizado pelos portu-
gueses, enquanto pelo outro, esta diferença permite compreender o compor-
tamento muito diferenciado face aos índios e às suas autoridades. Os castelha-
nos, missionários sobretudo, mas também funcionários, preocupam-se com
o estatuto dos índios. A controvérsia de Valladolid, em 1550, marcada pelo
afrontamento entre Las Casas e Sepúlveda, e concluída pelo papa Adriano,
reconhece que os índios possuem uma alma, condição que os integra no espa-
ço dos homens, de onde os tinham expulsado os colonizadores: missionários,
funcionários, colonos.
No plano da estruturação da escravatura, voltamos a encontrar uma séria
diferença entre os portugueses e os espanhóis. Os portugueses não manifes-
tam a menor hesitação no que se refere ao estatuto dos índios: estes ou são
trucidados, ou são recrutados como escravos, condenados à violência dos
trabalhos da produção. Nem por isso deixa de emergir, mesmo se de forma

12 Ver STADEN, Hans, Nus, féroces et anthropophages (1557), Paris, A. M. Métaillé, 1979.
13 HENRIQUES, Isabel Castro, “A invenção da antropofagia africana”, Os Pilares da Diferença, Lisboa, Centro de História da Univer-
sidade de Lisboa, 2003.

133
Isabel Castro Henriques

passageira, a defesa dos índios, em duas Universidades portuguesas – Évora e


Coimbra –, levada a cabo por teólogos castelhanos, ou por teólogos treinados
nas Universidades castelhanas14.
Se a controvérsia de Valladolid marcou profundamente a organização da
colonização castelhana, já o mesmo se não regista no caso português: o teólo-
go que mais aberta e decididamente defende o estatuto dos índios, recuperan-
do uma parte substancial dos teólogos castelhanos, o Padre António Vieira,
possuindo laços muito particulares com o Brasil, não tem a mínima dúvida no
que se refere ao estatuto dos africanos, incluindo os mulatos: para alcançar a
salvação eterna, devem não só aceitar a escravatura, mas trabalhar bem – quer
dizer ser bons produtores – e de maneira dedicada15.
É esta dicotomia que caracteriza profundamente a ideologia escravocrata
portuguesa, reforçada ainda pelo facto de a sociedade colonial considerar os
índios como simples escravos, mau grado a intervenção de um número muito
reduzido de teólogos. De resto, entre os colonos, não há uma voz que se ele-
ve para defender os índios da sua destruição pelo trabalho excessivo. Para os
colonos há alguma coisa de malsão e de incompreensível na maneira como
os dois grupos encaram tanto a escravatura como o trabalho: pois não há ho-
mens e sociedades criadas para permitir a instalação dos europeus tanto em
África como na América?

Escravatura e comércio negreiro:


a criação de formas inéditas de socialização

A situação começara já a modificar-se no século XVI em São Tomé, devido


à maneira como os escravos africanos reagiam às condições de exploração que

14 Ver MAURÍCIO, Domingos, “A Universidade de Évora e a escravatura”, Didaskalia, V, VII, 1977; PIMENTEL, Maria do Rosário,
Viagem ao fundo das consciências, Lisboa, Colibri, 1995; e CAPELA, José, “Éthique et représentation de l’esclavagisme colonial au
Mozambique”. Vêr também Déraison, esclavage et droit. Les fondements idéologiques et juridiques de la traite négrière et de l’esclavage,
direcção de Isabel Castro Henriques e Louis Sala-Molins, Paris, UNESCO, 2002.
15 VIEIRA, António, “Sermão da Epifania”, na Capela Real, 1662, in Obras completas, Sermões, Porto, Lello & Irmão, 1945, tomo XII.

134
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

lhe eram impostas pelos colonos brancos: rejeitando a disciplina das planta-
ções produtoras de cana-de-açúcar, os escravos procuraram instalar-se na flo-
resta, separados dos colonos pela aspereza da cobertura vegetal, e pela falta
de instrumentos capazes de permitir abrir facilmente o caminho na floresta,
operação consentida já no século XX pela banalização dos machims, recorren-
do ao vocabulário santomense, embora se possa também recorrer às catanas
angolanas. É contudo evidente que os escravos “fugidos” utilizaram a redução
da floresta imposta pela desmatagem indispensável à criação dos terrenos de
cultura da cana, reforçada pela necessidade de grandes quantidades de madei-
ra para assegurar a secagem dos pães de açúcar.
A africanização do mato, que corresponde também à africanização da so-
ciedade, caracteriza-se pela instalação dos mocambos ou quilombos: os dois
substantivos provêm, ambos, das línguas banta de Angola, e conheceram uma
ampla difusão no Brasil. Ou dito por outras palavras, o alargamento e a ba-
nalização da escravatura implicam a organização de estruturas inteiramente
inéditas. Mas sobretudo elas impõem um tratamento particular desta história,
na medida em que, no Atlântico, se criam as condições para organizar formas
sociais que não sendo europeias, também não são africanas. O paradoxo resi-
de no facto de a inciativa reguladora dos colonos, ser brutalmente superada
pela determinação dos escravos africanos, decididos a ocupar a terra, agora
africanizada, para reduzir ou eliminar a autoridade dos brancos.
Já se fez a história do período mais violento desse afrontamento, que, con-
tudo deixou marcas que, modificadas embora, ainda hoje estão presentes na
organização de São Tomé e Príncipe. Esta observação adquire a sua máxima
importância se pensarmos que a própria estrutura do Brasil deriva das expe-
riências levadas a cabo em pleno oceano Atlântico. De resto uma corrente
histórica mais recente, não hesita em salientar o facto de tais estruturas – as
das ilhas atlânticas africanizadas – corresponderem a formas autónomas que
muitos pretendem diluir na terminologia vaga da “crioulização”16.

16 MARIANO, Gabriel, “Do funco ao sobrado ou o mundo que o mulato criou”, Colóquios caboverdianos, Lisboa, Junta de
Investigações do Ultramar, 1959.

135
Isabel Castro Henriques

A escravatura não podia deixar de criar o tráfico negreiro: à medida que


cresce o número de colonos, aumenta ainda mais o contingente dos escravos,
sobretudo nas ilhas atlânticas e no Brasil. A tríade que devemos considerar
associa colonos, essencialmente portugueses, índios, que as operações dos
colonos destroem sistematicamente e africanos, autêntico motor da produção
dos territórios, ilhas ou continente. Nem colonos, nem capitães dos navios
negreiros, nem clero, têm a menor dúvida a respeito da condição inferior, ani-
mal por assim dizer, dos escravos, índios ou africanos. Tal como são escravos
os mestiços resultando dos cruzamentos registados entre os vários grupos po-
pulacionais.

Crueldade esclavagista e réplicas africanas

A relação dos portugueses com os escravos africanos – são raros os escra-


vos índios (americanos), ou indianos (asiáticos) – torna-se por assim dizer ba-
nal e talvez até cordial. O crescimento é reduzido, situação em que deve contar
a legislação do Marquês de Pombal que põe termo à escravatura em Portugal,
em 1761, a data de 1773 assinalando a expulsão dos jesuítas –, medida que
intimidou os próprios barcos que entravam nas diferentes barras pois, desem-
barcado, o escravo recuperava a sua liberdade, tal como o ordenava o sistema
jurídico português. Não foi a única medida do Marquês que modificou o xa-
drez das relações humanas, pois devemos também contabilizar a expulsão dos
jesuítas, que liquidava as aldeias onde se concentravam os índios, que só os je-
suítas podiam tanto catequizar como utilizar na produção sobretudo agrícola.
Compreende-se que, nestas condições, encontremos tão poucos docu-
mentos denunciando a violência da escravatura e do tráfico. Esta situação en-
contrava também um sólido suporte no facto de os colonos renunciarem à
inocência da terra de origem (para repetir Jean-Paul Sartre), substituída pela
dura aprendizagem de floras e faunas mais do que inéditas, inteiramente im-
previsíveis. O escravo também é violentamente afastado do seu meio natural.

136
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

mas, nesse aspecto, os colonos não se sentem autores de nenhuma violência,


pois os próprios colonos são obrigados a passar por semelhantes situações.
Mas já nos parece de reter e de analisar um dos mais formidáveis parado-
xos das ideologias da colonização portuguesa, que classificam os africanos
não só como sendo supersticiosos, mas sobretudo congenitamente pregui-
çosos. Se o catolicismo salienta que a salvação eterna depende do trabalho,
é natural e até necessário que os colonos imponham aos africanos a dureza
das regras da produção. Se os escravos africanos produzem, tal é consequên-
cia não da sua competência como trabalhadores, mas sim da intervenção
dos europeus que os capturam ou os compram em África, para lhes facilitar
o acesso à salvação eterna, graças ao trabalho que lhes é imposto. É certo
que o Brasil classifica os escravos, sobretudo em duas grossas divisões: os
ladinos e os boçais. Embora os trabalhadores mais úteis sejam, neste quadro
classificatório, os mulatos17.
Esta lógica da dominação excessiva, que a Igreja católica autoriza e protege,
ou pratica, serve também para justificar a violência das relações dominadas
pelo recurso ao chicote – ou cavalo marinho – assim como a uma série de
instrumentos destinados a “corrigir” os escravos que se tivessem portado mal,
infringindo as regras do engenho ou da casa-grande. Se bem que a iconografia
só seja explícita no século XIX, devido em particular a Rugendas e a Debret,
são inúmeros os documentos que procedem ao inventário dos instrumentos
de castigo ou de contenção, e que salientam a brutalidade a que recorrem tan-
to os senhores de engenho como sobretudo os seus capatazes. A banalização
da violência da escravatura índia ou africana deixou traços, assegurando a ba-
nalização da violência, seja nos Estados Unidos, seja no Brasil. É Ferreira de
Castro que, em A Selva, descreve, já tarde, em pleno século XX, a sobrevivên-
cia da escravatura e a violência que ela continuava a suscitar e que determina a
acção vingativa de um dos seringueiros18.
Se já pudemos dar-nos conta do grande número de situações paradoxais

17 ANTONIL, André João ( João António Andreoni), Cultura e Opulência do Brasil, (1771), Lisboa, Alfa, 1989.
18 CASTRO, Ferreira de, A Selva, Lisboa, Guimarães, s/d.

137
Isabel Castro Henriques

provocadas pela escravatura, não podemos deixar de evocar o choque entre a


desumanização decidida pelos senhores de engenho e pelo pessoal encarrega-
do de organizar e de controlar o trabalho, e a necessidade sentida pelos afri-
canos de humanizar as relações. Um dos argumentos utilizados pelos teóricos
gilberto-freyrianos reside na evocação da relação maternal que se tece entre
os jovens brasileiros brancos e as “bábás”19. Não deixa de ser curioso que estes
não-racistas – ou tal se pretendendo – se não dêem conta do facto de que,
nestas operações, os africanos perdem uma ampla fracção das suas mulheres,
recuperadas pelos colonos brancos. É todavia a estes escravos africanos que
cabe a tarefa de humanizar as relações no próprio engenho, deixando que a
violência excessiva caiba aos brancos. Como se a desumanização fosse obri-
gatoriamente branca, ao passo que a tarefa da humanização cabia inelutavel-
mente aos africanos. Esta contradição nem sempre tem sido considerada, mau
grado o facto de encontrarmos aí uma das mais poderosas contribuições dos
africanos para repelir a violência do colonizador.
Nos anos finais do século XVIII começos do século XIX regista-se uma agra-
vação do discurso racista de que o poeta Manuel Maria de Barbosa du Bocage
pode ser o expoente, denunciando tanto os mulatos – portugueses ou brasilei-
ros – como os mestiços indianos. A impossibilidade de tais grupos integrarem
a norma urbana portuguesa perturba o poeta, que, nesta circunstância não faz
mais do que assumir a responsabilidade de definir os gostos, as apetências an-
tropomórficas dos portugueses. A linha literária que viera de Alfonso X, o Sábio,
tendo passado por Gil Vicente e Gregório de Matos, encontra em Bocage as
condições que devem permitir a afirmação das novas ideologias20.
Não é por isso de admirar que, nestas circunstâncias se não registe entre
nós a afirmação de uma corrente anti-esclavagista decididamente abolicionis-
ta. Se é certo que os historiadores catam pacientemente as parcas afirmações
anti-esclavagistas, tal se deve à maneira como o país partilha a mesma convic-

19 FREYRE, Gilberto, Casa Grande & Senzala, Rio de Janeiro, José Olympio, 1933.
FERNANDES, Florestan, Significado do protesto negro, São Paulo, Cortez Editora, 1989.
20 MATOS, Gregório de, Obra completa, James Amado ed., Bahia, Janaína, s.d. e BOCAGE, Manuel Maria de Barbosa du, Sone-
tos, Lisboa, Europa-América, 1989.

138
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

ção da inferiorização dos africanos. Se Sá da Bandeira modifica de maneira


substancial a monotonia do discurso colonial português, convém saber que
colonos e funcionários, militares ou civis, decidiram não aplicar a legislação
publicada pelo Estado. A impotência do aparelho de Estado deriva da aperta-
da cumplicidade entre os muitos actores portugueses, que aceitavam a prática
da escravatura como um facto natural.
Só a pressão das nações europeias e mais particularmente da Grã-Bretanha
conseguiu impor ao Estado português uma revisão dos preconceitos e da le-
gislação. Podemos dar-nos conta da manutenção das formas discriminatórias
anti-africanas verificando que a legislação liberal não conseguiu pôr termo ao
tráfico, tal como não pode impor a abolição da escravatura nos territórios ul-
tramarinos. Acresce mais uma razão para rever o quadro tradicional: se, for-
malmente, os portugueses abolem o tráfico negreiro – primeiro – e a própria
escravatura – depois e de maneira progressiva – entre 1836 e 1868, convém
verificar que a escravatura só é abolida no Brasil a 13 de Maio de 1888. Acei-
ta-se geralmente que as medidas adoptadas pelos dois países são autónomas:
trata-se de um franco absurdo, pois a escravatura do Brasil, imposta pela colo-
nização portuguesa, manteve-se activa já depois da independência do país, em
1822. Mas como separar estes dois actores – autênticos gémeos sociais – do
processo esclavagista do Atlântico Sul?

Para uma revisão da história do Atlântico

Uma das revisões indispensáveis no que se refere à escravatura e ao tráfico


negreiro exige que a história do Atlântico adquira enfim a sua autonomia, liberta
da redução do imenso oceano a uma espécie de confettis nacionais. Não parece
possível compreender as condições em que se estruturam tráfico de escravos e
escravatura sem levar em linha de conta a relação geográfica entre o continente
americano e a África, pois só nos anos finais do século XIX se regista a organiza-
ção de uma corrente emigratória para os Estados Unidos – e que também tocou

139
Isabel Castro Henriques

Cuba – com os coolies chineses frequentemente manipulados pelas associações


secretas do Celeste Império. Tais organizações nunca se interessaram pelo Bra-
sil, onde contudo se registou, sobretudo em São Paulo uma forte emigração ja-
ponesa, que deu origem aos milhares de niceis de São Paulo e da sua região.
No que se refere ao espaço português, podemos verificar a perenidade dos
juízos negativos sobre os africanos. Se as forças abolicionistas, inicialmente an-
glófonas, conseguem arrastar consigo uma fracção crescente da sociedade civil,
podemos verificar que, uma vez mais, a maioria dos pensadores portugueses se
desinteressam do assunto. Pelo contrário, uma fracção da inteligência portu-
guesa importa as análises dos anatomistas concentrados na escola antropológi-
ca de Paris, que mobiliza pensadores como Paul Broca ou Vacher de Lapouge,
importados por autores como Oliveira Martins21 ou Eça de Queirós.
A historiografia portuguesa tem exaltado a queda do Antigo Regime, acei-
tando a data de 1834 como sendo paradigmática. Convém ser mais prudente
e analisar a história da escravatura e do tráfico negreiro sublinhando a imo-
bilidade socio-política portuguesa. Não só foi impossível aplicar a legislação
organizada pelo Marquês de Sá da Bandeira, mas regista-se também a per-
manência do tráfico negreiro, assim como o reforço da escravatura interna. A
passagem do tráfico dos homens ao chamado “comércio legítimo”, banaliza e
oficializa a escravatura interna. Parte-se do princípio antropológico da impos-
sibilidade do trabalho dos brancos nos trópicos, para impor o trabalho escravo
que se transforma em trabalho forçado22.
Os dois elementos principais dos fins do século XIX começos do século XX
são, por um lado a legislação inspirada pelo relatório de António Ennes, que
permite reforçar o emergente Estatuto do Indígena – que durou até 1961 – e
legalizar o trabalho compelido. O segundo grande momento desta operação é
consequência da recuperação branca do arquipélago de São Tomé e Príncipe,
onde as duas culturas importadas do Brasil – o café e o cacau – exigem uma

21 MARTINS, J. Oliveira, O Brasil e as colónias portuguesas, Lisboa, Guimarães Editores.


22 HENRIQUES, Isabel Castro, “A (falsa) passagem de escravo a indígena”, Os Pilares da Diferença, Lisboa, Centro de História da
Universidade de Lisboa, 2003.

140
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

força de trabalho numerosa e sempre disponível: os negreiros portugueses,


associados aos roceiros, utilizam uma série de astúcias para conseguir traba-
lhadores nas costas africanas, tanto ocidental como oriental. A administração
e os roceiros portugueses inventam uma espécie de cortina jurídica, multipli-
cando os decretos e outros diplomas legais para recusar reconhecer que, sob
outras designações e outras formas, a escravatura continuava a ser utilizada
para obter rendimentos consideráveis23.
De resto, para dissimular a violência da situação – uma parte destes traba-
lhadores morriam nas plantações, as famosas roças do vocabulário colonial
português –, a administração portuguesa permitiu que se mantivessem os
circuitos e as práticas da escravatura africana. Não faltou quem dela se ser-
visse para justificar as operações portuguesas, esquecendo que a escravatura
africana é sobretudo integradora, nomeadamente pelo recurso ao casamento,
ao passo que a escravatura europeia e nomeadamente a portuguesa, era ex-
cluente. Tolerar, ou mesmo incentivar a escravatura africana tornava até certo
ponto legítima a escravatura organizada pelos europeus, sobretudo a partir
do momento em que os colonos brancos se empenham em organizar uma
agricultura industrial (café, algodão, sisal, cana-de-açúcar, mandioca, milho),
impondo operações de recrutamento maciço que mais tarde se alargaram às
actividades mineiras e mais particularmente diamantíferas, em outras regiões
do império português.
Cria-se deste modo, utilizando a legislação portuguesa de 1891, a figura
do “contratado”, forjada para responder às críticas feitas pelos filantropos, in-
dustriais e jornalistas ingleses, ao que se considera continuar a ser o sistema
português de escravatura. Mau grado a violência das denúncias e das críticas
europeias o aparelho político e capitalista português, mantém – quando não
reforça – o sistema do trabalho compelido, que os portugueses recusam possa
ser apenas uma das máscaras jurídicas da escravatura. A última tentativa por-

23 CAPELA, José, O tráfico de escravos nos portos de Moçambique – 1733-1904, Porto, Edições Afrontamento, 2002; e MEDEIROS,
Eduardo, “A escravatura no norte de Moçambique, formação de novos espaços e entidades políticas na 2.ª metade do século
XIX e século XX”, in Escravatura e transformações culturais – África-Brasil-Caraíbas, direcção de Isabel Castro Henriques, Lisboa,
Vulgata, 2002.

141
Isabel Castro Henriques

tuguesa de dissolver a violência das denúncias internacionais foi a criação dos


assimilados – tradução dos évolués francófonos – que, contudo, deviam adop-
tar os costumes europeus: escolaridade, habitação, alimentação, vestuário. A
assimilação correspondia deste modo a uma autêntica “desafricanização”, ope-
ração que, mais uma vez contraditoriamente, faz dos africanos europeizados o
objecto preferencial da galhofa dos colonos brancos.
Antecedendo a explosão nacionalista do contrato angolana de Fevereiro
e Março de 1961, registou-se uma violenta denúncia do “contrato” por par-
te dos intelectuais africanos. É certo que esta operação já se manifestara en-
tre 1912 e 1914 na imprensa cabo-verdiana – sobretudo em A Voz de Cabo
Verde – mas ela adquire a sua plenitude no período que prepara o combate
armado. Para os africanos o “contrato” não passava de uma dissimulação do
vero estatuto dos africanos, arrebanhados nas suas aldeias pelos funcionários
administrativos ou pelos angariadores pretos, mulatos e brancos autorizados
pela administração civil a proceder aos recrutamentos. O aparelho esclavagis-
ta do passado aceitava algumas mutações que não podiam pôr em perigo o
fluxo dos trabalhadores africanos, sem os quais a produção de riquezas – do
cacau aos diamantes – estaria seriamente comprometida.
Podemos por isso salientar a uniformidade do juízo dos portugueses sobre
os africanos, condenados à condição de sub-homens, dado o seu parentesco
com os grandes macacos, como o orangotango mobilizado por Bocage para
proceder à desqualificação do poeta brasileiro, padre e mestiço, Domingos
Caldas Barbosa, parentesco que também serve a Oliveira Martins para pro-
var “cientificamente” a inferioridade racial dos negros. Destinados ao trabalho
obrigatório, postos à margem da sociedade branca, os africanos só podem por
isso ser os escravos que os portugueses produziram, utilizaram e sacrificaram
durante alguns séculos. Sem interrogações teológicas e sem a menor revisão
eficaz e radical dos preconceitos.

Lisboa, Outubro de 2003

142
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

SER ESCRAVO EM SÃO TOMÉ NO


SÉCULO XVI 1

O problema da escravatura na chamada Época Moderna suscitou nos finais


do século XVIII e ao longo do século XIX os mais vivos debates quer na Amé-
rica quer na Europa. Após um interregno que corresponde à primeira metade
do século XX, o interesse em torno da questão recrudesceu por força de acon-
tecimentos tais como o aparecimento dos Estados independentes em África e
nas Antilhas e o fortalecimento das diversas frentes de luta contra o racismo.
As pesquisas mais recentes efectuadas sobre diferentes situações outrora
existentes no continente americano permitiram detectar lacunas importantes
no domínio do conhecimento dos factos históricos e graves insuficiências a
nível da formulação teórica.
A complexidade do problema da escravatura e a diversidade de formas que
a mesma adquiriu tornaram-se desde logo patentes suscitando as mais diver-
sas interpretações, facto que exigiu a necessidade de um estudo rigoroso das
diferentes situações concretas e da sua correcta inserção quer no tempo quer
no espaço, o mesmo é dizer do seu posicionamento nas várias fases de cons-
trução do sistema capitalista mundial2.
É nesta perspectiva que julgamos dever ser analisada a questão da escrava-
tura em São Tomé, no século XVI. Trata-se de um caso concreto, particular-
mente interessante porque modelo do sistema esclavagista que posteriormen-

2 Ver a este respeito os estudos reunidos por S. Mintz, Esclave = facteur de production. L’économie politique de l’esclavage, Paris, Du-
nod, 1981.

143
Isabel Castro Henriques

te se desenvolveu nas plantações americanas3, que decorre num momento his-


tórico preciso, o da fase inicial da construção do ‘sistema mundial moderno’
(1450-1640), em que Portugal desempenha um papel decisivo4.
Assim, parece-nos fundamental sublinhar duas ideias:
1. São Tomé deve ser entendido como um elemento de uma economia-
-mundo capitalista em formação, apresentando-se como um “labora-
tório experimental” de formas de colonização não originais mas assu-
midas numa perspectiva diferente. Se Portugal aparece como o grande
obreiro desta tarefa, não é menos verdade que aplica e utiliza o saber
de outros, depende dos capitais estrangeiros e das flutuações do mer-
cado europeu.
2. O sistema esclavagista em São Tomé, no século XVI, exige uma análi-
se rigorosa das suas diferentes componentes à luz do lugar que a ilha
ocupa nessa economia-mundo em construção. O mesmo é dizer que o
estudo das condições de vida dos escravos e das formas de tratamento
que lhes são impostas tem que rejeitar qualquer tentativa de compara-
ção com as outras situações que posteriormente se desenvolveram na
fase de consolidação do capitalismo mercantil.

Não é nosso objectivo desmontar aqui, e da forma exaustiva que o proble-


ma impõe, o sistema esclavagista em São Tomé, mas apenas e à luz dos pres-
supostos enunciados fazer uma outra leitura de certos aspectos do quotidiano
do escravo relatados pelos textos portugueses da época.

3 Questão sublinhada por Marion Mallowist, “Les débuts du système de plantation dans la période des Grandes Découvertes”, in
African Bulletin, 10, Warsóvia, 1969.
4 I. Wallerstein, Capitalisme et Economie-Monde, 1450-1640, Paris, Flammarion, 1980.

144
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

Colonizar

A ilha de São Tomé, aparentemente desabitada aquando da sua descoberta pe-


los Portugueses, provavelmente em 21 de Dezembro de 1471, foi objecto de uma
colonização quase imediata, constituindo desde o final do século “o núcleo coloni-
zador donde se espalharam as feitorias do Golfo da Guiné... e que fixou igualmente
a importância de Angola e chamou a atenção para as suas possibilidades”5.
Colonizar significa no novo quadro económico europeu ocupar novos espa-
ços e valorizá-los com vista à resolução dos problemas económicos existentes e
à obtenção de lucros6. Colonizar implicava portanto povoar, fixar uma popula-
ção capaz de assegurar a rendibilização do empreendimento. E daí a introdução
de uma cultura especulativa, o açúcar, produto altamente apreciado no mercado
europeu e cuja procura vai crescer progressivamente a partir de 15007.
Desde o início, o processo de colonização faz apelo a uma população he-
terogénea:

a. Portugueses, fundamentalmente degredados, tal como referem os do-


cumentos da época: “esta ilha está situada sob o Equador e o Rei tem-na
povoado com indivíduos que por causa dos seus crimes incorreram nas
penas de morte ou de degredo”8. É conveniente sublinhar que as condi-
ções demográficas existentes em Portugal impediam necessariamente a
saída de colonos9, sendo também que a ideia de colónia se associava à de
território capaz de acolher a população indesejável na metrópole10.

5 J. Cortesão, Os Portugueses em África, Lisboa, Portugália Editora, 1968, p. 12.


6 Wallerstein, op. cit., cap. I.
7 V.M. Godinho, Os Descobrimentos e a Economia Mundial, Lisboa, Arcádia, 1965, vol. 2, cap. 6.
8 A. Brásio, Monumenta Missionaria Africana, 1.ª Série, vol. IV, Lisboa, Agência Geral do Ultramar, 1954, n.º 6, p. 16. A questão é
igualmente referida, em 1506-1510, por Valentim Fernandes, Description de la Côte Occidentale d’Afrique au Cap Monte, Archipels),
introduction de Th. Monod, A. Teixeira da Mota e R. Mauny, Bissau, Centro de Estudos d Guiné Portuguesa, 1951, p. 120.
9 A. Teixeira da Mota, Alguns aspectos da colonização e do comércio marítimo dos Portugueses na África Ocidental nos sécs. XV e XVI,
Lisboa, J.I.C.V., 1976, pp. 22-23. Contrariamente à situação francesa no século XVI, onde a alta densidade demográfica permitiu
o envio de um número considerável de contratados franceses para as Antilhas, até meados do séc. XVII. Ver William Cohen,
Français et Africains. Les Noirs dans le regard des Blancs (1530-1880), Paris, Gallimard, 1981, pp. 68-72.
10 No final do séc. XVI, Jean Bodin sublinha essa função da colónia: território de acolhimento de uma população excedentária (caso
da França) e indesejável. Ver Cohen, ibid.

145
Isabel Castro Henriques

b. Outros Europeus, não só os judeus castelhanos que acompanhavam


Álvaro de Caminha, 3.º donatário da ilha, em 149311, mas também
“muitos comerciantes portugueses, castelhanos, franceses e genove-
ses e de qualquer outra nação que aqui queiram vir habitar, se acei-
tam todos de mui boa vontade”, já que quando “algum negociante
de Espanha ou de Portugal ou de outra qualquer nação vem aqui
habitar, é-lhe assinado pelo feitor d’el-rei, por via de compra e de
preço cómodo, tanto terreno quanto lhe parece que tem modo de
fazer cultivar”12.
c. Africanos, “escravos negros com suas escravas... de Guiné, Benim e
Manicongo e os empregam aos casais em cultivar as terras para fazer
plantações e extrair os açúcares”13. Elementos indispensáveis ao desen-
volvimento da indústria açucareira, principal actividade económica
da ilha, os Africanos constituem desde o início o núcleo populacio-
nal mais numeroso, como refere Valentim Fernandes, nos princípios
do século XVI, assinalando “mil moradores” para “2000 escravos que
sempre roçam, cavam e trabalham afora dos escravos de resgate que
são ás vezes 5 000 e 5 000”14, proporção que, ao longo do século, com o
incremento das plantações, se irá alterar de forma significativa a favor
dos Africanos.

Mas se o açúcar é efectivamente o objectivo central do processo coloni-


zador, as características ecológicas da ilha, a sua posição geográfica, isolada
e simultaneamente próxima do litoral africano, permitiram transformá-la
rapidamente em centro de introdução e de experimentação de plantas im-
portadas, em ponto de apoio aos navios portugueses e mais tarde aos navios
estrangeiros que aí se vão abastecer para as suas viagens transatlânticas, de-

11 Valentim Fernandes, op. cit., p. 118.


12 Piloto anónimo, Viagem de Lisboa à Ilha de S. Tomé, escrita por um piloto português (século XVI),introdução e notas de Augusto
Reis Machado, Lisboa, Portugália Editora, s.d., pp. 51 e 59.
13 Ibid., p. 54.
14 Valentim Fernandes, ibid., p. 120.

146
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

sempenhando, e de forma crescente, as funções de centro de armazenamento


e de redistribuição de escravos vindos do continente africano e destinados
ao Novo Mundo. Esta multiplicidade de funções, bem explícita nos textos da
época15, deve associar-se ao “carácter experimental” da ilha – “ensaiar” ho-
mens, plantas, formas de trabalho e fontes de lucro – e é característica desta
fase inicial do desenvolvimento do capitalismo.
Povoar a ilha, produzir o açúcar, garantir directa ou indirectamente o de-
sempenho das outras funções que São Tomé assegura no contexto específico
do século XVI, conduzem-nos ao escravo africano, elemento essencial de todo
este processo de colonização.

Um regime de trabalho “muito curioso”

“Os negros vinham do Benim, da Guiné e do Manicongo e o seu regime de


trabalho era muito curioso. Só se aceitavam negros acasalados que tinham por
obrigação trabalhar toda a semana para o senhor, excepto aos sábados que re-
servavam para si próprios. Com quatro dias mensais inteiramente livres paga-
va-se o trabalho árduo das semanas; o senhor não fazia qualquer despesa com
eles com vestuário, alimentação e habitação. Eles próprios providenciavam no
dia livre semanal às suas necessidades... Relacionando este regime de trabalho
com as ordens dadas aos vários donatários no sentido de serem estimuladas
as ligações entre brancos e negros e devendo considerar-se livres as mulheres
e os seus “frutos”, sou levado a concluir que o africano, por estes tempos de S.
Tomé, não estava sujeito a um regime de escravidão pura; era antes um servo
a quem se pedia trabalho, mas a quem por outro lado se permitia uma relativa
liberdade na prática dos seus hábitos. Pela influência da mulher, o servo guin-
dava-se a uma posição superior”16.

15 Desde o início do século, Valentim Fernandes fornece dados que nos permitem concluir sobre essas diferentes funções. Do mes-
mo modo, o Piloto anónimo, em meados do século, faz alusão às diferentes actividades que se desenvolveram na ilha.
16 Francisco Tenreiro, A ilha de S. Tomé, Lisboa, J.I.U., 1961, pp. 69-70.

147
Isabel Castro Henriques

Esta interpretação de Francisco Tenreiro, geógrafo de formação, defendida


aliás por outros estudiosos portugueses seus contemporâneos e que, de uma
forma geral, se insere numa corrente historiográfica portuguesa dos Descobri-
mentos, presa a um contexto ideológico marcado pela necessidade de defen-
der a presença portuguesa em África e o carácter pretensamente tolerante da
nossa ocupação, reforçado pelas teorias do luso-tropicalismo17, representa um
exemplo típico de falta de rigor teórico na análise dos problemas históricos.
O autor ao concluir sobre a não existência de um “regime de escravidão”
mas sim de servidão em São Tomé, no século XVI, interpreta de forma apres-
sada e discutível os textos a que teve acesso.

Da “miscigenação”

A existência de um “regime de escravidão” não pode ser rejeitada, tal como


o faz o autor, com base nas ordens régias destinadas a “estimular as ligações
entre brancos e negros devendo considerar-se livres as mulheres e os seus fru-
tos”. Se o primeiro objectivo destas medidas é o povoamento da ilha, o outro
é necessariamente a formação de um grupo social mestiço, consciente do seu
poder, adaptado ao contexto ecológico local e capaz de assegurar e desenvol-
ver a exploração de São Tomé, no quadro económico da época.
Referimos já que o povoamento da ilha não podia ser feito apenas com
população europeia. Não só pela incapacidade portuguesa em exportar gen-
te como também pela dificuldade de adaptação/sobrevivência às condições
locais. O problema não se circunscrevia às características do clima, que con-
tribuía para uma mortalidade precoce dos Brancos18, ou aos problemas ali-
mentares já que “se não fossem estes navios” vindos da Europa e trazendo bar-
ricas de farinha, vinhos de Espanha, azeites, queijos... os mercadores brancos
morreriam porque não estão acostumados às comidas dos negros”19, facto

17 Ver a obra de Gilberto Freyre, em particular, 1940 e 1961.


18 Piloto Anónimo, op. cit., p. 78.
19 Ibid., p. 53.

148
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

que tendo em conta os condicionalismos da navegação da época impediria


o abastecimento regular de uma numerosa população branca. Era também a
própria reprodução que parecia estar condenada, tal como o sublinha Valen-
tim Fernandes em duas passagens do seu manuscrito: referindo-se aos me-
ninos judeus castelhanos diz que “o dito capitão os casou porẻ poucas dellas
parẻ dos homẻs alvos, muyto mais parẻ as alvas dos negros se nõ cõ negros ou
negras”20. Daí o recurso aos cruzamentos por razões que se prendem com a
necessidade de colonizar.
É importante sublinhar que noutras situações em África e no século XVI
– os casos de Arguim e de São Jorge da Mina – foram dadas ordens régias proi-
bindo as relações dos Portugueses com as mulheres negras, contrariando-se
assim a miscigenação21.
Por outro lado é igualmente importante salientar que estes cruzamentos
não decorrem de qualquer atributo específico dos Portugueses pois que já o
Piloto Anónimo é bem claro ao afirmar: “habitam ali muitos comerciantes
portugueses, castelhanos, franceses e genoveses e de qualquer outra nação...
morrendo-lhes as mulheres brancas as tomam negras, no que não fazem muita
dificuldade, sendo os habitantes negros de grande inteligência e ricos, e crian-
do suas filhas ao nosso modo, tanto nos costumes, como no traje, e os que nas-
cem destas tais negras são de cor parda e lhes chamam mulatos”22. Aliás, em
outras colónias do Novo Mundo, os casamentos mistos eram permitidos, se
bem que raros. É o caso por exemplo, das Antilhas francesas onde tais uniões
estavam previstas no Código Negro, tendo sido proibidas apenas a partir de
1711. Os filhos nascidos desses casamentos eram livres bem como as mulhe-
res negras casadas com brancos, que ascendiam assim à “honestidade”23.
Deste modo, se foi constituindo um grupo mestiço, essencial à concreti-
zação da própria colonização, com acesso aos “ofícios do concelho segundo

20 Valentim Fernandes, op. cit., pp. 118 e 132.


21 Mota, op. cit., pp. 19 a 29.
22 Piloto Anónimo, ibid., pp. 51-52.
23 Cohen, op. cit., p. 84.

149
Isabel Castro Henriques

seus merecimentos” e se “forem homens de bem cazados”24, onde se integram


alguns Africanos negros, como é o caso de “um negro chamado João Menino,
homem muito velho... negro riquíssimo... que tinha filhos, netos e bisnetos ca-
sados...”25, livres, “aculturados” e ricos, situação cujo esclarecimento nos parece
fundamental para uma compreensão do sistema esclavagista em São Tomé26.
Este grupo é, pois, o elemento indispensável ao controlo por parte do co-
lonizador e consequentemente à manutenção e à reprodução de um sistema
que assenta na força de trabalho escrava. A sua existência não anula mas antes
co-existe com o trabalho escravo.

Do “acasalamento” e da “liberdade” dos escravos

Um outro argumento que leva Francisco Tenreiro a rejeitar a existência de


um “regime de escravidão” e a classificar o regime de trabalho de “muito curio-
so”, baseando-se no texto do Piloto, é “a relativa liberdade na prática dos seus
hábitos”, permitida à mão-de-obra africana pelo colonizador. Ora, uma leitura
atenta das passagens mais significativas do texto do Piloto Anónimo Portu-
guês relativas a esta questão, diverge bastante da leitura optimista de Tenreiro:
1. “Cada habitante compra escravos negros com suas escravas... de Gui-
né, Benim e Manicongo e os empregam aos casais, em cultivar as terras
para fazer as plantações e extrair os açúcares”27;
2. “E há homens ricos que possuem cento e cinquenta, duzentos e até tre-
zentos entre negros e negras, os quais têm obrigação de trabalhar toda
a semana para o seu senhor, excepto no sábado, que trabalham para
si, e nestes dias, semeiam milho zaburro... as raízes de inhame e muita

24 Por concessão de D. João II, posteriormente confirmada por D. Manuel e D. João III. Citações in “Revolta dos Escravos em S.
Tomé”, in História e Sociedade, 8-9, Lisboa, 1981, p. 94.
25 Piloto Anónimo, op. cit., p. 78.
26 Segundo o Piloto Anónimo este “negro riquíssimo” teria sido levado nos primeiros tempos da colonização do litoral africano para
São Tomé como homem, livre ou como escravo? Se foi como escravo, como é que se tornou livre e “riquíssimo”? Uma hipótese
possível: a vida do casamento com uma mulher branca (uma “menina judia” das que foram transportadas por Álvaro de Caminha
e “cruzadas” com negros (?), como refere Valentim Fernandes, op. cit., p. 118) e o acesso às diferentes actividades económicas da
ilha, na primeira metade do século XVI.
27 Piloto Anónimo, ibid., p. 54.

150
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

hortaliças oficinais como alfaces, couves, rábanos, beterrabas e aipo, as


quais semeadas crescem em poucos dias e são muito boas”28. E acres-
centa o autor: “O senhor não dá coisa alguma àqueles negros... nem
mesmo faz despesa em dar-lhes vestidos, nem de comer, nem em mar-
dar-lhes construir choupanas, porque eles por si mesmos fazem todas
essas coisas”29, permite-nos concluir, em primeiro lugar, que a compra
e a utilização dos escravos negros aos casais não só não significa a não
existência da escravatura, como representa uma forma de organização
da mão-de-obra que permite ao proprietário a obtenção de diversos
benefícios. A saber:
a. do “acasalamento” resulta uma estabilidade fisiológica e psi-
cológica que conduz a um maior rendimento do trabalho;
b. a reprodução da mão-de-obra para a plantação está assegura-
da não havendo portanto necessidade de aquisição no exterior;
c. a reprodução pode conduzir à existência de um excedente de
mão-de-obra desviado para o comércio de escravos, constituindo
outra fonte de lucro para o proprietário.

Neste período quinhentista, esta forma de aquisição e de utilização da


mão-de-obra escrava “aos casais” não é específica da situação concreta vivida
em São Tomé, tal como assinala o Piloto Anónimo ao referir-se aos escravos
levados para a ilha de Santiago “aonde de contínuo chegam navios com mer-
cadorias de diversos países e províncias, principalmente da Índia descoberta
pelos espanhóis, os quais recebem algumas mercadorias em troca e querem
sempre ter tantos machos como fêmeas, porque os que depois lhos compram,
sempre os ajuntam aos pares, pois doutro modo não fariam bom serviço”30.
Deste modo a preferência dada pelos plantadores aos escravos “acasalados”
estende-se, neste século XVI, também às regiões do Novo Mundo.

28 Piloto Anónimo, ibid.


29 Ibid., p. 60.
30 Ibid., p. 38.

151
Isabel Castro Henriques

Se relacionarmos este facto com outra indicação fornecida pelo Piloto


Anónimo na primeira citação acima referida – cada habitante compra os seus
escravos –, e tendo presente que desde 1485, em carta dirigida ao capitão da
ilha, D. João II concede aos moradores o privilégio “para poderem resguatar
escravos... nos cinquos rios dos escravos allem da Mina...”31, compreendere-
mos uma das características essenciais desta fase inicial de construção de uma
economia-mundo capitalista: a existência de uma não diferenciação entre
uma classe de proprietários (das terras e dos escravos) e uma classe de comer-
ciantes. Esta diferenciação acentuar-se-á progressivamente com o desenvolvi-
mento do comércio colonial, e do seu sector mais rendível, o tráfico negreiro,
a partir da segunda metade do século XVII, quando as potências europeias
detentoras de colónias nas Américas definem rigorosamente e praticam uma
política económica mercantilista.
No Brasil, por exemplo, os proprietários das plantações podiam impor-
tar os seus escravos32, tendo obtido desde 1558 o direito de se abastecerem
directamente com a condição de não importarem mais de 120 escravos por
ano e por proprietário33. O aparecimento de uma classe de comerciantes
independentes dos produtos (do açúcar, por exemplo), a partir de 1640,
criando um verdadeiro monopólio da oferta, está ligada a uma efectiva orga-
nização do comércio de escravos como actividade independente e altamen-
te lucrativa.
Assim, no novo contexto dos séculos XVII-XVIII, a preocupação de
comprar escravos “aos casais” deixa de ser válida do ponto de vista econó-
mico, tanto mais que a necessidade crescente de aumentar a produção nas
colónias vai conduzir a um endurecimento das condições de vida e de tra-
balho dos escravos, que vêem a sua esperança de vida reduzida a menos de
uma década, depois da sua chegada à plantação. Esta dura situação conduz
o escravo a evitar a procriação – questão vista por alguns autores como uma

31 Livro das Ilhas, Lisboa, A.N.T.T., s.d., fol. 109-111v.


32 O que não exclui, obviamente, outras formas de abastecimento. Ver Katia Queirós Mattoso, Être esclave au Brasil – XVUI-XIX,
Paris, Hachette, 1979, pp. 31-33.
33 Ibid., p. 60.

152
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

forma de resistência34 –, e leva o proprietário a desinteressar-se das uniões


entre escravos. Comprar escravos-homens (as mulheres são consideradas
menos rendíveis porque fisicamente mais frágeis e envelhecendo mais ra-
pidamente) e adultos torna-se mais barato para o proprietário do que criar
filhos de escravos: a mortalidade infantil era enorme, sendo necessário es-
perar 10/15 anos para que o escravo produzisse verdadeiramente e o tempo
gasto pelos pais/escravos durante a infância do filho era um “roubo” feito ao
proprietário35.
Deste modo se pode compreender a legislação que, no século XVIII – pe-
ríodo de apogeu do tráfico negreiro – proíbe as uniões entre escravos, por
exemplo, nas colónias inglesas da América do Norte, e aquela outra que, já
no século XIX, quando o comércio de escravos agoniza, facilita o casamento
entre escravos, proibindo a venda separada de escravos “acasalados”36.
Comprar e empregar escravos aos casais não constituiu portanto uma prática
específica dos Portugueses de São Tomé nem se explica através de um compor-
tamento “mais humano” levando à eliminação do escravo. A sua justificação só é
possível inserindo o problema no contexto económico do século XVI.
A segunda citação do Piloto Anónimo, que aborda, em particular, as con-
dições de vida quotidianas do escravo37, permite-nos sublinhar algumas ideias
que reforçam a nossa demonstração:

a. a capacidade de trabalho da mão-de-obra africana seria seriamente


afectada caso se lhe impusesse uma ruptura total em relação às suas
condições de vida anteriores. A passagem violenta de um sistema de
agricultura de subsistência para um sistema de monocultura provoca-
ria danos físicos e psíquicos à mão-de-obra utilizada e traduzir-se-ia
por uma menor rendibilidade no trabalho.

34 Ibid., p. 145.
35 Ver, por exemplo, Michel Fabre, Esclaves et Planteurs, Paris, Gallimard, 1978, p. 14 e Mattoso, ibid., pp. 143-145.
36 Mattoso, ibid.
37 Sobre esta questão, ver E. Genovese, “Le traitement des esclaves dans différents pays: problèmes d’application de la méthode
comparative”, in Mintz, op. cit., pp. 172-183.

153
Isabel Castro Henriques

b. O simples facto dos escravos providenciaram totalmente às suas ne-


cessidades quotidianas reduz de forma notável as despesas do pro-
prietário, que, ao “perder” um dia de trabalho por semana poupa na
manutenção do escravo e aumenta a sua esperança de vida. Parece-
-nos importante salientar que se, nos séculos seguintes, em numero-
sas colónias da América (Estados Unidos, por exemplo), o proprietá-
rio satisfazia totalmente as necessidades dos escravos, noutras coló-
nias, nas Antilhas Britânicas, por exemplo, os escravos asseguravam a
sua própria alimentação cultivando parcelas de terra reservadas para
o efeito38. Note-se ainda que neste século XVI, tal como já referimos,
a actividade comercial (comprar/vender escravos) considerada iso-
ladamente, ainda não representa uma actividade lucrativa. Aliás, a
proximidade de São Tomé do litoral africano e consequentemente
das fontes de mão-de-obra escrava não permitiria sequer a criação de
um sistema comercial autónomo, dada a sua acessibilidade aos pró-
prios plantadores;
c. A lucrativa monocultura da cana encontra-se desde o início associada
à cultura de outras plantas de subsistência que necessitam de mão-de-
-obra adaptada ao seu cultivo39. Os Africanos, oriundos de um sistema
produtivo baseado na agricultura de subsistência vão revelar-se indis-
pensáveis neste domínio, provendo não só às suas necessidades como
também produzindo excedentes que revertem integralmente a favor
do senhor. Já em 1500, uma concessão régia permite “aos moradores
e povoadores da dita ilha... vir vender aos moradores... de Sam Jorge
todollos mantymentos frutas e legumes que teverem na dita ilha e ave-
rem por ell ouro”40, mantimentos esses obtidos através do trabalho dos
seus “escravos q lhr trabalhẻ e roçã e criã ynhames e milho cõ q gaña

38 Genovese, ibid., p. 174.


39 Valentim Fernandes em 1506-1510 e o Piloto anónimo, em meados do século, referem as numerosas plantas introduzidas e culti-
vada sem S. Tomé. São aliás abundantes os textos da época que sublinham a preocupação portuguesa de experimentar em África
as culturas novas.
40 Livro das Ilhas, fol. 82.

154
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

bem”, como sublinha Valentim Fernandes41. Em meados do século, o


Piloto Anónimo salienta outra fonte de lucros para os moradores de
São Tomé: referindo-se às diferentes qualidades de inhames, “princi-
pal sustento... dos negros de S. Tomé”, sublinha que os “negros plantam
bastantes porque também os navios levam muitas”42.

O escravo africano não é, pois e apenas, o elemento indispensável à pro-


dução do açúcar mas garante também uma produção agrícola destinada a res-
ponder aos objectivos comerciais do seu proprietário: abastecer os navios em
trânsito, fornecer os produtos indispensáveis aos portugueses de São Jorge da
Mina que, encravados em terra africana, não dispõem da capacidade de cul-
tivar os mantimentos necessários à sua subsistência, assegurar a alimentação
dos escravos armazenados.
É bem evidente que se algumas das plantas cultivadas são importadas do
exterior, outras pertencem à agricultura tradicional africana, o que se, necessa-
riamente, permite aos Africanos manter “a prática dos seus hábitos”, de forma
alguma contradiz a existência de uma situação de escravatura. As característi-
cas que esta assumiu explicam-se pela necessidade de ensaiar formas de colo-
nização tornando lucrativo o empreendimento e pela preocupação de manter
uma certa “harmonia” indispensável à experimentação e concretização das
múltiplas funções que a ilha tem que assegurar, no quadro económico do sé-
culo XVI.
Deste modo, podemos concluir que através do seu trabalho, o escravo afri-
cano, assegura a concretização dos objectivos económicos dos Europeus. Ar-
rancado de um modo necessariamente violento ao seu meio de origem, viu
destruídas não só todas as formas de sociabilidade em que participava, como
a sua própria identidade. Tornou-se coisa, objecto, mercadoria, propriedade
do seu senhor, transmissível como qualquer outro bem aos seus descenden-

41 Valentim Fernandes, op. cit., p. 120.


42 Piloto anónimo, op. cit., p. 120.

155
Isabel Castro Henriques

tes, como o provam os documentos da época43. A sua condição de escravo


é permanente e hereditária. Estrangeiro, socialmente desenraizado, perdeu o
controlo não só do seu trabalho mas também da sua pessoa. E esta condição
transmite-se indefinidamente aos seus descendentes, a menos que o proprie-
tário rompa a cadeia através da libertação. Aliás, o sistema tenderá, ao conso-
lidar-se, a impedir o escravo de se reproduzir biológica e socialmente44, o que
se verifica, tal como o referimos, a partir de meados do século XVII e ao longo
do século XVIII.
A escravatura foi o sistema de trabalho preponderante na colonização de
São Tomé, no século XVI. Os aspectos salientados por Francisco Tenreiro
para demonstrar a “brandura” do sistema não resultam de um humanismo es-
pecífico dos Portugueses, mas do “carácter experimental” da ilha, nesta fase
inicial do desenvolvimento do capitalismo.
Os “bons” tratamentos e as “boas” condições de vida dos escravos em São
Tomé devem ser analisados não à luz de comparações com situações poste-
riores verificadas no continente americano, mas da realidade económica do
século XVI, em que o escravo africano é fundamentalmente procurado como
mão-de-obra e não ainda, como acontecerá, um século mais tarde, como mer-
cadoria cuja transacção permite a realização de lucros fabulosos.
Finalmente, este trabalho procurou por em evidência a necessidade de se
proceder a uma desmontagem rigorosa e crítica dos diferentes componentes
do sistema esclavagista, em São Tomé, tendo presente a urgência de rejeitar
interpretações incorrectas, produto de um contexto ideológico ultrapassado,
e de procurar nas correntes historiográficas actuais os suportes teóricos e os
métodos de análise indispensáveis à clarificação deste problema.

Lisboa, Outubro de 1986.

43 Por exemplo, um inventário “das cousas de Álvaro Borges falecido a 4 de Novembro de 1506” refere “utensílios de cozinha, escra-
vos e escravas, roupas... esteira de Beny..., almadias dos rios...” etc., Lisboa, A.N.T.T., Corpo Cronológico II, 15-17.
44 Claude Meillassoux, “Modalités historiques de l’exploitation et de la surexploitation du travail”, in Connaissance du Tiers-Monde,
Cahiers Jussieu/Univ. Paris VII, Paris, U.G.E., 1979, pp. 140-143.

156
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

A Revisão da Escravatura e do
Tráfico Negreiro em Moçambique
na Obra de José Capela*

A publicação recente do novo livro de José Capela O tráfico de escravos nos


portos de Moçambique – 1733-19041 obriga a repensar a diversidade dos pro-
blemas relacionados com a escravatura e com o tráfico de escravos naquela
região da África e num período em que se verifica o reforço deste comércio
no próprio Índico, caracterizado pelo alargamento do comércio de africanos
para as Américas.
Se a cronologia não é, nem pode ser, o “abre-te sésamo” do historiador,
também se pode dizer que cabe ao historiador não só organizar a história em
função do fio cronológico, mas considerar os instrumentos que melhor res-
pondem à própria concepção do tempo numa cultura ou numa civilização
determinadas.
A leitura da bibliografia de José Capela, mostra-o intervindo na produção
livresca a partir dos anos 1971, embora a sua escrita tenha conhecido uma
aceleração a partir de 1974. José Capela instala-se na aresta crítica da evolução
política desejada e já anunciada, para passar à análise rigorosa, lúcida, qua-
se sempre impiedosa das relações coloniais e colonialistas em Moçambique.
Sempre considerei que o seu primeiro grande livro, O vinho para o preto, de
1973, salientava já a formidável contradição do colonialismo, que fornecia à
África uma miserável zurrapa, permitindo que os produtores e comerciantes

* Texto publicado in Africana Studia, nº5, Porto, CEA-UP (Universidade do Porto), 2002, pp. 213-226.
1 CAPELA, José, O Tráfico de Escravos nos portos de Moçambique – 1733-1904, Porto, Edições Afrontamento, 2002, 395 páginas,
gráficos, repertórios, índices e bibliografias.

157
Isabel Castro Henriques

portugueses pudessem enriquecer intoxicando os africanos. Se bem que não


o revelando imediatamente, este estudo abria a porta à análise das condições
de dominação que sempre caracterizaram o colonialismo português. Embora
não o proclamando, a obra de José Capela repele qualquer complacência luso-
-tropicalista que foi, e continua a ser em alguns sectores da sociedade portu-
guesa, a teoria explicativa das relações coloniais portuguesas.
É por isso que se podem continuar a reler os trabalhos de José Capela com
uma espécie de regozijo interior: afinal a história portuguesa podia separar-se
da enxúndia do discurso colonialista da auto-satisfação, para proceder a uma
análise crítica, que muitos consideram demasiado brutal.

Uma nova epistemologia da escravatura

A obra já volumosa e fundamental de José Capela pode dividir-se em dois


grupos, sendo o primeiro consagrado a uma história denunciadora e polémi-
ca, que se inscreve já no anti-colonialismo que se define nos espaços de lín-
gua portuguesa apenas a partir de Fevereiro de 1961, e o começo daquilo a
que continua a chamar-se “guerra colonial” e que devia ser classificado como
“guerra da independência”. É quase certo, contudo, que num futuro próximo
a reflexão historiográfica das novas repúblicas africanas reporá as etiquetas no
seu lugar. Este primeiro grupo da escrita de José Capela encontrou um eco le-
gítimo no que se refere ao trabalho do historiador, levando sobretudo em con-
ta a sua função de análise denunciadora, tendo agora uma parte substancial da
atenção do autor sido mobilizada pelas condições de violência do comércio
esclavagista.
Ao longo dos últimos trinta anos, José Capela dedicou-se a investigar os
múltiplos aspectos da escravatura em Moçambique, região menos estudada
entre nós, já que as formas angolanas, certamente devido à sua relação com
a América em geral, e o Brasil em particular, foram sempre privilegiadas na
historiografia portuguesa. O Atlântico diferencia-se dessa maneira do Índico,

158
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

se bem que a utilização dos escravos moçambicanos se verifique já no século


XVI. Mas não foram eles exportados para Portugal, como se verificou no caso
dos angolanos. As próprias correntes migratórias africanas atingem poucos
moçambicanos, que formam em Portugal um núcleo demograficamente re-
duzido, contrariamente ao que se regista no caso dos angolanos, dos cabo-ver-
dianos e até dos santomenses.
Este imenso e belíssimo novo livro não foge às regras habituais de rigor
que caracterizam a obra de José Capela. Mesmo se, aqui e ali, ficam algumas
certezas talvez excessivas, como aquela que afirma que “sistemas de cativeiro
sempre terão existido” (p.11), o que nos obrigaria a considerar a existência de
uma fatalidade biológica, que obrigaria o homem a impor a sua dominação
ao vizinho, ao Outro em geral. Sendo também visível a hesitação que se esta-
belece, na língua portuguesa, entre o estatuto do “cativo” e do “escravo”. Sem
pretender evocar a etimologia do escravo, é contudo evidente que a substitui-
ção do cativo pelo escravo ou a justaposição de dois termos, corrente na nossa
literatura, é ambígua e exige explicação. O próprio autor procura mostrar que
as diferentes formas de dominação dos homens dependem de condições his-
tóricas precisas.
Se bem que na capa desta obra se anuncie o tráfico de escravos nos portos
de Moçambique, o título interior fornece as indicações cronológicas indispen-
sáveis: 1733-1904, ou seja cerca de dois séculos de história tormentosa. José
Capela salienta a mudança registada na organização do tráfico dos escravos
no Índico, com o reforço da circulação do comércio negreiro no Atlântico. De
resto, José Capela não pretende abarcar todas as facetas da escravatura, pois se
refere a existência de condições particulares da organização social moçambi-
cana, não é para analisar as formas específicas da dominação. E, se o historia-
dor não pode deixar de recorrer à antropologia, não se deixa ele arrastar por
esta disciplina, a ponto de diluir o vigor da história, como por vezes acontece.
José Capela não pode deixar de evocar os preconceitos do colonizador que
servem de justificação ética considerada suficiente: se os africanos são pregui-
çosos e indolentes, só pela violência podem ser levados a produzir. Esta justifi-

159
Isabel Castro Henriques

cação preconceituosa serve para justificar dominação, escravatura, exploração,


mantendo-se como justificação dinâmica até ao relatório e à legislação de tra-
balho compelido, no qual António Ennes desempenhou um papel primordial.
Não é, por isso, por acaso, que a sua figura em bronze pertence aos “heróis
culturais portugueses”, hoje aposentados na fortaleza de Maputo.
José Capela procura, na esteira de tantos outros historiadores, definir as
diferenças entre as formas de dominação africanas, ou até orientais e aquelas
criadas pelos europeus, que se começaram a banalizar sobretudo a partir do
século XVI. Se os africanos conhecem formas de dominação, não parece muito
acertado classificá-las de acordo com a grelha europeia, organizada no Medi-
terrâneo e consequência do próprio processo religioso, com a participação das
três religiões fundamentais – judaísmo, islamismo e cristianismo. Na análise
do estatuto e da responsabilidade individuais, substituídas pela responsabili-
dade colectiva, José Capela, recorrendo à documentação portuguesa, põe em
evidência a falsa passividade dos escravos, vítimas antes do próprio sistema
cultural moçambicano, incapaz de compreender os autênticos objectivos das
formas de comercialização e de dominação europeias.
Contraditoriamente, José Capela salienta a extrema flexibilidade das socie-
dades africanas, onde a escravatura – será este o termo conveniente para clas-
sificar as formas de dominação africanas? – não impede nunca a integração: os
escravos, qualquer que tivesse sido a sua forma de produção, “acabavam por ser,
de uma ou outra maneira, integrados nessas mesmas sociedades”2. Não parece
excessivo concluir que a diferença entre as práticas africanas e as asiáticas ou eu-
ropeias, reside precisamente na “comercialização” dos africanos provocada pelo
tráfico, que corresponde de facto a uma “coisificação” dos homens, o que não se
verifica nas sociedades africanas, onde o próprio estatuto dos chefes de família,
mas também dos chefes políticos, depende do número de dependentes.
Convém contudo salientar a existência do que podemos designar como
sendo uma ruptura epistemológica, que levou as autoridades e as próprias

2 CAPELA, o.c., p.14.

160
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

famílias africanas a vender os seus membros, que ainda por cima são embar-
cados para ser levados para destinos que durante muitos anos não foram se-
quer conhecidos pelas sociedades africanas. A verdade porém é que, em de-
terminado momento da história política e cultural de Moçambique, se regista
a comercialização dos homens, na qual participam todas as instâncias sociais
existentes.
José Capela empenha-se em proceder ao inventário e à análise dos siste-
mas de ideias, assim como das instituições que se encarregaram de assegurar
a banalização da escravatura. Embora, pelo menos nos subentendidos, José
Capela ponha em evidência a responsabilidade dos europeus, seja qual for a
categoria a que pertencem. O próprio clero católico, empenhado em assegurar
os valores do pé de altar, mostrou-se quase sempre um agente activo na produ-
ção de escravos, esquecendo a sua função de salvador das almas.
De resto, salienta ainda José Capela, confirmando na situação de Moçam-
bique o que já fora posto em evidência na costa ocidental e mais particular-
mente nos arquipélagos de Cabo Verde e de São Tomé e Príncipe, assim como
em Angola: o tráfico negreiro não depende de uma anestesia dos valores éti-
cos, pois implica uma convergência de todos os grupos sociais, empenhados
em enselvajar o outro africano, maneira de o transformar “legitimamente” em
escravo.
É com razão que José Capela salienta a importância crucial das questões de
género, na medida em que o casamento constitui um mecanismo essencial na
organização da norma social africana. A complementaridade dos sexos, da qual
depende a própria reprodução, permite a integração dos importados no quadro
familiar e do parentesco. Pode até dizer-se que o parentesco desempenha um
papel ambíguo, face à responsabilidade colectiva que, salienta Capela, constitui
um dos pilares do funcionamento harmónico das sociedades africanas3.
Por razões evidentes, Capela tece algumas considerações a respeito da es-
cravidão nas sociedades africanas, embora haja talvez aqui razão para suscitar

3 Id., ibid., p. 14.

161
Isabel Castro Henriques

o problema etimológico, pois escravo não é um substantivo africano, sendo


como é um latinismo criado no Mediterrâneo para responder às novas con-
dições de dominação que se iam organizando, sobretudo nas relações com
os países e as regiões do Leste europeu. O facto do termo se ter generalizado,
quando não até universalizado, não elimina a necessidade de analisar a língua
como portadora das marcas sociais que permitem decifrar a origem e a função
das palavras.

O comércio negreiro europeu no Índico


e a relação com o Brasil

O estudo de José Capela organiza-se em função do tráfico negreiro susci-


tado pelos europeus, sobretudo portugueses e franceses. De resto, esta obra
começa por analisar as relações com os franceses no século XVII, na medida
em que, instalados nas Mascarenhas e nas Comores, os franceses modificam
de forma substancial a circulação no Índico. Esta forte presença francesa pare-
ce ter influído nas relações com o próprio Rio de Janeiro (pelo menos a partir
de 1773), registando-se também em 1772 nas ilhas do cabo Delgado, e deven-
do também contabilizar-se a sua influência na evolução de Quelimane. Acres-
cente-se que foram igualmente os franceses que criaram o estatuto dos libres
engagés, cuja gestão polémica levou ao choque entre os governos europeus,
devido à questão da barca de Charles et Georges, que mereceu referência nos
manuais escolares organizados durante o fascismo, num plano idêntico ao
concedido ao Ultimatum de 1890.
José Capela começa por salientar o carácter reduzido da exportação de es-
cravos para o Oriente em geral e o Oriente português em particular. De tal ma-
neira que só a intervenção dos franceses criou um tráfico inter-Índico, de que
o texto dá conta. Creio, todavia, que José Capela teria sido mais convincente se
tivesse mostrado que a presença portuguesa não depende de nenhuma “rede”,
como agora pretendem sobretudo os historiadores asiáticos, mas sim de uma

162
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

adequação muito pragmática às estruturas sociais e técnicas existentes. Se o


Brasil exige escravos, é devido às duas actividades principais, a agricultura e
a mineração. Ora os portugueses, em África e ainda mais na Ásia, recusavam
instalar-se em terra, o que os dispensava seja de capturar os autóctones, seja
sobretudo de importar escravos. A situação só mudará já no século XVIII sob
a dupla pressão dos portugueses do Brasil, e dos franceses. Deve de resto di-
zer-se que a procura de escravos de origem moçambicana no Brasil se refor-
çará no século XIX, a ponto de permitir a instalação de negreiros brasileiros
nos portos moçambicanos, situação modificada em parte pela independência
do Brasil, que transformou os antigos brasileiros, que eram portugueses, em
estrangeiros. Acrescenta todavia José Capela, numa observação mordaz, que
nunca, ou quase nunca, os portugueses aplicam as leis que aprovam. Também
neste caso o tráfico pode prosseguir com destino ao Brasil, pelo menos até
1850, graças aos negreiros brasileiros já instalados em Moçambique.
O comércio transatlântico só aparece tardiamente, entre 1794 e 1829, na
sua primeira forma, salienta Capela. Os armadores estão ligados a portos por-
tugueses, brasileiros e moçambicanos. São os brasileiros que pedem escravos,
obrigando a colónia a organizar-se para poder satisfazer a procura. José Capela
põe em evidência, de maneira pragmática, que os interesses do lado brasileiro
foram bastantes para impor o tráfico negreiro, desprezando as disposições le-
gais que o proibiam4.
A forte presença brasileira, reforçada devido ao desterro de alguns conspi-
radores da Inconfidência mineira - o mais conhecido dos quais é Tomaz Antó-
nio Gonzaga – arrasta consigo a criação de lojas maçónicas, embora tal acon-
teça já sobretudo no século XIX, os responsáveis portugueses denunciando
a banalização de algumas ideias que classificam de francesas, entre as quais
avulta o anti-clericalismo. Esta actividade maçónica parece particularmente
curiosa, na medida em que serve de agente criador do comércio esclavagista.
Os princípios da liberdade, igualdade e fraternidade não parecem fazer parte

4 Id., ibid, p.80.

163
Isabel Castro Henriques

da panóplia ideológica destes maçons, que aparecem sobretudo neste inventá-


rio dos agentes específicos do tráfico, como agentes dos interesses dos comer-
ciantes negreiros brasileiros. Deve dizer-se que é pouco apropriado referir-se
a “seitas” neste quadro prático-ideológico, pois não as encontramos, embora
seja certamente necessário, num futuro próximo proceder a uma análise his-
tórico-crítica destas actividades maçónicas.
O século XIX é todavia o do tráfico negreiro transatlântico, sendo também
o século das interrogações éticas, que determinam soluções civilizacionais e
jurídicas. A pressão brasileira foi determinante na organização das actividades
esclavagistas portuguesas, que por sua vez impunham o seu ritmo às socieda-
des africanas, cuja produção de escravos destinados ao comércio de exporta-
ção dependia da procura europeia5.
Os primeiros anos do século são caracterizados não só pelos choques mi-
litares em Portugal (“Guerra das Laranjas” em 1801, Invasões Francesas em
1807), mas no quadro teórico que nos diz respeito, pela soma de modificações
introduzidas na produção e na circulação dos escravos. Embora convenha pôr
em evidência o paradoxo político americano e europeu: os ideais abolicionis-
tas não são reconhecidos pelos teóricos da liberdade política: os Estados Uni-
dos, em 1776, a França, em 1789, recusam devolver a liberdade aos escravos.
Podemos encontrar nesta situação o nó central da construção da própria
figura da liberdade, o que contudo não impede que as correntes abolicionistas
se reforcem, tal como se reforçam as medidas para impedir o tráfico negreiro.
Ou seja, admite-se a sobrevivência da escravatura, embora se procure impedir
a actividade dos negreiros.
No caso moçambicano devemos lembrar que a legislação portuguesa fixa
um limite – 10 de Fevereiro de 1830 – para que os navios negreiros abando-
nem os portos de Moçambique, medida reforçada pelo decreto de 10 de De-
zembro de 1836, que proibia o tráfico de escravos nas colónias portuguesas.
Se o Brasil já perdera essa condição, a verdade é que continuava, como con-

5 Id., ibid., p.80.

164
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

tinuou, a depender da força do trabalho africana, fornecida legal ou, cada vez
mais frequentemente, de maneira ilegal.
Como é geralmente sabido, a legislação igualitária redigida pelo marquês de
Sá da Bandeira não foi posta em prática pelas autoridades portuguesas. Aponta-
ram-se razões bio-ideológicas: “os povos eram brutos e para mais nada serviam
que não fosse para a escravatura”. Por outro lado, e de maneira mais pragmática,
verifica-se que sem a exportação de escravos, Moçambique ficaria sem rendi-
mentos, como mostram as informações alfandegárias referidas por José Capela.
Parece-me também significativo, embora José Capela o não refira, que os
trabalhadores moçambicanos sejam deveras apreciados no Brasil, onde o gru-
po dos “moçambiques”, identificado em várias regiões, aparece como referido
entre os que se integram no mecanismo da produção, mostrando-se capazes
de aprender as técnicas sem as quais a sociedade brasileira, urbana ou rural,
não podia funcionar. Está ainda por fazer a destrinça das contribuições dos
diferentes africanos para organização social brasileira, salvo em parte, no as-
pecto religioso.
A única verdadeira tentativa do governo português para liquidar as várias
operações ilegais e clandestinas, foi a nomeação do governador-geral Joaquim
Pereira Marinho, que é considerada uma autêntica revolução, na medida em
que esta autoridade decidiu fazer frente ao clã dos negreiros. Como não podia
deixar de ser, confirmando a tendência geral da sociedade portuguesa, e dos
europeus que a ela se associam, para manter as formas violentas de dominação,
Pereira Marinho foi obrigado a renunciar à sua tarefa. Podemos já acrescentar,
utilizando as informações de José Capela, que este sistema só foi de facto arrui-
nado já no século XX, em 1902, para ser tão preciso como Capela.
Há contudo outros actores neste processo do comércio transatlântico: os
arábios, os mouros, os mujojos, que se servem sistematicamente dos pangaios.
Creio que, até agora, estas embarcações não tinham ainda ocupado neste proces-
so o papel que José Capela lhes reconhece6. Mais ainda, saio do texto de Capela

6 Id., ibid., p. 248.

165
Isabel Castro Henriques

convencida da necessidade de dedicar a este aspecto da presença de culturas


não-portuguesas na costa moçambicana, um estudo sistemático. Se os pangaios
participam de maneira activa no tráfico clandestino, entre 1754 e 1902, com
tripulações suailis ou falando o suaili (suahilis), vemo-los inseridos no tecido
capilar moçambicano com uma insistência e uma eficácia considerável.
Sendo que, por outro lado, esta actividade põe em evidência a fortíssima
presença de uma actividade negreira em pequenas quantidades, na medida
em que o calado dos pangaios e os capitais que eles podem manipular, não
podiam deixar de ser reduzidos. José Capela assinala a liquidação desta acti-
vidade devido à captura de 127 negreiros em Fevereiro e Março de 1902, em
Naburi e Samuco. Destes, tendo morrido alguns, foram julgados 68, sendo
alguns condenados a 25 anos de degredo na costa ocidental.

Violências esclavagistas/fragilidades da resistência

José Capela procura também analisar o tratamento dado aos escravos.


Como não podia deixar de ser, o aparelho judiciário colonial encontra sem-
pre razões para desqualificar os crimes cometidos pelos colonos ou para ab-
solver os acusados. Mas, paradoxalmente, “à medida que o tempo avança,
sem que se possa invocar uma mutação assinalável nos comportamentos”,
“acentuam-se os indícios de violência sobre os escravos”. Não será essa situa-
ção determinada pelo aparecimento de funcionários dispostos a dar comba-
te à “situação escravista”, situação certamente inesperada para aqueles que
não estavam em condições de acompanhar o debate que abalava a Europa,
sob a direcção dos filantropos britânicos? Talvez assim se possa explicar a
“tomada de consciência do seus direitos por parte dos escravos”, havendo
até alguns que são libertados pela Junta, depois de denunciarem a injustiça
que preside à sua escravidão7.

7 Id., ibid., p. 288 e seguintes.

166
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

Creio todavia que se regista uma leve derrapagem da explicação de José


Capela que dá conta da suspensão da outorga de “cartas de liberdade”, fican-
do os libertos em depósito, sendo então “sujeitos ao trabalho”: “assim se dava
início, oficialmente, ao que viria a ser uma instituição tão penosa como a da
escravatura, a saber, o trabalho forçado”8. Se se pode facilmente concordar
com a agravação das relações de dominação, é necessário, contudo, sublinhar
que as autoridades portuguesas recusaram desde sempre reconhecer a exis-
tência do trabalho forçado, pois a legislação impõe o trabalho compelido em
situações cuidadosamente inventariadas. A legislação inspirada por António
Ennes procura encontrar um sucedâneo para a escravatura, mas que na teoria
e na prática dela se diferenciem9. Embora José Capela seja um estudioso desta
questão, pára a sua análise neste patamar da modificação.
De resto, não há mudança das mentalidades, na medida em que nestes
vastos espaços coloniais, não se verifica a mínima análise dos fundamentos
ideológicos do colonialismo e da escravatura. José Capela salienta o facto de
inclusivamente nos cemitérios haver diferença e separação: os escravos só ti-
nham direito a cemitérios separados, e em muitas ocasiões eram simplesmen-
te lançados ao mar. Convém talvez lembrar que na toponímia de Lisboa exis-
tem ainda dois “poços”, o dos Negros e o dos Mouros, que mantêm a memória
do período em que a cidade recusava enterrar nos cemitérios e sobretudo nas
igrejas os escravos, que eram lançados em tais poços: D. Manuel I ordena a
construção de um poço onde deviam ser lançados os escravos negros mortos,
a fim de não serem comidos pelos cães que erravam pela cidade 10. Não se
regista por isso a mínima alteração do código, mantendo-se a rigidez dos com-
portamentos, mesmo se, no plano teórico, simplesmente literário, se analisam
as graves opções da liberdade.
Um outro capítulo é consagrado ao “passadio”, isto é, à análise das condi-
ções impostas pelos negreiros às centenas de pessoas que podiam ser metidas

8 Id., ibid., p. 289.


9 ENNES, (1899), 1946.
10 Carta régia de 1515, que também salienta as preocupações reais por questões que hoje diríamos de saúde pública.

167
Isabel Castro Henriques

nos navios consagrados ao tráfico, e isto apesar das regras que, pelo menos
a partir de 1648, procuram defender os africanos, definindo-lhes um espaço
mínimo, uma alimentação bem calibrada e até assistência médica. Na verdade,
os comerciantes encafuavam os futuros escravos em quintais (idênticos aos fa-
mosos “quintalões” de Benguela), sendo a maior parte “ferretados”. Capela he-
sita um pouco no que se refere ao alimento principal: feijão ou milho11. Creio
que se pode aceitar a existência de uma associação, não havendo contudo o
risco do escorbuto, dado a relativa rapidez da viagem. Todavia as condições
da viagem são tais que, em alguns casos, morrem 25% dos escravos, embora
se registem também percentagens menores. Mas José Capela sugere, mais do
que afirma, que se deve aceitar a média dos 21% que não impede lucros muito
elevados.
Por outro lado, José Capela salienta o custo bastante elevado dos escravos,
o que não limitou de forma alguma nem as operações comerciais, nem as ex-
portações, tardias embora, e suscitadas sobretudo por franceses e “brasileiros”.
Se o número de mortos é muito elevado, superando amplamente os 10% espe-
rados na costa ocidental, nem por isso, esta situação impede os lucros elevados
dos negreiros que ascende, em média, a 40,537%12. Lucros menores do que
aqueles permitidos no século XVI, mas mesmo assim suficientemente remu-
neradores para suscitar vocações negreiras, embora se registasse na sociedade
colonial portuguesa um certo asco pelo negreiro. Todavia, este pode circular
em todo os grupos sociais, pois as classes superiores, o clero e a nobreza, não
hesitaram em associar-se a estas operações. Uma parte importante dos recur-
sos do clero provém do “pé de altar”, que recebe pelos baptismos apressados
e maciços que é obrigado a fazer, para respeitar a lei. Uma das manifestações
do anti-clericalismo permite que os negreiros rejeitem este baptismo, consi-
derando-o inútil.
Forçado pela história actual da escravatura, José Capela prestou uma gran-
de atenção aos “motins e rebeliões”, para concluir que “temos notícias de muito

11 CAPELA, o.c., pp. 254-256.


12 Id., ibid., p. 205.

168
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

poucos” (em 1750, 1788, 1789; 1796 e 1859)13. Este reconhecimento salienta
a quase nula resistência dos africanos desta costa às operações da escravatura,
pois centenas de homens e mulheres, com crianças, percorrem quilómetros
e quilómetros para alcançar os portos negreiros, onde são embarcados, sem
que tal suscite a menor resistência. Esta situação deve ser melhor analisada,
na medida em que põe em causa a mitificação da resistência generalizada, que
nos parece incompatível com a invenção de sociedades criadas com base no
estrato africano, como aconteceu, por exemplo, nas ilhas de São Tomé e do
Príncipe ou no arquipélago de Cabo Verde.

Os “efeitos do tráfico”

José Capela procura proceder ao inventário dos “efeitos do tráfico”14, que


só podem ser o que realmente foram: negativos. Embora pareça que esta si-
tuação não decorre apenas do chamado comércio ilícito – que introduz em
Moçambique armas de fogo e pólvora –, mas do desmantelamento regular das
próprias estruturas africanas. Sendo certo contudo que José Capela salienta o
desaparecimento de culturas agrícolas assim como de manufacturas na Zam-
bézia, que continua a ser não um território mítico, mas o lugar onde uma par-
te da historiografia moçambicana encontra concentrada algumas das opções
centrais do colonialismo, tal como as respostas das populações.
Se integrarmos a escravatura no quadro amplo das relações comerciais, ve-
rificamos que a redução, lenta mas constante da produção autóctone de ouro
e marfim – durante muito tempo as mercadorias preferenciais, mantendo os
portugueses os circuitos comerciais organizados durante o período de domi-
nação árabe – foi necessariamente substituída pelo tráfico de escravos.
Qual o impacto económico desta actividade? O que representam os es-
cravos tanto na estrutura social do território – seria difícil designá-lo então

13 Id., ibid., p.265.


14 Id., ibid., p. 273.

169
Isabel Castro Henriques

como um país -, como na produção de riqueza? As mercadorias preferenciais


fornecidas pelos africanos – o ouro15 e o marfim – começam a reduzir-se. W.
G. L. Randles já mostrara que o comércio português fora incapaz de substituir
a bela organização árabe que aí se encontrava nos anos finais do século XV,
princípios do século XVI.
Os documentos são raros, pelo que só os registos alfandegários podem for-
necer algumas indicações úteis, mas de importância reduzida na medida em
que campeava – como em todos os territórios portugueses - o contrabando, o
qual arrastava atrás de si, como não podia deixar de ser, a corrupção. E como
uma parte deste comércio era pago com moedas espanholas, a contabilidade
revela-se ainda mais difícil.
O que mais parece surpreender é a ausência de fortunas consideráveis: José
Capela não nos fornece um único nome ao qual esteja ligado o enriquecimen-
to tornado possível pelo tráfico negreiro. Ora se os negreiros são mal vistos
pela sociedade portuguesa, ou em todo o caso pelas facções dominantes da
burguesia, tal situação só pode explicar-se pelas condições do recrutamento: o
negreiro provém por isso de lugares sociais de fracos capitais e de fraquíssima
preparação intelectual. O que, por sua vez, talvez permita explicar a maneira
como estes homens se empenham em manter os circuitos da escravatura, as-
sim como multiplicam as opções brutais do tráfico, quer no Índico, quer no
Atlântico. É por isso surpreendente que José Capela se refira a uma hipotéti-
ca e impossível “ética” dos negreiros. Tal como é surpreendente, num registo
complementar, a rareza de mapas e de indicações cartográficas.
Para terminar, será conveniente acrescentar que o trabalho histórico de
José Capela permite isolar alguns traços mais significativos, um dos quais tem
a ver com o próprio modo de produção das populações integradas neste vasto
espaço que só a partir dos anos finais do século XIX – em todo o caso depois
do Ultimatum inglês de 1890 – adquiriu o seu perfil mais decisivo do Moçam-
bique dos dias de hoje. Se os portugueses procuraram inserir-se no sistema

15 Id., ibid., p. 247.

170
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

comercial organizado pelos árabes, verificou-se não terem sido eles capazes de
manter o nível da produção, o que foi reduzindo a oferta do ouro, ameaçado
por outro lado pelo contrabando. Se, como salienta justamente José Capela as
duas mercadorias preferenciais foram, até ao século XVIII o ouro e o marfim,
os escravos vieram reforçar as estruturas de comercialização.
Uma vez que a presença no Índico não exigia o recrutamento de uma am-
pla força de trabalho, o tráfico negreiro foi deixado em dormência, sempre
pronto a responder às solicitações dos colonos, portugueses ou outros. Mas o
mercado só começou a constituir-se a partir do século XVII, e mesmo então
sob a pressão francesa e de maneira tímida. Tal se deve, como é evidente, às
produções dominantes no território, que não interessavam o comércio inter-
nacional português. Situação reforçada pela pouca confiança na competência
técnica dos produtores e dos comerciantes africanos.
O carácter tardio do tráfico negreiro depende por isso de uma certa impo-
tência do próprio aparelho político e económico português, que depende da
organização dos Outros que reconhece, descobre, sub-conquista e submete.
Se bem que se registe, convém salientá-lo, uma grande diferença entre An-
gola e Moçambique, pois na primeira o sistema comercial funcionou, após a
abolição da escravatura, graças à produção dos africanos, como de resto foi
amplamente dito e demonstrado pelo último governador-geral da monarquia,
o então capitão Henrique de Paiva Couceiro. Não poder contar com essa pro-
dução africana travou a própria evolução dos núcleos portugueses, que não
sendo formados por “produtores”, apostavam apenas no comércio, que podia
incluir ou não os próprios homens.
Entre as várias lições explícitas ou subjacentes neste trabalho de José Cape-
la, convém por em evidência a pouca flexibilidade da organização portuguesa,
para quem o comércio deriva na maior parte dos casos da própria intervenção
militar ou armada. Semelhante opção, que encontrou um esforço na lógica
das operações indianas, onde era impossível separar as escolhas comerciais
das opções militares marcadas pelo espírito sacrificial da missão religiosa dos
católicos, só podia impedir a revisão das condições de produção africanas,

171
Isabel Castro Henriques

mesmo na Zambézia, onde apesar de tudo a agricultura procurou organizar-se


para a produção industrial destinada à exportação.
É evidente que esta longa análise diz essencialmente respeito a uma es-
trutura portuguesa, que contudo não pode ser separada das escolhas e dos
percursos europeus, entre os quais avulta a forte presença de britânicos e de
franceses. Serve também, embora menos directamente, a história dos africa-
nos, apanhados na engrenagem cruel da escravatura, quer ela fosse inicial-
mente árabe ou suahili. O mais significativo reside na terrível estrutura lógica
da escravatura e do tráfico negreiro, que funciona quase auto-alimentada por
sistemas ideológicos e por condições práticas. Pensar o Outro corresponde a
reconhecer-lhe ou negar-lhe a sua essência.
Lisboa, 2002.

172
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

COMO LEGITIMAR A
ESCRAVATURA E O COMÉRCIO
DE ESCRAVOS?
Introdução a Déraison, esclavage
et droit 1

Durante os últimos trinta anos, a escravatura moderna e o comércio ne-


greiro retiveram a atenção de um número significativo de investigadores de
formações e de origens diversas: historiadores, filósofos, antropólogos, soció-
logos, economistas e juristas, americanos, africanos, europeus e asiáticos. A
complexidade dos dados, a extensão do quadro geográfico e a envergadura
social e sociológica deste drama histórico não lhes facilitaram a tarefa; por um
lado, a sua duração, da qual o século seria a unidade de medida mais adequa-
da, por outro lado, os vestígios e as formas residuais reutilizadas até aos nossos
dias, permitem sondar a profundidade dos vazios e a espessura dos silêncios
remanescentes entre os capítulos, todavia cada vez mais vastos dos nossos co-
nhecimentos respeitantes à escravatura e ao tráfico negreiro. Característica
liminar deste fenómeno: a sistematização do cume da violência exercida por
homens contra homens, os africanos, dessocializados, desumanizados, bestia-
lizados, coisificados, vendidos por outros homens; africanos instrumentaliza-
dos por todos os meios “técnicos” de que dispunham os comerciantes, entre
os quais, em muito bom lugar, a colisão entre a sua irresistível pressão e os
interesses das escravaturas endémicas inter-africanas.

1 Versão revista da Introdução da obra Déraison, esclavage et droit, Paris, Éditions UNESCO, 2002, elaborada em colaboração com
Louis Sala-Molins. Esta obra reune a maior parte das comunicações apresentadas no Seminário Internacional “Os fundamentos
ideológicos e jurídicos da escravatura e do tráfico negreiro”, organizado em Lisboa, no Arquivo Nacional da Torre do Tombo, pelo
Comité Português do Projecto UNESCO “A Rota do Escravo’’, em Dezembro de 1998. Tradução de Alfredo Margarido.

173
Isabel Castro Henriques

A variedade e a natureza dos estudos publicados até hoje põem em evi-


dência as inquietações dos autores e denunciam da maneira mais natural o
seu perfil académico assim como, quase sempre, a origem nacional ou con-
tinental de cada um. Por isso, os grandes temas que preocupam os america-
nos (o sistema económico assentando na escravatura, a diáspora provocada
pelo comércio negreiro, a discriminação daqueles que são qualificados como
afro-americanos) diferem daqueles que fornecem o suporte das interrogações
africanas (as consequências demográficas, sociais, económicas e políticas do
fenómeno em África, assim como a responsabilidade exclusiva do Ocidente
– fórmula englobando europeus e americanos e marcando uma certa compla-
cência em relação aos muçulmanos), ao passo que as preocupações europeias
giram em torno da análise da abolição da escravatura e do tráfico negreiro.
Situação que provaria que as maneiras de definir só dificilmente se desemba-
raçam das ideologias, das leituras e das perspectivas locais, e que é tão difícil
preencher os vazios da história como eliminar para sempre os sentimentos de
“culpabilidade” ou de “vitimização” carreados pela história nacional de cada
um. É também necessário salientar os meandros criados pela diversidade das
fontes, dos métodos, dos sistemas de pensamento .
Esta complexidade permite apesar de tudo compreender a grande fragili-
dade de todos os estudos que fixam como seu objectivo principal apreender
a globalidade do fenómeno. E, de facto, as análises que podemos explorar são
parciais, pontuais, limitadas. Não chegou ainda o momento de elaborar as
grandes sínteses perfeitamente fiáveis.
Em primeiro lugar, o mais surpreendente reside, sem a menor dúvida, na
realidade maciça da violência, que só consegue piorar à medida que são leva-
das a cabo as operações associadas ao tráfico. Com que mecanismos pude-
ram uns justificar a desumanização dos outros, seus semelhantes, no preciso
momento histórico em que a emergência dos sistemas modernos cortava a
corrente das formas de exploração carreadas pelos valores do mundo euro-
peu e medieval, nomeadamente no que se refere ao trabalho e ao estatuto do
trabalhador? Como é que Igrejas, autoridades, juristas, filósofos e teólogos,

174
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

pensadores e políticos conseguem justificar a plurissecular redução dos africa-


nos à escravatura? Parece-nos indiscutível que a história não conhece nenhu-
ma política de dominação que não tenha sido justificada por uma mitologia,
uma ideologia, uma filosofia ou uma religião. As ideologias contemporâneas
do comércio negreiro empenharam-se em justificar juridicamente “alhures”
(África, Américas, Oriente indiano) uma prática esclavagista ilegítima “aqui”
(Europa). Recorrendo a que argumentos? Apoiando-se em que alianças? Lu-
tando contra que resistências? Com que resultados? De maneira ainda mais
simples, será possível afirmar que, para confortar o esclavagismo dos Estados,
foram, as ideologias da época, obrigadas a fazer frente a filosofias e a religiões
assentes em pressupostos semelhantes?
Estas questões serviram de suporte à organização do argumentário do
Seminário Internacional de Lisboa. Era necessário propor uma trama concep-
tual e histórica unificadora aos investigadores convidados, com formações e
parentescos culturais muito diversos, arrastando consigo, como já dissemos,
perspectivas plurais do conjunto dos problemas ligados à escravatura e ainda
mais ao tráfico. A noção de ideologia foi tomada no seu sentido mais amplo
englobando, conforme a intenção dos organizadores, as de filosofia, de teo-
logia, de cultura, de “visão do mundo”. Convinha salientar o “jurídico” pela
razão evidente de que, no contexto de qualquer estudo sobre a escravatura, as
noções de escravatura, de liberdade, de emancipação e de abolição remetem
directamente para o direito. Tratava-se de reflectir e de debater as múltiplas
maneiras por via das quais a escravatura contaminava os dados das ideologias,
que se organizavam para fornecer uma legitimidade e uma normalidade ao
desastre plurissecular do tráfico negreiro.
As comunicações apresentadas reforçaram, no seu conjunto, a ideia já ad-
quirida (mas que é necessário consolidar constantemente) de um compro-
misso entre, por um lado, a filosofia e a teologia das culturas dominantes e,
pelo outro, o crime contra a humanidade, a empresa genocidária constituída
pela sistematização da redução à escravatura de populações negro-africanas
para servir os interesses das potências ocidentais traficantes, beneficiando

175
Isabel Castro Henriques

aqui e ali, esporadicamente ou não, da colaboração resignada ou não deste ou


daquele poder no continente subsariano.
O paradoxo para o pensamento ocidental (ou, antes, para os pensamen-
tos ocidentais) que fornece o suporte teológico ou filosófico, define-se pelo
facto de fomentar alhures uma visão do homem, do outro e da sua relação
com a liberdade e com a salvação que condena aqui. Ou dito de outra ma-
neira, somos levados a dar conta da existência de uma dicotomia no pen-
samento e nas práticas ocidentais: se, por um lado, se vai elaborando uma
visão postulando a libertação do homem, embrião dos direitos do homem
futuro pela via revolucionária, somos, pelo outro, colocados perante uma
negação constante da humanidade de outrem, despojada de qualquer reco-
nhecimento jurídico.
Filósofos, teólogos, culturas, utilizando subterfúgios literários, estéticos
ou conceptuais específicos, denunciam – para legitimar a escravatura ou o trá-
fico – uma falta de humanidade, um défice de humanidade (decorado às vezes
com o sinal positivo de promessa de humanidade), não somente em todos os
negros apanhados nas redes do tráfico mas também em cada um dos negros
podendo sê-lo por definição e por natureza.
À pergunta liminar: foram as ideologias da época obrigadas a violentar fi-
losofias e religiões para confortar o esclavagismo dos Estados? A resposta que
sai do conjunto das comunicações é peremptória: filosofias, religiões e cultu-
ras dominantes escolheram, explorando os seus próprios filões conceptuais,
dogmáticos e estéticos sem o menor escrúpulo, sem distinção de tradições,
confortar o esclavagismo e adaptar-se a este objectivo. O leque das nações
que recorreram à escravatura e ao tráfico não permite a menor dúvida: esta-
mos perante uma adaptação constante às exigências da desumanização, du-
rante o tempo necessário à confirmação do capitalismo moderno.
Esta obra põe em evidência a necessidade de continuar a analisar as teorias
assim também como as práticas, única maneira de chegar enfim à compreen-
são do que quer realmente dizer a escravatura, tão duros são e pouco inteligí-
veis os silêncios das culturas em relação às suas práticas desumanizantes.

176
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

É evidente que estamos na obrigação de salientar a extrema complexida-


de dos problemas respeitantes à escravatura, ao tráfico e à sua legitimação. A
grande diversidade das interpretações, longe de contribuir para a visibilida-
de do fenómeno, serve sobretudo para pôr em evidência a impossibilidade
de chegar a breve prazo a qualquer forma de homogeneização dos campos
de investigação. Todavia, e em contradição, estamos hoje em condições de
denunciar a maneira como os países campeões da “civilização” conseguiram
banalizar a negação do humano, e fazer, durante séculos, de uma prática de
genocídio o mais banal dos comportamentos, a mais rendosa das políticas e a
escamotear da maneira mais escandalosa qualquer forma de direito.
A escravatura não constitui uma unidade fechada. Muito pelo contrário,
deve ser encarada por meio das ópticas particulares, sendo o estatuto nacio-
nal mais significativo do que a prática universalizada. Além disso, não há ape-
nas uma escravatura, mas escravaturas, não há um único tráfico negreiro mas
tráficos de homens negros africanos, mesmo se pareça que possamos aceitar
que não tenha havido senão um comércio negreiro singularmente violento
intimamente ligado à perturbação moderna do mundo e ao aumento das exi-
gências do lucro.
Na esteira dos filósofos, os historiadores não hesitam em considerar a es-
cravatura como uma criação sem autor, marcando o próprio começo das so-
ciedades humanas. Eles salientam-lhe a precocidade para não dizer a perma-
nência. Até se discorre sobre a sua positividade, fundadora de uma relação de
vida: o inimigo deixa de ser morto mas salvaguardado e submetido. Alimenta-
da pelo choque entre as sociedades assim como pelas migrações, a escravatura
pode ser considerada um facto “natural” iniciador do facto “cultural”, situação
destinada a assegurar simultaneamente a sua naturalidade biológica e a sua
normalidade política.
A questão adquire um perfil inédito ligado às operações marítimas leva-
das a cabo pelos portugueses, sós ou associados a outras nacionalidades. Os
portugueses não procuram nunca justificar teoricamente a sua prática escla-
vagista, encarando-a como uma operação inteiramente normal e autorizada

177
Isabel Castro Henriques

pelo estatuto do Outro. Da mesma forma, os europeus distinguem de maneira


muito afirmada os índios da América dos africanos: Cristóvão Colombo é o
responsável, já em 1492, por esta fronteira cromático-somática. Esta nova vi-
são foi confirmada de maneira plena aquando da sua passagem por Lisboa em
1493: os índios trazidos a Lisboa pelo almirante lembram ao rei de Portugal
não os guineenses mas as populações asiáticas. Se parece tratar-se da primeira
proposta de identificação dos ameríndios com os asiáticos, é sobretudo ne-
cessário reter a importância do somático - mas em tal caso mantemo-nos no
quadro dos juízos de Aristóteles – como critério de legitimação da escravatura.
A questão aparece desta maneira muito claramente: será necessária uma
legitimação moral e jurídica para reduzir o Outro à escravatura, ou deve esta
redução ser encarada como uma prática antiga, de uma tal banalidade que
não merece nem exige nenhuma explicação? Não podemos de maneira al-
guma evitar esta questão central, tanto mais que ela leva necessariamente à
evocação das teses de Aristóteles, que não hesitou em mostrar a existência de
“escravos naturais”, como a simples leitura do corpo revela de maneira cinti-
lante e suficiente... Como fazem eles, os povos e os Estados que, não dispondo
de um suporte teórico adequado, se lançam tanto no esclavagismo como no
tráfico negreiro? É necessário um mecanismo teórico capaz de fornecer aos
esclavagistas, quer sejam formados pelo Estado ou pelos proprietários da ter-
ra, um argumento que lhes permita mandar capturar e comercializar homens.
Recusa-se a quase todas as populações destinadas a priori à escravatura qual-
quer forma de consciência, ou seja qualquer capacidade de reflexão moral. A
controvérsia de Valladolid (1550) nasceu da necessidade profunda de escla-
recer de maneira definitiva esta questão crucial: se os índios aí ganharam um
suplemento de alma, mantiveram-se dependentes das cadeias da encomienda,
escravatura mascarada em simples servidão.
A escravatura e o tráfico negreiro formam um continuum na medida em
que a colonização não pode ser pensada sem o recurso ao trabalho força-
do, quer seja o dos europeus “contratados”, como num grande número de
colónias anglo-saxónicas, ou o dos escravos africanos, cuja deportação nos

178
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

navios negreiros despovoou regiões inteiras do continente africano. Como


se o capitalismo pós-calvinista não pudesse afirmar-se e desenvolver-se
sem esta transfusão permanente de força de trabalho. O povoamento, mas
sobretudo a instalação das formas de lucro engendradas pelo capitalismo
nascente, a partir do século XV, na Madeira, deviam arrastar consigo o re-
crutamento de brancos, mesmo se estes fossem arrancados às prisões, sem
esquecer em nenhuma circunstância o dos negros africanos, dos escravos.
Estes são já numerosos no Portugal do século XV, sobretudo em Lisboa e
no sul do país onde, em 1444, em Lagos, assistimos à elaboração do primei-
ro sistema classificatório dos homens baseado nas suas características somá-
ticas, justificando esta hierarquização cromática pelo recurso aos conceitos
da moral católica: o bem e o mal, o céu e o inferno, reconhecíveis consi-
derando apenas a condição somática. Seriam necessárias, nos dois casos,
justificações morais ou jurídicas?
Ou, dito por outras palavras, foi sempre necessário mobilizar argumentos
para assentar a legitimação da escravatura e do comércio negreiro. Quando
não há teoria, a sua ausência é compensada pela soma das práticas compro-
metendo os Outros e, por que não, os Mesmos. A condenação da vagabunda-
gem, por exemplo, não povoa apenas as prisões europeias, pois fornece tam-
bém um sério contigente destinado às tarefas do povoamento e, a curto prazo,
às da colonização.
A técnica é contudo a mesma em qualquer caso: o enselvajamento do Ou-
tro precede sempre as reflexões de carácter jurídico, moral ou teológico. Até
certo ponto, a escravatura é apenas a consequência do enselvajamento que
levou alguns teóricos a servir-se dele como de um instrumento indispensável
ao sistema de civilização que, sobretudo para os católicos, permitia a salvação
tão exaltada e tão esperada. A instalação deste sistema, que exigiu alguns sé-
culos, revelou-se muito eficaz a partir do momento em que permitiu assegurar
o povoamento e a rendibilidade dos territórios recém-descobertos ou con-
quistados. A sua eficácia tornou-se muito visível na estratégia seguida pelos
plantadores ingleses que foram levados a renunciar aos “contratados” euro-

179
Isabel Castro Henriques

peus, substituídos por escravos africanos, mesmo se estes eram inicialmente,


sensivelmente mais caros.
Montesquieu inaugura a oposição a estas concepções do papel dos escra-
vos ao assinalar a possibilidade de qualquer pessoa... se tornar persa. Esta exal-
tação da diferença acaba por substituir as concepções mais clássicas, como as
de Heródoto face ao antigo Egipto. É esta corrente que assegura a emergên-
cia dos “bons selvagens”, cujas qualidades fundadoras teriam sido esmagadas
pelo próprio sistema da civilização, ou até – correndo o risco do anacronismo
– do progresso. Mas é realmente necessário levar em linha de conta a falta de
eficácia destas intervenções, tal como as de Rousseau, de Diderot e de Vol-
taire. Se elas salientam de maneira às vezes apaixonada as qualidades do “bom
selvagem”, nem por isso deixa de ser verdade que nos é impossível encontrar
nestes pensadores – quaisquer que sejam as diferenças entre eles, e elas são
consideráveis – medidas precisas capazes de pôr fim à escravatura que lhes
é contemporânea, ao tráfico negreiro pois, seja marítimo, a respeito do qual
sabiam tudo, seja terrestre, graças às caravanas africanas que percorriam as
diferentes regiões da África, e de que lhes escapa a enormidade do impacto.
É todavia na esteira desta reflexão, fortemente reforçada pela intervenção
dos protestantes, que se desencadeiam os movimentos destinados a combater
a escravatura. Se alguns insistem ainda hoje na denúncia dos objectivos sobre-
tudo económicos desse processo, será necessário lembrar-lhes que o escravo
era frequentemente mais caro do que o “contratado”, e que o movimento que
denuncia a escravatura tal como o tráfico, propondo a sua abolição não pode
nunca ser afastado do seu suporte religioso.
Mesmo se alguns movimentos anti-esclavagistas abalam a estrutura da do-
minação colonial, é fácil verificar que só alguns grupos minoritários estão em
condições de dispor dos alicerces teóricos e das organizações capazes de per-
mitir uma denúncia eficaz. Não podemos esquecer que pensadores da dimen-
são de Montesquieu adaptam uma posição complacente face à escravatura
– com a condição de a limitar a certos climas e de jamais a voltar a introduzir
na boa e velha Europa cristã –, mesmo se a universidade francesa, mais patrio-

180
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

ta do que precisa no que se refere a este ponto como de mais alguns outros,
quer fazer do pensador e do moralista o iniciador de um pretenso combate
definitivo das Luzes contra a escravatura dos negros sob a sua forma antilhesa
e transatlântica em geral. Não nos devemos enganar, porque este movimen-
to, se houve realmente um movimento, abebera-se entre alguns elementos da
burguesia, do clero e da pequena nobreza, cuja paixão conseguira com dificul-
dade gripar algum tanto a poderosa maquinaria da escravatura. Os sistemas
revolucionários, se bem que sejam impotentes face à banalização da escrava-
tura, são portadores de uma contradição que, com o tempo, arrastará consigo
a obrigação de abolir a escravatura, mesmo se ela se verifica frequentemente
muito tarde, como foi o caso no Brasil, a 13 de Maio de 1888 (decreto áureo,
assinado pela princesa Isabel), quase um século depois da revolta de Santo
Domingo, que se libertou da escravatura sem esperar pelo consentimento da
Convenção francesa!
Os sistemas jurídicos, manipulados pela burguesia nascida das Luzes
põem termo ao tráfico primeiro, à escravatura depois. Esta situação devia
provocar a perturbação nos continentes cujo sistema económico só podia
funcionar se dispusesse de enormes massas de trabalhadores cuja vida – e
não apenas a força de trabalho – pertencia ao proprietário. Foi necessário
encontrar na panóplia das práticas sociais e legais, medidas capazes de ga-
rantir a criação, o controlo e a dominação dos trabalhadores, tanto euro-
peus como africanos e asiáticos. Também aqui, o primeiro lugar pertence
aos portugueses que, no arquipélago de São Tomé e Príncipe, souberam
inventar o “trabalhador contratado”, ou seja um trabalhador africano pre-
tensamente “livre”, que assinava um contrato pondo-o sob a autoridade de
um patrão durante períodos limitados (entre dois e três anos), mas que,
com muita frequência, se prolongavam durante a vida inteira. Estas práticas
foram acompanhadas, a partir dos anos finais do século XIX, pela criação
do “indigenato” e do “indígena”, que permitia outra vez o regresso ao en-
selvajamento autorizando contratações falsamente voluntárias. As outras
nações tendo praticado o tráfico encontrarão por sua vez as argúcias neces-

181
Isabel Castro Henriques

sárias para dissimular em contrato situações de rapto para as colónias muito


tempo depois do fim do tráfico propriamente dito.
Esta penúltima fase do trabalho escravo – que parecia não arrastar con-
sigo uma situação de escravatura – permite pôr em evidência a plasticidade
das formas utilizadas por juristas, economistas e teólogos para conseguir re-
formular as condições de funcionamento dos escravos, expurgando os textos
e os actos correntes da administração de qualquer referência à escravatura.
Estas estratégias de dominação não fazem mais do que reforçar o carácter tão
flexível como eficaz de escravatura, capaz de garantir a sua própria recondu-
ção-mutação.
Este longo percurso da escravatura e do tráfico negreiro, este continuum
do qual tentamos todos pôr em evidência os paradoxos, as diferentes formas
de interpretação, de legitimação, de gestão e de solução dos mesmos proble-
mas históricos, constitui o eixo central desta obra. Organizada em três partes
- “Legitimações jurídicas e ideológicas”, “Evolução e estagnação das legiti-
mações” e “Algumas práticas esclavagistas” –, esta obra tenta dar coerência
ao conjunto das comunicações apresentadas no Seminário de Lisboa, as quais
se caracterizam por uma dispersão muito grande dos conteúdos assim como
por uma certa dificuldade em se manter no quadro temático imposto a este
encontro científico. Para tornar mais evidente esta coerência, foram acrescen-
tadas às comunicações propostas e discutidas em Lisboa outras contribuições
que nos parecem não só muito significativas no plano do conhecimento, mas
também capazes de dar mais força e mais solidez a esta recolha.
Se os textos apresentados, tanto teóricos como monográfico-históricos,
mostram sem hesitação que as cauções ideológicas e os suportes jurídicos de
desumanização não conheceram nem interrupção nem tréguas e que o requi-
sito de coisificação e de desumanização nem por isso deixa de ser indispensá-
vel ao funcionamento do esclavagismo familiar africano, como o foi também
ao esclavagismo do tráfico, ambos permitem constatar igualmente os silên-
cios, os vazios, os esquecimentos desvendados pelos estudos centrados nes-
ta problemática. Esta obra pretende também ser pedagógica, quer dizer um

182
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

espaço de reflexão e de interrogação consagrada aos vazios (e às suas razões)


dos conhecimentos hoje adquiridos neste domínio. Pretende ele proceder ao
balanço da investigação consagrada aos alicerces jurídicos da escravatura e do
tráfico negreiro, ao mesmo tempo que permite a cada um dos autores e dos
investigadores preocupados com estes problemas enriquecer os seus próprios
conhecimentos e encontrar soluções esclarecedoras do fenómeno da escrava-
tura; mas também procurar compreender as estruturas psíquicas que estão na
base de uma ausência contemporânea de cidadania, ou até de “humanidade”,
em numerosos territórios que tiveram de suportar, durante toda a sua his-
tória, o peso da escravatura. Esta obra quer finalmente confirmar a força da
ideologia de justificação do tráfico negreiro, a solidez do suporte intelectual
do desprezo cultural pela África assim como pela mulher e pelo homem ne-
gros, quer dizer do racismo anti-negro. Com efeito, sociedades saídas do trá-
fico, nomeadamente nas Américas, nas Antilhas, nas regiões do Índico, conti-
nuam profundamente marcadas pelas clivagens e pelas discriminações raciais.
E como não ver que na Europa e na África se mantêm as consequências da
longa história do enselvajamento africano, que é apenas um dos aspectos do
enselvajamento geral ao qual a Europa não foi ainda capaz de renunciar e do
qual os africanos continuam sempre a ser tanto as vítimas como os herdeiros?

Lisboa e Toulouse, 2000.

183
CAPÍTULO 2

ICONOGRAFIA:
A instrumentalização
dos Africanos através
do discurso imagético
Isabel Castro Henriques

Esta iconografia organizada em dois grandes temas – “Produzir, comerciar


e usar os escravos: da África para as Américas (séculos XV a XIX)” e “A ex-
clusão dos Africanos e a prática civilizadora portuguesa: (des)classificados,
ridicularizados, “civilizados” (séculos XIX e XX)”, que procuram por em evi-
dência a continuidade do processo de instrumentalização dos Africanos, leva-
do a cabo pelos Portugueses, durante cinco séculos, apresenta um conjunto de
imagens de origem europeia diversa - salvo raras excepções em que recorri a
objectos produzidos pelos Africanos - que permite proceder a uma leitura in-
formativa e simultaneamente crítica das múltiplas operações portuguesas que
asseguraram a exclusão dos Africanos da norma civilizada, quer dizer branca
e europeia.
Estas imagens, cujos conteúdos conceptuais da sua fabricação não podem
deixar de se cruzar, mesmo se distanciados frequentemente no tempo e no
espaço, atravessam os diferentes estudos reunidos neste livro, que pretende re-
flectir sobre o processo português de instrumentalização dos Africanos, numa
perspectiva de longa duração, partindo da realidade esclavagista dos séculos
XV a XIX e estendendo-se à situação colonial portuguesa marcada pelas ideias
e pelas práticas organizadas na África “portuguesa”, desde os finais de Oito-
centos, até aos anos setenta do século XX.
As imagens apresentadas sublinham mas sobretudo reforçam, através de
leituras sumárias dos documentos escolhidos, não só a importância historio-
gráfica do documento iconográfico, mas também a diversidade de formas que
a recusa do Outro assumiu, assim como a dureza e a persistência de repre-
sentações que inferiorizavam os valores e as práticas culturais africanas, va-
lorizando no mesmo movimento os benefícios da colonização e da missão
civilizadora, reflectindo a justeza histórica das operações portuguesas que en-
volviam os Africanos.

186
de escravos a indígenas

A produção ocidental destas imagens, que assenta quase exclusivamente


na gravura e no desenho, primeiro, e depois na fotografia, fornece uma exce-
lente informação sobre o olhar português relativo aos Africanos e às coisas da
África, frequentemente caracterizado pela ironia, pela troça e pelo paternalis-
mo, sempre de desvalorização do Africano.
Trata-se, pois, de produções marcadas pelo universo cultural europeu/
português, naturalmente dependentes das normas da escrita e dos códigos
plásticos de cada época, mas também das regras sociais e religiosas da socieda-
de portuguesa. A utilização de traços da natureza como palmeiras, coqueiros e
bananeiras, que dão conta na lógica europeia da “africanidade” do documento,
as imagens dos corpos nus e as marcas corporais que vão dos vestuários às
pinturas corporais, aos objectos religiosos e aos adornos africanos, mostrando
a “selvajaria” africana, legitimam a razão portuguesa na escravização dos ho-
mens. Estes “beneficiaram” da sua integração na vera religião dos homens, o
catolicismo, mas também, na aprendizagem do trabalho, elemento civilizacio-
nal absoluto, que a missão civilizadora portuguesa, dos séculos XIX e XX , evi-
denciou através de formas de classificação e de exploração múltiplas e cruéis,
que “usaram” os Africanos para assegurar a rendibilidade do facto colonial. Se
estas imagens que atravessam cinco séculos de história revelam a violência da
escravatura, mostram igualmente a natureza interna deste processo que se re-
velou capaz de uma metamorfose no século XX, assegurando a continuidade
da instrumentalização dos Africanos, recorrendo a um aparelho classificatório
novo - selvagens, indígenas, assimilados - destinado a mantê-los na esfera da
inferiorização humana, contribuindo para fixar a legitimidade da dominação
portuguesa, dando visibilidade a uma leitura redutora e falsificadora da histó-
ria.

187
Isabel Castro Henriques

Produzir, comerciar e “usar” os escravos:


da África para as Américas
(séculos XV a XIX)

Fig. 1 – O Mundo inteiro numa folha de trevo»


A Europa, a Ásia, a África e a América ainda lon-
gínqua…. Mas já as caravelas cruzam o Atlântico
e os navios negreiros transportando os escravos
africanos preparam a alteração do Novo Mundo.
Desenho de Heinrich Bunting, Itinerarium Sa-
crae Scripturae, Magdeburgo, 1852.

188
de escravos a indígenas

Fig. 2 – De Lisboa para a costa de África,


a procura portuguesa de escravos africanos
A Ribeira das Naus, no coração do Lis-
boa. Gravura alemã do século XVI. SGL.
Durante séculos, aqui se desenvolveram
as múltiplas tarefas da construção dos na-
vios, indispensáveis à expansão marítima
e às actividades comerciais transatlânticas
portuguesas.

Fig. 3 – Representação cartográfica de


«Angola e Benguela» no século XVIII
Mapa Geográfico de Pinheiro Furtado,
1790, AHM. Este mapa que representa o
litoral relativo aos então chamados reinos
de Angola e de Benguela, onde os Portu-
gueses tinham algumas instalações, como
a cidade de Luanda e de Benguela, localiza
também algumas populações e estruturas
políticas africanas, assim como várias lo-
calidades africanas então conhecidas dos
Portugueses. Durante muito tempo, este
mapa constituiu a base da representação
cartográfica e da informação geográfica da
região, que se tornou, desde cedo, o gran-
de espaço da procura de escravos para as
Américas.

189
Isabel Castro Henriques

4.1 4.2

4.3 4.4

4 – O território angolano e a organização dos homens: cidades e presídios portugueses, aldeias e luga-
res da vida africana
Fig. 4.1 – Luanda no século XIX. Henrique de Carvalho,1890, I, p.46. Fig. 4.2 – O presídio de Massan-
gano no século XIX. Carvalho, 1890, I, p. 96. Fig. 4.3 – Na região de Benguela, aldeia e acampamento de
Douville, explorador francês. Gravura aguarelada, 1828, AHU. Fig. 4.4 – Kilombo, a cidade –capital do
reino de Cassanje. Cavazzi de Montecuccolo, 1687.

190
de escravos a indígenas

Se os Portugueses desenvolvem desde o sécu-


lo XVI um projecto de ocupação de espaços
angolanos situados junto ao litoral atlântico,
organizando cidades como Luanda e Benguela
e algumas vilas sobretudo na linha do rio Quan-
za, procuram também implantar outros locais
como fortalezas, feiras e presídios, as primeiras
destinadas a assegurar a sua defesa, as outras ser-
vindo sobretudo os seus objectivos comerciais,
centrados na aquisição de escravos, operação
que irá estender-se por vários séculos. Estes lo-
cais do interior, autorizados na sua maioria pelas
chefias africanas, constituem também centros de 4.5
relações com as populações autóctones e com as
suas instalações. Estas, que apresentam outras
formas, diversas, antagónicas ou complementa-
res de construção do espaço africano, incluem
cidades como a Mussumba e o Kilombo, capitais
do império lunda e do reino de Cassange, mas
também aldeias e vilas africanas, onde se organi-
zam as populações e os seus quotidianos, respei-
tando as hierarquias políticas e sociais africanas,
as práticas religiosos, as operações comerciais e
as tarefas económicas necessárias a assegurar a
subsistência – como a pequena aldeia do Hunde
onde a criação de gado era prática corrente - e
4.6
a produzir excedentes para desenvolver relações
comerciais próximas ou longínquas.

Fig. 4.5 – A Musumba do Mwatianvua, impe-


rador da Lunda. Gravura do século XIX, AHM.
Fig. 4.6 – Instalação africana ou quilombo no
Bailundo. Planta da fortificação da Quipaca do
Sova de Quingolo, principal aliado do Baylundo.
Pormenor da Carta de Angola e Benguela de
Pinheiro Furtado e Pedro Miguéis, 1776, AHU.
Fig. 4.7 – Pequena aldeia do Hunde ou habita-
ção de família africana, no sul de Angola. Gravu-
ra da Revista As Colónias, 1888.
4.7

191
Isabel Castro Henriques

5.1

5.1 5.3

5 – Escravos ou dependentes
Fig. 5.1 – Escravos africanos e sua representação.
Objectos do MNE. Fig. 5.2 – Representação de
um escravo da região do Congo no século XVII.
Cavazzi de Montecuccolo, 1687.Fig. 5.3 – A rainha
Njinga sentada em cima de uma escrava que lhe
serve de assento. Cavazzi de Montecuccolo, 1687.

192
de escravos a indígenas

5.2

Se o tráfico negreiro europeu banalizou a ideia de que o continente africano se


caracterizava pela prática da escravatura, que tornava possível a captura fácil e a
rápida adesão das chefias africanas às propostas europeias, já os viajantes euro-
peus oitocentistas tinham registado a complexidade que envolvia a condição de
escravo e a natureza da escravatura africanas, sublinhando o facto das sociedades
africanas disporem de um vocabulário muito mais diferenciado para referir as
diversas situações, comparativamente à extrema insuficiência da grelha linguís-
tica europeia. A grande diversidade das situações existentes em África dificulta
qualquer generalização, embora se possa referir que as formas africanas de “es-
cravatura” eram marcadas pela integração do “escravo” ou dependente nas estru-
turas familiares, reguladas pelos sistemas de parentesco, mais ou menos flexíveis
e constituídos por dependentes diversos, que repeliam as formas mais violentas
de dominação e de exclusão. Estes dependentes se eram “geridos” pelo parentes-
co, constituíam um bem valioso, pois a riqueza, a autoridade e o prestígio social
media-se através do número de dependentes. Eram igualmente incluídos nos
sistemas religiosos e nas formas rituais, como as figurinhas aqui apresentadas,
oriundas de Angola, designadas Kapindji e Mwana, representando os escravos,
alguns portadores de libambos em miniatura, que integram os cestos dos adivi-
nhos quiocos, onde se concentravam objectos, que forneciam uma visão meto-
nímica dos problemas e dos homens, a ser manipulados por estes “profissionais”
da religião, e destinados aos rituais simbólico-sagrados destas populações. Parti-
cipando nas mais variadas tarefas da linhagem onde se integravam, homens e mu-
lheres “escravos” tinham estatutos diferenciados, podiam ser punidos e trocados,
estando sujeitos a sacrifícios ou ainda dispor de mecanismos socialmente aceites
para adquirir a liberdade.

193
Isabel Castro Henriques

Se o escravo africano destinado à exportação euro-


peia no litoral africano resulta de uma “fabricação”
levada a cabo pelos europeus, desmantelando psi-
quicamente o africano, obrigando-o a renunciar ao
seu corpo - gravado com os símbolos do proprietá-
rio que apagam as suas marcas iniciáticas - , ao seu
espaço, à sua família, à sua língua, à sua religião, às
suas mais diversas práticas sociais e culturais, à sua
identidade, o processo de escravização dos africa-
nos que assegura a produção de escravos destina-
dos ao comércio negreiro, é marcado por diferentes
técnicas e operações. Estas operações vão do rapto,
6.1
à captura, à condenação por crimes violentos mui-
tos vezes revelados através de rituais mágico/sa-
grados, às práticas religiosas condenáveis, fazendo
apelo às autoridades religiosas africanas, e afastan-
do o culpado da sociedade em que se integrava pela
via da venda aos Europeus. Mas a guerra constitui a
grande operação produtora da “mercadoria” huma-
na, reconhecida desde o século XVI, como se pode
ver nesta imagem que representa uma cena de guer-
ra dos Jagas angolanos, temidos e considerados an-
tropófagos, vendo-se um “talho” de carne humana
que o artista italiano desenhou. Os vencidos são
6.2 aprisionados pelos vencedores e com eles toda a
sua família, que, no conceito africano se traduz
na enorme linhagem com dezenas de indivíduos,
quando não centenas, que permitem “produzir”
um imenso volume de escravos a ser trocados por
mercadorias europeias destinadas à guerra, como
as armas de fogo e a pólvora, mas também merca-
dorias raras no espaço africano, como tecidos, con-
tas e missangas, objectos de cobre e de latão, muito
procuradas pelo seu valor simbólico, que garantem
o poder e o prestígio social dos chefes africanos.
6.3

6 – A ‘produção’ de escravos em Angola


Fig. 6.1 – Representação de uma cena de guerra
dos Jagas. Gravura de Pigafetta e Duarte Lopes,
1591. Fig. 6.2 – Guerreiros do Congo. Gravura de
Pigafetta e Duarte Lopez, 1591. Fig. 6.3 – O exérci-
to do rei do Benim partindo para a guerra. Gravura
de Dapper, 1686. Fig. 6.4 – Depois do combate,
a captura dos escravos, no Loango. Gravura de
6.4 Dapper, 1686.

194
de escravos a indígenas

6.5

6.6

Fig. 6.5 – Escravos capturados conduzidos por africanos condutores de escravos. Litografia, segundo de-
senho de Douville, 1828, BNF, e gravura anónima de 1811, BADParis. Fig. 6.6 – Escravo nu capturado e
preso por uma forquilha na região de Cabinda. Gravura publicada em De Granpré, 1801.

195
Isabel Castro Henriques

7 – A organização do tráfico de es-


cravos em África
Fig. 7.1 – Barracão de escravos no
interior de Angola, gravura anó-
nima do século XIX. Feitoria no
Loango, no norte de Angola, século
XVII, BNP. Presídio de Massanga-
no, desenho intitulado «Planta da
base do Corpo da Guarda do Presídio
de Massangano», 1752, AHU.
7.1

196
de escravos a indígenas

Fig. 7.2 – Caravanas de escravos em trânsito,


gravura aguarelada publicada em Viagens de
Mungo Park, século XVIII. Africanos escra-
vizados transportados presos uns aos outros
por forquilhas, as crianças seguindo livres
junto das mães, gravura anónima de 1811,
BNF. Fig. 7.3 – Escravos conduzidos por
condutores africanos do interior para o lito-
ral, sob o comando de um agente comercial
branco. Imagem do frontispício do volume
X da obra de Raynal, onde este denuncia a
escravatura dos Africanos,1780.

7.2

7.3

197
Isabel Castro Henriques

7.4

7.5

Fig. 7.4 – O percurso das caravanas para a costa


oriental conta com a participação árabe. Gravura
oitocentista de Josiah Wood Whimper, publicada
em Livingstone, (1843-1872),1985. Fig. 7.5 – A
longa duração da escravização dos Africanos, numa
fotografia dos finais do século XIX, publicada em
Deschamps, 1970.

198
de escravos a indígenas

A organização do comércio de escravos interno foi marcada por uma


circulação intensa de caravanas de escravos presos, controlados so-
bretudo por agentes africanos e mestiços, que viajavam do interior
para o litoral, em condições duras e dolorosas para os escravizados.
Os percursos eram preparados e o caminho seguia rotas existentes nas
redes comerciais africanas pré-existentes, onde os portugueses insta-
laram sempre que puderam presídios, feitorias e feiras, construindo
barracões destinados a guardar a “mercadoria” em trânsito. Os pre-
sídios constituíam as estruturas portuguesas do interior, fortificados
e dispondo por vezes de artilharia, marcando uma ocupação militar
portuguesa, que deviam também assegurar a propagação da fé cristã
e a protecção dos comerciantes. Massangano foi o primeiro presídio,
construído em 1585, usufruindo da proximidade do rio Quanza,
essa via líquida essencial de penetração portuguesa, mas sobretudo
de intensa actividade comercial africana e luso-africana ao longo de
séculos, numa região marcada por uma forte densidade populacional
e por uma multiplicidade de rotas, de feiras, de produções e de trocas,
onde circulavam também os escravos. Estes lugares de armazenamen-
to dos escravos nos percursos do interior africano, constituíram os
primeiros espaços onde estes aprenderam a ordem branca e as regras
da escravização a que estavam sujeitos desde a captura ou a compra.
As abolições do tráfico negreiro (1836) e da escravatura (1869), não
puseram fim a este tráfico interno angolano que se estendeu até ao
século XX, alimentando os fluxos comerciais angolanos, metamorfo-
seado em novas formas de exploração humana, que prosseguiram no
quadro da dominação colonial portuguesa novecentista.

199
Isabel Castro Henriques

8.1

8 – Os instrumentos da escravização dos homens


Fig. 8.1 – Algemas, grilhões, grilhetas com cadeado, golilhas,
colares ou coleiras de metal, esferas e correntes de ferro: uma
panóplia “inventiva” e violenta para prender os escravos. Ob-
jectos do MEA. Gravura representando uma golilha com has-
tes para dificultar as fugas, reproduzida em KAY, 1968.

200
de escravos a indígenas

Fig. 8.2 – As marcas da africanidade nos corpos africanos: escultura de mulher


com o corpo “bordado” de incisões, Museu do Dundo, Angola. Um escravo com
escarificações no rosto, no Brasil oitocentista. Fotografia de José Christiano Júnior,
MHNRJ, 1865.

Prender os movimentos para evitar a fuga e melhor controlar o escravo, não o impedindo de trabalhar
para o proprietário e de se manter activo nas tarefas do quotidiano, eram as funções de uma infernal
panóplia de instrumentos de metal ou de madeira criados pelos Europeus, no âmbito do processo de
escravização dos Africanos, quer em África, quer nas Américas, quer ainda na Europa. O sofrimento quo-
tidiano provocado pelo uso desses objectos que impediam a liberdade do escravo e dificultavam actos
banais como comer, devem ainda ser associados à dôr física e psíquica provocada pela marcação a ferro e
fogo no seu corpo, que para além de animalizar o homem escravizado, apagava as marcas civilizacionais
dos corpos africanos, eliminando os símbolos - escarificações, tatuagens, incisões – da sua africanidade.
Transformado o homem numa mercadoria, o corpo marcado de acordo com as normas do negreiro ou
do esclavagista, dava indicações sobre o proprietário individual, ou o representante da casa comercial ou
ainda da instituição do Estado português, criando uma nova identidade a homens e mulheres africanos
de origem, agora sofrendo a amputação da sua liberdade. Se a fuga do escravo era a solução preferencial
para sair da situação de escravização, era ela duramente castigada quando falhada, atingindo uma violên-
cia extrema que provocava lesões irreversíveis e a morte.

201
Isabel Castro Henriques

8.3

8.4

Fig. 8.3 – O acto de marcação de uma escrava. Gravura anónima do século XVIII.
Fig. 8.4 – Ferros utilizados em Angola para marcar com fogo os escravos destinados à
exportação. Objectos do MNEA.

202
de escravos a indígenas

Fig. 8.5 – O castigo dos escravos


quando fogem: o chicote portu-
guês. Gravura do século XVII,
publicada por Froger, 1698.

203
Isabel Castro Henriques

9.1

9.2

9.1 9.3

204
de escravos a indígenas

9.3

9.3

9 – Os agentes do comércio de escravos, a operação de compra da “mercadoria” humana e a dolorosa


partida dos escravos.
Fig. 9.1 – O negreiro europeu, o intermediário frequentemente luso-africano, o agente africano. Gravura
anónima do século XIX, publicada por Deschamps, 1970. Agente africano armado com espingarda laza-
rina. Gravura anónima, BNF. Fig. 9.2 – A compra/venda de escravos em terra africana no século XVII.
Gravura publicada na obra de Froger, 1698. Fig. 9.3 – Dois escravos de partida para o barco negreiro.
Desenho aguarelado de Debret, primeira metade do século XIX. O embarque dos escravos marcado pela
tristeza da partida, vendo-se ao longe o navio negreiro pronto para receber os escravos destinados ao
Novo Mundo. Gravura anónima do século XVIII, AHM. A caminho do navio negreiro. Gravura anónima
do século XVIII, AHM. Fig. 9.4 – As mercadorias europeias da operação comercial centrada no escravo.
Manilha de cobre, Museu de Volkerkund, Berlim. Espingarda lazarina decorada pelos Quiocos, Museu do
Dundo, Angola. Colar de missangas, cauris, fibras e latão da região nkumbi, Angola, MNE. Barra de cobre
comerciada na costa ocidental africana, Museu de Volkerkunde, Berlim.

205
Isabel Castro Henriques

9.4

Os negreiros, grandes e médios comerciantes portugueses e brasileiros, mas também angolanos como a
famosa luandense D. Ana Joaquina de Sousa, que actuavam em Angola, muitas vezes ausentes e represen-
tados por agentes intermédios, ocupavam o topo da pirâmide esclavagista que praticava o comércio de
escravos, base do seu enriquecimento. Estabelecidos nas cidades e nas vilas do interior através de casas
comerciais e de agentes locais que velavam pelos seus interesses comerciais, organizavam o comércio de
escravos e protegiam-no ferozmente, mesmo quando as abolições foram decretadas, conduzindo então
o tráfico esclavagista clandestino. Associados a intermediários africanos e tendo ao seu serviço pequenos
comerciantes “do mato”, brancos mas sobretudo negros e mestiços, muitas vezes designados de pom-
beiros, alimentaram durante séculos o processo de escravização dos homens e das mulheres africanos.
Este comércio de escravos que, no interior circulava também nas redes de outras trocas africanas, exigia
um volume significativo e diferenciado de mercadorias europeias, procuradas e destinadas aos chefes
africanos que controlavam os circuitos internos e dispunham da capacidade de “produzir” e de vender
os escravos. Introduzidas a partir do litoral e seguindo as rotas do comércio africano, as mercadorias
europeias - manilhas de cobre e latão. missangas, tecidos, bebidas alcoólicas, armas de fogo, pólvora, con-
chas cauris, barras de cobre -, algumas funcionando como dinheiro, como as conchas cauris vindas das
Maldivas ou as barras de cobre europeias, chegavam às mais variadas populações do interior, tornando-se
essencialmente objectos de prestígio e de poder.

206
de escravos a indígenas

10.1 10.2

10.3 10.4

10.5

10 – A viagem ou a dura travessia do Atlântico


Fig. 10.1 – A busca da rendibilidade máxima ou as condições do transporte nos navios negreiros. Gra-
vura de Rugendas, 1835 Fig. 10.2 – «La Marie Séraphique», navio negreiro chegado a Nantes, depois
de uma viagem triangular a Angola, onde “encheu” de escravos transportando-os depois para o Brasil, em
1771-1773. Museu de Nantes. Fig. 10.3 – Escravos deitados, empilhados, transportados como “mer-
cadoria”. Imagem do interior do navio negreiro «La Vigilante» apresado em 1822 com 344 escravos
a bordo. Gravura reproduzida por Daget, 1990. Fig. 10.4 – Navio negreiro português «O Diligente»
capturado pela marinha inglesa em 1837, quando transportava clandestinamente 600 escravos para Nas-
sau, nas Bahamas. Aguarela de Henry Samuel Hawker, 1838, NMAAHC, Washington. Fig. 10.5 – Navio
negreiro deitando a carga humana ao mar. Gravura de 1836.

207
Isabel Castro Henriques

10.6

Fig. 10.6 – Maquetes de navios negrei-


ros. Gravuras do século XVIII, da Biblio-
teca do Arsenal (Paris).

208
de escravos a indígenas

Malaguetas

Inhame

Palmeira dendém

Mandioca
Milho Batata doce

Fig. 10.7 – A alimentação a bordo: as plantas, algumas africanas outras americanas, asseguravam a sub-
sistência dos escravos durante a travessia do Atlântico. Inhame africano: Gravura de Frey de Mussac,
Flore des Antilles, 1808. BNF. Milho americano: gravura da tradução italiana da Asia de João de Barros,
Veneza, 1563. Malagueta africana. Fotografia anónima publicada por Ferrão, 1992. Palmeira dendém,
Aguarela setecentista, AHU (imagem digitalizada); Mandioca americana. Gravura inserida na obra de
André Thévet, La Cosmographie Universelle, 1575. Batata doce ou «nabo do Congo» , planta americana
já africanizada. Gravura publicada por Cavazzi de Montecuccolo, 1687.

209
Isabel Castro Henriques

Fig. 10.8 – Representação do quotidiano dos escravos a bordo,


presos, acorrentados, doentes sob o olhar vigilante dos carrascos
brancos, sempre prontos a castigar os rebeldes e infractores da
ordem branca. Gravura de Rugendas, 1835.

As condições do transporte nos navios negreiro eram de tal modo duras que levaram a invenção de uma
expressão inglesa que consagrou a violência da travessia entre a África e as Américas: Middle Passage (Pas-
sagem do Meio). Viagem sem retorno, era ela operada pelos milhares de navios negreiros que durante sé-
culos atravessaram o Atlântico carregados de escravos africanos. A rigorosa organização do espaço onde
os escravos eram presos não se podendo mexer, deitados, empilhados para ocupar menos lugar no navio
e permitir assim um maior volume de “mercadoria” transportada e uma maior rendibilidade. Uma das
práticas frequentes, era o lançamento de homens e mulheres ao mar, situação que ocorria frequentemen-
te no período do tráfico clandestino, em que os negreiros eram detectados e perseguidos pela navegação
inglesa que controlava o tráfico atlântico. Mas os escravos também eram lançados ao mar quando estavam
doentes ou moribundos, ou mesmo vivos em situações determinadas como o castigo ou a falta de água a
bordo. Os seguros cobriam geralmente estas situações de perda da carga, pelo que ela era frequentemente
utilizada pelos negreiros. William Turner pintor romântico inglês (1775-1851) fixou esta operação numa
célebre pintura intitulada The Slave Ship, exposta pela primeira vez em 1840, que se encontra no Museu
de Belas Artes de Boston. Refira-se ainda a cuidada preparação destes navios destinados a carregar um
número máximo de escravos, que levou à produção de maquetas dos barcos negreiros, utilizadas quer
para estudar a capacidade e a arrumação dos escravos a transportar, como é o caso da primeira maquete
do século XVIII ( Paris), mas também para sublinhar a dureza das condições em que essa operação se
fazia: a maquete dupla foi utilizada pelo abolicionista e deputado Wilberforce para a sua intervenção na
Camâra dos Comuns inglesa, em 1807, destinada a denunciar a violência do comércio esclavagista e que,
após longa campanha, resultou na aprovação da abolição do tráfico de escravos.

210
de escravos a indígenas

11 – A chegada às Américas: trabalho/castigo,


exclusão/ integração
Fig. 11.1 – Desembarque de escravos no Rio de
Janeiro. Desenho de Rugendas, 1835. A cidade
do Rio de Janeiro, o Largo do Paço. Gravura de
Franz Fruhbeck, século XVII. Escravos desem-
barcados, um sendo observado, outro vendido.
Gravuras do século XVIII.

211
Isabel Castro Henriques

Fig. 11.2 – Mercado de escravos no Recife, onde


a concentração de escravos é assinalada como
uma mancha negra. Gravura aguarelada do sé-
culo XVII de Zacharias Wagener, Thier Buch,
Dresden. Mercado de escravos no Rio de Janeiro.
Desenho de Rugendas, 1835. Venda de escravos
em Charleston, na Carolina do Sul. Desenho de
Eyre Crowe, The Illustrated News, 1856. Merca-
do de escravos na Virgínia. Pintura oitocentista
de Eyre Crowe.

212
de escravos a indígenas

Após o desembarque no litoral americano, os escravos, nus, eram


imediatamente sujeitos a uma avaliação por agentes americanos que
avaliavam a saúde, a compleição física, eventuais defeitos físicos e atri-
buíam um valor a cada “mercadoria”. Assim, depois de observados,
classificados, avaliados, eram transportados como qualquer outra mer-
cadoria de consumo banal, para os mercados urbanos, que se foram
multiplicando nas cidades americanas do norte e do sul do continente,
EUA e Brasil, em particular, onde viriam a ser adquiridos pelos futu-
ros proprietários. Era aí também que comerciantes negreiros rurais ou
representantes os compravam para os levar para as regiões do interior.
Eram expostos geralmente nus, sobretudo nos primeiros tempos da es-
cravatura americana, frequentemente “encerados” para valorizar o cor-
po e aumentar o preço. Depois de vendidos e remarcados pelos novos
proprietários, os escravos entravam numa vida de trabalho violento e
contínuo, que só parava com a morte. O trabalho escravo e o castigo
dado aos escravos nas cidades brasileiras dos séculos XVIII e XIX, fo-
ram amplamente descritos por artistas estrangeiros que nelas viveram:
escravos urbanos acorrentados e com colares de ferro que impediam a
fuga, desempenhando tarefas do quotidiano, da venda de produtos ao
trabalho artesanal, como o sapateiro escravo sendo castigado, à ordem
dos brancos. Também o trabalho escravo nas plantações e nas minas foi
descrito graficamente dando conta das duras e complexas tarefas dos
escravos, castigados quando fugiam ou não cumpriam, que se prolon-
garam durante vários séculos: no Brasil, a abolição da escravatura só foi
decretada em 1888!

213
Isabel Castro Henriques

3
5

4 6

Fig. 11.4 – O trabalho escravo rural: paisagem de plantação com engenho de açúcar. Dese-
nho de Zacharias Wagener, primeira metade do século XVII, Thier Buch, Dresden. As mui-
tas tarefas ligadas à cultura da cana e à produção do açúcar, no século XVII, gravura repro-
duzida em Pierre Vander Aa, La Galerie Agréable du Monde, século XVIII, Leiden. O fabrico
do açúcar no século XIX, Rugendas, 1835. O trabalho nas minas de ouro e de diamantes: a
lavagem do ouro, gravura do século XVIII, AHU, e as tarefas de extracção e lavagem dos dia-
mantes, gravura do século XVIII, AHU, e desenho de Carlos Julião, finais do século XVIII.

214
de escravos a indígenas

Fig. 11.3 – O trabalho escravo nas cidades brasi-


leiras: escravos urbanos acorrentados e castigados.
Três gravuras aguareladas de Debret, primeira me-
tade do século XIX, BNRJ. «Escravos do ganho»,
no Brasil oitocentista, que se dedicavam ao artesa-
nato fabricando cestos, os lucros revertendo para os
proprietários. Fotografia de José Christiano Júnior,
MHNRJ, Colecção Particular, 1865.

215
Isabel Castro Henriques

12 – Das formas de resistência passiva à revolta


e rebelião
Fig. 12.1 – Quotidianos dos escravos nas horas de
“lazer”: a religião, a dança, a festa mantinham viva a
memória de África. As «Negras de Nossa Senhora
do Rosário», no Rio de Janeiro, em finais de Sete-
centos. Aguarela de Carlos Julião, publicada na sua
obra Riscos Iluminados…. c. 1770-1780, BNBrasil.
Dança de escravos numa plantação colonial. Agua-
rela anónima dos finais do século XIX. Batuque
de escravos. Gravura do século XVIII, AHU. Festa
consagrada a Nossa Senhora do Rosário em ritmo
de congada, com coroação de rei, em Ouro Preto,
no Brasil. Aguarela oitocentista de Rugendas, Paris,
1835

216
de escravos a indígenas

Fig. 12.2 – O castigo dos escravos no Brasil: o


tronco, o chicote, a tortura. Gravuras aguareladas
de Debret, 1824-1839, BNRJ. No Surinam, a tor-
tura até à morte a escravos pendurados perdurou
no tempo. Gravura de 1792 de William Blake, pu-
blicada na obra de John Gabriel Stedman, Narrative
of a five years expedition against the revoltes Negroes
of Surinam, Londres, 1796.

217
Isabel Castro Henriques

12.3 12.4

Fig. 12.3 – A fuga dos escravos e a or-


ganização dos quilombos: o Quilombo
chamado « Buraco do Tatú» na costa
brasileira de Itapoã. Desenho aguare-
12.3 lado de finais do século XVIII, AHU.
O Quilombo de Palmares, em Pernam-
buco, segundo um desenho aguarelado
seiscentista de Blaeu e inserido no Atlas
Maior de Wilhelmm Jasoon Blaeu, Ams-
terdão, 1662. Fig. 12.4 – Zumbi, o herói
dos quilombolas de Palmares, hoje herói
nacional. Estátua em bronze na Praça
Onze, do Rio de Janeiro Fig. 12.5 – A
Revolta dos escravos na ilha de São Do-
mingos, Haiti, dos finais do século XVIII
ao início de Oitocentos. Gravura anóni-
ma de 1791, BNF, Paris.
12.5

218
de escravos a indígenas

Levados como escravos, sujeitos a várias operações de transforma-


ção física e psíquica, os escravos mantiveram sempre viva e activa
a memória de África, procurando nas duras condições de vida nas
Américas, preservar identidades, culturas, valores africanos, que
guardavam no seu interior, sem que os proprietários pudessem inter-
vir e eliminar. Procuraram situações e inventaram estratégias que lhes
permitissem viver esses formas residuais de africanidade: a religião
do esclavagista permitiu-lhes encontrar nichos de protecção e de pre-
servação de valores e de formas religiosas – através de sincretismos
múltiplos – que eram os seus. É caso da Confraria de Nossa do Ro-
sário, a mais “africana” confraria brasileira onde as escravas alforria-
das se integravam, recebendo protecção e apoio nas suas actividades
quotidianas, como a venda de bens geralmente alimentares. Também
nas plantações e vilas interiores do Brasil se multiplicavam danças e
festas, dos batuques a cerimónias religioso-lúdicas lembrando a Áfri-
ca. Estas eram práticas correntes, procuradas e desenvolvidas pelos
escravos para manterem a proximidade com os seus espaços africanos
ancestrais, recorreram aos seus chefes e divindades africanos, criarem
e consolidarem laços de solidariedade entre si, sob a memória de uma
África, origem de todos. Podem também considerar-se operações de
resistência à violência dos castigos, uma constante da vida do escra-
vo. Até finais do século XIX brasileiro, os escravos eram castigados,
quer nas cidades e vilas junto aos pelourinhos perante outros escra-
vos, quer nas minas e plantações, onde a dureza dos castigos, que va-
riavam em função dos crimes cometidos, era idêntica, levando até à
morte. A revolta e a fuga marcavam igualmente os quotidianos dos
escravos, que encontravam nesta última forma de escapar à violên-
cia esclavagista, a solução mais eficaz e mais protegida: a construção
dos quilombos, que se multiplicaram no interior brasileiro, e onde
podiam viver livremente. Aí criavam novos territórios seus, espaços
de liberdade, inventando uma nova identidade, fruto das múltiplas
culturas que aí se cruzavam, formando os quilambolas, que vieram
a causar grandes problemas às autoridades coloniais. O mais célebre
quilombo, o Quilombo de Palmares, que nesta representação seis-
centista põe em evidência a presença dos quilambolas e a sua torre
de observação, destinada a prevenir ataques do exército brasileiro, fez
emergir e consolidar a importância dos quilombos na história do Bra-
sil, com um herói, Zumbi, que permanece na memória e na cultura
dos afro-descendentes brasileiros. Mas a grande revolta da história
foi protagonizada pelos escravos da ilha de São Domingos que depois
de um longo período de revoltas e de insurreições contra o poder
colonial e esclavagista terminou com a vitória dos revoltosos e com
a Declaração da Independência do Haiti (1804), que se tornou na
primeira república negra da história do mundo.

219
Isabel Castro Henriques

A exclusão dos Africanos


e a prática civilizadora portuguesa:
(des)classificados, ridicularizados, “civi-
lizados” (séculos XIX e XX)

13.1 13.2

13 – «Feios, monstruosos e selvagens»: classificações comuns e justificações científico-históricas


Fig. 13.1 – O «Apolo de Belvedere». Esta escultura, de autor desconhecido, considerada uma cópia
romana de um original grego desaparecido, foi redescoberta no Renascimento e exposta no Vaticano em
1511.Museu Pio-Clementino, Vaticano. Fig. 13.2 – A «Vénus Hotentote». La sculpture ethnographique
de la Vénus Hotentote à la Tehura de Gauguin, Paris, ERMF,1994.

Se no século XVIII europeu, o “Apolo de Belvedere” passou a concentrar o paradigma da beleza masculi-
na, a «verdadeira» beleza humana, é nos princípios do século XIX que a tristemente famosa africana do
sul Saartje Baartman forneceu o modelo desta Vénus africana, remetida para o monstruoso, seguindo as
classificações poligenista das raças humanas, como a de Virey (1801). Os anatomistas organizaram uma
grelha degenerescente da beleza humana, a qual só podia denunciar a brutalidade da fealdade africana,
próxima do orangotango. Esta monstruosidade inventada pelos Europeus para classificar os Africanos,
revela-se na criação de um modelo de “monstro” destinado a mostrar aos Portugueses a selvajaria africana
: Gungunhana. Nestas imagens, o herói moçambicano é apresentado fisicamente enorme posando com
coroa e ceptro, símbolos da sua realeza, descalço como um chefe africano, mas desvalorizado na cultura
portuguesa, que assinala a sua natureza monstruosa, não só pelo físico, mas também pelo gosto da guerra
e da brutalidade. No barco que o leva para o exílio em Portugal, em 1896, é visível o desânimo do chefe
para quem os sinais do poder – colares, coroa, mulheres – não podem suplantar a derrota e a humilha-
ção. Em Lisboa foi mostrado aos lisboetas, em carro aberto através da cidade, em direcção à prisão do
Monsanto, onde esperaria a sua transferência para os Açores. Já nas ilhas açoreanas, onde desembarcou
em 27 de Junho de 1896, com uma parte da família, é aqui retratado de cabeça baixa, dominado, sempre
descalço, este postal fixando o vencido e simultaneamente as glórias de Mouzinho de Albuquerque,o
herói português da conquista de Moçambique. Este último é desenhado erecto, a espada desembainhada,
neste livro de história destinado a ensinar as crianças portuguesas, que põe em evidência a superioridade
natural dos brancos, perante a figura dobrada, sentada e descalça do também “naturalmente” selvagem
de Gungunhana.
220
de escravos a indígenas

13.4 13.5
13.3

13.6 13.7

Fig. 13.3 – Classificação poligenista das raças humanas, segundo Virey (1801). TAGUIEFF, Pierre-
-André, Le Racisme, Paris, Flammarion, 1997. Fig. 13.4 – Gungunhana, o modelo da «monstruosi-
dade» africana, a bordo do vapor África, a caminho do desterro nos Açores, semi-nu e acompanhado
de algumas das suas mulheres. Fotografia do AHM. Fig. 13.5 – Gungunhana em pose de rei africano.
Fotografia publicada no Diário Ilustrado, 1897. Fig. 13.6 – Gungunhana nos Açores. Postal do AHM.
Fig. 13.7 – Mouzinho de Albuquerque e Gungunhana. Ameal, João, Obreiros do Império, Lisboa,
DGEP, série D, nº 5, 1959, p. 191.

221
Isabel Castro Henriques

14.1

14.2 14.3

14 – O «selvagem» e o esforço civilizador português


Fig. 14.1 – «Onde se começa a ver coisas do mato…». Rufino, Álbuns Fotográficos e Descritivos da Coló-
nia de Moçambique, 1929, X, foto 15, BNP. Fig. 14.2 – « O rei de Canhabone na Guiné com cartola e o
seu séquito», Fotografia do AHU. Fig. 14.3 – « Congo – O Estado-Maior do Rei dos Dembos». Postal
do Arquivo MaisImagem, Lisboa.

222
de escravos a indígenas

14.4

Fig. 14.4 – «Casa e família in-


dígena de Moçambique», Foto-
grafia do AHM. Fig. 14.5 – «Fa-
mília indígena do Bocoio, Lobito
[Angola], apresentando laivos
de civilização». Fotografia do
ANTT.
14.5

A dicotomia civilizados/ não civilizados, primitivos ou selvagens torna-se mais visível quando se aban-
dona o espaço restrito da cidade para se entrar no mato. Este conjunto de imagens concentra a visão
normativa do mundo africano, tal como os europeus o pensavam e o reproduziam, pondo em evidência
a acção civilizadora do colono e a selvajaria dos africanos, fossem eles autoridades locais, famílias ou
simplesmente homens e mulheres marcados pela sua inferioridade física e cultural, alguns já com “laivos
de civilização”. Registe-se a oposição entre os nus ou semi-nus – com as suas escarificações, tatuagens,
adornos, penteados, vestuário “primitivos” - e os vestidos que definem o eixo da partilha do mundo e das
humanidades em duas metades profundamente desiguais, que apenas o esforço heróico dos portugueses
pode reduzir e esbater através de um árduo trabalho civilizador. Mesmo se o processo pode ser lento,
demorado, doloroso, é certamente um dever (teórico) dos civilizados criar as condições e construir os
mecanismos para que possam emergir as circunstâncias necessárias à abolição das diferenças culturais e
mesmo raciais, garantindo ao selvagem a plena integração no espaço do progresso.

223
Isabel Castro Henriques

15.1

15.2

15 – A civilização portuguesa: a língua e a religião


Fig. 15.1 – «Um missionário do Mussuco, Angola, ensinando os selvagens, nus ou se-
mi-nus». Fotografia do Album de Veloso e Castro, AHM. Fig. 15b – «Crianças vesti-
das na missão de Tchivinguiro», Angola. Fotografia do AHU.

224
de escravos a indígenas

15.3 15.4

Fig. 15.3 – «Missão Católica de Malange: bapti-


sado numa aldeia indígena». Fotografia do ANTT.
Fig. 15.4 – «Irmãs da caridade leccionando rapari-
gas zambezianas vestidas». Rufino, Álbuns Fotográ-
ficos e Descritivos da Colónia de Moçambique, 1929,
X, fotografia 75, BNP. Fig. 15.5 – «Inauguração
da escola de crianças, todas nuas, em Nunda, no
Huambo». Postal do Arquivo MaisImagem, Lis-
boa.
15.5

Se as missões religiosas desempenharam o papel central na educação dos indígenas, das crianças aos adul-
tos, desenvolvendo o ensino da língua portuguesa e ministrando os ensinamentos e as práticas religiosas
– como o baptismo dos adultos - as autoridades coloniais, em particular as republicanas, apresentaram,
paradoxalmente, um cepticismo cruel, revelador do seu anticlericalismo, no que respeita aos efeitos do
trabalho dos missionários, a quem as imagens forneceram sempre uma estrutura simbólica do corpo or-
namentada com a barba da sabedoria! Ferreira Diniz (1924) é particularmente acutilante quando analisa
a questão: “A missão religiosa gerou o produto imperfeito do preto semi-civilizado, de aparência desa-
gradável, desmazelado, negligente no vestuário, que bem se constata comparando-o com o specimen do
preto do mato, distinto pela sua aparência de saúde e robustez, insinuante pela sua alegria ingénua e es-
pontânea, e pela simplicidade rústica da sua semi-nudez. O preto perde as qualidades sãs, que constituem
o rudimento moral da raça a que pertence, com a defeituosa educação que adquiriu em contacto íntimo
com o missionário, e que lhe destruiu o respeito, a delicadeza e o pudor naturais, substituindo-lhes por
um tosco descaramento e por um insólito amor próprio mal concebido”; e acrescenta que “ a instrução
literária que as missões subministram, à europeia, transplantando para a África as escolas primárias da
Europa…não se coaduna com o estado actual da sua civilização, manifestando-se a sua acção…pelo de-
senvolvimento antecipado da inteligência do preto, fazendo-lhe brotar no espírito a noção de individua-
lismo para o qual se não encontra preparado ...”. A rejeição do africano é total, lançando os fundamentos
da ridicularização do civilizado/assimilado que vai marcar durante décadas o facto colonial português.

225
Isabel Castro Henriques

16.1

16.2

16 – «Ensino e formação dos in-


dígenas»
Fig. 16.1 – «Escola-oficina nº
34 – alfaiataria no Humpata,
Angola». Fotografia ANTT.
Fig. 16.2 – «Cozer, costurar, bor-
dar – a aprendizagem dos ofícios
femininos». Fotografia ANTT.
Fig. 16.3 – «Oficina de marce-
naria. na Missão de Inharrime,
Inhambane». Rufino, Álbuns Fo-
tográficos e Descritivos da Colónia
de Moçambique, 1929, V, fotogra-
fia 93, BNP.
16.3

226
de escravos a indígenas

Fig. 16.4 – «Oficinas gráficas e de en-


cadernação da Missão da Beira». Rufi-
no, Álbuns Fotográficos e Descritivos
da Colónia de Moçambique, 1929,
IX, fotografia 37, BNP. Fig. 16.5 –
«Oficina de sapateiro em Chipanga,
na Zambézia». Postal da coleção João
Loureiro, Lisboa.
16.4

Os alunos das missões eram orientados, desde muito cedo, para uma actividade artesanal, mantendo-se
a divisão sexual da instrução e do trabalho. Também neste campo específico, encontramos as críticas
republicanas ao trabalho das missões, como é o caso das palavras de Ferreira Diniz (1924, p.11) que refe-
rindo-se “à instrução profissional, que deveria ser o seu principal objectivo” critica “ as missões religiosas
(que se) limitam a ensinar os ofícios de cuja aplicação convém para uso exclusivo na missão, não a inten-
sificando e não atendendo às aptidões dos indígenas da região, nem às necessidades e condições locais”.
Registe-se sobretudo dois factos: os missionários não hesitam – como toda a sociedade portuguesa e co-
lonial – em recorrer ao trabalho das crianças, tal como a aprendizagem que ministram se deve compreen-
der como uma recusa de escolaridade prolongada. Estamos perante a (quase permanente) ambiguidade
das intervenções dos missionários que se mostram incapazes de se furtar ao quadro dos preconceitos por-
tugueses, frequentemente reforçados pela origem social de missionários e de outros educadores – como
se pode ver na imagem representando uma triste mulher portuguesa, certamente analfabeta, ensinando
jovens e crianças a costurar - , que, possuindo apenas a experiência dos muitos pobres, não podem encarar
mais do que a reprodução da pobreza, mesmo se alterada pela aprendizagem de um ofício.

227
Isabel Castro Henriques

17 – .«Indígenas no continente, cidadãos nas ilhas: os frutos da perseverança do trabalho civilizador


português»
Fig. 17.1 – «Mulheres indígenas» da Huila (Angola) e da Guiné (1900). Postal da colecção João Lou-
reiro, Lisboa e Fotografia de Luisa Oliveira, DDF/IMC.

Podemos dar-nos conta da diferença registada pelo colonizador português entre as colónias continentais
e as insulares, através destas fotografias de mulheres, todas elas de uma grande beleza física, que põem
evidência os fortes marcadores culturais das africanas do continente – nome africano, corpo nu ou se-
mi-nu, escarificações e tatuagens, penteados simbólicos, adornos e vestuário marcando origem, idade,
estatuto -, em contraste com a europeização das mulheres insulares, que renunciaram aos nomes africa-
nos e adoptaram os corpos vestidos, dispensando quaisquer marcas físicas. Entre estas mulheres de cada
um dos espaços do império africano português, as selvagens e as civilizadas, está a obra civilizadora da
colonização portuguesa. Registe-se a imagem da jovem cabo-verdiana, posando em estúdio fotográfico,
vestindo modelo ocidental, que as relações de Cabo Verde com a Europa e as Américas, através da emi-
gração cabo-verdiana, banalizou nos grupos sociais mais elevados do arquipélago, em particular de São
Vicente. E registe-se a situação particular da família cabo-verdiana instalada na Guiné, integrando o grupo
dos ponteiros, reveladora das capacidades civilizadoras dos cabo-verdianos, cuja experiência permitia a
sua utilização nas colónias continentais ao lado dos portugueses, na sua missão de progresso e civilização
dos indígenas.

228
de escravos a indígenas

Fig. 17.2 – «Mulheres civiliza-


das», cabo-verdiana (1900) e
santomenses. Fotografia de Luisa
Oliveira DDF/IMC e Postal do Ar-
quivo MaisImagem, Lisboa.

229
Isabel Castro Henriques

Fig. 17.3 – «Famílias portugalizadas de Cabo Ver-


de e de São Tomé». Fotografia do Album de Velo-
so e Castro, AHM e Fotografia publicada na obra
de Negreiros, A. L. Almada, 1895.

Tal como no Brasil, o tempo e a perseverança


das acções dos portugueses nos arquipélagos
de Cabo Verde e de São Tomé e Príncipe, des-
de o século XV, põem em evidência a justeza das
políticas coloniais a desenvolver nos territórios
continentais africanos. A presença continuada e
abnegada dos portugueses permitiu criar socie-
dades novas, harmoniosas, organizadas segundo
a norma da civilização, como viria a estudar e a
provar o luso-tropicalismo, tão apaixonadamente
adoptado pelo Estado Novo, em meados do sé-
culo XX. As ilhas são pois a prova material da ne-
cessidade de colonizar a África, como mostram a
organização urbana e as actividades económicas,
naturalmente dependentes do contexto ecológi-
co, mas também a condição dos homens e das
mulheres que põe em evidência, através das ati-
tudes, do vestuário - os chapéus masculinos e os
longos vestidos femininos -, das arquitecturas, da
ordem citadina, do arranjo dos mercados – como
é o caso deste mercado cabo-verdiano, fechado,
cuja estrutura metálica, utilizando colunas põe
em evidência a marca europeia-, o trabalho secu-
lar civilizador dos portugueses. Registe-se a rea-
lidade das roças – estruturas fundiárias organi-
zadas e hierarquizadas, marcadas pela moderni-
dade técnica, produtiva, exportadora - centradas
nas plantações de café e de cacau de São Tomé,
a “pérola do império” português, cuja produção
constituiu uma poderosa alavanca do desenvolvi-
mento económico português, assentando na vio-
lenta exploração dos trabalhadores contratados,
oriundos de todo o império, designados serviçais.

230
de escravos a indígenas

17.4 17.5

17.6

Fig. 17.4 – «Mercado da ilha de Santiago, em 1900». Fotografia de Luisa Oli-


veira, DDF/IMC. Fig. 17.5 – «Aspecto da vila de São Tomé, em 1900-1920».
Fotografia de Luisa Oliveira, DDF/IMC. Fig. 17.6 – «São Tomé: roça e servi-
çais em dia de pagamento». Fotografia de Luisa Oliveira, DDF/IMC.

231
Isabel Castro Henriques

18.1

18.2

18 – «As marcas da portugalização/civilização: dos colonos portugueses aos objectos do progresso»


Fig. 18.1 – «Porfírio Pontes e família e Casa do colono Cunha Pereira. Colonos portugueses instalados
no interior de Angola». Postais do Arquivo MaisImagem. Fig. 18.2 – « A Ponte da Alfândega na Beira,
com os seus guindastes e as ligações ferroviárias». Fotografia da Agência Geral do Ultramar, ANTT.

232
de escravos a indígenas

Portugalizar/branquizar o território africano impôs também a instalação de colonos por-


tugueses ou (raramente) outros europeus, na quase totalidade homens e mulheres pobres,
analfabetos ou quase, sem conhecimentos, vendo os africanos apenas como selvagens que
era necessário submeter, para os tornar úteis aos seus próprios projectos. A criação de
colonatos constitui certamente o elemento mais perturbador, mas também o mais reve-
lador, do tipo de fixação portuguesa, nomeadamente em Angola, dependendo de uma
ideologia especificamente portuguesa, que foi, do ponto de vista eugenista, exposta pelo
antigo alto-comissário da República, Vicente Ferreira: os portugueses deviam evitar todo
e qualquer compromisso com os africanos, mesmo se estes participam no desbravamen-
to do terreno, tal como na construção das casas, destinadas aos colonos recrutados em
Portugal. Mas estes últimos devem assegurar a sua actividade agrícola sem necessitar de
recorrer ao trabalho africano. Esta operação é destinada a recriar os colonos agricultores,
que assegurarão por si só a produção dos produtos agrícolas. Registe-se dois elementos
significativos de que as fotografias nos dão conta: a família portuguesa, marcada pela sua
origem rural e a casa portuguesa de boa e sólida tradição rural, quer na concepção, quer
na estrutura, quer nos materiais, torna visível o projecto de pobreza reservado aos colonos
rurais. Mas o processo de branquização dos territórios colonizados exigiu a introdução
dos mais modernos meios de organização e circulação dos homens e das mercadorias,
de que nos dão conta as muitas imagens, sobretudo fotográficas, produzidas desde os fi-
nais do século XIX. Tal situação resulta de uma série de operações de que se destacam a
construção dos caminhos de ferro, das redes rodoviárias, das pontes e dos portos, como o
da Beira aqui registado, onde se respira uma actividade frenética de europeus e africanos
em torno das tarefas de importação/exportação que os rails e os furgons de transporte de
mercadorias, bem como os guindastes e os armazéns denotam. Mas também a injecção de
automóveis, de camionetas, de comboios, de vapores e de lanchas, que põem fim à dura
profissão de «carregador», que tantos conflitos provocara entre as populações e os co-
lonos, sobretudo comerciantes. E ainda a introdução de máquinas e de objectos inéditos
que o comércio português vai banalizando, como as bicicletas que indicam uma mudança
subtil de estatuto, a difusão de igrejas, de escolas, de missões religiosas, de modelos ar-
quitectónicos, de construções e de materiais europeus estranhos às civilizações africanas,
bem como a multiplicação de estruturas urbanas – das povoações comerciais às cidades
– e dos marcadores citadinos como os candeeiros de ferro que assinalam a urbanização de
carácter moderno e europeu, criam lugares novos, que exigem a reorganização das terras e
a expulsão dos africanos, para assegurar a instalação hierarquizada de colonos e de autori-
dades administrativas e dos próprios africanos integrados no regime do trabalho colonial,
e constituem uma rede complexa que altera a própria concepção do espaço e marca a
transformação das sociedades, permitindo a concretização dos objectivos económicos,
políticos e culturais do colonizador.

233
Isabel Castro Henriques

18.3

Fig. 18.3 – «A bicicleta, na Guiné, o automóvel,


no Huambo e o comboio chegando à Gare pro-
visória de Nova-Lisboa, em Angola». Fotografia
do ANTT e postais da colecção João Loureiro,
Lisboa. Fig. 18.4 – «As estruturas urbanas e ar-
quitectónicas portuguesas na Praça da República,
em Luanda». Postal do Arquivo MaisImagem. 18.4

234
de escravos a indígenas

19.1

19.2

19 – «Assimilar/ civilizar ou recusar ao Outro a sua identidade e autonomia»


Fig. 19.1 – «Uma família indígena de Moçambique semi-civilizada». Postal do
Arquivo MaisImagem, Lisboa. Fig. 19.2 – «Cabindas civilizados». Postal do
Arquivo MaisImagem.

Referindo-se às desvantagens da educação europeizante dos africanos, Ferreira Diniz (1924) sublinha
o facto de “o indígena” se julgar “ igual ao europeu, em cultura e conhecimento, quando apenas se lhe
assemelha no mal, senão que o excede, especialmente no egoísmo e na vaidade”. Esta desvalorização dos
africanos que tinham aprendido a ler, a escrever, a vestir e a viver à europeia vai orientar as relações entre
os portugueses e os africanos durante todo o período colonial, fixando no imaginário português uma
atitude de ridicularização do assimilado, cuja “portugalização”, se assentava na capacidade de falar e de
escrever o português, exigia também a prática civilizada dos quotidianos – vestuário, cozinha, palato,
descanso - , que constituíam um elemento fundamental, permitindo ou recusando a assimilação. Salien-
te-se, no que respeita à língua, a importância de um paradoxo – cuja eficácia é no entanto visível - , pois ao
mesmo tempo que se recusava o reconhecimento das línguas dos africanos, exigia-se que os funcionários

235
Isabel Castro Henriques

19.3 19.4

Fig. 19.3 – «Casamento em Moçambique: com véu e flôr de laranjeira». Rufino, Álbuns Fotográficos e
Descritivos da Colónia de Moçambique, 1929, X, fotografia 22, BNP. Fig. 19.4 – «Um Político em Luan-
da». Postal da colecção João Loureiro, Lisboa.

da administração civil conhecessem uma língua africana, sendo, o kimbundu em Angola ou o ronga em
Moçambique, as línguas escolhidas. Registe-se sobretudo a violência contra o próprio assimilado, como
foi o caso em Moçambique e em Angola, onde o ambaquista e o «calcinhas» põem em evidência a im-
possibilidade de encontrar um acordo funcional entre os colonos e colonizados. Os «calcinhas» fizeram
parte da paisagem urbana colonial, sublinhando a vontade africana de se integrar nos padrões culturais do
colonizador, o que este não só não reconhecia, mas caricaturava. O «calcinhas» era encarado como uma
violenta caricatura do colonizador, devido ao que seria a impossibilidade africana de aprender a calçar-se,
a vestir-se e até a pentear-se. Mas, na verdade, os «calcinhas» sublinham a banalização das práticas urba-
nas, havendo por parte das populações africanas uma operação destinada a anular a distância que podia
separá-los dos europeus.
A carga irónica da fotografia corresponde ao sorriso trocista do fotógrafo que legenda a sua obra: da ridi-
cularização da família “semi-civilizada” moçambicana, ao “político” angolano, de “palhinhas” toscamente
colocado na cabeça, aos chinelos que ainda não são sapatos de civilizado, e aos comentários trocistas de
Rufino sobre homens, mulheres – ainda descalças - e comportamentos urbanos moçambicanos, onde se
integra o casamento. Estamos em presença de uma leitura cruel que sublinha a importância dos objectos
simbólicos, de qualquer tipo, para afirmar ou confirmar as diferenças culturais, que permitem e justificam
as formas mais extremas da dominação colonial.

236
de escravos a indígenas

20.1 20.2

20 – «O trinómio trabalho/imposto/castigo assegura a exploração do indígena remetendo-o para


formas de violência do passado esclavagista».
Fig. 20.1 – «A cobrança do imposto indígena em Angola». Fotografia do Album de Veloso e
Castro, AHM. Fig. 20.2 – «Mercado de algodão no interior de Moçambique, simbolizando as
culturas obrigatórias». Fotografia da Agência Geral do Ultramar, ANTT.

O trabalho e o imposto revelam-se particularmente eficazes, impondo a banalização de formas de produ-


ção lucrativas para o colonizador. Registe-se o sistema das culturas obrigatórias que obriga os africanos a
aderir a novos sistemas de produção, em função dos interesses dos colonizadores, único mecanismo de
que dispõem para satisfazer o imposto rigorosamente cobrado pelos agentes da administração colonial.
As culturas do algodão – cujas sementes americanas são distribuídas pelos portugueses aos indígenas
para cultivo, já na Angola oitocentista - e do café – planta africana cuja produção é incentivada pelos por-
tugueses do século XIX junto dos africanos - , culturas também industriais que vão igualmente suscitar a
implementação de sistemas de plantação organizados, geridos e controlados pelos europeus, constituem
duas das principais produções obrigatórias. As imagens registam um mercado de venda do algodão no
interior de Moçambique – o local onde se efectua a operação mostra o seu carácter rústico e uma ins-
talação de tipo africano -, homens, mulheres e crianças, semi-nus e descalços transportando o algodão
em estruturas de cestaria e entregando-o para pesagem aos colonos, de chapéu colonial, que asseguram
a comercialização e exportação da mercadoria. A fotografia angolana de Veloso de Castro (1908) põe
em evidência “a cobrança do imposto”, mostrando a entrega de sacos de café produzido pelos africanos
às autoridades coloniais portuguesas que, desta forma, cobram o imposto devido pelos indígenas. Mais
tarde, o imposto dito de cubata, em Angola, será obrigatoriamente pago em dinheiro pelos africanos,
reforçando a sua dependência do aparelho colonial.

237
Isabel Castro Henriques

20.3 20.4

20.5 20.6

Fig. 20.3 – «A pá e o trabalho: o ensino do seu manuseamento sob o olhar do guarda branco. Fotografia
do Album de Veloso e Castro, AHM. Fig. 20.4 – «A pá do trabalho obrigatório – Grupo de trabalha-
dores indígenas de Gaza». Rufino, Álbuns Fotográficos e Descritivos da Colónia de Moçambique, 1929, X,
fotografia 29, BNP. Fig. 20.5 – «A festa do indígena no Dundo – o concurso da pazada de terra». Foto-
grafia do ANTT. Fig. 20.6 – «A pá do castigo- Serviços correcionais em Benguela». Postal do Arquivo
MaisImagem.

238
de escravos a indígenas

Fig. 20.7 – «Indígenas castiga-


dos acorrentados como escra-
vos, em Angola». Fotografias do
AHM.
20.7

O conjunto de imagens fotográficas centrado no uso da pá – instrumento da perversão colonial – são


reveladoras da natureza complexa e elaborada das formas de exploração colonial: se os africanos devem
começar por aprender a manusear a pá, pois os diferentes trabalhos que devem saber executar – da agri-
cultura às obras diversas – assim o exigem, a pá simboliza também os trabalhos forçado e compelido
resultante dos castigos impostos pelas autoridades coloniais aos africanos, que põem evidência a miséria
e a exploração dos homens. Mas a pá é também objecto de um “lazer” que, se serve teoricamente para
adoçar as condições de existência dos colonizados e simultaneamente para dar “boa consciência” ao colo-
nizador, responde na prática à necessidade colonial de utilizar todos os meios – mesmo os lúdicos – para
exercitar as capacidades de trabalho dos africanos. Este singular concurso do “lançamento da pazada de
terra”, revelador de uma profunda imaginação da Companhia dos Diamantes de Angola, organizadora do
evento, sublinha a inferioridade técnica e a desvalorização do africano, apenas “bom” para o trabalho, e
a separação entre as actividades desportivas “nobres/brancas/civilizadas”, demasiado olímpicas, como o
lançamento do peso, e os desportos rústicos próprios para os indígenas.

239
Isabel Castro Henriques

21.2

21.1 21.3

21 – « A sociedade colonial: exploração e lucros »


Fig. 21.1 – «Plantação de cana de açúcar, produção e exportação do açúcar na região de Quelimane».
Rufino, Álbuns Fotográficos e Descritivos da Colónia de Moçambique, 1929, VI, fotografia 57, BNP. Fig.
21.2 – «Trabalho masculino numa plantação de café em Angola». Colecção particular. Fig. 21.3 –
«Trabalhos num campo de plantação de cana na Catumbela, Angola». Fotografia de Cunha Moraes,
1885.

Se os trabalhadores africanos forneciam a força de trabalho indispensável às plantações agrícolas – cana


de açúcar, café, algodão, chá, sisal - e à exploração mineira, eram eles também utilizados como mão-de-
-obra exportável com o fim de angariar lucros em outras colónias africanas, como se pode verificar nesta
fotografia que dá conta da longa fila de indígenas contratados para o trabalho nas minas do Transval,
aguardando o transporte ferroviário para a África do Sul. Mas este conjunto de imagens relativas a Angola
e a Moçambique mostra a actividade económica colonial em torno da produção de mercadorias exportá-
veis, como o café de Angola e o açúcar de Moçambique, pondo em evidência todo o processo económico
da produção, às técnicas, ao trabalho e aos salários, ao sistema de exportação e à consequente angariação
lucros, razão de ser do facto colonial que exige a exploração dos homens e das terras africanas. Podemos
registar o carácter modernizante de uma produção que recorre às máquinas – como os tractores – mas
que não dispensa naturalmente o duro trabalho dos homens que, descalços, numa plantação pobre do
norte de Angola que serve de eira de terra batida, procedem ao trabalho destinado a desidratar a cereja
do café. Mas a natureza industrial da plantação moçambicana sublinha também o processo de proleta-
rização dos trabalhadores africanos e mostra a organização da exportação fluvial no porto de embarque
da própria plantação. A complexidade e a modernidade destas unidades fundiárias centradas no sistema
da plantação, geridas pelos europeus e recorrendo ao trabalho africano, põem em evidência o carácter
capitalista, quer dizer, moderno, da exploração colonial portuguesa, que assegura a modificação da fisio-
nomia do espaço e a racionalização da economia, impondo a expropriação dos africanos das suas terras
ancestrais.

240
de escravos a indígenas

21.4

21.5

Fig. 21.4 – «Carregamento de café em


Luanda» Postal da colecção João Lou-
renço, Lisboa. Fig. 21.5 – «Trabalhado-
res contratados moçambicanos partindo
para as minas da África do Sul». Foto-
grafia do AHM. Fig. 21.6 – «Serviçais
de uma roça em São Tomé, no fim de
um longo dia de trabalho». Fotografia
do Arquivo de Documentação Fotográ-
fica, DGPC.
21.6

241
Isabel Castro Henriques

Fig. 21.7 – «Serviçais nos diferentes trabalhos


exigidos nas roças de cacau e de café em São
Tomé». Postais do Arquivo MaisImagem.

242
de escravos a indígenas

Fig. 21.8 – «Mesmo para a festa, como em todas as outras tarefas, os serviçais são obrigados a cumprir as
exigentes regras de formatura existentes nas roças». Postal do início do século XX, Arquivo MaisImagem.

As técnicas de controle dos homens vão-se afinando, de tal maneira que é possível sentir nelas a força de
gravidade da influência sul-africana: fixação da residência e proibição das viagens sem autorização prévia,
expropriação das terras, trabalho forçado ou obrigatório, imposto indígena, inibição de actividades eco-
nómicas independentes, castigos físicos, limitação ou mesmo proibição de frequentar certos espaços re-
creativos: eis o painel das medidas tomadas para garantir o carácter estanque da fronteira física e cultural
que devia separar os brancos dos pretos, a caderneta do indígena servindo de corolário de todo o edifício
da dominação colonial, para consagrar a inferiorização dos africanos.
Outro grupo demograficamente importante de trabalhadores contratados é o dos serviçais enviados para
as roças de São Tomé e Príncipe, a partir de todas as colónias portuguesas, das africanas, mas também
da Índia e da China. Estes homens, mulheres e crianças, raramente repatriados como previsto no fim do
seu contrato, viviam nas plantações em situações tão precárias que suscitaram as denúncias não só da co-
munidade internacional – que considerava uma situação de escravatura - , mas de sectores da autoridade
colonial portuguesa: o pagamento do seu salário foi sempre um roubo, pois que deviam receber 50% do
salário em São Tomé, de onde eram descontadas as verbas devedoras, segundo os proprietários e gestores
das roças, a segunda metade sendo paga no momento em que regressavam à terra de origem, situação que
raramente acontecia.

243
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

CAPÍTULO 3

AS MUITAS FORMAS DE
UTILIZAÇÃO E EXCLUSÃO
DOS AFRICANOS NOS
SÉCULOS XIX E XX
Selvagens e indígenas,
assimilados e civilizados

245
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

Do esclavagismo ao racismo 1

Entrevista a Isabel Castro Henriques, conduzida por José Miguel Sardica,


publicada num número temático da Revista História dedicado aos problemas
da escravatura, do comércio negreiro, do abolicionismo e da perseverança das
formas de exclusão dos homens.

Comecemos com uma questão ideológica geral: não acha que o estudo
histórico da questão da escravatura está ainda muito preso a moralismos, sus-
citando juízos de valor apaixonados que dificultam uma visão mais “neutra”?
Creio que será bom afirmar que não há questões historiográficas neutras.
Mas convém também observar que se trata de uma questão que continua a
ser extremamente sensível, que não entusiasma nem mobiliza muitos historia-
dores. No campo concreto da historiografia portuguesa, que neste particular,
como em outros, seguiu a tendência geral europeia, pode dizer-se que, du-
rante estes dois últimos séculos, ela não só trabalhou, mas procurou até silen-
ciar o fenómeno da escravatura e do tráfico negreiro. Esta realidade histórica
dramática, que se prolongou entre os séculos XV e XIX, alcançando o século
XX, não motivou uma produção historiográfica suficientemente abundante e
rigorosa, capaz de pôr a claro as causas, os mecanismos, as modalidades, des-
te fenómeno. Diria até que a partir do século XIX assistimos a uma viragem
das historiografias europeia e portuguesa que se empenham em sublinhar a
importância da abolição, primeiro do comércio negreiro, depois da própria
escravatura. Regista-se uma espécie de alarme que não depende de pulsões
éticas internas ao próprio processo da sociedade civil, mas do receio dos co-

1 “Esta entrevista permitiu uma reflexão, com amplas pistas para a compreensão do mundo actual, tendo sido abordados os silên-
cios das historiografias sobre a matéria, o lugar da escravatura e do tráfico negreiro na expansão e no colonialismo, o complicado
processo do abolicionismo oitocentista, as ligações entre o espírito e a prática do esclavagismo e do comércio negreiro, e ainda
fenómenos como o racismo ou a violência, ideológica ou económica, que condenam o continente africano a uma situação de
subdesenvolvimento. A terminar, ficaram também apontamentos acerca do que, a nível internacional, se vai fazendo para pôr
termo aos resíduos contemporâneos da cultura esclavagista “ ( José Miguel Sardica).

247
Isabel Castro Henriques

mentários dos Outros. No caso português a multiplicação das denúncias feitas


sobretudo por viajantes e missionários de língua inglesa agrava o problema.
O esforço feito para nos “branquear” – no sentido ético e somático da ex-
pressão – amputou o vigor e o rigor da investigação; chegamos à actualidade
com uma reduzida produção historiográfica consagrada à escravatura e ao trá-
fico negreiro. Mesmo se registamos em todos os países europeus, a mesma
tentativa de “branqueamento”, podemos constatar que nos faltam trabalhos
rigorosos, que não se deixem arrastar pela polémica, como aconteceu durante
os duros anos da guerra colonial. Basta pensar que a demonstração do nosso
racismo coube a um investigador inglês, o professor Charles Boxer, de resto
muito insultado durante o Estado Novo pelo também professor, mas sobre-
tudo patriota, Armando Zuzarte Cortesão. Ora convém saber que não somos
responsáveis pelo passado, mas que devemos assumi-lo da maneira mais clara
e mais rigorosa que o conhecimento permita. Os nossos arquivos contêm mi-
lhares de documentos que ainda não foram sistematicamente inventariados.

As razões dos silêncios historiográficos: em relação a essa “nova história”


que agora se debruça sobre esta temática, sente que a investigação nesta área é
um “campo minado”, olhado com reservas pelos que consideram que estudá-lo
é reabrir feridas passadas, e ignorá-lo pactuar com indesculpáveis violências?
Sim, penso que essa questão se pode colocar não só em relação a este fe-
nómeno, mas também a outros: por exemplo, ao problema colonial e à guerra
colonial. Encontramo-nos face a duas maneiras de encarar a situação: haverá
sempre os historiadores “patriotas” dispostos a veicular e a exaltar uma his-
tória nacional sem mancha, nem pecado, denunciando os que procuram a
verdade documentada; mas hoje, cada vez mais historiadores, jovens e me-
nos jovens, se desembaraçaram da farragem do fascismo e do colonialismo, e
trabalham de maneira tão rigorosa como desempoeirada. É certo que a socie-
dade portuguesa silencia e rejeita ainda hoje uma parte do seu passado, desse
passado particular que é o das relações dos portugueses com a África e com
os africanos, situação que não melhorou com a vaga dos “retornados”, que vol-

248
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

taram a Portugal feridos psíquica e financeiramente. Mas creio estarmos hoje


em condições de assumir os factos, tal como a tradição e os documentos os
conservaram. O problema essencial reside mais na existência de uma tradi-
ção social que se habituou a considerar africano e escravo como termos sinó-
nimos. A banalização da escravatura está por isso associada à desvalorização
dos homens e das suas práticas e instituições sociais. Não podemos elaborar a
história de Portugal, aqui e no mundo, sem considerar também a violência das
nossas relações com os vários Outros com quem nos cruzamos.

Até que ponto este tema historiográfico da escravatura e do tráfico ne-


greiro não constitui um Livro Negro da expansão, que contraria a imagem
oficial de um encontro de culturas humanista e pacífico, pressupondo uma
boa relação com o africano ao longo de cinco séculos?
Os descobrimentos e a expansão portuguesa tornaram-se o espaço nobre
da nossa historiografia. O século XVI é o nosso século mítico e mitificado.
O século XIX, arrastado pelos heróis do passado, reforçou essa perspectiva
da nossa história. Transformámos os portugueses num ‘povo de marinheiros’,
pondo de lado a tranquila obstinação que sempre os ligou à terra. De mari-
nheiros, a missionários, a colonizadores, a civilizadores dos Outros: abnega-
dos heróis face aos selvagens ímpios, imorais e canibais, deram “novos mun-
dos ao mundo”. Deformou-se a própria visão do país, deixando praticamente
fora do nosso espaço histórico as gerações e gerações que, nas dobras da terra,
enterradas nos vales ou a cavalo nas montanhas, foram fazendo Portugal. A
nossa expansão foi sempre uma apertada associação entre o mar e a terra, en-
tre a caravela e a charrua, pelo que se devia ter imposto uma visão mais ampla
destas operações.
Neste momento, 25 anos depois do 25 de Abril, com as portas do século
XXI já entreabertas, regista-se a existência de uma consciência mais forte, so-
bretudo nas gerações mais novas, já educadas fora das regras repressivas do
fascismo, da necessidade de trabalhar as questões históricas de uma maneira
crítica, com rigor e verdade, recorrendo a conceitos e a instrumentos metodo-

249
Isabel Castro Henriques

lógicos afinados pela comunidade internacional dos historiadores e dos cien-


tistas sociais em geral, sem se deixar arrastar pela ilusão dos povos perfeitos.

Dentro dessa óptica de rigor e de verdade, acredita que o problema da


escravatura, como toda a investigação histórica, deve ser olhado e avaliado
à luz daquilo que era a lógica mental da época, evitando assim o anacronis-
mo de o abordar pelos nossos olhos – racionalistas, humanitários e liberais
– de hoje?
Há sempre o risco do anacronismo: é o caso de um conceito como o ra-
cismo, que aparece tarde no vocabulário moral e político da Europa. A sua
projecção no passado, feita de de maneira inconsiderada, perverte a própria
leitura das situações. E haverá certamente outros exemplos de utilizações pou-
co pertinentes e deformadoras. No que diz respeito à escravatura, é evidente
que esse fenómeno que hoje nos repugna, era então considerado como uma
situação justificada e aceite pelo facto de permitir, através do baptismo e do
trabalho impostos ao escravo, a sua salvação. Mas é também evidente que a
reflexão dos homens, em quase todas as culturas, foi denunciando de manei-
ra lenta mas continua a inaceitabilidade da “condição natural” do escravo, tal
como fora proposta por Aristóteles. Hoje, não podemos escapar a um certo
calafrio quando consultamos nos documentos a imensidão de violências e de
torturas que foram infligidas a homens cujo único pecado era serem negros e
poderem trabalhar para os capitalistas que dispunham de meios para os com-
prar. Mas todos aprendemos com a lição dos filósofos que nos ensinaram a
medir com rigor o peso e os efeitos das ideologias.
O que surpreende o investigador nos dias de hoje, comparando as nos-
sas práticas às que se registaram na Europa, é a ausência de interrogações,
de debate contraditório. Não encontramos pensadores portugueses que
tenham participado activamente em debates tão fundamentais como no
século XVI a guerra justa e o estatuto dos índios americanos, tal como não
podemos mostrar nas galerias da história pensadores que se tenham preo-
cupado com o bom selvagem ou com os direitos do homem. É este vazio

250
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

que nos deve preocupar, procurando esclarecer as razões que levaram a se-
melhante situação.
Esclavagismo histórico e racismo contemporâneo: subscreveria uma
leitura do racismo actual como um sucedâneo moderno do espírito escla-
vagista?
Penso que se trata da pergunta necessária e penso também que não se pode
pôr o problema dessa maneira, se aceitarmos que o etnocentrismo que está na
base da construção do edifício ideológico da escravatura corresponde a uma
fase primária da recusa e da exclusão do Outro. Quando um país como o nos-
so, associado de resto a Castela, enuncia o princípio do “sangue puro”, subli-
nhando que esta pureza exigia a ausência de qualquer gota de sangue mouro,
negro ou judeu, estamos face a condições de inferiorização cultural e racial.
Ainda não conseguimos superar essa situação, como de resto se pode verificar
hoje, quando a sociedade branca se deixa invadir pelo síndroma da rejeição
contra tudo o que não é branco, a cor negra traduzindo linguisticamente todos
os aspectos negativos dos nossos quotidianos.
Daí que a articulação entre o esclavagismo e o racismo constitua um elo
fundador que não só se não dissolveu com o tempo, mas antes se reforçou,
sobretudo nos séculos XIX e XX, no quadro das relações que se estabele-
ceram entre europeus e africanos. Se no século XIX os africanos mantêm o
controle e a gestão dos seus espaços, é este também o momento em que os
contactos afro-europeus se multiplicam, pondo em evidência a disjunção
dos dois sistemas culturais e reforçando a inferiorização dos sistemas e dos
homens africanos. O sistema colonial, que domina a primeira metade do
nosso século (até 1974, no caso português), consolida as ideologias racistas,
legitima científica e historicamente a inferiorização dos africanos e proce-
de à hierarquização somática das populações das colónias. Finalmente, não
podemos deixar de lembrar que a guerra colonial, que inventou os “turras”,
quer dizer os “terroristas”, pretendeu graças a esta forma injuriosa de desig-
nar os nacionalistas africanos, negar-lhes toda e qualquer forma de dignida-
de pessoal e política.

251
Isabel Castro Henriques

A escravatura no processo da expansão e colonização: voltando um


pouco à história, quais considera terem sido, numa hierarquia de impor-
tância, os factores que estruturaram o discurso e a prática da escravatura
na expansão portuguesa?
Os portugueses tal como os outros europeus organizam os discursos e as
práticas da escravatura de acordo com os seus interesses e projectos que va-
riam ao longo desse período que se estende do século XV ao século XX. Pelo
que qualquer hierarquização dos factores estruturantes só pode ser definida
em cada momento histórico.
Podemos afirmar que, entre os fins do século XV e os anos finais do sé-
culo XVI, os portugueses são movidos por três preocupações fundamen-
tais, que é difícil hierarquizar de forma rígida, pois se interpenetram: há
naturalmente os interesses económico-comerciais, aos quais se associam as
preocupações religiosas, sobretudo num momento ainda caracterizado pela
necessidade de expulsar o que restava do Islão, que deixara monumentos e
crentes no próprio território nacional. Não podemos esquecer, uma terceira
preocupação portuguesa, que nem sempre tem sido tratada com a atenção
que merece: o conhecimento. Os europeus, os portugueses em particular,
abordam a expansão com as ideias do antigamente, as dos gregos, de Ptolo-
meu e de Aristóteles, que, no dia a dia da expansão, não coincidiam com a
nova realidade – espaços, homens, plantas, animais - que os homens viam,
podiam inventariar e descrever de maneira precisa. Nem, de resto, o conhe-
cimento económico podia ser separado da globalidade das operações do
conhecimento.
A partir das experiências da monocultura da cana e da produção do açúcar
da Madeira e sobretudo de São Tomé, os portugueses dependem da mão de
obra escrava, que só lhes pode ser fornecida pelas sociedades da costa ocidental
africana. Os escravos tornam-se indispensáveis à concretização dos projectos
portugueses e à rendibilização dos capitais investidos na colonização dos es-
paços insulares. São os europeus e os portugueses em particular, que ao intro-
duzir no Novo Mundo a cana de açúcar alteram os parâmetros culturais, que

252
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

os levam a organizar o comércio negreiro e a transferir, em condições de uma


violência extrema, milhões de africanos, desumanizados, para as Américas.

A captura de escravos era ao fim ao cabo realizada com a conivência dos


chefes africanos, e das redes comerciais já estabelecidas, que depois foram
“reorientadas” para satisfazer a procura esclavagista portuguesa…
Sim, mas a questão da escravatura em África é complexa, e só nos últimos
trinta anos tem vindo a ser estudada com rigor. Durante várias décadas, a pro-
dução historiográfica africana - por razões diversas, ideológicas, políticas, de
ausência de conhecimento - procurava sobretudo pôr em evidência os as-
pectos negativos da dominação colonial europeia, silenciando a participação
activa dos africanos no tráfico negreiro. Hoje a situação mudou e os estudos
consagrados a esta questão têm vindo a multiplicar-se.
É certo que não podia ter havido tráfico negreiro tão intenso e conti-
nuado sem a adesão activa dos chefes africanos às operações comerciais
dos europeus. Mas convém sublinhar a existência de dois equívocos nes-
tas relações. O primeiro reside na ausência de informações dos africanos
a respeito dos europeus e da Europa: foi por essa razão que os brancos
foram considerados simples espíritos destinados a uma curta passagem na
terra antes de regressar ao mundo dos não-vivos de onde tinham vindo.
Temos muitos testemunhos sobre essa questão, e sabemos que os índios
americanos também se deixaram arrastar por esta confusão. Em segun-
do lugar, os tratamentos reservados aos escravos pelos africanos não cor-
respondiam à rendibilidade dos escravos, de cada escravo, exigida pelos
europeus. Nem sequer encontramos um termo único, nas muitas línguas
africanas, para designar o escravo: estes escravos pertencentes a africanos
fazem parte do grupo de dependentes que garantem a riqueza, o poder e o
prestígio daquele que os possui.
As duas escravaturas – a europeia e a africana – não coincidem, mas os
chefes africanos deixaram-se arrastar pelas formas comerciais europeias. Na
maior parte dos casos, estas não impediam o funcionamento dos sistemas afri-

253
Isabel Castro Henriques

canos, reforçando frequentemente as estruturas de dependência que organi-


zavam as relações entre os chefes africanos e as suas populações. Mais ainda,
o facto de se registar a existência de redes comerciais internas exclusivamente
africanas, construídas segundo uma lógica de complementaridade regional,
permitiu reforçar os efeitos perversos da escravatura, fornecendo milhões de
homens aos europeus. Só esta relação íntima e contínua entre os dois sistemas
explica a eficácia do processo da escravatura.

As motivações do abolicionismo oitocentista: é verdade que o século


XIX foi o grande século do abolicionismo? Que razões terão pesado mais
na supressão do tráfico negreiro e da própria escravatura?
Penso que devemos distinguir dois patamares nesta questão, os portu-
gueses não tendo participado na elaboração das razões morais ou materiais
que levam ao abolicionismo. Este é um processo europeu que deriva de uma
‘nova ordem’ económica gerada pela Revolução industrial, sobretudo na
Grã-Bretanha, pelas independências americanas, e de algumas reflexões éti-
cas que se iniciam com a Reforma e passam pelas interrogações dos filósofos
das Luzes, como Diderot ou Jean-Jacques Rousseau. Este interroga-se a res-
peito da razão que legitima as desigualdades, ao passo que Diderot, sobretu-
do na colaboração que deu ao Abade Raynal, sublinha a violência da escra-
vatura que nega a própria substância do homem. Nas reflexões consagradas
aos Hotentotes do sul do continente africano, Diderot põe em evidência
a ausência de qualquer legitimidade dos europeus para reduzir os Outros
à escravatura, que por sua vez os condenava frequentemente à morte. Em-
bora este debate dos finais do século XVIII não decorra sem sobressaltos e
inconsequências. Não se verifica ainda hoje uma forte perturbação francesa
no que se refere à maneira como Montesquieu, no Esprit des Lois, aborda o
tráfico negreiro?

Mas o abolicionismo, sendo um fruto de toda essa “nova ordem”, bem


como de uma nova mentalidade humanista e liberal, esteve também ligado

254
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

à própria forma como se passou a ver a presença europeia em África, os


seus objectivos e estratégias…
A África continuou a ser, para os europeus, um continente obscuro, embora
a multiplicação das explorações tenha permitido alargar progressivamente o co-
nhecimento relativo aos homens e às naturezas africanas. O africano que tinha
sido escravizado, “coisificado”, é reconhecido, “re-humanizado”, lamenta-se as
condições penosas a que está sujeito no seu próprio espaço, mas não se regista
uma profunda revisão do seu estatuto negativo, mau-grado o esforço de alguns
filantropos. A África oitocentista passa do estatuto de reservatório de escravos
ao de espaço privilegiado para o desenvolvimento do comércio legítimo: as
mercadorias agora solicitadas à África – óleos, cera, borracha, marfim, madeiras,
plantas tintoriais como a urzela, café, tabaco, algodão a que devemos acrescentar
a introdução de sementes e de técnicas de produção – transformam os africanos
em produtores indispensáveis e em parceiros comerciais dos europeus. Se o co-
mércio negreiro clandestino continua ao longo de todo o século XIX, enquan-
to os países americanos não abolem definitivamente a escravatura (no Brasil,
tal abolição só se verifica em 1888), o comércio legítimo, que introduz valores
e práticas inovadoras (tais como o crédito, a concorrência, a ideia de lucro), é
utilizado pelos africanos para reorganizar algumas estruturas de produção e de
comercialização e para proceder a uma modernização dos seus sistemas sociais.
Tais alterações não excluem a manutenção da escravatura interna africana e a
continuação de uma produção de escravos para o comércio clandestino.

Será que o papel muito activo que a Inglaterra veio a assumir como
campeã internacional do abolicionismo esconde alguma hipocrisia anglo-
-saxónica, destinada a “limpar” um passado britânico de activo tráfico ne-
greiro? Não haverá ainda hoje, em alguma historiografia, uma imagem dos
países ibéricos como esclavagistas “piores” dos que os do Norte da Europa
ou do que os Estados Unidos da América?
É evidente que as situações e os projectos económicos contam numa ope-
ração destinada a modificar de maneira substancial o estatuto de milhões de

255
Isabel Castro Henriques

pessoas. Mas não podemos esquecer que o processo industrial já mostrara a


sua capacidade de obrigar fosse quem fosse a respeitar as regras do trabalho
nas fábricas. Creio que os quakers ingleses, que lideram os movimentos e as
organizações anti-esclavagistas, se apoiam tanto na teologia como na evidên-
cia técnica. Quanto à segunda parte da sua questão, relativa à imagem dos
“melhores” e dos “piores” esclavagistas, a favor do Norte da Europa, em des-
favor dos países ibéricos, coloca–nos no centro de um debate mais amplo: o
bom e o mau sistema esclavagista, o bom e o mau sistema colonial. São imagens
deformadoras: qualquer destes sistemas se caracteriza por uma extrema vio-
lência, e a violência é sempre a violência, seja ela praticada pelos espanhóis,
pelos portugueses, pelos ingleses, por quaisquer outros povos. Ainda hoje pai-
ra entre nós a ideia de que o colonialismo português foi melhor do que o dos
outros europeus….

Como se o colonialismo português se tivesse regido por uma lógica


mais benigna de “aculturação”, por contraposição, por exemplo, à “limpeza
étnica” levada a cabo pelos espanhóis na América…
A sua pergunta sublinha a que ponto continuamos a repelir uma das mais
incómodas evidências do nosso sistema colonial: se os espanhóis levaram a
cabo a tal “limpeza étnica”, onde estão os índios do Brasil? E não sejamos tão
duros com os castelhanos: não há índios no México, na Guatemala, na Bolí-
via, no Peru, que falam cada vez mais castelhano ou “porteño”? Não, a nossa
prática colonial foi tão cruel como a dos outros colonialistas europeus, e
talvez possamos afirmar, um pouco na linha de Marc Ferro, que o sistema
colonial mantem no espaço e no tempo as suas características fundamentais,
seja qual fôr o grupo ou o continente implicados: é o caso do desmante-
lamento das culturas do colonizado impedindo, no mesmo movimento, o
acesso à cultura do colonizador. Tal operação foi uma constante do colonia-
lismo português, que impossibilitou o acesso dos colonizados a formações
superiores: a ausência de quadros africanos é hoje bem visível nos países de
língua oficial portuguesa.

256
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

A relação colonial com o africano durante o Estado Novo: reportando-


-nos ao Estado Novo, será o estatuto do indígena em África sinal de uma
nova modalidade de entendimento e relação entre o colonizador branco e
o colonizado negro?
Parece-me indispensável sublinhar a existência de equívocos, exacerbados
pela “oposição” que procurou devolver a dignidade aos gestores da 1ª Repúbli-
ca, continuamente desacreditados pela má língua do Estado Novo. Mas não no
plano das regras coloniais. Se efectivamente o Estado Novo, a partir do Acto
Colonial de 1930, passa a dispôr de um instrumento legal que define o estatuto
do indígena no quadro colonial, a verdade é que as leis, regras e normas, todo
o sistema destinado a enquadrar e a explorar o africano, é o culminar de um
processo de actos, reformas e leis que vêm dos finais do século XIX. A grande
figura que consegue desmantelar a obra legislativa de Sá da Bandeira, procuran-
do desenhar um quadro legal adaptado aos novos interesses coloniais é António
Ennes, hoje, estátua de bronze conservada no Museu da Fortaleza de Maputo.
O regime salazarista, incluindo os gestores do Ministério das Colónias, Oliveira
Salazar, Armindo Monteiro, Marcelo Caetano, Adriano Moreira, Silva Cunha,
limitaram-se a manter vivas e operatórias as regras anteriores, revistas sobretudo
pelos técnicos da administração colonial que estiveram em Moçambique para
liquidar o poder de Gaza, isto é, para “pacificar” os chefes africanos que não po-
diam deixar de resistir ao invasor, decidido a proceder à ocupação dos seus ter-
ritórios. Não esqueçamos que os portugueses estiveram quase constantemente
em guerra durante o século XX: não se registou o estado de sítio na Guiné em
1936? Não se verificaram campanhas destrutivas contra as populações moçam-
bicanas e angolanas (como os Mucubais) já nos anos 40? Ou seja, a história da
colonização portuguesa não será também uma história de guerras?
Nem de resto podia ser de outra forma, na medida em que o pensamento
português manteve sempre a mesma leitura redutora da África e dos africa-
nos. Não foi a “Costa de África” um lugar de degredados, de deportados, de
homens socialmente desqualificados? Só num curto período que vai dos finais
da década de 40 até 1961, Portugal conseguiu repensar a África como uma

257
Isabel Castro Henriques

possível futura produtora de árvores das patacas. Mas estas secaram: os ventos
eram os da independência ….e as guerras recomeçaram face à miopia, ao ar-
caísmo e à rigidez do pensamento e dos projectos portugueses.

Os custos históricos da escravatura e do tráfico negreiro: há uma velha


máxima que diz que os escravos “fizeram” a América, impedindo que se
“fizesse” a África. Qual a responsabilidade que deve ser endossada à es-
cravatura e ao tráfico negreiro na actual situação africana, e em geral nos
desequilíbrios demográficos ou económicos do mundo de hoje?
Parece-me uma boa maneira de dizer as coisas, embora se corra o risco de
menosprezar a contribuição dos europeus. Creio que é de reter uma fórmu-
la de Roger Bastide, que me parece a mais inventiva: ter-se-ia registado uma
mudança na cor do continente americano: a América vermelha (a dos índios)
tornou-se a América negra (a dos africanos). Em África, este fenómeno, cujas
consequências são ainda hoje mal conhecidas, impôs “de fora para dentro”
alterações irreversíveis nos processos históricos africanos: o continente afri-
cano não só perdeu milhões de homens, mas viu modificadas as suas próprias
estruturas sociais. Não dispomos de um inventário dessa hemorragia humana,
de maneira a podermos identificar os territórios mais atingidos. Mas alguns
geógrafos associados aos demógrafos pensam que certas situações de deser-
tificação do continente, de fome e de miséria, são o resultado do despovoa-
mento provocado pelo tráfico negreiro. Trata-se de um campo de investigação
que espero se reforce nos anos a vir, bem como as pesquisas conducentes a
explicar a relação entre o fenómeno da escravatura e as culturas da violência
que se multiplicam na África de hoje.

Estudo histórico e activismo cívico: a nível da cooperação internacio-


nal, quais os mecanismos, organizações e actividades, que poderão ajudar
a denunciar e combater esse estado de coisas?
O conhecimento historiográfico, como meio de sensibilização e de luta no
mundo actual, constitui uma das preocupações da UNESCO. “Desenvolvi-

258
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

mento, direitos do homem, pluralismo cultural: estes três grandes desafios do


mundo actual estão marcados por um ‘buraco negro’ na história da Humani-
dade: o comércio negreiro. Símbolo de todas as violências, foi durante muito
tempo silenciado ou tratado de forma furtiva nos programas de história como
um episódio entre tantos outros que marcaram as relações entre a Europa e a
África. Foi precisamente para um comércio negreiro visível que a Conferência
Geral da UNESCO (1992) decidiu lançar um projecto internacional sobre
A Rota do Escravo.” Estas foram as palavras do Director-geral da UNESCO,
Federico Mayor, que criaram este projecto. A conferência de lançamento teve
lugar em 1994, no Benim, bem como a constituição de um Comité Científico
Internacional2: o objectivo central deste projecto e do seu Comité foi criar o
quadro de uma reflexão internacional pluridisciplinar destinada a estudar as
causas profundas, as modalidades e as consequências da escravatura e do tráfi-
co negreiro. O estudo deste fenómeno único na história da Humanidade, pela
sua duração, pela sua amplitude, pela especificidade das suas vítimas e pela im-
portância que desempenhou na formação da ideologia do racismo anti-negro,
é não só indispensável para o conhecimento da construção e da evolução de
um mundo moderno pluricultural, constituindo também um elemento funda-
mental para a consolidação de uma cultura da paz.

Foi nessa lógica que se realizou, em Lisboa, em Dezembro de 1998, um


Seminário Internacional, intitulado «Os fundamentos ideológicos e jurídi-
cos da escravatura e do tráfico negreiro»?
Sim. A 10 de Dezembro de 1988 comemorava-se o cinquentenário da De-
claração Universal dos Direitos do Homem, cujo documento fundador não só
afirma que “as guerras nascem no espírito dos homens, é no espírito dos ho-
mens que devem ser criadas as defesas da paz”, como condena explicitamente
todas as formas de escravatura. A ignorância, a ocultação científíca, o silen-
ciamento das verdades históricas constituem poderosos obstáculos à paz e ao

2 Isabel Castro Henriques foi membro deste Comité Científico Internacional entre 1996 e 2004 e Presidente do Comité Português
do mesmo projecto UNESCO, desde a sua criação em 1996 até à sua extinção em 2016.

259
Isabel Castro Henriques

diálogo intercultural. A coincidência das datas foi evidentemente voluntária:


este seminário, que constitui a primeira manifestação científica internacional
consagrada à escravatura realizada em Portugal, quis reunir investigadores es-
pecializados na história da escravatura e do comércio negreiro com o objecti-
vo de dinamizar um debate e um confronto de ideias sobre os argumentos filo-
sóficos, religiosos e jurídicos que legitimavam a escravatura, sobre as alianças
que se estabeleceram, as resistências que se organizaram, com a preocupação
de percorrer o “itinerário espiritual” que, primeiro nas mentalidades e fatal-
mente depois no direito, determinou o traçado da Rota do Escravo.
Tal como este seminário, muitas outras acções de natureza diversa - cien-
tífica, pedagógica, cultural -, têm vindo a multiplicar-se em África, na Europa
e nas Américas, desde a criação do Projecto A Rota do Escravo. Visando pú-
blicos diferentes, adaptados aos diversos contextos nacionais ou regionais, as
actividades organizam-se com o objectivo central de repôr a verdade histórica
e desconstruir as várias formas de exclusão e de racismo que o fenómeno do
comércio negreiro gerou e alimentou.

Que tipo de apoios institucionais, ou oficiais, têm tido essas acções?


Acha que a ordem política e cultural europeia actual já está sensibilizada
para isso, ou ainda haverá um longo caminho de educação das mentalida-
des a percorrer?
Creio que nos cinco anos que mediaram entre 1994 e 1999 se conseguiu
sensibilizar a opinião pública dos 30 países que têm representantes no Co-
mité Científico Internacional, através sobretudo das intervenções de natureza
cultural e pedagógica. Não posso deixar de referir que paralelamente a este
Projecto, a UNESCO através do seu Sistema das Escolas Associadas, apoia
projectos que privilegiam estas temáticas: o Projecto educativo sobre a Rota
Triangular do Tráfico Negreiro transatlântico e o Projecto Briser le Silence. Des-
de a última reunião (a IV) do Comité Científico Internacional, que teve lugar
em Lisboa em Dezembro de 1998, o Comité estabeleceu formas de articula-
ção entre os vários projectos. As modalidades dessa articulação são definidas

260
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

pelos Comités nacionais. É nesse sentido que o Comité Português da Rota


do Escravo e a secção portuguesa do Sistema das Escolas Associadas estão já
a trabalhar: trata-se de introduzir, nos manuais de história, uma perspectiva
mais rigorosa do problema da escravatura e do tráfico negreiro, procurando
não silenciar mas sobretudo dar a conhecer a verdade histórica. Saliente-se a
adesão de algmas instituições escolares portuguesas no sentido de participar
nesta revisão dos programas.
O Comité Português está a ultimar o seu programa de acção para os próxi-
mos dois anos, apesar de não dispôr de quaisquer meios financeiros para a sua
concretização. Neste momento, o Comité dá apoio científico à realização de
duas produções cinematográficas da responsabilidade da RTP2, no âmbito de
um protocolo que permitirá certamente desenvolver este tipo de actividade
lúdico-cultural.
Para terminar, creio que neste fim de século, a humanidade começa a enca-
rar a dureza dos problemas históricos. É evidente que as enormes assimetrias
económicas e as diferenças histórico-culturais pesam nas opções e nas acções
a privilegiar por cada Comité nacional, no quadro das temáticas e dos objecti-
vos do Projecto A Rota do Escravo. Portugal deu já um passo em frente, integra
(e mesmo co-dirije alguns) os projectos internacionais, as ideias e as forças
para as pôr em prática existem, há vontade de acelerar o ritmo, faltam os meios
materiais e os apoios institucionais…até quando?

Lisboa, 1999.

261
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

A (falsa) passagem
do escravo a indígena

No âmbito de um seminário consagrado às Crises em Portugal nos séculos XIX


e XX, este estudo pretende analisar o que designamos como sendo uma “crise
discreta” - a ponto de passar despercebida a muitos estudiosos – que se insere no
quadro das transformações políticas que sacodem as instituições portuguesas
entre 1820 e 1910, entre o liberalismo e a proclamação da República.
A crise faz parte da mudança de paradigma servindo paradoxalmente para
anunciar a modernização da totalidade do sistema. A contradição deriva do
enunciado da mudança ampla do paradigma e dos elementos do passado que
a refreiam. O que permite explicar que a crise contenha um elemento dinâmi-
co, sem contudo conseguir eliminar as escórias do passado1. Esta “crise discre-
ta” impôs no entanto a sua marca aos projectos e às políticas nacionais na se-
gunda metade do século XIX e durante toda a primeira metade do século XX.
Referimo-nos às condições em que o peso das escolhas internacionais, aju-
dado pelo trabalho político e ético de alguns Portugueses, procedeu à lenta
transformação do escravo em indígena, operando uma mudança essencial –
mau grado repleta de contradições -, que assegurou a eliminação da escravatu-
ra, substituída pela política do indigenato. Esta só viria a terminar idealmente
em 1962, já que as suas sequelas se fizeram sentir até 19752.

1 Paul Ricoeur analisa no campo da reflexão literária e filosófica a função da crise face aos paradigmas da falsa concordância. Ver
RICOEUR, Paul, Temps et récit, Paris, Éditions do Seuil, 1984, pp. 47-49.
2 A excelência das soluções deste fim de século, explicam a sua longa duração: praticamente reconduzidas em 1914 e em 1926,
marcam ainda a legislação de 1961. Todavia, esta situação jurídica está no centro da conflitualidade entre os Africanos e os Por-
tugueses, só tendo sido resolvida pelas independências no início do último quartel do século XX.

263
Isabel Castro Henriques

Convém ter presente que o cimento principal do império português foi


fornecido pelo escravo africano, pela escravatura e pelo seu corolário, o tráfico
negreiro, que só a legislação proposta em 1850 pelo brasileiro nascido em An-
gola, Euzébio de Queiroz, conseguiu começar a eliminar da face do Atlântico.
Começamos por chamar a atenção para uma questão prévia: a maneira
como a sociedade portuguesa, que desde o século XV viveu numa situação
de intimidade com os escravos negros, encara com naturalidade esse esta-
tuto dos homens africanos. Como se o Africano, negro, fosse naturalmente
escravo. Convém sublinhar o facto de não se ter registado em Portugal um
debate teológico como aquele que marcou a sociedade castelhana com as
discussões que foram levadas a cabo em Valladolid, em 15503. Os Portugue-
ses não parecem atormentados por nenhuma dúvida profunda, contraria-
mente aos missionários castelhanos, razão pela qual só a teologia castelhana
se incomodou de facto com as condições que presidiam à fabricação dos
escravos. A tranquilidade com que os Portugueses encararam a escravatura
permitiu-lhes ultrapassar qualquer complexo moral, ajudando a consolidar
o sistema e a dificultar o seu fim.
Ao longo de muitos séculos a representação do Africano, naturalmente es-
cravo, marcou o imaginário português. Se nos inícios do século XIX o libera-
lismo abriu espaço à criação de um núcleo limitado de abolicionistas, entre
os quais domina a figura do Marquês de Sá da Bandeira, que procurou abolir
o tráfico negreiro e posteriormente a escravatura, os projectos deste grupo
seguidos de legislação não resultaram: Sá da Bandeira não se deu conta (ou
não pode dar-se conta) das condições de funcionamento dos vários braços da
sociedade portuguesa4.

3 A Controvérsia de Valladolid pôs face a face os defensores da legitimidade da escravatura do Índio porque este não teria alma no
sentido teológico cristão, opondo-se aos defensores da causa dos Índios que denunciavam vivamente esta des-humanização das
populações americanas e que tem como expressão o dominicano Bartolomé de Las Casas.
4 Os estudos sobre Sá da Bandeira, os seus projectos e as leis por ele elaboradas e promulgadas têm-se multiplicado no quadro
historiográfico português actual, revelando uma tomada de consciência tardia da sociedade portuguesa perante a violência da
escravatura. Estes estudos reflectem a existência de um mosaico contrastado de opiniões e de teorias que permitem a estruturação
do debate indispensável. Ver, entre outros, ALEXANDRE, Valentim, Os Sentidos do Império – Questão Nacional e Questão Colonial
na Crise do Antigo Regime Português, Porto, Afrontamento, 1993; MARQUES, João Pedro, O Silêncio dos Tambores, Lisboa, Afron-
tamento, 2000.

264
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

Uma parte significativa das autoridades portuguesas instaladas em África


recusou respeitar as novas regras do direito e aplicar as leis de Monarquia, e
não faltarem infractores entre aqueles que tinham como missão principal a
defesa das leis adoptadas. É evidente que as diferentes sociedades coloniais
receavam a abolição do tráfico, mas sobretudo de escravatura: a sua abolição
nas colónias africanas não podia deixar de abrir uma profunda crise de recru-
tamento e de utilização de força de trabalho.
Se, na legislação portuguesa de Sá da Bandeira, o Africano conhece teori-
camente, durante alguns anos da segunda metade do século XIX, um estatuto
de “igualdade”, os interesses dos colonos são incompatíveis com tal estatuto,
situação que os leva a alimentar assim o comércio de escravos clandestino e o
trabalho escravo. Mau grado a veemência da censura internacional, o sistema
colonial português não podia manter-se sem a contribuição do escravo. Tam-
bém a longa duração e a eficaz sedimentação da imagem do Africano como ser
naturalmente escravo dificilmente permitiam, em meados do século XIX, pen-
sar e alterar o seu estatuto, para assegurar o seu processo de re-humanização.
Os finais do século XIX são marcados por uma profunda perturbação na
sociedade portuguesa resultante também dos interesses que a Europa mani-
festa em relação à África, pondo em causa a pax portuguesa nos territórios
africanos sobretudo a sul do Equador.
Portugal procura multiplicar os sinais da sua europeização teórica durante
a Conferência de Berlim (1884-1885) de onde sai com perdas amplas, mas
mantendo o essencial da sua dominação em África. O próprio Mapa Cor-de-
-Rosa traduz a tentativa portuguesa de manter o mesmo projecto recusando a
censura que lhe fora asperamente dirigida na Conferência de Berlim e abrindo
o caminho para o Ultimatum de 1890.
A perturbação portuguesa acelera-se com duas operações. Se a primeira diz
respeito ao Ultimatum Britânico de 11 de Janeiro de 1890, a segunda resulta
da necessidade de fazer face às populações africanas que resistem à ocupação
dos seus territórios: em Moçambique, vertente mais visível do processo que
deriva do confronto indirecto com os Ingleses; em Angola, onde se mitificou

265
Isabel Castro Henriques

a célebre Coluna dos Dembos comandada por João de Almeida; e na Guiné


onde uma extrema brutalidade caracterizou as operações levadas a cabo por
Teixeira Pinto.
Neste quadro de perturbação militar e política, verificam-se todavia a per-
sistência e a continuidade dos projectos de exploração das colónias levadas a
cabo pela sociedade colonial: estes projectos assentam na obtenção de força
de trabalho a baixo preço, de maneira a permitir uma produção abundante,
barata e evidentemente lucrativa. Para responder às solicitações dos colonos,
o Estado Português deve encontrar vias astuciosas para organizar o trabalho
dos Africanos.
É neste contexto que se afirma a criação do indígena. Torna-se então indis-
pensável uma operação de re-elaboração da representação do Africano: uma
nova imagem onde os marcadores da inferiorização do negro sejam imediata-
mente visíveis e identificáveis para o mais analfabeto dos cidadãos portugueses.
A função desta revisão da imagem é evidentemente dupla: por um lado, trata-se
de por evidência o carácter congénito da selvajaria o que explica o recurso cons-
tante às explicações biológicas; por outro, a própria selvajaria da imagem serve
para justificar a imposição de uma ferocíssima disciplina do trabalho.
A legislação ocupa neste caso um lugar eminentemente simbólico, servin-
do para criar a máscara jurídica que será utilizada face aos comentários e de-
núncias dos observadores estrangeiros.
Por outras palavras, a transformação do escravo em indígena por meio da
legislação portuguesa, articula-se com a metamorfose da imagem do africano
escravo em trabalhador indígena.

A antropologia científica justifica a inferiorização do Outro

A criação do indígena assenta em três patamares distintos, sendo o primeiro,


o patamar teórico, o plano do (falso) conhecimento, que recorrendo à antropo-
logia física se interroga sobre a inteligência dos Africanos, isto é, dos Negros.

266
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

A própria investigação científica europeia, inaugurada por Buffon e duran-


te algum tempo concentrada no Museum parisiense5, procurava classificar as
raças humanas, já que alguns dos investigadores, como Boris de Saint-Vincent,
propunham nada menos de 27 raças humanas. Tal profusão de raças implica-
va a impossibilidade de organizar uma hierarquia funcional. Foi essa a tarefa
tornada possível pela criação do famoso ângulo facial por Peter Camper, re-
forçada pelos instrumentos de medida inventados por Daubenton e realizados
pelos artífices de Masson & Cie, em Paris6.
Os caracteres físicos das diferentes humanidades revelavam-se pouco ho-
mogéneos: um viajante francês teria visto um homem com cauda algures no
Oriente, dos lados de Meca, não parecendo certo a outros anatomistas que o
famoso avental hotentote, não fosse um dos elos que faltavam para confirmar
as teses revolucionárias do evolucionismo de Darwin7. O parentesco com os
animais é reforçado por alguns exemplares do exótico africano, como se verifi-
cou no caso da africana do sul Saartje Baartman nascida em 1789 e rebatizada
Sarah Batman. Exibida em Inglaterra em 1814, onde também fora baptizada
pelo bispo anglicano, é mostrada nua em Paris em Fevereiro de 1815, no Jar-
din des Plantes, junto a uma jaula de feras carnívoras8.

Multiplica-se o inventário das diferenças, cria-se o vocabulário adequado,


que homens como Oliveira Martins importam à medida que as Faculdades
de Medicina e o Instituto de Antropologia de Paris propõem uma reorgani-
zação do vocabulário, dos instrumentos e das maneiras de classificar. Tudo
concorre para aceitar a humanidade antropológica, sem contudo renunciar à

5 Muséum National d’Histoire Naturelle ( Jardin des Plantes), Paris


6 Entre os vários autores que nos últimos 30 anos têm consagrado a sua investigação e a sua reflexão a esta problemática, ver, por
exemplo, MERCIER, Paul, Histoire de l’Anthropologie, Paris, PUF, 1966; DUCHET, Michèle, Anthropologie et Histoire au siècle des
Lumières, Paris, Maspero, 1971, e da mesma autora, Le partage des savoirs. Discours historique, discours ethnologique, Paris, Éditions
La Découverte, 1985.
7 Ver, por exemplo, La sculpture ethnographique de la Vénus hottentote à la Tehura de Gauguin, Paris, Éditions de la Reúnion des
musées nationaux, 1994.
8 Esgotada a curiosidade inglesa, Saartaje é cedida a um domador de animais parisiense que a expôs, a embebedou e a prostituiu.
Morreu 18 meses depois de chegar a Paris. O seu proprietário francês vendeu o cadáver ao Museum onde Cuvier fez a sua autópsia
em 1816. Um molde feito a partir do seu corpo permaneceu exposto no Museu do Homem em Paris até 1975. Hoje, o seu esque-
leto e os seus orgâos ainda guardados no Museu do Homem, são reivindicados pela África do Sul. Ver “La «Vénus hottentote» de
retour au pays?”, (jornal) Libération, 17 de Janeiro de 2002. Hoje, em 2019, Sarah Batman repousa na África do Sul.

267
Isabel Castro Henriques

ideia principal: estes quase homens só podem encontrar justificação para a


sua existência se forem obrigados a trabalhar: ciência, religião e política, estão
enfim de acordo.
Compreende-se a profunda exaltação de Joaquim Pedro de Oliveira Mar-
tins, já que o ângulo facial permite demonstrar de maneira satisfatória a analo-
gia, que não pode dissimular as diferenças existentes. Se a cabeça do Apolo do
Belvedere é, a partir do sistema classificatório de Peter Camper, o modelo ab-
soluto da beleza masculina9, esta exaltação da beleza grega – em que participa
Hegel – é reforçada pelos ângulos faciais dos outros homens, que ao afastar-se
do Apolo só podem aproximar-se do orango-tango, de que tantos exemplares
chegaram à Holanda conservados em “espírito de vinho”, quer dizer em aguar-
dente, para ser fornecidos aos anatomistas.
Ou seja, o distante e o longínquo não forneciam apenas o “exótico”, pois re-
forçavam a hegemonia dos brancos, cujo ângulo facial dependia das medidas
já celebradas pelos gregos. Em todos os outros lugares irrompiam formas qua-
se humanas, denunciadas pelos ângulos faciais. Tais ângulos remetiam estes
homens para uma fronteira da animalidade, que só podia ser recuperada pela
via do trabalho. Se a investigação antropológica europeia estava de acordo
quanto a estes pontos científicos, restava organizar a legislação e as condições
capazes de permitir utilizar os milhões de braços disponíveis.

A invenção da craniometria, ciência onde se manifestou o talento do mé-


dico Paul Broca, permite fazer do crânio um dos elementos físicos mais ap-
tos a permitir o conhecimento do homem, ao mesmo tempo que autorizava
a organização de grelhas classificatórias. Ser ou não ser prognata, tal foi uma
das questões mais candentes desse período, tal como se podia ser mesacéfalo

9 O próprio modelo da beleza não é fornecido pelos homens mas sim pela representação esculpida, que só pode resultar de uma
idealização. Quando Peter Camper optou pela organização de uma grelha classificatória, escolheu como modelo masculino da
beleza, a cabeça do Apolo do Belvedere, que o século XVI fornecera aos Italianos e mais particularmente ao Papado. A perfeição
física do Apolo podia ler-se na maneira como a estátua foi colocada, contra uma parede, para que não fosse possível ver-lhe as
costas: Apolo é por isso uma figura que dispunha apenas da face. Mas se os europeus podiam parecer-se com o Apolo, já os
melanesianos eram o oposto dessa construção física, pelo que só podiam ser os homens mais feios do mundo, destinados a ser
capturados. Tão negros como os melros, o que permitia que nas ilhas do Pacífico houvesse campanhas de “caça aos melros”, que
eram apenas homens que não possuíam nem a cor nem o rosto do Apolo. Ver HASKELL, F. e PENNY, N, Pour l’amour de l’Anti-
que. La statuaire gréco-romaine et le goût européen, Paris, Hachette, 1988.

268
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

ou braquicéfalo. É verdade contudo que a craniometria designa uma verdade


incompleta, visto que Paul Broca, como de resto já fizera Peter Camper, se
ocupa sobretudo do cérebro: a craniometria espera que o homem possa ser
melhor conhecido transferindo a análise do exterior para o interior.
Em Portugal, verificou-se em finais do século XIX a criação de um labo-
ratório na Universidade de Coimbra destinado a estudar a antropologia físi-
ca utilizando os crânios como material preferencial, de maneira a organizar
cientificamente a grelha dos diferentes habitantes do território português,
entendido com as suas colónias10. Estão ainda em Coimbra, por exemplo, os
crânios importados de Timor, que provam, de maneira indubitável as curio-
sas condições do ângulo facial, a depender da inteligência e da organização
dos brancos.
Na linha destes avanços do conhecimento científico, Joaquim Pedro
de Oliveira Martins, membro do Instituto de Antropologia de Paris es-
creve em 188011: “Sempre o preto produziu em todos esta impressão: é
uma criança adulta. A precocidade, a mobilidade, a agudeza próprias das
crianças não lhe faltam: mas essas qualidades infantis não se transformam
em faculdades intelectuais superiores. Não haverá porém motivos para su-
por que esse facto do limite da capacidade intelectual das raças negras,
provado em tantos e tantos momentos e lugares, tenha uma causa íntima e
constitucional? Há decerto e abundam os documentos que nos mostram
no negro um tipo antropológicamente inferior, não raro próximo do an-
tropóide, e bem pouco digno do nome de homem. A transição de um para
o outro manifesta-se como se sabe em diversos caracteres: o aumento da
capacidade de cavidade cerebral, a diminuição inversamente relativa do
crânio e da face, a abertura do ângulo facial que daí deriva e a situação do

10 Sobre esta questão ver PEREIRA, Ana Leonor, Darwin em Portugal (1865-1914), Lisboa, Livraria Almedina, 2001. Ver também:
MACHADO, Bernardino, A Universidade de Coimbra, Lisboa, Edição do Autor, 1908; Aula de Antropologia da Universidade de
Coimbra – Trabalhos de alunos, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1902; Cem anos de antropologia em Coimbra 1885-1985,
Coimbra, Museu e Laboratório Antropológico, 1985.
11 Da vasta obra de Oliveira Martins, ver em particular, O Brasil e as Colónias Portuguesas, 1880; Elementos de antropologia: História
Natural do Homem, 1881; As raças humanas e a civilização primitiva, 1881. São muitos os estudos consagrados a este pensador
português: ver por exemplo, MEDINA, João, As Conferências do Casino e o socialismo em Portugal, Lisboa, Publ. D. Quixote, 1984,
e PEREIRA, Ana L., o.c.

269
Isabel Castro Henriques

orifício occipital. Em todos estes sinais os negros se encontram colocados


entre o homem e o antropóide.” E acrescenta: “Não bastarão acaso estas
provas para demonstrar a quimera da civilização dos selvagens? E se não
há relações entre a anatomia do crânio e a capacidade intelectual e moral,
porque há-de parar a filantropia do negro? Porque não ensinar-se a Bíblia
ao gorila ou ao orango, que nem por não terem fala, deixam de ter ouvidos
e hão-de entender quase tanto como entende o preto, a metafísica de en-
carnação do Verbo e o dogma da Trindade? (...) A ideia de uma educação
dos negros é portanto absurda ...”12.
Durante todo o século XX estas leituras forneceram ao racismo europeu
os argumentos científicos que lhe permitiam recusar qualquer acusação ten-
dente a classificar as suas práticas: na verdade os homens dependiam todos
das suas condições físicas e essa estrutura tinha tanto a ver com a história da
espécie, como devia ser ligada à historia familiar. Quem sai aos seus não de-
genera, diz uma frase tornada proverbial, mas que traça um sulco profundo
na organização dos homens. Os Africanos não são parecidos com os nossos,
logo degeneram, terá concluído Oliveira Martins, que não repele o trabalho,
retido por António Ennes como a grande mola capaz de permitir mobilizar os
africanos pondo-os ao serviço dos bons brancos.

O heroísmo europeu fabrica a bestialidade africana (e vice-versa)

O segundo patamar em que assenta a criação do indígena é o do afronta-


mento militar resultante das operações de ocupação efectiva dos territórios
africanos pelos Portugueses: primeiro, no sul de Moçambique, as operações
destinadas a humilhar os Nguni e sobretudo o seu chefe político, Gungunha-
na; já nos princípios do século XX, em Angola, onde aparece a famosa “coluna
dos Dembos” comandada por João de Almeida.

12 Oliveira Martins, O Brasil..., o.c., p.263.

270
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

Estas operações decorrem no quadro teórico da repressão armada definido


por António Ennes, Alto Comissário Régio em Moçambique. A violência dos
conflitos moçambicanos salienta a irracionalidade dos Africanos representa-
dos pelo chefe Gguni Gungunhana, pouco depois capturado por Mouzinho
de Albuquerque
Quando se dão os primeiros confrontos armados na região de Lou-
renço Marques, em 1894, verifica-se imediatamente uma denúncia an-
tropológica e estética, que salienta os caracteres específicos do corpo de
Gungunhana, cujo volume físico parece intimidar os portugueses, que o
transformam rapidamente em monstro. Cria-se por isso um paralelismo
entre a bestialidade física e a bestialidade do comportamento político. Po-
demos afirmar que as campanhas do sul de Moçambique constituíram um
agente privilegiado, devido à figura do próprio Gungunhana que nos apa-
rece quase como um duplicado masculino da famosa hotentote que tanto
espantou Paris, em 1815.
Podemos dizer que a erupção de Gungunhana no horizonte colonial
português permite uma mudança de paradigma. Se o próprio volume do
chefe africano impressiona, dando azo a compará-lo a um gigante, que
não podia deixar de corresponder ao ogre tradicional, necessariamente
antropófago, o facto de ele dispor de mais de trezentas mulheres põe em
evidência um disfuncionamento da sociedade, que não só repele a mono-
gamia exigida pelos costumes cristãos ocidentais, mas exige um consumo
de mulheres que supera evidentemente a norma consentida aos machos
portugueses. Estas trezentas mulheres supõem uma força genésica sem
comparação com as proezas portuguesas, reforçando por isso mesmo a
sua monstruosidade. Gungunhana consegue até derrotar no seu campo
específico o famoso Barba Azul, que tanto terror semeou nos serões eu-
ropeus.
Durante várias décadas, a figura de Gungunhana – representado em di-
ferentes suportes, da cerâmica à banda desenhada – constitui a presença do
vencido que serve para exaltar a figura e as proezas do vencedor – herói por-

271
Isabel Castro Henriques

tuguês. A monstruosidade do negro flecte perante a inevitabilidade da norma


do branco13.
Mas regista-se também, nesta situação eminentemente polisémica, o facto
de o Gungunhana aparecer antes como uma metonímia dos ingleses, que lhe
forneceram dinheiro e sobretudo armas modernas, muito mais eficazes do que
aquelas de que dispunha a maioria dos soldados portugueses. Os portugueses
conhecem as relações apertadas existentes entre os africanos e os ingleses, o
que lhes permite considerar que derrotar Gungunhana corresponde à derrota
dos próprios ingleses. Se nos combates na África ocidental não se regista a
mesma mobilização de recursos, tal se deve à necessidade de impedir que os
ingleses utilizem Gungunhana e a força dos Vátuas para reduzir a autoridade
dos portugueses.
Só podemos compreender a profunda exaltação nacional face à derrota
do Gungunhana se quisermos levar em linha de conta a convergência des-
tas duas operações onde o simbolismo exige soluções concretas: derrotar
o monstro é a prova manifesta da capacidade dos militares portugueses,
auxiliados pelos colonos que servem frequentemente de guias, ao mesmo
tempo que permite eliminar o aliado mais perigoso e mais eficaz dos bri-
tânicos. O sr. Cecil Rhodes e os seus projectos de uma África anglófona
indo do Cairo ao Cabo, terão ainda de contar com os portugueses, que
se não deixam intimidar pela mobilização dos africanos, que por sua vez
se apoiam na feitiçaria para derrotar os portugueses14. A tarefa revela-se
impossível e o desterro de Gungunhana, de parte das suas mulheres, de
alguns filhos e dos seus conselheiros, assinala o momento em que a Co-
lónia de Moçambique pode idealmente começar a existir como território
inteiramente português.

13 Na sua actividade de Ceramista nas Caldas da Rainha, Rafael Bordalo Pinheiro multiplicou as canecas representando o chefe
Nguni Gungunhana, assim transformado em objecto doméstico para reforçar o prazer do vinho. Ver exemplares seja no Museu
Bordalo Pinheiro, em Lisboa, seja nas Caldas da Rainha. A banda desenhada entra no campo das produções dos anos 1930,
inventariando a “selvajaria” e “antropofagia congénita” dos Africanos. Ver, por exemplo, “Mousinho de Albuquerque e o Régulo
Gungunhana”, no Diabrete, n.º 121, de 24 de Abril de 1943.
14 A feitiçaria designa aqui um sistema religioso africano que se estrutura fora das regras teológicas dos Ocidentais e que é gerido por
especialistas identificados por António Ennes, no caso moçambicano. Ver ENNES, António, A Guerra de África em 1895, Lisboa,
Guimarães, 1898, pp. 432-433.

272
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

A monstruosidade de Gungunhana destina-se por sua vez também a sa-


lientar a força portuguesa, que possui um chefe capaz de fazer face a seme-
lhante fenómeno feratológico, derrotando-o, humilhando-o e prendendo-o.
Não o mata por ser ainda necessário utilizá-lo para o mostrar, como se fosse
uma fera, à população portuguesa, que deve ver a besta fera directamente, sem
as deformações da palavra ou da imagem15. Mouzinho de Albuquerque entra
na galeria dos grandes heróis portugueses por ter ousado avançar debaixo de
chuva e quase só, até Chaimite para prender o chefe ogre. O momento simbó-
lico é aquele em que o chefe português ordena ao Gungunhana que se sente
no chão, o que este não pode deixar de recusar. Esta recusa deve entender-
-se no quadro das práticas de submissão dos Africanos, visto que aquele que
apresenta a um chefe africano, como é o caso de Gungunhana, deve rojar-se
no chão. Mouzinho de Albuquerque quer humilhá-lo perante os súbditos que
contemplam a cena. Será o próprio Mouzinho quem o empurra para o obri-
gar a sentar-se. Podemos dar-nos assim conta do terceiro efeito da prisão de
Gungunhana, que permite a emergência e a plena afirmação do herói nacional
português.

O trabalho como ideologia do enselvajamento

Finalmente, o terceiro plano em que se organiza a representação do Africa-


no e constitui o ponto em que a crise atinge o seu ácume, é o da criação de re-
gras de trabalho particulares, destinadas às populações das colónias, que fixam
a figura negativa do indígena. António Ennes encabeçou o grupo que redigiu
o relatório consagrado a Moçambique: este estudo forneceu as informações
indispensáveis à legislação do trabalho e do imposto de 1891, graças à qual

15 Muito curiosamente a investigação portuguesa não se tem preocupado com as condições em que viveu em Portugal o chefe
nguni. Tal situação explica a ausência de estudos sobre a apresentação de Gungunhana – trazido dos Açores a Lisboa – no cortejo
organizado, em Março de 1897, em Lisboa, para exaltar o herói Mouzinho de Albuquerque e assinalar assim a derrota “defini-
tiva” dos Africanos. As parcas imagens desse evento não se encontram, óbviamente, nem coleccionadas, nem arquivadas, nem
estudadas. Ver os raros trabalhos que referem esse cortejo: WHEELER, Douglas, “Gungunyane the negotiator: a study in African
diplomacy”, Journal of africane History, 9, 1968, pp. 583-602; e BRETES, Maria da Graça, “Arqueologia de um mito. A derrota de
Gungunhana e a sua chegada a Lisboa”, Penélope, n.º 2, Fevereiro 1989, pp. 75-95.

273
Isabel Castro Henriques

foi possível encontrar uma plataforma institucional que permitiu a exploração


dos homens e dos territórios africanos, assim como o enriquecimento dos co-
lonos16.
Estava encontrada a via astuciosa e eficaz que permitia a exploração dos
africanos: os absolutamente não civilizados são transformados em indígenas.
Se literalmente o termo designa “os nascidos no país”, adquire agora uma fun-
cionalidade pejorativa que desqualifica e serve para designar aquele que por
essa razão está condenado ao trabalho obrigatório17.
Este Relatório serve para justificar e organizar a legislação repressiva, que
consagra o indigenato e faz das populações africanas uma simples colecção de
indígenas. O trabalho aparece como o mecanismo civilizacional absoluto. O
mesmo é dizer que a imposição do trabalho aos indígenas constituí um dever
do Estado e o objectivo central da missão civilizadora: “... é direito do Estado
obrigar os naturais das províncias ultramarinas a trabalharem, empregando
para isso, além de incentivos, imposições, e de que portanto é dever correlativo
desses naturais não se recusar ao trabalho, sendo esse dever não meramente
moral, senão também legal, jurídico, pois que só o cumprimento deste último
pode ser imposto pela autoridade pública”. E António Ennes acrescenta:
“... E todas estas reflexões e todos estes confrontos persuadiram-nos de que
o Estado, não só como soberano de populações semibárbaras, mas também
como depositário do poder social, não deve ter escrúpulo de obrigar e, sen-
do preciso, de forçar a trabalharem, isto é, a melhorarem-se pelo trabalho, a
adquirirem pelo trabalho meios de existência mais feliz, a civilização traba-
lhando, esses rudes negros da África, esses ígnaros párias da Ásia, esses meios
selvagens da Oceânia, a que o mesmo Estado impõe também, até com pena de

16 Moçambique – Relatório apresentado ao Governo, Lisboa, Agência Geral das Colónias 1899.
17 As formas de trabalho impostas pelo aparelho colonial seja qual for a sua designação (obrigatório, compelido, contratado, com-
pulsivo) caracterizam-se pela violência que obriga os homens a abandonar o seu território e o seu grupo social para os transfor-
mar em simples força de trabalho ao serviço dos colonos. Sobre esta questão ver a obra clássica de DUFFY, James, A Question
of Slavery. Labour policies in Portuguese Africa, Oxford University, Press, 1967; MATOS, Leonor Correia de, “O problema do
recrutamento da mão-de-obra local e respectivo código de trabalho”, in ALBUQUERQUE, L., dir, Portugal no Mundo, vol. séculos
XVIII-XX, Lisboa, Selecções do Reader’s Digest, pp. 580-589. Ver também: SÁ DA BANDEIRA, O trabalho rural africano e a
administração colonial, Lisboa, Imprensa Nacional, 1873; Algumas palavras sobre a questão do trabalho nas colónias portuguesas de
África e especialmente nas Ilhas de S. Tomé e Príncipe, Lisboa, Associação Comercial de Lisboa, 1872; CUNHA, J. M. da Silva, O
Trabalho Indígena, Lisboa, Agência-Geral das Colónias, 1949.

274
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

extermínio, tantas outras obrigações que lhes aproveitam bem menos e nem
sempre são legitimadas pelos interesses da civilização”18.
A legislação portuguesa põe em evidência a ausência de direitos do indíge-
na (tal como o escravo), a ponto de a sua gestão ser confiada a autoridades es-
pecializadas: os Curadores dos indígenas19. Ou seja, os Africanos são geridos
como órfãos. Esta negação de uma paternidade biológica e social transforma
os Africanos em “filhos” do Estado Colonial, e por isso dependentes da vonta-
de dos representantes do Estado.
Na visão dos anticolonialistas, esta classificação deve-se sobretudo à neces-
sidade de pôr à disposição dos colonos uma mão de obra abundante e barata.
Tal foi efectivamente o caso, mas convém acrescentar que tais formas de nega-
ção do Outro são acompanhadas pela certeza de que esses indígenas a quem
são recusadas as qualidades inerentes à própria espécie humana são os traba-
lhadores graças aos quais o patrão branco, o Estado e a nação, podem evoluir e
crescer. A crueldade reside na necessidade de manter o indígena nessa condi-
ção permitindo-lhe apenas que trabalhe e reproduza outros indígenas. O Es-
tado recusa por isso, retomando e alargando o vocabulário dos colonos, toda
e qualquer modificação substancial das condições físicas, jurídicas, sociais e
técnicas dos indígenas.
Graças a esta legislação banaliza-se o trabalho compelido, indispensável
à própria moralização dos Africanos, diz a lei, e permite-se que se possa re-
gressar aos bons hábitos da escravatura. Utilizados nas colónias, capturados
e enviados aos patrões, longe das suas aldeias e até dos seus países, permitem
eles que as economias coloniais, como é visível em São Tomé e Príncipe, en-
contrem assim a solução do problema da força de trabalho. Os serviçais – tra-
balhadores contratados que deviam ser repatriados terminado o seu contrato
- enviados para São Tomé ou os Contratados moçambicanos levados para as

18 Moçambique ..., o.c., pp.


19 O Curador do indígena era uma figura (e uma função) jurídica criada pelos governos de República para assegurar nas colónias
tanto a gestão dos trabalhadores africanos como dos colonos europeus. Ver, por exemplo, O Trabalho Indígena nas Ilhas de S.
Tomé e Príncipe, Lisboa, Imprensa Nacional, 1919; ver também AZEVEDO, J. Serrão, Relatório do Curador, Lourenço Marques,
Imprensa Nacional, 1913.

275
Isabel Castro Henriques

minas do Transval, por exemplo, entram deste quadro legislativo e humano.


Entre 1876 e 1900, em 25 anos, foram embarcados de Angola para São Tomé
55.869 serviçais. O primeiro grupo de 104 trabalhadores moçambicanos de-
sembarcou em São Tomé, em Julho de 1908, quando a comunidade inter-
nacional acusava vigorosamente Portugal de práticas esclavagistas nas roças
de cacau. Entre 1908 e 1915, 32.781 Moçambicanos chegaram a São Tomé,
tendo sido repatriados apenas 7.282, ou seja 22%. Apesar da legislação que
regulamentava as condições gerais para o recrutamento, transporte, trabalho e
salários dos serviçais, o seu não cumprimento e as precárias condições de saú-
de e de transporte a que eram submetidos os trabalhadores eram denunciados
até pelas próprias autoridades coloniais20. Em 1912 o jornal moçambicano O
Africano comentou o regresso destes homens ‘contratados’ a Moçambique,
sob o título “Peles Humanas”: “Vimos a bordo do vapor portuguez África
enquanto ahi esteve fundeado, umas 37 peles humanas com pretos dentro,
que nos disseram ser restos de 200 e tantos valentes que foram in-illo-tempore
prestar serviços em S. Tomé. Francamente, para um estudo anatómico do ca-
dáver do preto achamos dispendioso o transporte de tais esqueletos e muito
infame, pouco digno, pouco humano, o tratamento que se dá a seres humanos
até aquele estado de lindesa. S. Thomé, serviçais indígenas e escravatura, são
três tremendos poemas a fazer que não acham facilmente poeta que os rime
em verso sonoro. Sonoro são as libras que todo este bando de miseráveis deixa
aos negociadores de cabeças d’alcatrão.”21
Não que esta operação consiga cegar os analistas e os comentadores, pois
já nos últimos anos do século XIX e sobretudo na primeira década do século
XX, se multiplicam os relatórios e as denúncias: o indígena não seria diferente
do escravo e o trabalho compelido era tão parecido com a escravatura que
podia considerar-se o indígena como sinónimo de escravo.

20 Todos estes dados bem como o documento do jornal O Africano de 15 de Junho de 1912 são referidos por ZAMPARONI, Valde-
mir, na sua tese de doutoramento, intitulada Entre narros e mulungos: colonialismo e paisagem social em Lourenço Marques, Moçam-
bique – c. 1890 – c. 1940, que se encontra em via de publicação em Maputo
21 O articulista não sabia que estava a fazer uma profecia que encontrou em: a partir de dos anos 1911-1914, um jornal como A Voz
de Cabo Verde começou a denunciar este tipo de recrutamento, criando uma temática poética que mobilizou uma grande parte
dos escritores então colonizados.

276
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

Face à catadupa das críticas, que punham em causa o bom nome da Na-
ção e dos seus intelectuais, o governo português, reforçado pelos governos
provinciais (ou coloniais) multiplicou os diplomas legislativos, as máscaras
destinadas a dissimular as condições que permitiam que os especialistas de-
nunciassem a crueza do sistema de trabalho português.
Faltou infelizmente nas colónias portuguesas desse período um observa-
dor impiedoso e justo como André Gide, capaz de descrever miudamente a
soma das humilhações suportadas pelos Africanos do Congo belga. Embora
as poucas obras consagradas à tarefa da denúncia, tenham perturbado os ho-
mens políticos portugueses, que só podiam responder multiplicando as ope-
rações de escamoteação, isto é, participando abertamente no conto do vigário
institucional, tentativa frustre de liquidar a “crise discreta” que tanto compro-
meteu a nossa imagem no mundo.
Lisboa, Dezembro de 2001.

277
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

VIRTUDES “BRANCAS”, PECADOS


“NEGROS”: ESTRATÉGIAS DE
DOMINAÇÃO NAS COLÓNIAS
PORTUGUESAS

É já um lugar comum afirmar-se que toda e qualquer situação colonial co-


locou frente a frente duas sociedades distintas, heterogéneas, apresentando
sistemas económicos, sociais e ideológicos profundamente diferentes e man-
tendo ente si uma relação de subordinação-dominação a favor do colonizador.
Mais armado técnica e materialmente, este impôs uma dominação que desen-
cadeou as mais diversas tensões e conflitos e uma violência permanente, obri-
gando à construção de mitos, imagens e ideias capazes de justificar as acções e
as agressões colonizadoras.
Durante toda a primeira metade deste século, a maioria dos estudos re-
lativos às situações coloniais foi fortemente marcada pelas ideologias colo-
niais que vieram a impor leituras e interpretações europocêntricas segundo
as conveniências do colonizador europeu. A sociedade colonizada era apre-
sentada, apesar da sua força numérica, como um espaço amorfo, imóvel e
passivo que só a intervenção exterior podia dinamizar. Por outras palavras,
os Africanos eram considerados como seres inferiores, sem história, sem ci-
vilização, sem capacidade de mobilização e de intervenção no seu próprio
processo evolutivo.
Se esta situação se veio a alterar a partir de meados do nosso século com a
independência das colónias e o fim das situações coloniais em África, desenvol-
vendo-se, então, uma reflexão profunda sobre as acções coloniais, as resistên-
cias africanas, as relações colonizado/colonizador e uma pesquisa rigorosa das
realidades africanas, no caso português não se verificaram quaisquer alterações.

279
Isabel Castro Henriques

Portugal, potência colonial até 1974, viria a manter as mesmas posições teóricas
e as mesmas leituras de África, reforçando velhos mitos e impedindo um conhe-
cimento correcto das sociedades africanas sob a sua dominação.
Efectivamente, até meados da década de 70, a maioria dos estudos por-
tugueses sobre África, elaborados com base nos documentos portugueses e
no âmbito de uma historiografia oficial marcada pela estreita ligação entre a
política e a história coloniais, procuraram sobretudo demonstrar a acção civi-
lizadora que os Portugueses desenvolveram nas suas colónias, com base numa
vocação colonial particular e numa capacidade especificamente lusa de esta-
belecer relações de interpenetração biológica e cultural com os outros povos
do mundo, em especial, os Africanos.
Por outras palavras, este atraso de mais de 20 anos em relação aos pro-
digiosos progressos verificados no estudo das sociedades africanas nesse pe-
ríodo de tempo e o afastamento das correntes historiográficas africanas num
momento tão importante como foi aquele que decorreu nos anos 50, 60 e 70
reflectem-se ainda hoje, de uma forma extremamente pesada e negativa, na
produção historiográfica relativa aos países africanos que oficialmente falam
o português1.
Quando as diferentes explicações da questão colonial assentavam já, de for-
ma categórica e indiscutível, na necessidade de estudar com igual rigor tanto

1 É necessário sublinhar o importante desenvolvimento da historiografia africana nessas três décadas em que a África se libertou do
jugo colonial. Se os primeiros trabalhos de carácter histórico revelam ainda o peso de uma história colonial, o europocentrismo
e a dificuldade em seguir uma via liberta das concepções e das perspectivas dos historiadores do passado, uma segunda fase ca-
racteriza-se pelo aparecimento das primeiras tentativas de construir uma história nacionalista que, utilizando frequentemente os
mesmos quadros teóricos dos historiadores europocêntricos, se limita a “pôr a história colonial de pernas para o ar” rotulando-a
de “história nacional”. Uma terceira vaga de estudos que se situa nos finais de 70, essencialmente produzida por uma nova geração
de historiadores particularmente africanos, procura afastar-se das correntes anteriores, ultrapassando os temas preferenciais da
historiografia nacionalista – resistências ao colonialismo, história dos heróis africanos e dos impérios grandiosos do continente
africano, e dirigindo a sua reflexão e investigação para a análise de problemas concretos sociais, económicos, políticos, ideológicos
específicos das sociedades africanas. Rejeitando a sobre-estimação dos factores exógenes na dinâmica histórica dos povos de
África, reconhecendo de forma inequívoca a complexidade e a diversidade das sociedades africanas, a nova historiografia africana
procura assim pôr a nu os factores endógenes que, articulados com elementos externos, deram origem ao movimento e à mudan-
ça que, ao longo dos séculos, caracterizaram a evolução do processo histórico africano.
Ora, a historiografia portuguesa e os estudos relativos à África de língua oficial portuguesa – exceptuando algumas contribuições
de relevo produzidas sobretudo por historiadores anglo-saxónicos – estiveram afastados de todo este processo. E é hoje difícil
recuperar o tempo perdido. A necessidade de andar rapidamente tropeça com o tempo de amadurecimento das ideias exigido
pelas diferentes etapas; choca igualmente com uma situação complexa quer em Portugal, quer em África: se no segundo caso, são
a guerra, a fome, a desorganização que dificultam o trabalho intelectual, no primeiro, é ainda uma mentalidade colectiva forte-
mente marcada pelas ideias enraizadas no passado e pelo trauma da guerra colonial, bem como uma desorganização da riquíssima
documentação portuguesa, que impedem o desenvolvimento de uma investigação sistemática e apoiada, neste domínio do saber.

280
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

a vertente europeia como a vertente africana, quando toda a situação colonial


era já considerada como uma totalidade complexa, resultante de um longo
processo histórico, onde se articulavam as acções e os interesses antagónicos
dos colonizadores e das sociedades colonizadas, segundo movimentos origi-
nais resultantes da herança socioeconómica africana e da natureza e das moda-
lidades sucessivas do impacto colonial, os estudos portugueses continuavam a
ignorar a realidade africana, a centrar-se sobre a história dos Portugueses em
África, a pôr em evidência a “brandura” do sistema colonial português.
Assim, as análises da situação colonial na África sob dominação portugue-
sa caracterizavam-se pela eliminação dos Africanos como elementos activos e
participantes do processo histórico em curso e pela preocupação em provar as
características originais e benéficas da colonização portuguesa, insistindo-se
no carácter pré-capitalista do Portugal de Oitocentos ou no seu capitalismo
incipiente até quase meados do século XIX. O fraco nível de desenvolvimento
do capitalismo português era um argumento que provava, de forma incontes-
tável, a impossibilidade portuguesa de organizar uma exploração desenfreada
dos povos e das riquezas dos territórios colonizados. Deste modo, o sistema co-
lonial português apresentaria, contrariamente aos outros, um carácter não eco-
nómico e consequentemente menos brutal, desinteressado e mais humano2.
Como fazer aceitar a dura realidade colonial e a ideia da “brandura” do
sistema português? Obviamente, através da dissimulação das evidências, da
construção de mitos e do recurso a uma história dos Portugueses em África
carregada de acções grandiosas e gestos generosos e compreensivos para com
os Africanos.
O nosso objectivo é, pois, pôr em evidência alguns aspectos relevantes des-
sa prática dissimuladora portuguesa que, de uma forma persistente e eficaz,

2 Parece evidente que, se definirmos de forma sumária, capitalismo como o sistema económico e social implicando a generalização
do trabalho assalariado livre, a existência de um mercado interno e a capacidade de exportação de capitais, ele está totalmente
ausente das colónias portuguesas até à década de 30, momento em que o desenvolvimento do regime fascista em Portugal vai
timidamente incrementar relações de produção capitalistas e a exportação de capitais para as colónias, a sua rendibilização im-
plicando uma organização da economia colonial e os mecanismos indispensáveis à exploração da mão-de-obra africana. Mas a
questão é bem mais complexa e nem o atraso do capitalismo nem o “imperialismo” português, contrariamente ao que pretende
demonstrar HAMMOND, Richard, Portugal and África, 1815-1910: a study in uneconomic imperialism, Stanford University Press,
1966, justificam a inexistência de modalidades diversas de exploração dos Africanos e dos seus territórios, ao longo dos séculos
XIX e XX.

281
Isabel Castro Henriques

integrou todos os projectos de exploração colonial que os Portugueses, tal


como os outros Europeus, pensaram e estruturaram no continente africano.

A dissimulação das evidências ou a construção dos mitos

Ao longo do século XX, a África foi progressivamente ocupando um lugar


central na vida portuguesa: Portugal não só dependia economicamente das
suas colónias africanas como estas desempenhavam um papel indispensável
no equilíbrio global do sistema fascista vigente desde 1926.
Daí que se tenha verificado, por parte dos grupos dominantes da sociedade
portuguesa, a necessidade de construir e consolidar um certo número de mitos
relativos à presença portuguesa em África, destinados a explicar e a justificar as
acções e a permanência lusas nessa região do mundo, particularmente a partir
da década de 50, quando se inicia, em África, o processo das independências.
Contrariamente às outras potências europeias, Portugal não aceitará a in-
dependência das suas colónias. Esta atitude vai obrigar o país a construir ar-
gumentos sólidos e coerentes capazes de fornecer uma justificação credível,
não só a nível interno mas também perante a comunidade internacional, para
a sua recusa em participar no processo das independências e a sua teimosia em
permanecer em África “contra os ventos da História” e contra a vontade dos
Africanos, expressa nomeadamente através da luta armada, que desde 1961
marcou o espaço angolano3.
Explicar e justificar as opções africanas de Portugal impunha a construção
de mitos, de imagens, de ideias e de noções articuladas e organizadas de forma
a constituírem-se em sistema lógico, estruturado, convincente, passível de ser
assimilado pelas populações não só portuguesa como também africanas, e as-
segurando a sua própria reprodução.

3 O desencadear da guerra pela independência e contra o colonialismo português deu-se primeiro em Angola, em 1961. O movi-
mento angolano foi depois seguido, de imediato, pelos movimentos guineense e moçambicano, a guerra alargando-se a todos os
territórios dominados pelos Portugueses no espaço continental africano.

282
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

A eficácia desse sistema ideológico construído progressivamente em fun-


ção das conveniências e das necessidades impostas pela política colonial por-
tuguesa é bem visível pela persistência de certos mitos na sociedade portu-
guesa actual4.
Em 1983, quase dez anos depois da independência das ex-colónias portu-
guesas e mais de 20 anos passados sobre o início de guerra, a televisão por-
tuguesa apresentou um debate sobre a questão colonial5, onde participavam
portugueses de diferentes origens socioprofissionais: o ex-colono, o assimila-
do mestiço, o político, o intelectual e o cidadão comum. Ausente, o Africano
negro, o que não deixa de ser significativo e motivo de reflexão.
Enquanto o primeiro, o ex-colono, sublinhava o facto da África ser apenas a
selva e “um bando de pretos selvagens nus ou de tanga”, em guerra permanen-
te uns com os outros antes da chegada e da instalação dos Portugueses – os
primeiros Europeus a descobrirem o continente africano –, o segundo, o mes-
tiço assimilado dizia ser um produto do colonialismo português e o terceiro, o
político, não se cansava de referir que “nunca poderemos negar o facto de ter-
mos legado novos mundos ao mundo, novas nações à Humanidade”, enquan-
to o quarto participante, o intelectual, punha em evidência o enriquecimento
cultural que necessariamente nasce de um contacto harmonioso entre cultu-
ras diferentes, dando como exemplo o caso brasileiro. Finalmente, o quinto,
o cidadão comum, concluía que se o sistema colonial português teve muitos
aspectos negativos, igualmente se caracterizou por aspectos bem positivos: foi
diferente dos outros, mais humano, menos alienante e destruidor.
Este debate televisivo, velho de apenas seis anos, revela de forma grosseira,
através de um discurso frequentemente confuso, mal estruturado, a essência
da ideologia colonial portuguesa.

4 Os Descobrimentos e a expansão portuguesa numa perspectiva patriótica obsoleta, os feitos heróicos e os factos grandiosos da
aventura portuguesa, continuam a merecer, por parte de uma fracção ainda importante dos estudiosos portugueses, a mesma
atenção poeirenta marcada pelos mitos do passado recente, deixando de lado as questões fundamentais para compreender o
Outro, o Próprio e as relações entre os dois tecidas ao longo dos tempos.
5 Este debate público da questão colonial portuguesa deve ser posto em relevo, já que ele apresenta um dos raros momentos de
discussão do problema. A sociedade portuguesa ainda não cicatrizou a ferida colonial, o que está bem patente nos obstáculos
colocados à discussão pública da guerra colonial e ao desinteresse dos Portugueses em participar no debate da questão.

283
Isabel Castro Henriques

É ainda o discurso dicotómico do período colonial que assenta em dois


blocos de imagens: por um lado, são postas em evidência as características na-
turais hostis ao homem branco, doentias, sinónimo de morte (o clima, a vege-
tação, os animais selvagens), as populações primitivas, preguiçosas e perigosas
amando a guerra e a destruição; por outro lado, salientam-se os feitos heróicos
dos Portugueses nesse continente “traiçoeiro”, a pacificação e a valorização
dos territórios africanos, a missão civilizadora e, subjacente, a inexistência de
racismo nos Portugueses6.
Estávamos perante as ideias basilares que durante décadas orientaram o
discurso oficial e sustentaram o colonialismo português em África:

1. a ideia da superioridade do branco/civilizado contrastando com a in-


ferioridade do negro/primitivo. A negatividade africana era apresen-
tada através de referências enselvajadoras: a selva (naturezas e animais
perigosos), o corpo nu, as guerras bárbaras, a idolatria, a poligamia, os
sistemas de alimentação, etc.
2. a ideia da missão civilizadora dos portugueses que, indiferentes aos
perigos, de forma desinteressada, cristã, fraterna se arriscavam nesse
mundo selvagem para o valorizar e “dar novos mundos ao mundo”.
3. o papel pioneiro de Portugal no processo da expansão europeia: não
só as características específicas do Portugal da época explicavam essa
supremacia, mas também a própria natureza fraterna e cordial da po-
pulação portuguesa: implícita ficava a ideia de “povo escolhido” para
alargar as fronteiras do mundo cristão e civilizado.
4. a presença multissecular de Portugal em África, justificada, desde a
Conferência de Berlim, através da tese portuguesa dos “direitos his-
tóricos”.

6 Outro era o discurso neo-colonial dominante no restante espaço europeu, discurso dicotómico assentando num outro corpo de
imagens que dirigiam e dirigem a leitura da realidade africana: imagens de guerra, de golpes de estado, dos mais variados conflitos
internos privilegiando-se as questões étnicas, de fome, de miséria e de ostentação, em suma, de subdesenvolvimento opondo-se
às imagens do desenvolvimento tecnológico e económico dos países ditos desenvolvidos, prontos para estabelecer as mais diver-
sas formas de ajuda e de cooperação “desinteressadas”.

284
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

5. a capacidade e a vocação específicas dos Portugueses para se cruzarem


harmoniosamente, sem conflito, em simbiose perfeita, com os outros
povos do mundo. Estas características eram o resultado de uma “natu-
reza tropicalista” do povo português e da sua ausência de preconceitos
raciais. O que se explicava historicamente: a “identidade portuguesa”
era o fruto de um intenso contacto com os Árabes e de um longo pro-
cesso e cruzamento de vários grupos étnicos, culturais, raciais e religio-
sos diferentes, vivido durante um longo período de tempo anterior à
consolidação do espaço nacional.
6. a ausência de racismo dos Portugueses, que decorre da ideia anterior,
ideia que Salazar procurou consolidar e banalizar apresentando a nação
portuguesa como una, indivisível, onde todos eram iguais “do Minho a
Timor”, o mecanismo da assimilação garantindo essa homogeneização
do território nacional assim balizado.

Todas estas ideias que constituem o essencial da ideologia colonial portu-


guesa no século XX, organizaram-se em sistema a partir do último quartel do
século XIX, quando numa conjuntura internacional desfavorável às preten-
sões de Portugal em África – e de que são acontecimentos-chave a conferência
de Berlim e o Ultimato inglês –, se procurou introduzir a questão colonial na
vida nacional7.
As quatro primeiras ideias são então difundidas como forma de lutar contra
a espoliação de Portugal de um grande império africano pelas outras potências
europeias e exaltar nos Portugueses um forte sentimento nacional: trata-se de
utilizar a História como argumento legitimador das reinvindicações e das ac-
ções portuguesas em África. A partir do segundo quartel do século XX, com a
instauração do regime fascista em Portugal, estes mitos vão igualmente desem-
penhar um papel relevante na consolidação do sistema ideológico colonial e na
exaltação do nacionalismo português e no “orgulhosamente sós” de Salazar.

7 Sobre toda esta questão ver ALEXANDRE, Valentim, Origens do colonialismo português moderno, Lisboa, Sá da Costa Editora,
1979.

285
Isabel Castro Henriques

As duas últimas ideias integram o sistema a partir de meados da década de


40, após o fim da segunda guerra mundial, com o desenvolvimento do anti-
colonialismo internacional e o desencadear do processo que vai conduzir às
independências africanas.
“Explodem” então as teses do luso-tropicalismo do sociólogo brasileiro
Gilberto Freyre recuperadas por Portugal para fornecer a justificação cientí-
fica às suas pretensões africanas e às suas práticas coloniais. Sublinhando a
existência de um igualitarismo racial, uma harmonia racial no “mundo que o
Português criou”, estas teses assentavam na ideia de uma capacidade especi-
ficamente portuguesa de construir sociedades não racistas em que a hierar-
quização era fruto do valor do indivíduo e não da cor da pele. O Brasil era o
modelo apontado e a ausência de uma legislação flagrantemente discrimina-
tória nas colónias portuguesas completava as provas necessária à justificação
da presença portuguesa em África.
Estas teses luso-tropicalistas serão retomadas e o seu lugar reforçado no
aparelho ideológico português, a partir do início da década de 60, para ga-
rantir a permanência portuguesa numa África independente e minimizar os
efeitos da guerra colonial.

Os mitos e a política colonial: fases da sua evolução

É evidente que todo este processo progressivo de construção e organiza-


ção das ideias decorre dos interesses africanos de Portugal e da evolução da
sua política colonial, ao longo do século XX8.
A primeira fase da construção dos mitos corresponde naturalmente ao mo-
mento inicial de estruturação do sistema colonial (grosso modo até 1926). É
uma fase de dúvidas e de indefinições, de avanços e de retrocessos em que se

8 Essa evolução processa-se obviamente por fases que permitem construir uma periodização provisória para a consolidação da
ideologia colonial, tendo presente a necessidade de estudar mais profundamente a questão. Do mesmo modo, as datas avançadas
devem ser entendidas sem rigidez: elas pretendem sobretudo fornecer balizas par ajudar a organizar a informação.

286
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

procura implantar o sistema colonial. É uma situação de hesitações que deri-


vam de vários factores:

1. a instabilidade política portuguesa, com a queda da monarquia em


1910 e a indefinição de uma política para as colónias;
2. a dificuldade de pensar uma exploração económica racional das coló-
nias, devido ao carácter precário da economia portuguesa metropoli-
tana;
3. a resistência africana à ocupação portuguesa que obriga Portugal a des-
viar homens e capitais para as “campanhas de pacificação”, que se es-
tenderão até à década de 1920. Aliás, esta necessidade de ocupar (pela
força) e de “pacificar” mostra o controlo africano dos seus próprios
espaços, e apresenta o Português como o intruso que efectivamente é,
desmontando o mito da presença multissecular dos Portugueses em
África.

Em Janeiro de 1926, o major Leite de Magalhães afirmava que “Angola ain-


da há pouco tempo deixou de ser uma feitoria para começar a ser uma colónia
mista de exploração comercial e de plantações9, o que põe em evidência o
carácter arcaico da exploração económica de Angola, numa perspectiva capi-
talista-colonial.
A partir de 1910 com a implantação de República são tomadas algumas
medidas que reflectem uma forte preocupação colonial por parte de Estado
português. É então criado o Ministério das Colónias (1911), elaborada a Lei
Orgânica das Províncias Ultramarinas (expressão que substitui o termo coló-
nias em 1914), definidos os estatutos civil, político e criminal dos Africanos –
os indígenas – totalmente distintos dos estatutos dos Europeus e repensado o
chamado “imposto indígena”, lançado no princípio do século, e um dos instru-
mentos fundamentais de qualquer dominação colonial. Tal imposto não devia

9 Ver CAPELA, José, O imposto de palhota e a introdução do Modo de Produção Capitalista nas colónias, Porto, Afrontamento, 1977,
p. 84.

287
Isabel Castro Henriques

“ser apreciado unicamente sob o seu aspecto fiscal, mas muito principalmente
sob o seu aspecto político, como indicador seguro do estado de submissão dos
indígenas”10 e devia “considerar-se como o acto final da ocupação, pacificação
e administração das regiões do interior” (1913)11.
A partir de 1926 inicia-se uma nova fase caracterizada por importantes
avanços na estruturação do sistema colonial português, acentuando-se as con-
tradições entre o discurso do poder, na metrópole, e as práticas coloniais.
É o momento da sistematização dos princípios básicos que, durante décadas,
irão nortear a política colonial portuguesa e definir as formas de administração
de cada colónia. Assim, partindo-se de bases já anteriormente pensadas dão-se
passos precisos e decisivos para a exploração das riquezas e da mão-de-obra afri-
canas. A publicação do Acto Colonial, em 18 de Julho de 1930 – corpo de leis
referentes à administração das colónias – vem legalmente enquadrar e fornecer
as directivas da gestão e das práticas coloniais dos Portugueses em África12.
Explorar as riquezas e a mão-de-obra africanas constitui o objectivo pri-
meiro de Portugal relativamente nas colónias de África. Se Salazar afirma em
1933 que “ é imperativo para Portugal salvaguardar os interesses das raças in-
feriores, cuja inclusão sob as influências do cristianismo é um dos maiores e
mais ousados feitos da colonização portuguesa”13, o ministro das Colónias de
então, Armindo Monteiro, declara, de forma menos hipócrita, que a “coloni-
zação exige uma infinita tolerância e piedade pelo que lhe é inferior na gente
do sertão”, acrescentando, dois anos mais tarde, que “o branco está destina-
do a ser o dirigente, o técnico, o responsável; nos trópicos faria triste figura a
trabalhar com o seu braço ao lado do nativo... a grande força de produção, o
abundante e dócil elemento de consumo que a África oferece”14.

10 Idem, ibidem, p. 85.


11 É Norton de Matos, governador-geral de Angola, que o afirma, em 17 de Abril de 1913.
12 Publicado no decreto n.º 18570, em 18 de Julho de 1930, o Acto Colonial viria a ser incluído em 1933 na Constituição Portu-
guesa depois de ter sido sujeito a um plebiscito. Neste mesmo ano foram igualmente publicados a Carta Orgânica do Império
Português e a Reforma Administrativa Ultramarina, completando-se assim a publicação da legislação destinada a fornecer o
enquadramento legal às acções colonizadoras a desenvolver pelos Portugueses nas suas colónias de África. A este propósito ver
ELI J.E. MAR, Exploração portuguesa em Moçambique 1500-1973, African Studies, 1975, capítulo 2.
13 Citado por BENDER, Gerald J., Angola under the Portuguese-Muth and Reality, Londres, Heinemann, p. 7.
14 Idem, ibidem.

288
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

Estas palavras dos homens que definem a política colonial portuguesa na


década de 30, mostram claramente as linhas directivas do colonialismo portu-
guês: as populações africanas não só são consideradas inferiores como estão
sujeitas a um controlo apertado por parte das autoridades portuguesas. Ca-
derneta do indígena, interdição de deslocação, expropriação das terras, traba-
lho forçado, imposto indígena, culturas obrigatórias, interdição de actividades
económicas independentes, castigos corporais, limitação de acesso ou mesmo
proibição a espaços recreativos são alguns dos mecanismos do sistema colo-
nial que permitem uma exploração desenfreada dos povos colonizados.
A partir de meados do século, assiste-se a uma racionalização da explora-
ção das colónias. É o período em que se verifica o aumento significativo da
exportação de capitais – o capital estrangeiro ocupando um lugar de relevo,
investindo preferencialmente na extracção das riquezas naturais e no desen-
volvimento das infra-estruturas de transporte necessárias ao seu escoamento15
– e a criação e consolidação de empresas no quadro de um sistema de econo-
mia diversificada. A economia de pilhagem que marcou os períodos anteriores
mantém-se sob duas vertentes essenciais:

1. A apropriação de uma parte da produção agrícola africana pelo comér-


cio local. Se os Africanos são os produtores obrigados a produzir de-
terminadas mercadorias, os elementos centrais deste comércio são pe-
quenos comerciantes brancos disseminados pelo interior, praticando
frequentemente a troca directa com os Africanos, adquirindo produtos
agrícolas e matérias-primas e fornecendo-lhes produtos manufactura-
dos de largo consumo, segundo processos altamente espoliadores;
2. a existência de grandes plantações, muitas delas propriedade de estrangei-
ros, onde os Africanos são forçados a trabalhar depois de expropriados das
suas terras e obrigados ao pagamento, em dinheiro, do imposto de palhota.

15 Constituídos em companhias concessionárias com grandes privilégios, os capitalistas estrangeiros detêm vastos poderes sobre
áreas imensas bem como sobre as populações que nelas habitam. Têm como obrigação portuguesa, o desenvolvimento de infra-
-estruturas e o pagamento de uma taxa ao Estado português.

289
Isabel Castro Henriques

Esta política colonial que visava o crescimento económico da colónia


como meio indispensável à estabilidade da economia metropolitana, articu-
lava-se com uma política de povoamento branco, que se veio a intensificar a
partir dos anos 60.
No último quartel do século XIX, a população branca, nas colónias por-
tuguesas, era extremamente reduzida: apenas 3.000 brancos em Angola e
menos ainda no conjunto das outras colónias africanas. Até então os Portu-
gueses emigravam preferencialmente para o Brasil, a África aparecendo-lhes
como um espaço perigoso, pouco recomendável, onde lucro e sucesso eram
difíceis de atingir.
Mas as alterações verificadas no contexto africano e na conjuntura inter-
nacional, em meados do século, vão obrigar Portugal a uma política sistemáti-
ca de colonização branca, único meio de garantir a soberania portuguesa, de
mostrar as características peculiares do sistema colonial português – “fazer de
Angola um novo Brasil” – e de desenvolver as economias coloniais através do
estabelecimento no interior das colónias de agricultores portugueses protegi-
dos e apoiados financeiramente pela administração colonial.
Se até 1961 todo o edifício colonial assentava abertamente na exploração
do Africano obrigado a sistemas de trabalho altamente destruidores, a partir
de então, a guerra da independência desencadeada nas colónias portuguesas e
a intensificação das pressões internacionais contra Portugal, levaram o gover-
no português a reajustar certos aspectos da sua política colonial. Procurou-se
sobretudo camuflar através de reformas as duras condições de trabalho im-
postas aos Africanos e apagar todas as marcas da discriminação a que estes
estavam sujeitos no espaço colonial português.
Leis, decretos, discursos multiplicam-se fazendo-se apelo contínuo à
ideia de que Portugal era uma nação multirracial que ao longo dos séculos
procurara não explorar a África mas ajudar o continente negro a sair do esta-
do primitivo em que se encontrava. Em 1967, o ministro dos Negócios Es-
trangeiros de então, Franco Nogueira, proferiu um discurso bem revelador
da ideologia colonial portuguesa: “... fomos nós, e só nós, que trouxemos à

290
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

África antes de ninguém a noção de direitos humanos e igualdade racial; e


somos nós e só nós, que praticamos o multirracialismo, havido por todos
como expressão mais perfeita e mais ousada da fraternidade humana e pro-
gresso sociológico. No mundo, ninguém contesta a validade de princípio;
mas hesita-se em admitir que o mesmo é de autoria portuguesa e em reco-
nhecer a sua prática pela nação portuguesa; porque isso seria outorgar-nos
uma autoridade moral e imporia um respeito incompatíveis com as ambi-
ções que nos visam”16.
Estas palavras, destinadas simultaneamente ao exterior e a apaziguar as
tensões internas resultantes de guerra colonial e da dura situação económica
e política vivida pelos Portugueses, estão impregnadas do luso-tropicalismo
que fornece ao colonialismo português a sua especificidade distanciando-o
dos outros e recorrem à história dos Portugueses em África para tornar mais
credível e mais compreensível o discurso colonial do regime.
Por outras palavras, a História legitima as acções colonizadoras portugue-
sas; as ideias, os mitos, as representações que constituem a ideologia colonial
repousam solidamente nas mais diversas interpretações de uma imensa do-
cumentação histórica escrita, ao longo dos séculos, por portugueses - mari-
nheiros, comerciantes, missionários, exploradores, agentes da administração
colonial -, que circularam e conheceram a África.
Mas esses mesmos documentos são passíveis de outras interpretações li-
bertas do peso da ideologia colonial. O que nos permite leituras diferentes da
realidade colonial portuguesa. A questão do trabalho e do ensino destinados
aos Africanos pelo sistema colonial português é exemplar: mostra-nos como
é possível, apesar da evidência das situações deturpar a realidade e impor essa
deturpação como uma verdade indiscutível.

16 Citado por BENDER, G., op. cit., p. 8.

291
Isabel Castro Henriques

Acerca do “trabalho e do ensino para o preto”


ou a evidência da exploração portuguesa

“Isto de reger colónias... de collocar o negro ao abrigo de leis benéficas... e


deixar este na ociosidade levando uma vida licenciosa... é assaz reprehensível
sob o ponto de vista moral e económico. A protecção e liberdade... que hoje
damos ao indígena africano de trabalhar só quando quer, [traz] grave detri-
mento de quantas indústrias ali se iniciam e prejuízo do commércio e da pro-
priedade rural”17.
Esta afirmação de Capello e Ivens (1886) põe em evidência uma das no-
ções centrais da ideologia colonial: é através do trabalho obrigatório que se
pode civilizar o africano. Revela ainda uma crítica às autoridades portuguesas
pela sua brandura (manifestada na lei, na acção, na protecção) em relação ao
negro que, assim, permanece numa “vida licenciosa”, e pela sua incapacidade
em valorizar os territórios colonizados e cumprir a missão civilizadora. Mas
esta aparente brandura dos Portugueses, que tanto assusta os ilustres explora-
dores, vai rapidamente desvanecer-se com a estruturação do sistema colonial
e com as sucessivas leis do trabalho indígena que, desde o final do século XIX,
procuram enquadrar o Africano, obrigá-lo ao trabalho em benefício exclusivo
dos colonizadores, sob a aparência de um processo essencialmente vantajoso
para o colonizado.
Trabalho, imposto e ensino são três variáveis que desde o início se vão en-
contrar associadas para garantir a eficácia do sistema de exploração e de ins-
trumentalização da mão-de-obra africana.
Em 1898, Paiva Couceiro, no seu estudo sobre a colónia de Angola, apresen-
ta de forma inequívoca os mecanismos do sistema: “só o contacto educativo, ac-
tuando durante maior ou menor lapso de tempo, incutirá nos selvagens hábitos
e necessidades novas, e os levará a sofrer voluntariamente o jugo d’um trabalho
regular, a troco do qual consigam o salário preciso para responder às crescentes

17 CAPELLO, Hermenegildo e IVENS, Roberto, De Angola à Contra-Costa, Descrição de uma Viagem atravez do Continente Africano,
Lisboa, Imprensa Nacional, 1886, vol. I, p. 181.

292
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

exigências da vida civilizada.” Referindo-se à situação existente e que urge mu-


dar, acrescenta: “para combater este estado de cousas e angariar mão d’obra indí-
gena, persistente e contínua, forçoso se torna recorrer a certos meios, que classi-
ficamos em duas espécies distintas: uns indirectos, encaminhando-os a tomar o
gosto às commodidades materiais, apanágio dos povos adiantados, outros, mais
directos e immediatos, impondo-lhes, com as devidas precauções e geito, algu-
mas determinações tendentes a obrigá-los um tanto e a impugnar-lhes a nativa
indolência.”18. Para este responsável da política colonial portuguesa da época, os
“meios indirectos são os resultantes da acção civilizadora, exercida com intensi-
dade e inteligência, por intermédio da qual o povo culto, que domina, pretende
trazer ao seu grémio a turba ignara dos dominados”, os meios directos sendo “as
leis e os actos que tenham por fim directo exercer pressão sobre os indígenas
no sentido do trabalho. [...] É precisamente pelo trabalho que o selvagem entra
no caminho do bem, e se os seus hábitos herdados, o seu modo de vida e a sua
índole particular a afastam tenazmente d’esse caminho, a nós compete impeli-lo
para ahi e a própria moral ordena que se empregue mesmo a coacção quando
fôr necessário e oportuno...”19. Eis claramente definidos os princípios básicos
das leis do trabalho “para o preto” e a justificação para todas as formas de coac-
ção e de violência que, ao longo do século XX, se irão verificar e multiplicar nas
colónias portuguesas. Impor o trabalho ao Africano através de meios “brandos
ou enérgicos”20 é um dever dos colonizadores que igualmente devem “difundir
a religião e a instrucção”21, acções estas que não só legitimam a violência como
garantem uma docilidade e uma mais rápida inserção do Africano no sistema
que o explora.
Desde os finais do século XIX o Estado português assume “o direito de

18 PAIVA COUCEIRO, M.M., Angola. Estudo Administrativo, Lisboa, 1898, p. 27.


19 Idem, Ibidem, pp. 27-28.
20 Idem, Ibidem, p. 29.
21 Idem, Ibidem.

293
Isabel Castro Henriques

obrigar os naturais das províncias ultramarinas a trabalhar”22. Não é por acaso


que, em 1911-1912, uma das principais preocupações das várias comissões
e subcomissões encarregadas, pela Sociedade de Geografia de Lisboa, de es-
tudar os problemas coloniais dando soluções para os mesmos, tenha sido o
imposto indígena. Ferreira do Amaral, um dos intervenientes neste processo,
viria a afirmar a necessidade de “obrigar, pelos impostos directos, os indígenas
nas colónias a trabalhar, para poderem pagar o imposto criando-lhes quanto
possível necessidades que só pelo trabalho assíduo possam satisfazer”, subli-
nhando de seguida, a urgência em “facilitar e baratear... a vida dos Europeus
nas colónias.”23
Mas esta forma directa de colocar as questões coloniais vai ser substituí-
da progressivamente, a partir do segundo quartel do século, por um discurso
que procura dissimular a realidade. É o momento da consolidação do sistema
colonial, é o momento da instauração do regime fascista metropolitano que
exigem outra linguagem e a elaboração de leis onde a realidade da exploração
do Africano não seja tão cruamente visível. A partir de década de 1960, esta
camuflagem será obviamente reforçada.
O Acto Colonial de 1930 é bem significativo desta alteração do discurso
colonial. O objectivo principal deste corpo de leis, incluído na Constituição
Portuguesa, em 1933, e só posto em execução em 1940, era a reforma da Políti-
ca Indígena no sentido de uma integração dos Africanos das colónias na Nação
Portuguesa, pela transformação progressiva das suas formas de organização,
pela civilização do “indígena”, que passaria a ter os mesmos direitos e deveres
dos Portugueses de origem, nomeadamente no campo jurídico. Enquanto tal
mudança se não verificasse, os “indígenas” estariam sob protecção do Estado,
que os devia defender contra todos os possíveis abusos dos Colonos. O capítu-

22 Trata-se da comissão nomeada pelo governo português, na sequência da Conferência de Berlim, para estudar os problemas ad-
ministrativos e económicos das colónias. A comissão, que recorreu a homens como António Ennes, Mouzinho de Albuquerque
e Paiva Couceiro, iniciou os seus trabalhos em 1894, vindo a entregar o seu relatório final em 1898. O parágrafo f do relatório
da subcomissão encarregada de estudar a melhor maneira de utilizar a mão-de-obra africana, acrescenta ao excerto já citado que
“precisamos do trabalho dos indígenas... para melhorar a condição destes trabalhadores... para a economia da Europa e para o
progresso de África”. Ver ELI, J.E. MAR., op. cit., p. 85.
23 Citado por CAPELA, J., op. cit., p. 114.

294
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

lo consagrado aos “Indígenas” procura garantir essa protecção do Estado nos


vários níveis da vida social, em particular, o trabalho que deve ser remunerado,
“a propriedade e posse dos seus terrenos e culturas”24 e o ensino.
Efectivamente, o ensino e a educação, a cargo de missões religiosas, são
considerados juntamente com a cristianização e a difusão da língua portugue-
sa, como os meios mais eficazes para se atingir a assimilação dos Africanos.
A assimilação constituiu uma das características essenciais do discurso e da
política coloniais deste período.
Mas a realidade era bem diferente e as próprias afirmações de homens im-
portantes do regime o demonstravam frequentemente. Enquanto Marcelo
Caetano afirmava, em 1952 que “os pretos em África têm de ser dirigidos e en-
quadrados por europeus mas são indispensáveis como auxiliares destes”, acres-
centando que “ao afirmá-lo não parto de qualquer preconceito, formulo mera
observação”25, dois anos mais tarde, Vicente Ferreira, antigo governador de An-
gola, diria, utilizando uma linguagem menos polida, que “os chamados indíge-
nas civilizados... não passam de arremedos grotescos de homens brancos. Salvo
raras excepções o indígena civilizado conserva a mentalidade do primitivo, mal
encoberta pelo fraseado e indumentária copiados do europeu”26.
Se, na fase anterior, o ensino, a instrução e a educação dos Africanos eram
apresentados como mecanismos fundamentais para incentivar no “indígena” o
gosto pelo trabalho, agora, são considerados meios indispensáveis para a concre-
tização do projecto português de assimilação dos Africanos. Mas na prática, todo
o “ensino para o preto” era orientado para o trabalho em benefício do branco.
“Há que preparar o indígena civilizando-o, educando-o, instruindo-o, para o
enquadrar sob orientação de dirigentes europeus; e é nesse sentido de utilidade
prática e imediata que deve ser guiada a actuação do ensino, que tem de ser mi-
nistrada em moldes especiais adequados e conducentes a tal finalidade”27.

24 ACTO COLONIAL, Título II, Dos Indígenas, artigo 17.


25 CAETANO, Marcelo, Os Nativos na Economia Africana, Coimbra, Coimbra Editora, 1954, p. 16.
26 Citado por BENDER, G.J., op. cit., p. 7.
27 CASTRO JUNIOR, A., O problema do ensino em terras de além-mar, Lisboa, Editorial Império, 1941.

295
Isabel Castro Henriques

Pelo que, desde 1926 não só a separação do ensino para Africanos e Euro-
peus era uma realidade, como também se procurou criar, para os “indígenas”,
um ensino destinado a formar os trabalhadores necessários à economia colo-
nial. Tratava-se de um ensino de carácter eminentemente prático, essencial-
mente virado para as actividades ligadas à agricultura e à produção artesanal,
relegando para segundo plano qualquer tipo de ensino teórico. Foi nesta al-
tura que surgiu em Angola o projecto designado “Educação pelo Trabalho”28
que assentava nas “escolas-oficinas”. Esperavam-se outros resultados: a criação
destes artesãos especializados africanos que afluíam aos centros urbanos criou
problemas de concorrência com a mão-de-obra portuguesa aí existente.
As “escolas-oficinas” deram então lugar às Escolas Rudimentares do Ensi-
no Agro-Pecuário: o tipo de exploração empreendida por Portugal nas suas
colónias exigia uma grande concentração de mão-de-obra na agricultura. Os
Africanos eram assim desviados dos ofícios, deixando livre o espaço urbano
aos Europeus e canalizados para os duros trabalhos da terra. Foi também neste
período (década de 30) que, em Moçambique, se definiu o Ensino Rudimen-
tar com o objectivo de “conduzir gradualmente o indígena selvagem para a
vida civilizada, formar-lhe a consciência de cidadão português e prepará-lo
para a luta da vida tornando-o mais útil à sociedade e a si próprio”29.
O Acordo Missionário assinado em 1940 estabeleceu definitivamente a
separação dos ensinos para “indígenas” e “não indígenas” (isto é, brancos e
assimilados)30, nos moldes já ensaiados anteriormente. Enquanto os segun-
dos dispunham de um ensino idêntico ao da metrópole, que visava formar
quadros para o aparelho administrativo, os primeiros eram dirigidos para
um ensino especialmente concebido e ministrado pelas missões católicas. A
regulamentação deste Acordo prolongou-se quase até ao fim da década nas

28 Esta expressão revela bem a carga dissimuladora do projecto colonial salazarista. O trabalho aparece como um meio par a edu-
cação dos Africanos e não como o meio essencial par atingir o objectivo primeiro da colonização portuguesa: a exploração dos
territórios africanos.
29 Boletim Oficial de Moçambique, 1.ª série, n.º 20, Maio de 1930.
30 REGO, António Silva define a assimilação como “o processo pelo qual o povo colonizador procura elevar até si por todos os
meios ao seu alcance, os indivíduos indígenas colonizados” in “Adaptação missionária e assimilação colonizadora no ultramar
português”, Separata do Boletim Geral das Colónias, Lisboa, 1958, p. 12. Teoricamente iguais aos brancos, os assimilados jamais
serão totalmente reconhecidos como tal: na prática, mantinha-se a discriminação. Ver BENDER, G.J., op. cit., capítulos 1 e 2.

296
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

diferentes colónias portuguesas, mantendo-se sempre os mesmos princípios


básicos que desde o início tinham norteado o ensino para os Africanos: era
regra secundarizar o “ler, escrever e contar”31, em benefício das actividades
manuais directamente ligadas ao sector produtivo.
Quanto ao acesso ao ensino superior, inicialmente reservado aos Europeus,
era autorizado também aos assimilados desde que gozassem do direito de ci-
dadania. Ora, para adquirir o estatuto de cidadão o indivíduo necessitava de
ter pelo menos 18 anos, “falar correctamente o português, ter um rendimento
que lhe permitisse sustentar toda a família e ter bom comportamento”32. O
que se tornava inatingível para a maioria dos Africanos, já que as escolas ru-
dimentares onde se formariam na infância, eliminavam de imediato todas as
possibilidades de vir a reunir as condições exigidas. Além de que, cabia às au-
toridades coloniais julgar e decidir sobre a questão: o “ter bom comportamen-
to” era demasiado subjectivo permitindo todas as interpretações e decisões do
aparelho colonial português.
Por outras palavras, trabalho e educação/ensino estavam perfeitamente ar-
ticulados para garantir uma abundância de trabalhadores africanos, dóceis se
possível, indispensáveis à consolidação da economia colonial. Não se tratava,
pois, de educar pelo trabalho, fazendo crer que a educação dos Africanos era a
preocupação central dos Portugueses, mas de educar para o trabalho de modo
a garantir a exploração dos territórios colonizados.
Esta situação irá manter-se na prática até aos anos 1970, mesmo se a guerra
e as pressões sobre Portugal obrigaram as alterações de fachada, no que respei-
ta às condições de trabalho impostas aos Africanos.
Em 1962 é elaborado e publicado o Código Rural de Trabalho que, apre-
sentando-se como um corpo de leis destinadas a modificar o sistema de traba-

31 É importante referir que o ensino rudimentar era oficialmente reconhecido como a primeira fase do ensino dito oficial para os
Africanos. Uma vez concluída essa primeira fase, o Africano ingressaria directamente na terceira classe de um ensino primário de
4 anos. Porém, sendo o ensino rudimentar constituído por quatro anos lectivos, entre os 7 e os 15 anos, ao mesmo tempo que
idade limite de ingresso na escola secundária era de 14 anos, o Africano raramente conseguia atingir este nível, já que obstáculos
vários, a língua, os meios financeiros, as distâncias, etc. – o obrigavam a repetições de anos, impedindo-o de concluir o nível
primário antes dos 14 anos. O que mostra a hipocrisia do sistema.
32 É o que determina o Decreto-lei n.º 39 666, de 20 de Maio de 1954.

297
Isabel Castro Henriques

lho nas colónias portuguesas, não era mais do que um instrumento visando a
propaganda do regime salazarista.
Este código introduzia restrições ao trabalho imposto aos Africanos em-
bora não tivesse suprimido o trabalho obrigatório ou trabalho compelido que
obrigava o africano a trabalhar, 6 meses por ano, para o Estado, uma família
ou um indivíduo não africano. Introduziram-se três pontos significativos do
espírito desta lei – nada mudar sob a aparência da mudança. São eles: supri-
mir as distinções entre os trabalhadores e indivíduos de raças e culturas dife-
rentes; impedir a participação das autoridades coloniais no recrutamento dos
trabalhadores africanos, como era seu dever até então; e legalizar o trabalho
contratado, que já existia anteriormente, procurando garantir ao trabalhador
o respeito pelas cláusulas do contrato assinado. O que jamais se verificava33.
Este trabalhador contratado era, na realidade, um trabalhador forçado, não só
porque as regras do sistema – a necessidade de pagar o imposto, por exemplo
– a isso o obrigavam, com também pelo facto de não usufruir de quaisquer re-
galias e direitos. Era um trabalhador sujeito ao horário e ao sistema de alimen-
tação impostos pelo patrão, aos castigos corporais, à tortura e à prisão, sem
assistência médica nem segurança social. O salário proposto nunca era pago
e não era raro o caso de “contratos” que, depois de muitos meses de trabalho,
eram despedidos sem nada receberem, pois que, feitas as contas pelo patrão,
tudo o que tinham a haver, deviam!
Esta situação tornou-se ainda mais dura na década de 70, com o aumento
das tensões verificada nas colónias em consequência da guerra e de uma au-
sência de solução a favor dos Portugueses.
Em 1973, numa entrevista dada à televisão francesa, um agricultor e in-
dustrial português estabelecido em Angola, traçava com clareza a situação de
exploração e de discriminação dos Africanos dominados pelo sistema colonial
português34. Proprietário de inúmeras plantações de café, o senhor Magalhães

33 Aliás, o Estado ao abolir a intervenção das autoridades coloniais no recrutamento dos trabalhadores africanos, deixava aos colo-
nos a liberdade de agirem segundo as suas conveniências!
34 Entrevista referida por ELIS, MAR., op. cit., p. 115.

298
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

tinha ao seu trabalho muitas centenas de trabalhadores africanos abrangidos


pelas leis do trabalho contratado, considerando perfeitamente natural que o
“indígena” trabalhasse dez ou mais horas por dia, incluindo os sábados, co-
messe funge e, por vezes, peixe seco, dormisse em dormitórios onde se empi-
lhavam cerca de 40 a 60 pessoas, não tivesse quaisquer instalações sanitárias,
ganhasse dez escudos diários, dos quais uma parte era descontada para a ali-
mentação e a outra para o vestuário, acrescentando que este não precisava de
escola porque o emprego lhe era assegurado por toda a vida.
Esta “brandura” do sistema colonial português, assim posta a nu por um
colono perfeitamente convicto da justeza das suas ideias e das suas acções re-
lativamente ao Africano, era veiculada e justificada através dos mais variados
mecanismos. Sistema brando, já que as características primitivas das realida-
des africanas descobertas pelos Portugueses justificariam por si só o recurso
a formas de actuação bem mais violentas. Mas contrariamente aos outros Eu-
ropeus, os Portugueses recusavam a violência, graças à sua extrema condes-
cendência, à sua generosidade e à sua capacidade de compreender o Outro. O
espírito e a forma desta leitura da história das relações e das acções dos portu-
gueses em África ainda não desapareceu totalmente da sociedade portuguesa.
A Igreja participa igualmente na consolidação dos mitos. D. Custódio Al-
vim Pereira, responsável pela formação do corpo de missionários afirma em
1961 que “a independência é uma coisa indiferente para o bem-estar dos ha-
bitantes” e que “os povos nativos de África têm obrigação de agradecer aos
chamados povos colonizadores os benefícios deles recebidos”35.
Recorre-se igualmente à História para dar veracidade ao mito. Surgem então
autores seduzidos pelas teses do luso-tropicalismo que elaboram estudos histó-
ricos, interpretações de situações do passado onde procuram pôr em evidência
essa “brandura” portuguesa. É o caso da leitura de Francisco Tenreiro, geógrafo
e poeta santomense, sobre o sistema de trabalho organizado pelos portugueses
na ilha do açúcar, no século XVI: “Os negros vinham do Benim, da Guiné e do

35 Ver A.A.V.V., Colonialismo e lutas de libertação-7 cadernos sobre a guerra colonial, Porto, Afrontamento, 1974, pp. 68-69.

299
Isabel Castro Henriques

Manicongo e o seu regime de trabalho era muito curioso. Só se aceitavam negros


acasalados que tinham por obrigação trabalhar toda a semana para o senhor, ex-
cepto aos sábados que reservavam para si próprios. Com quatro dias mensais
inteiramente livres pagava-se o trabalho árduo das semanas... Eles próprios pro-
videnciavam no dia livre às suas necessidades... Relacionando este regime de tra-
balho com as ordens dadas... no sentido de serem estimuladas as ligações entre
brancos e negros e devendo considerar-se livres as mulheres e os seus frutos, sou
levado a concluir que o africano, por estes tempos de S. Tomé, não estava sujeito
a um regime de escravidão pura; era antes um servo a quem se pedia trabalho,
mas a quem por outro lado se permitia uma relativa liberdade na prática dos seus
hábitos. Pela influência da mulher guindava-se a uma posição superior”36.
Pretendia-se assim provar as virtudes e a brandura dos Portugueses ao lon-
go da História, nas relações com os Africanos, e a sua especial aptidão para
criar suaves sistemas de trabalho. Este excerto de Tenreiro apontava ainda
numa outra direcção: a capacidade portuguesa de miscigenação. Não só o Por-
tuguês se cruzava com o Africano como dava ao mestiço a liberdade e o acesso
a estatutos superiores. O que legitimava historicamente essa forma portugue-
sa, única, de estar nos trópicos, a política de assimilação, a ausência de racismo
dos Portugueses, a igualdade de oportunidades dadas aos indivíduos e a sua
ascensão social não em função da cor da pele mas do valor do homem.
Todo esse conjunto de ideias que constituíram a ideologia colonial portu-
guesa era assim reforçado por uma certa interpretação dos documentos e pelo
recurso a uma história das relações dos Portugueses com os Africanos, em que
a virtuosa brandura portuguesa aparecia como uma constante indiscutível ao
longo dos séculos”37.

36 TENREIRO, Francisco, A ilha de S. Tomé, Lisboa, Junta de Investigações do ultramar, 1961, pp. 69-70.
Sobre a situação do escravo em S. Tomé, no século XVI, ver HENRIQUES, Isabel Castro, “Ser escravo em São Tomé no século
XVI: uma outra leitura de um mesmo quotidiano”, Revista Internacional de Estudos Africanos, Lisboa, 1988, n.º 6-7.
37 Se no final do século XIX se afirmava: “Portugal é e ainda ficará sendo depois de impor a obrigação do trabalho, o soberano mais
benigno e o mais humanitário de quantos têm bandeira içada no continente africano” (citação extraída de ELIS MAR., op. cit.,
p. 114), quarenta anos depois assistia-se a um reforço dessa ideia em moldes novos exigidos pela conjuntura de então: “Precisa-
mos... de manter sempre vivo na gente portuguesa o sonho de além-mar e a consciência e orgulho do Império... A África é, para
nós, uma justificação moral e uma razão de ser como potência. Sem ela seríamos uma pequena nação; com ela somos um grande
país” (Editorial de O Mundo Português, 2, Julho-Agosto de 1935, p. 218).

300
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

Mas a evidência é outra. Não só essa documentação permite e exige uma


outra leitura, mas também o fim da situação colonial e do regime fascista por-
tuguês vieram criar as condições para a eliminação de mitos obsoletos, ainda
enraizados no espaço português e em certos sectores africanos, de modo a
caminhar-se para a organização de uma história rigorosa, objectiva e desapai-
xonada das relações dos Portugueses com os Africanos. Uma história certa-
mente diferente, porque todas são diferentes, e marcada – quem sabe? – por
episódios fascinantes e problemas surpreendentes que possam ajudar a escla-
recer a longa e complexa história do mundo.
Lisboa, 1989.

301
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

A ÁFRICA “PORTUGUESA”
E A PRIMEIRA REPÚBLICA
Paradoxos, Estratégias
e Práticas Coloniais

As últimas décadas têm sido marcadas por uma renovação da historiografia


portuguesa, visível através de uma produção significativa de trabalhos consa-
grados à história contemporânea de Portugal, em particular, ao estudo da Pri-
meira República. Esta situação tem permitido alargar e aprofundar este espaço
de análise, multiplicando perspectivas inovadoras atentas ao desenvolvimento
das ciências políticas e sociais, questionando e reinterpretando as fontes, estu-
dando os actores, as ideias, os valores, os princípios e as práticas republicanas.
No entanto, os estudos centrados nas relações entre a República e as Colónias
não têm suscitado a reflexão profunda sobre a vertente colonial do projecto
republicano, assente numa convivência contraditória entre os princípios e os
valores fundadores e estruturantes do sistema republicano e as ideias, visões
e práticas que sustentam e materializam o projecto colonial. Reflexão tanto
mais urgente quanto é portadora da clarificação desse mesmo projecto, que, se
emergiu durante a Monarquia, foi durante a Primeira República que se definiu
e se estruturou, vindo a reforçar-se no período do Estado Novo. A inexistência
de fracturas relevantes neste continuum colonial, durante o processo de mu-
danças políticas que caracteriza a vida nacional desde finais do Oitocentos
até 1974, quando as dinâmicas anti-coloniais e independentistas mundiais se
afirmam de forma irreversível, impõe uma atenção particular a esta questão
tão estruturante da sociedade portuguesa de ontem e de hoje.
República e Colónia: como articular estas duas realidades, que se baseiam
em categorias de conteúdos antagónicos, remetendo assim para uma evidente

303
Isabel Castro Henriques

contradição? A República, onde todos os homens nascem livres e iguais em


direitos e em obrigações, é de facto o lugar que cria o povo soberano, os cida-
dãos. A Colónia é o lugar de expressão da força, da violência, do arbitrário, da
exclusão, da ausência de igualdade e de liberdade, constituindo os seus habi-
tantes uma massa de súbditos dominados, excluídos da cidadania. Se a exis-
tência da República deve excluir a da colónia, nos seus princípios e na sua prá-
tica, verifica-se um paradoxo singular: os republicanos apresentam-se como
obreiros activos, incansáveis, apostando na aventura colonial, participando na
construção jurídica, cultural e política de um império onde se concretizem
os ideais da República. Sem se dar conta que a sua recusa - fundamentada na
noção de raça - em considerar os homens iguais na sua diversidade cultural,
constitui uma das linhas de fractura do universalismo republicano.
Como é que a ideia de desigualdade dos homens se foi impondo na Euro-
pa e na África colonizada, coincidindo com uma noção de raça ornamentada
com toda a panóplia de marcadores científicos conferidos pela ciência triun-
fante do século XIX? Através de que processos de retórica, de que armadilhas
teóricas e pedagógicas, de que fórmulas jurídicas, de que práticas sociais foi
a República capaz, com êxito, de convencer, ensinar, legitimar, aplicar uma
hierarquia entre os europeus e os “selvagens”, isto é, entre os brancos e os ne-
gros, fazendo-a passar por uma evidência tão transparente e luminosa que
dispensava qualquer demonstração, apesar de se tratar de uma classificação
manifestamente contrária aos seus princípios fundadores? A estas questões
devemos acrescentar um espaço de análise particularmente esquecido: como
é que os africanos observaram e reagiram à inferiorização que lhes foi imposta
e que estratégias de sobrevivência identitária definiram e praticaram? Trata-se
de um complexo conjunto de interrogações, exigindo estudos precisos e rigo-
rosos, assim como o recurso às mais diversas fontes, em particular, as fontes
iconográficas onde a fotografia, transportada para o postal, poderoso meio de
banalização da imagem, ocupa um lugar de grande relevância informativa1.

1 À clareza de alguns textos e à ambiguidade de muitos outros, é necessário acrescentar com evidente proveito científico, a palavra
das imagens, que permitem apreender o terreno movediço em que se situam as ideologias coloniais, ao mesmo tempo que cons-
tituem uma colecção indispensável para descodificar a relação entre colonizado e colonizador.

304
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

Ideais republicanos e realidades coloniais:


uma associação paradoxal

«Todos os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos…», salvo…..

A relação íntima entre a República e as Colónias, marcada por uma tradição


republicana pouco atenta aos particularismos, assenta justamente na negação da
liberdade e da igualdade de alguns, os “indígenas”, isto é, os povos colonizados.
Se na metrópole se procede a operações degradantes e desvalorizantes do Ou-
tro, destinadas a assegurar a sua inferiorização, recorrendo a imagens, descrições,
emoções susceptíveis de fornecer representações do “selvagem” das colónias, que
transmitem por si só a desigualdade das raças, evidenciando a superioridade da
“raça branca”, e legitimando, sem discursos elaborados, a não aplicação dos direi-
tos do homem aos colonizados, nas colónias, as políticas e as práticas do coloni-
zador mostram uma força criativa inédita capaz de inventar estatutos inovadores
aplicáveis aos povos das colónias designados de indígenas, de modo a organizar e
a consolidar a sua desigualdade física, social e cultural, recorrendo à missão civili-
zadora, esse braço falsamente desarmado da dominação colonial europeia.
Mas se a contradição entre princípios republicanos e ideias coloniais é evi-
dente, o interesse dos republicanos pela expansão colonial não pode ser anali-
sado como uma espécie de acto oportunista, acidente ou traição conjuntural
aos valores universais. Também não deve ser considerado como um gesto de
boa vontade para com meios económicos emergentes centrados nos negócios
coloniais, nem como uma concessão às estruturas militares assentando na acção
permanente, mas sim uma decisão com fundamentos estruturais, históricos e
também políticos, quer de natureza interna, quer no quadro internacional.
Não podemos esquecer que grandeza nacional, progresso e modernidade
constituem princípios estruturantes do projecto republicano, orientando as
políticas tanto metropolitanas como coloniais, assegurando teoricamente a
igualdade dos espaços e dos homens, justificando a dominação colonial e con-
fortando as consciências nacionais mais sensíveis, inquietas e críticas.

305
Isabel Castro Henriques

Se as nações europeias ocidentais, com uma clara vocação expansionista


e colonizadora, se definem como uma unidade nacional, a República preten-
deu ser emancipadora, libertando os africanos das trevas da barbárie, e mo-
dernizadora, levando a luz do progresso e da sabedoria à África, fazendo obra
universal, abrindo escolas, construindo hospitais, criando as mais diversas
infra-estruturas, mas nunca questionou a desigualdade das raças, superiores
e inferiores. Cega em relação aos africanos, a República praticou ou tolerou
constantemente as agressões dos colonizadores, e comportou-se ela própria,
em relação aos colonizados, de forma violenta, frequentemente destruidora
dos homens e das suas culturas, não aplicando os valores republicanos – li-
berdade, igualdade, fraternidade – aos povos colonizados, privados no seu con-
junto do acesso à cidadania e excluídos de uma República que só em teoria
constituía uma unidade.
Em grande parte obra republicana, a colonização prendeu os povos africa-
nos no seio de um sistema de dominação recusando-lhes responsabilidade e
participação na construção e na organização das colónias, ao mesmo tempo
que, na metrópole, foi criando uma cultura colonial destinada a legitimar as
acções de violência e de destruição contra os povos africanos2. Verifica-se as-
sim uma harmoniosa articulação entre a recusa e a inferiorização do Outro e
a retórica dos valores republicanos, isto é, da universalização dos direitos do
homem, que constituía a sapata da ideia republicana.
O edifício colonial, português em particular, dependeu de forma muito
significativa das ideias coloniais organizadas na França oitocentista, que se
pretendia a matriz do pensamento moderno e republicano. A ideia de progres-
so associada à ideia de exploração racional da terra, que emergiu na 1ª metade

2 Sobre esta questão, ver, por exemplo, as obras dirigidas por BANCEL, Nicolas, e BLANCHARD, Pascal, Images et Colonies (1880-
1962), Paris, BDIC-ACHAC, 1993, Images d’Empire. 1930-1960, Paris, Ed. de la Martinière, 1997, Zoos Humains, Paris, Ed. de
La Découverte, 2004, consagradas ao estudo das múltiplas formas – como as grandes exposições internacionais - utilizadas pelos
governos europeus para mostrar às populações a selvajaria das realidades coloniais e suscitar a adesão nacional ao esforço civili-
zador.

306
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

do século XIX em torno de Saint-Simon e dos socialistas franceses3, materiali-


zada nas e pelas inovações científicas e técnicas, impôs-se como a ideologia do
século e das utopias e aparece como uma noção fundamental na formulação
do discurso civilizador.
Fé no progresso científico e técnico e na sólida convicção da superioridade
das formas ocidentais de civilização servem então de argumento justificati-
vo da aventura colonial, durante mais de um século. Em 1880, Jules Ferry, o
grande obreiro da colonização francesa, para quem as sociedades ocidentais,
graças ao seu “elevado nível de desenvolvimento técnico e moral”, têm “o de-
ver de conduzir os povos inferiores na via do progresso”, formula a doutrina
colonial baseando-a em três argumentos essenciais: o interesse económico, a
ambição política e o dever humanitário da França, culminando com a célebre
frase “a política colonial é filha da política industrial”4. Semelhante argumen-
tação suscita a adesão de uma ampla fracção política francesa - mesmo ideo-
logicamente antagónica – e cria as bases de um consenso nacional perante a
justeza e a necessidade de colonizar, que viria a reforçar-se no século XX, em
torno da ideia de missão civilizadora, onde progresso/valorização/exploração
se articulam para benefício da França, mas também do mundo e dos povos
“obscuros” das colónias.
Em 1931, Albert Bayet, radical francês activista da Liga dos Direitos do
Homem, caracterizava como “um trabalho de fraternidade”, “levar a ciência
aos povos que a ignoram, dar-lhes estradas, canais, caminhos de ferro, auto-
móveis, telégrafos, telefones, organizar serviços de saúde e de higiene, escolas
e ….., explicar-lhes por fim os direitos do homem”, acrescentando que” o país
que proclamou os direitos do homem, que contribuiu de forma brilhante para
o avanço das ciências, que criou o ensino laico, o país que, diante das nações, é

3 Advogando a ideia de uma sociedade industrial reforçada graças à exploração do mundo no seu todo, os socialistas simonianos
sublinham a importância do desenvolvimento das vias de comunicação, em particular o caminho de ferro, indispensável ao aces-
so às riquezas do planeta. Esta ideia associada à concepção da disponibilidade do mundo apoiada pelo movimento geográfico
oitocentista, organiza o seu discurso de exploração e organização racional da Terra, permitindo estabelecer a ligação entre estes
pensadores e a expansão ultramarina. Discurso também humanista, sublinha todas as vantagens da valorização dos territórios:
benefícios para os povos inferiores, lucros relevantes para as potências colonizadoras e proveitos para toda a humanidade. Ver
HOLO, Yann, “ L’oeuvre civilisatrice de l’idée à l’image”, in Images et Colonies ..., pp.58-65.
4 Ver BLANCHARD, P., BANCEL, N., LEMAIRE, S., dir., La fracture coloniale, Paris, Éd. La Découverte, 2006.

307
Isabel Castro Henriques

o grande campeão da liberdade, tem a missão de expandir, por todo o lado….,


as ideias que fizeram a sua própria grandeza “. Concluía, afirmando ser “ neces-
sário considerarmo-nos como investidos do mandato de instruir, de educar,
de emancipar, de enriquecer e de socorrer os povos que têm necessidade da
nossa colaboração”5. A solidez, o carácter duradouro e politicamente transver-
sal da ideia de missão civilizadora no discurso e na política colonial franceses,
permitem reconhecer um paralelismo evidente no que respeita às orientações
teóricas e às práticas coloniais portuguesas, durante os séculos XIX e XX.

A missão civilizadora, pilar do projecto colonial republicano

“A locomotiva, sibilando atravez das vastas florestas africanas, transpondo dis-


tâncias com a velocidade que lhe é conhecida, levará incessantemente os recursos,
a vida, o trabalho, onde, por ora, existe apenas a natureza brava; transformará os
sertões adustos em sítios habitáveis, os pântanos em parques ou jardins, remirá os
seus habitantes do perfeito estado de selvageria em que infelizmente ainda se encon-
tram” (Henrique de Carvalho)6.

Missão Civilizadora e Colonização Filantrópica

O projecto colonial português, reconstruído no século XIX, não pode se-


não tarde no século XX libertar-se do paradoxo em que o encerram as tradi-
ções e os preconceitos7. O descrédito que sempre pesara sobre a África, mar-
cado por diferentes formas de discriminação do africano – cuja matriz se pode
encontrar na ideia corrente de que os africanos possuem uma espécie de carga
negativa, revelada pela cor da pele e pelas práticas culturais, sobretudo pela
antropofagia -, reforçadas pela longa prática da escravatura e do tráfico ne-

5 Ver BRAUMAN, Rony, « Indigènes et indigents: de la “mission civilisatrice” coloniale à l’action humanitaire”, in La fracture..., p.169.
6 CARVALHO, Henrique de, 1894, IV, p. 783.
7 Sobre o projecto colonial português, ver a obra de Valentim Alexandre, em particular, « Ideologia, economia e política : a questão
colonial na implantação do Estado Novo» , Análise Social, vol. XXVIII, nº 123-124, Lisboa, ICS, 1993, pp. 1117-1136.

308
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

greiro, resultava também de uma longa prática do degredo nesse espaço con-
siderado o lugar ideal para castigar e expulsar da sociedade normal os grandes
criminosos. Esta situação, que durou séculos, confirmava o juízo negativo ins-
pirado pela África aos cidadãos, e naturalmente agia como uma força desmo-
bilizadora8.
A vontade civilizadora da Primeira República portuguesa, que dá continui-
dade ao esforço monárquico e responde a um imperativo de modernização
- distinguindo-se assim da colonização das Américas, nos séculos anteriores,
marcada pelo imperativo do cristianismo -, apresenta-se como uma obriga-
ção de consciência que decorre da superioridade da sociedade colonizadora
sobre os povos colonizados, articulando-se com o projecto republicano, mar-
cado pela inovação e pelo desejo de progresso, e legitimada por um horizonte
ainda indefinível em que os indígenas poderiam vir a alcançar a civilização. É
o princípio original da missão civilizadora que vai tornar-se o dogma central
da ideologia e do discurso coloniais, em plena sintonia com a ideia de um
Portugal uno.
É na metrópole que o projecto republicano se materializa através de dife-
rentes políticas que pretendem a modernização do país, projectadas depois
como um princípio estruturante para o espaço colonial. No discurso da mis-
são civilizadora encontra-se toda a argumentação positivista sobre o progresso
guiado pela ciência, que é igualmente um dos pilares de uma república laica
e esclarecida, face a um clero conservador e monárquico. Desenha-se assim
uma transposição da ideologia política republicana para o projecto colonial. A
missão civilizadora aparece pois como um prolongamento lógico dos direitos
do homem – o direito a ser civilizado.
Este princípio, absolutamente fundamental para os republicanos, pois cria
a ilusão de uma suposta igualdade dos povos a concretizar-se em tempos di-
ferentes, institui a desigualdade racial no coração do dispositivo republicano
nacional e colonial.

8 Ver HENRIQUES, Isabel Castro, Os Pilares da Diferença. Relações Portugal-África – séculos XV-XX, Lisboa, Ed. Caleidoscópio-
CHUL, 2004.

309
Isabel Castro Henriques

A colonização encontra assim a sua matriz ideológica no pensamento re-


publicano, aparecendo também como um grande projecto colectivo capaz de
reunir grupos sociais e sensibilidades políticas diferentes, como se verificara já
perante as conclusões da Conferência de Berlim e, anos mais tarde, o Ultimato
Inglês de 1890, mobilizando os valores essenciais dos republicanos, como o
progresso e a grandeza da nação9. É pois um projecto patriótico, transversal a
diferentes regimes políticos, onde se fundem as visões monárquica, republica-
na e colonial, criando progressivamente, nos anos 1880/1890-1910-1926, um
consenso colonial, reforçado durante o Estado Novo. Uma política de potên-
cia colonial é a garantia da grandeza da República face aos seus concorrentes
europeus, ao mesmo tempo que carrega consigo a vontade generosa e desin-
teressada de civilizar os indígenas – isto é, as “raças inferiores” - e de os levar
progressivamente ao encontro das luzes, do progresso e da liberdade.
Uma das figuras mais emblemáticas do projecto colonial republicano, Nor-
ton de Mattos, cuja ideia de império português se centra na noção de nação una,
não se cansa de afirmar o carácter nacional da “obra de fomento” portuguesa,
onde inclui os territórios coloniais, sublinhando a necessidade de uma política
nacional destinada ao “melhoramento nas condições de vida, materiais e espiri-
tuais de todos os Portugueses, brancos e de cor”10. Norton de Matos fará aliás do
seu projecto colonial, organizado em torno de ideias de unidade das populações
classificando-as como “portugueses de além e aquém mar”, de unidade nacional
conjugando metrópole e colónias, de unidade económica e de acção, de defesa
do povoamento branco nas colónias e da obra de civilizar os indígenas, um dos
temas centrais da sua candidatura à presidência da República, em 1948.

9 Os finais do século XIX foram marcados por uma profunda perturbação na sociedade portuguesa resultante dos interesses cres-
centes que a Europa manifestava em relação à África, pondo em causa a pax portuguesa nos territórios a sul do Equador, consi-
derados propriedade portuguesa. Multiplicando, durante a Conferência de Berlim (1884-1885), os argumentos históricos e os
sinais de uma europeização teórica nos espaços africanos, Portugal sai com perdas amplas, embora mantendo o essencial do seu
“património” africano. A perturbação portuguesa acelera-se e reforça-se com os episódios do Mapa Côr-de-Rosa – tentativa por-
tuguesa de assegurar o seu projecto recusado – e do Ultimato Inglês de 1890 que repõe a legalidade de Berlim. Neste quadro de
perturbação política, a que se devem acrescentar as acções militares destinadas a “pacificar” as populações africanas que reagem à
ocupação dos seus territórios, o Estado convoca os cidadãos, apela ao seu patriotismo em torno de uma causa nacional: o ataque
europeu aos territórios portugueses de África.
10 Norton de Mattos, Governador de Angola entre 1912 e 1915, Ministro das Colónias em 1915; Alto-Comissário em Angola entre
1921 e 1923, escreveu uma vasta obra consagrada às colónias portuguesas. MATTOS, Norton de, Memórias e Trabalhos da minha
Vida, Lisboa, Editora Marítimo- Colonial, 4 volumes, 1944.Vol. I, p.19.

310
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

A matriz teórica da missão civilizadora - definida como sistema relacional


luso-africano no século XIX como o demonstram as “estações civilizadoras
e comerciais” tão importantes no discurso escrito e na prática etnográfica de
Henrique de Carvalho11 – que se vai construindo em África, ao longo de sé-
culos de relações sobretudo violentas, polémicas, ambíguas, mas também de
acordos entre africanos e portugueses, constitui o eixo central da política co-
lonial portuguesa da Monarquia, da República e do Estado Novo. Qualquer
um dos sistemas políticos e dos seus agentes procura estabelecer as condições
indispensáveis à valorização dos espaços coloniais; mau grado as modifica-
ções de forma reveladoras do ideário político de cada momento, todos crêem
na desigualdade e na hierarquização dos homens e das civilizações, proceden-
do a actos destinados, por um lado, a desvalorizar e a rejeitar os africanos e
as suas formas culturais e, por outro, a assegurar a sua educação, de modo a
garantir a concretização dos projectos coloniais de exploração económica e
de consolidação territorial.
Poder-se-á dizer que o projecto colonial é um espaço de consenso político-
-ideológico, as colónias aparecendo como a concretização da obra civilizado-
ra, nas suas mais pragmáticas dimensões: desenvolvimento económico, pro-
gresso social, organização de estruturas administrativas eficazes, em suma, a
materialização de um processo modernizador que deve ser um exemplo e um
estímulo para uma Metrópole agitada e desorganizada. Fixa-se assim a legiti-
midade da colonização, assistindo-se a uma espécie de fusão entre o nacional
e o colonial no imaginário político republicano, reforçada durante o Estado
Novo, de tal modo que ser anti-colonial então é ser anti-patriota ou anti-por-
tuguês12. Saliente-se ainda o facto de o discurso colonial assentar no princípio

11 As « estações civilizadoras e comerciais » multiplicam-se nas décadas finais de Oitocentos, com o objectivo de servir uma nova
política colonial portuguesa que pretendia estabelecer uma ocupação racional dos espaços africanos. Instaladas ao lado de povoa-
ções africanas, servidas por redes de circulação e de transporte que se iam desenvolvendo, atraíam as populações, estimulando o
comércio, inovando no campo agrícola, divulgando os valores e as práticas civilizacionais europeias. Ver CARVALHO, Henrique
de, Descrição da viagem à Mussumba do Muatiânvua.., Lisboa, Imprensa Nacional, 4 Volumes, 1890-1894. Vol. IV, p. 783.
12 A confusão entre espaço colonial e espaço nacional é, em primeiro lugar, obra dos republicanos, que não só promovem a ideia
como procuram consolidá-la de forma pragmática através da Escola, em particular, quer na metrópole, quer nas colónias. Mapas,
rios e montanhas, cidades, caminhos-de-ferro… fazem parte da panóplia de elementos de aprendizagem ministrados nos diferen-
tes graus do ensino. Acrescente-se que, ainda hoje, se podem verificar vestígios deste fenómeno absurdo, que ganhou novo fôlego
com a questão da lusofonia: contestar o projecto político da lusofonia é ser pouco patriota, pouco português!

311
Isabel Castro Henriques

da homogeneidade colonial, como se de um espaço uno se tratasse no seio da


unidade nacional, traduzindo-se, no entanto, na prática, no reconhecimento
da diversidade dos territórios colonizados.
Como afirma Ferreira Diniz, uma das grandes figuras do projecto colonial
português republicano, “colonisar …, valorisar as…riquezas naturais e me-
lhorar as condições materiais e morais da existência dos ….nativos, implica ci-
vilisar, adaptar as populações indígenas a viver mais intensivamente e melhor,
conforme as qualidades especiais da sua raça e as características geográficas”.
Referindo-se sempre a Angola, acrescenta que “colonisar Angola e consequen-
temente promover a sua civilisação, pesada tarefa que tem de se realisar com
o concurso de todos os portugueses e onde todos têm um lugar, constitui,
sobretudo, uma grande obra de educação. Educação de um povo, exercida por
outro, no sentido de provocar a evolução daquele dentro dos quadros da sua
própria civilização”13.
O sonho português republicano da missão civilizadora será marcado pela
educação dos homens, mesmo se “ o Estado……não tem só que atender à
educação das populações indígenas…..( mas também) ao problema da emi-
gração….à preparação e educação especial dos europeus que, directa ou indi-
rectamente, têm de intervir na educação dos…indígenas….e, tem que aten-
der à organização do órgão directivo dos negócios indígenas, à sua orientação
e acção que deve exercer. Eis o que…entendemos dever ser a missão civiliza-
dora do Estado em Angola…”14. Tal missão conta com agentes múltiplos e di-
versificados, que, nas palavras de Norton de Mattos, formam “ a falanje cheia
de prestígio e de valor, de que está resultando a fixação, nas terras de África,
das virtudes do nosso povo. Em torno dos funcionários públicos agrupar-se-
-ão cada vez mais todos os homens de boa vontade que para Angola seguem,
colonos portadores de todas as qualidades da raça, missionários do bem e da
civilização.” “(…) imbuídos da divisa que o Alto Comissário da República
entendeu dever fixar-lhes, …o verso do Poeta: « Glória vã, não pretende, nem

13 DINIZ, Ferreira, A Missão Civilizadora do Estado em Angola, Lisboa, Centro de Tipografia Colonial, 1926, p.91.
14 DINIZ, Ferreira, A Missão Civilizadora…, 1926, pp.3-4.

312
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

dinheiro». Não deixando de acrescentar o ilustre general, o então ainda major,


a importância das missões religiosas na educação e instrução dos “indígenas”,
pois “ para lá levam as crenças do povo português, (cumprindo assim) inteira-
mente o seu dever sobre todos os aspectos e, sobretudo, sob o ponto de vista
nacional”15.
Não explicitados mas necessários à concretização deste projecto, encontra-
mos os conflitos e os massacres, a exploração brutal e a recusa do direito, que
permitem consolidar o espaço colonial. Os magros dezasseis anos de vida da
Primeira República são marcados pelas guerras mais eficazes de ocupação e
de dominação dos territórios africanos, que assumem então a sua fisionomia
actual. A guerra militar é completada por uma “guerra” jurídica destinada a as-
segurar a manutenção da autoridade portuguesa sobre milhares de Africanos,
associada naturalmente à criação de estruturas administrativas, económicas e
sociais indispensáveis ao controlo dos homens e dos territórios e à concretiza-
ção dos ideais republicanos de progresso e de modernização.

Educação, conhecimento antropológico e legislação coloniais

A consolidação de uma ideologia colonial centrada na missão civilizadora


e nos seus fundamentos teóricos, de que a escola é certamente o principal
aparelho de difusão sustentada, impôs uma atenção particular à elaboração
de projectos de natureza científica, sobretudo antropológicos, visando o co-
nhecimento das populações e das suas culturas com o objectivo de proceder a
uma valorização eficaz e racional das colónias.
O desfasamento entre os interesses definidos pela metrópole colonial e os
agentes responsáveis pela administração nas colónias, só podia ser corrigido a
partir do momento em que o pessoal recrutado em Portugal tivesse adquirido
a formação adequada, capaz de o tornar sensível aos problemas das popula-
ções indígenas, sendo que esta formação devia estender-se a todos quantos

15 MATTOS, Norton de, A Missão Colonizadora de Portugal em África, Discurso proferido na Câmara Municipal de Lisboa, 1923,
pp. 14-15.

313
Isabel Castro Henriques

projectavam estabelecer-se nas colónias, onde deviam desempenhar também


uma missão civilizadora. “Daí a necessidade de organizar o ensino colonial na
metrópole. Para o fazer….(garantindo) a preparação do colono, não vemos
outro processo que não seja o de incluir o ensino colonial nos diversos graus
da nossa instrução. (…). Iniciado na escola primária, o ensino colonial acom-
panharia a instrução geral e ministrá-lo-íamos em todas as faculdades, insti-
tutos técnicos, industriais e comerciais, de agricultura e medicina veterinária,
escolas militares, escolas práticas de agricultura e escolas profissionais….esta-
belecendo uma rede de apertadas malhas, abrangendo todos os cursos”, não
esquecendo, por um lado, “ um ensino colonial elementar do emigrante que se
destina às colónias e não tenha passado por qualquer daqueles cursos”, e por
outro, “ uma preparação muito especial do funcionário dos quadros adminis-
trativos do ultramar”, para quem tinha sido criada a Escola Colonial, reorgani-
zada em 1919. Palavras de Ferreira Diniz que sublinha também a importância
do “ensino das línguas indígenas e a criação de cadeiras de etnografia e etnolo-
gia, de estatística e de direito aduaneiro”, pondo em evidência a preocupação
republicana de ensinar, mas também de desenvolver os estudos sobre as popu-
lações e os territórios colonizados, alargando o conhecimento indispensável
ao facto colonial16. A educação colonial – nesta sua vertente metropolitana, a
outra destinando-se às colónias – só podia, contudo, tornar-se eficaz a partir
do momento em que a administração colonial percebesse a necessidade de
conhecer a antropologia das populações submetidas, para melhor as dominar.
Esta situação nova intervém imediatamente após a proclamação da Repú-
blica, quando os governos republicanos, aproveitando o trabalho dos admi-
nistradores nomeados pela Monarquia17, procuram racionalizar a exploração
colonial.

16 DINIZ, Ferreira, A Missão Civilizadora…., 1926, pp. 102-103.


17 O projecto colonial monárquico, que contava com o apoio da Sociedade de Geografia de Lisboa (SGL) e dos “seus” intelectuais
como Luciano Cordeiro, tinha como objectivo uma «educação científica colonial», adoptando as orientações então seguidas
pelas demais potências coloniais europeias. Convém salientar que Portugal, país cuja experiência colonial era apresentada como
multi-centenária, se encontrava sempre em atraso relativamente à organização da modernidade colonial. A intervenção de ho-
mens de diferentes áreas do saber, como o geógrafo e diplomata Jayme Batalha Reis, procurava, de maneira decidida, fazer apa-
recer um «colonialismo científico» português: formação, ensino, investigação constituíam assim as preocupações principais dos
dirigentes da SGL cada vez mais associada ao Estado.

314
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

O projecto de um recurso sistemático à antropologia, meio de conheci-


mento e, por isso, meio de gestão política, só pode, por essas razões, aparecer
após 1910. Sendo certo que Henrique de Paiva Couceiro – o último governa-
dor-geral nomeado pela Monarquia – se mostrou um militar atento aos valores
antropológicos, no texto que consagrou às populações do Sul de Angola, não
foi capaz de transformar o conhecimento antropológico num dos vectores da
organização da administração colonial portuguesa18. O abalo provocado pela
mudança de regime veio favorecer o discurso modernista, que queria utilizar
o conhecimento antropológico como um dos suportes de uma administração
colonial menos tradicionalista, quer dizer, menos dependente dos fantasmas
do tráfico negreiro e da escravatura.
A instauração deste novo processo só podia ser muito lenta: era obrigada
a sacudir crenças e práticas da maior parte dos colonos, homens que apenas
acreditavam no pragmatismo das acções quotidianas, dificultando qualquer
tentativa de organização do discurso científico. Para mais, a administração
colonial dividia-se em dois ramos, o civil e o militar, cujas intervenções nem
sempre coincidiam. Se os civis queriam lucros, o que os levava a celebrar acor-
dos com os Africanos, valorizando o sentido da negociação19, os militares
queriam também promoções e condecorações e, eventualmente, glória. Não
surpreende, por isso, que as informações antropológicas tenham sido redu-
zidas ao mínimo possível, os africanos não passando de meros objectos de
dominação.
A dimensão real das relações entre os colonos portugueses e as autoridades
africanas é aceite como um mal menor para permitir a organização entre as
duas comunidades, sem por isso renunciar levar a cabo um grande número de
operações destinadas a subverter o que ainda se mantinha, no que diz respeito
à hegemonia africana.
Se não podemos dizer que se tratava de uma forma de indirect rule, tal como

18 COUCEIRO, H. de Paiva, Relatório da viagem entre o Bailundo e as terras do Mucusso, Lisboa, Imprensa Nacional, 1892.
19 Ver Alfredo MARGARIDO, “ Algumas formas da hegemonia africana nas relações com os Portugueses”, I Reunião Internacional
de História de África, Lisboa, IICT, 1989, pp.383-406.

315
Isabel Castro Henriques

esta se generalizou em algumas colónias britânicas, incluindo africanas, a par-


tir dos anos 1920, devemos, apesar disso, reter esta espécie de antropologia
pragmática instalada não a partir de um discurso de carácter científico, mas
sim das necessidades imediatas dos agentes portugueses, sobretudo comer-
ciantes, mas também funcionários da administração.
Estamos perante uma combinatória singular, cuja organização não é levada
em conta pelos raros antropólogos portugueses. Todavia, esta situação terá de
modificar-se sob a pressão dos modelos internacionais. Modificação pouco
importante, mas significativa, que intervém, quando a administração das co-
lónias é forçada a dar-se conta do passo em frente efectuado pela investigação
científica das outras potências coloniais. Face a esta situação, mobilizam-se as
energias para se procurar colar ao pelotão do conhecimento, o que determi-
na a organização de inquéritos, destinados a fornecer as informações que, em
princípio, deviam servir para alimentar os conhecimentos nacional e interna-
cional, sem esquecer os interesses sempre legítimos da administração.
É em Angola, a mais rica e a mais pretendida e, por isso, a mais protegida
das colónias portuguesas, que se concretizam as mudanças introduzidas neste
domínio específico. Estas operações são tanto mais necessárias quanto a coló-
nia apresenta também uma complexidade e uma diversidade antropológicas
que devem ser esclarecidas, para permitir uma gestão eficaz. É necessário re-
duzir os conflitos, única maneira de aumentar as produções e os lucros, tanto
os do Estado como os dos colonos.
As primeiras medidas destinadas a enquadrar o processo de conhecimen-
to das populações para racionalizar o trabalho da administração colonial fo-
ram tomadas em pleno período republicano, em 1911, quando o governo era
assegurado pelo secretário-geral, Manuel Moreira da Fonseca. A legislação
multiplicou as decisões destinadas a garantir a organização de uma autêntica
investigação científica, devendo salientar-se a lei nº 832, de 5 de Agosto de
1911, que aprovava o Regulamento das Circunscrições Civis da Província de
Angola, convidando os funcionários da administração a prestar atenção aos
“costumes dos indígenas (…) desde que não ofendessem os direitos de sobe-

316
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

rania (dos portugueses) ou não repugnassem aos princípios da humanidade”,


bem como os decretos nº 215, de 23 de Fevereiro de 1912, dando instruções
às autoridades administrativas, convidando-as a responder a um inquérito et-
nográfico a partir das informações fornecidas pelos “chefes-indígenas, os mis-
sionários, o pessoal subordinado e as pessoas ilustradas da região”, e nº 266, de
5 de Março de 1912, que decidia a criação do Museu Etnográfico de Angola e
Congo, destinado a permitir que o investigador, o colono acabado de chegar,
o comerciante, o funcionário colonial pudessem conhecer “o tipo cultural das
(…) populações semicivilizadas, cujos traços eram considerados tão curiosos
e ainda tão mal estudados”20.
Em todo este processo, o secretário-geral de Angola pôde contar com a
colaboração de Alberto Osório de Castro, que pertencia ao quadro da magis-
tratura das colónias e era, na época, membro do Institut Ethnographique In-
ternational de Paris. De facto, os dois funcionários parecem muito inspirados
pelos esforços teóricos e práticos de Van Gennep, citado no decreto nº 266,
como sendo “o sábio director da Revue d’Ethnographie, uma das leituras destes
intelectuais que apostam num conhecimento extenso da cultura dos outros,
sem por isso renunciarem, de maneira alguma, à convicção da superioridade
racial dos brancos.
Retenha-se a importância desta tentativa, não devendo contudo esquecer-
-se o carácter restritivo que põe em evidência a maneira como alguns intelec-
tuais portugueses, muito bem informados das escolhas europeias, pensam os
africanos fora da civilização, pois que as suas práticas culturais só são consi-
deradas como meras curiosidades. Esta amputação da substância dos valores
africanos deixa entrever os limites culturais e políticos do recurso à antropo-
logia. Seria, por isso, excessivo concluir pela existência de uma modificação
tão inesperada quando radical da visão portuguesa, o que não nos impede de
reconhecer, estarmos perante uma situação que teria podido retomar os laços
com as técnicas e os projectos elaborados por Henrique de Carvalho.

20 PEREIRA, Rui, “ Antropologia aplicada na política colonial portuguesa do Estado Novo”, Revista Internacional de Estudos Africa-
nos, nº 4-5, Lisboa, Janeiro-Dezembro de 1986, p.201.

317
Isabel Castro Henriques

O governo de Norton de Mattos reforça esta orientação: em 17 de Abril de


1913, cria o Serviço dos Negócios Indígenas e de Reconhecimento e Explora-
ção Científicos, que dará lugar, alguns meses mais tarde, ao Secretariado dos
Negócios Indígenas.
Foi também sob a administração de Norton de Mattos que Ferreira Diniz,
que tinha a seu cargo a responsabilidade destes Negócios Indígenas, organizou
uma espécie de inquérito de carácter nacional, devendo os questionários etno-
gráficos ser preenchidos pelos funcionários da administração colonial. Os resul-
tados deste inquérito foram reunidos, em 1918, num espesso volume, intitulado
Populações Indígenas de Angola, que não encontrou o mínimo eco na comunidade
científica, embora continue a ser de uma utilidade indiscutível. Apesar dos pro-
jectos do autor, que queria contribuir para o “estudo das populações indígenas
nas partes que mais devem interessar ao seu governo e administração, isto é, do
ponto de vista sociológico, habilitando o governo com os elementos indispensá-
veis para a elaboração da legislação especial para indígenas”21, estas informações
nunca foram utilizadas pelos responsáveis pela administração de Angola.
Digamos as coisas de outra maneira: este inquérito, que procura, uma vez
mais, pôr a antropologia ao serviço da administração, reduz-se a mais um
elemento na longa litania das operações vãs da mesma natureza, destinada a
responder às práticas administrativas das potências coloniais, que parecem
apoiar-se em pesquisas antropológicas assaz estruturadas, em particular nas
Áfricas anglófona e germanófila.
Não podemos, no entanto, dizer, perante este trabalho, que estamos diante
de uma “nova consciência etnográfica”, como de resto salienta o próprio Nor-
ton de Mattos, ao evocar as condições em que se processou o seu regresso à
administração de Angola, em 1921: “tudo o que eu tinha construído …. fora
destruído”22.
Nestas condições, devemos assinalar que, se grupos restritos, pertencendo
à elite cultural portuguesa, são levados a encarar a possibilidade de concentrar

21 DINIZ, Ferreira, Populações Indígenas de Angola, Coimbra, Imprensa da Universidade, 1918, p. VI.
22 MATTOS, Norton de, Memórias…., vol. III, p. 235.

318
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

uma informação antropológica abundante, destinada, em princípio, a ajudar


a gestão científica das populações, na prática, é a mentalidade do pequeno
funcionário e do pequeno colono que dominam, para impor as soluções que
lhes convêm, centradas em torno de dois eixos: a recuperação das terras, não
só nas regiões agrícolas, mas também nas da pastorícia, e o recrutamento da
força de trabalho, tão numerosa e gratuita quanto possível, sem se deixar en-
travar por considerações humanistas. Tal situação autorizou, ou até impôs, a
continuação do trabalho forçado, que a maior parte dos observadores neutros
não hesita em classificar como a forma moderna da escravatura portuguesa .
O fracasso das tentativas de conhecimento propostas por homens escla-
recidos é o resultado do tipo de colonização escolhido pelos portugueses,
frequentemente criticado por alguns responsáveis políticos da época, que se
opunham a que as colónias se transformassem em “vazadoiro do que há de
pior, de menos socialmente útil na sua população …da Metrópole”23.
É de resto indispensável salientar as mudanças verificadas na política de
Norton de Mattos, durante o seu segundo período de governação de Angola
(1921-1923): a sua preocupação central já não procura assegurar o conheci-
mento das populações, nem sequer a formação das comissões de inquérito
etnográficas, mas agir de maneira a fazer aparecer as condições necessárias ao
desenvolvimento de uma colonização europeia na colónia, como salienta o
decreto nº 122, de 28 de Março de 192224.
É já dentro deste espírito, que organiza, em 1923, o Congresso de Medi-
cina Tropical da África Ocidental, com os objectivos de incentivar o estudo,
“a troca de ideias e a resolução de assuntos que interessam à saúde e à higiene
dos povoamentos europeus e indígenas da África Ocidental”: não se trata da
saúde dos homens, mas de distinguir cuidadosamente, mesmo que em termos
tecnicamente médicos, o que diz respeito ao branco e o que se refere ao negro.
Sob a pressão das crises que se sucedem no fim da Primeira Guerra Mun-
dial, os ventos políticos mudam em Portugal, o que obriga Norton de Mattos

23 CAMACHO, Brito, A Caminho d’África, Lisboa, Guimarães Ed., 1923, p.64.


24 PEREIRA, Rui, “ Antropologia….”, p. 204.

319
Isabel Castro Henriques

a abandonar o seu cargo, na medida em que não pode levar a cabo os seus
projectos coloniais. O golpe de Estado de 28 de Maio de 1926, que provocou
uma revisão dramática do sistema político português, acaba por transformar
a ditadura militar em Estado Novo. Esta mudança das perspectivas políticas
portuguesas não podia deixar de provocar uma revisão do sistema da coloni-
zação, embora ele não seja muito importante no que respeita às práticas colo-
niais: é um processo relativamente indiferente à cor política dos homens que
governam25.

Estratégias coloniais :
a “portugalização” dos espaços e dos homens africanos

“À valorização das colónias, devemos dar o nome de valorização da nação; não há


política colonial, há apenas política nacional” (Norton de Mattos).

A “branquização” das terras africanas

Amputados do Brasil em 1822, os Portugueses instalaram-se em África,


não sem conhecer enormes hesitações: até aos fins do século XIX e mesmo
mais tarde, uma fracção da elite intelectual e política portuguesa, apoiada por
alguns intelectuais cabo-verdianos, não hesitou em propor a venda das coló-
nias, que pareciam então uma canga que impedia Portugal de organizar uma
política europeia saudável e estável.
Obrigados a fazer face às múltiplas agressões europeias, inspiradas na sua
maioria por um apetite colonial homólogo àquele que também os caracteriza-
va, os Portugueses tiveram que proceder à revisão histórica das suas conquis-
tas e dos seus direitos em África. Durante este período final do século XIX fo-

25 Os militares que haviam organizado o golpe de Estado de 1926 tinham na sua grande maioria uma considerável folha de serviços
em África. Se o general Alves Roçadas era um “ herói” da ocupação do sul de Angola, o general Gomes da Costa participara nas
operações de “pacificação” do sul de Moçambique.

320
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

ram elaborados ou consolidados alguns mitos destinados a explicar e a justifi-


car os direitos de Portugal, que teria sido, em todos os lugares, o primeiro a dar
conta das terras, dos homens, das línguas e das produções. Mas, a necessidade
de rever a sua relação com África, levou Portugal a organizar, à semelhança das
outras potências europeias, um novo sistema de dominação colonial.
Como afirmava, em 1923, Norton de Mattos, “em Portugal não está so-
mente a dar-se o «fenómeno da obscura reconstituição» de que duvidava
ainda Oliveira Martins. Aqueles que têm podido palpar a vida nacional dos
últimos trinta anos não somente a Metrópole mas, sobretudo nas colónias,
fortemente sentem que alguma coisa de maior que uma reconstituição se está
produzindo. Mais uma vez somos chamados a intervir na civilização mundial,
a marcar num grande continente a nossa acção de povo criador de nações”26.
Esta “intervenção” viria a prolongar-se até 1926, num quadro de incerte-
zas políticas nacionais e de fragilidades e de imprecisões da economia portu-
guesa, de passos para a frente e de recuos, que no entanto, não impediram a
organização das “campanhas de pacificação”27. Também a elaboração de legis-
lação colonial destinada a balizar os territórios28, a estruturar a administração
colonial, a assegurar o controle dos africanos, regulamentando o trabalho, o
imposto, a expropriação das terras, marcou a definição e a aplicação das polí-
ticas coloniais republicanas.
Apesar da grande instabilidade política que caracteriza a Primeira Repúbli-
ca e a situação económica sempre a roçar a bancarrota, não se pode ignorar a
importância das colónias na definição das políticas nacionais: uma das razões
fundamentais justificativas da entrada do país na Primeira Grande Guerra foi
precisamente a defesa do império colonial, ameaçado pela cobiça britânica e ale-
mã. Os governos republicanos elaboram, logo nos primeiros anos da sua gover-

26 MATTOS, Norton de, A Missão Colonizadora…., 1923, pp.5-6.


27 A resistência africana à ocupação obrigou as autoridades portuguesas a consagrar homens e capitais à tarefas das «campanhas de
pacificação». Estas campanhas foram mais demoradas do que se previra e prolongaram-se até aos anos 1920. De resto, a própria
necessidade de ocupar pela força e de proceder à «pacificação» põe em evidência a maneira como os africanos podiam controlar
os seus espaços, reduzindo os portugueses ao papel de intrusos indesejáveis e indesejados.
28 Balizar os territórios é uma operação que visa mais os europeus de que os africanos, por mais paradoxal que pareça: não convém
esquecer, por exemplo, a maneira como os alemães não hesitam em apostar na reconstituição da unidade do reino Ovambo,
partilhado pelas fronteiras políticas, resultando das ocupações «efectivas» levadas a cabo após a Conferência de Berlim.

321
Isabel Castro Henriques

nação, uma legislação colonial descentralizadora com o objectivo de assegurar


um regime de ampla autonomia administrativa e financeira com o sistema dos
altos-comissariados, que, em particular em Angola com Norton de Mattos, mas
também em Moçambique com Brito Camacho, se distinguiu pelas iniciativas
de desenvolvimento infra-estrutural e pelas tentativas de colonização efectiva29.
Começando por criar o Ministério das Colónias (1911), que veio libertar
os territórios ultramarinos da tutela do Ministério da Marinha, os responsá-
veis republicanos consagram esforços à construção de um aparelho legislativo
capaz de enquadrar o seu projecto colonial. Propostas de Leis Orgânicas da
Administração Civil e da Administração Financeira das Províncias Ultramari-
nas são apresentadas ao Congresso da República pelo então ministro das Co-
lónias, Almeida Ribeiro, processo que culmina, em 1914, com a publicação da
Lei Orgânica das Províncias Ultramarinas (expressão destinada a substituir
o morfema colónias) que consagra a emigração branca como vertente funda-
mental da colonização, ao mesmo tempo que acompanha a revisão do estatu-
to dos africanos nas novas sociedades coloniais. Este estatuto revela-se tanto
mais importante quanto a ideologia colonial assentava no princípio de que
os Europeus não possuíam as condições físicas para se entregar, em África,
ao trabalho manual, nomeadamente agrícola, razão pela qual, todas as tarefas
relacionadas com a produção deviam ser confiadas aos Africanos.
A Primeira República procede em primeiro lugar à consolidação das con-
quistas coloniais iniciadas sobretudo na última década de Oitocentos pela
Monarquia. Se Portugal organizou dezenas de expedições militares em África
desde 1890, as mais significativas pelo número de homens mobilizados, pelas
estratégias desenvolvidas, pela violência sobre as populações e pelos resulta-
dos efectivos conseguidos verificam-se sobretudo a partir de 1914.
A primeira operação colonizadora consiste em “pacificar” os territórios
aniquilando as dinâmicas africanas destinadas a conter a violência da presença

29 Este sistema de autonomia para as grandes colónias africanas – Angola e Moçambique - desencadeou acesa polémica, em torno
sobretudo da figura e acção de Norton de Matos, polémica que continuava ainda em meados dos anos 20, quando o golpe de 28
Maio de 1926 pôs termo à experiência republicana.

322
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

portuguesa, acompanhada de representações cartográficas definindo as fron-


teiras territoriais, destinadas a promover um conhecimento indispensável ao
projecto de dominação30, à cobiça das potências europeias e à ocupação dos
espaços através dos marcadores civilizacionais ocidentais.
Os espaços coloniais sofrem um processo de “branquização”, revelador da
contínua discrepância entre as ambições humanistas e globalizantes dos Por-
tugueses e a mesquinhez das suas realizações, procurando destruir a ordem –
considerada desordem – territorial africana, graças à implantação de sistemas
de organização e de gestão territoriais de matriz europeia31.
As formas de ocupação do espaço são múltiplas e funcionam em rede, os
portugueses procedendo ao desmantelamento dos territórios e dos caminhos
africanos, eliminando muitos dos seus marcadores simbólicos e funcionais e
instalando uma outra organização do espaço, modernizante e fiel aos princí-
pios republicanos.
À “branquização” técnico-simbólica do território é necessário acrescentar
outras duas vertentes de uma “portugalização” das colónias patente na políti-
ca colonial republicana: a emigração de colonos, mas também a injecção dos
marcadores civilizacionais europeus no quotidiano dos africanos retirando-
-lhes qualquer forma de autonomia: comer, vestir, dormir, falar, rezar, traba-
lhar, organizar a casa segundo os modelos portugueses.
“Fixar nas terras de África que nos pertencem, a nossa raça, com a maior
intensidade, para que as suas qualidades de perseverança, de resistência ao
desânimo e de coragem indomável que em nós sempre produz o infortúnio,
lhes dêem um cunho bem portuguez; agarrarmo-nos cada vez mais aos nossos

30 Os mapas mais provocadores são efectivamente os de Ferreira Diniz elaborados em 1916 – o seu verdadeiro autor continua por
identificar – e publicados em 1918. Os africanos são acima de tudo considerados em função dos caracteres somáticos, acaso
reforçados pelas marcas corporais, pelos sistemas culturais “primitivos”, mas sobretudo pelas línguas. O mapa serve assim para
“arrumar” as populações indígenas; o “desordenamento” em que se encontravam é substituído pela “ordem” do colonizador. Tal
foi a tarefa da “etnografização” cartográfica de Angola: a criação de “povos” apresentados como unidades culturais autónomas,
a delimitação dos seus territórios, a representação dos seus espaços linguísticos. Se a “geografização” do território aparece tanto
no plano simbólico como no pragmático como uma das operações essenciais da colonização, as representações “etnográfica” e
“linguística” de Angola fornecem os conteúdos populacionais angolanos, estabelecendo a sua distribuição no território colonial
de acordo com normas concebidas pelos portugueses. Se os mapas instilam rigidez conceptual e pragmática falsa, permitem fixar
o território colonial moderno, delimitando-o, organizando-o, e criando as condições para levar a cabo os projectos e as políticas
de colonização.
31 Ver HENRIQUES, Isabel Castro, Território e Identidade.A construção da Angola Colonial – 1872-1926, Lisboa, CHUL, 2004.

323
Isabel Castro Henriques

processos administrativos, deixando moldes estranhos para marcarmos bem a


nossa alta capacidade colonizadora”32.
Esta estratégia definida por Norton de Mattos, engloba um amplo conjun-
to de intervenções portuguesas junto das populações africanas, muitas vezes
dinamizadas pelas missões, que além de evangelizar devem também civilizar,
ou seja “branquizar”, revelando-se estruturantes na organização e controle do
novo território, na criação da sociedade colonial. Trata-se de imposições per-
versas, já que são também acompanhadas pelas formas da ridicularização dos
africanos que aderem às propostas portuguesas.
A sociedade colonial é, pois, um espaço marcado pelo aumento da popula-
ção branca. Instalados nas cidades, nas vilas e nas povoações, nos postos e fei-
torias comerciais, nas terras mais produtivas, onde se assiste também à criação
de aldeias e colonatos, exclusivamente destinados às famílias portuguesas, que
aí se instalavam desempenhavam diversas actividades económicas, garantindo
uma dupla “branquização” do território, a urbana e a rural, expulsando os Afri-
canos das suas casas e das suas terras agrícolas, para que pudesse ser levada a
cabo a imensa tarefa da colonização33.
Neste território “pacificado”, a política colonial portuguesa centra-se na
questão da “colonização étnica”, destinada a reforçar a presença dos Portugue-
ses em África, em quantidade suficiente para deslocar o eixo social. Era neces-
sário que, em Angola, este espaço onde a vida era, no século XIX, “uma luta
contínua com a doença e a morte” se transformasse num território “portu-
galizado”, povoado por uma maioria branca, consciente da sua superioridade
civilizacional.
Reconhecendo as fracas capacidades dos colonos portugueses “ aldeões, na
sua grande maioria analfabetos e a quem teremos de …. dispensar a instrução

32 MATTOS, Norton de, A Missão Colonizadora…., 1923, pp. 9-10.


33 O elemento certamente mais perturbador, mas também o mais revelador, reside na criação dos colonatos, que dependem de uma
ideologia especificamente portuguesa, que foi, do ponto de vista eugenista, exposta pelo antigo alto-comissário da República,
Vicente Ferreira: os portugueses deviam evitar todo e qualquer compromisso com os africanos, mesmo se estes participam no
desbravamento do terreno, tal como na construção das casas, destinadas aos colonos recrutados em Portugal. Mas estes últimos
devem assegurar a sua actividade agrícola sem poder recorrer ao trabalho africano. Esta operação é destinada a recriar os colonos
agricultores, que assegurarão por si só a produção dos produtos agrícolas. Desta maneira, a branquização estaria definitivamente
assegurada. Não podemos deixar de ver nesta operação ideológica a marca dos Boers, que gerou por sua vez o apartheid.

324
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

literária rudimentar das primeiras letras, que não aproveitarão de qualquer dos
cursos da organização do ensino colonial estabelecida aqui na colónia (Ango-
la)…(pois) só a força das circunstâncias…os convencerá da necessidade de,
pelo menos, aprender a ler e escrever, e as quatro operações com o sistema de
pesos e medidas”34, os gestores do aparelho colonial utilizam o princípio da
missão civilizadora para criar nestes colonos, qualquer que fosse a sua origem
social ou a sua competência técnica, a ideia de uma superioridade natural em
relação aos africanos. Tal superioridade é revelada, aliás, na maneira como os
Europeus banalizam o tratamento por “tu”, alargando-o a todos os “indígenas”,
reforçando assim a dominação e a humilhação35.
O quotidiano das comunidades não pode deixar de ser influenciado por
este quadro ideológico, na medida em que o colono parte do princípio de que
a sua superioridade é sempre naturalmente reconhecida pelos indígenas que,
desta maneira, perdem a sua condição de proprietários do seu próprio terri-
tório, para serem instalados num espaço mítico, que depende inteira e exclu-
sivamente das decisões das autoridades portuguesas, entre as quais se deve
contar a decisão do colono, que é também o colonizador. As operações de
dominação criam uma sociedade onde as diferenças geram as hierarquias so-
máticas, ou raciais, as quais, por sua vez, decidem a organização de hierarquias
socioprofissionais.
O crescimento demográfico dos Europeus implicou, no entanto, algumas
reflexões destinadas a encontrar a via legislativa para controlar as relações com
os Africanos, e consequentemente, o aparecimento progressivo dos mestiços.
Ferreira Diniz propõe que se estimule a emigração de mulheres brancas, que
devia permitir reduzir, ou até mesmo eliminar, a produção de mulatos, uma
das chagas denunciadas directa ou implicitamente em numerosos textos do
período que analisamos. Afirma ele em 1918, que “não convém deixar de fri-
sar quanto pernicioso tem sido o cruzamento da raça branca com a negra, e
quanta vantagem havia em promulgar medidas que tivessem por fim dificultar

34 DINIZ, Ferreira, A Missão Civilizadora……, 1926, p.105.


35 Mais tarde, Jorge Dias procede à inventariação e à análise destes comportamentos no seu famoso Relatório de 1957.

325
Isabel Castro Henriques

semelhantes ligações. Destas ligações não têm resultado senão o definhamen-


to da raça negra, como bem contestado está nos indígenas das tribus que po-
voam as regiões de mais intensa ocupação (branca) e que se deram maiores
cruzamentos. Estas populações são de constituição raquítica e de uma indo-
lência doentia, que contrasta com a robustez das populações circunvizinhas
(…). Nestes termos, torna-se urgente proibir (…) as ligações legítimas dos
indivíduos das duas raças”36.
Não podemos esquivar-nos a fazer um curto comentário à singularidade
teórica deste texto, que não foi traduzido em medidas administrativas, pois
se vê mal como é que Norton de Mattos podia então subscrever um projecto
desta natureza. Mas descentra de maneira assaz hábil a análise tradicional: não
são os brancos que se devem considerar como as vítimas da mestiçagem, pois
os resultados negativos que esta acarreta são inteiramente suportados pelos
negros, cuja fraqueza congenital é desvendada e reforçada por este tipo de cru-
zamento. Para assegurar a manutenção da robustez dos Africanos é necessário
que os Europeus sejam impedidos de toda e qualquer relação genésica com as
mulheres negras. Quão longe se estava então do sonho luso-tropicalista!
Estas inquietações genésicas só podem explicar-se na medida em que o
projecto de uma Angola exclusivamente portuguesa, inteiramente branca,
percorre incansavelmente o sistema colonial português. Em 1923, Brito Ca-
macho, médico de formação, sublinha o carácter eminentemente “português”
de Angola37, quando aí passou a caminho de Moçambique, onde ia ocupar o
elevado cargo de Alto-Comissário da República. Uma disjunção subtil apare-
ce no interior da falsa unidade colonial para fazer de Angola o país português
de África, ao passo que Moçambique estaria já em via de cair numa situação
ambígua, em todo o caso menos portuguesa.

36 DINIZ, Ferreira, Populações Indígenas…., 1918, p.593.


37 CAMACHO, Brito, A Caminho…., 1923, p.65.

326
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

A assimilação, mecanismo estruturante da organização da sociedade colonial

Este processo de “branquização” colonial que caracteriza as sociedades co-


loniais, cuja organização, embora marcada pela diversidade dos espaços e dos
territórios, dá conteúdo e consistência ao novo território, hierarquiza as popu-
lações em grupos distintos que definem o papel social de cada um e procedem
à sua integração na nova realidade. Tal organização das sociedades novas as-
senta em ideologias que racial e culturalmente impõem e justificam tal hierar-
quização dos homens rotulando-os, atribuindo-lhes ou negando-lhes funções,
lugares, estatutos. Colonos (os Europeus), assimilados e indígenas constituem
assim os grupos sociais que estruturam as sociedades coloniais marcadas pelo
conflito contínuo e violento entre o colonizado e o colonizador.
Se, na divisão racional das tarefas, cabe aos colonos dirigir as diferentes
vertentes da exploração colonial, assimilados e indígenas têm naturalmente
estatutos diferentes em função da sua maior ou menor ou nula adesão aos va-
lores e às práticas dos portugueses.
As regras jurídicas adoptados pelos governos republicanos – tanto os da
primeira como depois os do Estado Novo – criaram uma fortíssima diferença
entre as colónias: há àquelas onde teoricamente os naturais são todos cidadãos
portugueses, que estão naturalmente diferenciadas daquelas onde há indígenas
e cidadãos, mas parte dos quais vive numa situação bastante híbrida, porque são
cidadãos-assimilados. Esta partilha dos estatutos apoia-se, embora o não diga, em
concepções históricas e geo-físicas: todas as colónias instaladas no continente
(Guiné, Angola e Moçambique), contêm indígenas, ao passo que os arquipélagos
são caracterizados pela generalização da situação de cidadania38. Esta situação de
cidadão traz inúmeros benefícios: não só não pagam imposto, como indígenas,
como não podem ser presos de maneira arbitrária pelas autoridades administra-
tivas, escapando também, por isso às duras condições do trabalho obrigatório.

38 Convém talvez acrescentar que a emigração caboverdiana se multiplicou em todas as colónias portuguesas, embora de maneira
desigual: em São Tomé e Príncipe era principalmente constituída por trabalhadores contratados – os serviçais –, sendo a situação
menos clara na Guiné, em Angola e também em Moçambique, onde os caboverdianos-trabalhadores eram uma minoria: nestas
colónias encontramos sobretudo caboverdianos, quadros médios e superiores, que integravam o aparelho administrativo colonial.

327
Isabel Castro Henriques

Quanto aos outros Africanos, divididos em assimilados e indígenas, encon-


tram-se em situações sociais teoricamente opostas: os primeiros, aprovados
na sua vontade de portugalização, gozavam de um estatuto que os aproximava
dos colonos ao convertê-los em quase cidadãos; os segundos, mantendo-se na
esfera do indigenato, estavam sujeitos a regras, leis e deveres que lhes podiam
permitir, a longo prazo, sair da sua situação de obscurantismo. Norton de Mat-
tos, que defende ou julga defender uma perspectiva política mais filantrópica
em relação aos indígenas, embora não deixe de estar marcado profundamente
pela ideia da supremacia da raça branca e da civilização europeia/portuguesa,
incentivou a “educação e a instrução” dos Africanos, sublinhando que “ o indí-
gena só renasceria para a nova vida…quando a sua língua fosse o português e
a sua instrução crescesse paralelamente à dos nossos filhos (38). Tal instrução
não podia, no entanto, separar-se de um ensino profissional, tarefas a serem
desempenhadas pelas escolas das missões, conscientes do objectivo de “civili-
zar e levantar cada vez mais das trevas das civilizações primitivas os povos que
temos sob a nossa humanitária e dignificadora tutela”39.
O então Alto-Comissário de Angola preocupa-se em estabelecer uma
hierarquia africana, organizando a população indígena em três grupos: “….a
grande massa dos pretos, quasi completamente fechados pelas trevas de ci-
vilizações primitivas”; “um número limitado de pretos e de mestiços, com
uma rudimentar instrução, que apenas servia para os tirar da sua civilização,
sem os introduzir na nossa, e para formar homens sem carácter”; “um gru-
po cada vez maior, também de pretos e de mestiços, digno de toda a nossa
consideração e elevando-se, graças quasi ao seu esforço e vencendo mal en-
tendidas oposições, ao nível da nossa civilização”. Esta leitura de Norton de
Mattos reforça o papel preponderante que atribui aos valores portugueses
na “instrução literária”, “na aprendizagem de artes e ofícios” e na formação
dos Africanos, único maneira de evitar “essa população degradante de ho-
mens sem carácter”. Considera que não se deviam “arrancar os indígenas

39 MATTOS, Norton de, Memórias…, 1944, III, p.301.

328
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

rapidamente do seu modo de viver”, “dos seus usos e costumes”, mas sim
“fazê-los evolucionar….para uma civilização mais perfeita” pois a “instrução
meramente literária e o proselitismo, isolados e como fins únicos a atingir”,
produziram sempre maus resultados40.
A assimilação sustentada aparece como o meio mais adequado à “branqui-
zação” dos “indígenas”, exigindo regras duras, provas difíceis e um tempo de
consolidação de forma a eliminar todas as marcas e as recaídas da selvajaria
dos Africanos. Os Africanos estavam assim sujeitos a um controlo muito estri-
to, exercido pelos colonos e pelas autoridades. A tendência dos colonos e dos
funcionários da administração era considerar todos os Africanos como indí-
genas, não hesitando as autoridades em detê-los. Ou seja, qualquer Africano
de pele escura podia ser considerado indígena, sobretudo se não trouxesse
consigo o bilhete de identidade, provando de maneira oficial e visível que dei-
xara de ser indígena para passar à categoria de assimilado ou de cidadão.
A adesão aos valores europeus podia medir-se através das regras impostas
aos indígenas que pretendiam transferir-se para o grupo de assimilados. Com
efeito, esta operação implicava o fornecimento de provas que permitiam ve-
rificar uma ‘branquização’, não só dos caracteres somáticos, mas das práticas
culturais. O vestuário, o mobiliário, a alimentação, as práticas habitacionais
são por isso severamente analisados.
Era dentro deste espírito que os funcionários encarregados de definir a
europeização analisavam as práticas alimentares e os próprios utensílios utili-
zados na cozinha, assim como proibiam e denunciavam o recurso às esteiras,
que em muitos grupos angolanos eram utilizadas como camas (baratas), im-
pondo-se o uso de camas e de outras peças de mobiliário, que permitissem dar
conta das novas regras do comportamento.
O vestuário aparece como um dos grandes marcadores civilizacionais,
pondo em evidência o velho debate entre os nus e os vestidos ou, mais cor-
rectamente, entre os pouco vestidos e os vestidos que já no século XVI pro-

40 MATOS, Norton de, A Missão Colonizadora…, 1923, pp.14-15.

329
Isabel Castro Henriques

vocara alguns afrontamentos entre Africanos e Portugueses. Regista-se, no


entanto, um paradoxo, sobretudo em Angola e em Moçambique, que levava
os Portugueses a troçar daqueles que, tendo aprendido a ler e a escrever, mais
empenhadamente procuravam adoptar as regras europeias41, designando-os
insultuosamente de «calcinhas».
Compreende-se a perplexidade dos Africanos que, por um lado, são obriga-
dos a renunciar aos seus comportamentos culturais, mas que, pelo outro, são vio-
lentamente maltratados por adoptarem os usos e costumes dos colonizadores.
Se bem que a “branquização” mais profunda residisse na língua. A lín-
gua aparece como elemento definitivo da assimilação. Os assimilados de-
viam provar ser capazes de falar português, tal como deviam ter frequen-
tado a escola primária portuguesa. As línguas ditas indígenas, designadas
também de dialectos, eram autorizadas para uso local e particular, de
portas a dentro, mas nos espaços públicos, nas actividades profissionais,
os Africanos deviam não só compreender o português, mas utilizá-lo de
maneira constante e respeitando as normas de sintaxe lusa. O assimilado
demonstra a renúncia ao estatuto de indígena adoptando a língua portu-
guesa, lida, escrita e falada, e abandonando definitivamente, pelo menos
em teoria, a sua língua materna42.
Como já se verificara no teatro de Gil Vicente, no século XVI, bastava que
um Africano falasse para se denunciar, revelando a sua africanidade intrínseca,
o que significava a sua inferioridade face aos Portugueses, impossível de elimi-
nar. A colonização e o colonialismo manifestam a sua longa duração através de
situações desta natureza: se o “preto” da pena de Gil Vicente, Frágua de amor,
era incapaz de falar o português como os portugueses, tornando audível a sua
impotência linguística, assim também os assimilados do século XX se revelam

41 MATOS, Norton de, Memórias…, 1944, III, p.302.


42 Tal situação verificara-se muito cedo, em Angola, com os ambaquistas (de M’Baka) que tinham aprendido a ler e a escrever no
mato, quer dizer, fora dos circuitos escolares urbanos, e que não hesitavam em recorrer a uma fraseologia fantasista. Estes amba-
quistas emergem relativamente cedo no tecido cultural angolano, e provêm do ensino dos Jesuítas: a leitura, a escrita, a aritmética
faziam parte desta aprendizagem. Este saber foi transmitido, quando os Jesuítas abandonaram a região, dentro do próprio grupo,
o que permitiu que estes homens fossem organizadores do comércio, tal como, mais tarde, utilizaram a escrita para denunciar os
abusos dos chefes brancos, provocando a resposta violenta que estávamos no direito de esperar. O termo é, em português, muito
insultuoso, mas a sua função entre os angolanos é de outra natureza.

330
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

incapazes de falar a língua portuguesa sem deformações fonéticas e atropelos


sintácticos e semânticos. Tal parece ser uma das lições da continuidade do
espírito colonial português, que fornece a articulação interna à própria teoria
da assimilação.
Importada das escolhas culturais de outros colonizadores, a assimilação
pode ser interpretada como a fronteira que, mais do que une, separa defini-
tivamente os Europeus, ou colonizadores, dos Africanos ou colonizados. A
verdade, porém, é que os Africanos compreenderam muito bem o alcance
desta medida, tendo procurado obter os “bilhetes de identidade” que os clas-
sificavam entre os cidadãos, libertando-os da violência exercida pelos colonos
em geral, e mais particularmente por quantos precisavam de força de trabalho
barata e flexível. As autoridades administrativas mobilizaram por isso a sua
máxima vontade para travar a multiplicação dos assimilados.
Embora se deva pôr em evidência a função que cabe aos assimilados
na rede dos complexos comportamentos dos Europeus: tanto na língua,
como no vestuário, como na alimentação, os colonizados fornecem a prova
da sua impossibilidade de alcançar o nível social dos colonizadores. Se, no
plano do conhecimento e das técnicas, existia já essa certeza decorrente
da insuficiência da rede escolar, era ela assim reforçada na zona dos com-
portamentos. Verifica-se assim que a assimilação é, no plano estritamente
cultural, uma operação destinada a eliminar os valores culturais africanos,
substituídos pelos valores europeus. A assimilação é, por isso, uma desafri-
canização, sobretudo lisível nas cidades, esse grandioso objecto da civiliza-
ção, que evidencia de forma brutal a oposição entre os Africanos, rejeitados
e obrigados a apinharem-se nas periferias, e os Portugueses, muitas vezes
incomodados pelo excesso de Africanos, firmemente crentes no seu direito
ao território. A barreira urbana que assegura a criação de dois blocos simul-
taneamente incompatíveis e complementares, simboliza de forma límpida
a hierarquização dos diferentes grupos urbanos, portugueses, assimilados
e indígenas.

331
Isabel Castro Henriques

O binómio trabalho/imposto, a educação e a exploração do “indígena”

Desde 1890 que Lisboa parece ser uma imensa placa giratória, onde che-
gam o cacau, o café, o sisal e outros produtos das colónias, depois reexpor-
tados, alimentando muito significativamente os fluxos positivos que contri-
buem para o equilíbrio da balança de pagamentos portuguesa. Nos primeiros
anos da República (1913) a reexportação dos produtos coloniais, provindos
sobretudo de São Tomé, correspondia a cerca de metade das exportações nor-
mais, cobrindo quase metade do défice comercial e assegurando o essencial
das exportações.
Esta situação não pode generalizar-se à totalidade das colónias africanas,
nem tão pouco a Angola. Em Janeiro de 1926, o comandante Leite de Maga-
lhães constatava que Angola só muito recentemente tinha abandonado o seu
“estatuto de entreposto”, para se transformar numa “colónia mista de explora-
ção comercial e de plantações”, pondo em evidência o carácter retardatário do
sistema económico da colónia, traduzindo assim a insatisfação dos especialistas
das colónias perante um arcaísmo que parecia cada vez mais difícil de aceitar.
No entanto, é importante salientar o impacto positivo das produções e das
exportações coloniais na débil economia nacional e na elaboração de pro-
jectos centrados na valorização dos territórios colonizados, que não podiam
dispensar o trabalho africano, nem separar-se da ideia de missão civilizadora
destinada a legitimar a exploração dos Africanos.
Desde o final de Oitocentos, a questão do trabalho indígena constituía
uma das preocupações centrais dos responsáveis coloniais, suscitando natu-
ralmente debates, escritos e a produção de leis destinadas ao seu enquadra-
mento legal.
“Isto de reger colónias….de colocar o negro ao abrigo de leis benéficas e
deixar este na ociosidade levando uma vida licenciosa…. É assaz repreensível
do ponto de vista moral e económico. A protecção e liberdade…que hoje da-
mos ao indígena africano de trabalhar só quando quer, (traz) grave detrimen-
to de quantas indústrias ali se iniciam e prejuízo do comércio e da propriedade

332
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

rural”43. Esta afirmação de Capello e Ivens, datada de 1886, criticando as au-


toridades coloniais pela sua brandura – manifestada na lei, na acção e na pro-
tecção – em relação aos Africanos, põe em evidência essas preocupações dos
dois exploradores, mas sobretudo remete para uma ideia central da ideologia
colonial, a de que o trabalho obrigatório é o meio mais eficaz para civilizar o
Africano, consolidar a colónia e desenvolver a economia portuguesa.
Não devemos esquecer que a ideologia colonial recorre ao princípio de
que os brancos não possuem as condições físicas para se entregar ao traba-
lho manual, nomeadamente agrícola, razão pela qual deve ser confiada aos
Africanos a actividade da produção, seja ela qual for. É certo que, também
paradoxalmente, a mesma ideologia proclama urbi e orbe que os Africanos são
preguiçosos, e que não trabalham, deixando a agricultura confiada às mulhe-
res. Todavia, face à impossibilidade de utilizar os Europeus para trabalhar, foi
necessário recorrer aos Africanos.
Trabalho, imposto e ensino são três variáveis que desde o início se vão en-
contrar associadas para garantir a eficácia do sistema de exploração da mão-
-de-obra africana.
Em 1898, Paiva Couceiro, apresenta de forma inequívoca os mecanismos
do sistema: “ só o contacto educativo, actuando durante maior ou menor lap-
so de tempo, incutirá nos selvagens hábitos e necessidades novas, e os levará
a sofrer voluntariamente o jugo de um trabalho regular, a troco do qual consi-
gam o salário preciso para responder às crescentes exigências da vida civiliza-
da”. Referindo-se à situação existente, e que urge mudar, acrescenta que “ para
combater este estado de cousas e angariar mão-de-obra indígena, persisten-
te e contínua, forçoso se torna recorrer a certos meios, que classificamos em
duas espécies distintas: uns indirectos, encaminhando-os a tomar o gosto às
comodidades materiais, apanágio dos povos adiantados, outros mais directos
e imediatos, impondo-lhes, com as devidas precauções e jeito, algumas deter-
minações tendentes a obrigá-los um tanto e a impugnar-lhes a nativa indolên-

43 CAPELLO, H, e IVENS, R., De Angola à Contracosta. Descrição de uma viagem atravez do continente africano, Lisboa, Imprensa
Nacional, 1886, vol.I, p.181.

333
Isabel Castro Henriques

cia”. Para este responsável da política colonial portuguesa da época, os “ meios


indirectos são os resultantes da acção civilizadora, exercida com intensidade e
inteligência, por intermédio da qual o povo culto, que domina, pretende trazer
o seu génio à turba ignara dos dominados”, os meios directos sendo “ as leis
e os actos que tenham por fim directo exercer pressão sobre os indígenas no
sentido do trabalho.” (…) Pois “é precisamente pelo trabalho que o selvagem
entra no caminho do bem, e se os seus hábitos herdados, o seu modo de vida
e a sua índole particular o afastam tenazmente desse caminho, a nós compete
impeli-lo para aí e a própria moral ordena que se empregue mesmo a coacção
quando for necessário e oportuno”. Eis claramente definidos os princípios bá-
sicos das leis do trabalho e a justificação de todas as formas de violência que se
irão verificar e multiplicar nas colónias portuguesas. Impor o trabalho ao Afri-
cano através de meios “ brandos ou enérgicos”, é um dever dos colonizadores
que igualmente devem “ difundir a religião e a instrução”44.
O Estado português assume, pois, “o direito de obrigar os naturais das pro-
víncias ultramarinas a trabalhar”, definindo o imposto como um mecanismo
central do processo colonizador45.
A criação de regras de trabalho particulares, destinadas às populações das
colónias, vão fixar a figura (negativa) do indígena. António Ennes encabeçou
o grupo que redigiu o Relatório consagrado a Moçambique: este estudo for-
neceu as informações indispensáveis à legislação do trabalho e do imposto,
graças à qual foi possível encontrar uma plataforma institucional que permitiu
a exploração dos homens e dos territórios africanos, assim como o enriqueci-
mento dos colonos46. Estava encontrada a via astuciosa que permitia a explo-
ração dos Africanos: os absolutamente não civilizados são transformados em

44 COUCEIRO, H.M. de Paiva, Angola. Estudo Administrativo, Lisboa, 1898,p.27.


45 Id., ibid., pp. 27-29.
46 Após a Conferência de Berlim, o governo português cria comissões para estudar os problemas administrativos e económicos das
colónias. Uma das maiores notáveis comissões, organizada em sub-comissões, reuniu homens como António Ennes, Mouzinho e
Paiva Couceiro, que iniciou os seus trabalhos em 1894, vindo a entregar um relatório final em 1898. Esta curta frase, que integra
o parágrafo final do Relatório da sub-comissão encarregada de estudar a melhor maneira de utilizar a mão de obra africana, põe
em evidência o eixo central da política colonial que se desenvolve em torno da ideia de que “ precisamos do trabalho dos indíge-
nas….para melhorar a condição destes trabalhadores,…..para a economia da Europa e para o progresso de África”. “Moçambique
– Relatório apresentado ao governo – 1899 “, in Antologia Colonial Portuguesa, Lisboa, 1946, vol. 1.

334
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

indígenas. Se literalmente o termo designa “os nascidos no país”, adquire agora


uma funcionalidade pejorativa que desclassifica/desqualifica e serve para de-
signar aquele que por essa razão está condenado ao trabalho obrigatório47.
Este Relatório serve para justificar e organizar a legislação repressiva, que
consagra o indigenato e faz das populações africanas uma simples colecção
de indígenas. O trabalho aparece como o mecanismo civilizador absoluto. O
mesmo é dizer que a imposição do trabalho aos indígenas constitui um dever
do Estado colonizador e o objectivo central da missão civilizadora: “ é direito
do Estado obrigar os naturais das províncias ultramarinas a trabalharem, em-
pregando para isso, além dos incentivos, imposições, e de que portanto é dever
correlativo desses naturais não se recusar ao trabalho, sendo esse dever não
meramente moral, senão também legal, jurídico, pois que só o cumprimen-
to deste último pode ser imposto pela autoridade pública”. E António Ennes
acrescenta: “… todas estas reflexões e todos estes confrontos persuadiram-nos
de que o Estado, não só como soberano de populações semi-bárbaras, mas
também como depositário do poder social, não deve ter escrúpulos de obrigar,
e, sendo preciso, de forçar a trabalharem, isto é, a melhorarem-se pelo traba-
lho, a adquirirem pelo trabalho meios de existência mais feliz, a civilização
trabalhando esses rudes negros da África, esses ignaros párias da Ásia, esses
meios selvagens da Oceânia, a que o mesmo Estado impõe também, até com
pena de extermínio, tantas outras obrigações que lhes aproveitam bem menos
e nem sempre são legitimadas pelos interesses da civilização”48.
Esta longa reflexão de António Ennes constitui o eixo estruturante das po-
líticas republicanas que se aproximam. Se os governos monárquicos criam as
bases da organização do trabalho africano nas colónias, são os responsáveis

47 As formas de trabalho impostas pelo aparelho colonial, seja qual for a sua designação e a sua tipologia de trabalho – obrigatório,
compelido, contratado, compulsivo – caracteriza-se pela violência que obriga os homens a abandonar o seu território e o seu
grupo social para os transformar em simples força de trabalho ao serviço dos colonos. Sobre esta questão ver, para além do estudo
clássico de DUFFY, James, A question of slavery. Labour policies in portuguese Africa, Oxford University Press, 1967, o texto de
MATOS, Mª Leonor Correia de, “ O problema do recrutamento da mão de obra local e respectivo código de trabalho”, in ALBU-
QUERQUE, Luís, dir., Portugal no Mundo – séculos XVIII-XX, Lisboa,Círculo de Leitores, 19…. Ver ainda SÁ DA BANDEIRA, O
trabalho rural africano e a administração colonial, Lisboa, Imprensa Nacional, 1873, onde a preocupação do trabalho dos africanos
emerge como questão central da política relativa à África, e CUNHA, J.M. da Silva, O trabalho indígena, Lisboa, Agência Geral do
Ultramar, 1949, que permite verificar o percurso e a constância do problema e as soluções criadas pelo Estado Novo.
48 “Moçambique - Relatório…,1946, I, pp. 25-29.

335
Isabel Castro Henriques

republicanos que vão definir as políticas coloniais, dando-se os meios ade-


quados ao duplo objectivo económico e moral da colonização portuguesa. O
trabalho indígena aparece como um dos elementos mais pertinazes da ideo-
logia civilizacional dos portugueses, tal como em tempos o baptismo tinha
permitido transformar o estatuto negativo dos escravos, desempenhando um
lugar central na elaboração de legislação indispensável à concretização dos in-
teresses de Portugal em África.
Não é por acaso que, em 1911-1912, uma das principais preocupações
das comissões e sub-comissões, encarregadas pela Sociedade de Geografia de
Lisboa, de estudar os problemas coloniais, tenha sido a questão do trabalho
numa articulação com o imposto indígena.
Mas foi Norton de Mattos quem melhor compreendeu a importância po-
lítica do imposto. Sendo um dos raros dirigentes do aparelho colonial portu-
guês a encarar os Africanos com menores preconceitos, o que lhe permitiu
criticar as ideias portuguesas a respeito da preguiça dos Africanos, sublinhan-
do que “toda esta riqueza (toneladas de borracha)… num valor de 3 milhões
de contos da nossa moeda … (é) produzida pelo trabalho dos indígenas”49, o
então major sublinha que o imposto “ não devia ser apreciado unicamente sob
o seu aspecto fiscal, (mas) como indicador seguro do estado de submissão dos
indígenas,” considerando o imposto como “ o acto final da ocupação, pacifica-
ção e administração das regiões do interior”50, quer dizer, da dominação dos
Africanos. O imposto integra assim uma panóplia de medidas administrativas
e jurídicas, destinadas a eliminar a liberdade dos africanos: o pagamento obri-
gatório do imposto de cubata em dinheiro, que obriga o Africano a trabalhar
para o colonizador, única maneira de obter a quantia necessária para satisfazer
esse dever dos indígenas para com o Estado colonial, articula-se com a imposi-
ção de regras de trabalho considerado o meio mais eficaz de civilizar o Africa-
no, a fixação do local de residência, e a caderneta do indígena como corolário
para consagrar a sua inferiorização.

49 MATTOS, Norton de, Memórias…, 1944, II, p.252.


50 MATTOS, Norton de, África Nossa, Porto, Marânus, 1953, p.167.

336
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

Na mesma linha de pensamento, Ferreira Diniz afirma, em 1924, estabele-


cendo a relação entre a exploração económica do território angolano e as con-
sequências benéficas que daí advêm para os Africanos, que a “ acção civiliza-
dora do Estado deve recair sobre a organização económica, como o meio mais
próprio de acelerar e facilitar a evolução social”. (…) A simples presença de um
povo superior, comerciante e industrial,….. agricultor ( dedicando-se) a novas
culturas, aumentando o rendimento das terras que agriculta pelos novos méto-
dos importados,….(protegendo) …a agricultura, a criação de gado, as peque-
nas indústrias, teremos contribuído para acelerar extraordinariamente a trans-
formação daquelas sociedades. Em uma palavra, as forças económicas (que)
são a base sobre a qual se desenvolve a vida humana em todas as modalidades,
o desenvolvimento da organização do trabalho e a introdução de novos proces-
sos técnicos de produção, aumentando o bem-estar das populações, farão surgir
com novas forças económicas, o senso moral e intelectual dos indígenas”51.
Mas a legislação portuguesa, pondo em evidência a ausência de direitos do
indígena (tal como o escravo), procede a uma regulamentação da gestão dos
trabalhadores africanos, confiando-a a autoridades especializadas: os curado-
res dos indígenas52. Os Africanos são geridos como órfãos! Esta recusa de uma
autonomia adulta, ou de uma paternidade biológica e social, transforma os
Africanos em “filhos” do Estado colonial, e por isso dependentes da vontade
das autoridades coloniais53.
Na visão dos anti-colonialistas europeus, esta classificação deve-se sobre-
tudo à necessidade de pôr à disposição dos colonos, uma mão-de-obra abun-

51 DINIZ, Ferreira, Missão Civilizadora…, 1924, pp.22-23.


52 O curador dos indígenas foi uma figura jurídica criada pelos governos da 1ª República para assegurar nas colónias, tanto a gestão
dos trabalhadores africanos, como a dos colonos europeus: à infantilização dos indígenas associava-se a protecção dos colonos,
de modo a resolver diferendos e conflitos pouco saudáveis à exploração colonial. Ver, por exemplo, AZEVEDO, J.Serrão de, Re-
latório do Curador, Lourenço Marques, Imprensa Nacional, 1913 e AGUIAR, António A. Corrêa de, O trabalho indígena nas ilhas
de S.Tomé e Príncipe, S.Tomé, Imprensa Nacional de S. Tomé, 1919.
Podemos ver aqui a matriz do paternalismo português, elemento central da ideologia colonial, que tanto marcou a sociedade
portuguesa!
53 É neste quadro legislativo e humano que se integram os serviçais – trabalhadores contratados que deviam ser repatriados termina-
do o seu contrato – enviados para as plantações de café e cacau do arquipélago de São Tomé e Príncipe ou para as minas do Trans-
val, na África do Sul. Oriundos de todas as colónias portuguesas, inclusivamente da Índia e da China, estes homens, mulheres e
crianças, que raramente eram repatriados, viviam em situações tão precárias, denunciadas não só pela comunidade internacional,
mas pela própria autoridade colonial portuguesa.

337
Isabel Castro Henriques

dante e barata. Tal foi efectivamente o caso, mas convém acrescentar que tais
formas de negação do Outro são acompanhadas pela certeza de que esses in-
dígenas, a quem são recusadas qualidades inerente à própria espécie humana,
são os trabalhadores, graças aos quais o patrão branco, o Estado e a nação po-
dem evoluir e crescer. A crueldade reside na necessidade de manter o indí-
gena nessa condição permitindo-lhe apenas que trabalhe e reproduza outros
indígenas. O Estado recusa por isso, retomando e alargando o vocabulário dos
colonos, toda e qualquer modificação substancial das condições físicas, jurídi-
cas, sociais e técnicas dos indígenas.
Norton de Mattos que considera a “nossa política indígena … modelar e
pode(ndo) apresentar-se como exemplo a todas as nações coloniais”, salienta
precisamente o carácter modernizante das “nossas leis do trabalho indígena
(que) contêm disposições de humanitarismo que não se encontram em legis-
lações praticadas a operários de civilizações mais adiantadas”54.
Este tipo de discurso – mesmo se marcado pela hipocrisia que caracteriza
o Estado Novo - será, no essencial, retomado após a proclamação da ditadura
militar, a 28 de Maio de 1926, sustentando uma reforma rápida da política
colonial55. Se não rompe com a tradição da administração colonial, reforça as
tendências para a exploração sistemática dos trabalhadores africanos. A dita-
dura – que vai durar até 25 de Abril de 1974 – não rejeita as medidas tomadas
pela Primeira República, mas procura essencialmente torná-las mais eficazes,
primeiro, em termos económicos, depois, em termos políticos, consolidando
uma sociedade colonial onde se impõe, de forma paradoxalmente crua e dissi-

54 MATTOS, Norton de, A Missão Colonizadora…, 1923, pp.13-14.


55 A forma directa republicana de abordar as questões coloniais vai ser substituída progressivamente, sobretudo a partir do segundo
quartel de Novecentos, por um discurso que procura dissimular a realidade. É o momento da consolidação do sistema colonial
que, mantendo os seus princípios fundadores, se apresenta, no quadro do Estado Novo, com outra linguagem, elaborando uma
legislação hipócrita, onde a realidade da exploração dos africanos não seja tão cruamente visível. A partir da década de 60, esta
camuflagem será obviamente reforçada.

338
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

mulada, o preconceito, a violência e o conflito56.


É no quadro desta coabitação conflitual que os colonizados procuram defi-
nir as estratégias destinadas a preservar os seus valores culturais, adequando-
-as às necessidades imperativas da mudança. Expulsos das suas terras, obriga-
dos a adaptar-se aos sistemas de dominação e de exploração do colonizador,
em particular à violência do trabalho que lhes é imposta, os Africanos esco-
lhem comportamentos, práticas, “cumplicidades”, que lhes permitem impedir
a anulação de toda a sua autonomia, procurando africanizar valores, técnicas,
ferramentas culturais e sociais do colonizador, de modo a salvaguardar a sua
identidade e a participar na transformação/modernização do seu espaço co-
lectivo.
Lisboa, Agosto de 2010

56 O Acto Colonial de 1930, que apura as condições da gestão colonial portuguesa, é bem significativo da alteração do discurso
colonial, sendo a reforma da Politica indígena o ponto central das alterações de ‘fachada’, visando a transformação progressiva do
indígena em civilizado, passando a ter os mesmos direitos e deveres dos Portugueses de origem, nomeadamente no campo jurídico.
Enquanto tal situação se não verificasse, os indígenas estariam sob protecção do Estado que tinha o dever de os defender também
contra os abusos dos colonos, assegurando o trabalho remunerado, mas também o ensino, a educação, a difusão da língua e da
religião católica – a cargo das missões religiosas. A assimilação assim constitui um dos eixos centrais do discurso e das políticas co-
loniais do Estado Novo. Nesse mesmo ano, Salazar afirma que Portugal assumia uma tarefa de salvaguardar os interesses das «raças
inferiores», sem esquecer de assinalar que um dos feitos mais ousados da colonização portuguesa fora o de colocar as populações
indígenas sob a influência do cristianismo. Afinam-se as técnicas de controlo de tal maneira, que é possível sentir nelas a força
de gravidade da influência sul-africana: «caderneta indígena» (cópia do «pass» dos Sul-Africanos), proibição das viagens sem
autorização prévia, expropriação das terras, trabalho forçado ou obrigatório, imposto indígena, inibição de actividades económicas
independentes, castigos físicos, limitação ao mesmo proibição de frequentar certos espaços recreativos, eis o painel das medidas
tomadas para garantir o carácter estanque da fronteira física e cultural que devia separar os brancos dos pretos.

339
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

OS AFRICANOS NA SOCIEDADE
PORTUGUESA:
ambiguidades classificatórias
e realidades coloniais

A presença de Africanos em Portugal durante o período da dominação co-


lonial portuguesa em África, que podemos balizar entre os anos 1880 e 1974,
revela-se demasiado complexa para poder ser analisada apenas como um fe-
nómeno migratório. Tal como a instalação de populações não autóctones na
“África portuguesa” 1, a situação dos Africanos em território português exige
uma profunda reflexão sobre a sua integração em categorias classificatórias
como «migração», «comunidade», «diáspora». Se as incertezas etimoló-
gicas das terminologias impõem o estudo das suas evoluções e modificações
dando conta das suas genealogias, estas só podem ser compreendidas nos di-
ferentes quadros conjunturais, que as elaboram e utilizam, assegurando a sua
operacionalidade.
O recurso à história da presença secular de populações africanas em Por-
tugal é indispensável para definir e analisar as ambiguidades que envolvem o
objecto deste estudo – as mulheres e os homens africanos instalados na so-
ciedade portuguesa, durante vários séculos –, mas também para proceder à
desconstrução das representações do Africano, designado a partir dos carac-
teres somáticos – ‘o preto’, ‘o negro’, ‘o mulato’ – , que foram estruturando o
imaginário português. A complexidade destas questões, cujo estudo exige du-

1 Na lógica imperial portuguesa, integrando-se as colónias na “África Portuguesa”, ou a partir da década de 1950, no “ Portugal de
Minho a Timor”, passando então a designar-se por “províncias ultramarinas”, os colonos portugueses ou outros provenientes
das diferentes “províncias ultramarinas” do país, não podem ser, nem teoricamente, nem aos olhos da lei, “migrantes” ou “es-
trangeiros”, pois, como diria Salazar, Portugal era « uma nação pelo mundo repartida » (1963, p.10), a única onde se praticava
o “multirracialismo” (Nogueira, 1967, pp.197-198).

341
Isabel Castro Henriques

ras tarefas de investigação, novas abordagens teóricas e metodológicas e uma


disponibilidade intelectual liberta de estereótipos seculares, não é compatível
com a natureza e a dimensão deste curto texto, que visa sobretudo enunciar
algumas reflexões, emergentes de investigações em curso e parcialmente de-
senvolvidas em estudos recentes,2 procedendo a um inventário de problemáti-
cas que envolvem o Africano nas representações fabricadas pelos Portugueses.

Ambiguidades e categorias classificatórias

A primeira grande ambiguidade é precisamente a da origem de grande par-


te dessas populações, que assenta não no facto de terem migrado para Por-
tugal nos finais de Oitocentos ou no século XX colonial, mas porque os seus
marcadores físicos – como a cor da pele – indicam a “certeza” da sua prove-
niência. Ora a história revela-nos que, desde finais do século XVIII, abolida a
escravatura em Portugal, a chegada de Africanos diminuiu muito significativa-
mente, os “pretos” e os “mulatos” que viviam em Portugal sendo legalmente
portugueses. Ou seja, se podemos verificar a existência de uma minoria de
Africanos que se instalam no país no século XX colonial, pertencente a gru-
pos sociais urbanos coloniais ou integrando o grupo dos assimilados das coló-
nias, a maioria dos Africanos, isto é, dos chamados pejorativamente “pretos” e
“mulatos”, nasceram portugueses, mesmo se muitos reconhecem a sua origem
africana e reclamam uma identidade afro-portuguesa.
A segunda grande ambiguidade está na identificação/classificação do Afri-
cano. Os conteúdos fabricados e atribuídos a essa categoria classificatória – o
“africano” –, resultam da construção de uma representação portuguesa desse
Outro, que se foi estruturando ao longo dos séculos. O preconceito e a desva-
lorização dos Africanos, que caracterizam as formas redutoras adoptadas pela

2 Além das obras pioneiras de Leite de Vasconcelos (1942) e Tinhorão (1988) e do estudo mais recente (Henriques 2009), outros
autores consagraram textos a algumas das questões cruciais para o estudo dos Africanos no imaginário português: Fonseca 2010,
Gusmão 2004, Henriques 1993 e 2004, Lahon 1999, Lahon e Neto 1999, Margarido 1984, Pantoja 2011, Pimentel 1995 e 2011,
Saunders 1994.

342
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

sociedade para os definir e representar, permitem exclui-los da norma social


e nacional portuguesas, voltando a integrá-los virtualmente nos espaços afri-
canos. Mesmo naturalizados portugueses, os Africanos mantêm-se, na lógica
dominante, “tribalizados”: a “nação” para nós, brancos e Portugueses, a etnici-
dade para vós, pretos, mulatos e africanos. A representação é pois reveladora da
construção de uma etnicização e de uma racialização ao serviço das ideologias
e dos interesses portugueses. Parafraseando o antropólogo francês Edouard
Vincke (1995, p. 253), a personagem central desta reflexão é “o Preto do Bran-
co” ou, dito de maneira mais rigorosa, “os Africanos (os Pretos) fabricados pe-
los Portugueses (os Brancos)”, já que a utilização da forma plural dá conta dos
contornos diversos que as representações assumiram, em função das diferen-
tes realidades criadas na e para a sociedade portuguesa. Tais realidades, que se
traduzem numa hierarquia de representações dos “pretos” (dos escravos aos
indígenas, aos assimilados, aos colonizados…), confirmavam a justeza e as vir-
tudes das escolhas do colonialismo português, permitindo aos ideólogos e aos
responsáveis políticos do regime salazarista assinalar a “diferença positiva” dos
“nossos pretos” face aos “pretos dos outros” colonizadores europeus.
Se todos os actos classificatórios visam reduzir a diferença para poder com-
preender, integrar ou dominar o Outro, no caso do Europeu e do Africano
– o exemplo português devendo aqui ser entendido como a metonímia dos
Europeus –, as operações de classificação não só pretenderam eliminar as dis-
tâncias socio-culturais, integrando o Outro no sistema de valores, de crenças
e de ideias, de práticas culturais e sociais do Ocidente, mas também proceder
a uma amputação da sua originalidade cultural, da sua identidade social e polí-
tica, rejeitando qualquer autonomia histórica. Estes pressupostos evidenciam
a necessidade de pensar o processo classificatório das organizações humanas
como um percurso europeu estruturado, apresentando linhas de continuida-
de que decorrem do próprio desenvolvimento da ciência europeia, mas im-
põem também uma leitura atenta da articulação entre a fabricação europeia
de grelhas classificatórias e os diferentes momentos históricos e espaços geo-
gráficos, portadores de novos projectos, que incluíam a África e os Africanos.

343
Isabel Castro Henriques

A dimensão histórica do processo de construção, consolidação, renovação,


recuperação, eliminação, modificação das categorias classificatórias permite-
-nos compreender o modo como se foi organizando o imaginário europeu/
português, desde o século XV e sobretudo nos séculos XIX e XX3, em torno da
valorização do Mesmo e da desvalorização do Outro africano. O reforço pro-
gressivo da densidade do preconceito e a fixação de arquétipos, cujos códigos
destinados a assegurar uma leitura redutora do “preto”, do “mulato”, do “afri-
cano” que é “naturalmente negro” ou “de cor” 4, não foram ainda totalmente
eliminados, mas recuperados e reutilizados para definir e gerir o imigrante
africano dos dias de hoje.

Percursos e estratégias de integração dos Africanos


(séculos XV-XVIII)

Presença multissecular em Portugal, os Africanos, as suas culturas e as


suas formas de participação na sociedade portuguesa constituem uma lacuna
singular no campo de conhecimento histórico português, o mesmo podendo
dizer-se no que respeita à Europa, cujas relações com África se inscrevem tam-
bém num quadro de longa duração.
Trata-se de uma situação reveladora da ausência de interesse e de valoriza-
ção dos Africanos, que exige reflexão e sobretudo a revisão das operações clas-
sificatórias que marcaram e hierarquizaram “cientificamente” as humanidades,
a partir de Oitocentos.
Estudar a singularidade desta presença que modelou o património cultural
e histórico português, se obriga a uma análise tão ampla quanto rigorosa do
percurso multifacetado dos Africanos no país, em virtude da história portu-
guesa e das relações de Portugal com a África e com o mundo, deve também

3 Henriques,I.C., A Herança Africana em Portugal, 2009.


4 Fórmula racista, que ainda persiste com algum vigor no vocabulário português para designar de forma “correctamente política”
todos os não brancos.

344
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

ter em conta o facto das representações escritas, iconográficas, plásticas destes


homens e mulheres africanos pertencerem à esfera europeia, portuguesa em
particular, traduzindo-se na consolidação de imagens, de estereótipos, de pre-
conceitos que foram organizando o imaginário português.

Opacidades e silêncios da memória

Historicamente a memória da presença africana terá começado a organi-


zar-se no século XIII, quando encontramos referências a esta população na
Península Ibérica e mais particularmente no território galego. Trata-se de uma
memória escrita, reforçada por belíssimas iluminuras,5 que possui a qualidade
de definir as condições em que nasceram alguns preconceitos que tanto evo-
cam a estrutura física dos africanos, cujos corpos são desvalorizados devido
à cor “preta ou negra”, depois aos outros caracteres somáticos considerados
negativos – o cabelo, a boca, o nariz, o cheiro – que os aproximam dos ani-
mais, opondo-os à superioridade do corpo da norma que só pode ser branco.
Esta lógica do corpo e da cor6, se permite que os Africanos organizem as suas
vidas, não deixa por isso de constituir um obstáculo à sua plena integração na
sociedade dos homens, isto é, dos brancos.
No quadro histórico das populações que chegaram à Península Ibérica, por
terra ou por mar, como é o caso de duas das mais significativas colonizações, a
romana e a árabe, em períodos diferentes e relativamente curtos, que deixaram
inúmeras marcas no país, a matriz, a longa duração e a natureza da presença de
africanos em Portugal constituem um elemento diferenciador fundamental, que
se inscreve numa outra lógica civilizacional, iniciada pelos europeus a partir do
século XV. A maioria dos homens, mulheres e crianças de África não vieram
de livre vontade, mas foram capturados ou comprados no litoral do continen-

5 Afonso X, o Sábio, rei de Leão e Castela, mandou organizar um livro de cantigas em honra da Virgem, entre 1252 e 1284, intitu-
lado Cantigas de Santa Maria, servindo o texto de suporte a ilustrações executadas em Castela por artistas locais (Biblioteca del
Escorial, Madrid). Uma “Cantiga de Maldizer”, do mesmo rei, estudada por Margarido (2003, p.138), é provavelmente a primeira
referência a uma africana «negra como o carvão», retratada com a violência somática que perdura até hoje.
6 Ver Devisse e Mollat, 1979.

345
Isabel Castro Henriques

te africano, para serem desembarcados como escravos no extremo ocidental do


fragmento ibérico da Europa.7 Despojados de tudo, os milhares de Africanos,
oriundos de regiões e de culturas diversas, integraram-se no país, entre os sécu-
los XV e XIX, tornando-se uma presença estruturante da sociedade portuguesa,
deixando sinais directos ou indirectos na memória, no imaginário, nas fórmulas
linguísticas e nos lugares portugueses. Se a visibilidade dessa presença nem sem-
pre aparece claramente delineada, uma análise mais sistemática revela a densi-
dade de uma herança africana silenciosa – quase sempre assinalada para registar
fenómenos negativos – na organização do país: no trabalho e na produção, na
religião e na magia, na festa, na música e na dança, no corpo e na sexualidade, na
língua e na toponímia.8 Presentes em todo o país, os Africanos desempenharam
um número amplo de tarefas diversas e indispensáveis à organização e à gestão
da sociedade portuguesa, quer nos campos, quer nas cidades, quer ainda nos
empreendimentos marítimo-coloniais organizados pelos portugueses, partici-
pando na vida das comunidades onde se inscreviam.

Estratégias de integração

Desembarcados de forma continuada em Portugal a partir de meados do


século XV e durante três séculos, os escravos africanos procuraram aderir às
formas sociais e religiosas portuguesas, aceitando o baptismo e o nome cris-
tão, o corpo vestido, a língua portuguesa (mesmo se rotulada de “língua de
preto”), o casamento cristão, as relações afectivas, as organizações, práticas e
festas católicas, os eventos lúdicos, políticos e militares, introduzindo marcas
da sua singularidade cultural na vida portuguesa.

7 As primeiras referências à presença significativa de populações africanas em Portugal, e certamente na Europa, pertencem ao cro-
nista Gomes Eanes de Zurara, que descreve o primeiro grande carregamento de escravos vindos de África, na cidade portuguesa
de Lagos, em 1444.
8 A toponímia portuguesa (Costa 1929-1949) revela a força da presença africana em todo o país, os aspectos somáticos consti-
tuindo as referências das designações utilizadas, como a Rua das Pretas, a Rua Poço dos Negros, em Lisboa -, tendo integrado
novas formulações de acordo com as conjunturas contemporâneas: encontramos designações que remetem para uma espécie
de “urbanismo colonial”, que permanece na memória colonial portuguesa (Rua da Cidade de Malanje, Rua Cidade de Cachéu,
Rua Cidade de Inhambane), e depois de 1974, os terroristas de ontem deram os seus nomes a ruas e praças portuguesas (Rua
Agostinho Neto, Praça Eduardo Mondlane, Rua Amílcar Cabral)!

346
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

Esta integração, necessária à sua sobrevivência num espaço desconhecido,


põe em evidência as estratégias dos Africanos que lhes permitiram criar os
mecanismos destinados a preservar valores fundamentais das suas identida-
des e das suas memórias históricas, através das festas, das danças, das músicas,
das manifestações religiosas designadas de feitiçarias, bruxarias, magias, que
suscitavam a adesão e o entusiasmo dos Portugueses, conduzindo à criação e à
consolidação de formas sincréticas, religiosas e culturais, que persistiram nos
imaginários e nas práticas portugueses.
Esta situação marcada pela inserção social de muitos Africanos, escravos
ou livres – libertos geralmente através de “carta de alforria” dada pelos pro-
prietários ou adquirida através de compra ou da integração em confrarias ou
irmandades religiosas que asseguravam a sua protecção –, não elimina con-
tudo a ausência de reconhecimento e de estatuto destes homens e mulheres,
nem a repressão e a desumanização de muitos africanos-escravos, animali-
zados e coisificados. A “criação de escravos”, como se de animais se tratasse,
parece ter sido prática corrente em diversas regiões do país, traduzindo-se na
produção e comercialização de homens e mulheres destinados a abastecer o
mercado português e castelhano.
Na segunda metade do século XVIII, o número de escravos negros conti-
nuava elevado, não só porque os filhos de pais escravos herdavam o mesmo
estatuto, mas também porque se mantinha a actividade da criação de escravos,
testemunhada pela provisão de 16 de Janeiro de 1773, que denunciava a exis-
tência de pessoas, « em todo o Reino do Algarve, e em algumas províncias de
Portugal [que tinham] escravas reprodutoras, algumas mais brancas do que os
próprios donos, outras mulatas e ainda outras verdadeiramente negras [todas
designadas por “pretas ou negras”], para pela repreensível propagação delas
perpetuarem os cativeiros »9.
Esta “animalização” dos homens é revelada pela existência de coleiras, co-
locadas no pescoço do escravo, tal como se verificava com objectos similares

9 Pimentel, 1995, pp. 57-59.

347
Isabel Castro Henriques

destinados a identificar os animais, situação que não podia deixar de sublinhar


a condição animalizada dos “pretos”. Leite de Vasconcelos, que realizou um
trabalho notável de recolha, identificação e interpretação de materiais histó-
rico-etnográficos, encontrou duas coleiras, em finais do século XIX, integran-
do-as nas colecções do Museu Nacional de Arqueologia. Traduzindo por pa-
lavras a violência de tais objectos, o etnógrafo escreveu num texto de 1915: «
Como este objecto escalda as mãos quando se lhe toca! Que vilipêndios não
traduz! A que lágrimas não deu origem!».10
Neste inventário das presenças africanas em Portugal, é conveniente reter
o carácter inédito, e provavelmente único na Europa, do Mocambo de Lisboa,
hoje a Madragoa. Bairro da cidade – por alvará régio de 1593 –, cuja designa-
ção remete para o umbundo, uma das línguas de Angola, designando “lugar de
refúgio”, “local de instalação”, “pequena aldeia”, “acampamento”, o Mocambo
era, desde os finais de Quinhentos, um espaço urbano onde os Africanos, for-
ros e livres (e, provavelmente, alguns escravos que aí encontraram refúgio) se
instalaram, e onde, a partir do século XVII, coabitaram com Portugueses, so-
bretudo gente ligada às actividades do mar. Pouco a pouco, os Africanos aban-
donaram esse espaço urbano, após as medidas do Marquês de Pombal que
proibiam a importação de escravos africanos no país e aboliam a escravatura
em Portugal (1773). A desaparição do Mocambo de Lisboa foi progressiva e
rápida, transformando-se, primeiro em rua, depois em Travessa do Mocambo
no século XIX e desaparecendo na 2ª metade de Oitocentos.11

Os ‘Mulatos’: preconceito e exclusão

Um dos problemas menos estudado, mas crucial para a compreensão da


história contemporânea portuguesa, reside na “produção de mulatos”, cujo
aparecimento, desde o início da expansão, causou grande perplexidade na so-

10 Vasconcelos, 1915, p.36.


11 A identificação e a proposta de explicação do Bairro do Mocambo, em Lisboa, é uma interpretação inédita de Henriques, A
Herança Africana…,2009, pp.46-65.

348
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

ciedade portuguesa, traduzindo-se na organização de uma estrutura classifica-


tória zoomorfizante destinada a acrescentar estes homens e mulheres mesti-
ços ao vasto catálogo dos muares, recusando aceitá-los como Portugueses que
eram. A essa maneira de os classificar, deve somar-se a ideia da sua hiperacti-
vidade sexual – sobretudo as mulheres mulatas – atribuída ao seu sangue afri-
cano, que marcou a construção de um arquétipo duradouro e desvalorizante
que ainda não se extinguiu completamente.
Se alguns Portugueses mestiços se tinham imposto na sociedade – pela via
do casamento com Portugueses de estatuto social elevado, como é o caso de
D. Simoa Godinho de origem santomense (XVI), pelo prestígio da profissão
desempenhada, como são exemplos o dramaturgo Afonso Álvares e o pintor
Domingos Lourenço Pardo (XVII), ou ainda pelo estatuto religioso como a
Madre Cecília de Jesus (XVII) –, foi nas décadas finais do século XVIII que
se assistiu a duas operações cuja complementaridade antagonista merece ser
referida. Vencendo pouco a pouco a dureza dos preconceitos, muitos mesti-
ços, filhos de pais brancos e socialmente reconhecidos, conseguiram apoios
sociais e financeiros para ingressar nas universidades ou no clero portugueses.
Se a protecção familiar, o dinheiro e o prestígio literário e profissional, as car-
reiras na administração pública, constituíram factores de alguma diluição do
estigma somático, provocaram também dores de cabeça aos dirigentes políti-
cos dos séculos seguintes, na medida em que conseguiram adquirir posições
de arbitragem na trama relacional portuguesa. Muito criticados por diferen-
tes sectores e personalidades da sociedade portuguesa, das quais se destaca
o poeta Bocage que muito contribuiu para estabilizar os estereótipos nega-
tivos que pesavam sobre os “pretos”, os “mulatos” considerados mais pretos
que brancos, puderam reforçar a sua posição, nos séculos XIX e XX, apesar da
emergência de teorias científicas que legitimavam a hierarquização das raças,
das geografias, das civilizações. Do Pai Paulino a Fernanda do Vale (chamada
a Preta Fernanda), a Honório Barreto, a Sousa Martins, a Gonçalves Crespo, a
Costa Alegre, a Virgínia Quaresma e a outros intelectuais e grandes profissio-
nais de Novecentos, podemos verificar, observando as suas práticas e as suas

349
Isabel Castro Henriques

reflexões, quão importante foi a sua intensa participação na vida colectiva do


seu país. Tal, porém, não eliminou da sociedade portuguesa a ferocidade da
discriminação dos mestiços. Em 1925, o poeta Mário Saa sublinhava a “ in-
fluência do sangue negro em Portugal, [que] transparece em numerosíssimas
pessoas, já pelo modo de andar em balancé, já pelas manchas negras que têm
no corpo (genipapo), já pela cor e pelo cabelo engrenhado, já pelos olhos
abronzeados e grandes, já pelos narizes oferecendo maior superfície de frente
que de lado, já pelos lábios, já pelas unhas, já pela voz semi-ventriloqua, voz
que parece não passar pela laringe, mas principalmente pelos caracteres aními-
cos, a tendência para a mímica, a predilecção pelo batuque …[acrescentando
que]… os mestiços dominam em Portugal por elemento de população mais
que em outra qualquer nação da Europa, com incremento de boçalidade e
redução do índice encefálico”12. Este juízo de valor muito popularizado ser-
viu para alimentar os princípios fundamentais do racismo, que consideram os
Africanos como sendo uma teratologia: os “mulatos” estariam afinal inscritos
no quadro das monstruosidades capazes de macular a própria espécie huma-
na, pois, tendo pai ou mãe brancos, reflectiam sobretudo a inferioridade e a
estrutura dos Africanos.

Representações coloniais
e impacto na sociedade portuguesa (até 1974)

Os projectos portugueses de dominação colonial, que se estruturaram


desde os finais do século XIX, implementados durante a I República (1910-
1926) e sobretudo a partir do golpe militar de 1926 que implantou a ditadura
no país, impuseram o reforço da desvalorização do Africano, assim como das
suas práticas civilizacionais, procurando atrair a atenção e o apoio das popu-
lações portuguesas para o esforço colonial em África, amplamente justificado

12 Saa, Mário, 1925, p.155.

350
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

através do conceito de “missão civilizadora”.


As novas realidades coloniais e a inferiorização do Africano

A revisão político-ideológica do império no século XIX, que começou lenta-


mente a desenhar-se com a independência do Brasil (1822), a abolição (legal)
da escravatura nos espaços africanos controlados pelos Portugueses, organiza-
da por Sá da Bandeira, e se afirmou no contexto internacional da Conferência
de Berlim (1884-1885), levou as autoridades portuguesas a apostar, num cur-
tíssimo espaço de tempo, entre os anos 1880 e 1910, na construção de uma mi-
tologia colonial destinada a envolver a sociedade portuguesa na “questão afri-
cana”, que tinha adquirido uma dimensão nacional, com a vitimização de Por-
tugal face aos “ilegítimos” apetites africanos das grandes potências europeias.
Tal estrutura ideológica devia fornecer os instrumentos capazes de sustentar
as pretensões portuguesas perante a Europa, de apelar a um esforço nacional
integrador da noção “de uma vasta pátria” portuguesa, de reforçar as ideias de
“prioridade” e “especificidade” portuguesas nas relações com os Outros, e de
legitimar as escolhas coloniais do país, que implicavam conflitos violentos em
África, necessários à concretização da “missão civilizadora” portuguesa.
Esta situação traduziu-se no reforço de ideias e de preconceitos já enraiza-
dos na sociedade portuguesa, em que o somático, “o preto”, e o social, “o escra-
vo”, se articulavam para definir o Africano. Se a legislação portuguesa reconhe-
cia os Africanos como seres livres e teoricamente Portugueses, a consolidação
secular da imagem do Africano como ser naturalmente escravo dificilmente
permitia encarar a alteração do seu estatuto. Esta desvalorização encontrou
uma nova legitimidade, nas décadas finais de Oitocentos, no quadro da cons-
trução de uma ciência colonial, onde se cruzavam várias dimensões do co-
nhecimento das humanidades, das sociedades, das geografias, traduzida numa
produção científica que os políticos e os ideólogos viam com grande interesse,
pois permitia justificar os projectos e as práticas do expansionismo colonial.
Oliveira Martins, pensador e intelectual português, inserido nas correntes
científicas europeias, em particular da antropologia física e da craniologia, que

351
Isabel Castro Henriques

demonstravam ser o crânio um dos elementos físicos mais aptos para permitir
o conhecimento do homem e organizar grelhas classificatórias, chamou a si,
em 1880, a tarefa de demonstrar cientificamente “a inferioridade congénita
dos negros” e o absurdo da sua educação:

«Sempre o preto produziu em todos esta impressão: é uma criança


adulta. A precocidade, a mobilidade, a agudeza própria das crianças não
lhes faltam: mas essas qualidades infantis não se transformam em fa-
culdades intelectuais superiores. Não haverá porém motivos para supor
que esse facto do limite da capacidade intelectual das raças negras, pro-
vado em tantos e tantos momentos e lugares, tenha uma causa íntima
e constitucional? Há decerto e abundam os documentos que nos mos-
tram no negro um tipo antropologicamente inferior, não raro próximo
do antropóide, e bem pouco digno do nome de homem. A transição
de um para o outro manifesta-se como se sabe em diversos caracteres:
o aumento da capacidade da cavidade cerebral, a diminuição inversa-
mente relativa do crânio e da face, a abertura do ângulo facial que daí
deriva e a situação do orifício occipital. Em todos estes sinais os negros
se encontram colocados entre o homem e o antropóide».

E acrescenta:

«Não bastarão acaso estas provas para demonstrar a quimera da


civilização dos selvagens? E se não há relações entre a anatomia do
crânio e a capacidade intelectual e moral, porque há-de parar a filan-
tropia no negro? Porque não ensinar-se a Bíblia ao gorila ou ao oran-
go, que nem por não terem fala, deixam de ter ouvidos e hão-de en-
tender quase tanto como entende o preto, a metafísica de encarnação
do Verbo e o dogma da Trindade?»13.

13 Oliveira Martins, (1880), 1953, p. 263.

352
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

A oficialização da inferiorização dos Africanos, considerados os parentes


próximos dos grandes macacos, numa linha corrente na Europa, assentava
numa evidência dita científica, que recuperava e confirmava a sua longa zoo-
morfização, impedindo-os de ter uma história biológica idêntica à dos outros
grupos humanos.
Se Oliveira Martins forneceu o registo científico da inferiorização do “pre-
to”, isto é, do Africano, foi António Ennes, figura política central do pensa-
mento e das práticas coloniais e um dos principais obreiros da legislação do
“trabalho indígena” que, conhecedor do terreno africano, realçou de manei-
ra abrupta, nos anos finais do século XIX, a dicotomia primitivo/civilizado.
Considerando os Europeus como os “filhos apurados das raças policiadas”, e
os Africanos como “broncos”, “entes quase impensantes e impulsivos, […] ru-
des, […] vadios ociosos”, Ennes completou, com a solidez e a densidade das
suas experiências vividas em África14, as provas teóricas de Oliveira Martins.
Registe-se ainda um outro facto contemporâneo que desempenhou tam-
bém um papel relevante neste processo de desvalorização do Africano. Trata-
-se das operações de ocupação militar dos territórios africanos, as “campanhas
de pacificação” ou “lutas de resistência” iniciadas no final de Oitocentos, que
marcaram as escolhas políticas portuguesas e as relações coloniais de Portugal
com África, contribuindo para pôr em evidência a justeza das afirmações cien-
tíficas de Oliveira Martins: a “guerra” africana caracterizava-se por práticas fe-
rozes e bárbaras, de que eram vítimas os corajosos militares portugueses que
procuravam levar a civilização aos selvagens! A criação dos heróis portugueses
estava assim assegurada, o exemplo mais significativo, pela sua banalização na
sociedade, pelo lugar que ocupou na história portuguesa, pela persistência no
tempo, sendo aquele que opôs, em Moçambique, Mouzinho de Albuquerque
à figura do chefe nguni Gungunhana, que se veio a transformar no marcador

14 Ennes dirigiu o grupo que elaborou o estudo consagrado a Moçambique, intitulado Moçambique – Relatório apresentado ao go-
verno, que forneceu as informações indispensáveis à legislação do trabalho e do imposto indígenas de 1891 graças à qual foi
possível encontrar uma plataforma institucional que permitiu a exploração dos homens e dos territórios africanos, assim como o
enriquecimento dos colonos portugueses (Ennes [1899] 1946, I, pp. 26-33).

353
Isabel Castro Henriques

absoluto da selvajaria africana15. Durante décadas, Gungunhana – represen-


tado em diferentes suportes, da cerâmica à banda desenhada, aos manuais de
história16 e aos livros de histórias e de ilustrações para crianças e adolescen-
tes – constituiu a imagem do monstro vencido, que servia para exaltar o he-
roísmo e as qualidades do vencedor17.
A articulação destes três registos da inferioridade do Africano– o “cientí-
fico”, resultante do avanço teórico do conhecimento, o “político”, vivido no
terreno e decorrente do contacto e da experiência, e o “militar” apoiado nos
conflitos reais –, não só permitiu salientar a proximidade das populações afri-
canas com a natureza e a animalidade, mas forneceu o fôlego ideológico que
faltava para reforçar ou reactualizar arquétipos seculares, mais ou menos ador-
mecidos. A difusão de marcadores culturais atribuídos aos Africanos, como
a preguiça, a antropofagia, a brutalidade, a força física e a ausência de inteli-
gência, a sexualidade desmedida, a feitiçaria e a idolatria, permitiu assegurar
a fixação de uma cultura colonial, que marcou não só as relações colonizado/
colonizador, mas também o imaginário português, suscitando novas represen-
tações do Africano na sociedade portuguesa.
Se a proclamação da República (1910) deu lugar a uma revisão das po-
líticas coloniais, sob a pressão das duras críticas provenientes dos circuitos
económicos europeus em relação à legislação do trabalho indígena, o quadro
ideológico manteve-se fiel à mesma perspectiva mitológica, tendo-se refor-
çado com a introdução de ideias, que remetendo para o ideário republicano,
como a liberdade, o progresso, a educação e o trabalho indispensáveis às ta-
refas civilizacionais, legitimavam as duras operações de modernização das
economias coloniais, que assentavam na violência do trabalho imposto aos
colonizados. A continuidade e operacionalidade desta estrutura ideológica,
após a instalação da Ditadura e a criação do Estado Novo (1933) que aderiu
a muitos dos projectos coloniais republicanos, foi o resultado de um esforço

15 Sobre a questão teórica da construção dos heróis coloniais, ver Henriques, 2009b, pp. 337-351.
16 Ver Ameal, 1959, p. 191.
17 Refira-se a obra plástica (gravuras e cerâmicas) de Rafael Bordalo Pinheiro, produzidas entre 1875 e 1900, que representam o
chefe nguni de forma caricatural, lembrando o seu aspecto monstruoso, mas também a sua domesticação.

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DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

de construção de um corpus teórico organizado, de ideias, de mitos, de repre-


sentações centrado nos “direitos históricos” de Portugal em África, na infe-
rioridade absoluta do “preto” e na superioridade inequívoca do “branco”, no
esforço civilizador português, na singularidade de um relacionamento – sem a
mancha do racismo – dos Portugueses com os Outros.
A ideia da missão civilizadora, pela via da assimilação, reforçou-se para jus-
tificar a colonização portuguesa em África. Estimava-se, por um lado, que este
processo de assimilação dos Africanos levaria muito tempo, devido precisa-
mente ao seu atraso em relação à civilização, como afirmava de forma violenta
Armindo Monteiro, ministro das Colónias, em 1933: “Não imaginemos que é
possível a brusca passagem das suas superstições para a nossa civilização [...] É
impossível que, de um salto, eles [os africanos] transponham esta instância de
séculos”18. O teórico da colonização associava-se assim ao roceiro proprietário
de uma roça em São Tomé!
A partir dos anos 1950, no quadro da nova realidade internacional de apoio
ao fim do colonialismo e da recusa portuguesa em abandonar as colónias, o
sistema ideológico português registou um “refrescamento” teórico, seguido
de uma produção legislativa – como a Lei Orgânica do Ultramar Português,
publicada em 1953 – destinada a maquilhar a persistência das formas de do-
minação, graças à recuperação das propostas teóricas do luso-tropicalismo do
sociólogo brasileiro Gilberto Freyre19.
Se as conjunturas que se sucederam, introduziram novas formulações, o re-
forço da desvalorização do “preto” e do “mulato” continuou a marcar as repre-
sentações do Africano e dos seus descendentes na sociedade portuguesa do
século XX, o essencial da ideologia colonial mantendo a sua densidade teórica

18 Monteiro, 1933, pp.108-109.


19 Coube a Gilberto Freyre fornecer as teses que permitiram a criação da noção de luso-tropicalismo, destinada a designar o que
seria a vocação excepcional dos portugueses para colonizar sem a mancha da violência, renunciando « ao gládio e à cruz, para
recorrer apenas ao sexo » (Bastide 1971,p.46). Freyre, que estudara a singularidade das relações sociais na formação da sociedade
brasileira (1933) e manifestara a sua repulsa perante o regime português nos anos 1945, foi seduzido por Salazar por volta dos
anos 50, fazendo então elogios ditirâmbicos à acção colonizadora portuguesa. Os portugueses teriam sabido criar um acordo
perfeito com os grupos de “côr”, dando nascimento a situações novas nas colónias, caracterizadas por uma “unidade psicológica
e de cultura” inédita (1940, pp.45-57). Nos anos 1960, Gilberto Freyre reforçou estas teses, procurando na história da expansão
portuguesa os argumentos destinados a justificar as suas afirmações (1961, p.278). Sobre esta questão ver Alexandre 1995 e
Moutinho 2000.

355
Isabel Castro Henriques

e uma vitalidade interveniente, que resultou também das muitas operações de


propaganda, organizadas pelo Estado Novo para dar a conhecer o império aos
Portugueses.

As Exposições Coloniais : “mostrar os selvagens aos civilizados”

Se já nos finais do século XV, os “negros” trazidos de África, tinham sido


mostrados nos círculos da Corte portuguesa como curiosidade recém-ad-
quirida, ao lado de papagaios e de macacos, o século XIX aderiu ao gosto e
à prática cruel, legitimados pela ciência, de exibir Africanos, salientando a
monstruosidade dos seus corpos. Tal situação verificou-se na Europa ao longo
do século, como aconteceu em Manchester (1814) e em Paris (1815) com a
sul-africana Saartaje Baartman, apresentada nua ao lado de animais “exóticos”
enjaulados, e também em Lisboa, em 1896, com Gungunhana, que após o de-
sembarque, foi transportado em carruagem aberta, durante três horas, através
das ruas de Lisboa, para ser mostrado aos portugueses, antes de ser preso no
forte de Monsanto, de onde seguiria para o exílio nos Açores. O século XX vai
prolongar a tradição organizando grandes mostras, que pretendiam associar
a curiosidade do europeu perante o exótico, o carácter científico do espec-
táculo, que proporcionava um maior e melhor conhecimento desse mundo
desconhecido, e ainda as mais valias económicas, políticas e civilizacionais,
decorrentes do facto colonial.
O Estado Novo sentiu-se obrigado a mostrar a África aos Portugueses,
organizando no Palácio de Cristal, no Porto, em 1934, a Exposição Colonial
Portuguesa, e, em Lisboa, no Jardim Colonial (hoje Jardim Botânico Tropi-
cal), em 1940, a Exposição do Mundo Português20. O Estado procurava, através
destas manifestações patrióticas, convidar os Portugueses a olhar o conjunto
das suas colónias, incluindo também “amostras” das diferentes populações,
africanas e asiáticas, de Cabo Verde a Timor, apresentando-lhes uma visão

20 Nas últimas décadas, foram publicados alguns estudos, apresentando perspectivas diferentes, consagrados integralmente (Ac-
ciaiuoli 1998) ou parcialmente (Henriques 1993, João, 2003, Matos 2006) às Exposições Coloniais portuguesas.

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DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

global do seu império, em particular, dos seus territórios africanos. Tratou-se


naturalmente de eventos de propaganda do regime, acompanhados de outras
iniciativas como conferências, colóquios, publicações, prémios literários, con-
cursos escolares, cortejos e comemorações, exposições de menor dimensão
para públicos adultos ou jovens, que tinham como objectivo mobilizar a opi-
nião pública para o projecto colonial, que levava a civilização ao continente
africano, consolidando a grandeza da nação portuguesa.
Ambas as exposições, verdadeiros “jardins zoológicos humanos”, minucio-
samente preparadas durante anos antes das inaugurações, foram objecto de
grande publicidade, quer na imprensa e na radio, quer através do mais diversos
meios: feiras de amostras, informações sobre a organização dos stands, visitas
de personalidades, excursões organizadas, descontos nos bilhetes de entrada,
postais e pequeno objectos publicitários, de modo a atrair a curiosidade e o
interesse dos Portugueses. Um momento alto de todo este espectáculo era a
chegada de Africanos – “os representantes típicos das colónias” – ou de ani-
mais exóticos. A título de exemplo, refira-se o jornal O Século de 18 de Junho
de 1934, que publica, na primeira página, um artigo intitulado “1ª Exposição
Colonial Portuguesa”, contendo uma fotografia de crianças africanas, com a
seguinte legenda: “ Mais um curioso aspecto dos indígenas ontem chegados
a Lisboa: os “bebés” de ébano vão decerto, constituir um belo atractivo da
Exposição”.
Também os cortejos que se realizavam durante o período das Exposições
suscitavam uma grande adesão da população portuguesa. O jornal Novidades
de 1 de Julho de 1940, consagra a primeira página ao “cortejo do Mundo Por-
tuguês [que] constituiu um espectáculo de deslumbramento, em que perpas-
saram os períodos áureos e culminantes da nossa História “, referindo que “ no
cortejo figuravam ainda as nossas colónias, com todas as suas características.
…o rei do Congo, em todo o seu esplendor, incorporou-se também num car-
ro puxado por uma zebra”.
A Exposição Colonial do Porto, organizada em 1934, segundo o modelo da
Exposição Colonial Internacional de Paris de 1931, por Henrique Galvão, que

357
Isabel Castro Henriques

tinha já criado o Pavilhão de Portugal nessa exposição parisiense, exaltava


naturalmente o projecto colonial português, pondo em evidência a epopeia
portuguesa, a dos descobrimentos, tanto como a da pacificação e da educação
dos “pretos”. As imagens eram significativas destes objectivos patrióticos: o
Africano não possuía a menor autonomia e a África só existia graças à história
da presença portuguesa. Por um lado, servia ela para mostrar a importância
da expansão portuguesa; pelo outro, permitia a exaltação do esforço coloni-
zador moderno, graças sobretudo ao êxito da cultura do cacau no arquipélago
de São Tomé e Príncipe e do café e do sisal, em Angola. Como sublinhava o
jornal O Século, de 18 de Junho de 1934, “Os ensinamentos do certame sob o
ponto de vista económico devem ser de molde a contribuir para uma melhor
utilização das nossas possibilidades”.
Se a exposição recordava as grandes datas e os heróis portugueses, servia
ela também para pôr em evidência a diferença física e cultural dos Africanos,
utilizando algumas das máscaras da negatividade das regiões e das populações
da África, enraizadas há muito no imaginário português. Pretendia, ao mesmo
tempo, levar a aceitar a ideia de uma melhoria constante do estatuto dos Afri-
canos, conduzidos à Civilização pela religião e pelo trabalho, graças à devoção
dos missionários e do corpo administrativo português.
Homens, mulheres e crianças eram apresentados “ao vivo”, precariamente
instalados em mini-aldeias e mini-paisagens que procuravam, sem o conse-
guir, refazer o habitat dos Africanos, “os negros morrendo como tordos de
pneumonia”21. A população portuguesa era assim posta em contacto com os
Africanos, podendo observar os seus comportamentos, atitudes e costumes
“primitivos”.
Nessas “aldeias”, os Africanos deviam aceitar a partilha entre aqueles que se
vestiam, não sem macaquear os brancos – cabo-verdianos, santomenses, raros
guineenses, sobretudo os islamizados – e os que se mantinham fiéis ao corpo
nu: os angolanos, os moçambicanos e os “animistas” guineenses. A relação

21 Lopes, 2007, p.16.

358
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

com os missionários permitia dar conta da importância da sua intervenção:


todos os que aprendiam ofícios eram já portadores de vestuário europeu. A
parelha formada pelos administradores e pelos missionários tornava-se, desta
maneira, a única capaz de assegurar a mudança dos corpos e por isso dos com-
portamentos pouco civilizados dos Africanos.
Registe-se que esta operação tinha também como objectivo reorientar a
emigração portuguesa, que continuava a ter como destino preferencial o Bra-
sil. Procurava-se assegurar deste modo a reciclagem dessa emigração, capaz
de multiplicar as actividades económicas, tal como seria capaz de alterar as
instalações urbanas, ainda medíocres.
Se a Exposição Colonial Portuguesa de 1934 constituiu a primeira síntese
da visão portuguesa do Império para “dar corpo físico e palpável” aos gran-
des eixos do discurso ideológico português, demonstrando as possibilidades
e as oportunidades económicas decorrentes da dominação colonial – não des-
curando a educação, o desenvolvimento científico e a natureza civilizacional
das operações portuguesas –, já a Exposição do Mundo Português, realizada em
Lisboa, em 1940, procurou reforçar a legitimidade portuguesa em África e
no mundo, recorrendo aos argumentos históricos e à força civilizacional dos
Portugueses. Organizada em torno de três pilares estruturantes, missão civili-
zadora, educação e progresso científico e tecnológico, num quadro reforçado
pela história da expansão portuguesa e pela ideia de uma unidade nacional,
englobando a metrópole e todas as colónias ultramarinas, esta Exposição co-
lonial foi a última realizada na Europa: aproximavam-se os ventos da mudança
irreversível, que se viria a traduzir nas independências dos povos colonizados.
Mas… “para nós portugueses, colonizar é essencialmente elevar as popula-
ções indígenas à nossa civilização, ensinando-lhes a nossa religião, a nossa lín-
gua, os nossos costumes. É a nossa mentalidade que desejamos transmitir aos
povos das colónias”, escrevia O Primeiro de Janeiro, em 12 de Novembro de
1940.

359
Isabel Castro Henriques

O “Preto”: objecto lúdico, ilustração publicitária, antropófago monstruoso

As diferentes maneiras de inferiorizar o Africano, negro ou mestiço eram


visíveis nas imagens e nos textos banalizados em Portugal. Jornais, bandas de-
senhadas, anúncios, uma vasta produção iconográfica, destinada às crianças,
aos jovens e aos adultos, aos letrados e aos analfabetos, ou seja uma significa-
tiva parcela da população portuguesa, que tinha uma intimidade secular com
os Africanos, marcada já pelo preconceito somático (o preto) e social (o escra-
vo), viu-se confrontada com uma nova visão destes homens e mulheres, cuja
negatividade era legitimada pelo poder político, pelas ideias científicas e pela
denúncia das práticas monstruosas que lhes eram atribuídas.
Um artigo publicado no Jornal O Primeiro de Janeiro, em 13 de Novembro
de 1940, punha em evidência um dos elementos centrais da discriminação
racial portuguesa: os assimilados africanos “ por mais brilhante e eficaz que
possa e deva ser a sua acção profissional, económica, nunca deverão exercer
postos de política geral; salvo porventura em casos de completa identificação
connosco, no temperamento, na vontade, no sentir, nos ideais, casos [esses]
muito excepcionais e improváveis”.
Tratava-se também de uma referência aos “mulatos” que “como seres huma-
nos ligados, para mais, à nossa estirpe por sagrados laços de origem, têm […]
direito à nossa simpatia e apoio”. Se oficialmente a discriminação assentava em
critérios de natureza cultural e social, na prática eram as características somá-
ticas que determinavam as relações entre Portugueses brancos e Portugueses
“de cor”, entre Portugueses e Africanos, entre colonizadores e colonizados,
fossem eles assimilados ou indígenas. Esta situação, mostrada através de um
conjunto abundante de imagens, que circulavam em Portugal e nas colónias,
banalizava uma representação dos Africanos, que mesmo assimilados, como
escrevia, em 1934, Vicente Ferreira, militar e ex-governador-geral de Angola,
“não passam de arremedos grotescos de homens brancos [conservando, na
sua maioria] a mentalidade do primitivo, mal encoberta pelo fraseado, gestos

360
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

e indumentária, copiados do europeu”22. A ridicularização destes Africanos e


Portugueses, deles descendentes, era amplamente difundida, quer nas coló-
nias – como em Angola, onde estes homens tinham a designação caricatural
de “calcinhas”, para os expulsar do espaço urbano e português forçando-os a
regressar ao seu estatuto de selvagens – , quer no tecido social especificamen-
te português. A violência da caricatura manteve-se muito activa, permitindo
que a hierarquia das raças pudesse ser o garante da dominação portuguesa nas
colónias, exercida por homens e mulheres (quase) analfabetos, não dispon-
do de qualquer competência técnica ou cultural significativa. Na metrópole,
a banalização de imagens apresentava os africanos como símbolo do atraso
técnico e das formas “primitivas” de organização social e cultural, fixando a
falta intrínseca de qualidade dos “negros” e dos “mulatos” muito utilizados de
forma caricatural na publicidade.
Uma das mais perturbadoras e constantes representações do Africano foi
a do preto-antropófago que o imaginário português ainda não eliminou com-
pletamente.
Desde o início da expansão europeia, uma das ideias relativas à América
– Antilhas e Brasil – que mais cedo se propagou foi a da existência de uma an-
tropofagia alimentar, embora dotada de características particulares: viajantes e
missionários europeus viram-se envolvidos (e comidos!) no quadro dessas prá-
ticas rituais. Mas, em relação à África, a referência a estas práticas só começou a
surgir nos anos finais do século XVI23. A ideia da antropofagia africana instalou-
-se progressivamente em certos sectores das sociedades europeias, particular-
mente ligados à actividade ultramarina para classificar algumas populações de
África, reforçando-se nos séculos seguintes marcados pelo comércio negreiro:
reduzidos a escravos, retirados do continente e instalados em sociedades geri-
das pelos europeus, alcançavam assim a dupla salvação dos corpos e das almas,

22 Vicente Ferreira, (1934), 1946, pp. 255-270.


23 Trata-se da obra de Duarte Lopes e Filippo Pigaffetta, Relação do Reino do Congo e das Terras Circunvizinhas….., (1591), Lisboa,
Agência Geral do Ultramar, 1951, p.43, que não só refere a antropofagia como prática muito apreciada por certas populações da
região, mas apresenta uma gravura onde se pode ver a representação de um ‘talho’ de carne humana. Ver sobre esta questão o
artigo de I.C. Henriques, “A invenção da antropofagia africana”, 2004, pp.225-246 e 503-509.

361
Isabel Castro Henriques

legitimando a violência esclavagista24. Sublinhando uma natureza selvagem,


desprovida da humanidade mais elementar, esta imagem do preto-antropófago,
ausente do imaginário da maioria dos Portugueses, durante os longos séculos
de coabitação com os Africanos, em Portugal, vai impor-se a partir dos finais de
Oitocentos, recuperada pelo discurso científico do século XIX.
Intelectuais e investigadores europeus e portugueses, entre os quais Oli-
veira Martins, integram a antropofagia nas suas grelhas de análise e de clas-
sificação do Outro, aceitando a verdade simplista de que o Africano era um
antropófago congénito. O século XX colonial recorreu a esta categoria classifi-
catória, banalizando-a de diversas maneiras, e utilizando-a de forma constante
como instrumento justificativo da violência das operações coloniais levadas a
cabo contra as populações africanas.
Muitas anedotas, orais ou desenhadas, insistiam em salientar o gosto afri-
cano pela carne humana. Não se tratava de um arquétipo exclusivamente por-
tuguês, mas europeu, que permitia opor às virtudes da norma branca, à bruta-
lidade das práticas africanas. Esta banalização da antropofagia africana dirigia-
-se a todos os públicos, crianças, adolescentes e adultos, recorrendo a contos,
poemas, bandas desenhadas, e também às publicações de natureza científica,
que forneciam as provas indiscutíveis dessa verdade aterradora e indigna da
espécie humana. Neste “delírio antropofágico”, a sociedade portuguesa era
confrontada com uma catadupa de imagens, de informações e de provas, que
a tornavam incapaz de qualquer atitude crítica e racional. Europeus e Portu-
gueses não hesitavam em abrigar os Africanos nas suas casas, onde certamente
perdiam toda e qualquer pulsão antropofágica! Estamos perante um dos pa-
radoxos mais profundos das relações inter-civilizacionais: os Europeus, que
denunciam as práticas canibalescas dos “pretos”, são também aqueles que sem
o menor receio lhes confiam a guarda das suas próprias crianças.
Neste contexto quotidiano dos Portugueses, apostando sempre na defor-
mação da palavra e da fonética, encontramos um “preto” que ficou famoso nos

24 Ver Brasio, 1944.

362
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

anos 1920-1960, o Preto-Papusse-Papão, criação do escritor Augusto de San-


ta-Rita. O carácter antropofágico desta representação animalizada de africano
negro era bem evidente, os desenhadores salientando o volume dos olhos, da
boca e da dentadura, metonímia gráfica do apetite antropofágico… como na
história do lobo mau e do Capuchinho Vermelho! Publicado pela primeira
vez em 1920, com ilustrações de Cotinelli Telmo, e reeditado em 1951 com
novas ilustrações, este livro de poemas e desenhos destinado às crianças, fixou
as fronteiras de uma figura negra monstruosa, perigosa, que não hesitava em
comer os meninos desobedientes ou mal-comportados. Escapar a estas amea-
ças parecia quase impossível, pois a verdade impunha que se considerasse esta
atitude, como um vício profundamente arraigado nos Africanos.
É também o caso da banda desenhada, datada de 1946, intitulada “As Aven-
turas de Valentim”25 , muito apreciada pelos adolescentes da época, onde um
antropófago monstruoso – figura de africano lembrando um gorila –, marcado
com os símbolos da sua selvajaria, se prepara para comer ao pequeno-almoço
duas criancinhas frágeis, brancas e loiras, vítimas do apetite e da brutalidade
do “preto”.
Uma outra representação anedótica, destinada aos adultos, publicada em
1934, “O almoço do antropófago”, conta uma curtíssima história ilustrada,
mostrando um africano negro vestido à europeia, que entra num restaurante e
quer comer não só as preparações culinárias normais, mas também o groom, o
jovem empregado, que tremendo de medo, veio ajudá-lo a despir o sobretudo.
Mesmo assimilado, como o demonstram as roupas e o facto de frequentar o
restaurante, este Africano não perdeu os seus caracteres congénitos de selva-
gem e de antropófago26.
Mas se a literatura insistia em sublinhar a evidência das práticas antropo-
fágicas africanas, que faziam parte da mitificação negativa, foi ela confortada
com as provas fornecidas por estudos científicos, que justificavam a veracida-
de de tais comportamentos. É o caso do espesso livro que o capitão Henrique

25 Revista O Mosquito, 11, nº 707,Lisboa, 3 de Abril de 1946, p. 5.


26 Revista O Senhor Doutor, A1, nº46, Lisboa, 27 de Janeiro de 1934.

363
Isabel Castro Henriques

Galvão, então inspector-superior do Ministério das Colónias, consagrou, em


1947 - acumulando “provas” e mais “provas” - à antropofagia das populações
do norte de Angola. Esta obra reuniu um vasto conjunto de textos escritos nos
anos 1930 e 1940, provenientes de documentos elaborados pelas autorida-
des administrativas coloniais portuguesas e destinados a identificar e provar a
violência da selvajaria africana. A antropofagia é aqui apresentada como uma
monstruosa realidade dessa região, legitimando a necessidade de prosseguir a
acção civilizadora portuguesa, perante a evidente impossibilidade dos Africa-
nos se gerirem de maneira autónoma e civilizada.

A guerra colonial e o reforço do racismo (1955-1975)

A solução teórica do “facto colonial” português tardio – quando a cascata


das independências se verificava já em África –, deveu-se à recuperação salaza-
rista das teses luso-tropicalistas de Freyre, que demonstravam a superioridade
dos Portugueses no que respeita à instalação dos brancos nos trópicos, mas
sobretudo nas relações com os Africanos. Os Portugueses contavam-se entre
aqueles que mais utilizavam as mulheres africanas, dando assim origem a socie-
dades muito marcadas por relações ditas harmoniosas, que contribuíam para
a multiplicação dos “mulatos”. Tal construção permitia afirmar que as práticas
civilizacionais e as operações coloniais portuguesas encontravam a sua razão
de ser na ausência de sentimentos e de práticas racistas por parte dos Portugue-
ses27, o que os diferenciava dos outros Europeus. Esta situação permitia tam-
bém salientar a existência de uma nação grande, unificada e isenta do racismo,
“do Minho a Timor” – fórmula banalizada a partir de 1961 –, pois o mecanis-
mo da assimilação assegurava a homogeneidade dos homens e das culturas.
A ideia de “missão civilizadora” manteve-se e reforçou-se nos finais dos
anos 50, no momento em que a maior parte dos observadores não podia re-
cusar a necessidade de definir, de maneira diferente, as práticas políticas afri-

27 Freyre, 1963, p. 45.

364
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

canas. Num discurso de 1957, Salazar afirmava “nós cremos que há raças,
decadentes ou cruzadas, como se queira, em relação às quais perfilhámos o
dever de chamá-las à civilização”28. Se esta afirmação não continha nada de
verdadeiramente novo, já o momento em que foi pronunciada era fundamen-
talmente outro. Salazar decidia em favor da única operação possível do ponto
de vista dos Portugueses: prosseguir aquilo a que se dava o nome de “esforço
civilizador”, já que os Africanos continuavam a manter-se fiéis à sua barbárie.
Cunha Leal, político anti-salazarista perfilhava das mesmas ideias, escreven-
do, em 1961, que só as intervenções dos Europeus seriam capazes de eliminar
a “selvajaria” dos Africanos, o “canibalismo”, assim como a “nudez”, sem esque-
cer a necessidade de erradicar a “doença do sono” e de liquidar os “feiticeiros”,
convidando os agentes portugueses a afirmar, com força, os direitos específi-
cos dos portugueses, os únicos capazes de bem “civilizar”29.
Se, no plano interno, os responsáveis políticos, se serviam do racismo di-
fuso que caracterizava as relações entre Portugueses e Africanos, no plano in-
ternacional, sempre apoiados, em matéria colonial, pela oposição ao regime,
as autoridades portuguesas mobilizavam sem pudor os velhos “direitos his-
tóricos” e o luso-tropicalismo como teoria que “cientificamente” fornecia as
provas da “diferença lusa” nas relações com os Outros, servindo para legitimar
a justeza da continuidade da presença portuguesa em África, recusando a in-
dependência aos povos dominados.
É também durante os anos 1955-1965 que se regista mais um paradoxo:
por um lado verificava-se o recurso ao luso-tropicalismo para justificar as es-
colhas e as soluções do Estado e a igualdade dos Portugueses “de cá” e “de
lá”, pelo outro multiplicavam-se as regras discriminatórias nas colónias (agora
“províncias ultramarinas”), que viriam a provocar as respostas violentas dos
Africanos. Estas regras discriminatórias devem ser compreendidas também
no âmbito de um fortíssimo projecto de “branquização” das colónias, criando
os mecanismos necessários para incentivar e apoiar a emigração dos Portu-

28 Salazar, 1957, p.10.


29 Leal, Cunha, 1961, p. 49.

365
Isabel Castro Henriques

gueses para a África, sobretudo para Angola. Esta opção reforçava o carácter
obstinado do colonialismo português, apoiado por uma massa cada vez mais
significativa de colonos, na sua grande maioria provenientes dos espaços ru-
rais portugueses, iletrados e paupérrimos, que no Ultramar podiam ambicio-
nar uma promoção social e económica impossível de conquistar em Portugal:
considerando-se e considerados superiores aos Africanos “selvagens” ou “as-
similados”, estes colonos brancos encontravam nos “pretos” os trabalhadores
indispensáveis ao seu rápido enriquecimento.
Estas operações alteraram substancialmente o juízo dos Portugueses a res-
peito dos Africanos que, tendo organizado os movimentos de libertação, pre-
tendiam alcançar a independência. As respostas africanas passaram primei-
ro pela multiplicação dos movimentos de libertação, antecedidos por alguns
acontecimentos trágicos, como a chamada “guerra do Batepá” em São Tomé,
em Fevereiro de 1953, o massacre de Pidjiguiti no porto de Bissau em 1959, a
revolta dos trabalhadores da Baixa de Cassanje, em Janeiro de 1961 e a tentati-
va angolana, em 4 de Fevereiro de 1961, de libertar os presos políticos detidos
na prisão de S. Paulo, em Luanda. Este último acontecimento, a que se segui-
ram os ataques aos Europeus e aos seus bens – habitações, armazéns, plan-
tações – , marcou o início da guerra colonial ou luta de libertação nacional.
Os Portugueses procederam quase imediatamente à invenção de um termo
– os “turras”, abreviação de “terroristas” (note-se a brutalidade do termo que,
envolvendo também a imagem do antropófago, antecede os “terroristas” dos
dias de hoje) – para descaracterizar e caricaturar os combatentes africanos.
Por sua vez os Africanos replicaram, criando os “tugas”– os “portugas” – para
designar os combatentes portugueses, expressão depois generalizada a todos
os Portugueses.
Neste quadro de guerra e de destruição assistiu-se ao reforço de velhos
mitos de enselvajamento dos Africanos: as últimas operações ligadas à bana-
lização da antropofagia foram certamente as que nasceram após os actos de
violência física dos Africanos da UPA (União Popular de Angola) a partir de
Março de 1961, na zona cafeeira do Norte de Angola, amplamente divulgadas

366
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

pelos serviços oficiais portugueses. A crueldade destes actos, que só podem


ser compreendidos no quadro de um afrontamento militar suscitado pela
recusa das autoridades portuguesas de levar a cabo negociações atinentes ao
estatuto a conceder às colónias portuguesas de África, levou os dirigentes da
UPA a criar as condições de afrontamento que implicavam uma ruptura defi-
nitiva entre as duas comunidades. Inúmeras companhias militares portugue-
sas puderam evocar ou até mostrar as operações canibalescas fotografadas pe-
los soldados portugueses, que tinham sido treinados no espaço da mitologia
antropofágica dos africanos. O “turra” era não só um terrorista mas um falso
combatente, que não hesitava em praticar os actos mais hediondos contra os
militares portugueses. Todavia, são portuguesas as fotografias que mostram
os cadáveres africanos decapitados e as cabeças espetadas em paus, para as
exibir ao mundo civilizado! Não bastava então a crueldade da tortura e da
morte, era indispensável assegurar a eternidade dos factos, prova da eficácia
da violência, que só podia responder a uma antropofagia mítica com uma real
verdade das imagens.
Mau grado os famosos “cinco séculos de colonização” que fazem parte, ain-
da hoje, da relação mítica de Portugal com a África, os Portugueses conserva-
ram, até muito tarde no século XX, o fantasma da antropofagia, como se esta
tivesse sido uma prática corrente entre as populações africanas, empurrando
os Africanos para uma constante desqualificação.
Durante mais de treze anos, a guerra colonial, que se estendeu a Angola,
à Guiné e a Moçambique, só podia consagrar a imagem negativa do Africano,
consolidando as formas mais duras do preconceito racial e cultural, traduzin-
do-se na fixação de uma visão racista dos Africanos em Portugal, silenciosa-
mente discriminados no trabalho, nas práticas do quotidiano, na vida social.

Visibilidade/Invisibilidade dos Africanos em Portugal

O engenheiro agrónomo Daniel Nunes, cabo-verdiano, instalado no inte-


rior de Portugal para proceder à instalação da cultura da beterraba açucareira,

367
Isabel Castro Henriques

saiu de casa, ao lusco-fusco, e cruzou-se com uma empregada que, esbaforida,


fugiu aos berros, gritando “É o diabo, o diabo, o diabo…!”. Também Paulo
António dos Anjos, jornalista lisboeta, mestiço, foi abordado na rua por uma
senhora carregada de embrulhos que lhos estendeu dizendo: “traz-me isto até
casa”.30 Registe-se o facto dos dois protagonistas destas histórias terem um
estatuto social reconhecido: mesmo assim a cor da pele era o marcador ab-
soluto. Podíamos certamente contar muitas outras histórias, que mostram a
dificuldade portuguesa em reconhecer a igualdade do Africano.
A presença de Africanos e Afro-descendentes na sociedade portuguesa
nos vinte anos que decorrem entre 1955 (Conferência de Bandung) e 1975
(África ‘lusófona’), período marcado pelas independências africanas e pelas
guerras coloniais, não tem suscitado um interesse significativo da comunidade
académica31 capaz de permitir eliminar a escassez e a fragilidade dos conheci-
mentos relativos aos fluxos migratórios, às formas de instalação e de integra-
ção verificados então em Portugal.
Comecemos por registar a instalação de Portugueses ou Africanos bran-
cos, mestiços ou negros, vindos das colónias para estudar nas universidades
portuguesas. Em número escasso, estes estudantes instalados na Casa dos Es-
tudantes do Império (CEI), criada em 1944, em Lisboa, pela Mocidade Por-
tuguesa - órgão do regime que geria as juventudes nacionais -, procuraram de-
nunciar o colonialismo português 32. Durante a década de 1950, a CEI que se
tinha vindo a organizar como espaço associativo de debate político e cultural
anti-salazarista e anti-colonialista, publicando textos, poemas, depoimentos,
ensaios na Mensagem, órgão de difusão da CEI desde 1948, cria entre 1951 e
1953 o Centro de Estudos Africanos onde viriam a colaborar muitas das figu-
ras fundadoras dos movimentos independentistas das colónias portuguesas
de África. A partir de 1961, o reforço da adesão de vários estudantes das coló-
nias a organizações anti-regime como o MUD Juvenil e o PCP, a dureza da vi-

30 Ambas as histórias foram contadas pelos próprios a Alfredo Margarido, por volta de 1962.
31 Ver Pires 1999, Gusmão 2004, bem como os estudos citados.
32 Ver os textos e as diversas perspectivas sobre a CEI, no cinquentenário da sua fundação (Mensagem 1997).

368
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

gilância e da censura política, as prisões e a repressão da PIDE, a fuga de parte


significativa dos dirigentes nacionalistas – como Amílcar Cabral, Agostinho
Neto, Mário de Andrade, Eduardo Mondlane, Vasco Cabral, entre outros -, a
luta independentista que exigia outro tipo de acções no terreno e de forma-
ção de quadros para assegurar a libertação das colónias, constituem factores
que levaram ao fim da CEI, encerrada pelo governo português em 1965. Im-
portante pelo papel que desempenhou na formação de elites africanas, a sua
influência foi muito reduzida na sociedade portuguesa, que não soube (não
pôde) construir qualquer movimento social de cariz anti-colonial.
Diga-se, no entanto, que, apesar da guerra colonial que mobilizou centenas
de milhar de Portugueses e condicionou a vida nacional, não se verificaram,
em Portugal, assomos de violência explícita – o que não elimina a violência si-
lenciosa do preconceito - contra os Africanos que aqui viviam e trabalhavam.
As comunidades africanas ou portuguesas de origem africana, fosse qual fosse
o seu nível social, puderam viver entre os Portugueses, discriminadas sim, mas
sem recear ataques racistas violentos dos extremistas portugueses. A frágil (e
arcaica) extrema-direita que apoiava incondicionalmente as opções colonia-
listas, a incipiente economia, a rígida estrutura social portuguesa – “cada um
no seu lugar” -, mantiveram a “paz”, que se apoiava naturalmente na repressão
política. Devemos acrescentar que as relações sociais na sociedade portugue-
sa de então, se caracterizam também pelas muitas formas de intimidade e de
cumplicidade que marcaram o relacionamento secular entre portugueses e
africanos em Portugal. Tal facto, não eliminava os juízos de valor negativos dos
Portugueses sobre o “preto”, mas permitia integrá-lo com naturalidade e de
forma quase invisível porque desprezível na paisagem portuguesa. Por outro
lado, numa sociedade como a portuguesa, em que imperava o analfabetismo e
a ausência de reflexão teórica e de conhecimentos científicos, agravados pela
censura do regime salazarista, o racismo epidérmico ou naturalmente espon-
tâneo - adoptando a maneira de dizer de Paul Mercier33 para definir um certo

33 Mercier, 1966, p.15.

369
Isabel Castro Henriques

discurso antropológico anterior à criação da disciplina - era o único capaz de


ser praticado e entendido pela população portuguesa 34 .
Em 1971, um historiador português afirmava num texto consagrado à Escra-
vatura: “Qual foi a consequência para o País desta abundância de escravos? O
abastardamento dos costumes […] a falta de disciplina moral […] não se desen-
volveu no País o gosto pelo trabalho e pelo progresso […] Os métodos de pro-
dução nunca avançaram e a dependência da indústria estrangeira acentuou-se. A
ociosidade foi outra consequência. As tarefas mais duras foram abandonadas e os
homens livres procuraram a grande aventura do mar […] os escravos […] trans-
formavam-se em vagabundos e ladrões e […] as escravas […] passaram a mulhe-
res fáceis”. A violência deste juízo, na segunda metade do século XX, põe-nos pe-
rante a necessidade de reflectirmos sobre a maneira portuguesa de inferiorizar o
Outro, que “não pode senão ser a causa de todas as desgraças vividas no país”35.A
situação da imigração dos Africanos até 1974, que eram portugueses na lógica do
regime colonial – apenas tinham mudado da “província ultramarina” para outra
província na Metrópole - manteve-se quase sem alterações. A chegada de imi-
grantes africanos sem qualificação, um terço dos quais proveniente de Cabo Ver-
de, só começa a ter algum significado a partir de 1973 36: Como refere Pena Pires,
até “1960, a maioria dos cerca de 30000 estrangeiros residentes em Portugal era
composta por europeus (67%) e brasileiros (22%)”, a imigração tendo aumenta-
do ligeiramente a partir de meados de sessenta e inícios de setenta, graças a uma
ligeira aceleração da economia, da construção civil e do turismo, em particular.
Acrescenta que é nas primeiras décadas de setenta, “que têm início alguns dos
fluxos migratórios com origem nas então colónias africanas [sendo] difícil conta-
bilizá-los….. [pois] eram considerados migrações inter-regionais…que vinham
colmatar a escassez de mão-de-obra em sectores de trabalho mais afectados pela
emigração para a Europa e pelo recrutamento militar para as colónias”37.

34 Sobre a questão do conhecimento português relativo à África e aos Africanos, ver Henriques 1997, pp.40-56.
35 Miguel, 1981,p.423.
36 “Evolução da população estrangeira em situação regular, segundo a origem, 1960-1997”, Estatísticas Demográficas, estatísticas e
Relatórios Anuais, Lisboa, Instituto Nacional de Estatística, 1997.
37 Pires, 1999, pp.198-199.

370
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

Gráfico
Ásia

América
do Norte
e do Sul

África

Europa

Evolução da população estrangeira em situação regular,


segundo a origem, 1960-1997 38

“Os dados para 1969, 1973, 1996, e 1997 foram estimados, nos dois pri-
meiros casos para colmatar lacunas de informação, nos dois últimos para inte-
grar os resultados provisórios do processo extraordinário de regularização de
estrangeiros; a variação negativa entre 1984 e 1985 corresponde a uma ac-
tualização de ficheiros dos Serviços de Estrangeiros e Fronteiras”. Pires, 1999,
p. 197.

Como afirma Pena Pires, “A imigração africana que se seguiu à descolonização


foi, durante alguns anos, relativamente invisível, quer para as autoridades políti-
cas, quer para os cientistas sociais”, sendo apenas assinalada ocasionalmente pela
opinião pública e pelos media, o Africano tornando-se sinónimo de cabo-verdia-
no. Pires acrescenta que “essa primeira vaga migratória” envolveu “nacionais de
todas as ex-colónias – cerca de 45000 segundo os dados do Censo de 1981”, sen-
do “muito difícil determinar o número preciso de africanos imigrados em Portu-
gal no início da década de oitenta”39. Este primeiro grupo integrava naturalmente
trabalhadores sem quaisquer competências técnicas, mas também estudantes e

38 Fonte: Estatísticas Demográficas e Estatísticas e Relatórios Anuais, Lisboa, INE, 1997.


39 Pires, 1999, pp. 199-200.

371
Isabel Castro Henriques

sobretudo “os retornados não brancos…[que] possuíam….nacionalidade por-


tuguesa, alguma qualificação profissional e grau de instrução, o que tornou pos-
sível uma inserção mais rápida…na sociedade portuguesa, já que preenchiam
os requisitos de «civilidade» necessários para o bom convívio social”40. A sua
posição social e económica marcou o seu auto-afastamento em relação não só às
comunidades “negras” ou “mulatas” já instaladas em bairros periféricos de Lis-
boa, mas também aos imigrantes africanos, que vieram depois, de vários países
de África41, fornecendo uma mão de obra não qualificada, absorvida pela cons-
trução civil. Pires vê nesta “primeira fase da imigração africana pós-1974… [a
coexistência de] uma migração de refugiados, protagonizada por angolanos e mo-
çambicanos e uma migração laboral…”, sobretudo cabo-verdiana.
É este significativo aumento de imigrantes a partir de 1980, visível no es-
paço laboral português e nos “bairros de lata”, que “permite [à sociedade por-
tuguesa] perceber que a imigração africana era um processo mais vasto, hete-
rogéneo e dinâmico do que a imagem que então dela se tinha construído”42.
Esta constatação, que reforça a “invisibilidade” do Africano até 1980, é cer-
tamente um dos elementos mais perturbadores da sociedade portuguesa do
século XX.

Conclusão

Se as imagens escritas, iconográficas, materiais construídas durante sécu-


los não representam a realidade, exprimem sim fórmulas metafóricas, visões
fantasmagóricas dos africanos, dando conta não dos Outros mas de nós pró-
prios, os Europeus. O problema crucial da interpretação das representações
dos Africanos elaboradas pelos Portugueses, sobretudo nos séculos XIX e XX

40 Gusmão, 2004, pp.136-137.


41 Desde os anos 1975 e sobretudo 1980, a periferia de Lisboa – que já na década anterior crescera desordenadamente em conse-
quência das migrações internas (do campo para a cidade) - foi progressivamente ocupada por “bairros de lata” ou de “barracas”
que acolheram os imigrantes africanos sem qualificação técnica, de início frequentemente organizados por nacionalidade de
origem, mas que o tempo acabou por eliminar, mantendo-se apenas alguns núcleos cabo-verdianos. Ver Gusmão, 2004, cap. III.
42 Pires, 1999, p.199.

372
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

marcados por uma panóplia eficaz de instrumentos técnicos e conceptuais


ao serviço da fabricação da figura do Outro, é certamente o de desmontar o
discurso paradigmático ocidental/ europeu/ português, compreender o olhar
que foi sendo organizado sobre o “preto” e o “mulato” e utilizar/filtrar/rein-
terpretar toda a documentação produzida – textos, fotografias, publicidades,
pinturas, cerâmicas, desenhos, gravuras, filmes…. – para encontrar no emara-
nhado dos preconceitos a realidade do Outro africano.
O 25 de Abril de 1974, que liquidou a guerra colonial, abriu também as portas
para essa revisão – é verdade que ainda modesta – da história das relações dos
Portugueses com a África, assim como dos conceitos e preconceitos que as sedi-
mentaram, exigindo leituras rigorosas dos documentos que revelam justamente
a contribuição multissecular dos Africanos para a construção da sociedade por-
tuguesa. O fim do processo colonial português, por via das independências das
colónias africanas, que tinham começado a balbuciar em português há já alguns
séculos, permitiu que estes novos países de África integrassem a língua portuguesa
na sua escarcela teórica. A inquietação portuguesa revelou-se então na tentativa de
assegurar o controlo da língua portuguesa, suporte por assim dizer único da luso-
fonia 43 que, alguns ainda marcados pelo espectro do Império - o fantasma do (nos-
so) castelo de Elsenor -, pretendiam transformar em espaço isolado do mundo,
representando o génio português, especialmente adaptado às estruturas tropicais.
Os últimos vinte anos têm vindo a mostrar uma (lenta) eliminação de
certas formas estereotipadas que marcavam negativamente o Africano. Mas a
força do preconceito secular emerge através da recuperação de velhas fórmu-
las e representações, absurdas e desactualizadas, que reforçam, no quadro das
novas regras e dos novos problemas inerentes à globalização que formatou o
mundo a partir dos anos 1980, inúmeros actos de discriminação racial e social
com que se confrontam hoje os muitos Africanos imigrantes que procuram
na Europa e em Portugal, um espaço de sobrevivência e novas formas de vida.

Lisboa, Julho de 2011

43 Ver Margarido, 2000.

373
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

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Isabel Castro Henriques

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ACL - Academia das Ciências de Lisboa
AGC - Agência Geral das Colónias
AGU - Agência Geral do Ultramar
AHM - Arquivo Histórico Militar (Lisboa)
AHU - Arquivo Histórico Ultramarino
AHNA - Arquivo Hitórico Nacional de Angola
ANTT - Arquivo Nacional da Torre do Tombo
APH - Associação dos Professores de História
BA - Biblioteca Nacional da Ajuda (Lisboa)
BAD – Bibliothèque des Arts Décoratifs (Paris)
BGUC - Biblioteca Geral da Universidade de Coimbra
BM - Biblioteca da Marinha (Lisboa)
BNB - Biblioteca Nacional do Brasil
BNP - Biblioteca Nacional de Portugal
BNF – Bibliothèque Nationale de France
BNRJ – Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro
BPMP - Biblioteca Pública Municipal do Porto
BSGL - Boletim da Sociedade de Geografia de Lisboa
CEGP - Centro de Estudos da Guiné Portuguesa
CGA - Correspondência dos Governadores de Angola (AHU)
CHUL - Centro de História da Universidade de Lisboa
CNCDP - Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses
CRA - Centre de Recherches Africaines (Université de Paris I)
CUP - Cambridge University Press
DIAMANG - Companhia dos Diamantes de Angola
EHESS – École des Hautes Études en Sciences Sociales (Paris)
FCG – Fundação Calouste Gulbenkian
FCT – Fundação para a Ciência e Tecnologia
FLAD - Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento
IAC - Instituto de ALta Cultura
IAUC – Instituto de Antropologia da Universidade de Coimbra
ICALP - Instituto de Cultura e Língua Portuguesa
ICP - Instituto de Cooperação Portuguesa
ICS - Instituto de Ciências Sociais, Universidade de Lisboa
IICA - Instituto de Investigação Científica de Angola
IICT - Instituto de Investigação Científica Tropical
INCM – Imprensa Nacional – Casa da Moeda
INE – Instituto Nacional de Estatística
JAH – Journal of African History (Londres)
JICT – Junta de Investigações Científicas Tropicais
JIU - Junta de Investigações do Ultramar
MHNRJ - Museu Histórico Nacional do Rio de Janeiro
MLAUC - Museu e Laboratório Antropológico da Universidade de Coimbra
MMA - Monumenta Missionária Africana
MNAA - Museu Nacional de Arte Antiga (Lisboa)
MNE - Museu Nacional de Etnologia (Lisboa)
MNEA – Museu Nacional da Escravatura de Angola
NMAACH – National Museum of African and American History and Culture (Washington)
OUP - Oxford University Press
PUF - Presses Universitaires de France
PUV - Presses Universitaires de Vincennes
RHES – Revista de História Económica e Social
RIEA - Revista Internacional de Estudos Africanos (Lisboa)
SEM - Sociedade de Estudos de Moçambique
SGL - Sociedade de Geografia de Lisboa
SNI - Secretariado Nacional de Informação
UCP – University of California Press
UL – Universidade de Lisboa
UNL – Universidade Nova de Lisboa
USP – Universidade de São Paulo (Brasil)

382
DE ESCRAVOS A INDÍGENAS

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pp. 134-143. Em colaboração com Alfredo Margarido.

"Ser escravo em São Tomé no século XVI", in Revista Internacional de Estu-


dos Africanos, Lisboa, nº 6-7, Janeiro-Dezembro 1987, pp. 167-178.*

"A revisão da escravatura e do tráfico negreiro em Moçambique", in Africa-


na Studia, nº 5, Porto, Centro de Estudos Africanos da Universidade do Porto,
2002, pp. 213-226.*

"Como legitimar a escravatura e o comércio de escravos?", in Isabel Cas-


tro Henriques e Louis Sala-Molins, Déraison, Esclavage et droit. Les fondements
idéologiques et juridiques de la traite négrière et de l'esclavage - Introduction, Paris,
Éditions UNESCO, 2002, pp 11-20.*

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Isabel Castro Henriques

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vista História, Lisboa, 1999, nº 16, pp. 10-18.

“A falsa passagem de escravo a indígena, in Sérgio Campos Matos, coord.,


Actas do Seminário Internacional Crises em Portugal nos séculos XIX e XX, Lis-
boa, Centro de História da Universidade de Lisboa, 2002, pp. 81-97.*

“Virtudes ‘brancas’, pecados ‘negros’. Versão revista de “Da virtuosa bran-


dura do Branco à preguiça pecaminosa do Negro: contribuição para uma re-
leitura da situação colonial na África sob dominação portuguesa”, in Studia
Africana, nº I, Barcelona, Janeiro de 1990, pp. 27-38.*

“A África e a Primeira República: paradoxos, estratégias e práticas colo-


niais”, in José Miguel Sardica, coord., A Primeira República e as Colónias Portu-
guesas, Lisboa, 2010, pp.147-187.

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