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Ponto de Vista | Mais amor e mais tesGo: histéria da homossexualidade no Brasil José Gatti entrevista James Green Quando o historiador James Green veio pela primeira vez ao Brasil, ha mais de vinte anos, provavelmente nao imaginava que sua vida seria 40 tocada por nosso pais Suasrelagdes com 0 Brasil adquiram multidimensionalidade: aprendeu portugués, viajou pelo pais, passou varios periodos leclonando em instituig6es brasileltas, envolveu-se politica emocionalmente. Tadas essas experiéncias Ihe déo um curticulo que pouces estudiosos estrangeiros do Brasil possuemn — Green ndo apenas viveu 0 pois por dentro, como também se apaixonou pelo Brasil e pelos brasieiros. Por isso mesmo Além do camaval: a homossexualidade masculina no Brasil do século XX’ 6 uma obra incomum Poderiamos esperar 0 estudo distanciado de um académico bem informado teoticamente, mas 0 livro vai muito “além da academia’, sem pretender distanciarse de seu objeto. O levantamento minucioso da documentagdo (que demonstra © treinamento sofisticado do Green historiador € critico agugado} se mescia a uma perspectiva afetuosa de nossa cultura e nossa histérla (que revela o Green humano, que Nndo esconde seu entusiasmo pelo Brasil. 1, $60 Paulo: Unesp, 2000. 541 p. MAIS AMOR E MAIS TESAO As quase quinhentas paginas do livio vao alémn do registro da subcuttura gay no Brasil. Qualquer estudioso da cultura brasileira urbana do século XX vai se beneficiar da garimpagem realizada por Green. As notas bibliogréticas dao a dimensdo da profundidade da pesquisa. O autor registra costumes, locas, historias de vida e uma iconogratia fiquissima, tomandio seu livro uma fonte preciosa para histo- fiadores, antropdlogos, estudiosos de comunicagdo e de literatura. Exemplos disso so as crénicas que faz da Praga Tradentes ou do Parque do Anhangabau,, tradicionais pon- tos de encontros gays do Rio de Janeiro e de Sdo Paulo. Green vai levantando camadas de infommagées, tais como a indUsitia de entretenimento do local (onde se localizaram 08 primeiros cinemas do Rio), historias de represséo poicial (tiadas de jomais e boletins de ocorréncia), biogratias de travestis famosos (como a célebre Panella de Bronze no Rio, 0u Zaza, em Sao Paulo), a linguagem (de onde vér os ter- mos “fresco” e "viado"?}, A topogratia sexual dessas cidades vai mudando, e 9 livio acornpanha essas mudangas, Nos anos 30, 0 abafamento da vida gay era constante @ comia por conta da repressao policial e psiquidtrica, Nos anos 50, entretanto, a visibilidade j despontava como estratégia ieversivel nessa historia de emancipagéo, Dai a criagdo dos primeiros jomais e revistas gays, que proliferoram durante toda a década de 60 € sofreram a repressGo da ditadura militar, que recrudesceu « partir de 1968. Essa imprensa altemativa foi solidificando as relagdes sociais entre individuos antes bastante isolados, A compreensdo desse processo historico € sem duvida uma das contriouigoes preciosas do livio de Green. Aconversa transcrita aqui aconteceu na UFSC, durante a realizagao do XX Simpésio Nacional de Historia da ‘Associagao Nacional de Historia (ANPUH), em julho de 1999 contou com a paricipagdo de Claudia de Lima Costa, Miriam Pillar Grossi ¢ Carmen Silvia Rial. Desde aquele momento muita coisa aconteceu no Brasil, no campo da homossexu- Glidade e do homoerotismo. A realizagao da Parada do Or- gulho Gay, em junho de 2000 em Sao Paull, serd um marco dificimente esquecido por todos aqueles interessados em quesiées de visibilidade e manifestagées culturais: mais de 120 mil pessoas realizaram uma passeata festiva e pacifica, demonstrando que nern os meios de comunicagéo nem a academia poderao continuar ignorando a existéncia dessa comunidade. Sera comunidade © temo mais adequado para categorizar esse grupo humano? Esse é um dos assun- tos tocados nesta conversa. ANO8 7] 5) 2°semestre 2000 JAMES GREEN José Gatti: Qual é 0 elxo central do seu livro, Alm do Carnaval? James Green: © livio é uma historia social da homossexualidade masculina, sobretudo em SGo Paulo e no Rio de Janeiro. Gostaria de ter feito uma coisa sobre 0 Brasil inteiro, mas para mim setia um projeto quase impossivel de realizarneste momento. Mas acho que surgitdo pesquisa regionais e daqui a 10 anos imagine que alguém poderd fazer um trabalho muito superior ao meu, integrando a tealidade nacional de uma manelra mais coerente, A minha pesquisa comega no século passado, principalmente no Rio de Janeiro e concentra-se na Belle Epoque num primelro momento, combinando uma andlise sobre 0 discurso médico legal, que comega a aparecer a partir de 1872. E interessante que o discurso médico do século passade no Brasil teve uma ligagao muito forte com a realidade da produgdo académica européia. Na Europa a produgao académica sobre o homossexualismo, sua medicalizagao, inicia-se em 1869, com a invengéo do proprio termo “homosexual”, Mas desde entao jd havia uma preocupagGo com a questéo da sodomia, entre pederastas “passivos’ € “ativos* — duas palavras-chave — preocupagao esta também tefletida em um mapeamento inicial da siflis feito por médicos brasileiros. Esses médicos mencionam principalmente a prostituigao feminina, mas também os homossexualsmos. Fazem um mapeamento da cidade e dos lugares de enconiros, explicitando as caracteristicas das pessoas, Tinha muito interesse em saber sobre os lugares de sociabllidade pliblica. Depois tem outto trabalho, de 1894, intitulado Atentados ao Pudor, escrito por um jurista, Dr. Vivelros de Castto, que esta mais atento para a realidade da produgdo européia, No livro ele anuncia um romance que vai sair, sobre homossexualismo, que ¢ O Bom Crioulo, de Adolfo Caminha, publicado em 1895. O proprio Adolfo Caminha, numa resposta aos criticos de seu livo O Bom Crioulo, vai usar a palavra homossexual, porque ele esta em Contato com essa produgdo européia. E verdade que a produgdo académica até os anos 60 € 70 deste século é a de reproduzir, copiar, sen elaboragao sofisticada, as teorias européias de uma maneira muito eclética. Eu acho que o Brasil nao tem sempre que importar teorias de fora € tentar encaixé-las na realidade brasileita, mas a tendéncia da produgée académica, desde @ século XIX, era copiar e aplicar as idélas européias e depois as americanes. Nos anos 30 ha uma produgéo sobre o homossexualismo imensa, inclusive temos 0 primeira trabalho ESTUDOS FEMINISTS] 5 ] 2/2000 MAIS AMOR E MAIS TESAO. ANO 8 1 5D 2° SEMESTRE 2000 brasileiro sobre 0 lesbianismmo — esciito por um médico, Anio- nio Carlos Pacheco e Silva. O arigo, *Um interessante caso de homossexualismo feminino”, fol publicado em 1939 na revista Arquivos da Sociedade de Medicina Legal e Criminologia de SGo Paulo. © trabalho incluia fotos de uma lésbica negra, vestida de homem e vestida de mulher, que freqtientava a clinica dele em Sao Paulo. Enquanto estava fazendo pesquisa sobre o discurso médico no fim do século XIX e no comego do século XX, comecei a procurar outras fontes histéricas que representavam imagens do homossexual brasileiro Revisando as revistas publicadas no Rio de Janeiro encontrei caricaturas do comego do século, da Belle Epoque, que mostrava as varias maneiras como os intelectuais projetavam ‘ohomossexual como homem efeminado, vestide com roupa masculina, mas com um estilo exagerado. Também revisel processes legais que finham uma linguagem especifica Para indicar praticas homossexuais. Estava muito interessado em entender a linguagem da época, 0 espago ocupado e asteagées da elite co homossexualismo, porque é dificil saber das reagdes populares, ha poucos casos registrados. © primeiro capitulo do livio faz um mapeamento do Rio de Janeiro daquela época, quando o espa¢go privilegiado é a Praga Tiradentes, o lugar onde os homossexuais se juntavam para fazer pegacao. E nessa historia toda descobri 0 primeira conto pomografico homossexual no Brasil, publicado em 1914 pela revista Rio Nu (que era uma revista pomografica), com um desenho de dois homens trepando! E1a uma revista ditigida ao puiblico predominantemente heterosexual, mas publicaram uma série de contos erdticos sobre varios temas, como bestialidade, masoquismo. O numero sels chamava-se O menino do Goweia José Gattl: O menino do Gouvela? James Green: sim, descobri recentemente que a palavia gouvela era uma gitia para os homens que gostavam de Meninos. No livinho 0 Senhor Gouveia tem um namoro com um menino, por iss0 0 titulo O menino do Gouveia. Esse jovern, © menino do Gouveia, foi expulso de casa porque tentou fransar com o tio. Ele se ofereceu para 0 tio, 0 tio ficou furioso @ 0 expulsou de casa, Ele anda nas ruas do Rio procurando tertelagdes com alguém e termina no Largo do Rossio, hoje em dia chamado Praga Tiradentes. Um senhor se senta ao lado dele, comega a conversar, faz pegagdo, leva ele para um cinema e depois pare transar.

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