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Universidade do Estado do Rio de Janeiro

Centro de Educação e Humanidades


Faculdade de Educação

Márcia Gatto

Os indesejáveis: das práticas abusivas e ideologia dominante no enfrentamento


aos sujeitos indesejáveis no Rio de Janeiro

Rio de Janeiro
2017
Márcia Gatto

Os indesejáveis: das práticas abusivas e ideologia dominante no enfrentamento aos sujeitos


indesejáveis no Rio de Janeiro

Tese de Doutorado apresentada, como requisito


parcial para obtenção do título de Doutor, ao
Programa de Pós-Graduação em Políticas Públicas e
Formação Humana, da Universidade do Estado do
Rio de Janeiro.

Orientadora: Profª. Drª. Esther Maria de Magalhães Arantes


Coorientador: Marildo Menegat

Rio de Janeiro
2017
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/A

G262 Gatto, Márcia.


Os indesejáveis: das práticas abusivas e ideologia dominante no
enfrentamento aos sujeitos indesejáveis no Rio de Janeiro / Márcia Gatto. –
2017.
393 f.

Orientadora: Esther Maria de Magalhães Arantes


Coorientador: Marildo Menegat
Tese (Doutorado) – Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Faculdade de
Educação.

1. Políticas Públicas – Teses. 2. Ideologia, Nazifascismo – Teses. 3. Crianças


e Adolescentes em situação de rua – Teses. 4. Recolhimento, Encarceramento,
Homicídio – Teses. I. Arantes, Esther Maria de Magalhães. II. Menegat, Marildo.
III. Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Faculdade de Educação. IV.
Título.

es CDU 306

Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta
tese, desde que citada a fonte.

___________________________________ _______________
Assinatura Data
Márcia Gatto

Os indesejáveis: das práticas abusivas e ideologia dominante no enfrentamento aos sujeitos


indesejáveis no Rio de Janeiro

Tese apresentada, como requisito parcial para


obtenção do título de Doutor, ao Programa de Pós-
Graduação em Políticas Públicas e Formação
Humana, da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro.

Aprovada em 15 de dezembro de 2017.

Banca Examinadora:

_______________________________________
Profª. Drª. Esther Maria de Magalhães Arantes (Orientadora)
PPFH UERJ

_____________________________________________
Profº Dr. Marildo Menegat (Coorientador)
UFRJ

_____________________________________________
Profº Dr. Helder Molina
Faculdade de Educação da UERJ

____________________________________________
Profª. Drª Elizabeth Serra Oliveira
Instituto Nacional de Educação dos Surdos (INES)

____________________________________________
Prof. Dr. Rodrigo Lima
Faculdade de Serviço Social da UFF

Rio de Janeiro
2017
DEDICATÓRIA

Dedico esta Tese à militância aguerrida, defensores de direitos humanos de crianças e


adolescentes desse país, amigos que a vida me presenteou ao longo de mais de 25 anos, que
integram diversos coletivos:
Rede Rio Criança, Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, Movimento
Candelária Nunca Mais!, Campanha Nacional Criança Não é de Rua, Comitê Nacional das Redes
de Atenção às crianças e adolescentes em situação de rua, Grupo de Trabalho Criança e
Adolescente em Situação de Rua da Comissão da População de Rua da Câmara Municipal de
Vereadores, Fórum Estadual de Defesa da Criança e do Adolescente, Conselho Estadual dos
Direitos da Criança e do Adolescente – CEDCA, Frente Nacional Contra a Redução da Idade
Penal.
Esta é uma contribuição para compreendermos melhor essa dura e sombria realidade
social que faz das crianças e adolescentes, sejam em situação de rua, ou nas comunidades e
periferias, majoritariamente negras e pobres, as maiores vítimas da violência e suas dimensões.
AGRADECIMENTOS

Eu teria muitos agradecimentos a fazer, pois muitas são as pessoas e coletivos que
estiveram comigo ao longo dessa caminhada que não terminou. Como diz Galeano, “a utopia
serve para isso, para que nunca deixemos de caminhar”! Por isso, queridos amigos e
companheiros, que resistem e não desistem de lutar, agradeço a todos e todas por resistirem e
ainda acreditarem num outro mundo possível!
Devo agradecer, especialmente, à Rede Rio Criança e todas as pessoas e instituições que
fazem parte deste coletivo que, juntos há 16 anos, somos como uma família. Agradeço pela
confiança em mim depositada ao longo desses anos, agradeço a troca de experiência, discussões,
debate, mas também muita ação em prol desses que são a nossa razão de existência: as crianças e
adolescentes em situação de rua.
Aos meus amigos e companheiros da Campanha Nacional Criança Não é de Rua e do
Comitê Nacional da Rede de Atenção às Crianças e Adolescentes em situação de Rua,
representantes de redes e coletivos que se destacam nas 05 regiões desse país na temática das
crianças e adolescentes em situação de rua.
À todos que contribuíram com a pesquisa de dados das unidades de internação do
Departamento Geral de Ações Socioeducativas (DEGASE) para adolescentes autores de ato
infracional: Dra Janaína Pagan (MP), Dra Eufrásia Souza e Rodrigo Azambuja (Defensoria
Pública), Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Cláudio Vieira (SINASE),
Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente (CEDCA).
E agradeço aos Professores da Banca, especialmente Esther Arantes, minha orientadora,
que acolheu a mim e ao meu tema, no PPFH – UERJ, e Marildo Menegat, meu coorientador, pela
sua generosidade em compartilhar tanto conhecimento e pela indicação de livros, que muito me
ajudou a pensar e que foi determinante para desenvolver esta tese.
A todos e todas o meu muito obrigado!
RESUMO

GATTO, Márcia. Os Indesejáveis: das práticas abusivas e ideologia dominante no enfrentamento


aos sujeitos indesejáveis no Rio de Janeiro. 2017.396 f. Tese (Doutorado em Políticas Públicas e
Formação Humana) – Programa de Pós Graduação em Políticas Públicas e Formação Humana,
Universidade do Estado do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2017.

Esta tese de doutorado defende que na atualidade existe um tipo de ideologia muito
próxima ao que foi a ideologia nazifascista da Alemanha do Terceiro Reich, que perpassa esta
sociedade, ora oculta, ora manifestada, principalmente nas práticas abusivas e posturas do poder
dominante direcionada aos “sujeitos indesejáveis”, que defino como o grupo social composto
pelas crianças e adolescentes em situação de rua, as provenientes das favelas e periferias, bem
como os adolescentes autores de ato infracional que são encarcerados, e os que são alvo da
violência letal do Estado do RJ, em sua maioria, negros e pobres. Estabeleço uma analogia entre
as três soluções/fases do nazismo para a questão dos judeus e outros grupos indesejáveis com as
três práticas adotadas pelo poder dominante do RJ: (1ª) Prática: Recolhimento / Expulsão; (2ª)
Prática: Encarceramento / Concentração; (3ª) Prática: Assassinato / Homicídio. O modo de
produção capitalista tem contribuído com o agravamento desta situação, estabelecendo padrões
de desigualdade e exclusão desse segmento do processo produtivo.

Palavras-chave: Sujeitos Indesejáveis. Ideologia. Nazifascismo. Crianças e Adolescentes em


Situação de Rua. Recolhimento. Encarceramento. Homicídio.
ABSTRACT

GATTO, Márcia. The Undesirable: from abusive practices and dominant ideology of coping with
undesirable subjects in Rio de Janeiro. 2017.396f. Thesis (Doctorate in Public Policies and
Human Education) - Graduate Program in Public Policies and Human Education, Rio de Janeiro
State University, Rio de Janeiro, 2017.

This doctoral thesis argues that at present there is a type of ideology very close to the
Nazi-fascist ideology of Germany of the Third Reich, which runs through society, now hidden,
now manifested mainly in the abusive practices and attitudes of the dominant power directed to
"Undesirable subjects", which I define as the social group composed of street children and
adolescents, those coming from the favelas and peripheries, as well as the adolescents who
commit an offense that are incarcerated, and those who are targeted by the state's lethal violence
of RJ, mostly black and poor. I establish an analogy between the three solutions / phases of
Nazism for the question of the Jews and other undesirable groups with the three practices adopted
by the ruling power of RJ: (1st) Practice: Recollection / Expulsion; (2ª) Practice: Incarceration /
Concentration; (3rd) Practice: Assassination / Homicide. The capitalist mode of production has
contributed to the worsening of this situation, establishing patterns of inequality and exclusion of
this segment of the productive process.

Keywords: Undesirable Subjects. Ideology. Nazifascism. Children and Adolescents in Street


Situations. Recollection. Incarceration. Homicide.
LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

ADA - Amigos dos Amigos


ALERJ - Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro
BOPE - Batalhão de Operações Especiais da Polícia Militar
BOC - Boletins de Ocorrência Circunstanciados
CAI Baixada - Centro de Atendimento Intensivo Belford Roxo
CASR - Crianças e Adolescentes em situação de rua
CAO Infância - Centro de Apoio Operacional das Promotorias da Infância e da Juventude
CAPS - Centro de Atenção Psicossocial
CAPS-AD - Centros de Atenção Psicossociais para Álcool e Drogas
CRIAAD - Centro de Recursos Integrados de Atendimento ao Adolescente
CRIAM - Centros de Recursos Integrados de Atendimento ao Menor
CSINT - Coordenação de Segurança Investigativa do DEGASE
CDEDICA - Coordenadoria de Defesa dos Direitos da Criança e do Adolescente da
Defensoria Pública
CE - Ceará
CEDCA - Conselho Estadual de Defesa da Criança e do Adolescente
CEDECA - Centro de Defesa da Criança e do Adolescente
Cense GCA – Centro de Socioeducação Gelso de Carvalho Amaral
CEPCT - Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura
CFB - Constituição Federal do Brasil
CIACA - Centro Integrado de Atendimento à Criança e ao Adolescente
CIAMP RUA - Comitê Interministerial População de Rua
CIDH - Corte Interamericana de Direitos Humanos
CIESPI - Centro Internacional de Estudos e Pesquisas sobre a Infância
CLT - Consolidação das Leis Trabalhistas
CMAS - Conselho Municipal de Assistência Social
CMDCA - Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente
CNAS - Conselho Nacional de Assistência Social
CNDH - Conselho Nacional de Direitos Humanos
CNER - Campanha Nacional Criança Não é de Rua
CNS - Conselho Nacional de Saúde
COMLURB - Companhia de Limpeza Urbana
CONANDA - Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente
CORE - Coordenadoria de Recursos Especiais da Polícia Civil RJ
COREN - Conselho Regional de Enfermagem
CPI - Comissão Parlamentar de Inquérito
CPRM - Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais
CRP - Conselho Regional de Psicologia
CRV - Central de Regulação de Vagas
CRESS - Conselho Regional de Serviço Social
CUT - Central Única dos Trabalhadores
DATASUS - Departamento de Informática do Sistema Único de Saúde
DCAV - Delegacia da Criança e do Adolescente Vítima
DEGASE - Departamento Geral de Ações Socioeducativas
DEPEN - Departamento Penitenciário Nacional
DETRO - Departamento de Transportes Rodoviários do Estado do RJ
DGTIT/PCERJ - Departamento Geral de Tecnologia da Informação e Telecomunicações da
Polícia Civil
D.O - Diário Oficial
DP - Delegacia de Polícia
DPCA - Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente
ECA - Estatuto da Criança e do Adolescente
ECO 92 - Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento
EJLA - Escola João Luiz Alves
ESE - Educandário Santo Expedito
ESR - Educação Social de Rua
FECOMÉRCIO - Federação do Comércio do Estado do Rio
FIA - Fundação da Infância e Adolescência
FIESP - Federação das Indústrias do Estado de São Paulo
FIFA – Federação Internacional de Futebol
FIOCRUZ - Fundação Oswaldo Cruz
Fórum DCA - Fórum Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente
Fórum DCA ERJ - Fórum Estadual de Defesa da Criança e do Adolescente
FUNABEM - Fundação Nacional do Bem Estar do Menor
IBISS - Instituto Brasileiro de Inovação em Saúde Social
IDESP - Instituto de Desenvolvimento Sustentável
IDH - Índice de Desenvolvimento Humano
IHA - Índice de Homicídios na Adolescência
INFOPEN - Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias
IPEA - Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada
ISP - Instituto de Segurança Pública
MA - Maranhão
MAM - Museu de Arte Moderna
MBL - Movimento Brasil Livre
MDS - Ministério do Desenvolvimento Social
MEPCT - Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura
MNMMR - Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua
MP - Ministério Público
MPL - Movimento Passe Livre
NEV - Núcleo de Estudos da Violência
NSDAP - Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Alemães
NUDEDH - Núcleo de Defesa dos Direitos Humanos da Defensoria Pública
OAB - Ordem dos Advogados do Brasil
OEA - Organização dos Estados Americanos
OG - Organização Governamental
OIT - Organização Internacional do Trabalho
OMS - Organização Mundial da Saúde
ONGs - Organizações Não Governamentais
ONU - Organização das Nações Unidas
OS - Organização Social
PAC - Programa de Aceleração do Crescimento
PCC - Primeiro Comando da Capital
PCERJ - Polícia Civil do Estado do Rio de Janeiro
PEC - Proposta de Emenda Constitucional
PETI - Programa de Erradicação do Trabalho Infantil
PFL - Partido da Frente Liberal
PGR - Procuradoria Geral da República
PLC - Projeto de Lei da Câmara
PMDB - Partido do Movimento Democrático Brasileiro
PNAD - Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios
PSC - Partido Social Cristão
PSDB - Partido Social Democrata Brasileiro
PSL - Partido Social Liberal
PSOL - Partido Socialismo e Liberdade
PT - Partido dos Trabalhadores
REFIS - Refinanciamento da Dívida com o Fisco
RENCA - Reserva Nacional de Cobre e Associados
RJ - Rio de Janeiro
RRC - Rede Rio Criança
RS - Rio Grande do Sul
SAM - Serviço de Assistência aos Menores
SAS - Secretaria de Atenção à Saúde
SDH/PR - Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República
SEAP - Secretaria de Estado de Administração Penitenciária
SEASDH - Secretária Estadual de Assistência Social e Direitos Humanos
SEEDUC - Secretaria Estadual de Educação
SENAD - Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas
SENASP - Secretaria Nacional de Segurança
SEOP - Secretaria Especial de Ordem Pública
SGEP - Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa
SIM - Sistema de Informação sobre Mortalidade – SIM
SINASC - Sistema de Informações sobre Nascidos Vivos
SINASE - Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo
SMAS - Secretaria Municipal de Assistência Social
SMDS - Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social
SNPDCA - Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente
SP - São Paulo
SPCT - Subcomitê de Prevenção e Combate à Tortura da ONU
SSP - Secretaria de Segurança Pública
STF - Supremo Tribunal Federal
SUAS - Sistema Único de Assistência Social
SUS - Sistema Único de Saúde
TAC - Termo de Ajustamento de Conduta
UERJ - Universidade do Estado do Rio de Janeiro
UNICEF - Fundo das Nações Unidas para a Infância
UPP - Unidade de Polícia Pacificadora
USAID - Agência de Desenvolvimento Internacional do Departamento de Estado dos
EUA
LISTA DE FIGURAS

Figura 1 – Culpados por violação de direitos ............................................................................. 142


Figura 2 - Adolescente preso pelo pescoço por uma trava de bicicleta ......................................154
Figura 3 – Despacho/Decisão MP sobre Jogos Olímpicos ..........................................................166
Figura 4 – Jogos Olímpicos para quem? .....................................................................................167
Figura 5 – Calamidade Olímpica ................................................................................................168
Figura 6 – Repressão policial nas praias do Rio de Janeiro ........................................................173
Figuras 7 – Jovens negros apreendidos na Operação Verão ........................................................182
Figura 8 – Gaiola cenográfica da superlotação em unidade do DEGASE...................................199
Figura 9 – Superlotação em alojamento DEGASE .....................................................................203
Figura 10 – 111 Tiros ..................................................................................................................255
Figura 11 – Homicídios de jovens no Brasil ...............................................................................261
Figura 12 – A cor dos homicídios .............................................................................................. 262
Figura 13 – Letalidade e violência policial .................................................................................264
Figura 14 – Perfil das vítimas ......................................................................................................277
Figura 15 – A cor dos homicídios ...............................................................................................285
Figura 16 – Homicídios no Brasil e no mundo ........................................................................... 301
Figura 17 – Pingo de mel ............................................................................................................ 315
LISTA DE TABELAS

Tabela 1 - População de Rua do Município do RJ – Cri/Adol em situação de rua ............... 104


Tabela 2 - Superlotação degase 2016 .................................................................................... 214
Tabela 3 - Superlotação DEGASE - Período: 2011 a 2016 e 1º semestre 2017 ................... 216
Tabela 4 - Superlotação DEGASE em 05 unidades - Período: 2012 a 1º semestre 2017 ..... 221
Tabela 5 - Superlotação Educandário Santo Expedito - Período: 2015 a 1º semestre 2017 . 223
Tabela 6 - Dados apreensão de adolescentes no estado do RJ - Período: 2002 a 2017 ........ 228
Tabela 7 - Apreensão de adolescentes no estado do RJ - Período: 2002 a 2017 .................. 230
Tabela 8 - Apreensão de adolescentes .................................................................................. 235
Tabela 9 - Crianças e adolescentes vítimas de homicídio no estado RJ - Período: 2002 a
2016...................................................................................................................... 279
Tabela 10 - Crianças e adolescentes vítimas de homicídio no estado RJ - Período: 2002 a
2016...................................................................................................................... 282
Tabela 11 - Candelária e as vítimas de homicídio .................................................................. 289
Tabela 12 - Evolução do número, das taxas (por 100 mil) e da participação (%) na
mortalidade de adolescentes de 16 e 17 anos segundo causa. Brasil,
1980/2013 ............................................................................................................ 291
Tabela 13 - A cor dos Homicídios .......................................................................................... 293
Tabela 14 - Participação (%) dos meios nos homicídios por idade simples. 2013 ................. 293
Tabela 15 - Mortes diretas e taxas*em conflitos armados no mundo e por arma de fogo no
Brasil: 2004 a 2007 .............................................................................................. 299
Tabela 16 - Número e taxas de homicídios (por 100 mil) nos países mais populosos do
mundo .................................................................................................................. 300
Tabela 17 - 20 maiores conflitos armados no mundo e mortes em 2013 e 2014 .................... 302
LISTA DE GRÁFICOS

Gráfico 1 - Superlotação - Período 2016 ................................................................................ 224


Gráfico 2 - Superlotação - Período 2017 ................................................................................ 225
Gráfico 3 - Apreensão de Adolescentes no Estado do RJ (2012-2016) ................................. 231
Gráfico 4 - Homicídios decorrentes por intervenção policial ................................................ 265
Gráfico 5 - Mortes em intervenção policial................................................................................ 265
Gráfico 6 - Crianças e adolescentes vítimas de homicídio no estado RJ – Período de 2002
a 2016 ................................................................................................................... 282
Gráfico 7 - Taxas (por 100 mil) 1980/2013............................................................................ 290
Gráfico 8 - Participação % das causas de mortalidade de crianças e adolescentes (0 a 19
anos) por idades simples. Brasil. 2013................................................................. 291
Gráfico 9 - Vítimas de Homicídio em 2013 por UF ............................................................... 292
Gráfico 10 - Vítimas de Homicídio em 2013 nas Capitais ....................................................... 292
Gráfico 11 - Ordenamento das UFs - participação % de armas de fogo de 0 a 17 anos .......... 294
SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 18
1 OS FASCISTAS ESTÃO PASSANDO ........................................................................ 32
1.1 Sobre Fascismo e Nazismo ............................................................................................. 44
2 SUJEITOS INDESEJÁVEIS!: CONSTRUÇÃO DA RACIONALIDADE
ESTIGMATIZADORA DA INFÂNCIA E JUVENTUDE NEGRA E POBRE
NO BRASIL .................................................................................................................... 53
2.1 Racismo no Brasil ........................................................................................................... 54
2.2 Crianças pretas e pobres nas ruas – Não pode! ........................................................... 58
3 O MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA E A FORMAÇÃO DO
EXÉRCITO DE SUJEITOS INDESEJÁVEIS............................................................ 72
4 DAS PRÁTICAS E POSTURAS ABUSIVAS ADOTADAS PELO PODER
DOMINANTE NO ENFRENTAMENTO AOS SUJEITOS INDESEJÁVEIS ........ 90
4.1 A Primeira Solução / Pratica 1 : Expulsão / Recolhimento / Retirada Forçada:
Operações de recolhimento, Operação Presente, Operação Verão ........................... 99
4.1.1 Um olhar sobre as operações de recolhimento de crianças e adolescentes em situação
de rua, nas gestões de César Maia (2001 a 2008) e de Eduardo Paes (2009 a 2016) na
Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro ........................................................................... 105
4.1.2 Gestão da Cidade e cronologia da Expulsão dos “sujeitos indesejáveis” ...................... 108
4.1.2.1 2002 ................................................................................................................................ 109
4.1.2.2 2003 ................................................................................................................................ 110
4.1.2.3 2004 ................................................................................................................................ 114
4.1.2.4 2005 ................................................................................................................................ 117
4.1.2.5 2006 ................................................................................................................................ 118
4.1.2.6 2007 ................................................................................................................................ 120
4.1.2.7 2008 ................................................................................................................................ 122
4.1.2.8 2009 ................................................................................................................................ 125
4.1.2.9 2010 ................................................................................................................................ 130
4.1.2.10 2011 ............................................................................................................................... 131
4.1.2.11 2012 ................................................................................................................................ 138
4.1.2.12 2013 ................................................................................................................................ 143
4.1.2.12.1 Manifestações, Terrorismo de Estado e avanço dos Movimentos Fascistas ............. 149
4.1.2.13 2014 ................................................................................................................................ 152
4.1.2.14 2015 ................................................................................................................................ 159
4.1.2.15 2016 ................................................................................................................................ 162
4.1.2.16 2017 ................................................................................................................................ 170
4.1.3 Operação Verão .............................................................................................................. 171
4.2 A Segunda Solução / Prática 2: Concentração / Encarceramento - Cárceres de
Gastar Gente ................................................................................................................. 183
4.2.1 Relatório visita ao Educandário Santo Expedito (ESE) ................................................. 196
4.2.2 Visita ao ESE, em 04/02/16 - Alojamentos “cela” dos adolescentes em cumprimento
de regime fechado. ......................................................................................................... 200
4.2.3 2ª Visita ao ESE, dia 20/05/16 ....................................................................................... 202
4.2.4 Depoimento Mães e Familiares ...................................................................................... 204
4.2.5 Relato Reunião do Ministério Público com Dr. Enriques Fontes, do Subcomitê de
Prevenção e Combate à Tortura da ONU ....................................................................... 205
4.2.6 Abrindo a Caixa Preta .................................................................................................... 208
4.3 A Solução Final / Prática 3: Assassinato, Homicídio, Eliminação - Indignos de
Viver .............................................................................................................................. 242
4.3.1 CPI do Assassinato de Jovens no Brasil ......................................................................... 249
43.1.1 Relatos da CPI Assassinato de Jovens ........................................................................... 250
4.3.1.2 Audiência Pública Genocídio da população negra e periférica ...................................... 256
4.3.2 Terrorismo de Estado - Marcas da Violência Policial .................................................... 259
4.3.3 Dados da Morte Matada ................................................................................................. 276
4.3.3.1 Atlas da Violência .......................................................................................................... 284
4.3.3.2 Índice de Homicídios na Adolescência (IHA) ............................................................... 286
4.3.3.3 Estudo e análise do mapa da violência – 2010 a 2016 ................................................... 288
4.3.3.4 Homicídios: comparações internacionais ....................................................................... 298
5 TANTA “PORRADA” TEM CONSEQUÊNCIAS! .................................................. 306
5.1 1º Caso: A Casa Viva.................................................................................................... 310
5.2 2º Caso: Recolhimento, “Pingo de mel", abuso e tortura nas Centrais de
Recepção ........................................................................................................................ 313
5.3 3º Caso: Retirada e adoção compulsória de bebês de jovens mães que estão em
situação de rua, supostamente usuárias de drogas .................................................... 316
6 PRA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DAS FLORES ............................................. 328
6.1 Política Municipal de Atendimento às Crianças e Adolescentes em situação de
rua – Deliberação 763/2009 ......................................................................................... 330
6.2 Nova resolução quebra paradigma na aborgagem social no Rio de Janeiro: a
Resolução 64/2016 – Protocolo do Serviço Especializado em Abordagem Social .. 333
6.3 Nota técnica 001/SAS e SGEP do Ministério da Saúde: diretrizes e fluxograma
para a atenção integral à saúde das mulheres e das adolescentes em situação de
rua e/ou usuárias de crack/outras drogas e seus filhos recém-nascidos .................. 338
6.4 O processo de construção das diretrizes para uma Política Nacional de
Atendimento às Crianças e Adolescentes em Situação de Rua ................................ 340
CONSIDERAÇÕES ..................................................................................................... 352
REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 358
ANEXO A - Política Municipal de Atendimento às Crianças e Adolescentes em
situação de rua – Deliberação 763/2009 CMDCA Rio .................................................. 364
ANEXO B - Resolução 64/2016, SMDS RJ– Protocolo do Serviço Especializado em
Abordagem Social .......................................................................................................... 368
ANEXO C - Resolução conjunta CNAS/CONANDA nº 1, de 15 de dezembro de
2016 ................................................................................................................................ 375
ANEXO D – Diretrizes Políticas e Metodológicas para o Atendimento de Crianças e
Adolescentes em Situação de Rua na Assistência Social ............................................... 379
ANEXO E - Audiência Pública Superlotação DEGASE .............................................. 382
ANEXO F - 2ª Reunião Comando Maior da Polícia Militar RJ .................................... 386
ANEXO G - Decreto nº 6.085, de 19 de abril de 2007.................................................. 390
ANEXO H - Protocolo facultativo à convenção contra a tortura e outros tratamentos
ou penas cruéis, desumanos ou degradantes .................................................................. 391
ANEXO I - Portaria normativa nº 3.461 /md, de 19 de dezembro de 2013 .................. 393
18

INTRODUÇÃO

NÃO VOU ME RENDER


Não serei arrastado na lama que rompeu a barragem que impedia a barbárie.
O país não é só isso.
Para cada Gilmar Mendes, tem um Manoel de Barros.
Para cada Aécio Neves, tem um mestre de Congada resistindo à opressão nas mesmas terras
mineiras.
Para cada Michel Temer, um Mário de Andrade na pauliceia.
O país não é só um branco de gravata ou toga.
É vermelho na pele indígena.
É preto potente na pele da menina.
É um guri, um piá, um curumim.
É trans!
É trem bão, é da hora, é sinistro, é massa! Ainda que não pareça, passa.
E eles passarão.
Desanima, não.
Menos preocupação e mais ocupação.
O país, novamente, está sendo saqueado.
Seu povo pobre dizimado.
Mas, até por uma questão de lógica, enquanto estivermos vivos não dá pra decretar derrota.
Minha energia.
Meu pensamento e meu afeto se movem pela transformação e pela justiça social.
Para que pessoas não morram pela cor da pele.
Pela orientação sexual.
Por denunciarem injustiças.
Por serem quem são.
O país não é só o Planalto.
A injustiça suprema.
Homens asquerosos.
19

Um país reacionário.
Quadrado.
É também roda.
De samba.
De capoeira.
De poesia.
É uma espiral.
É a mata, os bichos, as ervas, a arte, o povo.
Tudo que nele brota.
É uma idosa distribuindo sopa e cuidando de pessoas em situação de rua.
É uma benzedeira curando as crianças da comunidade.
É um professor mal pago e apaixonado mudando a vida de crianças e jovens.
É um poeta desconhecido.
Uma dançarina sonhadora.
Uma enfermeira incansável.
Um músico genial.
Um gari cantarolando enquanto varre.
Um garçom simpático.
Uma cozinheira incrível.
Um sábio pajé.
Uma mulher quilombola líder comunitária.
Uma criança alcançando o paraíso na amarelinha.
Um bando de gente linda e anônima.
O Brasil é imenso!
Desistir dele é deixar de perceber a beleza que nele contém.
Abrir mão da potência que dele provém.
Vamô junto!
Contra a perda de direitos e o desmonte do país, o lema do povo guerreiro:
"Só a luta muda a vida!"
André do Amaral, 13.07.2017
20

Quem são e qual o lugar que ocupa na sociedade as crianças e os adolescentes que estão
em situação de rua, as que estão nas favelas e periferias e os adolescentes encarcerados, autores
de ato infracional, em sua maioria negros e pobres? Quais ações e intencionalidades do poder
dominante1 são direcionadas historicamente para esse público, fortalecidas no modo de produção
capitalista? Quais são as consequências dessas ações na sociedade, e no comportamento dos
próprios meninos/as?
Para se analisar e compreender as práticas e posturas do poder dominante de
enfrentamento aos “sujeitos indesejáveis”, dentre as quais destacamos o recolhimento
compulsório, o encarceramento e o assassinato de crianças e adolescentes das classes populares
(em situação de rua, moradores de favelas e periferias), no Estado do Rio de Janeiro, é necessário
identificar os diferentes fatos que integram essa realidade social, assim como a ideologia que
permeia e dá sustentação ao fenômeno em sua totalidade.
Os fenômenos não são isolados, imutáveis. Não se pode conceber o fenômeno deslocado
do processo histórico/social, como se eles fizessem parte das ciências naturais, como um fato
dado, como se essas pessoas fossem as responsáveis pela situação que vivenciam.

Somente nesse contexto, que integra os diferentes fatos da vida social (enquanto
elementos do desenvolvimento histórico) numa totalidade, é que o conhecimento dos
fatos se torna possível enquanto conhecimento da realidade (LUKÁCS, 2012, p.76).

Centrado na história e no movimento dos contrários, Marx, em sua concepção materialista


de mundo (dialética), considera que a causa fundamental dos fenômenos não é externa, mas
interna. A dialética materialista não exclui as causas externas, defende que elas constituem
condição das modificações, mas as causas internas é que são as bases dessas. As causas externas
operam por intermédio das causas internas. A hipótese fundamental da dialética é de que não
existe nada eterno, nada fixo, nada absoluto. Tudo o que existe na vida humana e social está em
eterna transformação, tudo é perecível, tudo está sujeito ao fluxo da história. Para Marx,
aplicando o método dialético, todos os fenômenos econômicos ou sociais são produtos da ação
humana e, portanto, podem ser transformados por essa ação (Lowy, 2010). O materialismo
histórico tenta entender o real para poder assim modificá-lo.

1
Enquanto poder dominante considero a classe que controla o poder econômico e político, detentora dos meios de
produção, incluindo a mídia e o Estado.
21

O marxismo descobriu a realidade natural histórica e a lógica das contradições. A partir


disso, conduz a uma tomada de consciência do mundo real, em que as contradições são
evidentes (...). Ele também é formulado tendo em vista uma nova realidade social, que
resume dentro de si as contradições da sociedade moderna: o proletariado, a classe
operária. Desde suas obras de juventude, Marx constatou que o progresso técnico, o
poder exercido sobre a natureza, a liberação do homem em relação à natureza e o
enriquecimento geral da sociedade moderna, ou seja, capitalista, traziam consigo uma
contradição consequente: a servidão, o empobrecimento de uma parte cada vez mais
numerosa dessa sociedade – a saber o proletariado (LEFEBVRE, 2009, p.13-14).

Dessa forma, pretendemos buscar ao longo da história as conexões com o que vivemos na
atualidade, nas relações sociais que foram se constituindo, e em saber que tipo de ideologia
permeia as práticas e posturas abusivas do poder dominante que são direcionadas às crianças e
adolescentes em situação de rua, e às provenientes das favelas e periferias da cidade, grupos
sociais que perpassaram por um processo histórico de exclusão, controle, repressão,
encarceramento, e mesmo eliminação.

Essas relações entre os homens e deles com a natureza constituem as relações sociais
como algo produzido pelos próprios homens, ainda que estes não tenham consciência de
serem seus próprios autores. É, portanto, das relações sociais que precisamos partir para
compreender o que, como e por que os homens agem e pensam de maneiras
determinadas, sendo capazes de atribuir sentido a tais relações, de conservá-las ou de
transformá-las. (...) Trata-se de compreender a própria origem das relações sociais, de
suas diferenças temporais, de encará-las como processo histórico (CHAUÍ, 1998, p. 19 e
20).

Pensar este fenômeno em sua totalidade é considerar não só o fato enquanto realidade
social, mas também as várias determinações que são partes de um processo histórico que, em
termos de Brasil, não podemos desconsiderar a questão do mesmo ter sido um país invadido,
dominado e explorado quando feito colônia portuguesa, e que adotou a escravatura como forma
de relação social de produção de trabalho (compulsório), desde o período colonial (sec. XVI) até
o Brasil Império (final séc. XIX), sendo o último país do mundo a abolir a escravidão, através da
Lei Áurea, em 1882, que na verdade não surtiu grande efeito, como veremos adiante.
Importante também considerar não apenas a abordagem do fenômeno fortalecido pelo
capitalismo na produção de mais valia, desigualdade e exclusão, como também todo o processo,
ao longo desse tempo, de produção de subjetivações e/ou representações negativas,
desqualificantes e racistas sobre os descendentes dos seres humanos que foram escravizados e
que formam o segmento dos “sujeitos indesejáveis” ao sistema vigente e à própria sociedade.
Quando Chauí (1998) diz que “é, portanto, das relações sociais que precisamos partir para
22

compreender o que, como e por que os homens agem e pensam de maneiras determinadas (...)”, a
autora está, implicitamente, também falando de ideologia, pois é esta que vai operar e definir, a
seu tempo, o como e por que os homens agem e pensam de maneiras determinadas.

A ideologia consiste precisamente na transformação das ideias da classe dominante em


ideias dominantes para a sociedade como um todo, de modo que a classe que domina no
plano material (econômico, social e político) também domina no plano espiritual (das
ideias) (CHAUÍ, 1991, p.15).

Considerados pela classe dominante, desde a sua chegada ao Brasil na condição de


escravos, como seres inferiores, “sem alma”, verdadeiras “bestas feras”, essa mentalidade
predominou durante muito tempo, e deixou permanências. Podemos observar isso em várias
passagens, como nas teorias racistas, eugênicas, como a de Cesare Lombroso2, de antropologia
criminal, e de higienização social, quando os médicos vão dizer que a pobreza precisa aprender
regras de higiene, que os pobres não podem e/ou não sabem cuidar dos filhos..., deixando
subentendido que “esse tipo de gente” não tem higiene, não são limpos. Passando também pela
teoria do médico e antropólogo Nina Rodrigues, que desenvolveu um trabalho sobre a
“degenerescência” e a tendência ao crime dos negros e mestiços, sendo estes a causa da
inferioridade brasileira. E chegando às chamadas “classes perigosas” (Coimbra, 2001), que tem
as raízes dessa terminologia no século XIX, na qual associava as pessoas mais humildes à
ameaça, ao perigo, e as áreas onde estas moravam como “territórios da pobreza”. Ambos,
“classes perigosas” e territórios da pobreza, representavam uma ameaça para a classe dominante,
levando esta a adotar medidas de controle, repressão, ou mesmo de eliminação daqueles e de tudo
que os amedrontava. Com a reforma urbanista, a eliminação das classes e dos territórios
perigosos era considerada uma forma de limpeza do corpo urbano. O processo de higienização
social é histórico no Brasil, e faz parte da construção do sujeito indesejável.
Essas teorias “pseudocientíficas continuam presentes nos dias de hoje. Em um país que
teve mais de 300 anos de escravidão, elas não passam impunes", afirma a profª e escritora Cecília
Coimbra (2001).

2
Cesare Lombroso, psiquiatra, antropólogo, cientista, higienista, foi um professor universitário e criminologista
italiano, nascido em 1835. Tornou-se mundialmente famoso por seus estudos e teorias no campo da caracterologia,
ou a relação entre características físicas e mentais. Lombroso tinha em mente chamar a atenção para a importância
de estudos científicos da mente criminosa, um campo que se tornou conhecido como antropologia criminal.
23

Ao longo do desenvolvimento da tese, diante da complexidade e do agravamento da


violência e das práticas abusivas do poder dominante, observei que era necessário ampliar o
objeto. Dessa forma, o grupo social que denominamos “sujeitos indesejáveis”, foi ganhando
novos contornos e engrossando com a incorporação de outros sujeitos, mas que não deixam de
carregar em si as marcas de um processo histórico excludente e de violência. O enfrentamento da
situação de rua de crianças e adolescentes pelo poder público é direcionado não apenas às
crianças e adolescentes em situação de rua, mas também junto a grupos de crianças e
adolescentes provenientes das favelas e periferia que circulam pelos territórios nobres da cidade,
aos que “fazem arrastões”, e também pelos adolescentes que cometem ato infracional, são
apreendidos e estão ou passaram pelo sistema socioeducativo e cumprem ou cumpriram medida
de privação de liberdade. Dessa forma, conceituo e defino “sujeitos indesejáveis” como o grupo
social composto pelas crianças e adolescentes em situação de rua, pelas provenientes das favelas
e periferias, pelos adolescentes autores de ato infracional que são apreendidos e encarcerados,
bem como os que são alvos da violência letal do Estado, todos, em sua maioria, adolescentes e
jovens negros e pobres.
Não por acaso, em final de 2016, foi aprovada a Resolução Conjunta nº 1, do Conselho
Nacional de Assistência Social (CNAS) e Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do
Adolescente (CONANDA), que traz o conceito atualizado e ampliado para crianças e
adolescentes em situação de rua, que veremos no 2º Capítulo desta tese.
Para chegarmos ao conceito de sujeitos indesejáveis, há de se considerar não apenas as
questões de ordem econômica, política, social e cultural, mas também a sistemática produção de
representações socialmente construídas, essencialmente negativas e estereotipadas, ao longo da
história no tocante a esses grupos sociais e sua descendência. O que teve reflexo na visão da
sociedade, bem como na forma como tem sido conduzida as políticas e ações de atendimento a
essas crianças e adolescentes.
Ao analisar e destacar políticas públicas e práticas abusivas do poder dominante
direcionadas aos sujeitos indesejáveis, o Estado, suas instituições e instrumentos estão
intrinsicamente ligados. Na interpretação de Estado, trago as contribuições de Marx (2001), bem
como o conceito de Estado ampliado em Gramsci (1991).
O processo de formação do Estado, desde o final da Idade Média até o período moderno,
com destaque para a Revolução Francesa, é descrito por muitos autores na análise do que foi a
24

queda do despotismo e o surgimento da concepção republicana do Estado moderno. Já em 1844,


Marx (2001), em Manuscritos econômico-filosóficos, já demonstrava que o Estado, deixando de
lhe parecer apenas como a encarnação formal e alienada do suposto interesse universal, passa ser
visto como um organismo que exerce uma função precisa: garantindo a propriedade privada, o
Estado assegura e reproduz a divisão da sociedade em classes e, desse modo, garante a
dominação dos proprietários dos meios de produção sobre os não-proprietários. O Estado, assim,
é um Estado de classe: não é a encarnação da razão universal, mas sim uma entidade particular
que, em nome de um suposto interesse geral, defende os interesses comuns de uma classe
particular (Coutinho, 1996). É em Marx e Engels que também vamos encontrar que “o poder
político do Estado é poder organizado de uma classe para opressão de outra”3.

Marx e Engels, ao falarem em “poder organizado para a opressão” e ao insistirem na


natureza burocrática do pessoal do Estado, indicam que a materialidade institucional do
Estado se limita nos aparelhos repressivos e burocrático-executivos. (...) esse seria a
expressão direta e imediata do domínio de classe, exercido através da coersão
(COUTINHO, 1996).

De acordo com o pensamento marxista, observamos que a relação entre a proteção da


propriedade privada e o Estado está superposta ao modo de produção capitalista. Para Marx o
Estado capitalista é resultante da divisão da sociedade em classes e não é um poder neutro acima
dos interesses das classes. Sua ênfase se coloca no caráter de dominação de classe para garantir a
acumulação e reprodução capitalista.
Gramsci (1982) traz muitas contribuições às interpretações de Estado, que avança ao
considera-lo como “estado ampliado”. Importantes contribuições foram feitas pelo autor em sua
metodologia teórica sobre ciência política, bem como, o destaque dado aos intelectuais e à
ideologia na análise dos processos históricos. Gramsci não vê o Estado apenas como um aparelho
de violência/repressão mais um aparato jurídico-politico cuja organização e intervenção varia de
acordo com a organização social, política, econômica e cultural da sociedade, mediadas pelas
correlações de forças entre as classes vigentes.

É necessário considerar mais Maquiavel como expressão necessária do seu tempo e


estreitamente ligado às condições e as exigências de sua época, que resultam: 1) das
lutas internas da república florentina e da estrutura particular do Estado que não sabia
libertar-se dos resíduos comunais-municipais, isto é, de uma forma estorvante de

3
Marx e Engels. Manifesto do partido Comunista, p.26.
25

feudalismo; 2) das lutas entre os Estados italianos por um equilíbrio no âmbito italiano,
que era dificultado pela existência do Papado e dos outros resíduos feudais,
municipalistas, da forma estatal urbana e não territorial; 3) das lutas dos Estados
italianos mais ou menos solidários por um equilíbrio europeu, ou seja, das contradições
entre as necessidades de um equilíbrio interno italiano e as exigências dos Estados
europeus em luta pela hegemonia (Gramsci, 1984, p.15).

Gramsci, em sua teoria ampliada de Estado, destaca o papel da relação entre a sociedade
política e a sociedade civil. A sociedade política é interpretada pelo autor como Estado em
sentido “estrito” ou Estado-coerção, o qual é representado pelos aparelhos de coersão sob o
controle das burocracias executivas e policial-militar. A sociedade civil é compreendida por uma
rede complexa de organismos “internos e privados”, de instituições educativas e ideológicas
necessárias ao estabelecimento do Estado. É nesse espaço que se estabelece a relação entre o
grupo hegemônico e o contra-hegemônico.

Pode-se fixar dois grandes ‘planos’ superestruturais: o que pode ser chamado de
‘sociedade civil’ (isto é, o conjunto de organismos chamados comumente de ‘privados’)
e o da ‘sociedade política ou Estado’, que corresponde à função de ‘hegemonia’ que o
grupo dominante exerce em toda a sociedade e àquela de ‘domínio direto’ ou de
comando, que se expressa no Estado e no governo ‘jurídico” (GRAMSCI, 1982, p. 13-
14).

Sociedade política e sociedade civil encontram-se nesse campo de forças o qual se


estabelece as políticas públicas. Estas deveriam ser elaboradas e implantadas dentro de uma visão
ampla da realidade social, considerando a função promotora, reguladora e redistributiva do
Estado, assegurando políticas pautadas em direitos humanos, sociais, econômicos, culturais,
ambientais, que atendessem, concretamente, a satisfação das necessidades da população. No
entanto, esses ideais não se concretizam na prática, nem tão pouco se desenvolvem de forma justa
e igualitária. O poder econômico, o endereço e a cor da pele são elementos importantes que
determinam a seletividade de políticas públicas, privilegiando alguns em detrimento de muitos
outros, ou seja, o grupo social que denominamos “sujeitos indesejáveis”, que estão à margem da
sociedade e que, muitas vezes, têm seus direitos suspensos, como em um Estado de exceção.
O estado de exceção apresenta-se como um patamar de indeterminação entre democracia
e absolutismo. Para o autor Giorgio Agamben (2012), a relação de exceção é uma relação de
bando. Quem é banido não é simplesmente posto fora da lei, de modo que esta lhe seja
indiferente, é abandonado por ela, ficando exposto e em risco no limiar em que vida e direito,
exterior e interior, se confundem (AGAMBEN, 2012).
26

Essa relação de bando, à priori, podemos também considerar quando falamos dos
“sujeitos indesejáveis”, abandonados em potencial, estando no limiar da vida e da morte.

O bando é uma forma de relação, (...) a pura forma de referência a algo em geral, isto é,
a simples posição de uma relação com o que está fora de relação (SCHOLZ, 2014, Apud
AGAMBEN, 2002, p.39).
O que o bando mantém unidos são justamente a vida nua e o poder soberano. (..) O
bando é propriamente a força, simultaneamente atrativa e repulsiva, que liga os dois
polos da exceção soberana: a vida nua e o poder, o homo sacer e o soberano
(AGAMBEN, 2012, p. 85).

Vida nua..., em seu livro Homo Sacer – o poder soberano e a vida nua, Agambem (2012)
traz à luz o vínculo oculto que sempre ligou a vida nua - a vida natural não politizada, ao poder
soberano, aquele que tem o poder da vida e da morte, de fazer viver e deixar morrer. Vida nua, a
vida desprovida de humanidade, e por isso matável. O autor faz referência ao Homo Sacer, uma
figura do direito romano arcaico, um ser humano que podia ser morto por qualquer um
impunemente, ou seja, um ser matável, e traz essa reflexão para os dias atuais, quando considera
que a política tornou-se biopolítica, e o campo de concentração surge como o paradigma político
da modernidade.

Soberana é a esfera na qual se pode matar sem cometer homicídio e sem celebrar um
sacrifício, e sacra, isto é matável e insacrificável, é a vida nua que foi capturada nessa
esfera (AGAMBEN, 2012, p. 85).

Agambem retoma o termo “muçulmano”, comumente empregado pelos prisioneiros dos


campos de concentração como a expressão do maior abandono possível da existência humana. O
autor reavivou a antiga imagem do Homo Sacer, o homem sacro, o homem que tem a vida
disponível, ou melhor, uma vida totalmente posta a nu à soberania - o homem matável; aquele
homem que pode ser morto sem que seu assassino seja responsabilizado. A soberania tem o poder
de decidir sobre a exceção, ou seja, sobre a lei e a vida, implicando a sua própria suspensão.
As políticas públicas adotadas pelo poder público do RJ, bem como em outras grandes
metrópoles do mundo, de atendimento à população em situação de rua (mendigos,
desempregados, sem-teto, “menores de rua”, adolescentes negros e pobres provenientes das
favelas, etc.), pouco avançaram em sua filosofia e prática4. Em pleno século XXI, observamos

4
Sobre as políticas e práticas adotadas, historicamente, junto a esse grupo social iremos abordar no quarto capítulo
dessa tese.
27

ainda a permanência e manutenção de ações arbitrárias, violentas, atravessadas por um viés


eugênico, racista e higienista, reforçadas pela mídia na veiculação de notícias discriminatórias e
criminalizadoras, que fortalecem o apoio de grande parcela da sociedade ansiando a retirada
dessas pessoas de suas calçadas, praças, praias e avenidas. Essas ideias e visão que desqualificam
aquele que é diferente, transformando determinado grupo social numa ameaça, um perigo para a
sociedade tem sido o que determinam a necessidade de sua repressão, expulsão, contenção,
encarceramento, ou mesmo, eliminação.
A ideologia dominante que permeia está realidade social tem papel fundamental para a
sustentação e o consentimento de práticas, posturas e discursos de governo, da sociedade e da
mídia. No livro Ideologia Alemã, Marx descreve sua interpretação sobre ideologia:

“As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe
que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual.
A classe que tem à sua disposição os meios de produção material dispõe, ao mesmo
tempo, dos meios de produção espiritual, o que faz com que a ela sejam submetidas, ao
mesmo tempo e em média, as ideias daqueles aos quais faltam os meios de produção
espiritual. As ideias dominantes nada mais são do que a expressão ideal das relações
materiais dominantes, as relações materiais dominantes concebidas como ideias;
portanto, a expressão das relações que tornam uma classe a classe dominante; portanto,
as ideias de sua dominação. Os indivíduos que constituem a classe dominante possuem,
entre outras coisas, também consciência e, por isso, pensam. Na medida em que
dominam como classe e determinam todo o âmbito de uma época histórica, é evidente
que o façam em toda a sua extensão e, consequentemente, entre outras coisas, dominem
também como pensadores, como produtores de ideias; que regulem a produção e
distribuição das ideias de seu tempo e que suas ideias sejam, por isso mesmo, as ideias
dominantes da época” (CHAUÍ, 2004 Apud MARX, 1985, p. 93).

A ideologia opera, dessa forma, na determinação de uma visão de mundo, de um interesse


de classe, de um ponto de vista; ela domina a consciência operando com a ideia de verdade.
Dependendo da intencionalidade, e dos meios utilizados, observamos a dominação da consciência
de uma parte da sociedade para excluir a outra. E a história comprova: como foi com o
extermínio de milhões de índios nas Américas invadida e colonizada; com a deportação e
escravidão dos milhões de negros africanos; com a eliminação em massa de milhões de judeus,
ciganos, e outros grupos étnicos considerados “indesejáveis” na Alemanha nazista; e nas mortes
por causas externas – homicídio de jovens no Brasil, em sua maioria negros e pobres5.

5
Segundo o Mapa da Violência 2014, o Brasil registrou em 2012 o maior número absoluto de assassinatos e a taxa
mais alta de homicídios desde 1980. Nada menos do que 56.337 pessoas foram mortas naquele ano, num acréscimo
de 7,9% frente a 2011. A taxa de homicídios, que leva em conta o crescimento da população, também aumentou
7%, totalizando 29 vítimas fatais para cada 100 mil habitantes. (Acesso em abril 2015).
28

O conceito de ideologia em Lukács (2012), também amparado no sentido de dominação


de classe em Marx, é concebido como uma espécie de ilusão socialmente produzida, que esconde
uma essência, mero reflexo (representação) da vida social. A ilusão aparece apenas de forma
aparente. De acordo com essa interpretação, a consciência aparece de modo reflexo. Há um
condicionamento que torna a nossa concepção de mundo só um reflexo de representação da vida
social. Vejamos o que Lukács desenvolve em relação ao fetichismo:

Essa ilusão fetichista, cuja função consiste em ocultar a realidade e envolver todos os
fenômenos da sociedade capitalista, não se limita a mascarar seu caráter histórico, isto é,
transitório. Mais exatamente, essa ocultação se torna possível pelo fato de que todas as
formas de objetividade, nas quais o mundo aparece necessária e imediatamente ao
homem da sociedade capitalista, ocultam igualmente, em primeiro lugar, as categorias
econômicas, sua essência profunda, como formas de objetividade, como categorias de
relação entre homens; as formas de objetividade aparecem como coisas e relação entre
coisas (LUKÁCS, 2012, p.87).

Construir as bases da defesa de que na atualidade existe um tipo de ideologia muito


próxima à que esteve presente na Alemanha nazista de Hitler, não foi uma tarefa fácil. Por
desconhecer estudo ou conceito que tenha uma linha de pensamento semelhante ao que defendo
nesta tese, optei por considerar a existência de um tipo de ideologia que apresenta semelhanças
com a ideologia nazifascista que perpassa a sociedade, ora oculta, ora manifestada,
principalmente nas práticas abusivas e posturas do poder dominante direcionadas aos “sujeitos
indesejáveis”, como será abordado ao longo da tese com base em todo o material de estudo
apresentado, especialmente, pesquisa empírica e levantamento de dados, amparados por notícias
veiculadas na mídia.
Observamos, ainda de forma preliminar, que no livro Heichmann em Jerusalém, que
introduz o conceito “banalidade do mal”, a autora Hanna Arendt (2013) aponta e descreve três
fases/soluções do Nazismo para a questão dos judeus e outros grupos indesejáveis: (1ª) Expulsão,
(2ª) Concentração e (3ª) Assassinato, que as consideramos análogas às práticas direcionadas ao
grupo social o qual denominamos “sujeitos indesejáveis”, quais sejam: (1ª) Expulsão /
Recolhimento, (2ª) Concentração / Encarceramento, e (3ª) Assassinato / Homicídio / Extermínio
de crianças, adolescentes e jovens. Porém, enquanto na Alemanha nazista as soluções eram dadas
como fases em ordem cronológica, nossas práticas não seguem a mesma dinâmica, ou
ordenamento, podendo ocorrer de forma isolada ou mesmo simultânea.
29

A banalidade do mal, em Eichmann em Jerusalém, Arendt (2013) retoma a questão do


mal radical kantiano, politizando-o. Analisa o mal quando este atinge grupos sociais ou o próprio
Estado. Segundo a autora, o mal não é uma categoria ontológica, não é natureza, nem metafísica.
É político e histórico: é produzido por homens e se manifesta apenas onde encontra espaço
institucional para isso - em razão de uma escolha política. A trivialização da
violência corresponde, para Arendt, ao vazio de pensamento, onde a banalidade do mal se
instala6. A partir de Eichmann, Arendt propõe o conceito de mal banal em oposição e
complemento à noção kantiana de mal radical7.
Em um contexto em que observamos a permanência dessa racionalidade na qual prevalece
o pensamento higienista e de desqualificação do diferente, os processos de subjetivação sobre as
“classes perigosas”, atravessados por uma ideologia dominante opressora, preconceituosa,
conservadora, seletiva e racista, destaco nessa tese, principalmente, as bases que mantém e
sustentam o uso de práticas e posturas abusivas, que trazem em si um tipo de ideologia bem
próxima ao que foi a ideologia nazifascista, destacando as seguintes práticas: (1) recolhimento8
compulsório de crianças e adolescentes (em situação de rua e/ou provenientes de favelas e
periferias), em sua maioria negras e pobres, como uma forma de se recolher, tirar de circulação,
para não poluir os territórios nobres das cidades; (2) a apreensão e o encarceramento de
adolescentes autores de ato infracional; e (3) o homicídio/extermínio de crianças, adolescentes e,
principalmente, da juventude negra e pobre.
O desenvolvimento do pensamento e das linhas de defesa desta tese está divido da
seguinte forma: Introdução; Capítulo I - Os fascistas estão passando; no Capítulo II - Construção
da racionalidade estigmatizadora da infância e juventude negra e pobre no Brasil; Capítulo III - O
modo de produção capitalista e a formação do exército dos sujeitos indesejáveis; Capítulo IV,
mais amplo da tese, traz as práticas e posturas abusivas adotadas pelo poder dominante
direcionada aos sujeitos indesejáveis, as quais estão divididas em 03 práticas: (1) Expulsão /
Recolhimento, (2) Concentração / Encarceramento, e (3) Assassinato / Eliminação / Extermínio.
6
SOUKUI, Nádia. Hannah Arendt e a banalidade do mal. UFMG, 1998.
7
Publicado em: http://emporiododireito.com.br/hannah-arendt-e-a-banalidade-do-mal-por-luiz-ferri-de-barros/
8
“Recolhimento” são as ações do poder público de retirada compulsória, arbitrária e violenta da população em
situação de rua, em especial crianças e adolescentes, com a participação da polícia e/ou guarda municipal.
(GATTO BRITO, M. O outro lado de uma política de governo na reprodução e perpetuação de desumanidades: o
recolhimento de crianças e adolescentes em situação de rua na cidade do RJ. Dissertação Mestrado, PPFH/UERJ,
2011, p. 64).
30

As 03 práticas serão aprofundadas com (1º) uma linha do tempo sobre o contexto político, as
operações de recolhimento e os principais fatos do período (2001 a 2016, e parte 2017); (2º)
levantamento de dados do superencarceramento de adolescentes, no Estado do RJ, especialmente
entre 2011 a 2016 e parte de 2017; e (3º) dados sobre o assassinato de crianças, adolescentes e
jovens no Brasil e no RJ9. No Capítulo V – Tanta “porrada” tem consequências, traz histórias e
casos exemplares que ilustram as consequências de tanta violência no comportamento dos
sujeitos indesejáveis. E, finalmente, no Capítulo VI – Pra não dizer que não falei das flores, trago
a luta pela revogação de práticas de recorte ideologicamente nazifascistas, e do processo de
construção de Resoluções, Políticas e Diretrizes pautadas em direitos humanos.
Muitos foram os fatos e sucessão de acontecimentos ao longo desses 05 anos de
construção desta tese. Fatos estes que não se deram isolados, pois fazem parte de uma totalidade.
Dessa forma, enquanto método utilizado por mim de estudo e análise o materialismo histórico é
aquele com que tenho maior aproximação, que nos ajudará a melhor compreensão da dura e
sombria realidade social que vivenciamos. Pela minha implicação direta com o tema há mais de
25 anos, enquanto educadora e defensora de direitos humanos de crianças e adolescentes, esta
pesquisa pode ser considerada como de intervenção e análise do real.
Dessa forma minha Pesquisa Empírica teve a relevância e contribuição de vários coletivos
dos quais faço parte: Rede Rio Criança (RRC), Campanha Nacional Criança Não é de Rua
(CNER), Conselho Estadual de Defesa da Criança e do Adolescente (CEDCA RJ), Comitê
Nacional Criança e Adolescente em situação de rua, Grupo de Trabalho Crianças e Adolescentes
em Situação de Rua do Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente
(CONANDA), Grupo de Trabalho Criança e Adolescente em Situação de Rua da Comissão de
População de Rua da Câmara Municipal de Vereadores, Movimento Candelária Nunca Mais!
Grupo de Trabalho Operação e Plano Verão, Grupo de Trabalho DEGASE, Frente Nacional
Contra a Redução da Idade Penal, Fórum Estadual de Defesa da Criança e do Adolescente
(Fórum DCA RJ), Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura (CEPCT), Comissão
Especial de População em situação de rua do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH).
Bem como, das ricas informações coletadas em Audiências Públicas, CPIs, Grupo de Mães e
Familiares de Adolescentes vítimas da violência do Estado, Crianças e Adolescentes em situação

9
Importante destacar que foram utilizadas uma série de notícias veiculadas na mídia convencional e redes sociais ao
longo da tese e, especialmente, no capítulo IV, como forma de amparar e constatar os diferentes fatos que
integraram a realidade social retratada ao longo do período de estudo.
31

de rua, Adolescentes em cumprimento de medida de privação de liberdade, Diversos atores do


Sistema de Garantia de Direitos, destacando os Educadores e Educadoras Sociais.
Enquanto Fontes Primárias, destacamos arquivos da Rede Rio Criança (Relatórios anuais,
projetos, pesquisas, dossiês); arquivos pessoais; notícias veiculadas na mídia, internet e redes
sociais10; pesquisa e levantamento de dados do Ministério Público (Promotoria de Tutela Coletiva
de Ato Infracional); da Defensoria Púbica (CDEDICA); do Sistema Nacional de Atendimento
Socioeducativo (SINASE); do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura
(MEPCT); Mapa da Violência; Atlas da Violência; Índice de Homicídios na Adolescência (IHA);
Instituto de Segurança Pública (ISP); Anistia Internacional, dentre outros.
Período de estudo: 2001 a 2016 e 1º semestre de 2017.
Território: Estado do Rio de Janeiro.

10
Importante destacar que a série de notícias divulgadas nesta tese tem a função de subsidiar os fatos que integram
essa realidade social.
32

11
1 OS FASCISTAS ESTÃO PASSANDO

Esta noite fiquei a pensar quando a Humanidade errou e não parou Hitler no momento
certo, quando a Humanidade errou e não parou Mussolini no momento certo... Eles estão
de volta. Será que vamos errar de novo e vamos deixá-los tomar o poder?", conclamou.
"A democracia não permite descanso. Eles [os fascistas] estão de volta. Temos que pará-
los!
Lédio Rosa de Andrade, Desembargador do Tribunal de Justiça (TJ-SC) e professor de
Direito da UFSC, em 05/10/1712

Muitas são as preocupações com a guinada política à direita, que se consolidou com a
vitória de Donald Trump nos Estados Unidos (2017), e no avanço de candidaturas de extrema
direita, como a de Marine Le Pen, na França (2017), e de Jair Bolsonaro no Brasil (em 2º lugar
nas pesquisas de intenção de voto para as eleições em 201813).
Na América Latina, golpes de estado fazem parte de uma conjuntura recente, como o
Golpe de Estado em Honduras, em 2009; no Paraguai, em 2012; e na eminência de um golpe na
Venezuela a qualquer momento (2017). No Brasil, a Ditadura Militar golpeou o Presidente João
Goulart em 1964, e em abril de 2016, o golpe que resultou no impeachment da Presidenta
legitimamente eleita Dilma Rousseff. Alguns especialistas, para tentar explicar o atual cenário,
dizem que não se fazem mais golpes com tanques e armas. Vão se criando pretextos sejam eles
políticos, jurídicos, econômicos, ou ambos, e uma ambiência de fragilidade e medo, com forte
amparo da mídia, para justificar o golpe com a retirada de presidentes legitimamente eleitos pelo
voto!
No Brasil, a democracia brasileira vive o seu pior momento, desde a ditadura militar. É
um período histórico sombrio de séria crise multidimensional (política, econômica, jurídica,
social, ética) que compromete o Estado Democrático de Direito. A realidade social é atravessada

11
O título “Os Fascistas estão passando” é uma alusão, às avessas, ao lema: “Fascistas não passarão!”
12
A declaração do Profº e Desembargador foi um desabafo em relação ao suicídio do Reitor Luiz Carlos Cancellier
de Olivo, da UFSC, ocorrido em 02/10/17, por ter sido vítima de investigação e exposição da polícia federal por,
supostamente, ter cometido crime de obstrução da justiça.
13
De acordo com pesquisa Data Folha divulgada em final setembro e dezembro de 2017.
33

pela suspensão de direitos historicamente constituídos e por diversas violações de direitos


humanos, sociais, culturais, principalmente contra povos e comunidades tradicionais,
trabalhadores rurais e sem terra, os sem teto, a população em situação de rua e sem direito à
cidade, a população negra e pobre das favelas e periferias, entre outros. A violência manifesta-se
de forma mais agravante e aguda quando envolve as crianças, os adolescentes, as juventudes, as
mulheres e os idosos.
O processo de impeachment que destituiu a presidenta eleita pelo voto popular, Dilma
Rousseff, no dia 17 de abril de 2016, através de um golpe parlamentar, jurídico e midiático
serviu, efetivamente, para saciar os interesses do mercado financeiro, das grandes empresas e do
agronegócio. Membros do atual governo, incluindo parte do Senado, da Câmara Federal e o atual
presidente da República pós-golpe, estão envolvidos em várias denúncias de corrupção,
organização de quadrilha, desvio de dinheiro público, desencadeando uma crise institucional sem
precedentes.
Os avanços alcançados desde a Constituição Federal de 1988 não possibilitaram a
realização da reforma política efetiva e o empoderamento popular. Com a fragilização da
democracia brasileira se abre espaço para discursos, manifestações e práticas antipopulares,
conservadoras e, porque não dizer, fascistas, contribuindo com o crescimento do
fundamentalismo, da intolerância, da discriminação que, muitas vezes, contribuem para fomentar
o fascismo social, o ódio à diferença, a afirmação de posturas anti-igualitárias, caracterizada pelo
ódio de classe, racismo, machismo, homofobia, xenofobia, dentre outros.
A velha politica e a elite conservadora e reacionária do país protagonizam a ofensiva de
retomada do poder. Após o golpe de abril de 2016, o país vivenciou grandes retrocessos e
redução de direitos conquistados ao longo dos últimos anos, nas áreas da saúde, assistência
social, educação, cultura, trabalho, previdência social. Assistimos diariamente a uma avalanche
de denúncias envolvendo o pessoal do 1º escalão do atual governo, bem como a imposição de
medidas prejudiciais ao país e à classe trabalhadora em benefício do mercado, do capital
financeiro e de interesses internacionais. Uma das mais graves medidas, após o golpe, foi a
aprovação, pela Câmara de Deputados e o Senado Federal, da Proposta de Emenda
Constitucional (PEC) 241, posteriormente alterada para PEC 55, que dispõe sobre o
congelamento por 20 anos dos gastos públicos (destinação de recursos federais principalmente
para educação, saúde e assistência social), medida esta que prejudicará diretamente os mais
34

pobres. A PEC 55 foi aprovada mesmo com as denúncias de inconstitucionalidade feitas pela
Procuradoria Geral da União, por especialistas, pelo movimento social, sindicatos e organismos
internacionais, inclusive a ONU, que alegou que a referida PEC prejudica os mais pobres e fere
os direitos humanos14.
A sucessão de votações no Congresso Nacional e Senado Federal de aprovação a Projetos
de Lei de flagrante abuso e afronta aos direitos; a sucessão de medidas provisórias aprovadas na
calada da noite; de conluios políticos e aprovação da continuidade de mandatos de parlamentares
acusados de cometerem crimes; a pública e notória compra de votos de parlamentares para a não
abertura do processo contra o atual presidente, apesar das denúncias, associadas à forte repressão
e criminalização das lutas e movimentos sociais, e o total descaso e desprezo político ao clamor
popular, têm gerado fragilização da mobilização social e a desmobilização da luta.
A exaltação do fascismo, de grupo de extrema direita, encontrou lugar num cenário
propício para a violência, o arbítrio e o retrocesso. Assistimos a divisão da sociedade brasileira
em duas: uma apoiando o Golpe, liderada principalmente pelo PSDB (partido que perdeu a
eleição presidencial em 2014), PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro),
Democratas (DEM), com apoio de grandes empresas organizadas na Federação das Indústrias do
Estado de São Paulo (FIESP), e transnacionais, contando com a mídia como forte aliada; e outra
parte da sociedade que denunciava e se manifestava contrária ao golpe, formada por partidos de
esquerda, movimento sindical e movimentos sociais. Nesse cenário que dividiu a sociedade
brasileira, observamos por atos e palavras, sejam nas ruas ou redes sociais, o descortinar e a
incitação do ódio à diferença, da intolerância e da violência.
A participação e o engajamento dos estudantes nas manifestações e no movimento de
ocupação das escolas, em 2016-2017, foram emblemáticos. O movimento, organizado por
estudantes secundaristas, por melhores condições escolares e com posicionamentos contrários às
medidas do governo golpista foram duramente combatidas pela polícia e força nacional, com
práticas semelhantes às da ditadura militar e/ou estado de exceção, onde os direitos ou parte deles
são suspensos, e a liberdade de expressão é tratada com repressão. Caso exemplar foi a ordem do
Juiz Alex Costa de Oliveira, da Vara de Infância e Juventude, do Distrito Federal (Brasília)
quando autorizou a polícia militar o uso de instrumentos similares aos de tortura (uso de
aparelhos sonoros para privar o sono dos alunos) para forçar a desocupação dos estudantes que
14
Publicada em: http://www.jb.com.br/pais/noticias/2016/12/09/onu-critica-pec-do-teto-de-gastos-prejudica-mais-
pobres-e-fere-direitos-humanos/ , em 09/12/16.
35

ocupavam o Centro de Ensino Asa Branca de Taguatinga, por serem contrários à PEC 55 do
congelamento dos gastos públicos por 20 anos15; ou da prisão de manifestantes.
Segundo o Deputado Estadual do Ceará Renato Roseno (PSOL), “estamos numa crise
multifacetada: social, política, ecológica, econômica, ética. É uma crise de padrão civilizatório.
Há uma imposição de um novo regime de acumulação por espoliação. O capital não consegue se
realizar e acumular sem destruir quaisquer mediações, por isso destrói os mecanismos de
proteção social que ferem o processo de exploração. A Reforma Trabalhista é um exemplo. É um
processo de desconstituição de direitos sociais16”.
Em termos gerais, as desigualdades socioeconômicas foram reduzidas no período de 2004
a 2014, principalmente pelos programas socioassistenciais (como o Bolsa Família, Minha Casa
minha vida, Luz para todos, etc.), programas de transferência de renda, geração de empregos e
valorização do salário mínimo. No entanto, o comprometimento de grande parte do orçamento
federal com a dívida pública tem reduzido as condições para a realização dos direitos humanos,
sociais, econômicos e culturais colocando em risco a garantia do que está previsto na
Constituição Federal e nos compromissos assumidos diante dos pactos e convenções
internacionais. Para se ter uma ideia, o orçamento público federal de 2015 destinou 47% dos seus
recursos ao pagamento de juros e amortização da dívida pública. Em 2014 foram destinados
apenas 3,73% do orçamento para a educação, 3,98% para saúde e 0,04% para cultura. As
medidas de ajuste fiscal cortaram do orçamento público em 2015 cerca de R$ 34,96 bilhões e,
representaram perdas de 42,7% na pasta da Saúde e 23,7% na Educação. As medidas do ajuste
somadas aos novos cortes nos investimentos sociais anunciados pelo atual governo, em especial a
PEC 55/2016 que congelou os gastos públicos por 20 anos no país, apontam para uma retomada
do aumento da pobreza no Brasil, segundo recente estudo do Banco Mundial17.
No último período, o governo federal tem apresentado propostas de reformas da
Constituição que reduzem garantias de direitos conquistados, frutos de muitas lutas. A Reforma
Trabalhista (Projeto de Lei 6787/16), recentemente negociada e aprovada pela Câmara e Senado
15
Publicado em: http://educacao.uol.com.br/noticias/2016/11/01/por-desocupacao-juiz-do-df-libera-isolamento-de-
alunos-e-privacao-de-sono.htm, acesso em 01/11/16.
16
Uma das falas do Deputado Renato Roseno na Mesa de Abertura do VII Encontro Nacional de Educação Social,
dia 12/10/17, em Fortaleza (CE). Renato é Advogado, Servidor Público do MDS e Militante de Direitos Humanos,
principalmente na área da infância e juventude.
17
Publicado em: https://medium.com/@padbrazil/direitos-humanos-e-democracia-no-brasil-
viola%C3%A7%C3%B5es-e-retrocessos-e50cc26d4523 , acesso em 08/07/17.
36

Federal, representa um grande retrocesso para a classe trabalhadora. No total, o projeto mexe em
cem pontos da legislação (CLT – Consolidação das Leis Trabalhistas), mudando as regras em
questões como jornada de trabalho, férias, e planos de carreira, além de regulamentar novas
modalidades de trabalho, como o home office (trabalho remoto) e o trabalho intermitente18. Outra
reforma que retira direitos é a da Previdência -  Projeto de Emenda Constitucional 278/2016, que
muda as regras da aposentadoria dos brasileiros. Caso aprovada, conforme proposta atual, o
trabalhador poderá ter que contribuir por 49 anos para assegurar o recebimento integral do regime
geral da previdência, e muitos terão de trabalhar até morrer.
Dentre a ofensiva do governo golpista de redução de direitos e liquidação do patrimônio
nacional privilegiando o agronegócio, o capital financeiro e empresas multinacionais, não poderia
deixar de destacar:
(1º) O Decreto que previa a abertura da Reserva Nacional de Cobre e Associados
(RENCA), na Amazônia, entre os estados do Pará e Amapá, para a exploração de mineradoras,
uma área comparada com a Dinamarca. A RENCA é uma área de 46.450 km2 criada em 1984 e
que era bloqueada aos investidores privados. No Decreto de criação da RENCA foi instituído que
a Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM) teria a exclusividade para conduzir os
trabalhos de pesquisa geológica para determinar e avaliar as ocorrências de cobre e minerais
associados. As descobertas deveriam ser negociadas com empresas de mineração, para fins de
viabilizar as atividades de extração19.
Com a reação de ambientalistas e da comunidade internacional, o governo federal teve
que recuar e revogou o decreto, e volta a valer o decreto de 1984, que criou a reserva e proibiu a
exploração privada de minérios na área20.
(2º) O Leilão do Pré-Sal, realizado no dia 27/10/17, no qual o governo federal arrecadou
6,15 bilhões com a venda de seis das oito áreas ofertadas. Segundo o colunista Noblat do Jornal
O Globo, este foi o “escândalo do século”. Os dois leilões puseram fim à exclusividade da
Petrobras na exploração da imensa riqueza, que foi considerada a maior descoberta (em 2006) de

18
Publicado em: https://www.cartacapital.com.br/politica/entenda-as-mudancas-na-reforma-trabalhista-com-mp-de-
temer.3. Acesso em Nov/2017.
19
Publicada em: http://www.mme.gov.br/documents/1138775/32082396/Perguntas+e+Respostas+-
+Renca+.pdf/96641130-6057-4711-bc59-f1863676c5de , acesso em 15/11/17.
20
Publicada em: https://g1.globo.com/politica/noticia/decreto-que-revoga-extincao-da-renca-e-publicado.ghtml ,
acesso em out/17.
37

petróleo dos últimos 30 anos21. O leilão tirou do país a sua capacidade de desenvolvimento
autônomo para ser mero fornecedor de matéria prima, à preço bem inferior ao do mercado, para
empresas multinacionais.
Com o leilão, “o Brasil abriu mão e deixa de arrecadar R$ 1 trilhão em receitas. Um
trilhão de isenções graciosamente cedidas às maiores e mais ricas empresas do planeta Terra.
Sem qualquer amparo em dados econômicos, em projeções de investimentos, e de estudos
confiáveis”, disse o Senador Roberto Requião em pronunciamento de mais de 30 minutos no
plenário, no dia 06/11/17. O Senador cobrou fortemente os operadores da Lava Jato, à Presidente
do Supremo Tribunal Federal (STF), Juíza Carmem Lúcia, à Procuradora Geral da União, Raquel
Dodge, aos Promotores Deltan e Dallagnoll, e delegados da Polícia Federal, “que assistem
passivamente a entrega do país e do desmantelamento do setor público sem qualquer reação, por
que nada fazem quando um governo absolutamente mergulhado na corrupção vende o Brasil a
preço de banana”. De acordo com Requião, nunca aconteceu na história do Brasil de um
presidente ser denunciado por corrupção durante o exercício do mandato, e nunca um presidente
da República desbaratou o patrimônio nacional de forma “tão açodada, irresponsável e suspeita”.
Com o leilão o governo passa a arrecadar apenas R$ 0,1 centavo com a venda de cada litro de
petróleo, disse Roberto Requião22 23.
(3º) O Ministério do Trabalho lançou Portaria 1.129, que modifica o conceito de trabalho
escravo, divulgada em 16/10/17. Segundo o texto, apenas poderá ser considerada escravidão a
submissão do trabalhador sob ameaça de castigo, a proibição de transporte obrigando ao
isolamento geográfico, a vigilância armada para manter o trabalhador no local de trabalho e a
retenção de documentos pessoais.
A Portaria foi duramente criticada pelo Ministério do Trabalho e pela Organização
Internacional do Trabalho (OIT), por representar um retrocesso para o país, que havia se
transformado em referência internacional no combate a esse tipo de exploração. O decreto
21
Publicada em: http://noblat.oglobo.globo.com/artigos/noticia/2017/10/leilao-do-pre-sal-o-escandalo-do-
seculo.html, em 24/10/17.
22
Integra do discurso Senador Roberto Requião publicado em: https://youtu.be/fW9f9TxbNgE, acesso em 07/11/17.
23
A título de informação, cada barril de petróleo tem cerca de 159 litros, o que, com o leilão, representa o valor de
R$ 1,23 para cada litro de petróleo, uma perda em torno de 1.230%. Uma informação importante sobre o preço real
é que o barril de petróleo bateu recorde em final de outubro/17, chegando à marca de U$S 60 dólares, o maior
desde 201523. O valor do dólar hoje (08/11/17) está em R$ 3,27. Isso significa que o barril de petróleo está
custando R$ 196,20. (Ver em: https://g1.globo.com/economia/mercados/noticia/preco-do-petroleo-sobe-e-bate-
marca-de-us-60-por-barril-no-maior-valor-desde-2015.ghtml , acesso em 07/11/17).
38

estabeleceu um conceito “condicionado à situação de liberdade, e não é assim no mundo, a


escravidão moderna não é caracterizada assim”, lamentou Antônio Rosa, representante da OIT no
Brasil. “É uma interpretação da norma bastante restritiva, o que acaba por mudar seu sentido,
impossibilitando na prática as operações de combate ao trabalho escravo em todo o país”,
considerou o auditor fiscal do Trabalho, Renato Bignami24.
A Ministra Rosa Weber, do STF, concedeu liminar (decisão provisória) suspendendo os
efeitos da Portaria 1.129 do Ministério do Trabalho. A decisão da ministra foi dada em uma
Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental aberta pelo partido Rede, que
argumentou que a referida portaria abria margem para a violação de princípios fundamentais da
Constituição, entre eles, o da dignidade humana, o do valor social do trabalho e o da livre
inciativa. Para a Ministra, ao “restringir” conceitos como o de jornada exaustiva e de condição
análoga à de escravo, “a portaria vulnera princípios basilares da Constituição, sonega proteção
adequada e suficiente a direitos fundamentais nela assegurados e promove desalinho em relação a
compromissos internacionais de caráter supralegal assumidos pelo Brasil e que moldaram o
conteúdo desses direitos, bem como princípios no qual o país é signatário”25.
O Senador Lindberg Farias, em vídeo que circulou em sua página26 e nas redes sociais, no
mês de setembro/17, se dizia escandalizado ao estudar o orçamento público para 2018, devido à
retirada dos direitos dos trabalhadores e dos pobres do orçamento. Considera o orçamento
criminoso, e destacou por áreas as principais reduções:

- Ministério do Desenvolvimento Social: Consolidação do Sistema Único de


Assistência Social. No ano de 2017, o orçamento foi de R$ 2,76 bilhões. Eles cortam
97%, caindo para R$ 67 milhões para 2018. Reduziu 1,2 milhões de pessoas do
Bolsa Família, e corte de 11% em 2018. Num momento em que estamos em crise
econômica, ele deveria estar ampliando esse programa.
- Promoção de inclusão de famílias em situação de pobreza: De R$ 40 milhões em
2017, vai para R$ 19 milhões, em 2018, um corte de 52%.
- Programa de Aquisição de alimentos: É um programa do governo federal para a
compra de alimentos de produtores de economia familiar. De R$ 619 milhões em
2015, foi para R$ 318 milhões em 2017, e em 2018 irá para R$ 750 mil.

24
Publicado em: https://g1.globo.com/economia/noticia/oit-expressa-preocupacao-por-decreto-sobre-trabalho-
escravo-no-brasil.ghtml ,em 16/10/17.
25
Publicado em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2017-10/ministra-rosa-weber-do-stf-suspende-portaria-
sobre-trabalho-escravo , em 24/10/17.
26
Publicada em: https://www.facebook.com/search/top/?q=lindbergh%20farias, acesso em setembro/17.
39

- Educação: Em 2015, se investia em educação superior R$ 13 bilhões, houve uma


ampliação das universidades públicas federais nesse país. Em 2017, foi para R$ 8,7
bilhões, e em 2018 a redução será para R$ 5,9 bilhões.
- Educação básica: em 2015 era previsto R$ 7,4 bilhões, caiu para 6,1 bilhões em
2017, e vai ter em 2018, uma redução de 42% e indo para R$ 3,5 bilhões.
Educação Tecnológica – De R$ 7,960 bilhões em 2015, passou para R$ 3,7 bilhões
em 2017, e em 2018 vai para R$ 2,8 bilhões.
- Cultura: De R$ 770 milhões em 2015, caiu para R$ 146 milhões em 2018.
Ciência, tecnologia e Inovação – O orçamento que era de R$ 5,8 bilhões em 2015,
caiu para R$ 3,7 bilhões em 2017, e em 2018 a redução será de 58%, caindo para R$
1,3 bilhão. Desestruturando, e mesmo tornando inviável o estudo e a pesquisa no
país.
- Defesa Nacional: em 2015 eram R$ 8 bilhões, caiu para R$ 6,8 bilhões em 2017, e
o corte para 2018 é da ordem de 71%, vai para R$ 1,970 bilhão.
- Saúde: Corte no SUS de 14% em 2018. É muito para um sistema de saúde que tem
tantas despesas obrigatórias. Saiu de R$ 18,7 bilhões em 2017, e vai para R$ 16,190
bilhões em 2018.
- Violência: Verba de Segurança Pública, Justiça e Cidadania, o orçamento que foi de
R$ 2,7 bilhões em 2017, cai para R$ 970 milhões em 2018, uma redução de 54%.
- PAC: Foi cortado R$ 36 bilhões já em 2017, e para 2018, o orçamento previsto será
de apenas R$ 1,971 bilhões, um corte de 95%.

O Senador Lindberg Farias considera que “estaremos completamente inviabilizados, nós


estamos voltando para o mapa da fome, são mais de 3,6 milhões de brasileiros que estão voltando
para o mapa da fome... Eles vão destruir o Sistema Único de Assistência Social (SUAS). Mas,
volto a dizer que é só para o andar de baixo, porque, para ter dinheiro pra comprar deputado o
presidente tem. Para aprovar um Refis27 que vai para grandes empresas, bancos, vão ter na
verdade uma bolsa da sonegação, é isso que eles estão fazendo... É devastador, o que vão fazer
com esse país! É muita destruição em tão pouco tempo! (...) Olhar o orçamento é muito
importante, pois aí vemos as prioridades do governo”, concluiu.

Além de procurar fixar seu modo de sociabilidade através de instituições determinadas,


os homens produzem ideias ou representações pelas quais procuram explicar e
compreender sua própria vida individual, social, suas relações com a natureza e com o
sobrenatural. Essas ideias ou representações, no entanto, tenderão a esconder dos
homens o modo real como suas relações sociais foram produzidas e a origem das formas
sociais de exploração econômica e de dominação política. Esse ocultamento da realidade
chama-se ideologia. Por seu intermédio, os homens legitimam as condições sociais de
exploração e de dominação, fazendo com que pareçam verdadeiras e justas (CHAUÍ,
1991, p. 21).

No contexto estadual, o Rio de Janeiro também viveu e vive uma crise sem precedentes
em sua história. O Estado de calamidade pública decretado pelo Governador Luiz Fernando

27
Novo REFIS, programa de refinanciamento da dívida com o fisco, beneficiará várias empresas com a prorrogação
de prazos.
40

Pezão no período de realização das Olimpíadas Rio 2016, se agravou com as inúmeras denúncias
de corrupção e desvio de verba pública, principalmente pelo Ex Governador Sérgio Cabral, na
ordem de bilhões de reais. As consequências são gravíssimas, com atrasos nos pagamentos de
salários de funcionários públicos, aposentados, pensionistas, sucateamento de hospitais, serviços
e equipamentos públicos, universidade, como a Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ), que está praticamente paralisada, escolas, dentre outros. Muitos falam, inclusive, da
necessidade de intervenção federal no estado.
Os índices de violência no Rio de Janeiro só aumentaram em relação ao ano anterior.
Muitas crianças e adolescentes foram vítimas da violência sistemática em suas comunidades, nas
escolas, em casa, alvejadas por disparos de arma de fogo! Segundo dados da polícia civil, o Rio
de Janeiro tem uma vítima de bala pedida a cada 07 horas 28! Perdida? É bala achada! As
comunidades exigem justiça. A população está amedrontada e exige segurança. Tudo isso
também tem reflexo para as crianças e adolescentes, sejam as que estão em situação de rua, ou
nas favelas e periferias da cidade, com o aumento da repressão e violência policial.
Muitas são as contradições ao analisarmos os fatos sociopolíticos que integram essa
realidade, pois, ao mesmo tempo em que ao longo do governo do Partido dos Trabalhadores (PT),
período compreendido entre os anos de 2003 – 2011, com Lula, e de 2012 a abril 2016, com
Dilma Rousseff, o Brasil apresentou os maiores índices de crescimento e credibilidade
internacional, grandes avanços em políticas e programas sociais, educacionais, culturais, ciência e
tecnologia, direitos humanos, redução nos índices de desigualdade, quando milhões de brasileiros
saíram da faixa de pobreza e pobreza extrema, no entanto, também foi um período de aumento da
violência letal e do encarceramento de adolescentes e jovens, ocupando o Brasil um dos líderes
no ranking mundial. Contradição também nas relações e acordos estabelecidas pelo PT com
políticos e partidos que protagonizaram o golpe que destituiu a Presidenta Dilma, que hoje são
alvo de críticas do próprio PT.
Nesse cenário sombrio de redução, ou mesmo de suspensão, de direitos, especialmente
para um determinado grupo social, de aumento da violência, do medo e insegurança, é propício
para a instauração de práticas totalitárias, abusivas. Podemos perceber que quando a classe e o
poder dominante se veem ameaçados, muitas vezes faz uso de duas formas de atuação: pela
coerção e/ou pelo consenso, ambas práticas que foram muito utilizada pelo nazifascismo.
28
Publicado em: https://extra.globo.com/casos-de-policia/rio-tem-em-media-uma-pessoa-vitima-de-bala-perdida-
cada-sete-horas-em-2017-21558626.html .
41

Gellately (2011), em seu livro Apoiando Hitler, ao falar sobre o nazismo enquanto novo
regime na Alemanha, comenta:

O novo regime não hesitava em empregar muitas formas de repressão contra seus
inimigos declarados, mas também buscava o consentimento e o apoio do povo a toda
hora. (...) o consentimento e a coerção estiveram inextricavelmente entrelaçados durante
a história do Terceiro Reich, até certo ponto porque da repressão e do terror foi usada
contra indivíduos específicos, minorias e grupos sociais pelos quais o povo tinha pouca
simpatia. A coerção e o terror eram altamente seletivos (...). (GELLATELY, 2011,
p.22).

Considerando a descrição do autor e a analogia que faço entre as soluções do nazismo de


Hitler e as práticas abusivas em nosso território e tempo, os sujeitos indesejáveis podem ser
comparados aos chamados “Antissociais” e “Outsiders Sociais” do Terceiro Reich na Alemanha
nazista, grupo este que faziam parte de criminosos a mendigos, incluindo os sem teto. O conceito
de antissociais era usado para descrever todos aqueles que não participavam da ordem social
como “bons cidadãos” e não aceitavam suas “responsabilidades sociais”.

A lista dos antissociais que se enquadravam nessa definição vaga incluíam todos os que
“por meio de infrações menores da lei”, mas repetidas com frequência, demonstram que
não respeitarão a ordem social, que é uma condição fundamental do Estado nacional-
socialista, como: mendigos, sem-teto, ciganos, prostitutas, alcóolatras, portadores de
doenças contagiosas (...) (GELLATELY, 2011, p. 162).

Quando os nazistas consideravam que os outsiders sociais “demonstram que não


respeitarão a ordem social” é a mesma leitura equivocada e desprovida de uma análise concreta
do real que o poder dominante no Brasil têm em relação às crianças e adolescentes em situação
de rua, aos muitos adolescentes e jovens das favelas e aos que cometeram ato infracional e estão
encarcerados. Na Alemanha de 1938 / 1939, os campos de concentração nos últimos anos pré-
guerra foram usados não apenas para inimigos políticos do Estado, como os comunistas, mas
também para aqueles socialmente indesejados. Dessa forma, os campos confinavam cada vez
mais outsiders sociais, sendo estes, incialmente, o público preferencial das arbitrariedades
cometidas pelo Terceiro Reich.

Campos como Buchenwald, portanto, encarceravam tantos, ou mais, outsiders sociais


quanto adversários políticos, como os comunistas. (...) Os números mostram que mais da
metade dos prisioneiros em qualquer momento desse período eram “antissociais”
(GELLATELY, 2011, p. 163).
42

Importante ressaltar que não temos a intencionalidade, ou propósito, de comparação com


o que foi estabelecido e/ou com o que resultou o nazismo na Alemanha de Adolf Hitler, quando
milhões de judeus foram assassinados nos campos de concentração, pois seria, no mínimo,
leviano. No entanto, na ausência de uma terminologia (conceito/categoria) que melhor defina
essa atualidade sombria que vivenciamos utilizo, como dito, aquela que a meu ver mais se
aproxima ou que carrega semelhanças com o nazifascismo, mesmo sabendo que falar de nazismo
é como um tabu. Mas, por que tabu? Por que não podemos imaginar que as motivações e
intencionalidades que deflagraram aquele tipo de regime político perverso e desumano, que
envergonha a sociedade mundial, não possa ter deixado “elos de continuidades” entre nós,
humanidade, porém reformulados, camuflados?
A humanidade se humanizou depois do holocausto? Freud em O Mal-Estar da Civilização
encerra seu artigo com uma visão bem pessimista, porém realista da humanidade, num tempo em
que a ameaça de Hitler já começava a se evidenciar, em 1931, e que também parece cabível
atualmente:

A questão fatídica para a espécie humana parece-me ser saber se, e até que ponto, seu
desenvolvimento cultural conseguirá dominar a perturbação de sua vida comunal
causada pelo instinto humano de agressão e autodestruição. Talvez, precisamente com
relação a isso, a época atual mereça um interesse especial. Os homens adquiriram sobre
as forças da natureza um tal controle que, com sua ajuda, não teriam dificuldades em se
exterminarem uns aos outros, até o último homem. Sabem disso, e é daí que provém
grande parte de sua atual inquietação e infelicidade e de sua ansiedade. (FREUD, 1978,
p. 194).

O nazifascismo enquanto regime político não caberia mais nesse tempo (apesar de ainda
existirem simpatizantes, como grupos de neonazistas, lideranças políticas e a ascensão de
movimentos totalitários no Brasil e no mundo). Porém, sua ideologia deixou
continuidades/aderências que para se manifestar foi preciso se camuflar. E reaparecem, por
exemplo, em momentos de crise, na violência sistemática dos aparelhos do Estado nas operações
de recolhimento e internação compulsória da população em situação de rua; na retirada
compulsória de bebês de jovens mães em situação de rua, supostamente usuárias de drogas; na
tortura de adolescentes em abrigos e nas unidades de internação para adolescentes infratores
(agressão e uso de "taser" – choque; spray de pimenta, maus tratos, tortura, superlotação, etc.);
nos altos índices de homicídio de jovens negros e pobres, nos autos de resistência, nos
43

desaparecimentos, nas agressões à manifestantes, nas incursões da polícia nas favelas, dentre
outras.
De fato, o que consideramos ideologia nazifascista não está correlacionado com um
regime político formalizado como o da Alemanha Nazista, mas não deixa de carregar um
substrato deste, que observamos nos exemplos citados acima, materializados nas posturas e
práticas arbitrárias, ilegais, que afrontam direitos constituídos, que temos vivenciado,
especialmente, nesses tempos mais que sombrios do governo golpista brasileiro, com a
conivência de grande parte do Judiciário e Legislativo, reforçados pela grande mídia. Apesar de
parte da sociedade brasileira só ter se dado conta disso em um período recente, pessoas em
situação de rua e moradores de favelas e periferias, principalmente negros e pobres, convivem
com essas forças há muito tempo...
Hanna Arendt (2013) também nos faz um alerta quando escreve:

É bem sabido que Hitler começou seus assassinatos em massa brindando os “doentes
incuráveis” com a “morte misericordiosa”, e que pretendia ampliar seu programa de
extermínio se livrando dos alemães “geneticamente defeituosos” (doentes do coração e
do pulmão). Mas à parte disso, é evidente que esse tipo de morte pode ser dirigido contra
qualquer grupo determinado, isto é, que o princípio de seleção é dependente apenas de
fatores circunstanciais. É bem concebível que na economia automatizada de um futuro
não muito distante os homens possam tentar exterminar todos aqueles cujo quociente de
inteligência seja abaixo de determinado nível (ARENDT, 2013, p.312).

Os “indesejáveis” da cidade, nem sequer são reconhecidos como titulares de direitos.


Vistos como não cidadãos e potencialmente perigosos, o uso de práticas repressivas, de controle e
coersão pelo Estado é a forma historicamente reconhecida e concebida de atuação junto a esse
segmento da população. O sociólogo e escritor Boaventura Souza Santos, já em 1998, escreveu e
desenvolveu o conceito de fascismo societal, que se diferencia do que estamos aqui defendendo,
mas tem semelhanças:
Não se trata do regresso do fascismo dos anos trinta e quarenta. Ao contrário deste
último, não se trata de um regime político, mas de um regime social e civilizacional. Em
vez de sacrificar a democracia às exigências do capitalismo, promove a democracia até
ao ponto de não ser necessário, nem sequer conveniente, sacrificar a democracia para
promover o capitalismo. Trata-se, pois, de um fascismo pluralista e, por isso, de um
fascismo que nunca existiu (SANTOS, 1998, p.26).

Segundo Boaventura (1998), “o capitalismo deixou de fazer concessões, a democracia


perdeu a capacidade de distribuir riqueza, e as sociedades acabaram desenvolvendo relações
fascistas”, diz ele, referindo-se ao número cada vez maior de pessoas excluídas do contrato
44

social, onde os direitos estão ausentes ou minimizados. De acordo com o autor, na categoria do
“Fascismo Societal”, existem 06 formas fundamentais do tipo fascista de sociabilidade que
vivenciamos em nossa época: o Fascismo do Apharteid Social, o Fascismo do Estado Paralelo, o
Fascismo Paraestatal (dividido em duas vertentes: contratual e territorial), o Fascismo Populista,
o Fascismo da Insegurança e o Fascismo Financeiro.
O fascismo societal de Boaventura não é um regime político, mas aquela forma que está
presente nas relações sociais na sociedade capitalista enquanto parte da própria civilização. Esta
definição conceitual do autor apresenta semelhanças com o que defendemos nessa tese, porém, o
que nos diferencia é, especialmente, a questão de raça, uma categoria não abordada pelo autor nas
seis formas de fascismo que destaca, nem mesmo em sua em sua 1ª forma: o Fascismo do
Apartheid Social29. Dessa forma, considero que o que nos diferencia é a ideologia dominante que
permeia as práticas e posturas abusivas que são direcionadas a um grupo específico da população,
majoritariamente negros e pobres, que foram excluídas do “contrato social”, ou seja, um tipo de
ideologia bem próxima ao que foi a ideologia nazifascista.

1.1 Sobre Fascismo e Nazismo

Fascismo e Nazismo foram dois regimes políticos que surgiram no início do século XX:
em 1919 o Fascismo de Mussolini, na Itália; e em 1920 o partido nazista na Alemanha, mas que
só se constitui enquanto regime quando da ascensão de Hitler ao poder, em 1933. Existem muitos
autores que escreveram sobre o fascismo, nazismo e a ideologia nazifascista, porém há diferenças
em algumas concepções. Muitos consideram o nazismo um tipo de fascismo, por isso o termo
“nazifascismo” (que adotamos nessa tese), porém o nazismo tem em sua ideologia características
que os diferencia, como veremos a seguir. Procurei buscar referências teóricas que se identificam,
em seu tempo, com esse estudo, para explicar resumidamente o que foi cada um desses regimes e
a ideologia que os permeou.

29
A primeira forma é o Fascismo do Apartheid Social. Trata-se da segregação social dos excluídos através de uma
cartografia urbana dividida em zonas selvagens e zonas civilizadas. As zonas civilizadas são as zonas do contrato
social e vivem sob a constante ameaça das zonas selvagens. Para se defenderem, transformam-se em castelos
neofeudais, os enclaves fortificados que caracterizam as novas formas de segregação urbana (SANTOS, 1998,
p.23).
45

No livro As Origens do Fascismo, o autor José Carlos Mariátegui (2010), quando de sua
passagem pela Itália no início da instauração do regime fascista, assim o descreveu:

O fascismo foi fundado em 1919 por Benito Mussollini e outros elementos de entusiasta
figuração intervencionista, para preconizar um programa expansionista e nacionalista
contra aqueles que, a seu juízo, desvalorizavam, dentro do governo, a vitória italiana na I
Guerra Mundial. A denominação de “fascismo” vem da palavra “fascio”, que quer dizer
“feixe”, com a qual foi designado na Itália, durante a guerra o feixe de partidos, o bloco
de forças políticas nacionais (...). A palavra “fascismo” tem, portanto, por essa origem,
um conteúdo nacionalista e guerreiro (MARIÁTEGUI, 2001, p.147).
(...) No princípio, o “fascismo” operou principalmente sobre uma plataforma de política
externa. Agitou a bandeira das máximas aspirações territoriais. (...) Mais tarde, quando
esse programa nacionalista aglutinou ao redor dos “fascios” uma multidão batalhadora e
acalorada, o fascismo iniciou seu ataque armado ao socialismo. Situou sempre sua ação
num terreno claramente nacionalista. Qualificou de agressiva sua atividade, como uma
afirmação do patriotismo italiano contra a doutrina internacionalista do socialismo e do
anarquismo. (...) O fenômeno “fascista” adquiriu, a partir de então, uma importância
muito maior. Hoje, o “fascismo” é uma milícia civil antirrevolucionária. Já não
representa somente o sentimento de vitória. Já não é exclusivamente um prolongamento
do ardor bélico da guerra. Agora significa uma ofensiva das classes burguesas contra a
ascensão das classes proletárias. As classes burguesas aproveitam o fenômeno “fascista”
para sair de encontro à revolução (Idem, p. 148).

O fascismo italiano foi mais proveitoso ao capital na medida em que extinguia sidicatos e
obstáculos à administração patronal do trabalho. Ali sim, o movimento foi no interesse de velhas
classes dominantes em reação às agitações esquerdistas revolucionárias que se avolumavam. O
fascismo, liderado por Mussolini, foi um regime antidemocrático no qual o poder ficava nas mãos
de um chefe de Estado, havia grande incentivo à educação e preparação de indivíduos para a
guerra. Os fascistas se apresentavam como solução para a crise econômica e greves italianas.
Através de violência e mortes eles sufocaram os movimentos grevistas e Mussolini conquistou
oficialmente o poder.
A ideologia nazifascista é o conjunto de ideias e valores que deram sustentação ao
Terceiro Reich da Alemanha, governado por Adolf Hitler e pelo Partido Nacional Socialista dos
Trabalhadores Alemães (NSDAP), mais conhecido como Partido Nazista, no período de 1933 a
1945. O nazismo era um regime totalitário, desde seu início, antiliberal tendo derrubado antigas
estruturas institucionais imperiais bem como antigas elites consolidadas. Tinha dentre suas
principais características o ultranacionalismo, militarismo, unipartidarismo, controle da
propaganda, culto ao líder, anticomunismo, racismo, expansionismo, antissemitismo.
Diferenciava-se do fascismo principalmente por pregar a superioridade da raça ariana. A
ideologia nazifascista pregava a superioridade do povo germânico perante todas as outras raças,
46

especialmente judeus, eslavos e mestiços. O nazifascismo foi a resposta da burguesia para a grave
crise que atingia o capitalismo no início do século XX e, como uma ditadura capitalista, teve no
comunismo seu primeiro grande inimigo30.
Segundo o historiador Gellately31 (2001), o estabelecimento da ditadura de Hitler ocorreu
logo após sua indicação como Chanceler no fim de janeiro de 1933. Ele começou meramente
como líder de um governo de coalizão num país tomado por problemas políticos, econômicos e
sociais. (...) em poucos dias depois de sua nomeação já falava com líderes militares sobre como
pretendia acabar com o “câncer da democracia”, instalar a “mais rígida e autoritária liderança de
Estado” e até mesmo embarcar na “conquista de um novo espaço vital no leste, com a implacável
germanização”. Alguns meses após sua indicação como Chanceler, a maior parte dos cidadãos
alemães passou a aceita-lo e a apoiá-lo com firmeza. (...) A coisa mais importante que poderia
fazer para conquistar a simpatia da população era resolver o enorme problema do desemprego32.

O novo regime não hesitava em empregar muitas formas de repressão contra seus
inimigos declarados, mas também buscava o consentimento e o apoio do povo a toda
hora. (...) a maior parte da repressão e do terror foi usada contra indivíduos específicos
(...). A partir do início de 1933, a polícia e as Tropas de Assalto nazistas começaram a
recorrer à violência, e novos campos de concentração foram estabelecidos
(GELLATELY, 2001, p.22).

Uma das questões que mais exigem nossa atenção e reflexão crítica nos tempos atuais é o
avanço das forças que vêm corroendo o Estado Democrático de Direito e vão introduzindo um
Estado de Exceção. Podemos perceber a presença, já não tão oculta, de um tipo de ideologia
semelhante à que foi a ideologia nazifascista em casos exemplares como, alguns já mencionado
anteriormente, no percentual de aprovação do Deputado Jair Bolsonaro33 , bem como de como ele
tem sido ovacionado nos discursos que faz em diferentes cidades pelo país, referenciado como
“mito” e, surpreendentemente, quando de sua visita à Sociedade Hebraica do RJ, em abril/2017,
justamente uma casa de referência para os Judeus, quando disse, dentre outras: “Eu fui num

30
Fontes: http://www.historiadigital.org/curiosidades/10-ideologias-do-nazi-fascismo/ ;
http://arturbruno.com.br/cursos/texto.asp?id=930 .
31
Robert Gellately é um acadêmico canadense e um dos principais historiadores da Europa moderna, particularmente
durante a Segunda Guerra Mundial e o período da Guerra Fria. (Ver em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Robert_Gellately ).
32
Fonte: Gellately, Apoiando Hitler, Editora Record, 2011 (p. 21).
33
Jair Bolsonaro era do Partido Social Cristão (PSC) e atualmente está no Partido Social Liberal (PSL).
47

quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Nem pra procriador ele serve
mais”. Qual seria a explicação para o número tão expressivo de admiradores de uma pessoa que
defende torturadores e a volta da ditadura, como o fez na Câmara dos Deputados na votação do
impeachment da presidente Dilma Rousseff, quanto exaltou o nome do Coronel Ustra34, expõe
abertamente seu racismo, sua intolerância, seu ódio às diferenças, aos homossexuais, desrespeita
e ofende as mulheres, como o fez com a Deputada Maria do Rosário, numa sessão na Câmara
Federal de Deputados, em 2014, quando disse que “Ela não merece [ser estuprada] porque ela é
muito ruim, porque ela é muito feia, não faz meu gênero, jamais a estupraria. Eu não sou
estuprador, mas, se fosse, não iria estuprar, porque não merece"?

Sempre que de algum modo o diferente é tratado como inimigo, excluído do povo,
desqualificado em sua humanidade, associado à desvalores, mau, falso, injusto, sujo,
sempre que alguém procura uniformizar o meio social como um organismo por tal
método está diante de uma atitude fascista. A chave é essa: alguns são “o povo” e devem
ser protegidos; outros não são o povo, não tem direitos e podem ser excluídos. O ódio à
diferença é o fenômeno social fascista por definição. Há hoje no Brasil problemas com a
diferença. Devemos prestar atenção quando a luz amarela acende (FELIPPE, 2013)35.

Assistimos, ao avanço da ideologia nazifascista presente nos discursos, nas posturas, e em


certas práticas de Estado, de governo, da sociedade civil, das instituições políticas, judiciárias,
policiais, do Ministério Público, com irrestrito apoio e difusão da grande mídia e crescente
aceitação por amplas parcelas da população. No avanço de partidos políticos ligados a segmentos
religiosos, ameaçando o pluralismo religioso e o estado laico. O alerta foi feito por Frei Betto,
que chegou comparar esse movimento, de matriz fundamentalista e ainda pouco percebido pela
sociedade, ao surgimento do nazismo, na Alemanha: “Estamos assistindo a certos segmentos
religiosos chocarem o ovo da serpente, expressão que vem do nazismo dos anos 30, na
Alemanha: depois que a coisa esquentou é que muita gente se deu conta”, disse o religioso,
durante conferência no 9º Encontro Nacional Fé e Política, na Universidade Católica de Brasília

34
Coronel do Exército Carlos Ustra foi chefe do Doi Codi durante a ditadura militar, entre 1970 e 1974. Foi o
primeiro militar reconhecido pela Justiça como torturador e comandante de uma delegacia de polícia acusada de ser
palco de mais de 40 assassinatos e de, pelo menos, 500 casos de torturas. (Ver em:
http://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/historia/conheca-o-coronel-ustra-homenageado-por-bolsonaro-
e-chefe-do-temido-doi-codi-8sed82y14k1b2hnuu1yxk5pnb .
35
Márcio Sotelo Felippe, Fascismo no Brasil de hoje, 2013. Artigo publicado em
http://mariafro.com/2013/05/29/marcio-sotelo-felippe-fascismo-no-brasil-de-hoje/ , acesso em 28/05/13.
48

(UCB), em novembro de 201336. A bancada evangélica no Congresso Nacional é um exemplo do


avanço de forças fundamentalistas, que defende uma pauta extremamente conservadora e
preconceituosa, como o Estatuto da Família37, que fortalece a intolerância, contrária à união de
casais homoafetivos, defende a cura gay, contrária às religiões de matizes africanas, etc.
Fundamentalistas como o MBL (Movimento Brasil Livre), que em um evento na UERJ de
comemoração aos 100 anos da Revolução Bolchevique, em novembro/17, invadiram o auditório
da faculdade de história, filmaram os presentes, fizeram ameaças, e gritavam, como um
xingamento, “comunistas!” O MBL também protagonizou e estimulou uma onda de intolerância
pelas redes sociais censurando a exposição "Queermuseu — Cartografias da diferença na arte
brasileira", realizada no Santander Cultural de Porto Alegre (RS), em meados de setembro/17,
fazendo com que o Santander cancelasse a exposição. Esse episódio fez ressurgir o conceito de
“arte degenerada38” de Hitler, que censurou vários artistas há 80 anos atrás durante o regime
nazista.
Importante também destacar que foi entre 2013/2014 que entra em tramitação no Senado
o Projeto de Lei nº 499/2013, que versa sobre a Lei Antiterrorismo, que define crimes de

36
Publicado em: http://politica.estadao.com.br/blogs/roldao-arruda/o-brasil-esta-chocando-o-ovo-da-serpente-diz-
frei-betto-ao-defender-estado-laico/ , acesso em novembro 2013.
37
Estatuto da Família define família como a união entre homem e mulher, por meio de casamento ou união estável,
ou a comunidade formada por qualquer um dos pais junto com os filhos. O Projeto é de autoria do Deputado
Anderson Ferreira (PR – PE).
38
Publicado em: http://www.gazetadopovo.com.br/blogs/caixa-zero/mbl-arte-
degenerada/?doing_wp_cron=1505303825.2400069236755371093750 O conceito de “arte degenerada”, em
alemão, “entartete Kunst”, surgiu para criticar as tendências do modernismo que iam contra tudo aquilo que o
nazismo, um movimento reacionário por excelência, defendia. Tudo o que era contra o conceito tradicional de
beleza ofendia. Entre as obras consideradas degeneradas estavam produções de artistas que se tornaram símbolos
do que de melhor o século 20 nos deu, como Picasso e Chagall . Em artigo publicado no Jornal o Globo, no dia
12/09/17, “Não há arte possível para a gente de bem”, Daniele Name, escritora e curadora, escreve sobre o fato:
Uma exposição que inflamou aquela cidade fria. Os cidadãos de bem comentavam, mesmo sem ter visto. As mães
protegiam seus filhos daquelas telas, esculturas, fotografias e objetos, consideradas uma ameaça à família, ao
espírito nacional, aos altos valores. Cada obra como um ataque premeditado à ordem; cada defensor desse tipo de
arte como um pervertido, pedófilo, bandido ou prevaricador — talvez todos os atributos combinados. Uma patrulha
civil, milícia da moral, de plantão do lado de fora, abordando e intimidando as pessoas. Afinal de contas, quem não
é pelo bem compactua com o mal. Porto Alegre? MBL? Mostra Queer? Não. Este texto começou em Munique,
onde, há exatos 80 anos, em 1937, um certo Adolf Hitler transformou a mostra "Arte degenerada" em uma de suas
principais peças de propaganda ideológica. (...) A exposição "Arte degenerada" deu ao ditador a chancela para a
destruição de obras dos artistas participantes e também de Picasso, Kandinsky e Matisse — todos vistos como
vetores "judaico-bolcheviques". O resto da história conhecemos bem — ou ao menos deveríamos: obras de arte
queimadas, escondidas, destruídas. Artistas e pensadores fugindo ou morrendo. Publicado em:
https://oglobo.globo.com/cultura/artes-visuais/artigo-nao-ha-arte-possivel-para-gente-de-bem-
21810164?utm_source=facebook&utm_medium=social&utm_campaign=compartilhar
49

terrorismo, estabelecendo a competência da Justiça Federal para o seu processamento e


julgamento. Essa parece que foi a resposta do Congresso e Senado brasileiros logo após as
manifestações de 2013, numa tentativa de reprimir essa forma de expressão, ou, segundo eles, os
atos de vandalismo. Para defensores de direitos humanos, a lei antiterrorismo “é quase uma
repetição da época da ditadura civil-militar”, e que não teria necessidade, pois a legislação
brasileira atual dá conta de todos os crimes eventualmente cometidos nas manifestações e
defende que o que está por trás da proposta de lei antiterrorismo, que tramita no Congresso
Nacional, são os interesses econômicos ligados à Copa do Mundo39. Considerar atos mais
agressivos em manifestações públicas como terrorismo é mais um exemplo do como há um
endurecimento nas práticas por parte do Estado, próprio de regimes de exceção, que vão se
fazendo presentes na realidade brasileira.
Evidências do crescimento de práticas abusivas podemos também considerar as
conduções coercitivas40, mesmo quando o denunciado expressa a intenção de colaborar com a
justiça, as prisões ilegais e por período indeterminado41 (manifestantes, políticos, etc.), o
descumprimento das garantias constitucionais e processuais, a inversão da presunção de
inocência, o clima generalizado de delação que envolve tudo o que se refere à política e à gestão
pública, os processos e julgamentos judiciais transformados em espetáculos midiáticos, na
parcialidade nos julgamentos da Operação Lava Jata, e outras coisas do gênero que a sociedade
brasileira tem acompanhado sucessivamente num passado muito recente.
Alguns definem esse processo utilizando o termo “Lawfare”, que é um termo inglês que
representa o uso indevido dos recursos jurídicos para fins de perseguição política, ou seja, o uso
do Direito para deslegitimar ou incapacitar uma pessoa considerada inimigo. Outra grave
afronta à Constituição Federal foi o vazamento de áudio de conversas privadas entre políticos,

39
Publicado em: http://www.brasildefato.com.br/node/27484#.UwOpqOAPV8w.facebook, em 19/02/14.
40
Dentre as formas de restrição à liberdade de locomoção previstas no arcabouço jurídico pátrio figura a condução
coercitiva, que consiste em um meio conferido à autoridade para fazer comparecer aquele que injustificadamente
desatendeu a sua intimação, e cuja presença é essencial para o curso da persecução penal. (Ver em:
http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=12490). Conforme prevê o
artigo 218 do Código de Processo Penal Brasileiro, a condução coercitiva só é legitima quando é precedida de uma
intimação prévia. Quando este método é aplicado sem a intimação, configura-se como uma violação do direito de
liberdade da testemunha ou do indiciado.
41
Prisões consideradas ilegais por não terem mandato de busca e apreensão; por serem objeto de delações premiadas,
sem apresentação do ônus da prova, apenas suposições, por isso, consideradas uma inversão da presunção de
inocência.
50

empresários, etc, quando a lei é clara quanto ao sigilo desse tipo de informação em processo
penal.
Observamos que essa forma de conduta é a que tem se tornado regra no alto escalão do
governo atual, no Congresso Nacional, no Judiciário, amparados pela grande mídia, de forma
feroz, desde o golpe que destituiu a presidenta Dilma, e em todo o período posterior. A cada dia,
o país é sobressaltado por denúncias envolvendo parlamentares (Deputados, Senadores) e
Ministros em crimes de corrupção, desvio de dinheiro público, formação de quadrilha,
negociação de propina e compra de votos, que envolve também aquele que ocupa a atual
presidência da República, por crime organizado e obstrução da justiça, duas denúncias muito
mais graves do que a que envolveu a Presidenta Dilma quando de sua retirada da presidência da
república (por crime de responsabilidade ao assinar decretos sem a autorização do Congresso),
enquanto o atual presidente permanece no cargo, apesar dos 24 pedidos de impeachment
apresentados à Câmara Federal de Deputados, sem nunca terem entrado na pauta do Congresso
Nacional.
A conjuntura brasileira descrita com a relação dos fatos sociais aqui apresentados,
associados à grave crise econômica reiteradas vezes alarmada pelo governo e o seu 1º escalão,
reforçadas pela mídia, abrem um perigoso campo para a instalação de forças reacionárias, de
recorte ideologicamente nazifascista, como já destacamos. Em tempo, importante relembramos
do período que representou a queda da República de Weimar e a ascensão do nazismo na
Alemanha, semelhantes ao período que o Brasil atravessa.
Segundo o historiador Robert Gellately (2011), os anos que precederam 1933 foram
difíceis para a Alemanha. O parlamento da República de Weimar estava dividido entre mais de
uma dúzia de partidos políticos e, desde a Grande Depressão em 1929, os chanceleres alemães
dependiam cada vez mais dos poderes emergenciais do presidente para aprovar leis. No final de
1932, quando a crise no país se aprofundou e o governo ficou imobilizado, um grupo de
conservadores influentes disse ao presidente Paul Von Hindenburg que a liderança de Adolf
Hitler seria um modo de lidar com a crise social, econômica e política que se avolumava. Hitler
foi nomeado em 30 de janeiro de 193342.O estabelecimento da ditadura de Hitler e a ascensão do
Partido Nazista na Alemanha ocorreram logo após sua indicação como Chanceler no fim de
janeiro de 1933.

42
GELLATELY, 2011, p.33.
51

Diante de tudo, não podemos desconsiderar os rumos que o país vem tomando e as graves
consequências que foram impingidas ao povo brasileiro. Giorgio Agambem (2012) descreve em
poucas palavras um cenário preocupante não só para o Brasil, mas para mundo.

A decadência da democracia moderna e o seu progressivo convergir com os estados


totalitários nas sociedades pós-democráticas espetaculares (que começam a tornarem-se
evidentes já com Tocqueville e encontram nas análises de Debord sua sanção final) têm,
talvez, sua raiz nessa aporia que marca o seu início e que a cinge em secreta
cumplicidade com o seu inimigo mais aguerrido. A nossa política não conhece hoje
outro valor (e consequentemente outro desvalor) que a vida, e até que as contradições
que isso implica não forem solucionadas, nazismo e fascismo, que haviam feito da
decisão sobre a vida nua o critério político supremo, permanecerão desgraçadamente
atuais (AGAMBEN, 2012, p. 17).

Enquanto referência teórica de ideologia em Marx, Chauí (1991) e Lukács (2012), bem
como nos referenciais de Arendt (2013), Gellately (2011) e Agambem (2012), buscaremos base
nesse estudo para responder à hipótese de que um tipo de ideologia dominante que tem
aproximação com o que foi a ideologia nazifascista está oculta na racionalidade que sustenta as
práticas do recolhimento, do encarceramento e do homicídio, bem como na visão e nas posturas
da sociedade em relação às crianças e adolescentes em situação de rua, das provenientes das
favelas e periferias da cidade, e dos adolescentes autores de ato infracional, considerando que
essa ideologia se manifesta em momentos de crise, na adoção de determinadas práticas e no
discurso do poder público, dos veículos de comunicação e da própria sociedade. Sobre essa
questão, destacamos casos exemplares: a Resolução 20/2011 da Secretaria Municipal de
Assistência Social, que regulamentou o recolhimento e a internação compulsória de crianças e
adolescentes em situação de rua; a Operação Rio Verão, de retirada de adolescentes negros e
pobres dos transportes coletivos e praias no município do Rio de Janeiro; as denúncias de maus
tratos e tortura nos abrigos e Centrais de Recepção do Poder Público; a superlotação, violência e
tortura nas unidades de internação do DEGASE43 para adolescentes autores de ato infracional; na
violência policial nas favelas; no caso de um adolescente, de 15 anos, espancado e preso por
“justiceiros” a um poste por uma trava de bicicleta no pescoço por ter praticado um assalto 44; nos
Projetos de Lei contrários ao Estatuto da Criança e do Adolescente, e favoráveis à Redução

43
Departamento Geral de Ações Socioeducativas (DEGASE), no RJ.
44
Publicado em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2014/02/menor-preso-poste-diz-policia-que-foi-agredido-
por-15-homens-no-rio.html , acesso em 05/02/14.
52

Maioridade Penal e ao aumento do tempo de internação; nos homicídios cometidos contra


adolescentes e jovens que faz o Brasil ocupar o 3º lugar no mundo nos dados de assassinatos
contra esse segmento.
Embora não seja consenso entre os estudiosos do tema, defendo que um tipo de ideologia
bem próxima do que foi a ideologia nazifascista está presente entre nós, às vezes oculta, mas se
descortina, principalmente, como veremos, nas práticas e posturas abusivas direcionadas aos
sujeitos indesejáveis. São eles os primeiros a ser objeto dessas práticas, todos os dias, ao longo
da história. E só quem está na base, quem está nas ruas (e não é de manifestantes que estou
falando), só quem está apanhando da polícia nas favelas, só quem é retirado dos ônibus e das
praias, quem está encarcerado, sabe o que é sentir na pele, no corpo e na vida, a mão forte desse
tipo de ideologia!
53

2 SUJEITOS INDESEJÁVEIS!: CONSTRUÇÃO DA RACIONALIDADE


ESTIGMATIZADORA DA INFÂNCIA E JUVENTUDE NEGRA E POBRE NO
BRASIL

'Isso não é gente, é bicho!’45

Entender como se construiu a racionalidade estigmatizadora da infância e juventude negra


e pobre no Brasil, do por que a polícia persegue, reprime e muitas vezes mata um estereótipo,
compreender a visão preconceituosa e muitas vezes fascista da sociedade sobre um determinado
grupo social, temos que buscar respostas na história de constituição do povo brasileiro, bem
como de um conjunto de relações que foram se estabelecendo atravessadas por conceitos, pré-
conceitos, pressupostos, ideologias que foram se constituindo, se fortalecendo e permanecendo
até os dias atuais. Importante também compreender as bases em que foram se constituindo as
representações que ocultam e sustentam esse tipo de ideário nazifascista nas práticas abusivas
direcionadas aos sujeitos indesejáveis.
Não preciso ser uma estudiosa da antropologia ou sociologia para constatar a questão da
discriminação racial / racismo, tão negada, ou ocultada, que emana no Brasil desde a escravidão
até nossos dias. A crença de que o Brasil, devido à miscigenação, escapou do racismo e da
discriminação racial, descrito por Gilberto Freire, sociólogo brasileiro dos anos 1930, e autor do
livro Casa Grande e Senzala, foi desmistificada por sociólogos e antropólogos, mas destacamos
Florestan Fernandes (2008), que afirma que a chamada democracia racial brasileira não passa de
um mito - o mito da democracia racial.

Outra inspiração inovadora de Florestan, (...) foi perceber que a democracia racial
brasileira, mais que um ideal normativo, tinha se transformado em mito. Mito não no
sentido de falsidade, como alguns pensam, mas no sentido de uma ideologia dominante,
de uma percepção de classe que pensa o seu ideal de conduta como verdade efetiva
(Prefácio de Antônio Cesar Alfredo Guimarães em FERNANDES, 2011, p. 12-13).

45
Publicado em: http://blogs.oglobo.globo.com/gente-boa/post/bar-de-ipanema-se-recusa-servir-crianca-de-rua-isso-
nao-e-gente-e-bicho.html , acesso em 20/10/16.
54

Observamos esta racionalidade nas práticas arbitrárias e violentas do Estado direcionadas


a um grupo social específico, na linguagem e na visão de um grande segmento da sociedade
atravessado por uma ideologia dominante elitista, preconceituosa e discriminadora, de uma
percepção de classe que pensa o seu ideal de conduta, de valores como verdade efetiva, mas que
encobre o racismo e ódio de classe. Podemos também observar, claramente, quando o
Governador do RJ, Luiz Fernando Pezão, deixa subentendido na mídia impressa, quando da
retirada de jovens negros e pobres dos ônibus em direção às praia da cidade do Rio, que “se é
jovem, preto e pobre, é ladrão46”; quando o ex Prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, afirma
que “menor praticando crime é problema de polícia, não social47”, ou quando um garçom de um
bar restaurante no bairro de Ipanema48 se recusa a dar comida para uma criança aparentando 10
anos, supostamente em situação de rua, e a expulsa dizendo: “Isso não é gente, é bicho49!” Não
podemos considerar apenas que aí exista uma discriminação de ordem econômica, de classe, mas
também que a questão racial, a cor, tem um papel preponderante nessa construção que deixou
permanências.
Estudioso do negro e sua integração na sociedade de classes brasileira, Florestan
Fernandes (2008) destaca que o negro sofreu e ainda sofre as consequências de sua condição de
escravo, deixando marcas e estereótipos.

O termo “preto” sempre foi usado pelo branco para designar o negro e o mulato em São
Paulo, mas através de uma imagem estereotipada e sumamente negativa, elaborada
socialmente no passado (FLORESTAN, 2008, p. 25).

2.1 Racismo no Brasil

Antes de falar sobre o racismo, importante ressaltar que a formação do Brasil,


diferentemente da colonização europeia em outros países, no Brasil foi-se além no sentido de

46
Publicado em: https://www.brasil247.com/pt/247/favela247/194180/Para-Pez%C3%A3o-se%C2%A0%C3%A9-
jovem-preto-e-pobre-%C3%A9-ladr%C3%A3o.htm , acesso em 28/08/15.
47
Publicado em: http://m.brasil.estadao.com.br/noticias/rio-de-janeiro,menor-praticando-crime-e-problema-de-
policia-nao-social-diz-paes,1691657 , acesso em 31/05/15.
48
Ipanema é um bairro nobre situado na zona sul da cidade do Rio de Janeiro.
49
Publicado em: http://blogs.oglobo.globo.com/gente-boa/post/bar-de-ipanema-se-recusa-servir-crianca-de-rua-isso-
nao-e-gente-e-bicho.html , acesso em 20/10/16.
55

constituir nos trópicos uma “sociedade com características nacionais e qualidades de


permanência” ou de se construir uma nação. A nossa classe dominante, a nossa burguesia, nunca
teve um projeto de nação. Essa recusa de um projeto de nação é intrínseca à nossa constituição. O
Brasil era, antes de tudo, uma colônia de exploração. Caio Prado (2011), em seu livro Formação
do Brasil Contemporâneo, diz que:

Se vamos à essência da nossa formação, veremos que na realidade nos constituímos para
fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros; mais tarde ouro e diamantes; depois,
algodão, e em seguida café, para o comércio europeu. Nada mais que isto. É com tal
objetivo, voltado para fora do país e sem atenção a considerações que não fossem o
interesse daquele comércio, que se organizarão a sociedade e a economia brasileira.
Tudo se disporá naquele sentido: a estrutura, bem como as atividades do país. Virá o
branco europeu para especular, realizar um negócio; recrutará a mão-de-obra que
precisa: indígenas ou negros importados. Com tais elementos, articulados numa
organização puramente produtora, industrial, se constituirá a colônia brasileira. Este
início, cujo caráter se manterá dominante através de três séculos, se gravará
profundamente nas feições e na vida do país. O “sentido” da evolução brasileira que é o
que estamos aqui indagando, ainda se afirma por aquele caráter inicial da colonização.
Tê-lo em vista é compreender o essencial deste quadro que se apresenta em princípios do
século passado. (PRADO JUNIOR, 2011, p. 31-32)

O Brasil tem uma herança escravocrata que persiste e se manifesta em vários processos
históricos. Esse passado colonial de escravidão é marcado por um dualismo de contradição: de
um lado a apropriação dos bens materiais por uma minoria; por outro lado a expropriação dos
bens materiais pelos donos dos meios de produção.
Nossa escravidão tem permanências enquanto processo no Brasil. Desde o Brasil colônia
subsiste a visão de que os negros escravos e seus descendentes são perigosos, inferiores,
diferentes da elite dominante, e isso deixou marcas até a atualidade. Esse grupo social se
integram aos que conceituo como “sujeitos indesejáveis”, remanescentes dos seres humanos que
foram escravizados, formado principalmente por adolescentes e jovens negros e pobres, os mais
temidos, também reconhecidos como integrantes da “classe perigosa” por, supostamente,
colocarem em perigo a ordem social e a organização da cidade. Para esse grupo, a questão social
passa a ser encarada como questão de polícia, e os conflitos sociais são resolvidos, geralmente, na
delegacia, no encarceramento e até mesmo em sua eliminação. Parece ser mais fácil recolher,
encarcerar e/ou matar do que implantar políticas públicas que respondam, concretamente, às reais
necessidades desses sujeitos.
56

Os alemães eram constantemente lembrados a respeito do tipo de sistema social e


político que vinha com o nazismo, não apenas pela perseguição aos judeus, mas também
pela presença no país de milhares, depois milhões, de trabalhadores estrangeiros,
homens e mulheres – e até mesmo crianças -, que eram marcados e tratados como “sub-
humanos” (GELLATELY, 2011, p. 235).

Da segunda metade do século XVI até 1850, período que marca o fim do tráfico negreiro,
foram trazidos de forma compulsória para o Brasil cerca de 3,6 milhões de negros africanos, que
foram escravizados, para trabalhar na lavoura e, posteriormente, também na mineração. A
principal relação era a de exploração do trabalho servil. O escravo era de propriedade do senhor,
privado de direitos, não tinha sequer uma existência civil, ou seja, não era considerado uma
pessoa, mas sim um objeto, e recebia o mesmo tratamento dado aos animais. O senhor de
escravos era como o soberano, e este podia vender, penhorar, alugar ou mesmo matar seu
escravo, e seus direitos também se estendiam aos filhos ainda no ventre de suas escravas.
O racismo se apresenta com um dos maiores problemas sociais no Brasil, que se relaciona
diretamente com as sequelas dos mais de três séculos de vigência do regime escravocrata. A
escravidão dos seres humanos retirados compulsoriamente do continente africano e a divisão
racial entre brancos e negros, acarretou tanto a chaga do racismo, quanto do preconceito e da
discriminação racial. Até os dias de hoje as desigualdades sociais - notadamente as de renda e,
principalmente, a de oportunidades, têm na diferenciação racial sua principal causa.

A estigmatização do “homem de cor” aparece, por conseguinte, como um processo


histórico-social, no qual o “negro” esteve tão envolvido quanto o “branco”, malgrado as
diferenças inegáveis de perspectivas e de interesses sociais (FLORESTAN, 2008, p.
295).

Racismo também pode ser definido como uma ideologia, ou seja, um conjunto de crenças
e valores que classifica e ordena os indivíduos em função de suas características externas, sua
aparência, sua cor e biotipo. Na escala de valores proporcionada pelo racismo, o modelo branco
europeu assume a posição de destaque, como padrão positivo superior, enquanto que, do outro
lado, o modelo negro africano se fixa como padrão negativo e inferior.
O racismo está incrustrado nas relações sociais em geral, atuando como uma espécie de
filtro social, abrindo oportunidades para uns, fechando portas para outros, a desenhar uma
sociedade extremamente desigual e injusta, cujas bases dessa injustiça social estão enraizadas na
separação das raças e supremacia de uma (branca), em detrimento da outra (negra).
57

Como ideologia, o racismo se desenvolveu como inspiração à própria construção do


ideário de nação, no caso brasileiro. A partir da segunda metade do século XIX, com o
advento das teorias eugênicas que preconizavam justamente a superioridade da raça
branca, reforça-se o ideário da necessidade de branqueamento como única via de
construção de uma nação desenvolvida. Assim, no momento em que o país discutia a
supressão do regime escravista, o racismo científico ganhava terreno, subsidiando a
criação de políticas de estímulo à imigração do elemento europeu na busca do
branqueamento da sociedade brasileira (CPI Assassinato de Jovens, 2015, p.26).

No final do século XIX existiam teorias que defendiam a necessidade de se renovar a


população brasileira através do incentivo à imigração branca. Um dos defensores da tese era o
deputado e intelectual alagoano Tavares Bastos. Para ele, o fim da escravidão era uma das formas
de se acabar com os problemas que o negro trazia para o país pela sua inferioridade racial.
Começa a construção de ferrovias e as primeiras indústrias, e chegam vários imigrantes, que além
de disputarem espaço no mercado de trabalho livre com o negro, também por serem bem mais
preparados, serviam de sustentação à ideia de branqueamento do país, cujo período foi marcado
pela ideia racista de busca de melhoria da raça brasileira. A miscigenação, ou seja, os mestiços,
foi responsabilizada, inicialmente, por todos os males que impediam o desenvolvimento do povo
brasileiro, sendo também denominados como “raça degenerada de mestiços”. Essa visão negativa
da miscigenação teve um dos seus expoentes em Nina Rodrigues, representante do pensamento
eugênico no Brasil.
A eugenia50 no Brasil teve um significado diferente, contrário, ao que foi na Europa:
enquanto os europeus acreditavam que a miscigenação era uma degeneração das raças e que
traria consequências ruins para a evolução da espécie humana, pensamento este que dominou a
ideologia ariana de Hitler e do Terceiro Reich, no Brasil havia a preocupação de branquear a
população, através dessa mistura, para que as próximas gerações fossem todas brancas num
período de 50 a 200 anos. A população de mestiços era classificada ‘positivamente’ pelo seu grau
de branquitude: quase-branco, semi-branco ou sub-branco. Essa espécie de política de
branqueamento da raça trouxe graves consequências para os negros, especialmente o
fortalecimento do racismo e, com ele, toda a ideia de inferioridade e periculosidade da raça.

Hitler há muito tempo sustentava que a esterilização, ilegal na Alemanha até 1933,
deveria ser usada para restaurar a “pureza racial” da comunidade. Uma das primeiras
medidas amplas introduzidas no Terceiro Reich foi a “Lei para a Prevenção de Prole de

50
A Eugenia é definida como a ciência que se ocupa com o estudo e cultivo de condições que tendem a melhorar as
condições físicas e morais de gerações futuras. Esse saber médico surgiu no século XIX, e quebrou o paradigma da
normalidade, ao afirmar que o diferente é anormal, e por isso ele tem que ser eliminado.
58

Doenças Hereditárias51”, de 14 de julho de 1933, que possibilitou a esterilização


compulsória. (...) essa lei foi chamada na Alemanha nazista de “o modelo para toda
legislação eugênica” (GELLATELY, 2011, p. 154).

Segundo Jaccoud (2008), a aceitação de uma perspectiva de existência de uma hierarquia


racial e o reconhecimento dos problemas imanentes a uma sociedade multirracial somou-se à
ideia de que a miscigenação permitiria alcançar a predominância da raça branca. A tese do
branqueamento como projeto nacional surgiu no Brasil como uma forma de conciliar a crença na
superioridade branca com o progressivo desaparecimento do negro, cuja presença era interpretada
como um mal para o país52.

(...) qualquer que venha a ser, posteriormente, a importância dinâmica do preconceito de


cor e da discriminação racial, eles não criaram a realidade pungente que nos preocupa.
Esta foi herdada como parte de nossas dificuldades em superar os padrões de relações
raciais inerentes à ordem social escravocrata e senhorial. Graças a isso, ambos não
visavam, desde o advento da Abolição, instituir privilégios econômicos, sociais e
políticos para beneficiar a “raça branca”. Tinham por função defender as barreiras que
resguardavam estrutural e dinamicamente, privilégios já estabelecidos e a própria
posição do “branco” em face do “negro”, como raça dominante. (FERNANDES, 2008,
p. 303)

A sociedade racista cria mecanismos, institucionais ou não, que impingem limites e


mesmo a exclusão, fazendo com que a pessoa negra esteja mais vulnerável a situações de
imobilidade social associada à pobreza e à miséria, quando não a situações extremas que podem
levar à morte.

2.2 Crianças pretas e pobres nas ruas – Não pode!

Impressiona observar que ao longo da história brasileira sempre houve uma preocupação
com as crianças e adolescentes abandonadas e infratoras, considerando que o melhor caminho era
a sua retirada das ruas através da internação em instituições correcionais, quando foram
implantados políticas ou programas voltados à ressocialização através do trabalho e educação.

51
A lei visava, inicialmente, aqueles que sofriam de variados problemas mentais e físicos, tais como debilidade
mental e congênita, esquizofrenia, cegueira hereditária surdez e epilepsia.
52
Publicado em: http://racismo-cientifico.weebly.com/branqueamento-no-brasil.html, acesso em agosto de 2017.
59

Estamos falando de um período que se inicia no século XVIII, perpassa o século XIX e XX, e
permanece até os dias de hoje do século XXI. Mas, por que até hoje não observamos mudanças
qualitativas na vida da maioria desses sujeitos? Por que não são implantadas, de fato, políticas e
programas que promovam, concretamente, essas crianças e adolescentes? Considero que seja
porque esse grupo social sempre foi considerado “indesejável” para a sociedade brasileira,
especialmente por serem, majoritariamente, negros e pobres. E, por ser indesejáveis, pouco
importa seu destino, futuro, cidadania. Para esse tipo de hipocrisia social, o melhor é a reclusão
dessas pessoas ignoradas e ao mesmo tempo tão temidas pela sociedade. Ao longo desse capítulo,
veremos como isso foi se constituindo no Brasil...
Adotado desde o final do Brasil Império (séc. XIX), a retirada forçada de crianças e
adolescentes das ruas é uma prática predominante até os dias de hoje. Assim, do ponto de vista
histórico, o recolhimento não é um fato novo, assim como o encarceramento dessas crianças e
adolescentes, seja em orfanatos ou nas casas de correção para menores, ou em abrigos e nas
unidades de internação para adolescentes autores de ato infracional de hoje.
Ao longo da história brasileira, a preocupação com as crianças pobres e abandonadas foi
tratada de diversas maneiras e sob a responsabilidade de vários segmentos e instituições. As
relações sociais sejam com a família, a Igreja, ou o Estado, perpetraram valores morais, religiosos
e culturais reproduzindo dominadores e subjugados (Rizzini & Pilotti, 2009). Em se tratando de
políticas públicas, clara é a diferenciação feita entre as crianças das diferentes classes, como se
existisse duas infâncias: políticas para as “crianças” privilegiadas, filhos de “homens de bem”,
geralmente com direitos sociais garantidos; e políticas para os “menores” marginalizados, filhos
da classe subalterna, geralmente com seus direitos negados. Sobre esses últimos vamos nos ater a
atenção!
Os autores Rizzini e Pilotti (2009) observaram que “de mão em mão”, essas crianças
foram passando desde o período colonial, quando estiveram sob a responsabilidade dos jesuítas,
que tinham o papel de evangelizá-las; passando pelas mãos dos senhores de escravos que, na
verdade, consideravam-nas um fardo, pois pouco era a sua produção e muitas morriam devido às
péssimas condições em que viviam; posteriormente passaram pelas mãos das Santas Casas de
Misericórdia, que dos expostos e desvalidos se responsabilizavam, como exemplo, as crianças
deixadas na famosa Roda dos Expostos, geralmente filhos indesejáveis de senhores com suas
escravas, ou de jovens solteiras.
60

Desde o início da colonização, as escolas jesuítas eram poucas e para poucos. O ensino
público só foi instalado, e mesmo assim de forma precária, durante o governo do
Marques de Pombal, na segunda metade do século XVIII. No século XIX, a alternativa
para os filhos dos pobres não seria a educação, mas a sua transformação em cidadãos
uteis e produtivos na lavoura (...). No final do século XIX, o trabalho infantil continua
sendo visto pelas camadas subalternas como “a melhor escola”. (DEL PRIORI, 2008, p.
10)

Mas, foi com a Lei do Ventre Livre (1871) que surge uma grande inquietação: o que fazer
com aquelas crianças fruto do Ventre Livre? Elas não eram órfãs, não eram expostas, nem tinham
cometido crime algum e, sobretudo, deixariam de ter um dono que as tutelassem (ARANTES,
2008) 53. Ou seja, o que fazer com as crianças que eram livres e pobres e que perambulavam pelas
ruas, filhos tanto de escravas como também de imigrantes e que se dirigiam aos centros urbanos
em busca de trabalho? Começava-se a dizer que aquelas crianças pelas ruas estavam abandonadas
material e moralmente, ou seja, abandonadas à própria sorte, podendo assim se tornar possíveis
criminosos. Os depósitos e escolas correcionais para os menores foi uma forma encontrada para
tirá-las ou recolhê-las das ruas. O trabalho também foi tido, para essas crianças, como a salvação
para não se tornarem futuros criminosos (“é melhor trabalhar do que roubar”). O
encaminhamento de crianças para o trabalho era feito mediante uma sentença judicial como
forma de correção preventiva. Segundo Arantes (2008), todo o período que corresponde ao final
do Império ao início da República, a assistência ao menor foi assentada no trabalho infantil como
forma de prevenção. Era uma medida de “proteção” dada pelo Juiz. A assistência foi pensada,
nesse período, como um braço da Justiça.
A categoria “menor abandonado” surge, assim, após o advento da Lei do Ventre Livre,
possibilitada, também, pela discussão do sistema prisional: aquelas crianças seriam os futuros
criminosos, a encher os cárceres já superlotados, caso nada se fizesse para corrigi-las
preventivamente. Vistas, agora, como “menores abandonados material e moralmente”, as
crianças pobres, negras, nas ruas, consideradas órfãos de pais vivos e futuros delinquentes,
deveriam ser encaminhados às instituições preventivas, em regime de internato. O que a
República fez com este público? Recolheu-o das ruas, com o objetivo de “protegê-los” (da
família, da delinquência, da má índole, etc.). De acordo com Arantes (2008), ao se definir a
assistência como braço da Justiça, tratava-se de contornar o que poderia ser considerado um

53
ARANTES, E. A reforma das prisões, a lei do Ventre livre e a emergência no Brasil da categoria “menor
abandonado”. CFP: 2008. Disponível em: <http://www.pol.org.br/pol/export/sites/default/pol/noticias/
noticiaDocumentos/A_reforma_das_prisxes.pdf> . Acesso em Agosto/2010.
61

grande “escândalo jurídico”, ou seja, recolher aos internatos crianças livres, não criminosas e não
órfãs ou expostas, como era o caso permitido até então.
O “menor abandonado” era uma categoria jurídica que implicava nas ações do Juiz de
Menores e do Código de Menores de 1927. A adoção do termo “menor” passa a ser uma
nomenclatura jurídica e social adotada na virada do século XX, classificando a infância pobre,
distinguindo-a de outros segmentos infantis da época.

O menor era visto como uma ameaça social, e o atendimento a ele dispensado pelo
Poder Público tinham por fim corrigi-lo, regenerá-lo, reformulá-lo pela reeducação, a
fim de devolvê-lo ao convívio social desvestido de qualquer vestígio de periculosidade,
cidadão, ordeiro, respeitador da lei, da ordem, da moral e dos bons costumes (COSTA,
1993, p.27).

A categorização estigmatizante do “menor”, “menor abandonado”, “pervertido” ou em


“perigo de o ser” foi criada nessa época e efetivamente passou a ter uma conotação pejorativa.
Esse estigma foi enfatizado pela mídia, que, por ser uma importante fonte formadora de opinião,
também ajudou a reforçá-lo (RIZZINI, 1993). Enquanto o Código Civil de 1916 tratava dos
“filhos de família”, o Código de Menores de 1927 tratava dos menores “abandonados” ou
“delinquentes”.

Crianças e jovens eram caracterizados como “menores” provenientes das periferias das
grandes cidades, filhos de famílias desestruturadas, de pais desempregados, na maioria
migrantes, e sem noções elementares da vida em sociedade. A nova política (...)
pretendia mudar comportamentos não pela reclusão do infrator, mas pela educação em
reclusão (...) para formar um indivíduo para a vida em sociedade. Eles são menores de
idade juridicamente, independentemente da procedência de classe social e são “menores”
quando procedentes de estratos mais baixos da hierarquia socioeconômica (PASSETTI
in DEL PRIORI, 2008, p. 357).

O Código de Menores de 1979 já trabalhava com a categoria de “menor em situação


irregular”, distinguindo-a da categoria “menor em situação regular”, ou seja, do “filho de
família”, da família “estruturada”, da “criança feliz”, no entendimento de alguns. Todo esse
período fortaleceu muito a visão criminalizadora das crianças e dos adolescentes que estavam
pelas ruas e daquelas que viviam nas favelas, em sua maioria negra e pobre, fortalecendo o
estigma do “menor”, se perpetuando até nossos dias.

A difusão da ideia de que a falta de família estruturada gestou os criminosos comuns e


os ativistas políticos, também considerados criminosos, fez com que o Estado passasse a
62

chamar para si as tarefas de educação, saúde e punição para crianças e adolescentes. Por
isso é que desde o tempo dos imigrantes europeus (...) até o dos imigrantes nordestinos,
o Estado nunca deixou de intervir com o objetivo de conter a alegada delinquência
latente das pessoas pobres. Dessa forma, a integração dos indivíduos na sociedade, desde
a infância, passou a ser tarefa do Estado por meio de políticas sociais especiais
destinadas às crianças e adolescentes provenientes de famílias desestruturadas, com o
intuito de reduzir a delinquência e a criminalidade (PASSETTI in Del Priori, 2008, p.
358).

De acordo com Passetti (2008), uma história de internações para crianças e jovens
provenientes das classes sociais mais baixas, caracterizados como abandonados e delinquentes
pelo saber filantrópico privado e governamental (médicos, juízes, promotores, advogados,
assistentes sociais, padres, pastores, etc..), deve ser anotada como parte da história da caridade
com os pobres e a intenção de integrá-los à vida normalizada. Mas também deve ser registrada
como componente da história contemporânea da crueldade.
A categoria “meninos de rua” surge na década de 1980, época de criação do Movimento
Nacional de Meninos e Meninas de Rua (1985), do qual foi constituído por Educadores Sociais
de praticamente todo o Brasil, dentro do movimento social da infância e adolescência. Na busca
de novas abordagens e pedagogia, os princípios da educação popular de Paulo Freire foram
adotados como metodologia no trabalho com os “meninos de rua”, a chamada Educação Social
de Rua. Nesta época, tem início uma grande discussão nacional quanto à histórica e desumana
diferenciação entre “crianças” e “menores”, entendendo que esta era incabível. No bojo das lutas
pelo fim da Ditadura Militar e pela redação de uma nova Constituição Federal, através de
processo Constituinte, tem início uma grande mobilização do movimento social pela mudança na
lei e no atendimento a essas crianças e adolescentes.
Com a aprovação da Constituição Federal de 1988, que traz a relevante contribuição do
movimento social em seu artigo 22754, e em 1990 da Lei 8.069/90 - o Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA), há uma quebra de paradigma não apenas de concepção da criança e do
adolescente, mas também no sentido e aplicação da lei que dispõe sobre a proteção integral à
criança e ao adolescente (art. 1º), e na condição peculiar de pessoas em desenvolvimento (art. 6º).

54
O Artigo 227 da CFB teve o peso de um milhão e meio de assinaturas, a partir da emenda popular denominada
“Criança prioridade nacional”, liderada pelo Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR) e
Pastoral do Menor, que mobilizou a sociedade brasileira de norte a sul. Versa o Artigo 227: É dever da família, da
sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão.
63

Crianças e adolescentes55, anteriormente considerados objetos, tutelados pelo Estado, passam a


ser considerados como sujeitos de direitos. Isso representou uma grande vitória para o
movimento social e, principalmente, para esse segmento da população, pois, além de titulares de
uma série de direitos, o ECA também prevê a constituição de dispositivos políticos, como os
Conselhos de Direitos das Crianças e dos Adolescentes (Municipal, Estadual e Nacional), os
Conselhos Tutelares, bem como mudanças importantes em relação ao ato infracional do
adolescente e a aplicação das medidas socioeducativas56, prevendo punições a partir dos 12 anos
de idade; e regulamentação quanto a idade e inserção no mercado de trabalho, dentre outros.

Tal abrangência deste sistema dito de proteção à infância que, praticamente, cobria todo
o universo de crianças e adolescentes pobres, pois que à existência do “menor”
correspondia uma suposta família “desestruturada” - por oposição ao modelo burguês de
família tomado como norma - à qual a criança pobre sempre escapava: seja porque não
tinha família (“abandonada” ou “órfã”); porque a família não podia assumir funções de
proteção (“carente”); porque não podia controlar os excessos da criança (“conduta anti-
social”); porque os comportamentos e envolvimentos da criança ou do adolescente
colocavam em risco sua segurança, da família ou de terceiros (“infratora”); seja porque a
criança era dita portadora de algum desvio ou doença com a qual a família não podia ou
não sabia lidar (“deficiente”, “doente mental”, com “desvios de conduta”); seja
ainda porque, necessitando contribuir para a renda familiar, fazia da rua local de
moradia e trabalho (meninos e meninas “de rua”); ou ainda porque, sem um
ofício e expulsa/evadida da escola ou fugitiva do lar, caminhava ociosa pelas ruas, à
cata de um qualquer expediente (“perambulante”)” 57.

A relação das instituições que esses meninos e meninas foram passando “De mão em
mão” (RIZZINI E PILOTTI, 2009), do período colonial até o ECA (1990), podemos
resumidamente destacar:
1) Asilos de órfãos, abandonados ou desvalidos;
2) Higienistas (Moncorvo Filho, 1901) e filantropos (ações caritativas);
3) Tribunais /Juristas: reformatórios e casas de detenção;
4) Polícia: recolhimento de menores, limpeza das ruas;
5) Patrões: crianças trabalhadoras (meados sec. XIX);

55
ECA, Artigo 2º - Considera-se criança, para efeitos desta lei, a pessoa até 12 anos incompleto, e adolescente
aquela entre 12 e 18 anos incompletos de idade.
56
São seis as medidas socioeducativas para o adolescente autor de ato infracional: (1) Advertência; (2) Obrigação de
reparar o dano; (3) Prestação de serviço à comunidade (PSC); (4) Liberdade Assistida (LA); (5) Semiliberdade
(SL); e (6) Internação.
57
Ver ARANTES, Esther, 2008, já citado e também Rostos de crianças no Brasil. In: PILOTTI, Francisco e
RIZZINI, Irene (Orgs). A Arte de governar crianças. São Paulo: Editora Cortez, 2011. 3ª edição.
64

6) Da família: (1920) Intervenção do Estado na Família – Destituição do Pátrio Poder;


7) Código de Menores (1927): menor abandonado / delinquente;
8) Do Estado (1941): Serviço de Assistência aos Menores (SAM), conhecida como a “sucursal
do inferno;
9) Forças Armadas (1964): Fundação Nacional do Bem Estar do Menor (FUNABEM) e Política
Nacional do Bem-Estar do Menor;
10) Código de Menores (1979): o menor em situação irregular;
11) Sociedade Civil - Crianças e adolescentes sujeitos de direitos – Lei 8.069 / ECA.
Até o final da década de 1990, parte da literatura sobre o tema costumava dividir as
crianças e os adolescentes que estavam na rua de acordo com dois amplos perfis, considerando
como um dos principais fatores em sua descrição a existência ou não de vinculação com a
família: “meninos (as) na rua” e “meninos (as) de rua” (Rizzini, Caldeira, Ribeiro e Carvano,
2010).

De acordo com os estudos da época (Lusk apud Rizzini, 1991), a grande maioria das
crianças e adolescentes encontrados nas ruas fazia parte do primeiro perfil (os/as
meninos/as nas ruas). Este grupo era composto por crianças e adolescentes que
trabalhavam nas ruas, como por exemplo, engraxates, vendedores de balas e
malabaristas nos sinais de trânsito. Ali estavam em busca de complementação da renda
familiar, em relação a qual também se sentiam responsáveis. Eram conhecidos como
“trabalhadores de rua”. A maioria possuía residência fixa e retornava para casa
regularmente.
O segundo perfil descrito por Lusk refere-se àqueles que comumente dormiam na rua
(os/as meninos/as de rua). Muitos eram usuários de drogas e pediam dinheiro ou
roubavam para consegui-las. Eram em sua maior parte crianças e adolescentes que
abandonaram ou foram abandonados pela família, gradualmente, e para quem a rua
parecia haver se tornado a principal referência de vida (RIZZINI; CALDEIRA;
RIBEIRO e CARVANO , 2010, p. 18).

Essa diferenciação era considerada necessária para diversos segmentos, sejam eles
acadêmicos, governamentais, ou mesmo da sociedade civil, mas sempre incomodou aos
educadores sociais que faziam parte do movimento social da infância e adolescência e que
trabalhavam cotidianamente com essa garotada, entendendo que independentemente de serem
meninos “de rua” ou “na rua”, ambos passavam pelas mesmas dificuldades, violências e
privações, sejam elas de ordem socioeconômica, racial, cultural e/ou familiar; ambos dividiam o
espaço da rua em busca de melhores condições de vida, local o qual também sofriam uma série
de violações de direitos, inclusive a violência policial. Por isso, ambos, àquela época, pertenciam
ao grupo que foi denominado “crianças e adolescentes em situação de risco social”.
65

O menino que trabalhava nas ruas para contribuir com a renda familiar, que ainda
mantinha vínculo com a família e voltava para casa ao final do dia, ou seja, o “menino na rua”,
não se considerava um “menino de rua”, e às vezes até discriminava-o. Porém, ao permanecerem
algum tempo nessa condição na rua, desconheciam que eram potencialmente candidatos a
migrarem para o segundo perfil, o de “meninos de rua”. O menino na rua quando não conseguia
dinheiro suficiente, ia ficando mais tempo na rua, dormia um, dois, três dias seguidos e voltava
para casa. Isso se repetia até que, aos poucos, iam se acostumando e gostando da rua, pois a rua
pode apresentar muitos perigos, mas tem também muitos atrativos. Eles iam fazendo amizades,
experimentando coisas novas, e o retorno para casa ia se espaçando, até que não voltavam mais,
ou ficavam um bom tempo sem aparecer e rever a família e, aos poucos, iam perdendo o vínculo
familiar.
Já o menino que havia rompido com sua família e/ou comunidade, ou que sai para tentar
na rua outra forma de sobrevivência, ou seja, o “menino de rua” era aquele que tinha a rua como
espaço de moradia, liberdade e sobrevivência. Juntava-se logo a um grupo de meninos, pois
percebe que era perigoso estar sozinho. Faz amizades, conhece novos lugares, pede dinheiro ou
comida, consegue se alimentar melhor do que em casa e, quando lhe era negado, podia furtar para
conseguir se alimentar e se drogar, caso fosse usuário de drogas. Esse menino amadurece rápido
nas ruas, pula etapas, pois muito cedo tem que ser responsável por si próprio. Circulava entre a
rua, os abrigos e, novamente, ia para a rua. Esse era o grupo preferencial no atendimento feito
pelos Educadores Sociais das Organizações Não Governamentais (ONGs), também chamadas de
Organizações da Sociedade Civil, da época, apesar de também observarem os “meninos na rua”
e, se esses expressassem desejo, não lhes era recusado atendimento.
Outro termo também muito utilizado foi o de crianças e adolescentes em situação de
“vulnerabilidade social”, que é um conceito multidimensional que se refere à condição de
indivíduos ou grupos em situação de fragilidade, que os tornam expostos a riscos e a níveis
significativos de desagregação social.
Muitos foram os estudos e pesquisas realizadas, numa tentativa de catalogar ou
enquadrar esse público, dentro de categorias e perfis que muitas vezes não davam conta, ou não
conseguiam englobar todas as circunstâncias que envolviam o fenômeno. Porém, é importante
ressaltar que a persistência em categorizá-las, acaba também por levar a uma homogeneização e
estigmatização e, novamente, promove um distanciamento e uma divisão entre “meninos de rua”
66

e “crianças e adolescentes”, como se aqueles, como já dito, fossem um outro tipo de infância, e
não, simplesmente, crianças e adolescentes como qualquer outra, porém, que naquele momento
de suas vidas o “estar na rua” apresenta uma referência muito importante.

(...) o avanço das pesquisas sobre o tema, vem demonstrando que o processo de
apropriação da rua é incorporado, de forma gradual e progressiva, ao sistema identitário
da criança e do adolescente. Ou seja, qualquer fator, mesmo que extremamente
importante como a situação familiar ou a condição de pobreza, não pode explicar
sozinho a complexidade do fenômeno. O conhecimento da trajetória de vida da criança
ou do adolescente é, portanto, o elemento central que permite compreender a sua relação
com a rua como seu espaço prioritário de vida. (RIZZINI; CALDEIRA; RIBEIRO e
CARVANO , 2010, p. 19).

A categoria “crianças e adolescentes em situação de rua”, surge por volta do ano 2000, a
partir de discussões também nacionais, respeitando o Estatuto da Criança e do Adolescente que
os constitui como sujeitos de direitos. No âmbito interno da Rede Rio Criança58 (RRC), desde a
sua constituição, em meados de 2001, esta categoria foi alvo de muitas discussões e debates.
Pesquisadores do tema, como Ricardo Luccini e Daniel Stocklin (2003), sociólogos suíços, foram
convidados pela Foundation Terre dês hommes para um Seminário da Rede Rio Criança, em
2002, para apresentarem seus estudos sobre esse grupo na Guatemala e na China, nos quais
ressaltaram “que o mais importante a ser levado em consideração é o processo de relacionamento
entre um ator e a rua, entre um ator e sua família, entre um ator e a polícia, entre outros”
(RIZZINI; CALDEIRA; RIBEIRO e CARVANO , 2010, p. 19).
Em Vida nas Ruas, Rizzini et al (2003) já atentavam para o surgimento de uma nova
série de termos que denotam o caráter particular da “situação” em que se encontram essas
crianças e adolescentes, como por exemplo: “crianças em circunstâncias especialmente difíceis,
crianças em situação de rua, crianças em situação de risco ou vulnerabilidade”.
Para a Rede Rio Criança, o fundamental era desmistificar o caráter naturalizado, ou
seja, aparentemente cristalizado, permanente, das categorias “meninos de/na rua”, como se o
estar na rua fizesse parte da natureza daquelas crianças e adolescentes, bem como envolver outros
sujeitos que também tinham a rua, o estar na rua como uma importante passagem em suas vidas.
Era necessário dar movimento, fluidez à categoria, pois a relação com a rua é processual,

58
Rede Rio Criança é uma articulação de ONGs, de referência nacional, que atuam de forma articulada no trabalho e
na defesa dos direitos humanos de crianças e adolescentes em situação de rua.
67

heterogênea, individual, diferenciada, mas, ao mesmo tempo, para cada uma dessas crianças e
adolescentes, em determinado/s momento/s de suas vidas, a rua tinha uma referência muito forte.
O termo “em situação de rua” era usado, mas ainda faltava um conceito que conseguisse
abarcar a complexidade que envolvia esta questão. Depois de muitas discussões, especialmente
entre 2008 e 2009, época de formulação da Política Municipal de Atendimento às Crianças e
Adolescentes em Situação de Rua no RJ59, no âmbito do Grupo de Trabalho constituído no
Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA), de forma paritária,
envolvendo representantes de OGs e ONGs, chegou-se ao seguinte conceito, que é, inclusive,
adotado na referida Política:

Situação de rua é uma complexa relação dinâmica que envolve “casa – rua – abrigo –
rua – projetos sociais / instituições – rua – família / comunidade – rua”, em que a rua, em
diferentes graus, ocupa um lugar de referência predominante e um papel central em suas
vidas.

De acordo com este conceito, os meninos/as que estão em situação de rua não são
apenas os que dormem nas ruas ou os que trabalham nas ruas, mas também aqueles que mesmo
estando ora abrigados ou fazendo parte de projetos sociais, ora em sua família/ comunidade,
reiteradas vezes retornam às ruas, pois esta ainda é uma referência forte ou, para uma grande
parte, é ainda a única alternativa. É um conceito amplo, mas que procura abranger a
complexidade que envolve este fenômeno, entendendo o estar nas ruas como uma violação de
direitos humanos, mas também como um dos reflexos do sistema capitalista na produção de
desigualdades, exclusão, violência e opressão.
Em final de 2014 – início de 2015, um novo conceito é definido para “Crianças e
Adolescentes em Situação de Rua”, elaborado coletivamente, ao longo do processo de construção
das propostas de diretrizes para uma Política Nacional de Atenção às Crianças e Adolescentes em
situação de rua, pelo Comitê Nacional da Rede de Atenção às Cri/Adol em situação de rua 60,
formado, em 2013, por Redes e Instituições de referência nessa temática das 05 regiões do Brasil
(a maior parte integra também a Campanha Nacional Criança Não é de Rua), e 02 Adolescentes.

59
Sobre a Política Municipal de Atendimento às Crianças e Adolescentes em Situação de Rua no RJ será trazido no
VI Capítulo desta tese.
60
Instituições que compõem o Comitê Nacional: Campanha Nacional Criança Não é de Rua, Mov. Nacional de
Meninos/as de Rua, Rede Rio Criança (RJ), Rede Inter-Rua (RS), Rede Amiga da Criança (MA), Projeto Meninos
de Rua (SP), e dois Adolescentes.
68

Devido à abrângência do termo, o grupo optou por definir o conceito e desenvolver também as
Tipificações para “situação de rua”. Importante resslatar que a definição do conceito pelo Comitê
Nacional considerou conceitos anteriores e apresenta proximidade com a definição de população
em situação de rua (adulta) referida na Política Nacional para a População em situação de Rua
(Decreto 7053/2009). De acordo com o documento, o conceito é o seguinte,

Crianças e Adolescentes em situação de rua são crianças e adolescentes com direitos


violados, caracterizados por sua heterogeneidade (diversidade de gênero, orientação
sexual, étnico-racial, religiosa, geracional, territorial, de nacionalidade, de opção
política, entre outros), pela interrupção ou fragilidade dos vínculos familiares, em
situação de pobreza ou pobreza extrema, com dificuldade de acesso às políticas públicas,
utilizando logradouros públicos e/ou áreas degradadas de forma permanente ou
intermitente.

Tipificação das situações de rua:

A) Situação de trabalho nas ruas: São crianças e adolescentes que frequentam as ruas,
acompanhados ou não por familiares ou responsáveis, para conseguir recursos diversos para
complementar a renda, através do trabalho precarizado. Podendo ou não conciliar a atividade de
trabalho na rua com a escola e cuja convivência familiar e comunitária apesar de fragilizada, não
foi rompida. Geralmente atuam como vendedores ambulantes, artistas de rua, limpadores de para-
brisa de carros, flanelinhas, vigias de carro, catadores de material reciclável, entre outros.

B) Situação de pedir nas ruas: São crianças e adolescentes acompanhados ou não por
familiares ou responsáveis que vão às ruas, abordando a população para pedir dinheiro, comida
ou roupas em locais de grande fluxo de pessoas ou veículos, como praças, terminais rodoviários,
sinais de trânsito, corredores turísticos, nas residências, entre outros.

C) Situação de abuso e exploração sexual nas ruas: São crianças e adolescentes que
ocupam pontos específicos das cidades, identificados como zonas de prostituição, levados por
aliciadores, estimulados por amigos, ou por iniciativa própria, para manter relação sexual com
abusadores frequentes em troca de favores, dinheiro, droga ou comida. Existem também os casos
onde, mesmo fora das zonas de prostituição, crianças ou adolescentes em situação de rua são
69

procurados por abusadores, que se aproveitam da situação de vulnerabilidade das ruas, para
abordá-los e abusá-los em troca de dinheiro, comida, droga, entre outros.

D) Situação de uso abusivo de drogas nas ruas: São crianças e adolescentes que foram
para as ruas motivados pelo uso abusivo de droga, ou ainda, crianças e adolescentes que foram
iniciados ao uso de drogas nas ruas, tornando-se usuários frequentes com o tempo, fazendo com
que a sua permanência nas ruas seja mais prolongada e diretamente relacionada ao uso de drogas.

E) Situação de ameaça de morte nas ruas: São principalmente adolescentes do sexo


masculino envolvidos em conflitos comunitários (brigas de gangue, dívidas com o tráfico de
drogas, assaltos e/ou outras infrações graves, entre outros), que se encontram ameaçados ou
sobreviveram a atentados, tornando sua permanência na comunidade insustentável e são forçados
a se refugiarem nas ruas por período indeterminado. A ameaça de morte está relacionada à todas
as situação de rua, pela exposição destes perfis a grupos que perseguem as populações de rua.

F) Situação de pernoite ou moradia nas ruas de crianças e adolescentes: São crianças


e adolescentes que pernoitam nas ruas, ficando nelas por períodos prolongados, afastados da
residência de seus familiares de modo que estabelecem uma relação com a rua, semelhante a uma
relação de moradia. Esta condição interage fortemente com as demais situações de rua.

G) Situação de pernoite ou moradia nas ruas de crianças e adolescentes


acompanhados da família: São crianças e adolescentes que pernoitam nas ruas com seus pais ou
responsáveis, ficando nelas por períodos prolongados, geralmente forçados pela falta de moradia
fixa e ocupação produtiva ou para garantir o local de trabalho, no caso de vendedores ambulantes
que precisam guardar seus instrumentos de trabalho.

É importante destacar que a situação de rua de crianças e adolescentes acontece em todos


os logradouros da cidade, inclusive nas comunidades onde vivem, e não somente nos centros das
cidades ou locais de grande movimentação.
Utiliza-se o termo “situação” exatamente para enfatizar a possível transitoriedade e
efemeridade dos perfis desta população. Ou seja, as crianças e adolescentes que estão em situação
70

de rua podem mudar por completo o perfil repentinamente ou gradativamente, em razão de um


fato novo.
Ocorre uma forte interseção das várias situações de rua. A situação de pernoite ou
moradia nas ruas é a que mais se associa a outros perfis de maneira permanente. As interseções
podem ocorrer também de maneira circunstancial. É possível identificar uma correlação entre os
vários perfis, onde uma situação levará à outra, o que torna o exercício de categorizar a situação
de rua entre vários perfis uma tarefa complexa a qual requer muita observação. Entretanto, a
tipificação das várias situações de rua é necessária para orientar que tipo de abordagem e qual
encaminhamento será mais efetivo.
Também de acordo com o conceito, podem existir outras tipificações possíveis para
situação de rua, de menor incidência que as anteriores ou existente em contextos regionais
diversos. A situação de imigrantes ilegais, desabrigados em razão de catástrofes, desalojados de
ocupações ilegais entre outros, podem ser considerados provisoriamente como parte desta
população.

O conceito mais recente e atual para definir “crianças e adolescentes em situação de rua”
foi elaborado a partir desse último, no âmbito do Grupo de Trabalho Criança e Adolescente em
situação de rua do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente61 (CONANDA),
e posteriormente finalizado, no âmbito da Oficina do Minstério de Desenvolvimento Social
(MDS), que ocorreu nos dias 10 e 11/1/17, com contribuições de várias instituições de diferentes
regiões do Brasil, também de referência nessa temática, aprovado conjuntamente pelo Conselho
Nacional de Assistência Social (CNAS) e pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do
Adolescente (CONANDA), de forma inédita, e publicado através da Resolução Conjunta nº 1

61
Constituído a partir da Resolução 173 do CONANDA, de 08 de abril de 2015, que dispõe sobre a instituição do
Grupo de Trabalho com a finalidade de formular e propor estratégia de articulação de políticas públicas e serviços
para o atendimento, proteção, promoção e defesa dos direitos de crianças e adolescentes em situação de rua no
Brasil (Política Nacional de Atendimento às Cri/Adol em situação de rua). Participam do GT representantes de
Ministérios: Ministério de Desenvolvimento Social, Ministério da Saúde, Ministério da Educação, Secretaria de
Direitos Humanos, CIAMP RUA (Comitê Interministerial População de Rua), e representantes da Sociedade Civil:
Campanha Nacional Criança Não é de Rua (CNER), Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua
(MNMMR), estes 02 Conselheiros do CONANDA; Rede Rio Criança (RJ), Rede Amiga da Criança (MA), Projeto
Meninos de Rua (SP), Rede Inter Rua (RS).
71

CNAS/CONANDA62, de 15/12/16, que segue abaixo e será mais uma vez abordado no capítulo 6
desta tese.

Resolução Conjuntanº 1 CNAS / CONANDA, de 15/12/16:


Crianças e Adolescentes em situação de rua são sujeitos em desenvolvimento com
direitos violados, utilizando logradouros públicos e/ou áreas degradadas como espaço de
moradia ou sobrevivência, de forma permanente e/ou intermitente, em situação de
vulnerabilidade e/ou risco pessoal e social pelo rompimento ou fragilidade do cuidado e
dos vínculos familiares e comunitários, prioritariamente em situação de pobreza e/ou
pobreza extrema, dificuldade de acesso e/ou permanência nas políticas públicas, sendo
caracterizada por sua heterogeneidade, como gênero, orientação sexual, identidade de
gênero, diversidade étnico-racial, religiosa, geracional, territorial, de nacionalidade, de
posição política, deficiência, entre outros.
§ 1º Utiliza-se o termo "situação" para enfatizar a possível transitoriedade e efemeridade
dos perfis desta população, podendo mudar por completo o perfil, repentinamente ou
gradativamente, em razão de um fato novo.
§ 2º A situação de rua de crianças e adolescentes pode estar associada a:
I - trabalho infantil;
II - mendicância;
III - violência sexual;
IV - consumo de álcool e outras drogas;
V - violência intrafamiliar, institucional ou urbana;
VI - ameaça de morte, sofrimento ou transtorno mental;
VII - LGBTfobia, racismo, sexismo e misoginia;
VIII - cumprimento de medidas socioeducativas ou medidas
de proteção de acolhimento;
IX - encarceramento dos pais.
§ 3º Pode ainda ocorrer a incidência de outras circunstâncias que levem crianças e
adolescentes à situação de rua, acompanhadas ou não de suas famílias, existentes em
contextos regionais diversos, como as de populações itinerantes, trecheiros, migrantes,
desabrigados em razão de desastres, alojados em ocupações ou desalojados de ocupações
por realização de grandes obras e/ou eventos.

Para fins desta Tese, adoto este último conceito de crianças e adolescentes em situação de
rua (CASR), da Resolução Conjunta nº 1 CNAS/CONANDA, que traz as referências e
atravessamentos da situação de rua de crianças e adolescentes, sob as quais esses sujeitos
perpassam e que, frequentemente, retornam às ruas. Sob esse conceito podemos considerar um
adolescente que passou pela rua e foi para um abrigo, ou que está cumprindo ou cumpriu medida
socioeducativa em unidades para adolescentes autores de ato infracional e que, podem retornar às
ruas.

62
A Resolução Conjunta nº 1 dispõe sobre o conceito e o atendimento de criança e adolescente em situação de rua e
inclui o subitem 4.6, no item 4, do Capítulo III do documento Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento para
Crianças e Adolescentes.
72

3 O MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA E A FORMAÇÃO DO EXÉRCITO DE


SUJEITOS INDESEJÁVEIS

Torna-se evidente que a economia política considera o proletário, ou seja,


aquele que vive, sem capital ou renda, apenas do trabalho, e de um
trabalho unilateral, abstrato, como simples trabalhador. Por consequência,
pode surgir a tese e que ele, assim como um cavalo, deve receber somente
o que precisa para ser capaz de trabalhar. A economia política não se
ocupa dele no seu tempo livre como homem, mas deixa esse aspecto para
o direito penal, os médicos, a religião, as tabelas estatísticas, a política e o
funcionário de manicômio
Marx, 2001, p. 72

Um dia desses fui rever e assistir ao show de um querido amigo, militante e companheiro
de trabalho e lutas – “Totonho e os novos Cabras – Coco Ostentação”, na Praça Tiradentes, Rio
de Janeiro. Antônio Carlos Bezerra, nome artístico Totonho, é um dos maiores Educadores
Sociais / Populares que conhecemos e o mais criativo. Está na lista dos Dinossauros da Educação
Social de Rua do RJ. Havia algum tempo que não o víamos, pois estava morando na Paraíba, sua
terra natal, e atualmente mora em SP. Antes do show, tentando vender balas pelas mesas dos
bares, um grupo de cerca de quatro crianças ia oferecendo sua mercadoria. Indaguei que já era
muito tarde para elas estarem por ali àquela hora da noite (eram mais de 22h00min), e perguntei
o nome e a idade do menorzinho, que me respondeu que se chamava Tiago (nome fictício) e que
tinha oito anos. Ele me disse que vinha quase todas as noites, já estava acostumado, e que depois
voltava pra casa. Não vi nenhuma pessoa maior de idade responsável por aquelas crianças por ali,
mas deveria estar alguém em algum local próximo, ou as crianças (e duas pareciam que já eram
adolescentes), voltariam sozinhas pra casa. Essa mesma cena também acontece na noite de outras
várias áreas da cidade... Trabalho infantil? Sim. Exploração de menores? Talvez. Porém,
podemos estar certos que ali está um exemplo da desigualdade social, fortalecido pela exclusão e
o descarte de um segmento considerável da população do mercado de trabalho e, como uma bola
73

de neve, vai passando de geração em geração. Mais que cultural, como defendido por alguns
autores, esse quadro é principalmente caracterizado pela falta histórica de políticas e
oportunidades concretas de promoção de vida desses sujeitos e suas famílias, associadas à
espoliação do capital. Dentre os marcos de nossa história sobre o fenômeno, devemos considerar
que esta situação começa a se tornar visível com a lei do Ventre Livre e a abolição dos escravos,
como descrito no capítulo anterior.
A partir de 1888, a situação dos negros libertos não foi fácil. Enquanto a preocupação
pelo destino do escravo se mantivera em foco quando se ligava a ele o futuro da lavoura, uma
preocupação apenas enquanto mão-de-obra servil e explorada, com a abolição não se deu
importância ao futuro ou destino para os ex-escravos. De acordo com Florestan Fernandes
(2008), com o final do regime escravocrata no Brasil não houve a preocupação em amparar os
antigos agentes de trabalho escravo de assistência e garantias na transição para o novo sistema de
trabalho livre. Para o autor, essas facetas da situação humana do antigo agente do trabalho
escravo imprimiam à abolição o caráter de uma espoliação extrema e cruel.

A desagregação do regime escravocrata e senhorial se operou, no Brasil, sem que se


cercasse a destituição dos antigos agentes de trabalho escravo de assistência e garantias
que o protegessem na transição para o sistema de trabalho livre. Os senhores foram
eximidos da responsabilidade pela manutenção e segurança dos libertos, sem que o
Estado, a Igreja ou qualquer outra instituição assumissem encargos especiais, que tivesse
por objeto prepara-los para o novo regime de organização da vida e do trabalho
(FERNANDES, 2008, p. 29).

Os negros quando libertos e com a vinda dos imigrantes, perderam sua importância como
mão-de-obra para a classe dominante. A abolição não se preocupou com o destino de milhões de
pessoas que ficaram à margem das novas condições de trabalho livre e assalariado, que expulsou
os negros das relações de produção e como agente de trabalho. A preferência da mão-de-obra
nessa nova fase se deu para os brancos e migrantes que chegavam em larga escala e bem mais
preparados.

Perdendo sua importância privilegiada como mão-de-obra exclusiva, ele também perdeu
todo o interesse que possuía para as camadas dominantes. A legislação, os poderes
públicos e os círculos politicamente ativos da sociedade se mantiveram indiferentes e
inertes diante de um drama material e moral que sempre fora claramente reconhecido e
previsto, largando-se o negro no penoso destino que estava em condições de criar por ele
e para ele mesmo (FERNANDES, 2008, p. 32).
74

A passagem do regime escravocrata para o capitalismo foi devastadora para os negros e


mestiços. Pensava-se que o trabalho livre e o liberalismo econômico impulsionariam a economia
e conduziria ao progresso do país. Mas, a esse novo ajustamento, que se volta para a iniciativa
individual, não teria lugar para todos nas frentes de trabalho que foram abertas, que privilegiaram
os brancos e migrantes que chegavam ao Brasil, deixando de lado os negros libertos, que ficaram
largados à sua própria sorte. A integração do negro na sociedade de classes se deu a partir de uma
competição cruel e desigual, fortalecendo, ainda mais, seu enquadramento em funções que o
confinariam em tarefas que exigiam força bruta, que eram mal retribuídas e degradantes.
Importante destacar que a incorporação do Brasil ao capitalismo se deu de forma tardia, pois
enquanto em final do século XIX o sistema feudal ainda estaria em vigor e, em 1888, a abolição
só se deu por grande pressão de países, como a Inglaterra, na Europa, a Revolução Industrial já
havia ocorrido no século XVIII.
O grande equívoco foi pensar que a partir da abolição haveria uma ascensão para os ex-
escravos, o que não ocorreu, ao contrário, o negro teve que buscar as ocupações marginais ou
acessórias do modo de produção capitalista e, na ausência de oportunidade, só lhe restava a
compaixão de antigos senhores, a mendicância, considerada “vagabundagem”, ou a
“criminalidade”.

Diante do negro e do mulato se abrem duas escolhas irremediáveis, sem alternativas.


Vedado o caminho da classificação econômica e social pela proletarização, restava-lhes
aceitar a incorporação gradual à escória do operariado urbano em crescimento, ou se
abater penosamente, procurando no ócio dissimulado, na vagabundagem sistemática ou
na criminalidade fortuita, meios para salvar as aparências e a dignidade do homem livre
(FERNANDES, 2008, p. 44).

Não podemos perder de vista que desde a abolição, o negro se viu fora do sistema de
trabalho livre, sendo vítima do desemprego e do desequilíbrio social. A ligação do negro e seus
descendentes com a servidão, a vagabundagem e a criminalidade, permeada pela ideologia
dominante racista que sempre viu o negro como um ser inferior, deixou marcas profundas que se
perduram até os dias atuais.

A ideologia é um conjunto lógico, sistemático e coerente de representações (ideias e


valores) e de normas ou regras (de conduta) que indicam e prescrevem aos membros da
sociedade o que devem pensar e como devem pensar, o que devem valorizar e como
devem valorizar, o que devem sentir e como devem sentir, o que devem fazer e como
devem fazer (CHAUÍ, 1991, P.113).
75

Para uma maior compreensão sobre a relação capital-trabalho, e de como e porque se foi
formando o “exército dos sujeitos indesejáveis”, importante compreendermos a dinâmica do
modo de produção capitalista, fundado na relação social entre duas classes: a dos proprietários
dos meios de produção, que compram a força de trabalho, e a classe trabalhadora (proletariado),
que vende a sua força de trabalho. Para o trabalhador a sua força de trabalho é considerada valor
de troca; para o capital essa força de trabalho é valor de uso, uso para a produção.

O processo de trabalho (...) é atividade orientada a um fim para produzir


valores de uso, apropriação do natural para satisfazer as necessidades
humanas, condição universal do metabolismo entre o homem e a Natureza,
condição natural eterna da vida humana e, portanto, independente de qualquer
forma dessa vida, sendo antes igualmente comum a todas as suas formas
sociais (MARX, 1983, p. 153).

Para o homem, sua relação com a natureza é fundamental, não porque ele permaneça
sendo um ser da natureza, mas, ao contrário, porque ele luta contra ela (...). Como e por qual
meios? Através do trabalho, pelos instrumentos do trabalho e pela organização do trabalho
(Lefebvre, 2009). Segundo Marx, a capacidade de realizar trabalho é uma necessidade humana.
Para que o homem se objetive no mundo é necessário que ele o faça por meio de uma atividade
produtiva, e esta atividade produtiva é o trabalho. Essa é a grande determinação do capital, o
homem deve produzir através do trabalho, sem isto não se tem nenhuma serventia para o capital.
As relações fundamentais de toda sociedade humana são, portanto, as relações de
produção, isto é, os relacionamentos fundamentais dos homens com a natureza e dos homens uns
com os outros durante o trabalho. Os relacionamentos de produção revelam assim à análise três
fatores ou elementos: as condições naturais, as técnicas e a organização e a divisão social do
trabalho. Esses três elementos constituem o que o marxismo denomina de forças produtivas de
uma sociedade determinada (LEFEVBRE, 2009).
Outra questão importante a ser analisada, é a divisão do trabalho e suas implicações. Ao
longo do desenvolvimento histórico, a partir do momento em que se instituiu a divisão do
trabalho, implicou o surgimento da propriedade privada. Os instrumentos e os meios de
produção, ao se diferenciarem, caem em poder de indivíduos ou de grupos. Nessa divisão do
trabalho também se aplica a desigualdade dos trabalhos. Como a diferenciação dos trabalhos
acompanhou a formação da propriedade privada, vimos que, no decorrer do desenvolvimento
histórico, esses dois fenômenos sociais reagiram um com o outro.
76

As funções superiores permitem o monopólio dos meios de produção; elas se


tornam hereditárias e se transmite com a propriedade e sendo elas um tipo de
propriedade. Os trabalhos inferiores (materiais) se encontram excluídos da
propriedade, assim como das funções superiores. Quanto às funções
superiores, elas deixam de pertencer aos indivíduos em decorrência de seus
dons naturais ou cultivados, mas a grupos (e aos indivíduos que deles fazem
parte), de acordo com seu lugar na organização da propriedade. Isso quer
dizer que os indivíduos acedem às funções intelectuais, políticas e
administrativas (que vão progressivamente se diferenciando) em razão da
riqueza particular de que dispõem, e não mais em função de seu valor social.
É então que aparecem as classes (LEFEVBRE, 2009, p. 70).

O trabalho torna-se, nas sociedades de classe, uma atividade da qual a classe detentora
dos modos de produção explora os indivíduos vinculados diretamente à atividade produtiva, ou
seja, a classe trabalhadora. No capitalismo, este processo de trabalho é processo de constituição
de valor. Para Marx, valor é o tempo de trabalho socialmente necessário para se produzir uma
determinada mercadoria. O valor está dividido em valor de uso e valor de troca. Porém, no
capitalismo, não basta somente produzir valor; para que o capital se reproduza constantemente é
indispensável a produção de um mais-valor. Nas sociedades de classe, além de o produtor realizar
um trabalho necessário à sua existência, ele realiza também um trabalho excedente. Este
trabalho excedente, este mais-trabalho, no capitalismo, assume a forma de mais-valia.

A mais-valia é produzida pelo emprego da força de trabalho. O capital


compra a força de trabalho e paga, em troca, o salário. Ao trabalhar, o
operário produz um novo valor, que não lhe pertence, mas sim ao capitalista.
É necessário que trabalhe um certo tempo para restituir, unicamente, o valor
do salário. Mas, feito isso, não para e trabalha durante mais algumas horas do
dia. O novo valor que então produz, e que ultrapassa, portanto, o montante do
salário, chama-se mais-valia (MARX, 1979, p.44).

Na sociedade capitalista, qualquer meio de produção serve de capital, porque proporciona


ao seu possuidor mais-valia, através de um trabalho assalariado. Para a acumulação capitalista é
fundamental a produção dessa mais-valia como capital. A produção especificamente capitalista
pressupõe, portanto, que haja certa acumulação de capital nas mãos de produtores individuais.
Segundo Marx (1979), todos os métodos que tenham por objetivo o aumento de produtividade
social do trabalho e que se edifique sobre esta base são ao mesmo tempo métodos de que resulta
o aumento da produção de mais-valia ou do sobreproduto, elementos do qual nasce por sua vez a
acumulação. Com a cumulação do capital desenvolve-se, pois, o modo de produção capitalista.
77

Dessa forma, o processo de produção da mais-valia está intrínseco ao capitalismo: classe


dominante e proletariado, sendo este o produtor da riqueza e aquela a que se apropria dela. O
capital produz o tempo todo mais-valia, e precisa desta para sobreviver. Alienado de si, muitas
vezes, o trabalhador nem se dá conta desse mais trabalho que realiza de graça para o “patrão”, ou
seja, não recebe pagamento extra por trabalhar um tempo a mais na produção de mercadorias
para o empregador.

O trabalho alienado é aquele no qual o produtor não pode reconhecer-se no produto de


seu trabalho, porque as condições desse trabalho, suas finalidades reais e seu valor não
dependem do próprio trabalhador, mas do proprietário das condições do trabalho. Como
se não bastasse, o fato de que o produtor não se reconheça no seu próprio produto, não o
veja como resultado de seu trabalho, faz com que o produto surja com um poder
separado do produtor e como um poder que o domina e ameaça (CHAUÍ, 1991, p. 55).

Com o avanço tecnológico, o capital formado no decorrer da acumulação (capital


adicional) ocupa-se de cada vez menos trabalhadores. Por outro lado, o capital antigo,
periodicamente reproduzido numa nova composição, repele cada vez mais os trabalhadores que
antes ocupava. É dessa forma que existe ainda no sistema capitalista outra consequência apontada
por Marx - a formação do “exército industrial de reserva” ou sobrepopulação relativa no interior
das relações sociais de produção capitalista como resultado direto da crescente acumulação e
concentração da riqueza. Diz ele:

O exército de reserva industrial é tanto maior quanto mais consideráveis


forem a riqueza social, o capital em circulação, a extensão e a energia de seu
crescimento e, consequentemente, a grandeza absoluta do proletariado e da
força produtiva do seu trabalho. As causas que desenvolvem a força
expansiva do capital desenvolvem também a força do trabalho disponível. A
grandeza relativa do exército industrial de reserva cresce, portanto, com o
poder da riqueza. Mas, quanto maior for esse exército de reserva em relação
ao exército ativo dos trabalhadores, maior é a sobrepopulação consolidada,
cuja miséria está na razão inversa do seu trabalho. Finalmente, quanto maior
for a classe dos infelizes da classe operária e do exército industrial de reserva,
mais considerável é o pauperismo oficial. Tal é a lei absoluta e geral da
acumulação capitalista (MARX, 1979, p. 150).

Anterior à Marx, Hegel (2011)63 havia se confrontado com questão semelhante que,
àquela época, denominou formação de uma “plebe”. Para o autor, a busca do bem-estar, a

63
HEGEL, F. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em compêndio:1830. A Filosofia do Espírito. São Paulo:
Edições Loyola, 2ª edição, 2011.
78

realização das necessidades, é o que nos leva à liberdade. Quanto mais elevada nossas
necessidades, mais elevada nossa produção. E isso nos liberta, diz Hegel, que considera que é por
meio do sistema de necessidades que os indivíduos atingem seus interesses para atingir o
universal. E o sujeito das necessidades precisa do sujeito da produção como sujeito da razão. E
para isso, vai precisar do trabalho. É a dialética da necessidade e da produção – mediada pelo
trabalho. Com isso, segundo Hegel, por meio da cultura prática que é o trabalho, o homem se
realiza.
Com o conjunto de mudanças que ocorreram com a Revolução Industrial, a partir do
século XVIII (1760), que teve como marco principal a substituição do trabalho artesanal pelo
trabalho assalariado e com o uso das máquinas, os trabalhadores perderam o controle do processo
produtivo, uma vez que passaram a trabalhar para um patrão (na qualidade de empregados ou
operários), perdendo a posse da matéria-prima, do produto final e do lucro. Esses trabalhadores
passaram a controlar máquinas que pertenciam aos donos dos meios de produção os quais
passaram a receber todos os lucros. De acordo com Marx, a Revolução Industrial, iniciada na
Grã-Bretanha, integrou o conjunto das chamadas Revoluções Burguesas do século XVIII,
responsáveis pela crise do Antigo Regime (Absolutista, Aristocrático), na passagem do
capitalismo comercial para o industrial.
Com a revolução industrial, Hegel se deparou com um problema: na medida em que a
força do trabalho era substituída pela máquina, parte da população passa a ser sobrante; não tem
mais como vender a sua força de trabalho, e é jogada para fora do sistema de necessidades. É aí
que se dá a “formação de uma plebe”, que, segundo o autor, desce além de um mínimo de
subsistência.

O trabalho, que por isso é ao mesmo tempo mais abstrato, conduz de um lado,
por sua uniformidade, à facilitação do trabalho e ao aumento da produção; de
outro lado, à limitação de uma habilidade única, e assim à dependência mais
incondicionada em relação à conexão social. A habilidade mesma torna-se,
dessa maneira, mecânica e recebe a capacidade de deixar a máquina tomar o
lugar do trabalho humano (HEGEL, 2011, p. 298).

Hegel ao ver essa contradição, tenta contorná-la. Segundo ele, nesse estado de crise, é
fundamental que o Estado intervenha através de políticas com prerrogativas reais de intervenção,
pois, é papel do Estado, dentre outras, garantir que a sociedade continue funcionando e intervir
nas consequências: controlar a desordem, dar assistência às massas. “Uma sociedade que produz
79

esse problema (sobrantes), e não resolve esse problema, é uma sociedade desumana”, diz ele.
Humana ou desumana a sociedade, Hegel e Marx, cada um em seu tempo, já denunciavam, uma
questão que ainda não foi resolvida na atualidade.
Para a escritora Marilena Chauí (1991), o Estado, como imaginava Hegel, não é a
superação das contradições, mas a vitória da uma parte da sociedade sobre outras.

O Estado não é um poder distinto da sociedade, que a ordena e a regula para o interesse
geral definido por ele próprio enquanto poder separado e acima das particularidades dos
interesses de classe. Ele é a preservação dos interesses particulares da classe que domina
a sociedade. Ele exprime na esfera da política as relações de exploração que existem na
esfera econômica (CHAUÍ, 1991, p. 70).

O Estado brasileiro ainda não foi capaz de contornar o problema da “formação de uma
plebe” que, com o passar do tempo, ganhou outras dimensões identificadas como aquelas pessoas
sobrantes, desnecessárias ao modo de produção capitalista.

Em consequência da acumulação capitalista, forma-se, portanto, uma população operária


excessiva em relação às necessidades de valorização do capital. Com a acumulação do
capital produzida pela população operária, esta produz, portanto, em proporções cada
vez maiores, os meios de sobrepopulação relativa. Esta é uma lei da população particular
ao modo de produção capitalista (Marx, 1979, p. 142).

Marx (1979) também observou que outra parte do exército de reserva só consegue
empregar-se em intervalos irregulares, ou em pontos críticos, fornecendo assim ao capital um
reservatório inesgotável de força de trabalho disponível a um baixo custo, submetendo-se às
exigências do capital. A condição desses trabalhadores desce abaixo do nível normal de trabalho,
e o capital encontra neles uma larga base de exploração. Dessa forma, por ainda apresentar
alguma serventia para a produção capitalista, os produtores dos meios de produção ainda
toleravam o chamado exército industrial de reserva.
Diferentemente da época em que Marx (2011) apontou essa situação (séc. XIX), quando,
no decorrer da acumulação capitalista, realizava-se mais trabalho sem contratar mais operários e,
por outro lado, um capital variável da mesma grandeza realizava mais trabalho com a mesma
força de trabalho e, finalmente, ocupava mais forças inferiores (mulheres e crianças) eliminando
as forças superiores (operários qualificados), obtendo assim maior lucro, de forma inversa, com o
incremento da era tecnológica no Brasil (meados década de 1970), o mercado de trabalho vem se
especializando e exigindo a contratação de profissionais cada vez mais qualificados, restringindo
80

as vagas no mercado e acirrando a competição. A progressiva especialização e informatização


fizeram com que uma grande parcela da população tenha dificuldades em se manter ou ingressar
no mercado formal de trabalho, eliminando possibilidades para aqueles que não têm a chamada
qualificação. Os maiores prejudicados na atualidade são o amplo segmento da população que, a
exemplo dos negros após a abolição da escravatura, não tem condições de competir com aqueles
que respondem às exigências do mercado, como é o caso da população em situação de rua nos
grandes centros urbanos, de muitas pessoas da classe empobrecida que não tiveram oportunidade
de uma educação de qualidade, de grande parte daqueles que passaram pelo sistema prisional e
socioeducativo, em sua maioria, negros e pobres. São esses segmentos da sociedade brasileira
que, ao longo da história, sempre tiveram dificuldades de se encaixarem às exigências do modo
de produção capitalista, não são considerados parte das forças produtivas, nem tão pouco do
consumo regular de mercadorias. O processo vai produzindo assim a negação de sua forma
social. São massas que, praticamente, não tem mais condição de se reproduzir socialmente.

Uma análise do capitalismo atual nos obriga a compreender que as formas vigentes de
valorização do valor trazem embutidos novos mecanismos de trabalho excedente, ao
mesmo tempo em que expulsa da produção uma infinidade de trabalhadores que se
tornam sobrantes, descartáveis e desempregados. E esse processo tem clara
funcionalidade para o capital, uma vez que permite a ampliação do bolsão de
desempregados e reduz ainda mais a remuneração da força de trabalho, em amplitude
global, pela retratação salarial daqueles assalariados que se encontram desempregados.
(ANTUNES, 2013, p. 14).

Herdeiros de um processo histórico excludente, incapaz de absorver a força de trabalho


excedente pela progressiva diminuição da oferta de emprego, e a consequente diminuição da
demanda de trabalho vivo e aumento do trabalho imaterial e qualificado, esse grupo social
formado pelos sujeitos indesejáveis, descartáveis e desnecessários ao modo de produção
capitalista, são objeto de constante supervisão e controle.

(...) dois aspectos da transformação em curso: o primeiro, que chamaria de


“quantitativo”, refere-se à progressiva redução do nível de “emprego” da força de
trabalho e, consequentemente, à drástica diminuição da demanda de trabalho vivo,
expressa pelo sistema produtivo a partir pelo menos da segunda metade dos anos 1970.
O segundo, que chamaria de “qualitativo”, diz respeito às mudanças ocorridas nas
formas de produção, na composição da força de trabalho, nos processos de constituição
das subjetividades produtivas e nas dinâmicas de valorização capitalista em que elas
estão imersas. A interação entre estes aspectos da mudança nos permite descrever a
transição do fordismo ao pós-fordismo, como a passagem de um regime caracterizado
pela carência (e pelo desenvolvimento de um conjunto de estratégias orientadas para a
disciplina da carência) a um regime produtivo definido pelo excesso (e
81

consequentemente, pela emergência de estratégias orientadas para o controle do excesso)


(DE GIORGI, 2006, p.66).

Para De Giorgi (2006), o processo produtivo do sistema capitalista vem dependendo cada
vez menos da força de trabalho diretamente empregada. A introdução de novas tecnologias
(principalmente informáticas) tem diminuído progressivamente a quantidade de trabalho vivo
necessário à valorização do capital, até reduzi-lo a um mínimo. Essa reestruturação contribui com
a marginalização e exclusão de grande parcela da população dos contextos produtivos, passando
a integrar o “exército da população desempregada, não empregada e subempregada”, ou mesmo
“inempregáveis”. Com isso, grande parte da força de trabalho contemporâneo é caracterizada
pela insegurança e precariedade.

O progresso tecnológico informático não amplia a produção, mas a reestrutura e a


modifica através de um constante incremento de flexibilidade. Tudo isso não cria
emprego, mas, ao contrário, o destrói. O desemprego, portanto, não é mais um fenômeno
puramente conjuntural, mas sim estrutural (DE GIORGI, 2006, p.66) 64.

Apesar das crises, o modo de produção capitalista, dessa forma, vai se desenvolvendo e
destruindo, seja a natureza, seja antigas mercadorias através da incorporação de novas (exemplo:
a renovação de tecnologias, como os celulares), seja a destruição de valores, de direitos, da ética,
em nome da manutenção dos privilégios da classe dominante, do lucro, da acumulação
capitalista, do dinheiro.
Marx e Engels (1982) ressaltam a destruição das forças produtivas acumuladas como
ponto central da caracterização da barbárie, em meio a relações de produção que haviam se
esgotado. Em seu livro o “Olho da Barbárie”, Marildo Menegat (2006) destaca que:

Houve mudanças na manifestação da regressão à barbárie que podem ser


observadas no desenvolvimento histórico mais recente do capital, permitindo-
nos falar numa tendência permanente à barbárie - não mais momentânea -
com traços conceituais mais nítidos do que nos períodos precedentes. Esses
traços podem ser entendidos a partir do contexto no qual se dá hoje a
valorização do capital, que tem dividido todos os países do mundo em nichos
de incluídos e legiões de excluídos (MENEGAT, 2006, p.27).

Segundo Menegat (2006), o processo de valorização e acumulação do capital é uma


dinâmica do capitalismo,
64
De Giorgi cita - A. Fumagalli, “Aspetti dell’accumalazione flessibile in Itália”, 1997, p.137-138.
82

(..) e para que esse processo não seja interrompido, é necessário que de
tempos em tempos destruam-se parte destas levando então a sociedade a
momentâneas regressões. A face bárbara do capitalismo não é mais do que
um elemento necessário para a sua continuidade, diferente dos períodos
anteriores, é a primeira vez que a destruição das forças produtivas faz parte
do próprio modo de produção – o que demonstra por si só a irracionalidade
dessa estrutura social (Idem, p.31-32).

E o estado capitalista mostra cada vez mais a sua face bárbara e selvagem nesse processo
acelerado de um modo de produção que só consegue se desenvolver destruindo. Para o Prof. José
Paulo Netto (2010), em A face contemporânea da barbárie,

O tardo-capitalismo (o capitalismo contemporâneo, resultado das transformações


societárias ocorrentes desde os anos 1970 e posto no quadro da sua crise estrutural)
esgotou as possibilidades civilizatórias que Marx identificou no capitalismo do século
XIX e, ainda, que este exaurimento deve-se a que o estágio atual da produção capitalista
é necessariamente destrutivo (conforme o caracteriza István Mészáros). O esgotamento
em tela, que incide sobre a totalidade da vida social, manifesta-se visivelmente na
barbarização que se generaliza nas formações econômico-sociais tardo-capitalistas.
Entendo que uma face contemporânea da barbárie se expressa exatamente no trato que,
nas políticas sociais, vem sendo conferido à “questão social” (...). Enfim, sinalizo que a
antiga escolha entre socialismo ou barbárie é hoje dramaticamente atual65. (Texto da
comunicação de José Paulo Netto, na seção temática “O agravamento da crise estrutural
do capitalismo. O socialismo como alternativa à barbárie”.)

O questão da infância e juventude brasileira, grandes vítimas do capitalismo, em


momento algum foi enfrentado como uma proposta séria e politicamente viável de distribuição de
renda, educação e saúde. Dificilmente, no passado ou no presente, a dinâmica do sistema
capitalista ensejaria simultaneidade entre crescimento, distribuição da renda e justiça social. A
essência do problema está em que, neste mecanismo da economia, não estão contidos os valores
da justiça e da ética, da igualdade e do respeito às diferenças, mas sim categorias distintas, de
eficácia, eficiência, produtividade e resultados. Estas são categorias dominantes do
neoliberalismo, que engendram todo um mecanismo ainda mais cruel de exclusão, colocando à
margem da aprendizagem, do desenvolvimento e das forças produtivas um segmento
considerável da população, principalmente este que se encontra em situação de abandono e
miséria nas ruas e favelas dos grandes centros urbanos, formando um grupo social que, mais que

65
Publicado em: http://pcb.org.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=2117:uma-face-
contemporanea-da-barbarie&catid=43:imperialismo.
83

sobrantes, transformaram-lhes naqueles que denominamos “exército dos sujeitos indesejáveis” ao


modo de produção capitalista passível, inclusive, de eliminação.
A desqualificação dos sujeitos indesejáveis tem sido amplamente fortalecida com o apoio
da mídia, através de um sistemático processo de produção de subjetivações que faz com que esse
grupo social seja considerado perigoso, criminoso, sujo, doente, drogado, vagabundo, e daí a
necessidade de higienização, repressão, controle, punição, encarceramento e eliminação do
convívio social. A produção e difusão da cultura do medo é um grande aliado para legitimar
ações coercitivas e criminalizadoras. Nesse sentido, a autora Vera Malaguti (2003) diz que

(...) no Brasil a difusão do medo do caos e da desordem tem sempre servido para detonar
estratégias de neutralização e disciplinamento planejado das massas empobrecidas. (...)
É no campo simbólico e na ação prolongada de inculcação que se desenvolvem relações
de concorrência pelo monopólio do exército legítimo da violência simbólica
(MALAGUTTI BATISTA, 2003, p.21).
(...) a hegemonia conservadora da nossa formação social trabalha a difusão do medo
como mecanismo indutor e justificador de políticas autoritárias de controle social. O
medo torna-se fator de tomadas de posição estratégicas seja no campo econômico,
político ou social. Historicamente este medo vem sendo trabalhado desde a visão
colonizadora da América, na incorporação do modelo colonial escravista e na formação
de uma República que incorpora excluindo, com forte viés autoritário (Idem, p.23).

Esses indivíduos são assujeitados, sistematicamente, pelo Estado com o incentivo e apoio
da mídia e sociedade em geral. As práticas e posturas abusivas, violentas e desumanas
perpetradas pelo governo do Estado e Município do RJ, com o envolvimento de forças policiais,
estão presentes no ato de recolher e internar compulsoriamente crianças e adolescentes nas ruas,
na expulsão de adolescentes, negros e pobres, vindos das favelas e periferias, dos ônibus em
direção às praias, no encarceramento de adolescentes, seja em abrigos, ou nas unidades de
privação de liberdade para aqueles que cometem ato infracional e/ou estão em descumprimento
de medida socioeducativa.
Falar da História da Assistência à Infância no Brasil é remontar um período de
contradições, abusos e discriminação contra crianças e adolescentes, desprovidos de direitos e se
quer de voz. Excluir é ignorar o outro, desconsiderar. Uma pessoa ignorada deixa de existir, se
torna transparente, não é vista, não é ouvida. Segundo a filósofa Viviane Mosé, “no Brasil, a
exclusão se tornou regra. É comum, é natural, se tornou normal excluir o que nos incomoda”. As
ações de governo no atendimento da população empobrecida (mendigos, desempregados, sem-
teto, crianças e adolescentes em situação de rua, etc.), de fato, não têm resultados satisfatórios de
84

promoção de vida dessas pessoas. Apesar de considerados avanços no Sistema Único de


Assistência Social (SUAS), nos Programas do Governo Federal, como o Bolsa Família, Programa
de Erradicação do Trabalho Infantil (PETI), da redução dos níveis de redução de pobreza durante
os dois governos do Presidente Lula (2003 a 2011), são políticas, em sua maioria compensatórias,
que alcançam uma parcela reduzida da população, mas não chegam, por exemplo, à população
em situação de rua. Em pleno século XXI, na vigência do Estatuto da Criança e do Adolescente,
de acordos e tratados internacionais do qual o Brasil é signatário, o que ainda observamos é a
permanência e manutenção de práticas de viés higienista, racistas, arbitrárias e violentas, com uso
ostensivo de forças de segurança contra esse grupo social, com a intencionalidade de excluir, tirar
de circulação aquilo que incomoda, que é diferente, que amedronta. Os “indesejáveis” da cidade,
nem sequer são reconhecidos como titulares de direitos. Vistos como não cidadãos e
potencialmente perigosos, o uso de práticas repressivas, de controle, de encarceramento e
homicídio adotados pelo Estado é a forma historicamente reconhecida e concebida de atuação
junto a esse grupo.
Nascimento (1998) considerou que no Brasil e em grande parte da América Latina
diminuiu significativamente a reversibilidade da situação de pobreza. Porém, segundo o autor,
esse pobre é basicamente um excluído do mercado de trabalho. O processo de desenvolvimento
brasileiro gera grupos sociais que são:

(a) desnecessários economicamente, pois não se trata mais de exército de


reserva, na medida em que não tem mais condições de ingressar no processo
produtivo moderno;
(b) incômodos politicamente, pois são responsabilizados pelos erros e mazelas
da política;
(c) perigosos socialmente, na medida em que são vistos como transgressores da
lei, bandidos em potencial (NASCIMENTO, 1998, p.81).

Se voltarmos um pouco na história, confirmamos que as gerações posteriores à


escravidão, ou seja, os descendentes dos homens e mulheres que foram escravizados no Brasil
são as principais vítimas do processo de exclusão das forças produtivas e que vão se constituindo
no chamado “exército de sujeitos indesejáveis”. São os descendentes daqueles que passaram pela
Lei do Ventre Livre e pela Abolição da escravatura; pelas crianças trabalhadoras do século XIX
(e que ainda não deixaram de trabalhar nos dias de hoje, apesar da redução significativa dos
números do trabalho infantil); pela intervenção do Estado através da destituição do pátrio poder
85

das chamadas famílias “desestruturadas”, na década de 1920, que perdura até os dias atuais; pelo
Código de Menores de 1927, que traz a categoria menor abandonado / delinquente; pelo Serviço
de Assistência Social aos Menores (SAM); pela FUNABEM e Política Nacional do Bem Estar do
Menor; pelo Código de Menores de 1979, que traz a categoria de menor em situação irregular;
pelos muitos filhos e filhas de pais encarcerados; dentre outras leis, mecanismos e dispositivos
que em verdade não conseguiram a real promoção desses sujeitos, mas, no mínimo, através de
políticas compensatórias lhes deram as migalhas para continuarem subalternizados. Vamos
encontra-los na atualidade em situações semelhantes, principalmente pelo poder de destruição do
capitalismo. Essas crianças e adolescentes são levados, muitas vezes, a auxiliar na renda familiar
e/ou ficam em casa tomando conta dos irmãos mais novos enquanto a mãe vai trabalhar, com
isso, não conseguem frequentar regularmente a escola, tem baixa escolarização e/ou são
obrigados a abandonar a escola (90% dos adolescentes autores de ato infracional e que cumprem
medida socioeducativa no DEGASE não concluiu o nível fundamental; a maioria dos
adolescentes e jovens em situação de rua só tem no máximo até o 3º ano do ensino fundamental).
Faltam-lhes oportunidades, ou trabalham em funções que exigem força bruta, como o que ocorreu
depois da abolição com os escravos libertos, ou vendem kits de balas e doces nos ônibus e pelos
bares, ou, para um grupo reduzido, são arregimentados pelo tráfico varejista de drogas nas
favelas, ou cometem pequenos furtos.

(...) a conjuntura histórica deu origem a formações sociais que inseriam certos focos de
agravamento dos problemas sociais dos “homens de cor” no próprio âmago da sociedade
se classes. A degradação resultante desse processo facilitava, originalmente, a
acomodação passiva da sociedade inclusiva à “degenerescência” da vida social do negro
e do mulato sob o “regime de liberdade”. Entendia-se, de modo franco, que o
pauperismo, a desorganização da família, o alcoolismo, a vagabundagem, a prostituição,
a criminalidade, etc, constituíam “sintomas naturais” e, por assim dizer, o dividendo
fatal das propensões biológicas, psicológicas, antissociais do “homem de cor”. Os mores
cristãos e os fundamentos legais da ordem social competitiva não neutralizaram nem
suavizaram os efeitos destrutivos dessas avaliações, que desorientaram ainda mais os
negros e os mulatos (...) (FERNANDES, 2008, p. 295-296).

Invisíveis para a maioria da sociedade, esses sujeitos só se tornam visíveis quando entram
em algum tipo de tensão com a sociedade, como quando praticam algum delito, ou ferem a
estética da cidade e o conforto da classe dominante. Este tipo de conformação da sociedade tem
feito com que legitimemos, por atos e/ou omissões, todo um processo de violações de direitos
humanos e sociais, em especial da população negra e empobrecida. As práticas abusivas
86

(recolhimento, encarceramento e homicídio) direcionadas aos sujeitos indesejáveis, atravessadas


por uma ideologia dominante semelhante à ideologia nazifascista, acentua as contradições
existentes na atualidade de um Estado democrático, que adota práticas de exceção, se sobrepondo
e afrontando leis e violando direitos.

Através do Estado, a classe dominante monta um aparelho de coerção


e repressão que lhe permite exercer o poder sobre toda a sociedade,
fazendo-a submeter-se às regras políticas. O grande instrumento do
Estado é o Direito, isto é, o estabelecimento de leis que regulam as
relações sociais em proveito dos dominantes. Através do Direito, o
Estado aparece como legal, ou seja, como “Estado de Direito”. O papel
do Direito ou das leis é o de fazer com que a dominação não seja tida
como uma violência, mas como legal (..) (CHAUÍ, 1991, p. 90).

À margem dos direitos fundamentais e de políticas que respondam concretamente às suas


reais necessidades, à margem dos direitos e dos benefícios da cidade, com muito poucas ou quase
nenhuma possibilidade de escolarização, qualificação profissional e, consequentemente, de
ascensão social, o exército de sujeitos indesejáveis cada vez mais se distanciam dos processos
produtivos, aprofundando-se as desigualdades e suas condições de acesso a uma existência social
cidadã plenos. Na maioria das vezes, são considerados culpados pelas condições em que vivem.
Segundo François Dubet (2006),

a maioria das sociedades históricas é desigualitária, opondo violentamente


dominantes e dominados, marcando de maneira brutal as diferenças entre os
grupos sociais, a ponto de por vezes parecerem não pertencerem à mesma
humanidade, como os mestres e os escravos, os nobres e os camponeses.
Convém lembrar que já no século XIX o pauperismo é considerado como o
insucesso das relações que os sujeitos estabelecem na luta pela sobrevivência
(DUBET, 2006, p. 106).

Essa concepção da responsabilização individual é fortalecida pelo neoliberalismo, que


valoriza e articula a teoria do “capital humano” com a do “capital social”, na qual o desemprego e
a pobreza são interpretados como infortúnios ou consequência da incapacidade individual. Com
esse tipo de racionalidade, tira-se a responsabilidade do Estado pelas mazelas sociais, existindo
todo o apelo à responsabilidade pessoal e à tomada de iniciativa individual nos casos de
pauperização ou indigência. Dentro dessa racionalidade, o pobre, o desempregado, as pessoas que
se encontram em situação de rua são consideradas responsáveis pela sua condição, e a estas
87

compete fazer o necessário, com o auxílio ou não de pessoal especializado, para resolver o seu
problema. O modelo da sociedade e o sistema capitalista, geralmente, não são questionados. As
pessoas que estão à margem deste sistema é que precisam adaptar-se às exigências da sociedade
de mercado, bem como devem adquirir os recursos necessários para tornarem-se trabalhadores
produtivos, autônomos e não precisarem mais de ajuda. Esse pensamento liberal tem sido
reproduzido e fortalecido enquanto visão dominante, que deixa obscura a verdadeira causa dessa
situação tão desigual que acomete, principalmente, nas camadas mais pobres da população que é,
mais uma vez, penalizada. Em crítica a esse pensamento, Menegat (2012) considera que,

A ideologia liberal do individualismo abstrato, que diz ser possível por meio do esforço
individual alguém se subtrair a essas condições e prosperar não encontra mais evidências
empíricas (MENEGAT, 2012, p. 26).

De fato, não existem condições abstratas ou materiais para esse grupo social se
desenvolver. Os exemplos que temos acompanhado de superação e ascensão, ao longo de vários
anos de experiência, são apenas de casos exemplares, quando um ou outro menino ou menina que
passou pela vivência das ruas ou pelo sistema socioeducativo conseguiu uma melhor colocação
na vida. A maioria deles resiste, sim, constituiu família, mas está trabalhando na informalidade,
ou está ou passou pelo sistema prisional, ou continua em situação de rua, ou está morto.
Alienados dessa situação, o que prevalece, por estar tão fortemente inculcado na
sociedade capitalista, é esse tipo de pensamento que acredita que “só vence na vida quem quer”.
Mas, num sistema tão desigual e, consequentemente, de oportunidades desiguais, os direitos
também obedecem a essa determinação. O Estado não tem cumprido bem o seu papel em garantir
os direitos fundamentais, a promoção e dignidade a todos os cidadãos, bem como em garantir a
igualdade entre todos, independentemente da cor, raça, etnia, credo, ou gênero. Ao contrário,
apesar das conquistas alcançadas com a Declaração dos Direitos do Homem, a igualdade entre
todos tem sido um direito muito distante, e um privilégio só de alguns. O Capitalismo vai mostrar
que não é possível sermos iguais e felizes ao mesmo tempo. A felicidade de alguns convive com
uma imensa desigualdade de uma maioria.

O Homem da Declaração é, para quem quiser entender, o gênero humano: um universal.


Mas nas mediações desta sociedade, em que a divisão social do trabalho se reifica na
propriedade privada, nas relações de troca, esta forma universal não ganha concreção.
Ela expressa uma contradição porque é inviável a sua realização numa sociedade em que
88

a particularidade se sobrepõe ao todo. Isso implica dizer que, na lógica dessa forma
social, a propriedade e as coisas têm primazia sobre o Homem (MENEGAT, 2012, p.
141)

É nesse contexto que se configura a produção e acumulação de riqueza, a valorização do


valor, a coisificação / reificação das relações sociais, uma relação na qual as coisas se sobrepõem
às pessoas, e estas depositam mais confiança no dinheiro do que em si mesmas. Como um
“Deus”, o dinheiro é cultuado, e isso reflete em si uma contradição e uma forma de alienação,
pois a sociedade, no modo de produção capitalista, até então, se desenvolve e se estrutura através
de relações mediadas por coisas (capital, mercadoria, dinheiro), e não por relações humanas.

(..) a existência do dinheiro pressupõe a coisificação do nexo social. (...) os


homens depositam na coisa (no dinheiro) a confiança que não depositam em
si mesmos como pessoas. Mas por que depositam confiança na coisa?
Evidentemente, só como relação coisificada das pessoas entre si. (...) o
dinheiro serve-lhe somente como penhor imobiliário da sociedade, mas só é
tal penhor em virtude de sua propriedade (simbólica) social; e só pode possuir
propriedade social porque os indivíduos se estranharam de sua própria relação
social como objeto. (MARX, 2011, p. 108).

A reificação das relações sociais, ou a coisificação dessas relações, termo usado por
Lukács (2012), considera que no modo de produção capitalista os homens são transformados em
coisas e as coisas são transformadas em homens. Essa relação social determinada dos próprios
homens assume para eles a forma “fantasmagórica” de uma relação entre coisas. A reificação das
relações sociais é trazida também pelo autor em relação às mercadorias:

A essência da estrutura da mercadoria (...) se baseia no fato de uma relação entre pessoas
tomar o caráter de uma coisa e, dessa maneira, o de uma “objetividade fantasmagórica”
que, em sua legalidade própria, rigorosa, aparentemente racional e inteiramente fechada,
oculta todo o traço de sua essência fundamental: a relação entre os homens (LUKÁCS,
2012, p. 194).

De acordo com Lukács (2012), sob essa determinação, é absolutamente necessário que a
sociedade aprenda a satisfazer todas as suas necessidades sob a forma de mercadorias.

A separação do produtor dos seus meios de produção, a dissolução e a desagregação de


todas as unidades originais de produção, etc., todas as condições econômicas e sociais do
nascimento do capitalismo moderno agem nesse sentido: substituir por relações
racionalmente reificadas as relações originais em que eram mais transparentes as
relações humanas (LUKÁCS, 2011, p. 207).
89

A coisificação das relações sociais que faz com que o trabalhador seja visto como uma
coisa denominada força de trabalho tem relação direta com a formação do exército dos sujeitos
indesejáveis, pois estes sujeitos, ou a maioria deles, não possuem os atributos necessários para
suprir as necessidades do capital, não conseguem apresentar-se como “proprietários” de sua força
de trabalho diante das novas exigências do mercado.

(...) o trabalhador deve apresentar-se como o “proprietário” de sua força de trabalho,


como se esta fosse uma mercadoria. Sua posição específica reside no fato de essa força
de trabalho ser sua única propriedade. Em seu destino, é típico da estrutura de toda a
sociedade que essa auto-objetivação, esse tornar-se mercadoria de uma função do
homem revelem com vigor extremo o caráter desumanizado e desumanizante da relação
mercantil (LUKÁCS, 2011, p. 209).

Com o esgotamento do capitalismo, sua necessidade de renovação torna-se um princípio


primordial para a sua continuidade, e novas formas são estabelecidas para se garantir o lucro. O
capital financeiro, que pode ser subentendido como a soma de todos os valores adquiridos por
meio de transações financeiras (investimentos, compra e venda de ações, etc.), tem sido uma
forma que sustenta o capital, mas que elimina ainda mais pessoas do mercado de trabalho.
O exército de sujeitos indesejáveis, aqueles que estão pelas ruas, encarcerados, esse grupo
social que a maior parte da sociedade tem medo e os quer longe de suas ruas, praias e avenidas,
ou mesmo aqueles tantos jovens negros e pobres, que estão no limiar da vida e da morte, são
aqueles socialmente considerados não apenas desnecessários ao capital, mas também indignos de
viver.

Os nazistas, sempre ansiosos por generalizar, pensaram ter demonstrado que os judeus
eram “indesejáveis” em toda parte e que todos não judeus eram um antissemita real ou
em potencial. Por que, então, alguém haveria de se importar se eles tratavam esse
problema “radicalmente”? (ARENDT, 2013, p.173).
90

4 DAS PRÁTICAS E POSTURAS ABUSIVAS ADOTADAS PELO PODER DOMINANTE


NO ENFRENTAMENTO AOS SUJEITOS INDESEJÁVEIS

Ao longo dos últimos anos, especialmente com a organização das cidades para a
realização dos Megaeventos, o Brasil e principais capitais do país, mais especificamente o Rio de
Janeiro, apresentou um cenário de violação e retrocessos extremamente graves em relação aos
direitos humanos de crianças e adolescentes, sejam das que estão em situação de rua, como das
provenientes das favelas e periferia, principalmente direcionadas aos jovens negros e pobres. É
importante ressaltar o recorte de cor e de classe, pois, como veremos ao longo desse capítulo,
esse segmento é aquele que tem sofrido, historicamente, as consequências de um sistema seletivo,
racista e excludente.
O Brasil está entre os 10 países que mais mata jovens no mundo, e a maior parte deles são
negros e pobres, das periferias das grandes cidades. Mais de 25 mil jovens entre 15 e 29 anos por
armas de fogo foram mortos em 2014, o que representa um aumento de quase 700% em relação
aos dados de 1980, quando o número de vítimas nessa faixa etária foi pouco mais de 3 mil no
período66.
A superlotação nas unidades de internação do Departamento Geral de Ações
Socioeducativas (DEGASE) tem sido também objeto de várias denúncias. O DEGASE está com
três vezes a sua capacidade de adolescentes cumprindo medida de internação. Em 2010, a média
de entrada eram 10 adolescentes diários; em 2015 e 2016, essa média passou para 25
adolescentes diariamente! Essa realidade já representa um aumento de aproximadamente 400%
nos índices de encarceramento de adolescentes no RJ. É o Estado atravessado por uma ideologia
seletiva e punitiva.
A atuação arbitrária e violenta do Poder Público nas operações de recolhimento e
internação compulsória de crianças e adolescentes em situação de rua também foi objeto de
denúncias ao longo do período. Teve consequências diretas no trabalho desenvolvido pelas
instituições que atuam com esses meninos e meninas, causando um retrocesso e descontinuidade
do atendimento, dificuldades na construção de vínculos, no estabelecimento de elos de confiança,
falta de interesse dos adolescentes em participar de atividades pedagógicas, e mesmo, influência

66
Mapa da violência 2016.
91

direta no comportamento dos meninos, tornando-os agressivos como consequência das


operações.
A Redução da Idade Penal parece ser o pano de fundo e a principal intenção política, com
forte pressão da sociedade e da mídia. O retrocesso, o avanço do conservadorismo e das medidas
de repressão e encarceramento denuncia um cenário de muitas violações de direitos humanos, no
qual as crianças e adolescentes em situação de rua e as provenientes da favela e periferia tem sido
as maiores vítimas.

O novo internamento configura mais do que qualquer outra coisa como uma tentativa de
definir um espaço de contenção, de traçar um perímetro material ou imaterial em torno
das populações que são “excedentes”, seja a nível global, seja a nível metropolitano, em
relação ao sistema de produção vigente (DE GIORGIO, 2006, pg 28).

Nesse capítulo pretendo descrever as práticas abusivas67 e a ideologia do poder dominante


junto a três grupos: crianças e adolescentes em situação de rua, adolescentes encarcerados,
autores de ato infracional, que cumprem medida socioeducativa de internação no Departamento
Geral de Ações Socioeducativas (DEGASE), e crianças, adolescentes e jovens assassinados,
vítimas da violência do Estado. Para desenvolver a tese da adoção de práticas arbitrárias,
abusivas e violentas, atravessadas por um tipo de ideologia bem próxima à que foi a ideologia
nazifascista, de forte viés higienista, eugênico e racista, trago enquanto base teórica-
metodológica, a referência literária da autora Hanna Arendt (2013), que em seu livro Eichmann
em Jerusalém, descreve três (03) soluções adotadas pela Alemanha nazista, no Terceiro Reich de
Adolf Hitler, para o problema daqueles considerados “indesejáveis”68, quais sejam: (1ª) Solução:
Expulsão; (2ª) Solução: Concentração; e (3ª) Solução: Assassinato – a solução final.
A analogia que faço entre as três soluções/fases do nazismo para a questão dos
“indesejáveis” estabelece uma relação com as três práticas adotadas pelo poder dominante, no RJ,
que, necessariamente, não acontecem em uma ordem cronológica como o foi no Terceiro Reich:
(1ª) Prática: Recolhimento / Expulsão; (2ª) Prática: Encarceramento / Concentração; (3ª) Prática:
Assassinato / Homicídio / Eliminação.
67
Entendendo enquanto práticas abusivas, principalmente, o recolhimento, o encarceramento e o assassinato de
crianças e adolescentes, especialmente das que estão em situação de rua, dos adolescentes que cumprem medidas
de internação no DEGASE, e dos jovens assassinados pelo Estado nas favelas e periferias do RJ.
68
No caso descrito por Arendt (2013), os grupos sociais alvos das 03 soluções para o problema eram,
principalmente, Judeus, Ciganos, Homossexuais, Antissociais (Outsiders), Poloneses, pessoas com problemas
mentais (psiquiátricos) e deficientes físicos.
92

Importante ressaltar que a analogia que trago não deve ser entendida como algo
correlato, pois os referenciais atuais, sociais, culturais, políticos, temporais são outros. Se no
período de Hitler as três soluções se deram enquanto fases do nazismo de forma ordenada, no
caso do Brasil, Rio de Janeiro, contemporâneo, essas se misturam, acontecem, inclusive, ao
mesmo tempo, por isso a analogia subtende-as como práticas, porém carregadas por um tipo de
ideologia bem próxima ao que foi a nazifascista.
Hannah Arendt (2013) descreve o oficial alemão Adolf Eichmann, responsável pela
logística do transporte de judeus para os campos de concentração, como um homem que não
reconhecia qualquer culpa no trabalho que realizava enquanto responsável por transportar
milhões de judeus para os campos e concentração onde foram exterminados, durante o Terceiro
Reich. Em seu julgamento, Eichmann enfatizava que não passava de um mero cumpridor de
ordens e, como tal, jamais poderia ser punido por realizar com eficiência as funções a ele
designadas pelo regime nazista. Daí o conceito “banalidade do mal”, um tipo de banalização da
violência, do ato que causou mal a terceiros e, aquele que comete a agressão, a violência, por
cumprir ordens de um superior, não se sente responsável pelas consequências de seus atos. Esse
tipo de “banalização do mal” observamos em muitos dos agentes de segurança do município e do
estado do Rio de Janeiro, ou seja, guarda municipal, policiais militares e civis nas ruas da cidade,
nas UPPs, quando de suas incursões nas favelas, violam direitos, reprimem, encarceram e
também matam. Assim como, nos agentes no sistema socioeducativo e prisional, que tratam com
violência, desprezo e desumanidade aquelas pessoas, ali encarceradas, considerando que estão
cumprindo seu dever, cumprindo ordens, junto àqueles considerados “indesejáveis” e, por isso,
merecedores do seu destino. Também podemos observar esse tipo de entendimento/compreensão
no Juiz que determina a internação (prisão) de um adolescente numa unidade superlotada, por um
tipo de ato infracional que poderia ser cumprido em regime em meio aberto 69. Esses são
exemplos aos quais podemos considerar que pode estar embutida a banalidade do mal de Arendt.

O contraste entre o heroísmo israelense e a passividade submissa com que os judeus


marcharam para a morte – chegando pontualmente nos pontos de transporte, andando
sobre os próprios pés para os locais de execução, cavando os próprios túmulos,
despindo-se e empilhando caprichosamente as próprias roupas, e deitando-se lado a lado
para serem fuzilados – parecia uma questão importante, e o promotor, ao perguntar
testemunha após testemunha “Por que não protestou?”, “Por que embarcou no trem?”,

69
São consideradas medidas em meio aberto: Liberdade Assistida, Semi Liberdade, Prestação de Serviço à
Comunidade.
93

“Havia 15 mil pessoas paradas lá, com centenas de guardas à frente – por que vocês não
se revoltaram, não partiram para o ataque?”, elaborava ainda mais essa questão, mesmo
que insignificante. Mas, a triste verdade é que ela era tomada erroneamente, pois
nenhum grupo ou indivíduo não judeu se comportou de outra forma. Dezesseis anos
antes, ainda sob o impacto dos acontecimentos, David Rosset, ex prisioneiro de
Buchenwald, descrevia o que sabemos ter acontecido em todos os campos de
concentração: “o triunfo das SS exige que a vítima torturada permita ser levada à
ratoeira sem protestar, que ela renuncie e se abandone a ponto de deixar de afirmar sua
identidade. E não é por nada. Não é gratuitamente, nem por mero sadismo, que os
homens da SS desejam sua derrota. Eles sabem que o sistema que consegue destruir suas
vítimas antes que elas subam ao cadafalso... é incomparavelmente melhor para manter
todo um povo em escravidão. Em submissão. Nada é mais terrível do que essas
procissões de seres humanos marchando como fantoches para a morte” (Les Jours de
notre mort, 1947) (ARENDT, 2013, p. 22).

Para chegarmos ao ponto de concordância ou omissão de parte significativa da


sociedade com tais práticas, necessário, anteriormente, ter sido construído um processo de
desumanização do outro.

Desumanizar consiste em desqualificar, por meio da linguagem, esse olhar do outro,


tornando todo diferente inexistente como humano, como uma vida matável, sacrificável,
que não tem nenhuma humanidade. Impossibilitando, assim, qualquer capacidade de
identificação. (FÉDIDA apud TESHAINER, 2013, p. 152)70.

A desumanização acontece pela desconsideração do outro, negando sua dignidade, seu


valor. Constatamos isso no depoimento de Eichmann sobre as ordens de Hitler: “Sabemos que o
que esperamos de você é, sobretudo, ser sobre humanamente desumano”. Acompanhamos essa
desumanização ao ver como os judeus foram tratados nos campos de concentração, assim como
acompanhamos como os adolescentes e adultos estão submetidos a um processo de
desumanização no encarceramento, os primeiros no sistema socioeducativo, e os segundos no
sistema prisional. Arendt (2013) comenta que

o que afetava as cabeças desses homens que tinham se transformado em assassinos era
simplesmente a ideia de estar envolvido em algo histórico, grandioso, único, o que,
portanto, deve ser difícil aguentar o trabalho exigido. Isso era importante, porque os
assassinos não eram sádicos ou criminosos por natureza; ao contrário, foi feito um
esforço sistemático para afastar todos aqueles que sentiam prazer físico com o que
faziam (ARENDT, 2013, p. 121).

70
REGO, Caminhos da Desumanização: Análises e Imbricamentos Conceituais na Tradição e na História Ocidental,
Universidade de Brasília, 2014. Publicado em: http://www.repositorio.unb.br/bitstream/10482/17549/1/2014
_PatriqueLamounierRego.pdf
94

Nos campos, assim como no sistema socioeducativo foi retirada a identidade das
pessoas, que passam a serem identificadas por números. Aí está mais uma prática análoga, que
carrega em si uma intencionalidade não casual, mas planejada de anular a identidade e dignidade
do outro a fim de desqualifica-los, fazê-los se sentir sem referência, como nada, ninguém. Essa
violência contra o ser, que também se dá na expulsão e extermínio dos judeus da Alemanha, é
análogo ao recolhimento ou expulsão das crianças e adolescentes em situação de rua dos espaços
públicos e do extermínio da juventude negra e pobre, todas passaram por um processo de
desumanização do outro.

A violência nasce com a desqualificação do outro, a retirada do outro de suas


características humanas, para colocar em evidência os aspectos negativos e, assim,
desumanizá-lo. Esse procedimento pode levar até ao aniquilamento do outro, quando
este é visto como inimigo absoluto, como no caso extremo do nazismo e da “solução
final” para o povo judeu e outros indivíduos e grupos sociais considerados inferiores.
(...) Na verdadeira guerra que se trava nas favelas brasileiras entre o traficante e a
polícia, esse fenômeno também é reproduzido: para matar e torturar o outro, preciso
antes “mata-lo” simbolicamente na minha mente, retirando-lhes as características
humanas. Nas relações cotidianas, recorremos muitas vezes, consciente ou
inconscientemente, a mecanismos de desqualificação e desumanização desse tipo: “esse
‘cara’ é um porco, um animal” (BAGGIO, 2009, p. 39).

Saber que tipo de ideologia permeia tais práticas é determinante para compreendermos a
visão de mundo e das relações socialmente produzidas, espécie de ilusão exterior que esconde
uma essência. A ideologia pode ser compreendida como o processo material de produção de
ideias, crenças, valores na vida social, que simbolizam a legitimação de interesses de um grupo
ou classe específico, de um poder social dominante. As ideias da classe dominante são, em cada
época, as ideias dominantes. A classe dominante detém os meios de produção material, os
dispositivos culturais, e esses são mecanismo de dominação. Dessa forma, se mantém o poder
dominante. De acordo com Marx (1979),

(...) até o presente os homens sempre fizeram falsas representações sobre si mesmos.
(…) Os produtos de sua cabeça acabaram por se impor à sua própria cabeça (MARX,
1979, p. 17)71.
Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência
(Idem, p. 37).

Em relação aos sujeitos indesejáveis tratados nesta tese, observamos que desde a Lei do
Ventre livre e Abolição da escravatura, foi-se construindo esse ideário no Brasil, foi se
71
MARX, Karl e Friedrich Engels. A ideologia alemã. 2a ed. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1979.
95

produzindo subjetividades / representações sobre os “jovens perigosos”, a “classe perigosa”. A


preocupação com os negrinhos pelas ruas, no século XVII, já carregava em si uma falsa
consciência sobre esse grupo social, estigmas quanto a inferioridade e periculosidade daquele
grupo, que se manteve e se fortaleceu até nossos dias. Práticas de repressão e segregação foram
implementadas com forte viés racista e classista, que prevalecem mesmo que encobertos. A
Operação Rio Verão, que veremos mais adiante, é um bom exemplo, quando adolescentes e
jovens, negros e pobres, provenientes das favelas e periferias, são retirados dos ônibus e expulsos
das praias da zona sul do Rio de Janeiro por agentes do Estado. São agentes que trabalham para
o bem comum adotando práticas de exceção.
Para entender essa contradição do Estado, Marx (1982) considera que o Estado capitalista
é resultante da divisão da sociedade em classes e não é um poder neutro, acima dos interesses de
classe. Sua ênfase coloca-se no caráter de dominação de classe do Estado, considerando-o um
mecanismo de opressão e de coerção para garantir reprodução e acumulação do capital. A forma
do Estado burguês-capitalista é inseparável do processo de reprodução do capital e suas
contradições. Ele aparece como a realização do interesse geral, mas, na realidade, o Estado é a
forma pela qual os interesses da classe dominante ganham a aparência de interesse de toda a
sociedade.

O Estado não é um poder distinto da sociedade, que a ordena e regula para o interesse
geral definido por ele próprio enquanto poder separado e acima das particularidades da
classe que domina a sociedade. Ele exprime na esfera da política as relações de
exploração que existem na esfera econômica. (...) o Estado é a expressão política da
sociedade civil enquanto dividida em classes. Não é, como imaginava Hegel, a
superação das contradições, mas a vitória de uma parte da sociedade sobre as outras
(CHAUÍ, 1991, p. 70).

Nesse contexto, é esse o Estado que, atendendo aos anseios do poder dominante, se utiliza
dos aparelhos coercitivos para reprimir, recolher, encarcerar e, muitas vezes, eliminar o grupo
social denominado “os indesejáveis”.
Períodos da história brasileira, como a escravatura e ditadura militar, em que pessoas que
se encontravam em situação de mendicância, ou outras formas consideradas “suspeitas e
perigosas”, eram criminalizadas pelo simples fato de estarem nas ruas, o Estado, fazendo uso da
violência policial, em nome da proteção violava direitos.
96

O Rio de Janeiro, por haver tido uma grande população de escravos, desde
1830, organizou sua polícia com o objetivo de manter e garantir a ordem, o
que quer dizer reprimir os negros, principalmente. Em meados do século
XIX, esse controle passou a incidir também sobre todos aqueles que um
decreto de 1861 chamou de "mundo da desordem": expressão que, nos
documentos oficiais da época, compreendia os escravos, ex-escravos,
vendedores, barqueiros, diaristas que iam de um emprego a outro, assim
como uma série de outros segmentos sociais, percebidos pelas elites como
suspeitos e, portanto, perigosos (COIMBRA, 2010)72.

E essa organização inicial da polícia no enfrentamento junto àqueles que, supostamente,


eram os causadores das desordens, se manteve e se aperfeiçoou. Com a Ditadura Militar no
Brasil, período que se inicia com o Golpe de 1964 e estende-se até 1985, a violência e o arbítrio
policial ganham novas dimensões e se potencializa. A chamada “segurança nacional” passa a
gerir através da violação de direitos e do medo. Nossas Instituições repressivas não se findaram
com a ditadura, elas apresentam uma linha de continuidade e aparelhamento. Essas instituições
aprenderam a lidar com a forma arbitrária e violenta. Instalar a ordem instituída através da
arbitrariedade e do terror (gestão do medo). Segundo Rogério Dutra, Professor do Curso de Pós
Graduação em Direito da UFF73, “a instituição repressiva brasileira é, claramente, de inspiração
fascista”.
Em Arendt (2013), a expulsão dos grupos sociais, étnicos, considerados “indesejáveis”
(especialmente ) dava-se, a princípio, com o consentimento de muitos judeus, pois, sem mais
espaço na Alemanha, pensavam que teriam, com a deportação para a Palestina e leste europeu,
uma nova pátria. Porém, a verdadeira intenção era a de apartá-los da sociedade alemã,
praticamente sem mais direitos e bens. E não demorou muito para que a expulsão se convertesse
nas outras duas soluções (concentração e assassinato). No nosso caso, a expulsão dos sujeitos
indesejáveis se deu e se dá enquanto medida repressiva, racista e higienista sobre um grupo
social, supostamente perigoso (principalmente pessoas em situação de rua, adolescentes negros e
pobres provenientes das favelas e periferias), dos territórios considerados nobres da cidade do
Rio de Janeiro.

72
COIMBRA, Cecília. Prendam os suspeitos de sempre. Artigo publicado no site do CRP SP. Disponível em:
<http://www.crpsp.org.br/portal/comunicacao/cadernos_tematicos/1/frames/fr_justica_cecilia.aspx> . Acesso em
27/10/2010.
73
Coordena, na Universidade Federal Fluminense (UFF), Pesquisa sobre a estrutura repressiva dentro das
Universidades e contra os Movimentos Sociais, com o Golpe de 1964, no Brasil. Considerações feita na Palestra
“Desaparecidos e Desterrados”, no IV Congresso Latino Americano de Direito Penal e Criminologia, em 29 e
30/10/15.
97

Importante fazermos uma necessária ressalva, pois em nenhum momento consideramos


iguais as soluções nazistas com as práticas que vivenciamos na cidade do Rio de Janeiro, porém
faço uma analogia das mesmas e da ideologia que as permeia. Faço um alerta quanto à
semelhança das ações que foram implantadas no regime nazista e nas práticas no RJ, ambas
direcionadas a grupos ou etnias consideradas “indesejáveis”. Mesmo porque, na Alemanha
nazista, milhões de pessoas foi objeto dessas ações. E, para se chegar à adoção de tais soluções, e
à aceitação do povo alemão, foi necessário um conjunto de fatores a começar pela produção de
subjetivações e/ou representações que desqualificaram e desumanizaram aquelas pessoas,
atravessadas pela ideologia nazifascista. Aqui, como veremos, não estamos longe disso...
A deportação de milhões de negros africanos para o Brasil, submetidos ao trabalho
escravo, desqualificados e desumanizados em sua natureza/essência, é também um bom exemplo
histórico em termos de Brasil.

(...) os nazistas afirmavam se sentir ofendidos pela vida marginal, e em 1933 fizeram
manifestações para afastar das ruas prostitutas, cafetões e aborteiros. Eles ameaçaram
todos os que não trabalhavam em empregos regulares, e ao longo do verão várias
autoridades se lançaram contra “ciganos, “preguiçosos” e vagabundos por “perturbarem
a população”. Em meados de setembro de 1933, os nazistas ordenaram uma operação
nacional de busca e detenção para acabar com o que chamaram de “praga de mendigos”
nas ruas (GELLATELY, 2011, p. 157).

Nossa referência nesse capítulo será feita ao longo de um período de 15 anos (2001 -
2016), porém com foco no período compreendido entre 2011 a 2016, quando foi
institucionalizado o recolhimento e a internação compulsória na cidade do Rio de Janeiro, a partir
da Resolução 20 da Secretaria Municipal de Assistência Social74 - o Protocolo do Serviço
Especializado em Abordagem Social, época em que a cidade começa a se organizar para a
realização dos Megaeventos (Copa do Mundo e Olimpíadas). Abordaremos 02 grupos sociais e
períodos distintos. 1º grupo – crianças e adolescentes em situação de rua, objeto das operações de
recolhimento no período de 2001 a 2016; 2º grupo – crianças e adolescentes negros e pobres,
moradores de favelas da zona norte e periferia da cidade do Rio, no período de implementação da
Operação Rio Verão, entre 2014 e 2016.

“(...) por um lado, o estudo das técnicas políticas (como a ciência do policiamento) com
as quais o Estado assume e integra em sua esfera o cuidado da vida natural dos

74
Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social desde 2012 a atual.
98

indivíduos; por outro, o estudo das tecnologias do eu, através das quais se realiza o
processo de subjetivação que leva o indivíduo a vincular-se à própria identidade e,
conjuntamente, a um poder de controle extremo” (AGAMBEN, 2012, p. 13).

A escritora Eliane Brum traduz muito bem o que destacamos nesse capítulo, no seu artigo
“ECA do B75”, publicado na coluna opinião do Jornal El País, no dia 28 de setembro de 2015, e
discorre sobre a morte matada de 06 crianças pela polícia militar em incursões nas favelas, e do
caso da retirada de adolescentes dos ônibus indo para as praias da zona sul do Rio. O ECA do B é
uma analogia às avessas do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). No decorrer desse
capítulo, iremos incorporando as seis Leis definidas pela autora, e abaixo destacamos a
introdução do artigo.

ECA do B
As crianças negras e pobres do Brasil só são achadas por bala perdida porque não sabem
ler o verdadeiro Estatuto da Criança e do Adolescente

Eliane Brum

Se as crianças negras e pobres tivessem aprendido a ler, não ficariam interrompendo o


tráfego com seus corpinhos escuros. Mas vão para escolas públicas bem equipadas, em
prédios planejados, cercados por jardins e quadras de esporte, com professores bem
pagos e preparados, em tempo integral, alimentadas com comida nutritiva e balanceada,
e nem assim conseguem ler direito. Só desperdiçam os impostos pagos por pessoas de
bem, como eu. Preferem ficar em seus barracos sufocantes, em ruas esburacadas e sem
árvores, por mau gosto. Impressionante o mau gosto das crianças pobres e negras, uma
coisa que vem de berço, mesmo, basta ver como se vestem mal. Por isso, não
compreendem o Estatuto da Criança e do Adolescente. Não a bobajada aprovada nos
anos 90, por aquele monte de babacas que ficam choramingando até hoje porque a
ditadura torturou e matou uns milhares de comunistas. Matou foi pouco! Estou falando
do verdadeiro Estatuto da Criança e do Adolescente, o que não foi feito por gente que
ficou desperdiçando anos estudando para proteger direitos humanos de bandidinhos.
Como se crianças negras e pobres fossem humanas! Estou falando do ECA que vale, o
das ruas, a lei na prática, mesmo. O outro, o oficial, é só pra botar na biblioteca daqueles
intelectualóides de esquerda, pra encherem aquela boca mole de porcaria politicamente
correta e se exibirem em reunião da ONU. Se os moleques soubessem ler e soubessem o
seu lugar, estariam aí, vivos, pra ficar chapinhando no esgoto, como gostam. Como não
tenho estômago pra sujeira na via pública, resolvi sistematizar a lei em vigor e fazer o
manual de 2015, versão atualizada, para ver se param de emporcalhar o chão com seus
miolos. Uma coisa bem didática, bem simples, pra que mesmo uma raça inferior consiga
entender. Vou botar nome em cada uma delas, pra ver se fica mais fácil de entrar nessas
cabecinhas cheias de maconha. Tipo, lembra do caso, associa com a lei, não faz merda,
tudo resolvido. Como no ano que vem tem Olimpíada e não quero que os gringos
pensem que aqui não tem lei, me restringi ao Rio de Janeiro. Se cada um fizer a sua parte
pra higienizar a cidade, o Brasil ainda pode brilhar.

75
Publicado em: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/09/28/opinion/1443448187_784466.html .
99

4.1 A Primeira Solução / Pratica 1 : Expulsão / Recolhimento / Retirada forçada


Operações de recolhimento, Operação Presente, Operação Verão

Márcia – Já te tiraram da rua contra a sua vontade?


R. – Já.
Márcia – Quem fez isso?
R. – Polícia, o Guarda.
Márcia – Você já passou por muitas operações de recolhimento de
crianças e adolescentes?
R. – Já, em São Cristóvão, Feira dos Paraíbas, muitas vezes. Os guardas
P2 vinham disfarçados, pegavam nós, batiam, a gente tentava correr, mas
eles batiam.
Márcia – E como era isso, como você se sentia quando eles chegavam?
R. – Eu ficava com medo.
Márcia – Nessas operações, quem fazia parte? Era a polícia? Era também
o pessoal da Prefeitura? Quem vinha junto com a polícia?
R. – Era a Prefeitura, os Guardas Municipal, polícia, policial disfarçado.
Essas pessoas assim. Os caras que vinham com os policiais já vinham
batendo já.
Márcia – Eles já chegavam batendo, quando?
R. – Chegava nós dormindo, botava fogo nas nossas coisas, nas nossas
cobertas, na nossa roupa, no nosso negócio todo. Aí a gente ficava sem
coisa pra dormir. Aí a gente se revoltava, os moleques queriam roubar,
porque eles queimavam, já chegava batendo igual no Padre76, aí os
moleque se revoltava e queriam roubar os pessoal, entendeu? Eles
chegavam batendo, queimando tudo, e os moleques não gostavam.
Márcia – E como você se sentia vendo essas coisas, a polícia chegando
dessa forma violenta, batendo, queimando as coisas?

76
Neste caso, o entrevistado está fazendo uma referência ao Instituto Padre Severino, porta de entrada, uma unidade
de internação para adolescentes infratores no Rio de Janeiro. Atualmente, esta unidade chama-se Dom Bosco.
100

R – É um negócio muito ruim, muito triste. Eu sentia assim uma coisa que
eu queria que isso nunca mais vai acontecer na minha vida, uma tragédia
dessa77.

Uma cidade localizada entre o mar e a montanha, visitada por pessoas do mundo inteiro,
tão bela que é chamada “Maravilhosa”. Porém, por trás do véu que a encobre vislumbram-se
muitas mazelas, violência e opressão. Possuidora de uma das maiores desigualdades sociais do
mundo78, que convivem lado a lado, o Rio de Janeiro desnuda-se e mostra que não é tão
maravilhoso assim.
O Rio de Janeiro tem um histórico de práticas de controle e repressão contra a população
considerada “perigosa”, caracterizada pela expulsão dessas pessoas, principalmente crianças e
adolescentes em situação de rua, dos espaços urbanos considerados territórios nobres - áreas do
Centro e Zona Sul da cidade. Esse histórico de expulsões, que nessa tese identifico nas operações
de recolhimento da população em situação de rua, a Operação Rio Verão e Operações Presente,
realizadas o primeiro pelo Governo Municipal, e as duas últimas pelo Governo Estadual em
parceria com o Municipal do RJ, com a participação de agentes de segurança (polícia militar e
guarda municipal), serão descritos ao longo desse subcapítulo. Mas, cabe destacar que, apesar da
prática de expulsar as pessoas consideradas “perigosas”, ou “indesejáveis”, fazerem parte do
histórico da cidade do Rio de Janeiro, faço um recorte a partir de 2001 até 2016, destacando,
principalmente, o período que começa em 2011, já com a preparação da cidade do Rio de Janeiro

77
Transcrição de Entrevista feita com o adolescente R., 15 anos, que está em situação de rua há alguns anos, e é
atendido por uma das Instituições que integram a Rede Rio Criança.
78
Um novo relatório da ONG britânica Oxfam a respeito da desigualdade social no Brasil mostra que os seis
brasileiros mais ricos concentram a mesma riqueza que os 100 milhões de brasileiros mais pobres. Os dados estão
no relatório A Distância Que Nos Une, lançado no dia 25/09/17, pela Oxfam Brasil.

A conclusão tem origem em um cálculo feito pela própria ONG, que compara os dados do informe Global Wealth
Databook 2016, elaborado pelo banco suíço Credit Suisse, e a lista das pessoas mais ricas do mundo produzida
pela revista Forbes. Segundo a Forbes, Jorge Paulo Lemann (AB Inbev), Joseph Safra (Banco Safra), Marcel
Hermmann Telles (AB Inbev), Carlos Alberto Sicupira (AB Inbev), Eduardo Saverin (Facebook) e Ermirio Pereira
de Moraes (Grupo Votorantim) têm, juntos, uma fortuna acumulada de 88,8 bilhões de dólares, equivalente a 277
bilhões de reais atualmente. Relatório também mostrou que os 5% mais ricos detêm a mesma fatia de renda que os
demais 95% da população. A Oxfam lembra em seu relatório que, ao longo das últimas décadas, o Brasil conseguiu
elevar a base da pirâmide social, retirando milhões da pobreza, mas que os níveis de desigualdade ainda são
alarmantes. “Apesar de avanços, nosso país não conseguiu sair da lista dos países mais desiguais do mundo. O
ritmo tem sido muito lento e mais de 16 milhões de brasileiros ainda vivem abaixo da linha da pobreza”, explica
Katia Maia, diretora-executiva da ONG. Publicado em: https://www.cartacapital.com.br/economia/seis-brasileiros-
tem-a-mesma-riqueza-que-os-100-milhoes-mais-pobres.
101

para os Megaeventos (Copa do Mundo, em 2014, e Olimpíadas, em 2016), também época da


implantação da Resolução 20/2011 da Secretaria Municipal de Assistência Social – que criou e
regulamentou o Protocolo do Serviço Especializado em Abordagem Social, um documento de
governo de flagrante desrespeito à Constituição Federal do Brasil e à normativas nacionais e
internacionais. Na época, observamos um recrudescimento nas práticas de recolhimento e
internação compulsória nunca antes visto por defensores de direitos humanos de crianças e
adolescentes, uma perigosa aproximação com as soluções / práticas adotadas em regimes
totalitários, de exceção como os nazifascistas. Esse recrudescimento nas práticas se deu tanto
junto às crianças e adolescentes em situação de rua, como às de favelas e periferias da cidade -
adolescentes negros e pobres, quando saíam de suas comunidades e ganhavam o “asfalto”, as ruas
das zonas nobres e praias da cidade79.
Estaríamos vivenciando o anúncio de um estado de exceção não declarado, mas apenas
para um grupo específico? Para os “sujeitos indesejáveis”, o estado de exceção já há algum
tempo se faz presente em suas vidas, em seu cotidiano. São eles os primeiros grupos sociais que
sentem na pele o endurecimento de tais práticas do obscurantismo do aparelho do estado. São
eles que sentem na pele, não outros, a discriminação racista que aparta seres humanos e os
desumaniza. Desde pequenos, vivenciam a suspensão de seus direitos quando são tratados como
cidadãos de segunda classe, perigosos, por carregarem um trinômio que a história os
estigmatizou, e foram reduzidos nas palavras do Governador do Estado do Rio de Janeiro, Pezão:
“Se é jovem, negro e pobre, é ladrão80!”
Fica aqui o alerta, pois está acesa a luz amarela!
Para se entrar na discussão das práticas abusivas adotadas pelos governos do Estado e do
Município do Rio de Janeiro no enfrentamento da situação de rua de crianças e adolescentes é
também fundamental saber o que este público tem a nos dizer sobre essas ações das quais são as
maiores vítimas. Ouvi-los sempre foi um princípio básico no trabalho de educação social de rua,
adotado por educadores sociais, no âmbito do movimento social de defesa dos direitos humanos
de crianças e adolescentes. Princípio este raramente adotado pelos gestores e executores dessas

79
A expulsão desse 2º grupo social (adolescentes negros e pobres, moradores de favela e periferia) das áreas nobres
da cidade do RJ iremos analisar no período compreendido entre 2014 a 2016, com a implantação da chamada
Operação Rio Verão.
80
Publicado em: http://www.brasil247.com/pt/247/favela247/194180/para-pez%c3%a3o-se%c2%a0%c3%a9-jovem-
preto-e-pobre-%c3%a9-ladr%c3%a3o.htm
102

práticas que, em sua emergência em dar respostas à sociedade, muitas vezes reproduzem o que a
história já comprovou que não traz resultado algum de promoção na vida dessas pessoas: o
recolhimento arbitrário e violento, de viés higienista, de crianças e adolescentes em situação de
rua.
Importante destacar as contradições e diferenças de concepção entre dois termos
antagônicos, empregados no desenvolvimento do trabalho de abordagem social junto às crianças
e adolescentes em situação de rua, quando realizado por segmentos distintos, Governo e
Sociedade Civil, porém, de acordo com o segmento a que se pertença, pretendem significar a
mesma ação: Acolhimento81 X Recolhimento82.
Designado como “acolhimento” pelo Governo, por entenderem que as ações de retirada
da população das ruas é uma forma de proteção e garantia de direitos dessas pessoas, mesmo que
em algumas dessas ações sejam necessárias o uso da força policial, para, segundo o Governo,
salvaguardá-las do perigo a que estão expostos nas ruas, encaminhando-as para as chamadas
Centrais de Recepção e posterior para abrigos. E, designado como “recolhimento” pela sociedade
civil, por entenderem que as ações de retirada forçada da população das ruas, são ações que tem
por objetivo tirar essas pessoas de circulação, limpar o espaço urbano, no sentido de ser uma ação
arbitrária e truculenta impetrada pelo Governo do RJ (Municipal e/ou Estadual), geralmente
acompanhada por forte aparato policial, junto à população que se encontra nas ruas.
Cecília Coimbra (2001) destaca a contradição existente na ação de “acolher” feita com a
presença da polícia:

(...) Entretanto o trabalho desses policiais, desde sua criação no século XIX, é o de
controlar as desordens, os tumultos urbanos e a criminalidade. Pesquisa realizada por
Bretas (1997), (...) no período de 1907 a 1930, constatou a preocupação com
vagabundos, alcoólatras, estrangeiros, mendigos e população pobre em geral,
considerados os principais problemas da cidade. A criminalidade ligada à miséria
também se manifesta nessa situação, pois as teorias racistas, eugênicas e higienistas
condicionam fortemente os estudos criminológicos da época, especialmente quando se
identifica com os “tipos de comportamento ameaçador” encontrados na cidade
(COIMBRA, 2001, p.103).
(...) Segundo ainda Bretas (1997), (...) as principais preocupações da polícia, na primeira
década dos novecentos, é marcada pelo controle sobre “a vadiagem e os menores
abandonados” (Idem, p.103-104).

81
Acolhimento: No Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa, o termo acolhimento está relacionado ao “ato ou
efeito de acolher; recepção, atenção, consideração, refúgio, abrigo, agasalho”.
82
Recolhimento: No Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa, o termo recolhimento está relacionado ao “ato ou
efeito de recolher, tirar de circulação, local onde se recolhe alguém ou algo.
103

Observa-se a permanência, até os dias de hoje, dessa lógica na atuação policial junto à
população em situação de rua, destacando crianças e adolescentes, por isso, avaliamos como
contraditório designar por “acolhimento” uma ação com a presença de policiais.
Nesse sentido, considero que o termo correto a ser utilizado seja o de “recolhimento”, que
defino como as ações do poder público de retirada compulsória, arbitrária e violenta da
população em situação de rua, em especial, crianças e adolescentes, com a participação da
polícia e/ou guarda municipal (GATTO, pág.64, 2011)83. Na verdade é uma resposta do Estado
aos anseios de uma sociedade que quer vê-los longe de sua vista, de suas praças, calçadas e
avenidas. É uma resposta que tem sido dada ao longo do tempo aos clamores da sociedade por
segurança, lei e ordem na cidade, porém sem resultados concretos de promoção na vida dessas
pessoas que são recolhidas.

(...) recolhimento pra mim virou uma rotina. A minha visão, vou falar como menina de
rua naquele momento, para mim era muito chato, era um incômodo, porque eles
pegavam e levavam a gente para o abrigo. Se eu quisesse um abrigo eu procurava, se
quisesse estar em casa, eu estaria em casa. E eram muito agressivos, batiam na gente na
Kombi. Então, polícia e recolhimento era o inimigo número 01. Da forma que eles
pegavam... (...) “Entram todos na Kombi e não me façam correr. Se me fizerem correr,
eu vou enfiar a porrada!”. Eu me sentia usada, abusada. Eu me sentia... era como se
84
fosse uma pessoa me estuprando... .

O panorama político partidário na gestão, seja municipal, estadual ou federal, tem relação
direta com os interesses, as escolhas políticas e ideológicas que se faz na priorização de políticas
públicas, planos e ações implementadas pelas instâncias de poder. Em relação à população em
situação de rua, há muita negligência e falta de interesse político por parte das 03 instâncias
quando da implementação de políticas públicas que realmente respondam às necessidades desse
público, que com certeza não é “porrada” e encarceramento!
Não existem dados quantitativos confiáveis, pois ao longo desse período, as metodologias
de pesquisa aplicadas foram inadequadas. Os levantamentos que foram feitos de 2001 a 2017,
segue abaixo:

83
GATTO, Márcia. Dissertação de Mestrado “O outro lado de uma política de governo na reprodução e
perpetuação de desumanidades; o recolhimento de crianças e adolescentes em situação de rua na cidade do RJ”,
Programa de Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH), UERJ, 2012.
84
Parte da entrevista transcrita de Aline Travassos, à época (2011) com 21 anos. Tem um histórico de 11 anos em
situação de rua (dos 07 aos 18 anos), passou por vários abrigos e Instituições. Em 2011 foi contratada pela
Associação Amar como Auxiliar de Educação, e conseguiu bolsa para estudar na Faculdade de Direito.
104

Tabela 1 - População de Rua do Município do RJ – Cri/Adol em situação de rua


ANO FONTE Nº TOTAL Nº CASR OBS
2001 Rede Rio Criança 2.500 a 3.000 No ano de constituição
(RRC) da RRC, não havia
dados sobre o
quantitativo de cri/adol
em situação de rua na
cidade do RJ. As
instituições da RRC
trabalhavam com esse
indicativo.
2006 Levantamento 1.682 248 (14,37%) Esse dado foi muito Nesse ano, foi
População de Rua pessoas nas são crianças e questionado pela RRC realizado
(SMAS) 2006 áreas adolescentes na época, pois apenas Mapeamento RRC
pesquisadas os dados de duas de 2006: 400
suas instituições já instituições
superavam esse cadastradas no
número. CMDCA, apenas 20
atuavam com CASR,
sendo que destas,
somente 07
diretamente com
abordagem de rua.

2010 Censo Nacional Município 21,2% = 1.018 O Censo Nacional foi


2010 (Secretaria do RJ - cri/adol considerado uma
Nacional de 5.091 metodologia ineficaz,
Direitos Humanos) por isso foi
desconsiderado.
2013 Censo SMDS 2013 5.580 1,1% - 0 a 11 Dado foi criticado
anos pelas instituições da
5,6% - 12 a 17 sociedade civil com
anos atuação direta com esse
Total: 368,28 público (crianças e
cri/adol entre 0 adolescentes).
e 17 anos)
2017 Censo SMAS 2017 15.000 O Censo não Observamos no
(Adultos e discriminou cri/adol período um grande
Cri/Adol) aumento no número
da população em
situação de rua,
principalmente
adultos, na cidade do
RJ. A crise
econômica é a
principal causa.
105

4.1.1 Um olhar sobre as operações de recolhimento de crianças e adolescentes em situação de


rua, nas gestões de César Maia (2001 a 2008) e de Eduardo Paes (2009 a 2016) na
Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro85

Para um maior entendimento e compreensão desta realidade, necessário abordar os


diferentes fatos sociais e políticos que fazem parte da história recente e seus desdobramentos,
assim como os Gestores da cidade do Rio de Janeiro ao longo do período estudado, das políticas
públicas de cidade adotadas, destacando as operações de recolhimento (2001 a 2016) e Plano
Verão86, executadas pelo Governo Municipal, e das Operações Rio Verão87 (2014-2016),
executadas pelo governo do Estado, em parceria com o município do RJ, e as operações
realizadas pelo Estado em parceria com o setor privado, como as Operações Presente (2015 –
2016).
Politicamente, o Rio de Janeiro não tem sido gerido por partidos considerados
progressistas, de esquerda. Acompanhamos, há muito tempo, a eleição de representantes de
partidos tidos como conservadores, e mesmo de direita, na gestão da Prefeitura da cidade do Rio.
Consideraremos dois períodos de Gestão: César Maia (2000 a 2008) e Eduardo Paes (2009 a
2016), fazendo-se importante a contextualização política do que, quando e de quem falamos.
César Maia, apesar de ter tido um histórico inicial de esquerda no PDT 88 de Leonel Brizola, foi
eleito pela 2ª vez à gestão da Prefeitura do RJ em 2000 (teve sua primeira gestão como prefeito

85
A primeira parte deste subcapítulo tem base em minha dissertação de Mestrado “O outro lado de uma política de
governo na reprodução e perpetuação de desumanidades; o recolhimento de crianças e adolescentes em situação
de rua na cidade do RJ”, Programa de Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH), UERJ, 2012, atualizada no
período posterior à sua defesa.
86
A Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social – SMDS implementou em setembro de 2015 o “Plano Verão”,
como forma de acompanhar, ou dar retaguarda para a Operação Verão. O Plano verão contaria com o plantão de
profissionais da assistência social em tendas espalhadas nas praias do Rio de Janeiro. Em uma reunião convocada
pelo Conselho Regional de Serviço Social do Rio de Janeiro (realizada em outubro de 2015) para tratar sobre a
atuação dos assistentes sociais, houve o relato de que na primeira ação realizada no fim de semana houve o
recolhimento de 38 crianças e adolescentes, dos quais a maioria era adolescente. Dos 38, nenhum tinha motivo para
ser recolhido pela PM. Apenas quatro possuía cadastro de atendimento na rede socioassistencial.
87
Operações Verão, executadas pelo aparelho do Estado, principalmente Polícia Militar, em parceria com a Guarda
Municipal do Rio, adotadas a partir de 2014 (?), no período do verão (ou mesmo entre meados da primavera e
verão).
88
PDT – Partido Democrático Trabalhista.
106

do Rio no período de 1993 a 1996), quando já havia migrado para o PFL89, um partido que
substituiu o PDS90, anteriormente (até 1980) denominado Arena91, que foi, notoriamente, um
partido de direita que apoiou o Golpe Militar de 1964, responsável pela implantação da Ditadura
Militar no Brasil. O PFL foi um partido também reconhecido por abrigar os chamados “coronéis”
(derivação do coronelismo, que foi um sistema de poder político da velha República concentrado
nas mãos de um poderoso local). No meio do mandato, César Maia migrou para o PTB92 e, em
2005, foi para o DEM93, partido que substituiu o PFL, o qual permanece até hoje. Eduardo Paes
começou sua carreira política como subprefeito da Barra da Tijuca, na primeira gestão de César
Maia, permanecendo entre 1993 – 1996, quando foi eleito Vereador pelo PFL. Em 1998 foi eleito
Deputado Federal e, no ano seguinte, migrou para o PTB. Com a segunda eleição de César Maia,
em 2000, foi nomeado Secretário Municipal de Meio Ambiente e, em 2001, retorna ao PFL.
Reeleito Deputado Federal, ingressa no PSDB94 em 2002, e seu mandato tem destaque por uma
ferrenha campanha contra o então Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Em 2007, migra para o
PMDB95, apoiado por Sérgio Cabral para concorrer à Prefeitura do Rio, passando então a apoiar o
Presidente Lula96. Prefeito eleito para gestão 2009 - 2012 concentrou sua atuação no chamado
“Choque de Ordem97”, sua principal bandeira, quando criou a Secretaria Municipal de Ordem

89
PFL – Partido da Frente Liberal.
90
PDS – Partido Democrático Social.
91
ARENA – Aliança Renovadora Nacional.
92
PTB – Partido Trabalhista Brasileiro.
93
DEM – Abreviação de Democratas, partido que substituiu o PFL.
94
PSDB – Partido da Social Democracia Brasileira.
95
PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro.
96
Importante ressaltar que o PMDB foi um partido organizado em fins de 1965 (àquela época denominado MDB),
que abrigou os opositores ao regime militar e foi base para a constituição de vários outros partidos políticos de
esquerda. Ainda é um partido hegemônico, no entanto, perdeu muitos de seus ideais partidários originais,
concentrando uma elite conservadora e de direita.
97
Choque de Ordem - Um fim a desordem urbana. A desordem urbana é o grande catalisador da sensação de
insegurança pública e a geradora das condições propiciadoras à prática de crimes, de forma geral. Como uma coisa
leva a outra, essas situações banem as pessoas e os bons princípios das ruas, contribuindo para a degeneração,
desocupação desses logradouros e a redução das atividades econômicas. Com o objetivo de pôr um fim à desordem
urbana, combater os pequenos delitos nos principais corredores, contribuir decisivamente para a melhoria da
qualidade de vida em nossa Cidade, foi criada a Operação Choque de Ordem. São operações realizadas pela recém
criada Secretaria de Ordem Pública, que em um ano de existência vem conseguindo devolver à ordem à cidade.
107

Pública. Reeleito em 1º turno nas eleições de 2012, também com apoio do PMDB, concentra sua
2ª gestão (2013 – 2016) na preparação da cidade do Rio de Janeiro para os Megaeventos (Copa
do Mundo, 2014, e Olimpíadas 2016), com o comprometimento de deixar um legado para a
cidade. Muitas obras e melhorias, sim, foram feitas, mas à custa de muita exclusão, remoção,
violência, encarceramento e morte, como serão abordados ao longo desse capítulo.
Que tipo de racionalidade está presente quando o Estado define, e a sociedade naturaliza,
quem pode e quem não pode ocupar espaços urbanos e circular em determinadas áreas da cidade?
Quem define quem serão os primeiros a serem parados em blitz nas ruas, nas comunidades, ou
em transportes coletivos? Por que um determinado estereótipo é considerado perigoso?
No início dos anos 1990, tínhamos um grupo de meninos/as de rua, chamado “Núcleo de
base” da Comissão Municipal do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua. O Núcleo
era formado por 05 adolescentes: Jeovana, Ana Cláudia, Bilu, Baiano e Paulo César, esses dois
últimos moravam em um tipo de casa lar chamada “Casa e CIA”, em Copacabana, uma parceria
público-privada. Lembro-me que um dia organizamos um churrasco na casa da minha mãe, no
Meier. Divertimo-nos muito e, ao final, Eu e Futuro, demos para eles o dinheiro da passagem e os
levamos ao ponto do ônibus. Baiano e Paulo César pegariam o 455 (Meier – Copacabana) no
ponto final. Assim que os dois entraram no ônibus (vazio), não passaram na roleta, preferiram
ficar no último banco. Logo percebemos que aquela era uma estratégia do “calote”, ou seja,
sairiam fugidos pela porta de trás sem pagar a passagem. Educadores que somos, não poderíamos
deixar que corressem riscos ainda maiores, pois já bastava os seus “estereótipos”. Primeiro
mandamos que retirassem o boné e o cordão! Depois, que pagassem a passagem e sentassem na
frente. Era uma tentativa de ao menos preservá-los de uma possível blitz. A retirada / expulsão de
supostos criminosos de coletivos como forma de prevenção, ou seja, de adolescentes negros e
pobres, já era uma prática da polícia militar naquele tempo. Esse foi apenas um exemplo e, como
será apresentado nesse capítulo, veremos como essa mesma prática se recrudesceu com a
chamada Operação Verão, na cidade do Rio de Janeiro, a partir de 2014.

(Publicado em: http://www.rio.rj.gov.br/web/guest/exibeconteudo?article-id=87137 , em 16/09/2009. Acesso em


07/09/2016)
108

4.1.2 Gestão da Cidade e cronologia da Expulsão dos “sujeitos indesejáveis”

Ao entrarmos numa análise cronológica da gestão do 2º e 3º mandatos de César Maia na


Prefeitura do RJ98 (2000 a 2008), o Secretário Municipal de Assistência Social era Wagner
Siqueira. A conjuntura no ano de 2001, de acordo com o material analisado, nos mostra que a
violência (doméstica, e provocada pelo tráfico de drogas) aparece como uma das principais
dificuldades apontadas pelas Instituições que integravam a Rede Rio Criança (RRC)99, e
motivadora da ida dessas crianças e adolescentes para a rua. As dificuldades financeiras das
famílias também aparecem como uma das causas importantes de ida para as ruas. Nesse período,
o atendimento às crianças e adolescentes em situação de rua na cidade do Rio de Janeiro era
precário e inconsistente. O Governo Municipal não levava em conta as deliberações do Conselho
Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente100 (CMDCA Rio). A rivalidade entre
Organizações Governamentais (OGs) e Organizações Não Governamentais (ONGs), naquele
espaço de articulação política (CMDCA), era pública e notória, o que praticamente não mudou ao
longo desses anos de estudo. O Estado, através da Fundação para a Infância e Adolescência
(FIA), da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SMDS) e do Juizado da Infância e
Juventude, eram as Instituições responsáveis à época pela realização das operações de
recolhimento na cidade do RJ, feitas em sua maioria de forma arbitrária, e levados para
abrigos101, o que não garantia resultados eficazes, pois os meninos/as sempre regressavam às
ruas. Os abrigos para onde eram levados também não eram adequados, apresentavam-se em
condições precárias, tanto em sua estrutura física, como em pessoal técnico. A sociedade em
geral aparece como indiferente ao problema, e favorável à adoção de medidas repressivas, pois,
em sua maioria, não acredita no trabalho de ressocialização desses meninos e meninas.
Em relação às ONGs que atuavam com esse público, foi observado que havia grande
fragilidade no trabalho de abordagem de rua, uma dificuldade das Organizações realizarem um
98
O 1º mandato de César Maia na Prefeitura do RJ foi no período de 1993 a 1997.
99
A Rede Rio Criança é uma articulação de referência nacional no trabalho e defesa de direitos humanos de crianças
e adolescentes em situação de rua.
100
Órgão deliberativo, composto de forma paritária (OGs e ONGs), responsável pela formulação, monitoramento e
controle da política municipal para crianças e adolescentes nos municípios.
101
Abrigamento é medida excepcional e de urgência, de acordo com o Artigo 93 do ECA.
109

trabalho mais sistemático nas ruas com os meninos devido à falta de financiamento para essa área
de atendimento, muitas tendo que reduzir o número de profissionais, o que refletia na qualidade
de suas ações. Pelo distanciamento entre as ONGs e inexistência de um trabalho integrado e
complementar, havia uma sobreposição de ações entre elas.
A Rede Rio Criança (RRC) surgiu nesse cenário, em meados de 2001, com o apoio da
Fondation Terre dês hommes (Tdh – Lausane/Suiça), como uma possibilidade real de intervenção
nesse quadro, através da proposta de articulação de um grupo de instituições que, a partir do
fortalecimento da abordagem de rua, visava a realização de um trabalho integrado e
complementar entre seus membros, para otimizar o atendimento às crianças e adolescentes em
situação de rua na cidade do RJ. A luta e pressão política também eram e sempre foram
entendidas como um elemento fundamental no âmbito da RRC, pela formulação e implementação
de políticas públicas eficazes junto a esse público. Essa proposta de ação conjunta foi muito bem
recebida pelo grupo de instituições, inicialmente formado por 13102 (10 ONGs, 02 OGs e o
CMDCA), pois garantiria uma revitalização do trabalho nas ruas e força política.

4.1.2.1 2002

Benedita da Silva, Vice Governadora do RJ, do Partido dos Trabalhadores (PT), com a
renúncia de Anthony Garotinho (PSB) para concorrer à Presidência da República, assume o
governo do Estado do Rio de Janeiro em abril de 2002. Cesar Maia era o então Prefeito da cidade
do Rio. Observamos um crescimento considerável de crianças e adolescentes nas ruas, quando
era estimada a presença de cerca de 2.000 à 3.000 delas nas ruas da cidade do Rio de Janeiro,
àquela época. Enquanto prática de enfrentamento à população em situação de rua, o recolhimento
de crianças e adolescentes era feito pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social
(SMDS), em parceria com a Fundação da Infância e Adolescência (FIA) e o Juizado da Infância e
Juventude (JIJ). FIA e SMDS desenvolviam em parceria o Projeto Meninos Família, e o JIJ o

102
Das 13 Instituições que inicialmente integrava a Rede Rio Criança, 07 delas realizavam trabalho direto com
crianças e adolescentes em situação de rua - 05 ONGs: Associação Beneficente São Martinho, Associação
EXCOLA, Associação Childhope, Criança Rio, Se Essa Rua Fosse Minha; e 02 do Governo: Fundação da Infância
e Adolescência (FIA – Estado), e Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SMDS - Município).
110

Projeto Resgate. De acordo com o relatório daquele ano da Rede Rio Criança, esses projetos
representaram um entrave no atendimento à esse público, pois provocava retrocessos, ou mesmo
uma ruptura no trabalho desenvolvido pelas ONGs junto às crianças e adolescentes em situação
de rua.
As principais dificuldades enfrentadas pelos Educadores Sociais na abordagem social de
rua, além das operações de recolhimento, era o uso/abuso de drogas (especialmente o tinner), o
crescente envolvimento dos meninos/as com o tráfico de drogas e o permanente aliciamento
desse público por adultos.
No ano de 2002, tivemos notícia do início da chamada Operação “Cata-Tralha”, nome
como ficou conhecida a operação que recolhia os moradores de rua e jogava todos os seus
pertences (documentos, roupas, aparelhos, medicamentos, etc.) nos caminhões de lixo, sem dar
nenhuma solução ou alternativa à problemática da vida nas ruas. Oficialmente designada como
Operação de Controle Urbano, era desenvolvida pela Prefeitura do Rio em parceria com a
Comlurb (Companhia Municipal de Limpeza Urbana) e Guarda Municipal.
No segundo semestre daquele ano, foi instaurada a Comissão Parlamentar de Inquérito
(CPI) da População de Rua, na Câmara Municipal de Vereadores, devido às várias denúncias de
instituições de direitos humanos103. Segundo essas instituições, as pessoas que eram vítimas
dessas operações, eram instadas a ir para longe do Centro do Rio de Janeiro, principalmente para
a Baixada Fluminense ou para o município vizinho de Niterói. De acordo com a Organização de
Direitos Humanos Projeto Legal, “existem acusações formais de agressão a essa população. Além
disso, o principal agente agressor é a Prefeitura, que vem desrespeitando os direitos fundamentais
dessas pessoas.”

4.1.2.2 2003

Em 2003, as mudanças ocorridas nos governos federal e estadual foram fatores


provocadores de uma postura de observação com relação às políticas que seriam adotadas.
Vivenciamos a reedição das ações de recolhimento de crianças e adolescentes nas ruas. Em
103
As denúncias foram feitas principalmente pela Rede Solidariedade à População de Rua do RJ e Organização de
Direitos Humanos Projeto Legal.
111

contrapartida, as instituições da Rede Rio Criança demonstraram uma extraordinária capacidade


de mobilização contra essas operações, realizando atos públicos e ações civis públicas.
Ao Governo do Estado do Rio de Janeiro, foi eleita a Governadora Rosinha Garotinho
(PSB) substituindo a então governadora Benedita da Silva. Nesse ano tem início a implantação do
Programa Tolerância Zero, importado da cidade de Nova Iorque, nos Estados Unidos. No Rio de
Janeiro, o Programa foi incorporado através da chamada Operação “Zona Sul Legal”, criada e
coordenada pelo governo do Estado para retirar de forma compulsória camelôs, crianças,
adolescentes e adultos em situação de rua nos bairros de Copacabana, Ipanema, Leblon e Gávea,
responsabilizando esse grupo pela situação violenta daquelas regiões.
O Estado, em parceria com o Município do Rio, gastou um valor previsto de R$ 360
milhões com o projeto, que contou com o reforço de 1.100 novos policiais, bem como a
instalação de 500 câmeras de segurança, em pontos estratégicos, como, por exemplo, em frente
aos principais hotéis da zona sul. Policiais militares, guarda municipal, representantes do Juizado
da Infância e Juventude e da extinta Fundação Leão XIII, também participavam da operação.
Segundo o governo do RJ, a ideia era criar “um anel de tolerância zero contra os pequenos crimes
de rua”.
O Zona Sul Legal foi duramente criticado na audiência pública realizada pelas comissões
de Direitos Humanos e de Assuntos da Criança, Adolescente e Idoso da Assembleia Legislativa
do Estado (ALERJ), realizada naquele ano. Segundo entrevista publicada no Jornal do Comércio,
em 09 de setembro de 2003, representantes do Juizado da Infância e Juventude e da Prefeitura
consideraram que o trabalho era desarticulado, o que transformava o Zona Sul Legal em um
programa sem perspectiva de sucesso. O Juiz da 1ªVara da Infância e Juventude à época, Siro
Darlan, nessa entrevista, comentou que os abrigos não tinham condições de receber a população
de rua, pois não promoviam programas de apoio aos usuários de drogas e nem de reestruturação
familiar. Disse ele: “Sabemos que 85% a 90% dos recolhidos retornam às ruas. Ou voltam à Zona
Sul ou vão para a Zona Norte. Não ficam nos abrigos porque as ações para mantê-los são
ineficientes ou não existem. Por enquanto, o Zona Sul Legal está sendo um programa de fachada,
voltado ao embelezamento da cidade”, criticou Siro Darlan.
Também de acordo com a entrevista do Jornal do Comércio, a Assistente Social Tânia
Melo, representante do Secretário Municipal de Desenvolvimento Social da época, Wagner
Siqueira, sobre esse projeto fez a seguinte crítica: “A operação é coordenada pelo Governo do
112

Estado e, apesar de ter a participação da Prefeitura, nós, técnicos, somos contra o modelo adotado
porque todas as cláusulas participativas foram rompidas. Fazemos oposição ao recolhimento
truculento, executado sem vínculo técnico e educador. Estamos soterrados por esta operação,
clamando para que seja encerrada. O trabalho é totalmente desarticulado por isso, sem efeitos
positivos”.
As situações criadas pelos recolhimentos provocaram debates no âmbito interno da Rede
Rio Criança que levaram à construção de ações conjuntas em áreas críticas, como o Centro da
cidade e Zona Sul. É importante destacar que os sucessivos recolhimentos da população de rua
ocorridos no Município do Rio de Janeiro, ao longo do período, prejudicaram a intervenção dos
educadores sociais nas ruas, pois causaram não só a dispersão dos meninos/as, como também um
retrocesso no atendimento e nos vínculos adquiridos.
Um fato marcante naquele ano mobilizou as Instituições de defesa dos direitos humanos:
uma ação violenta de um policial militar na porta da Associação Beneficente São Martinho, na
Lapa, com disparos de arma de fogo, em perseguição a um grupo de meninos. Felizmente,
ninguém sofreu ferimento grave, mas foram encontrados projéteis na fachada do prédio da
Instituição. Diante do ocorrido, foi articulada, em regime de urgência, uma audiência com o Juiz
da I Vara da Infância e de representantes do Ministério Público, Executivo Estadual e Municipal,
Órgãos de Segurança Pública (Polícia Militar, Polícia Civil e Guarda Municipal) e várias
organizações da Sociedade Civil, como forma de denunciar o fato e cobrar providências.
Também foi produzido e distribuído material nas áreas de atuação das Instituições da Rede Rio
Criança (Centro, Zona Sul, Maracanã e Tijuca), objetivando esclarecer e sensibilizar a população
quanto aos malefícios das operações de recolhimento. No entanto, a maioria da população era
favorável ao Zona Sul Legal.
O ano de 2003 também foi marco dos 10 Anos da Chacina da Candelária 104, quando
foram realizados vários eventos, como Missa, passeata, manifestações de protestos e divulgação
de Carta Manifesto contra as ações de recolhimento promovidas pelo Poder Público com a
participação de policiais.

104
Na madrugada de 23 de julho de 1993, em frente à Igreja da Candelária, policiais abriram fogo contra mais de 70
pessoas que estavam dormindo nas proximidades da Igreja. Era a “Chacina da Candelária”, quando 08 jovens
foram barbaramente assassinados aos pés do centro comercial e religioso da cidade do Rio de Janeiro. Desde então,
o Movimento Candelária Nunca Mais!, formado por várias Instituições e segmentos da sociedade civil
organizada comprometidos com a defesa dos direitos humanos de crianças e adolescentes, realiza manifestações
contra a Chacina.
113

Num mundo globalizado, não apenas nas práticas, mas também nas ideias, as operações
de controle e repressão nos moldes do “made in USA”, foram disseminadas e sobrevivem. O
programa Tolerância Zero, originário dos EUA, foi implantado na cidade do RJ no início dos
anos 2.000. Rudolf Giuliani, prefeito da cidade de Nova Iorque à época de criação do programa
Tolerância Zero, seria então convidado pelo Prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, em 2010,
para ser consultor de segurança pública, o que mais uma vez iria reforçar a lógica de utilização
das práticas de controle e repressão junto àqueles considerados “perigosos”.
As consequências deste modelo de intervenção em países como Estados Unidos e
Inglaterra fizeram com que crescesse vertiginosamente os índices de encarceramento da
população, especialmente de negros e imigrantes (Wacquant, 2001).
O Tolerância Zero encontrou apoio na sociedade mundial, apavorados com a escalada dos
crimes, mas também influenciados por ideias conservadoras e discriminatórias do tipo:

(...) a excessiva generosidade das políticas de ajuda aos mais pobres seria responsável
pela escalada da pobreza (...): ela recompensa a inatividade e induz à degenerescência
moral das classes populares, sobretudo essas uniões ilegítimas que são a causa última de
todos os males das sociedades modernas – entre os quais a violência urbana
(WACQUANT, 2001, p.22).

Ou ideias ainda piores que reforçam ideais racistas,

que sustentam que as desigualdades raciais e de classe na América refletem as diferenças


individuais de capacidade cognitiva. (...) o quociente intelectual determina não apenas
quem entra e tem êxito na universidade, mas ainda quem se torna mendigo ou milionário
(...). O QI também governa a propensão ao crime e ao encarceramento: alguém se torna
criminoso não porque sofre de privatizações materiais (...) (WACQUANT, 2001, p.24).

É interessante relembrar que argumentações como essas, de teor racista, também foram
observadas em períodos do nazifascismo, quando estudos científicos foram feitos em humanos
determinando padrões de normalidade e anormalidade, inteligência e ignorância, criminoso
potencial ou não, de acordo com formatos do rosto, nariz, queixo, cérebro, etc.
No Brasil, em 2008, pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em
parceria com pesquisadores da PUC (RS), idealizaram um polêmico projeto de pesquisa que
propunha mapear o cérebro de adolescentes que cometeram atos infracionais violentos, para
observar possíveis diferenças no cérebro destes jovens em relação aos adolescentes considerados
“normais”, para determinar a propensão daqueles jovens ao crime. Segundo Renato Zamora
114

Flores, Doutor em genética e biologia molecular, um dos líderes desse projeto, comentou que “a
nossa hipótese, que já está na literatura, é a de que encontraremos uma diminuição do
funcionamento de algumas áreas do cérebro105”. Esse projeto foi muito criticado e nos remete às
mais arcaicas e retrógradas práticas eugenistas do início do século XX, lembrando a teoria de
Lombroso, que fez com que grande número de pessoas fossem mortas na segunda guerra mundial
por terem traços de sua feição, como tamanho dos maxilares e crânio, identificado por Lombroso
como o de pessoas criminosas.

4.1.2.3 2004

Mudança na Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SMDS) que, com a


entrada do novo Secretário Marcelo Garcia, conhecido como um defensor tenaz do Sistema
Único de Assistência Social (SUAS), a então SMDS, passa novamente a ser chamada de
Secretaria Municipal de Assistência Social (SMAS). A Prefeitura do Rio de Janeiro, ao contrário
do Governo Estadual, sinalizava com mudanças na abordagem às crianças e adolescentes em
situação de rua, não recorrendo a ações repressivas do recolhimento compulsório, passando a
adotar uma metodologia similar à utilizada pelas Instituições da RRC, uma abordagem
processual, dentro de parâmetros da Educação Social de Rua. A SMAS implementou o Projeto
Trupe da Criança (projeto que tinha como base a Arte Educação). As crianças e adolescentes em
situação de rua eram acolhidos pelos Educadores da Trupe durante a manhã, passando o dia
realizando atividades recreativas e culturais, e liberadas no final da tarde. A família da criança
cadastrada no projeto recebia, no final de cada mês, uma bolsa auxílio.
Embora fosse considerada uma boa iniciativa da Prefeitura, a concepção metodológica
deixava dúvidas quanto à sua eficácia, pois não era desenvolvido um trabalho que possibilitasse
uma real saída ativa da ruas106, nem a promoção dessas crianças.

105
Entrevista publicada na edição do boletim Promenino (ANDI), de 11 de maio de 2008.
106
Saída ativa das ruas significa a realização de um trabalho processual que garanta a promoção destas crianças e
adolescentes para uma alternativa diferente às ruas (reintegração familiar, busca de autonomia, etc.)
115

Em meados de 2004, a convite do Juiz da I Vara da Infância e Adolescência, Siro Darlan,


a RRC organizou, em parceria com a I Vara e o IBISS107, o ”Encontro de Meninos de Rua no
Club Med - A Convenção do Avesso & O Aveso da Convenção“, que teve como objetivo a
discussão da eficácia das politicas públicas para crianças e adolescentes em situação de rua na
região metropolitana do Estado do Rio de Janeiro, bem como possibilitar a participação das
crianças e adolescentes em situação de rua. O Encontro contou com a presença de Juízes,
Promotores e representantes do Poder Público Estadual e Municipal. Participaram 30
meninos/as, que elaboraram um Manifesto no qual denunciaram diversas formas de violência a
qual estavam expostos nas ruas, inclusive promovidas pela polícia, denunciaram o Departamento
Geral de Ações Socioeducativas (DEGASE), e questionaram o modelo de atendimento oferecido
pelo Governo. O “Manifesto das Crianças e Adolescentes em situação de rua da cidade do Rio
de Janeiro” teve grande repercussão, e foi o principal motivo de saída da Fundação da Infância e
Adolescência (FIA), órgão do Estado, da RRC, alegando que não poderia continuar fazendo parte
de uma rede que questionava e denunciava ações do Governo do Estado, considerando-as
repressivas. Para a RRC, que incialmente pensava que poderia influenciar este órgão de Estado
na revisão de suas práticas, contribuindo, dessa forma, na incorporação de ações humanizadas e
de respeito aos direitos humanos, percebeu o quanto isso ainda estava distante. A RRC não
lamentou a saída da FIA de sua articulação, ao contrário.
Em setembro de 2004, documento elaborado pela Justiça Global e a organização Médicos
Sem Fronteiras (MSF) denunciava os maus-tratos que os moradores das ruas do Rio de Janeiro
continuavam sofrendo com a já mencionada operação “Cata-Tralha”, cujo suposto objetivo seria
retirar o entulho das ruas, mas que na realidade estava servindo como pretexto para retirar os
parcos pertences que os moradores de rua tinham. Susana de Deus, Coordenadora da Instituição
Médicos Sem Fronteiras à época, disse que “são recolhimentos forçados de bolsas com remédios,
laudos médicos, documentos e até dinheiro, numa atitude fascista da prefeitura do PFL108”.
Também no 2º semestre de 2004, a Secretaria Estadual de Segurança Pública, em parceria
com a SMAS, implementou duas novas operações de recolhimento: as chamadas “Operação Lapa
Limpa” (um nome com forte víeis higienista), no Centro da cidade, e “Operação Turismo
Seguro”, na Zona Sul, efetuadas pela Polícia Militar e Civil, recolhendo crianças e adolescentes

107
IBISS – Instituto Brasileiro de Inovação em Saúde Social.
108
Publicado em: <http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2004/09/290287.shtml> . Acesso em Julho/2011.
116

das ruas. Na operação Turismo Seguro, realizada em toda a orla marítima da cidade, as crianças e
os adolescentes recolhidos eram primeiramente cadastrados na Delegacia de Proteção à Criança e
ao Adolescente (DPCA) e, posteriormente, encaminhada para abrigos da Prefeitura, denotando o
caráter arbitrário e criminalizador desta prática, pois eram levadas para a delegacia sem terem
praticado delito, o que por si só fere a constituição brasileira e o ECA. A maioria delas não
permanecia nos locais, voltando às ruas.
Diante desse quadro, agravado pelo fichamento da meninada na Delegacia, já como,
segundo os executores das operações, “medida de prevenção contra a criminalidade”, a
Organização de Direitos Humanos Projeto Legal entrou com pedido de habeas corpus para
suspensão das operações de recolhimento. A Operação Turismo Seguro foi interrompida assim
que o recém-empossado Desembargador Siro Darlan concedeu a liminar no habeas corpus
interposto pelo Projeto Legal. A liminar, concedida no dia 24 de novembro daquele ano, proibia o
recolhimento de crianças e adolescentes nas ruas do Rio de Janeiro, baseando-se no princípio
constitucional de que ninguém pode ser preso se não em flagrante delito ou por mandado judicial.
A liminar causou grande polêmica e foi criticada por empresários do setor de turismo.
No dia 02 de dezembro, a Desembargadora Nilza Bitar acabou cassando a liminar, sob a
justificativa de violação de direitos humanos ao deixar crianças expostas a toda sorte de abusos
vivendo nas ruas. A Desembargadora determinou que as autoridades deveriam “apreendê-los e
tratá-los com dignidade, sem violência, mas com disciplina” para evitar riscos a si próprios e à
população. Na verdade essa foi mais uma forma de retirá-los das ruas. A apreensão desses
adolescentes sem o cometimento de ato infracional fere o que prevê a constituição brasileira. Em
nome da proteção, o Estado viola direitos.

CFB - Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do
direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes:

& LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e
fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de
transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei.

Naquele ano, foram realizados 02 atos públicos, sendo um contra a operação Turismo
Seguro, com distribuição da Carta aos Turistas, informando as arbitrariedades cometidas contra a
população de rua. Também foram organizadas pelas Instituições da RRC abordagens de rua
117

coletivas e mobilizações locais na Zona Sul, Centro e Tijuca. No entanto, observou-se a postura
conservadora e reativa da sociedade em relação às crianças e adolescentes em situação de rua,
responsabilizando-as pelo aumento da violência na cidade, que se fortaleceu com a forma
preconceituosa e criminalizadora com que a mídia tratou a questão. Tudo isso, demandou uma
maior repressão e controle desse público pelo Estado.

4.1.2.4 2005

Inicio do 3º mandato do Prefeito César Maia no município do Rio de Janeiro. Marcelo


Garcia se manteve enquanto Secretário Municipal de Assistência Social. No período,
observaram-se as dificuldades de interlocução com o Poder Executivo Municipal, em especial
com a SMAS, que não se mostrou aberta ao diálogo com a sociedade civil. A SMAS não
reconhecendo o papel do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente
(CMDCA) como órgão formulador, deliberador e controlador de políticas públicas na área da
criança e adolescência, associadas às sistemáticas operações de recolhimento, inviabilizaram o
estabelecimento de parcerias da Rede Rio Criança com o Governo. Como consequência, em
assembleia realizada pela RRC em outubro de 2005, foi deliberado por unanimidade a saída da
Secretaria Municipal de Assistência Social da Rede Rio Criança, devido manutenção de ações
que violam direitos humanos pela SMAS, como a prática sistemática do recolhimento de crianças
e adolescentes em situação de rua, feito de forma arbitrária e violenta com a presença da polícia.
Ainda naquele ano verificamos a falta de retaguardas e serviços públicos para o
atendimento desta população, o aliciamento de alguns meninos/as pelo tráfico, e o uso e abuso de
drogas pelos mesmos, quando foi trazido pela primeira vez por Educadores Sociais a questão do
uso do “crack” pelos menino/as, o que gerou uma grande preocupação entre os profissionais. O
ECA completaria 15 anos naquele ano, mas tínhamos muito pouco a comemorar. A luta ainda
seria pelo seu cumprimento.
118

4.1.2.5 2006

O ano foi marcado pela continuidade das operações de recolhimento na cidade do Rio de
Janeiro, apesar das ações civis públicas que foram impetradas. O Projeto Legal, enquanto Centro
de Defesa da Criança e do Adolescente, fez uma nova tentativa para inibir as operações de
recolhimento, encaminhando ao Supremo Tribunal Federal (STF) pedido de habeas corpus das
operações. O Ministério Público mostrou-se indiferente em relação às denúncias, e o Supremo
Tribunal Federal não respondeu ao pedido.
Havia, já naquele ano, uma grande preocupação com o recrudescimento das operações de
recolhimento da população em situação de rua devido à realização dos XV Jogos Pan-
Americanos, no ano seguinte, na cidade do Rio de Janeiro. A exemplo da ECO 92, com a
realização de grandes eventos observamos um grande número de violações, sobretudo pela
presença ostensiva das forças armadas e policial nas ruas.
A interlocução com o Poder Executivo Municipal, especialmente com a Secretaria
Municipal de Assistência Social, agravou-se muito ao longo do ano de 2006, praticamente
esgotando-se as possibilidades de diálogo. As relações OGs – ONGs no âmbito do CMDCA
acirraram-se muito. Com a manobra naquele ano da SMAS em manter sua antiga representação
na presidência do CMDCA, o Secretário Municipal de Assistência, Marcelo Garcia, realizou um
saque de R$ 2 milhões do Fundo Municipal da Infância e Adolescência, sem a devida deliberação
da Assembleia do Conselho de Direitos109. Flagrante retrato de arbitrariedade e do não
reconhecimento do CMDCA pelo Executivo Municipal, o fato gerou grande revolta entre as
organizações da sociedade civil, tencionando ainda mais as relações com a Secretaria.
Fragilizada, a sociedade civil teve dificuldades de mobilização e de responder com agilidade a
estas questões, perdendo, mais uma vez, espaço para o Governo, dificultando ainda mais a
implementação de políticas garantidoras de direitos.
É também nessa época que o Governo Municipal do Rio promoveu, através da SMAS, um
verdadeiro desmantelamento na Rede de Abrigos (públicos e privados). Muitas Instituições
perderam financiamento público e foram obrigadas a fechar. Um exemplo foi a Associação
Beneficente São Martinho, que fechou 02 de seus abrigos, permanecendo apenas com um. Isso
109
Destaca-se que é a SMAS, na pessoa do Secretário, é quem, administrativamente movimenta a conta do Fundo
Municipal da Infância e da Adolescência. O CMDCA, politicamente, é quem delibera sobre o Fundo.
119

gerou ainda maiores dificuldades no atendimento junto a essa população, com muitos dos
atendidos voltando para a rua, refletindo diretamente no trabalho de atenção e promoção
desenvolvido pelas ONGs.
As falas na gestão, acompanhadas da desarticulação e desmonte da rede pública de
serviços caminham em consonância com o projeto neoliberal, de esvaziamento ou redução das
atribuições do Estado. Essas ações podem ser consideradas como um tipo de barbárie, na medida
em que contribui e potencializa a exclusão e opressão de muitos indivíduos. Menegat (2006)
comenta que:

A sociabilidade articulada em torno da valorização do capital exclui milhões de


indivíduos de sua lógica social (...), assim como se articula com inúmeras outras formas
de opressão e preconceitos desvalorizadores de grupos sociais, etnias, gênero, etc
(MENEGAT, 2006, p.39-40).

Naquele ano, foi realizado pela Secretaria de Assistência o Levantamento da população


em situação de rua na cidade do RJ. Foram identificadas 1.682 pessoas nas áreas percorridas,
sendo que destas, 248 (14,37%) eram crianças e adolescentes. Apesar da importância da pesquisa,
pois é raro esse tipo de levantamento, assim como é muito difícil se ter certeza do número exato
desta população devido sua grande mobilidade, a Rede Rio Criança questionou esse número, pois
os dados sistematizados de apenas duas de suas Instituições que atuavam diretamente na rua com
os meninos/as somavam 598 crianças e adolescentes atendidas no mesmo período.
A contradição em relação ao dados quantitativos desse grupo social permanece, outras
poucas pesquisas foram realizadas na tentativa de se obter dados mais coerentes com a realidade
das ruas, porém não conseguiram abarcar a realidade deste universo.
Foi também em 2006 que a Rede Rio Criança, a partir do financiamento da Instituição
Belga VIC, realizou a pesquisa do Mapeamento de Instituições que atuam com crianças e
adolescentes em situação de rua no município do RJ. Essa pesquisa teve muita relevância, pois
desmistificou uma informação há muito veiculada pela mídia, também presente no senso comum,
de que na cidade do Rio de Janeiro “existiam mais instituições do que meninos de rua”.
Surpreendendo até mesmo as Instituições da RRC, o mapeamento apresentou amostragem de que
das cerca de 400 instituições cadastradas no CMDCA naquele ano, todas ONGs, apenas 20
atuavam direta ou indiretamente com crianças e adolescentes em situação de rua no município do
RJ, sendo que destas, somente 07 Instituições trabalhavam diretamente com abordagem de rua
120

(06 delas compunham a RRC). Esses dados demonstram o quanto tem sido restrito e específico,
no Rio de Janeiro (mas também em outros grandes centros urbanos), o trabalho das ONGs junto a
esse público, e podemos citar alguns motivos: não é fácil desenvolver este tipo de ação, pois não
basta boa vontade, depende de profissionais qualificados, disponibilidade, interesse pelo tema e
público, continuidade da ação, equipamentos, recursos; os resultados desse trabalho, quando
conseguidos, geralmente são num período de médio, longo prazo; quase não existe financiamento
(nacional ou internacional) para o desenvolvimento de ações com crianças e adolescentes em
situação de rua.

4.1.2.6 2007

O ano começa com uma forte mobilização da sociedade civil na Câmara dos Vereadores,
denunciando os desmandos da Secretaria Municipal de Assistência Social, e pressionando pela
instauração de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) pelo que havia acontecido no
CMDCA no ano anterior, com a retirada de recursos do Fundo da Infância e Adolescência pela
SMAS, sem a consulta e deliberação do Conselho. Dessa forma, foi definida, em Audiência
Pública, a instauração de uma CPI nas contas do Fundo Municipal de Assistência e Fundo da
Infância e Adolescência, o que envolveria diretamente o Secretário Municipal de Assistência
Social, Marcelo Garcia, ordenador de despesas dos dois Fundos, bem como seus
coordenadores/assessores diretos.
Com a CPI instaurada, constatamos o quanto a área social não é prioridade para o Poder
Executivo Municipal, bem como se verificou que os recursos disponibilizados pelo Governo
Municipal para esta pasta sofreram quedas sucessivas (como prevê o projeto neoliberal –Estado
mínimo, diminuição de recursos em áreas sociais, etc.). De acordo com a CPI, a Prefeitura do RJ
disponibilizou apenas 1,5% do seu Orçamento para a área social, em 2007, representando uma
progressiva diminuição no orçamento da Secretaria Municipal de Assistência Social. Em
contrapartida, a SMAS aumentou seus gastos com pessoal (88% do orçamento da Secretaria eram
para pagamento de funcionários), e previu uma redução de aproximadamente 70% da verba para
121

os Conselhos Tutelares110, que já apresentavam funcionamento precário (de R$ 1 milhão em


2006, para R$ 280 mil em 2007). O relatório final da CPI dos Fundos Municipais de Assistência
e da Infância apontou uma série de irregularidades de gestão, como desvio e má aplicação de
recursos, cometidos pela SMAS. Apesar do resultado da CPI, o Município não foi
responsabilizado, nem foram promovidas mudanças na Secretaria, nem na atuação da mesma.
Em âmbito Estadual, 2007 marcou a entrada de Rodrigo Bethlem como Subsecretário
Estadual de Segurança Pública, tendo início as chamadas operações “Bacana” (Copabacana,
Ipabacana, Barrabacana), que dão continuidade de forma ainda mais sistemática às operações de
recolhimento de crianças e adolescentes em situação de rua ao longo do período, tendo em vista a
realização dos XV Jogos Pan-Americanos, na cidade do Rio de Janeiro, em meados daquele ano.
As áreas de maior concentração das operações bacana foram o Centro e Zona Sul da
cidade e, naquele ano, também foi incorporada a Barra da Tijuca, local onde se realizariam
muitos dos jogos pan-americanos. Com a intensificação das operações e a presença ostensiva de
policiais na cidade, os meninos/as em situação de rua que não foram abrigados, foram expulsos e,
os mais experientes, se deslocaram para outras áreas da cidade, como a zona norte, longe das
áreas consideradas nobres e de atração turística.

Sempre que tem algum evento muito importante na cidade, como o Carnaval, que é um
evento grande, que vem muito estrangeiro, muito turista, para que eles querem pivetes na
rua roubando? Então eles pegam e levam sempre para o abrigo, mas depois acaba
111
soltando, como fizeram no PAN. Colocaram a gente no abrigo e depois soltou .

Nessa época, a Rede Rio Criança realizou o Seminário Pan Criança, no Tribunal de
Justiça, quando participaram adolescentes em situação de rua dividindo a mesa com Juristas,
Vereadores e Educadores. No evento, eles falaram sobre o contexto da rua e a violência da qual
estavam expostos cotidianamente, em especial nas operações de recolhimento feitas com a
participação da polícia. O Seminário teve grande importância para os meninos/as, pois apresentou
um canal de comunicação direta com o Legislativo e o Judiciário, que acolheram as denúncias
naquele momento. Mas, efetivamente, não alterou a prática das operações.

110
Conselho Tutelar é um órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, eleito através do voto direto por região
administrativa, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente.
111
Parte da entrevista com Aline Travassos, ex menina de rua.
122

A veiculação insistente de notícias feitas pela grande mídia nesse período criminalizando
a pobreza, contribuíram ainda mais para acirrar o debate sobre a necessidade de mudanças no
ECA e da redução da idade penal. Este tema entrou em tramitação no Congresso Nacional, com a
apresentação de vários Projetos de Lei e permanece até hoje com forte pressão da mídia, de
grande parcela da população e de parlamentares favoráveis à redução.
Nessa ocasião, o Governador Sérgio Cabral (PMDB), em entrevista a jornal de grande
circulação, propõe a legalização do aborto como forma de conter a violência no Rio de
Janeiro. Cabral se valeu das teses dos autores de "Freakonomics", livro dos norte-americanos
Steven Levitt e Stephen J. Dubner, que estabelece relação entre a legalização do aborto e a
redução da violência nos EUA. "Tem tudo a ver com violência. Você pega o número de filhos
por mãe na Lagoa Rodrigo de Freitas, Tijuca, Méier e Copacabana, é padrão sueco. Agora, pega
na Rocinha. É padrão Zâmbia, Gabão. Isso é uma fábrica de produzir marginal", declarou112.
Ao menos o ano de 2007 terminou com uma boa notícia: a Rede Rio Criança foi
homenageada na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ), pelo mandato do
Deputado Marcelo Freixo (Presidente da Comissão de Direitos Humanos), no Dia Internacional
de Direitos Humanos, por sua atuação na luta em defesa dos direitos humanos das crianças e
adolescentes em situação de rua na cidade do RJ.

4.1.2.7 2008

Com a mudança na presidência do CMDCA Rio e a eleição de 03 Instituições da Rede


Rio Criança enquanto Conselheiras, depois de forte articulação e mobilização, o CMDCA
finalmente constituiu o Grupo de Trabalho para formulação da Política Municipal de
Atendimento às Crianças e Adolescentes em Situação de Rua (Política de Rua), composto de
forma paritária por 05 OGs e 05 ONGs. Ao longo de todo o ano de 2008 e os 06 meses do ano
seguinte, o GT trabalhou arduamente na construção da Política de Rua, estabelecendo um
processo muito rico de discussões e debates sobre a temática, sobretudo de articulação política,
entendendo que seria fundamental a integração com as Secretarias de Governo nesse processo.
112
Publicado em: http://g1.globo.com/noticias/politica/0mul155710-5601,00-cabral+defende +aborto+contra+
violencia+no+rio+de+janeiro.html , acesso em 20/10/07.
123

Apesar das dificuldades, principalmente com a SMAS, que não se incorporou de forma
sistemática às reuniões do GT, apenas de forma pontual, faziam parte pelo Governo: Secretarias
de Educação, Saúde, Esporte e Lazer, Cultura e Coordenadoria Especial de Dependência
Química. Guarda Municipal e Comlurb também foram convidados estratégicos a se integrar ao
grupo e, como as outras, mesmo que de forma pontual, definiram diretrizes para a referida
Política. Pela Sociedade Civil, as representações que compunham o GT eram: Rede Rio Criança,
Associação Excola, Se Essa Rua Fosse Minha, Pastoral do Menor, Associação Beneficente São
Martinho, Associação Beneficente AMAR e o Centro Internacional de Estudos e Pesquisas sobre
a Infância (CIESPI), todas integrantes da RRC.
Foi também um ano de certo refluxo no trabalho de algumas Instituições devido às perdas
de financiamento para a ação direta com crianças e adolescentes em situação de rua, em especial
no âmbito da RRC, com o término do financiamento da Fondation Terre dês hommes (Tdh), que
apoiou a Rede por 06 anos consecutivos.
A questão da drogadição dos meninos/as foi tema de muita preocupação entre os
Educadores, principalmente com o uso do crack por alguns deles, e a falta de serviços /
retaguardas para atendê-los na área de saúde, o que já naquela época era sinalizador de um
problema grave que enfrentaríamos futuramente.
As operações Bacana se mantinham (Copabacana, Ipabacana) e a Cata-Tralha, com as
mesmas arbitrariedades e participação violenta da polícia. Luiz Carlos, Educador Social da São
Martinho, avaliou essas operações no período da gestão de César Maia na Prefeitura do Rio:

Acho que no governo do César Maia eram muito violentas as operações de


recolhimento, principalmente na orla. Naqueles 08 anos de César Maia, você via a
violência naquela forma de abordar o garoto, era assim mesmo, sai daí, era chutando as
coisas do garoto, era chutando o garoto... Era truculento. Você via que o cara estava
preparado pra isso. (...) Os caras chegavam pra arrebentar mesmo. O Educador se não
saísse apanhava também. Se der bobeira apanha, é um pacote só.

Outro tipo de intervenção importante na gestão César Maia junto à população em situação
de rua foi a chamada política antimendigos, na qual eram promovidas mudanças na arquitetura de
prédios e na urbanização da cidade, como a retirada de marquises que serviam de cobertura para
mendigos; tapar áreas abertas embaixo de viadutos; acabamentos pontiagudos no chão de
viadutos e em certas calçadas; jogar creolina nos locais em que dormiam mendigos, dentre outras.
Esse tipo de prática se reproduz em diferentes épocas e áreas na cidade do Rio de Janeiro, como
124

no início da década de 1960, quando Sandra Cavalcante esteve à frente da Secretaria de Serviços
Sociais do Estado da Guanabara113, nomeada pelo então governador Carlos Lacerda. Àquela
época, várias denúncias surgiram acusando o governo de remover favelas sem nenhum cuidado
para com os moradores atingidos, preocupando-se apenas em "higienizar" os morros da Zona Sul
e áreas nobres da cidade-estado. Logo surgiam denúncias de incêndios premeditados em barracos
e de mendigos afogados no Rio da Guarda, e a Secretária Sandra Cavalcante era a maior acusada.
Baseado nesses fatos, o longa-metragem "Topografia de um Desnudo114" retrata o que a imprensa
carioca chamou de "Operação Mata-Mendigos". O episódio, abafado no Brasil pelo então
governador Carlos Lacerda, chegou a ganhar destaque internacional depois que corpos de
mendigos foram encontrados nos rios Guandu e da Guarda nos meses que antecederam a visita da
Rainha da Inglaterra à capital carioca. Na época, funcionários do Serviço de Repressão à
Mendicância, órgão do governo criado para tratar o problema dos moradores de rua, chegaram a
ser investigados. No entanto, o caso perdeu força com o Golpe de 1964, ocorrido logo depois.
A autora Cecília Coimbra (2001), em seu livro Operação Rio, destaca a “arquitetura
antimendigo” dos anos de 1990 no Rio de Janeiro:

Nesses anos 90, com o crescimento da pobreza, dos miseráveis e do número de


“moradores de rua” (...) surge uma “arquitetura antimendigo”. Constroem-se prédios
sem marquises ou cercados de grades; passa-se óleo queimado nas entradas das lojas ou
instalam-se chuveiros que molham o chão à noite. Tudo isso para “afugentar os
moradores de rua”, da mesma forma, são instaladas grades e canteiros debaixo de
viadutos que vêm abrigando famílias inteiras de “sem-teto” (COIMBRA, 2001, p.122).

Apesar de toda indignação frente a tanta violência e crueldade, nossa capacidade de


mobilização frente às operações também passava por um período de refluxo. A soma de tantos
embates e a falta de financiamento provocou certo desânimo e frustração nas organizações da
sociedade civil, o que gerou um necessário movimento de fortalecimento institucional. Com isso,
nossos esforços se concentraram no fortalecimento do GT de formulação da Política Municipal

113
A partir de 1974, com a inauguração da ponte Rio-Niterói, o Estado da Guanabara é integrado ao Estado do Rio
de Janeiro, passando a ser denominado Município do Rio de Janeiro.
114
O filme Topografia de um desnudo, de Teresa Aguiar, baseia-se em fatos reais ocorridos na década de 1960 no
Rio de Janeiro: a chamada “operação mata-mendigos”, que culminou com a morte de vários moradores de rua,
antes presos, torturados e depois jogados nos rios Guandu e da Guarda: um processo de limpeza social
“aparentemente” em razão da visita da Rainha Elizabeth II da Inglaterra ao Brasil. O filme, que entrou em cartaz
em 2011, fala do sofrimento e da humilhação a que são submetidas pessoas em situação de rua, resultantes da
política higienista presente desde sempre no Brasil e nos dias atuais de forma intensa em várias cidades brasileiras.
Ver em: http://www.topografiadeumdesnudo.com.br/, acesso em 2011.
125

de Atendimento às Crianças e Adolescente em situação de rua, sendo esta, naquele momento,


uma possibilidade real de desenvolvimento de políticas públicas que respondessem às
necessidades daquele grupo social na cidade do Rio. Por isso, concentramos energia na
construção coletiva da política, sabendo que após a formulação, a luta maior seria pela sua
implementação.
A gestão do Prefeito César Maia, de 2001 a final de 2008, implementou uma série de
operações de recolhimento, mas o Governo Estadual do RJ também promoveu e/ou apoiou
algumas delas neste período. Não obstante, os recolhimentos da população de rua pouco se
mostraram eficientes em seus resultados, seja na metodologia aplicada, seja em tão poucos e
despreparados os serviços para receber a população recolhida. O que se observou a cada operação
foi o retorno às ruas daquela população, sem perspectiva alguma de mudança ou promoção.
Em final de 2008, as expectativas quanto às novas eleições municipais eram grandes,
porém, com a divisão dos partidos de esquerda, já se vislumbrava um cenário político semelhante
ao daquele período. O PMDB ganha as eleições municipais em outubro, dando início à 1ª gestão
de Eduardo Paes na Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro.

4.1.2.8 2009

Eduardo Paes toma posse e nomeia dentre seus Secretários Fernando Wiliam, ex-
Secretário Estadual de Ação Social, para o cargo de Secretário Municipal de Assistência Social.
Na gestão de Eduardo Paes (2009 a 2016), vamos observar progressiva e vertiginosamente o
aumento e o recrudescimento das operações de recolhimento, especialmente a partir de 2011,
com a implementação da Resolução 20/2011 – o Protocolo do Serviço Especializado em
Abordagem Social, que institucionalizou o recolhimento e a internação compulsórios da
população em situação de rua, principalmente crianças e adolescentes. Assim como, em nível de
estado, também observaremos o aumento dos índices de apreensões e encarceramento de
adolescentes negros e pobres. Já era a cidade maravilhosa se preparando para a organização dos
Megaeventos, Copa das Confederações (2013), Copa do Mundo (2014), e Olímpiadas (2016),
como veremos adiante.
126

O ano de 2009 marcou o início das operações “Choque de Ordem”, principal bandeira da
campanha de Paes. Na mesma linha de segregação e “limpeza social”, as operações Choque de
Ordem, feitas em parceria com o governo do Estado, entraram em vigor no dia 5 de janeiro de
2009, com o objetivo de realizar ações de reordenamento urbano contra vendedores ambulantes,
flanelinhas, pessoas em situação de rua, ocupações urbanas, dentre outras. Apesar do Choque de
Ordem visar uma abrangência de ação em todo o município do Rio, seu foco, majoritariamente,
eram territórios nobres da cidade do Rio de Janeiro, como Copacabana, Ipanema, Barra da Tijuca
/ Recreio e Centro, áreas de maiores concentrações de renda.
Para uma análise mais aprofundada das práticas higienistas, repressivas, de contenção e
encarceramento da população considerada “perigosa” - os sujeitos indesejáveis, importante
contextualizarmos politicamente o que, quando e de quem falamos, ou seja, que lugar é esse de
que falamos.
Prefeito da cidade do Rio de Janeiro, eleito em 2009, Eduardo Paes concentrou sua
atuação no “Choque de Ordem”, criando, inclusive, a Secretaria Especial de Ordem Pública,
sendo convidado para gerir esta pasta Rodrigo Bethlem que, como dito anteriormente, foi ex Sub
Secretário de Segurança Pública, do Governo do Estado, no qual foi o responsável pela
implantação das chamadas operações “Bacana” (2007). Desse período (2009) em diante,
importante darmos destaque aos diferentes fatos que integram essa realidade social, por
considerarmos fundamental enquanto elementos de sistemático endurecimento das práticas
abusivas de controle e repressão no enfrentamento da população em situação de rua,
especialmente crianças e adolescentes, bem como de um processo higienista de organização da
cidade para os Megaeventos. A criação da Secretaria Especial de Ordem Pública, para o
movimento social, foi interpretada como sendo a consolidação pública da criminalização da
pobreza através de medidas sistemáticas de repressão e de controle daqueles considerados
“perigosos”, “indesejáveis” e “desnecessários” ao modo de produção capitalista.
O novo Secretário Especial de Ordem Pública, já no dia 02 de janeiro de 2009, anunciou
sete medidas de impacto na cidade, nas quais seriam utilizados até dois mil servidores municipais
e estaduais (Guardas municipais, Polícia Militar, fiscais e operários) nas ações contra ao que
denominaram “desordem urbana”. Foram elas:
127

1ª - Tijuca Bacana - Com repressão ao comércio ilegal, reordenamento do espaço urbano,


fiscalização.
2ª - Demolição de imóveis construídos de maneira irregular na cidade.
3ª - Extensão da operação Ipabacana até o bairro da Gávea.
4ª - Notificação de quiosques, bancas de jornal e afins que estivessem irregulares ou em situação
irregular.
5ª - Ocupação máxima com 160 homens da Guarda Municipal na orla do Leme ao Leblon.
6ª - Notificação de publicidades irregulares. Vão receber avisos tantos os proprietários dos
imóveis onde estão as propagandas, quanto os anunciantes.
7ª - Ações de combate no transporte irregular em conjunto com o Departamento de Transportes
Rodoviários do Estado do RJ (DETRO). Não só as Vans, mas também em táxis e transportes
escolares em situações irregulares.
O Secretário Rodrigo Bethlem também afirmou que pretendia iniciar na semana seguinte,
as operações Centro, Botafogo e Flamengo Bacana115.

As estratégias de ordenação dos espaços urbanos têm se caracterizado, portanto, pela


segregação, exclusão e isolamento das classes subalternizadas, corr oborando a crença de
que com elas estão as doenças, os perigos, as ameaças, a violência. Isso motiva o ataque
diretamente empreendido sobre o espaço onde a sociabilidade dessas classes
consideradas perigosas viceja e se consolida: a rua (COIMBRA, 2001, p.100).

Foi um “deus nos acuda”. Todos os dias, nos principais jornais da cidade, eram
noticiados, como num espetáculo, as sucessivas operações de Choque de Ordem. O novo “xerife”
do Rio de Janeiro, como o batizou o Prefeito Eduardo Paes, jogou ainda mais holofotes nas
chamadas operações “Bacana”, que eram verdadeiro terror para parte significativa da população
carioca sujeita a essas operações.
Em março de 2009, o Prefeito retoma a política “antimendigo” de César Maia, tapando os
vãos embaixo de viadutos, cercando praças e colocando divisórias em bancos de praças públicas,
para impedir que mendigos pudessem usá-los como lugar de descanso. A iniciativa gerou muita
polêmica não só de organizações de direitos humanos, como também de parte da sociedade
contrários à medida. A utilização de tais práticas tem como principal objetivo não só a expulsão
desse grupo social dos espaços urbanos, mas também de nem ao menos permitir que essas

115
Publicado em 02/01/2009: <http://odia.terra.com.br/rio/htm/novo_secretario_de_ordem_publica_anuncia_sete_
medidas_de_impacto_221483.asp>.
128

pessoas possam ter um local para descanso e repouso, ou protegerem-se das intemperes, mesmo
que esse seja a rua. A lógica da higienização, segregação e controle dessa população permanece e
se sustenta através de velhas práticas. Como também observou Sebastião Andrade, Coordenador
do Centro Socioeducativo da Associação Amar, em sua entrevista:

(...) a gente percebe que essa lógica de higienização sempre aconteceu. Houve prefeito
como César Maia que mandou colocar creolina debaixo das marquises e debaixo dos
viadutos e colocar pedras embaixo dos viadutos, pedras pontiagudas pra que os pobres
não pudessem se abrigar nem em marquises na frente do comércio, nem embaixo de
viadutos. Veja, ao pobre e miserável não lhe dão o direito de pernoitar embaixo de uma
marquise, embaixo de um viaduto. Não se deixava o pobre deitar no chamado banco da
praça. As praças começaram a ser cercadas na cidade do Rio de Janeiro e a gente
entendia que não era por questão de segurança, nem embelezamento, era simplesmente
para, dado o momento, poder dizer ao pobre: Saia daqui porque aqui a praça passou a ser
o espaço só de alguns!

Em meados de 2009, a Rede Rio Criança116, em conjunto com outras 17 entidades e


movimentos sociais de direitos humanos, contribuiu na elaboração do relatório “Os muros da
favela e o processo de criminalização”, que foi entregue à Anistia Internacional. Este relatório
nasceu da necessidade dos movimentos sociais e defensores de Direitos Humanos do Brasil de
tornarem público, nacional e internacionalmente, o processo de criminalização social em curso no
Rio de Janeiro. O tema Choque de Ordem ficou sob a responsabilidade de elaboração da RRC e,
pela sua relevância, faço aqui parte de sua transcrição:

(...) Relatos de Educadores Sociais das Instituições da Rede Rio Criança, e das próprias
crianças e adolescentes vítimas dessas operações, confirmaram a presença constante de
policiais militares e que, na maioria das vezes, utilizam o uso da violência para recolhê-
los das ruas. Geralmente, esses meninos/as são levados para equipamentos públicos,
como a Casa da Carioca, onde só pernoitavam, e Central de Recepção (Praça da
Bandeira), onde é feita uma triagem para abrigos, para a DPCA (Delegacia de Proteção à
Criança e ao Adolescente), quando identificam autoria de ato infracional, enquanto
outros meninos/as que não são do Rio de Janeiro podem ser levados para os seus
municípios de origem. No entanto, diante do desmantelamento da Rede Pública de
proteção à criança e ao adolescente, e da falta de estrutura física e profissional para
recebê-los, esta população logo volta às ruas.
Quem é defensor dos direitos humanos e presencia o “Choque de Ordem” dificilmente se
esquecerá, tamanha é a agressão e o desrespeito àquelas pessoas que são alvo desta ação
que, além da ferirem sua integridade física e moral, também destroem seus parcos

116
Já naquele ano, a Rede Rio Criança, uma articulação de referência no trabalho e defesa dos direitos humanos de
crianças e adolescentes em situação de rua, era integrada por 15 ONGs: Associação Beneficente São Martinho;
Associação Beneficente AMAR; Associação Brasileira Terra dos Homens (ABTH); Banco da Providência; Centro
de Teatro do Oprimido (CTO-Rio); Childhope Brasil; Criança Rio; Excola; Fondation Terre des hommes (Tdh);
Fundação Bento Rubião; Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua; REMER; Organização de Direitos
Humanos Projeto Legal; Projeto Social Crescer e Viver e Se Essa Rua Fosse Minha.
129

pertences. Muitos são os casos exemplares da violência destas operações contra os


meninos/as nas ruas. Foi relatada por Educadores, uma operação ocorrida na “Praça do
Cavalo”, em frente à Praça Paris, na Cinelândia, Rio de Janeiro, ocorrida em fevereiro
deste ano (2009), perto do Carnaval. A operação foi realizada de madrugada, quando os
policiais chegaram, bateram, expulsaram e ameaçaram os meninos/as que lá dormiam,
inclusive de morte. Casos como estes foram também mencionados pelos Educadores
sociais na Zona Sul e São Cristóvão, quando recolhem de forma truculenta os
meninos/as e queimam seus pertences. Outra grave denúncia feita pelos Educadores foi
que existiram casos de bebês que foram apartados de suas mães.
Segundo os Educadores, essas sucessivas operações causavam um retrocesso no trabalho
junto a essa população. Muitas das crianças e adolescentes atendidos desapareceram para
se protegerem dos recolhimentos, deslocando-se para a zona norte, zona oeste e, o mais
grave, estavam indo também para “bocas de fumo”, quando faziam uso constante de
drogas como o crack. Outra denúncia importante foi que o Choque de Ordem vinha
legitimando a ação de “Pitboys” em bairros como São Cristóvão e Zona Sul, que
agridem os meninos em situação de rua, reproduzindo assim o sistema vigente.
Técnicos de Instituição da Rede Rio Criança que realizam trabalho com as famílias
(reintegração familiar), relataram casos em que, depois de todo um processo de
promoção de algumas famílias que, após meses de reserva de recursos para a compra de
Kits de materiais (doces, papelaria, refrigerantes, etc.) para a venda informal, tiveram
esses materiais apreendidos pelo Choque de Ordem, tendo como consequência a
mendicância de muitas destas pessoas.
À época, foram colhidos relatos de pessoas vítimas do Choque de Ordem, que
confirmam a barbárie:
...”Tia, eles vem aqui e esculacham nós. Queimam a nossa roupa.... eu só tô com essa
roupa agora.” (Adolescente de 15 anos, morador de Manguinhos)
... “É muita maldade tia, eles batem na gente, jogam gás de pimenta nos nossos olhos.”
(Adolescente em situação de rua)
...”Nós tamo tudo cansado tia, ficamos a noite toda fugindo dos homens.” (Adolescente
em situação de rua)
...”Dona, o pessoal veio aqui e perguntou quem queria ser levado para o abrigo (adulto)
era só entrar no ônibus... todo mundo entrou. Eles levaram a gente para um lugar muito
longe, à noite, e mandou todo mundo descer num local deserto, que não era o abrigo, e
foram embora” (Adulto em situação de rua)
...“Meu nome é A., tenho 15 anos, estou grávida de 08 meses, sou órfã de pais, moro
com as minhas irmãs e não quero voltar para casa ou ir para um abrigo sem ele.”
(Adolescente de 15 anos em situação de rua)
...”A gente tá sem nada..., sem roupa, sem objetos pessoais. O “cata-tralha” passou aqui
na semana passada e levou tudo” (Adolescente de 13 anos em situação de rua).

O dossiê em sua íntegra foi entregue em uma Audiência Pública na OAB ao representante
da Anistia Internacional.
De positivo nesse período, foi a aprovação da Deliberação 763/09, de 22 de junho de
2009, do CMDCA Rio, a Política Municipal de Atendimento às Crianças e Adolescentes em
Situação de Rua na cidade do Rio de Janeiro, a primeira do país. Representou uma vitória para
toda a sociedade civil e representante de governo que participaram desse processo, que levou
mais de 06 anos, entre a fase de sua articulação, construção e deliberação. Porém, importante
destacar que das 64 diretrizes deliberadas na referida política, apenas uma (01) foi implantada até
hoje (2016): o Programa Saúde da Família Sem Domicílio (PSF Rua), posteriormente
130

denominado Consultórios na Rua. O processo de construção da Política de Rua será trazido no


capítulo 6.

4.1.2.9 2010

Foi realizada Pesquisa Censitária Nacional sobre crianças e adolescentes em situação de


rua (dados divulgados em março/2011), realizada pela Secretaria de Direitos Humanos da
Presidência da República (SDH PR) e pelo Instituto de Desenvolvimento Sustentável (IDESP).
Foram identificados no Brasil 23.973 criança e adolescentes em situação de rua, espalhados pelas
75 cidades brasileiras com mais de 300 mil habitantes. Segundo a pesquisa, 63% deste público
foram para as ruas por causa da violência doméstica. A estimativa foi a de que existiam 5.091
crianças e adolescentes em situação de rua no município do Rio de Janeiro117. Esses dados foram
considerados superdimensionados pelas Instituições da Rede Rio Criança, mesmo estando de
acordo com o que representa o conceito “situação de rua” na Política Municipal de Atendimento
às Crianças e Adolescentes em situação de rua118, deliberada pelo CMDCA Rio no ano anterior,
bem como de difícil identificação e mensuração das categorias utilizadas, diante da metodologia
aplicada na pesquisa. Diante de vários questionamentos em nível nacional, a dita pesquisa foi
arquivada.
De outro lado, desconsiderando e contrariando o que previa a Política Municipal de
Atendimento às Crianças e Adolescentes em situação de rua, as operações de recolhimento
continuaram sendo realizadas pela SMAS, com a participação da polícia, levando os meninos/as
para as Centrais de Recepção, abrigos ou mesmo para a DPCA, apesar das constantes denúncias
de defensores de direitos humanos.
Nesse ano, Rodrigo Bethlem se licencia do cargo de Secretário Municipal de Ordem
Pública para concorrer às eleições para Deputado Federal.

117
Esse número considerou e contabilizou crianças e adolescentes que viviam nas ruas, bem como as que estavam
abrigadas, de acordo com o conceito de “situação de rua”.
118
Situação de rua é uma complexa relação dinâmica que envolve “casa – rua – abrigo – rua – projetos sociais /
instituições – rua – família / comunidade – rua.”, em que a rua, em diferentes graus, ocupa um lugar de referência
predominante e um papel central em suas vidas.
131

Já acostumados às operações, observamos que os meninos/as em situação de rua iam


inovando suas estratégias de convivência e de sobrevivência nesse cotidiano para escapar dos
recolhimentos. Alguns fugiam para áreas mais distantes do Centro e Zona Sul da cidade,
enquanto outros simplesmente aprenderam a lidar com isso. Como? É o que nos conta em sua
entrevista Luiz Carlos, Educador Social da São Martinho:

Agora eles estão fazendo o seguinte: os meninos quando veem o cata-tralha ou o ônibus
do recolhimento, eles até se entregam. “Eu vou pra FIA”, dizem. O garoto não deve nada
mesmo, então é tranquilo. Ele vai pra FIA, toma banho, almoça, troca a roupa dele, fica
tranquilinho... Aí, 6ª feira ele sai, foge e vai pro baile. E outra coisa também, aprendeu a
sobreviver. Outro dia, no Catete, o ônibus estava parado ali, aí o garoto falou: “Ô tio,
vou pra FIA! Vou tomar banho, almoçar, 6ª feira eu tô aí”. Eu falei: Valeu, meu filho.
Aproveita, você tem direito. Isso aí é teu. (risos...) Eu pago imposto pra isso. Entendeu?
Eles já aprenderam também a lidar com isso, toda hora eles aprendem...

4.1.2.10 2011

Em 2011, no dia 1º de março, data de aniversário da Cidade dita Maravilhosa, o Prefeito


Eduardo Paes nomeia Rodrigo Bethlem como o novo Secretário Municipal de Assistência Social.
Para assumir ao cargo, licenciou-se de seu mandato de Deputado Federal (Legislatura 2011-
2015), não tendo cumprido nem dois meses de mandato. Essa indicação foi algo surpreendente e
muito preocupante para todos do movimento social da área da infância e juventude, defensores de
direitos humanos na cidade do Rio, devido ao histórico de Rodrigo Bethlem, uma indicação que
sinalizava uma grande contradição para a área da assistência social, pois houve uma espécie de
junção da assistência social com segurança pública, ou estaria implícito que a questão social é um
caso de segurança pública?
Com o agravamento da repressão, violência e encarceramento dos “sujeitos indesejáveis”
que se dá a partir desse período, para entendermos melhor a intencionalidade e motivação política
dessa indicação, importante contextualizá-la. Rodrigo Bethlem iniciou sua carreira política aos 22
anos, durante o primeiro mandato de César Maia (entre 1993 e 1996), quando fez parte de uma
equipe de subprefeitos, entre estes também estaria o próprio Eduardo Paes. Inicialmente, Bethlem
foi subprefeito da Lagoa e, em 1996, do Méier. No ano de 1999, já durante o mandato do
prefeito Luiz Paulo Conde (então eleito pelo PFL – Partido da Frente liberal) Rodrigo Bethlem
132

ocupou a Subprefeitura da Barra e de Jacarepaguá. Foi eleito Vereador no ano de 2000. De


Vereador, assume a Subsecretaria Estadual de Segurança Pública do RJ, no governo Sérgio
Cabral (PMDB), em 2007. Foi o responsável pela implantação das chamadas Operações
“Bacana” (Copabacana, Ipabacana e Barrabacana), pontapé inicial para a criação da Secretaria
Especial de Ordem Pública do Município do Rio, a qual foi convidado a gerir pelo Prefeito
Eduardo Paes. Exerceu, de janeiro de 2009 a março de 2010, o cargo de Secretário Especial de
Ordem Pública, sendo responsável pela implantação do Programa “Choque de Ordem” na cidade,
quando se afastou do cargo para se candidatar a Deputado Federal pelo PMDB. Ganha a eleição,
mas preferiu a opção de gerir a Secretaria Municipal de Assistência Social (SMAS).
Procurando entender a racionalidade e ideologia presente nesse processo de exclusão,
repressão e controle dos “sujeitos indesejáveis”, feita pelo Estado, por aqueles que detêm o poder
na administração/gestão do município e estado do Rio de Janeiro, importante o seguinte
questionamento: Qual a intencionalidade em se colocar na gestão de uma Secretaria de
Assistência Social, que tem por missão garantir acesso aos direitos socioassistenciais aos
cidadãos e grupos em situação de vulnerabilidade social, uma pessoa que foi Subsecretário
Estadual de Segurança Pública e gestor de uma Secretaria Municipal de Ordem Pública, que teve
por função, basicamente, adotar ações de controle e repressão para promover o chamado
reordenamento urbano? Com certeza não foi o de garantir o respeito aos direitos humanos dessa
população “em situação de vulnerabilidade social”. Pedro Pereira, coordenador do Centro de
Defesa da Criança e do Adolescente do RJ (CEDECA RJ) comentou à época:

Eu sempre tive a preocupação de não atender os meninos a partir de um parâmetro da


minha realidade. Agora, pra trabalhar nessa área você também tem que estudar a história
do Brasil, com uma visão crítica pra entender que isso não é um processo surgido
recentemente. Tem toda uma construção de exclusão histórica no Brasil. E que coisas
que aconteceram na década de 20, na década de 30, hoje se repetem de maneira
diferente, mesmo tendo um marco legal, uma constituição federal, uma legislação
nacional e internacional de proteção dos direitos humanos de crianças e adolescentes.
Então, esse caráter higienista, autoritário, isso permeia durante toda a história. E agora,
no momento que a gente vive, ela vai se repetindo com o apoio de grande parte da
população. As pessoas ficam incomodadas de verem crianças em situação de rua e não
querem saber qual é a história delas, por que elas estão ali, como é que vieram parar ali.
Então eu vejo como uma grande omissão, principalmente por grande parte do poder
público, porque o poder público tem todas as condições de resolver isso sem usar da
repressão e da violência, porque esses meninos e meninas são frutos do descaso,
principalmente do poder público.
133

A intencionalidade de governo em se colocar na gestão de uma Secretaria de Assistência


Social uma pessoa com o currículo de Bethlem, se reafirmou ainda mais quando, no dia 27 de
maio de 2011, a Secretaria Municipal de Assistência Social lançou a Resolução Nº 20, que cria e
regulamenta o Protocolo do Serviço Especializado em Abordagem Social, no Âmbito das Ações
da Proteção Social Especial de Média Complexidade da Secretaria Municipal de Assistência
Social, assim como institui os instrumentos a serem utilizados no processo de trabalho.
O Protocolo, apoiado pelo Ministério Público e I Vara da Infância, Juventude e do Idoso,
elencou vários procedimentos em relação ao trabalho de abordagem social de rua e os
encaminhamentos a serem feitos pelos profissionais que atuam com essa população, mas destaca,
principalmente, o recolhimento e a internação compulsória da população em situação de rua, em
especial de crianças e adolescentes, que sejam considerados dependentes químicos nas chamadas
cracolândias119 (mas que também se realizaram o recolhimento / expulsão em outras áreas da
cidade).

O conceito desqualificante desta racionalidade é o de risco. As novas estratégias penais


se caracterizam cada vez mais como dispositivos de gestão do risco e de repressão
preventiva das populações consideradas portadoras desse risco. Não se trata de
aprisionar criminosos perigosos individuais, isto é, de neutralizar fatores de risco
individual, mas sim de gerir, ao nível de populações inteiras, uma carga de risco que não
se pode (e, de resto, não se está interessado em) reduzir (DE GIORGIO, 2006, p.97).

A divulgação da Resolução 20/2011 gerou um imediato questionamento e


posicionamentos de diversos segmentos organizados da sociedade civil e de entidades de classe,
manifestando-se contrários ao recolhimento e à internação compulsória, quais sejam: Rede Rio
Criança, Conselho Regional de Serviço Social (CRESS), Conselho Regional de Psicologia
(CRP), Conselho Regional de Enfermagem (COREN), Fórum Interestadual de Saúde Mental,
Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Centros de Defesa da Criança e do Adolescente 120
(CEDECAs), Conselho Estadual dos Direitos das Crianças e Adolescentes (CEDCA RJ),
Conselho Nacional dos Direitos das Crianças e Adolescentes (CONANDA), dentre outros.
Segundo estes segmentos, o Protocolo infringia direitos e garantias constitucionais, o ECA, a
Convenção dos Direitos da Criança (CDC), a Lei de Saúde Mental (Lei 10.216/01), e a
119
Designação para territórios em que se concentram pessoas para fazerem uso de crack. Na cidade do Rio de
Janeiro, as cracolândias do Jacarezinho e Manguinhos, situada na zona norte da cidade, eram as de maior destaque
e objeto de sucessivas operações de recolhimento.
120
Os CEDECAs tem papel sócio jurídico no atendimento à crianças e adolescentes.
134

Deliberação 763/09 – a Política Municipal de Atendimento às crianças e adolescentes em


situação de rua no Rio de Janeiro. Dentre os artigos da Resolução, o mais controverso era o 5º:

Resolução 20/2011, Art. 5º - São considerados procedimentos do Serviço Especializado


121
em Abordagem Social, devendo ser realizados pelas equipes dos CREAS /Equipe
Técnica/Equipe de Educadores: (...)

XI - realizar o acompanhamento de forma prioritária, dos casos de crianças e


adolescentes atendidos até o encaminhamento para a unidade de acolhimento, que
passará esta unidade a ser a responsável pela proteção, guarda e cuidado, protegendo-os
e impedindo-os da evasão;

XV – acompanhar todos os adolescentes abordados à Delegacia de Proteção à


122
Criança e ao Adolescente – DPCA , para verificação de existência de mandado de
busca e apreensão e após acompanhá-los à Central de Recepção para acolhimento
emergencial; (...)

§3º A criança e o adolescente que esteja nitidamente sob a influência do uso de drogas
afetando o seu desenvolvimento integral, será avaliado por uma equipe multidisciplinar
e, diagnosticada a necessidade de tratamento para recuperação, o mesmo deverá ser
mantido abrigado em serviço especializado de forma compulsória. A unidade de
acolhimento deverá comunicar ao Conselho Tutelar e à Vara da Infância, Juventude e
Idoso, todos os casos de crianças acolhidos.

§4º Não obstante o previsto nos §§ 2º e 3º deste artigo, a criança e o adolescente


acolhido no período noturno, independente de estarem ou não sob a influência do uso de
drogas, também deverão ser mantidos abrigados/acolhidos de forma compulsória, com o
objetivo de garantir sua integridade física.

De acordo com a opinião de especialistas e de diversos Centros de Defesa da Criança e do


Adolescente, a medida protetiva de acolhimento institucional não consiste em uma medida de
privação de liberdade, devendo ser executada de forma voluntária pela criança ou adolescente. A
voluntariedade é, inclusive, um princípio da política de assistência social, ou seja, o individuo
deve expressar interesse e desejo de sair da condição em que está e ser acolhido. A mera previsão
de que a entidade de acolhimento deve impedir a evasão dessas crianças e adolescentes consiste
em uma violação ao disposto no ECA, artigo 16, que versa sobre o direito à liberdade:

Art. 16 - O direito à liberdade compreende os seguintes aspectos:


I - ir, vir e estar nos logradouros públicos e espaços comunitários, ressalvadas as
restrições legais;
II - opinião e expressão;
III - crença e culto religioso;

121
Centros de Referência Especializados da Assistência Social.
122
Grifos meu.
135

IV - brincar, praticar esportes e divertir-se;


V - participar da vida familiar e comunitária, sem discriminação;
VI - participar da vida política, na forma da lei;
VII - buscar refúgio, auxílio e orientação.

E, no que tange ao disposto no inciso XV, o inciso LXI, do artigo 5º da Constituição


Federal do Brasil (CFB) prevê que nenhuma pessoa será privada de sua liberdade senão por
flagrante delito ou ordem judicial escrita e fundamentada:

Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-
se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida,
à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e
fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de
transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei.

A simples condução dos adolescentes para a delegacia de polícia consiste em uma


privação de liberdade e uma inversão do princípio constitucional da presunção de inocência, pois,
neste caso, sem a ocorrência de um flagrante delito, todos os adolescentes são taxados de
eventuais infratores pelo simples fato de estarem em situação de rua.
No que concerne à atenção em saúde mental, destacando-se o portador de dependência
química, em regime de internação, o artigo 6º, parágrafo único da Lei 10.216 dispõe:

Art. 6º - A internação psiquiátrica somente será realizada mediante laudo médico


circunstanciado que caracterize os seus motivos.
Parágrafo único - São considerados os seguintes tipos de internação psiquiátrica:
I - internação voluntária: aquela que se dá com o consentimento do usuário;
II - internação involuntária: aquela que se dá sem o consentimento do usuário e a pedido
de terceiro; e
III – internação compulsória: aquela determinada pela Justiça.

Na mesma linha dispõe o artigo 9º do mesmo dispositivo legal:

Art. 9º - A internação compulsória é determinada, de acordo com a legislação vigente,


pelo juiz competente, que levará em conta as condições de segurança do
estabelecimento, quanto à salvaguarda do paciente, dos demais internados e
funcionários.

As crianças e os adolescentes em situação de rua, vítimas das operações de recolhimento,


supostamente envolvidos com o crack, primeiramente eram encaminhados à Delegacia de
136

Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA) para ser feita pesquisa de mandatos de busca e
apreensão. Os adolescentes que estivessem em descumprimento de medida socioeducativa, ou
seja, os que estavam “devendo” à justiça, mesmo precisando de atendimento emergencial de
saúde, eram levados para uma unidade de internação provisória do DEGASE (na época para o
Instituto Padre Severino, atualmente Cense GCA123), o que, por si só, representava uma violação
de direitos, por não serem pegos em flagrante delito. Os que não tinham mandato de busca e
apreensão eram levados para acolhimento institucional da Rede de Proteção Especial do
município. Feita a triagem nas Centrais de Recepção124, as crianças e os adolescentes
identificados com comprometimento em dependência química eram conduzidos de forma
compulsória para uma das 04 unidades de “abrigamento especializado125” que existiam à época
no município do RJ para este público: Ser Criança e Ser Adolescente, na Zona Oeste, em
Guaratiba; Casa Viva, o carro chefe da SMAS, situada em Laranjeiras, Zona Sul do Rio, muito
destacada na mídia, em detrimento das outras duas, talvez pela sua localização territorial na zona
sul da cidade; e, uma 4ª, a Casa Reviva, em Barra Mansa. A título de informação, o custo
individual de cada internação na Casa Viva, com capacidade para 12 adolescentes do sexo
masculino, era de aproximadamente R$ 2.500,00/mês.
Naquele ano, a Comissão Municipal de Acompanhamento da Implementação da Política
Municipal de Atendimento às Crianças e Adolescentes em situação de rua foi constituída no
âmbito do CMDCA, formada por Conselheiros Municipais de Direitos da Cri/Adol e por
organizações da sociedade civil. Diante da Resolução 20/2011, convidamos o Secretário
Municipal de Assistência Social, Rodrigo Bethlem, para participar de uma reunião da Comissão,
que tinha como objetivo questionarmos sobre a Resolução 20 e o recolhimento e internação
compulsória de crianças e adolescentes em situação de rua, supostamente dependentes de crack,
afrontando direitos constituídos. Lembro-me bem do desconforto que sentimos. Ele sempre
repetia a seguinte frase, que já parecia um slogan: “E se fosse seu filho?!” Ao que respondi: “Se

123
Centro de Socioeducação Gelso de Carvalho Amaral.
124
Esse tipo de equipamento, apesar de não está previsto na Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais, é
considerada a porta de entrada das crianças e adolescentes que são recolhidos.
125
Abrigamento especializado é compreendido como um tipo de abrigo especializado, com quadro de equipe
multidisciplinar, para o atendimento de determinados casos que necessitem de atendimento diferenciado, como o
tratamento de saúde (neste caso dependência química de crianças e adolescentes em situação de rua). Esse tipo de
abrigo especializado, em saúde, não está previsto na Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais. O que
gerou muita controvérsia, bem como desentendimentos com a área da Saúde.
137

fosse meu filho, eu não o levaria para uma delegacia, mas para um tratamento de drogadição!”
Reunidos naquela sala muitos representantes da sociedade civil, que trabalhavam há vários anos
com esse público, através de uma metodologia pautada nos princípios da educação social de rua,
defensores de direitos humanos, se posicionaram contrários a essa forma de intervenção, que
violava direitos. No entanto, o recolhimento e a internação compulsória se mantiveram.
Em agosto de 2011, algumas entidades cariocas em parceria com a I Vara da Infância e a
Secretaria Municipal de Assistência Social (SMAS) promoveram, em conjunto, o “Fórum de
Debates sobre o Acolhimento Compulsório de ‘menores’ em situação de rua em risco”. Em
notícia a respeito do Fórum, comenta-se:

Em junho deste ano, reunidos na Vara da Infância da Capital, a juíza Ivone Caetano, o
secretário municipal de assistência social do Rio, Rodrigo Bethlem, e a promotora de
justiça Ana Cristina Ruth Macedo, titular da Promotoria de Tutela Coletiva de Políticas
Públicas do Ministério Público Estadual, defenderam o acolhimento e internação
compulsória, independentemente do consentimento, de crianças e adolescentes usuários
de crack. Na ocasião, eles consideraram que não existe direito ilimitado de ir e vir,
quando se trata de menores vivendo nas ruas, colocando em risco a própria vida 126.

Desde então, vários segmentos de defesa de direitos humanos da criança e do adolescente


se mobilizaram e combateram a Resolução 20/2011. Manifestos e posicionamentos institucionais
foram elaborados e divulgados em nível nacional e internacional, denunciando as violações. CPI,
Ações Civis e Audiências Públicas foram realizadas. No dia 19 de outubro de 2011, a Comissão
de Orçamento da Câmara Municipal de Vereadores do RJ, presidida pela Vereadora Andreia
Gouveia Vieira, realizou Audiência Pública para analisar os convênios da Secretaria Municipal
de Assistência Social, especialmente os que envolviam a Instituição Casa Espírita Tesloo, que
tinha 11 convênios com a Prefeitura que somavam o valor de R$ 40 milhões. Essa instituição era,
dentre outros, responsável pelos chamados “abrigos especializados” para crianças e adolescentes
para o tratamento de dependência química, na zona oeste do Rio. Em visita à casa, o Presidente
da Tesloo, um tenente coronel aposentado da PM, prometeu enviar à Vereadora a prestação de
contas dos contratos, mas isso nunca aconteceu. Compareceu à Audiência o Secretário de
Assistência Social, Rodrigo Bethlem, portando-se de forma arrogante e irônica, também se
comprometeu em enviar toda documentação e prestação de contas dos convênios, o que nunca
ocorreu.
126
Disponível em: http://www.estadodedireito.com.br/2011/08/30/forum-vai-refletir-. sobre-o-acolhimento-
compulsorio-de-menores-em-situacao-de-risco/ Acesso em 02/06/2014
138

4.1.2.11 2012

Ano de realização da Rio + 20, a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento
Sustentável, de 13 a 22 de junho de 2012, na cidade do Rio de Janeiro. A Rio + 20 foi assim
conhecida porque marcou os vinte anos de realização da Conferência das Nações Unidas sobre
Meio Ambiente e Desenvolvimento (ECO 92) e teve o objetivo de definir a agenda do
desenvolvimento sustentável para as próximas décadas. A Conferência já era objeto de grande
preocupação, pois, por experiência, já sabíamos que haveria aumento da repressão e do processo
de higienização na cidade.
Na época, a Rede Rio Criança produziu um vídeo chamado “Recolher não é Acolher: É
Barbárie!127”, e fez sua inscrição para exibição do vídeo na Rio + 20. O vídeo denunciava o
recolhimento e a internação compulsória de crianças e adolescentes em situação de rua na cidade
do Rio de Janeiro.
Observamos que em 2012 a quantidade de meninos/as recolhidos aumentou
consideravelmente após a Resolução 20/2011. Foram 544 num período de 12 meses, desde a
implementação da dita Resolução, segundo informação no site da Prefeitura / SMDS. A iniciativa
da Prefeitura do Rio foi alvo de polêmica e sérias contestações. A eficácia do tratamento iniciado
com uma internação obrigatória foi questionada por muitos especialistas, defensores de uma
abordagem baseada no convencimento e no apoio familiar. “Lugar de criança não é na rua. Se
não quero isso para o meu filho não quero para nenhum menino ou menina”, repetia o Secretário
de Assistência Social, Rodrigo Bethlem. Apesar da convicção de Bethlem, o percentual de
sucesso não pode ser considerado alto (28,16%) e a veracidade dos dados foi contestada128.
A guerra às drogas, mais especificamente ao crack, estava declarada. Diariamente a mídia
acompanhava as intervenções da polícia e da SMDS nas cracolândias do Rio. Os “cracudos”,
nome como ficaram conhecidas as pessoas que faziam uso do crack, eram alvo mais de repressão

127
Veja o vídeo publicado no Link: https://www.youtube.com/watch?v=5s71PNsW2NQ.
128
Publicado em: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/a-truculencia-nao-resolve/, em 13/04/12.
139

e discriminação do que de tratamento. Os próprios meninos/as em situação de rua faziam questão


de afirmar que “não eram cracudos129”.
O município do Rio de Janeiro arrecadou muito dinheiro através do Programa Federal
“Crack, é possível vencer!”. Segundo matéria do Jornal O Globo, de 25/10/12, o Ministro da
Saúde, Alexandre Padilha, disse que a cidade do RJ iria receber “o quanto fosse necessário” para
ampliar atendimento a “viciados”.

(...) O ministro informou, no entanto, que a prefeitura já recebeu R$ 36 milhões para


ações de enfrentamento à expansão da droga, por meio do projeto “Crack, é possível
vencer”. Segundo Padilha, o prefeito também assumiu o compromisso de acelerar a
execução orçamentária desses recursos já transferidos. Até as 20h, a prefeitura havia
130
confirmado que recebeu a verba, mas sem informar quanto foi efetivamente gasto .

Nesse período, na Comissão da Política Municipal de Rua do CMDCA, também


convidamos a SMDS para apresentar o Projeto dos Abrigos “Especializados” para tratamento de
dependência química de crianças e adolescentes. Quem compareceu à reunião foi o Presidente da
Casa Espírita Tesloo, responsável por administrar 03 abrigos conveniados com a Prefeitura para
tratamento drogadição de crianças e adolescentes, que haviam sido alvo da Audiência Pública da
Comissão de Orçamento da Câmara Municipal de Vereadores, no ano anterior. Eu o reconheci de
uma reunião de articulação para os Jogos Panamericanos, ocorrida em 2007, quando naquela
época ele se apresentava como oficial da Polícia Militar, mas não me manifestei. Devo
reconhecer que estremeci com aquela lembrança e, mais ainda, quando ele não só me reconheceu
e pronunciou o meu nome! Apenas sorri...
Qual não foi nossa surpresa e indignação quando, no dia 25/10/12, o Jornal O Dia
publicou a seguinte manchete: “Dono de abrigos do crack já matou 42131”. A matéria foi,
justamente, sobre o Presidente da Tesloo, o major reformado da Polícia Militar, Sérgio
Magalhães, 42 anos, homem contratado pela Prefeitura do Rio para cuidar de 178 adolescentes
internados, compulsoriamente, nos abrigos especializados. O mesmo que foi na reunião da

129
Na verdade, os meninos/as em situação de rua não faziam uso de crack, ou muitos poucos deles. O crack era à
época uma droga mais utilizada por adultos.
130
Publicado em: http://oglobo.globo.com/rio/ministro-da-saude-promete-recursos-para-acoes-contra-crack-no-rio-
6525436 , acesso em 25/10/12.
131
Publicado em> http://odia.ig.com.br/portal/rio/dono-de-abrigos-do-crack-j%C3%A1-matou-42-1.506907 , em
25/10/12.
140

Comissão da Política de Rua, na verdade, um colecionador de confrontos armados. De acordo


com o Jornal, em quatro anos de combate nas favelas,

(...) o oficial viu tombar nos tiroteios que protagonizou ao menos 42 pessoas, entre 1999
e 2002. Em três anos, Sérgio Magalhães fincou o pé na Prefeitura do Rio e não saiu
mais. Mesmo sem qualificação, conseguiu angariar R$ 1,8 milhão em verbas para cuidar
dos menores abandonados e famílias desamparadas. Mas o pulo do gato veio mesmo em
2009. De lá para cá, o combate ao crack e o acolhimento de crianças e adolescentes
injetaram R$ 78 milhões na casa espírita e deram ao major o título de rei da internação
compulsória (Jornal O Dia, Coluna Rio, 25/10/12, por João Antônio Barros).

Três dias depois, no dia 28/10/12, outra notícia do Jornal O Dia: “Internos sofrem castigos
físicos e químicos em centro administrado pela Tesloo132”. Matéria que envolvia o mesmo caso
anterior, mais especificamente sobre uma das Casas, a Ser Adolescente, que abrigava 44
adolescentes. Os castigos físicos eram vários, como acordar os meninos com balde d’agua fria.
Quem desobedecia às ordens era jogado amarrado na piscina, além de receber “porrada”. De
acordo com a reportagem, os castigos químicos, para aqueles que davam problemas, era uma
mistura de medicamentos fortíssimos (tranquilizantes) utilizados no tratamento para psicóticos e
esquizofrênicos.

“Só há um psiquiatra para todos os abrigos. Ele passa uma vez por semana em cada um.
Na emergência, os enfermeiros ligam e ele passa o remédio”, informa a defensora
pública, Eufrásia Souza das Virgens. O chamado SOS — doses elevadas de
tranquilizantes — também é ministrado como castigo para os fujões.
A constatação aparece no relatório da inspeção feita pela comissão multidisciplinar, a
pedido da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa. Além de
administrar os mesmos remédios a todos os pacientes, eles detectaram que, nos casos de
fugas e ‘rebeldia’, os menores recebiam duas injeções de Haldol (antipsicótico) e
Fenergam (antialérgico). É o castigo químico (Jornal O Dia, Coluna Rio, 28/10/12, por
João Antônio Barros)

De acordo com a notícia, os contratos da Tesloo com a Prefeitura do Rio (cerca de 11 na


época), todos sem licitação, somaram R$ 80 milhões desde 2005.Um dos convênios da Tesloo na
lista negra do Tribunal de Contas do Município não foi sobre atendimento a usuários de drogas,
mas para a atualização de 408 mil famílias do Cadastro Único para Programas Sociais do governo
federal, como o Bolsa Família, feito pela prefeitura do Rio. A ONG, que nunca prestou este tipo
de serviço, ganhou o contrato de R$ 9.687.841,10, em setembro de 2011. Essas informações

132
Publicado em: http://odia.ig.com.br/portal/rio/internos-sofrem-castigos-f%C3%ADsicos-e-qu%C3%ADmicos-
em-centro-administrado-pela-tesloo-1.508114, em 28/10/12.
141

haviam sido alvo de Audiência Pública no ano anterior, pela Câmara Municipal de Vereadores,
como já mencionado anteriormente.
Outra denuncia, era que o major reformado da PM fazia parte da milícia da zona oeste 133.
Com tudo o que foi publicado, a Prefeitura apenas declarou que não renovaria os contratos com a
Tesloo. Os contratos foram, posteriormente, encerrados pela Prefeitura. Não se teve maiores
informações sobre o caso.
Outro fato que gerou grande preocupação e polêmica foi o da utilização de armas de
choque elétrico pela Secretaria de Segurança nas abordagens junto a usuários de crack. A
Secretaria Nacional de Segurança (SENASP) fez a entrega de 250 dessas armas. A medida veio
embutida em pacote que incluiu a entrega de mais 750 sprays de pimenta, cinco bases de
monitoramento e 100 câmeras para vigiar as cracolândias134.
O tema da guerra às drogas, especialmente aos usuários de crack, explodiu na mídia com
inserções diárias, sistemáticas, de notícias das abordagens nas cracolândias, também em grandes
reportagens e documentários. Muitos devem ainda lembrar-se das imagens de usuários do crack
atravessando a Av. Brasil, no RJ, na frente dos carros em alta velocidade, correndo da polícia!
Era importante a construção desse inimigo, qual seja, o crack, os “cracudos”, o inimigo da
vez! A sociedade tinha medo, repelia os “cracudos”. Sob o título de “A epidemia do crack”, o
Observatório da Imprensa publicou que em uma passagem do livro A sociedade excludente135, o
autor Jock Young sintetiza a funcionalidade do processo de demonização do “outro”, que
recorrentemente se associa ao tema-tabu dos entorpecentes:

“A demonização é importante porque permite que os problemas da sociedade sejam


colocados nos ombros dos ‘outros’, em geral percebidos como situados na ‘margem’ da
sociedade. Ocorre aqui uma inversão costumeira da realidade causal: em vez de
reconhecer que temos problemas na sociedade por causa do núcleo básico de
contradições na ordem social, afirma-se que todos os problemas da sociedade são
devidos aos próprios problemas. Basta livrar-se dos problemas e a sociedade estará, ipso
facto, livre deles! Assim, em vez de sugerir, por exemplo, que grande parte do uso

133
Consta da relatoria da Audiência Pública da Comissão de Orçamento da Câmara Municipal, realizada no ano
anterior, ao falar do Tenente Coronel e família, “que em Magalhães Bastos, nessa área em que eles estão, são
bastante respeitados e temidos. Conversamos com o pessoal do entorno, e todo mundo tem até medo de falar e de
dar referências”.
134
Publicado em: http://odia.ig.com.br/portal/rio/secretaria-recebe-armas-de-choque-para-usar-em-abordagens-a-
viciados-1.514291 , acesso em 13/11/12.
135
A Sociedade Excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na sociedade recente, de Jock Young (Trad.
Renato Aguiar. Rio de Janeiro, Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002).
142

deletério de alto risco de drogas é causado por problemas de desigualdade e exclusão,


sugere-se que, se nos livramos deste uso de drogas (diga não’, trancafiem os traficantes),
não teremos mais nenhum problema 136."

Não queremos aqui minimizar a questão do crack e suas implicações e agravos à saúde
dos usuários, mas fortalecer esse inimigo era importante para o Poder Público do Rio de Janeiro
para justificar a necessidade de transferência de recursos do Governo Federal através do
Programa “Crack, é preciso vencer”, que girava em torno de R$ 240 milhões.
No dia internacional dos direitos humanos, 10 de dezembro, organizamos um Ato Público
em frente à Assembleia Legislativa (ALERJ), no qual exigíamos a prisão de Rodrigo Bethlem e
Eduardo Paes pela violação de direitos humanos através das operações de recolhimento e
internação compulsória. Como símbolo, prendemos numa gaiola de 2,5 m de altura bonecos de
Bethlem e Paes, que causou grande impacto à cena e mobilizou e sensibilizou muitas pessoas.
Naquela época, não imaginávamos que aquela figura de cena era praticamente uma premonição
do que ainda estaria por vir e levaria esse senhor (Bethlem), dois anos depois, às páginas
criminais dos jornais sob a acusação de desvio de dinheiro público e corrupção. O que veremos
mais adiante!

Figura 1 – Culpados por violação de direitos

Fotos: Márcia Gatto

136
Publicado em: http://observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed721_o_cultivo_cientifico_da_ignorancia,
acesso em 22/11/2-12.
143

4.1.2.12 2013

Eduardo Paes (PMDB) é reeleito enquanto Prefeito do Rio de Janeiro, e tem como Vice-
Prefeito Adilson Pires (PT). A internação compulsória, de acrianças, adolescentes e adultos
continuam sendo defendidas pelo prefeito Eduardo Paes, bem como a compra, pela Secretaria
Estadual de Segurança, de armas de choque elétrico e sprays de pimenta, para serem usadas nas
abordagens aos usuários de crack nas cracolândias.
No dia 09 de janeiro, Rafael Felipe Mota Ribeiro, de 10 anos, foi atropelado por um
caminhão na Avenida Brasil, na altura da Favela Nova Holanda, ao fugir de uma das constantes
operações de recolhimento de usuários de crack realizadas pela Prefeitura do Rio em conjunto
com policiais. Apavorados, os usuários se arriscavam na travessia da avenida de alta velocidade
para fugir dos agentes que participavam das operações de recolhimento137. Este fato gerou grande
indignação e revolta entre todos profissionais e defensores de direitos humanos, inclusive da
própria SMAS, contrários ao recolhimento e a internação compulsória de usuários de crack ou
qualquer outra droga. O Desembargador Siro Darlan, publicou sobre o fato em sua página no
Facebook:

Uma criança de 10 anos foi assassinada pela sina fascista da prefeitura do rio de janeiro,
que por total ausência de políticas públicas, persegue crianças e adolescentes doentes nas
ruas do Rio de Janeiro, não para tratá-las como alegam, mas para retirá-las das ruas e
escondê-las nos campos de concentração que chamam de abrigos, cujo aproveitamento
tem sido de menos de 10% dos "aprisionados" apesar do volumoso recurso que recebem.
A intenção final é esconder a pobreza e a miséria para sediar os grandes eventos
esportivos.
O Ministério Público, fiscal de uma lei em vigor há mais de 22 anos, (estatuto da criança
e do adolescente) acha que pode contemporizar com o que é legal, quando o infrator é o
administrador público, e é conivente com mais esse crime praticado contras as crianças
cariocas: a falta de vagas nas creches do Rio de Janeiro. Vale tudo para justificar essa
desídia contra a cidadania das crianças. Aliás o MP também apoia o "recolhimento
compulsório" que afronta a constituição e impede que os empresários destinem verbas
devidas ao imposto de renda ao fundo da criança para a efetivação dos direitos das
crianças e dos adolescentes. Quem tem um "protetor" como esse não precisa de
inimigos.
Siro Darlan, em 10/01/13 (Facebook).

137
Ver em: http://oglobo.globo.com/rio/sepultado-corpo-de-menino-atropelado-durante-acao-contra-crack-na-
avenida-brasil-7247080 , acesso em 10/01/13.
144

Desde a Resolução 20/2011, o crack tem sido visto como o grande mal da sociedade e que
existe uma suposta epidemia se espalhando pelo Brasil. Essa ideia foi progressivamente tomando
conta da imprensa e dos discursos políticos. Assim, um imaginário social, baseado mais no medo
que em informações científicas, foi construído para justificar uma série de políticas e práticas
polêmicas por parte do Estado de combate ao crack, amparadas, principalmente, por práticas
higienistas, de controle e repressão.
A Secretaria Municipal de Assistência Social do Rio de Janeiro colocou em prática o
sistema de internação compulsória para crianças e adolescentes em situação em rua,
supostamente usuários de crack, que são internados em abrigos onde são forçados a receber
tratamento psiquiátrico. Vários meninos e meninas foram recolhidos das ruas e internados
compulsoriamente superlotando os poucos abrigos existentes, o que foi contestado por diversos
segmentos ligados à saúde, diretos humanos, assistência social, direito, dentre outros, que veem
na suposta defesa da saúde pública um disfarce para interesses econômicos e políticos, bem como
pela higienização e segregação desse grupo social.
Não bastasse se medida que viola direitos humanos, a internação compulsória é ineficaz
no tratamento de quem sofre dependência química. De acordo com especialistas da área da saúde
mental, em 97% dos casos onde há internação compulsória, o dependente químico não se livra do
vício. O tratamento tem mais resposta quando o usuário expressa o desejo do tratamento, que não
precisa sair do convívio social. O usuário já é desprovido de liberdade e precisa ser reinserido na
sociedade, com tratamento adequado, moradia e emprego.
Diante de tanta controvérsia, o Ministério Público definiu à época que era contra a forma
como o caso estava sendo tratado pelo governo, e que era a favor da lei de Saúde Mental
existente, que prevê a internação compulsória apenas em última instância.
O Prefeito Eduardo Paes e o Secretário Rodrigo Bethlem foram denunciados pelo
Ministério Público (MP) em 02 ações civis públicas, sendo a primeira por improbidade
administrativa por terem descumprido um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), no qual
ficou firmado que a Prefeitura suspenderia as ações de recolhimento e internação compulsória da
população em situação de rua. Nesta primeira ação, o promotor Rogério Pacheco pede a
indenização de R$ 50 mil para cada morador de rua que teve seu direito violado. Como cerca de
seis mil moradores de rua teriam sido afetados pelo Choque de Ordem de Paes e Bethlem,
chegou-se ao valor de R$ 300 milhões. Já numa segunda ação, o MP pede outros R$ 300 milhões
145

de indenização por dano moral causado contra os moradores de rua. Na ação são listadas as
ilegalidades das ações de Choque de Ordem contra tal população: uso de armas de fogo e de
choque para intimidar os moradores, violência nas operações por parte da Guarda Municipal,
além de insalubridade e venda de drogas dentro dos abrigos para população adulta.

"Não dá para assistir de braços cruzados às ações da Seop 138 contra a população de rua.
É absurdo demais retirar as pessoas da rua à força. Pior ainda é empregar violência e
jogar fora roupas e documentos dos moradores de rua. A Comlurb era a responsável por
dar apoio às ações. É absurdo", explicou o autor da Ação Civil Pública139.

O Ministério Público anunciou que a internação compulsória de adultos é ilegal e não


poderá ser realizada pela Prefeitura / SMAS. De acordo com os Promotores, o Prefeito não
poderá remover a população de dependentes adultos para abrigos, como faz com as crianças e
adolescentes. Por meio do inquérito civil público, o MP também apurou as deficiências de
atendimento do serviço público de saúde para os usuários de crack, que é feito através de
atendimento ambulatorial em apenas quatro Centros de Atenção Psicossociais para Álcool e
Drogas (CAPS-AD) no Rio de Janeiro, e que precisam ser ampliados. Os Consultórios na Rua
são um tipo de equipamento que tem respondido favoravelmente ao atendimento dessa população
e também devem ser ampliados.
Diante do TAC e ação civil do MP, o Prefeito Eduardo Paes e o Secretário Rodrigo
Bethlem não mais internaram compulsoriamente a população adulta em situação de rua, mas esta
nunca recebeu indenização pelos abusos sofridos. A ação civil pública, que versava em prol desta
população, desprezou crianças e adolescentes em situação de rua, pois o MP considera que estas
não podem permanecer nas ruas, sendo necessária a adoção de medidas protetivas. Com isso,
para as crianças e adolescentes em situação de rua o recolhimento e a internação forçada se
mantiveram.
A Rede Rio Criança organizou vários atos públicos exigindo a prisão de Rodrigo Bethlem
pelas denúncias de desvio de dinheiro público através da implementação das clínicas para
tratamento de adolescentes, supostamente, dependentes químicos140 e, posteriormente,

138
Secretaria Especial de Ordem Pública.
139
Publicado em: http://www.jb.com.br/rio/noticias/2013/04/12/processo-que-pode-cassar-paes-ja-esta-na-justica/ ,
acesso em 10/04/13.
140
Publicado em: http://oglobo.globo.com/rio/ex-secretario-municipal-tera-contratos-investigados-13390563
146

denunciado pelo desvio de verba pública e corrupção141, envio de dinheiro para o exterior142
(2015), e pela violação de direitos humanos que permeou todo o período. Homem forte do
Prefeito Eduardo Paes, que inclusive o nomeou Chefe da Casa Civil, em 2014, estranhamente,
passou ileso de todas as acusações.
O vídeo “Recolher não é Acolher: É Barbárie!143”, da RRC, foi lançado com ampla
divulgação no youtube, como forma de denuncia contra o recolhimento e a internação
compulsória.
Grande polêmica na época também foi a liberação de verbas federais para as
Comunidades Terapêuticas, entidades de cunho religioso (ligadas a grupos católicos e
evangélicos) que abrigam dependentes de drogas para o tratamento, instituições muito criticadas
pela área da saúde e especialistas em saúde mental, pelo tipo e filosofia do tratamento. Verba
disputada, a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad) teria em caixa à época R$ 130
milhões para tratamento de dependentes. Segundo informação144, o repasse seria de R$ 1 mil por
mês para cada adulto internado e de R$ 1,5 mil para cada criança ou adolescente.
Outro projeto que gerou grande polêmica foi o do Deputado Osmar Terra (PMDB), que
previa a criação de um cadastro nacional das pessoas que eram dependentes de drogas. Os
profissionais incumbidos do atendimento e de internações estariam obrigados à pronta
informação, para o cadastro, sobre o dependente atendido ou, se internado, beneficiado por alta.
Conforme o artigo 16 do projeto de lei nº 7.663/2010, também caberia a instituições de ensino
preencher uma “ficha de notificação, suspeita ou confirmação de uso e dependência de drogas
dos alunos”145. Houve uma grande mobilização contrária ao projeto de lei, pois estigmatizaria e
criminalizaria ainda mais essas pessoas, trazendo consequências também para suas famílias.

141
Publicada em: http://epoca.globo.com/tempo/noticia/2014/07/nova-gravacao-sugere-bcaixa-dois-bancado-pelo-
rei-do-onibusb-na-campanha-do-deputado-bethlem.html
142
Publicado em: https://oglobo.globo.com/rio/mp-investiga-informacao-de-que-rodrigo-bethlem-teria-mais-us-35-
milhoes-no-exterior-16662657
143
Publicado em: https://www.youtube.com/watch?v=5s71PNsW2NQ , 2012.
144
Publicado em: http://oglobo.globo.com/pais/politica-de-drogas-planalto-manda-liberar-verba-para-grupos-
religiosos-8123253 , acesso em 16/04/13.
145
Publicado em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/103781-um-projeto-drogado.shtml , 14/04/13
147

Interessante relembrar que, na Alemanha, anos 1930, uma das leis de exceção
discriminatórias contra os judeus no Terceiro Reich foi cadastrar a todos e marcar suas roupas
com uma estrela amarela. Nenhum judeu poderia sair em público sem essa estrela.
Em tempo, pesquisa realizada pela Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) sobre o perfil
dos usuários de crack no Brasil, trouxe dados que comprova que as propostas constantes no
projeto de lei que tramita no Senado Federal (PLC 37/2013) e que modifica atual Lei de Drogas
(11.343), não têm embasamento científico e não correspondem à realidade brasileira.
O levantamento demonstrou, por exemplo, que a grande maioria (78,9%) dos usuários de
crack deseja receber tratamento – o maior problema seria o baixo acesso aos serviços disponíveis
– sendo desnecessária, portanto, a ênfase na internação involuntária, proposta no texto do PLC 37
como base para o atendimento de dependentes de drogas. Outro dado encontrado na pesquisa,
que entrevistou cerca de 25 mil pessoas nas capitais e regiões metropolitanas de todo o país, é
que o universo de usuários de crack é de 370 mil pessoas e não 1,2 milhão, número que serviu de
base para as ações do programa “Crack, é possível vencer”, do governo federal. Segundo o
levantamento, esse número se aproxima, na verdade, do número total de usuários de drogas
ilícitas em todo o país, com exceção da maconha, e não somente de crack.
O trabalho, “Perfil dos Usuários de Crack e/ou Similares no Brasil 146”, coordenado pelo
pesquisador Francisco Inácio Bastos, trouxe evidências que podem ajudar o Brasil a tratar a
questão do crack de forma mais objetiva e consistente e com respeito aos direitos humanos.
A pesquisa propõe um tratamento mais humanizado, e que as pessoas se apresentem de
forma voluntária ao tratamento, enfocado na redução de danos. O PLC 37 não menciona essas
estratégias e tem como única métrica de sucesso a abstinência, o que não condiz com a realidade
da dependência. Projetos como o do deputado Osmar Terra criminalizam ainda mais uma
população já excluída e desassistida pelo Estado.
Em outubro de 2013, pesquisa realizada pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento
Social com o apoio do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets), revela que a cidade do
Rio de Janeiro tem mais 5.000 moradores de rua. O censo mostra que 64,8% dos entrevistados
disseram estar nessa situação há pelo menos um ano. No total, a pesquisa detectou 5.580
moradores de rua, sendo 81,8% homens. O levantamento foi feito através 650 entrevistadores que
percorreram 96 roteiros na cidade, em horários alternados, para fazer o mapeamento detalhado.
146
Ver em: https://www.icict.fiocruz.br/content/livro-digital-da-pesquisa-nacional-sobre-o-uso-de-crack-%C3%A9-
lan%C3%A7ado .
148

As regiões onde foram detectadas as maiores quantidades de população de rua foram o Centro
(33,8%) e a Zona Sul (15,3%), juntas apresenta quase a metade da dessa população. A maioria
dos considerados “moradores de rua” se concentra na faixa etária de 25 a 59 anos de idade:
69,6%. Em seguida, estão os jovens, de 18 a 24 anos (17,5%); pessoas com mais de 60 anos
(6,3%); adolescentes de 12 a 17 anos (5,6%); e crianças de até 11 anos (1,1%). A pesquisa foi
publicada (impressa) pela SMAS, e também saiu na mídia147.
Outro estudo, realizado pelo Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública do
Estado do Rio de Janeiro (NUDEDH), traçou um perfil das pessoas em situação de rua, na região
metropolitana da capital. A pesquisa derrubou mitos e trouxe à tona outra realidade sobre o perfil
dessa população. Somente 13% dos moradores de rua são analfabetos, 65% não bebem e 62%
não usam drogas. “A intenção do projeto era realizar um mapeamento dessa população. É muito
difícil realizar esse censo, nem o Censo do IBGE os afirma, pois parte da premissa do endereço,
ou seja, são pessoas invisíveis”, afirmou a coordenadora do estudo, Juliana Moreira148.
Nossa prática, ao longo desses anos de trabalho nas ruas, atesta que o álcool é a droga
mais utilizada pela população adulta em situação de rua, e não o crack. O álcool é, inclusive, a
droga que mais mata, e não o crack! E que uma pequena minoria das crianças e adolescentes em
situação de rua faz uso do crack. Fica a pergunta: por que não é feita uma campanha nacional:
“Álcool – é possível vencer!!”? A resposta é simples: o álcool é uma droga lícita, mercadoria que
traz muito lucro para o mercado.
A impressionante pulsão ofensiva e sistemática das operações de recolhimento e
internação compulsória de crianças e adolescentes em situação de rua marcaram o ano de 2013,
principalmente por duas razões: a realização da Copa das Confederações, de 15 a 30 de junho
daquele ano; e a realização da Copa do Mundo no ano posterior (2014). A cidade tinha que estar
limpa, revitalizada e ordenada. Para isso, projetos de lei e práticas mais duras e repressivas foram
se incorporando para o ordenamento da cidade. O Projeto de Lei 728/2011, de autoria dos
senadores Marcelo Crivella (PRB-RJ), Ana Amélia (PP-RS) e Walter Pinheiro (PT-BA),
que previa que manifestações durante a Copa das Confederações e Copa do Mundo fossem

147
Publicado em: http://oglobo.globo.com/rio/rio-tem-mais-de-5-mil-moradores-de-rua-10598998 .
148
Publicado em: http://revistaforum.com.br/blog/2013/05/estudo-no-rj-mostra-que-maioria-da-populacao-de-rua-
nao-bebe-nem-usa-drogas/ , 16/05/2013
149

tratadas como atos de terrorismo, limitando, inclusiva o direito dos trabalhadores à greve, foi
desengavetado, mas, felizmente, não foi adiante.
Uma declaração do Secretário Geral da FIFA, Jérôme Valcke, em abril daquele ano,
também causou perplexidade: “Menos democracia, às vezes, é melhor para organizar uma
Copa149”. Comparou Brasil e Rússia, quando disse que era melhor ter um chefe de estado
centralizador, como o russo Vladimir Puttin, para se organizar um Mundial, pois, para Valcke,
seria mais fácil organizar uma Copa do Mundo em países onde a democracia não tenha tanta
força.
Do Dossiê do Comitê Popular da Copa e Olimpíadas, lançado em maio de 2013,
importante destacarmos algumas denúncias:

O início das ações na direção desse projeto permite afirmar que a cidade avança em
sentido oposto ao da integração social e da promoção da dignidade humana. Os impactos
das intervenções urbanas são de grandes proporções, e envolvem diversos processos de
exclusão social, com destaque para as remoções. Para se ter uma ideia, as informações
disponíveis possibilitam estimar gastos da ordem de um bilhão de reais com
desapropriações (...).
A implantação dos BRT s – Bus Rapid Transit. Para além das remoções, estão em curso
transformações mais profundas na dinâmica urbana do Rio de Janeiro, envolvendo, de
um lado, novos processos de elitização e mercantilização da cidade, e de outro, novos
padrões de relação entre o Estado e os agentes econômicos e sociais, marcados pela
negação das esferas públicas democráticas de tomada de decisões e por intervenções
autoritárias, na perspectiva daquilo que tem sido chamado de cidade de exceção.
Decretos, medidas provisórias, leis votadas ao largo do ordenamento jurídico e longe do
olhar dos cidadãos, assim como um emaranhado de portarias e resoluções, constroem
uma institucionalidade de exceção. Nesta imposição da norma a cada caso particular,
violam-se abertamente os princípios da impessoalidade, universalidade e publicidade da
lei e dos atos da administração pública. De fato, as intervenções em curso envolvem
diversos processos nos quais os interesses privados têm sido beneficiados por isenções e
favores, feitos em detrimento do interesse público, legitimados em nome das parcerias
público-privadas.

4.1.2.12.1 Manifestações, Terrorismo de Estado e avanço dos Movimentos Fascistas

Foi, principalmente, a partir de 2013 que a o terrorismo de estado e suas práticas abusivas
de exceção ultrapassam o território das favelas e periferias, e ganham visibilidade na sociedade,

149
Publicado em: http://www.espbr.com/noticias/excesso-democracia-afeta-organizacao-copa-diz-valcke , acesso em
25/04/13.
150

ou para parte dela, e ganham as ruas dos principais centros urbanos, eclodindo nas manifestações
públicas que se iniciaram em junho daquele ano.
A primeira grande manifestação daquele ano foi a luta do Movimento Passe Livre (MPL),
movimento a favor dos transportes públicos gratuitos e mobilizado contra o aumento da
passagem do ônibus, que desencadeou a ampla mobilização popular no Brasil em junho de 2013,
colocando centenas de milhares de pessoas nas ruas das principais cidades do país. O MPL foi
criado em janeiro de 2005, por ocasião do Fórum Social Mundial em Porto Alegre, como uma
rede federativa de coletivos locais. Esses coletivos já existiam havia alguns anos e haviam
travado lutas importantes, como a de Salvador, em 2003, contra o aumento da passagem de
ônibus. A carta de princípios do MPL define o movimento como “um movimento horizontal,
autônomo, independente, não partidário, mas não antipartidos”150.
Será que o Brasil havia acordado? Muitos pensaram. Tudo indicava que sim! Haviam
anos que não se via uma manifestação tão grande no Rio de Janeiro e em outras capitais. Tudo
parecia muito pacífico, repleta de pessoas de todas as idades: crianças, adolescentes, jovens,
adultos, idosos; todos aparentemente felizes por fazer parte daquela manifestação. Parecia que
todos só estavam esperando um chamamento, que veio, mas, não veio sozinho. Particularmente,
achei estranha a ideia da maioria das pessoas estar ali sem um objetivo específico, se mostrar
contrária a partidos políticos, dentre outras. Um exemplo foi a expulsão de manifestantes da CUT
(Central Única dos Trabalhadores), pressionados por uma multidão que gritava: “Sem partido”!
As "bandeiras" dos manifestantes eram direcionadas contra o uso de dinheiro público em obras
da Copa do Mundo, melhorias nas áreas de saúde, educação e segurança, combate à corrupção, e
contra a PEC 37 (mudança de lei que pode tirar o poder de investigação do MP)151.
Também me chamou atenção a presença de grupos carregando bandeiras favoráveis à
ditadura, contra o comunismo, e de alguns homens fortes, cabelo bem curto, com uma postura
estranha, mais parecida com P2152 ou X9153, além do policiamento ostensivo. Ali também vimos

150
https://blogdaboitempo.com.br/2014/01/23/o-movimento-passe-livre/
151
Veja mais em https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/06/20/em-dia-de-maior-mobilizacao-
protestos-levam-centenas-de-milhares-as-ruas-no-brasil.htm?cmpid=copiaecola
152
P2 - Polícia Militar sem farda, infiltrada em espaços diversos para fazer investigação sem ser notada.
153
X9 – Conhecido como delator, “dedo-duro”.
151

pessoas usando a máscara do teatro do anônimo, outras todas de preto, com o rosto coberto com
toucas ninjas, os quais, posteriormente, conhecidos como “black blocs154”.
Ao final se teve notícia de pancadaria e quebra-quebra, registro de violência em
confrontos entre manifestantes e policiais e atos de “vandalismo” em várias cidades. No RJ foi
noticiada ter mais de 60 feridos.
Rafael Braga, de 25 anos, morador de rua, foi detido após a manifestação do dia 20 de
junho, quando milhares de pessoas tomaram o centro do Rio de Janeiro no embalo dos protestos
contra o aumento das passagens de ônibus. Ele levava consigo duas garrafas de produtos de
limpeza – água sanitária e desinfetante Pinho Sol, que foram consideradas “artefato explosivo ou
incendiário” pela polícia e pelo juiz responsável pelo caso. É a única pessoa julgada e condenada
(05 anos) por crime relacionado a protestos no Brasil. Importante destacar que Rafael Braga é
negro, morava na rua e usava crack155.
Apesar de tudo, o resultado pareceu positivo para uma quase totalidade das pessoas que
participaram da manifestação, e campo para muito estudo, artigos e opiniões, em sua maioria
enaltecendo as manifestações. Essa foi a primeira, mas que desencadeou várias outras
manifestações pelo país. No RJ a maioria das manifestações que foram ocorrendo tinha o objetivo
de protestar contra o Governo do Estado, mas também outras contra o governo federal, o PT, a
corrupção, a realização da Copa e Jogos Olímpicos. Em todas as manifestações, a violência da
polícia contra grupos de manifestantes foi desmesurada. Os policiais não atuavam apenas entre os
que causavam danos ao patrimônio público, mas intimidavam ostensivamente qualquer um, sem
contar as bombas de gás, balas de borracha e spray de pimenta lançados contra quem protestava
pacificamente ou não. Nesses episódios, a violência do Estado, cotidiana nas favelas e periferias,
foi sentida por uma significativa parcela da população, residentes em áreas mais favorecidas. Ou
seja, a violência do Estado desceu a favela e foi pro asfalto.
Foi também nessa época que observamos o descortinar e o aumento de movimentos e
pessoas que defendiam, já sem reservas, ideologias totalitárias, a volta da ditadura, muita
intolerância, preconceito, ódio à diferença, etc... Mas, só alguns anos mais tarde que alguns
intelectuais iriam de fato confirmar que “os fascistas estavam passando...”.

154
“Black Blocs” é um grupo/movimento que surgiu na Europa contra a globalização e o capital financeiro.
155
Publicado em: http://www.diariodocentrodomundo.com.br/quem-e-rafael-braga-vieira-o-unico-preso-por-crime-
relacionado-a-protestos-no-brasil-ele-portava-pinho-sol/
152

Ao final do ano de 2013, o Ministério da Defesa lançou portaria nº 3.461, de 19/12/13,


que dispões sobre Garantia da Lei e da Ordem, com a finalidade de estabelecer orientações para o
planejamento e emprego das Forças Armadas para garantir a lei e a ordem. A Portaria encontra-se
no Anexo I.

4.1.2.13 2014

Ano de eleições para Presidente, Senadores, Deputados Estaduais e Federais. Ano de


Copa do Mundo!!
Com a saída de Rodrigo Bethlem da SMAS, o Vice-Prefeito Adilson Pires (PT), a convite
do Prefeito, também assume a pasta da Assistência social do município e a então Secretaria
Municipal de Assistência Social passa, novamente, a se chamar Secretaria Municipal de
Desenvolvimento Social (SMDS). A entrada de Adilson Pires, um político de esquerda, facilitou
o diálogo com a militância, movimentos sociais, defensores de direitos humanos, porém não
contribuiu com a mudança nas práticas abusivas e violentas na cidade, ao contrário, não só
permaneceram como aumentaram.
O ano de 2014 se inicia com grande preocupação da RRC, e diversos segmentos da
sociedade civil comprometidos com a defesa dos direitos humanos, com os preparativos finais
para a Copa do Mundo, que aconteceria em meados daquele ano. A cidade passava por um
processo de revitalização, iniciado há alguns anos atrás, trazendo grandes impactos para a
população da cidade: trânsito intenso, grandes obras e especulação imobiliária, remoções de
grupos da população, mais controle e repressão. Em relação à população em situação de rua,
observamos a manutenção de práticas higienistas, repressivas e arbitrárias; um aumento das
operações de recolhimento da população em situação de rua, especialmente crianças e
adolescentes, bem como de adolescentes e jovens dos ônibus da periferia em direção às praias da
zona sul, bem como o aumento no encarceramento de crianças e adolescentes, seja em abrigos ou
nas unidades do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (DEGASE). Houve um aumento
significativo de internação de adolescentes no DEGASE, a maioria após recolhidos, ou em
abordagens policial pela cidade. Com a intensificação das operações de recolhimento,
153

observamos também o deslocamento desse público para outras áreas, distantes do centro e zona
sul da cidade, assim como alguns deles se refugiaram nas chamadas “ocupações” no Centro da
cidade e arredores.
Nesse período, observamos o aumento das terceirizações feitas pelo Poder Público. Foram
contratadas Organizações Sociais (OSs156) para atuarem no Estado e Município em diversas
áreas: Saúde, Assistência, etc. Em consequência, vários problemas foram gerados, inclusive, no
caso da Assistência Social, na contratação de pessoal sem perfil qualificado e experiência, mal
gerenciamento de centros de atenção especializados, abrigos, etc..
Denúncias de corrupção, desvio de verba pública, recebimento de propina foram feitas
contra o ex Secretário Municipal de Assistência Social, e Deputado Federal, Rodrigo Bethlem.
Fatos graves, mas que permaneceram impunes perante a justiça, e também no Legislativo, apesar
de pedidos de instauração de CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito).
No que tange à violação de direitos humanos, um fato ocorrido em início de fevereiro,
quando um adolescente havia sido espancado, ferido com uma faca e amarrado nu a um poste,
preso ao pescoço com uma tranca de bicicleta, no bairro do Flamengo, zona sul da cidade do RJ,
pela ação de “Justiceiros”, por suspeita de este ter cometido um furto157, causou grande
indignação, mas não para todos. Considerado um ato de grande violência e brutalidade, uma
parcela da sociedade, no entanto, concordou com o ato, expressando que dessa forma o país deixa
de ser “um país da impunidade”. Muitos dos comentários, em diversas notícias sobre esse fato,
expressaram apoio à ação dos justiceiros e contrários aos direitos humanos, especialmente depois
do comentário de uma jornalista de TV, de um jornal do SBT, que ao final disse: “Tá com dó?
Leva pra casa!”. O fato ainda serviu de exemplo para o cometimento de ações semelhantes em
outras áreas da cidade, como em Campo Grande158, zona oeste do Rio, e Belford Roxo, na

156
As organizações Sociais de Saúde (OSS) são instituições do setor privado, sem fins lucrativos, que atuam em
parceria formal com o Estado e Município, e colaboram de forma complementar.
157
http://noticias.r7.com/rio-de-janeiro/adolescente-suspeito-de-roubo-e-espancado-e-amarrado-nu-em-poste-na-
zona-sul-do-rio-03022014, acesso em 03/02/14.
158
Publicado em: http://extra.globo.com/casos-de-policia/menor-suspeito-de-arrombar-trailer-em-campo-grande-
espancado-amarrado-poste-11786587.html , em 05/03/14.
154

Baixada Fluminense159, que teve a execução de um assaltante filmada e divulgada em redes


sociais.

Figura 2 - Adolescente preso pelo pescoço


por uma trava de bicicleta

Fonte: Reprodução/Facebook

O menino, quando foi levado para um abrigo, disse aos funcionários, e depois também
confirmou à policia, que foi amarrado ao poste por um grupo de cerca de 15 homens em motos.
Um deles estaria com uma pistola. Ele teria sido agredido e chegou a ser levado para o Souza
Aguiar com lesões pelo corpo, mas acabou fugindo do hospital. O Grupo se autodenominou
“Justiceiros da Zona Sul”, formado por jovens de classe média.

Esta é a vida real. Mas, no discurso moralizante, céu e inferno estão em lugares
invertidos. Este discurso antes estava restrito ao ambiente familiar: o xucro falava
atrocidades, se enfurecia, ficava vermelho, ameaçava infarto mas, ao fim do jantar,
servia-se do café e se acalmava nos primeiros segundos da novela. Voltava a hibernar
em paz sobre o sofá com uma baba pastosa no canto da boca. Depois o xucro descobriu a
internet e se transformou em comentarista oficial de portais. É lá que ele transpõe tudo o
que sabe sobre leis, direitos de ir e vir, humanidade e segurança pública, sempre sob o
lema “bandido bom é bandido morto” e suas variações: “direitos humanos são direitos
dos manos”, “direitos humanos para humanos direitos”, “tá com pena do bandido, leva
pra casa”, “estatuto de criança e adolescente protege o jovem bandido”, etc.
A sofisticação de seu raciocínio denota uma deficiência lógica e cognitiva. Lógica
porque vê impunidade em presídios superlotados destinados a animais, não para
humanos. E cognitiva porque confessa a incapacidade de reconhecer a humanidade no
outro – o outro é sempre o “bandido”, mas também pode ser a “biscate”, o “drogado”, o
“mano”, o “playboy” e até o “que tem dó de bandido”. Para ele, não há nada, nem carne
nem osso nem sangue debaixo do rótulo: tudo é uma questão de senso de oportunidade.
Daí a paranoia, daí a patologia. O conselheiro Aires, célebre personagem de Machado de
Assis, é quem costumava dizer: “a ocasião faz o furto; o ladrão nasce feito 160”.
159
Publicado em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2014/02/policia-identifica-suspeito-de-matar-homem-
tiros-na-baixada.html , acesso em 06/02/14.
160
Parte do artigo de Matheus Pichonelli, Publicado em: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/ta-com-do-leva-
pra-casa-9077.html, acesso em 10/02/14.
155

Após esse episódio do menino preso a um poste, que teve grande repercussão, a
Prefeitura criou uma força-tarefa “para coibir a prática de pequenos delitos, principalmente
roubos e furtos a pedestre na Zona Sul e no Centro da cidade”. As operações foram desenvolvidas
de forma integrada das Secretarias Municipais de Desenvolvimento Social e de Ordem Pública,
da Comlurb, Guarda Municipal e Polícia Militar, trabalhando 24 horas, todos os dias da semana.
Segundo o coordenador do projeto, Rodrigo Bethlem, o objetivo é atuar com todos os órgãos para
enfrentar os problemas da cidade de forma simultânea. Logo no primeiro dia de atuação, 70
adultos, 20 adolescentes e uma criança foram recolhidos para abrigos161.
Em nível Estadual, o Governador Sérgio Cabral renuncia ao cargo, em 03/04/14, depois
de cumprir 02 mandatos, sendo o último eleito (em 2010) com a maior votação da histórica do
estado. Sua renúncia já era prevista, pois Cabral pretendia concorrer às próximas eleições de
outubro daquele mesmo ano. Assume Luiz Fernando Pezão, então Vice-Governador. Desgastado
politicamente, Sérgio Cabral nem chegou a candidatar-se pela avalanche de denúncias e
escândalos de corrupção, propina e desvio de dinheiro público que foram surgindo, até que foi
preso em novembro de 2016.
No início de 2014, com as sistemáticas operações de recolhimento e violação de direitos
humanos da população em situação de rua, as discussões envolvendo os direitos de crianças e
adolescentes tornaram-se mais frequentes, e no dia 10 de abril de 2014, foi realizada a audiência
pública Violência sistemática contra crianças e adolescentes em situação de rua, tendo como
objetivo abordar uma série de episódios alarmantes que denunciavam o contexto de violação de
direitos que vem ocorrendo no Rio de Janeiro. A audiência resultou de uma construção coletiva
de organizações, grupos e indivíduos atuantes no campo da defesa dos direitos infantojuvenis e
demonstrou a não implementação da Política Municipal de Atendimento à Criança e ao
Adolescente em Situação de Rua, deliberada pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e
do Adolescente – CMDCA Rio - (Deliberação 763/2009).
A audiência pública foi promovida pela Comissão da População de Rua, da Câmara
Municipal de Vereadores, em articulação com instituições da sociedade civil e do Fórum de
População em situação de rua. Enquanto desdobramento da Audiência foi constituído o Grupo de

161
Publicada em: http://oglobo.globo.com/rio/forca-tarefa-para-coibir-roubos-furtos-acolhe-mais-de-90-pessoas-
11636677 , em 18/02/14.
156

Trabalho (GT) Criança e Adolescente da Comissão POP Rua162, para aprofundar as reflexões e o
debate, visando sistematizar propostas que possam cooperar com o aprimoramento das práticas
existentes no município, e elaborar a proposta de Adequação da Resolução 20/2011 à normativas
nacional e internacional de direitos humanos, através de abordagem humanizada junto à
população em situação de rua. Como veremos no capítulo 6, o resultado, passados 02 anos, desse
grupo de trabalho foi muito positivo, pois não só conseguiu a revogação da Resolução 20, como
foi ratificada e assinada pelo Secretário Municipal de Desenvolvimento Social uma nova
Resolução, que teve grande contribuição de nosso GT Cri/Adol da Comissão POP Rua.
Outra grave denúncia foi feita pelo Fórum da População de Rua, numa reunião no
Conselho Regional de Serviço Social (CRESS RJ), em meados de março/2014, na qual
participaram representantes da sociedade civil, de diversas maternidades e hospitais públicos,
assistentes sociais, dentre outros. Foi relatado que existia uma orientação / determinação do
Ministério Público (mas que a princípio nenhum órgão presente havia visto ou recebido por
escrito), de que toda adolescente grávida em situação de rua, que estivesse em acompanhamento
pré-natal ou que tivesse dado entrada na maternidade para ter o bebê, se fosse detectado essa ser
usuária de drogas (crack, dentre outras), que o Hospital ou Maternidade deveria notificar
imediatamente a I Vara da Infância e Juventude, que procederia a suspensão do poder familiar ou,
quando possível, a entrega do bebê à família extensa ou substituta. Aqui se iniciava um tema
grave, um dos que também traremos no capítulo 5 dessa tese: Adoção e/ou retirada compulsória
de bebês de jovens mães e mulheres em situação de rua, supostamente usuárias de drogas/crack.
No início do 2º semestre, já às vésperas da Copa, o Ministério Público constatou o
descumprimento de uma decisão judicial que proíbe a retirada compulsória de moradores de rua
em áreas de grande fluxo turístico durante a Copa do Mundo. Assim como, a superlotação no
principal Abrigo Municipal da cidade, o Rio Acolhedor, para população adulta de rua, que fica
em Antares, Santa Cruz, zona oeste do Rio, com péssimas condições de infraestrutura e higiene,
verdadeiro campo de concentração, e ainda com o tráfico de drogas atuando nas imediações e
dentro do abrigo. Várias denúncias estavam sendo feitas pela população em situação de rua de
que as equipes de abordagem da SMAS estavam levando-os para lugares distantes à noite, e
deixando-os ao relento, perdidos e com frio.

162
O GT Cri/Adol da Comissão POP Rua era formado por: Comissão Municipal da População de Rua da Câmara de
Vereadores, Ministério Público, Defensoria Pública, Rede Rio Criança, CIESPI, Se Essa Rua Fosse Minha.
157

A forte pressão de um grupo hegemônico da sociedade pela redução da maioridade


penal, com forte apoio da mídia; a veiculação sistemática de notícias de grupos de adolescentes
das camadas populares e em situação de rua envolvidos em assaltos, arrastões, etc, também
influenciou o aumento do controle e repressão pelo Estado, assim como, na massificação da
construção de subjetividades sobre “o jovem perigoso”.
Entre os dias 12 de junho e 13 de julho foi, finalmente, realizada a Copa do Mundo no
Brasil. A cidade do Rio de Janeiro, sede dos principais jogos, estava repleta de turistas, mas
também de muito policiamento, cerca de 20 mil policiais. Em dias de jogo, apenas moradores e
torcedores podiam circular no entorno do Estádio do Maracanã, por exemplo. Com todo esse
reforço policial, muitas crianças e adolescentes em situação de rua se deslocaram para outras
áreas da cidade, outras estavam em abrigos, e muitas foram encarceradas nas unidades de
internação do DEGASE. Mas, surpreendentemente, poucas foram as notícias de recrudescimento
nas operações de recolhimento. Talvez porque, com o policiamento excessivo, os meninos/as não
ficaram de “bobeira” pela cidade, mas também davam seu jeito de acompanhar algumas
programações culturais, como alguns shows e festas públicas que aconteciam, especialmente no
Centro da Cidade.
O Dossiê dos Megaeventos163, lançado só no final de 2015, destacou em relação às
violações de direitos ocorridas às crianças e adolescentes, durante o período da Copa do Mundo,:

Durante a Copa do Mundo de 2014, as quatro principais violações dos direitos da criança
e do adolescente encontradas foram: violência policial e do Exército (especialmente
durante as pacificações); remoções; exploração sexual de crianças e adolescentes; e
trabalho infantil. Embora não exista uma estatística sobre os números absolutos, a
maioria dos casos aconteceu nas primeiras duas áreas. O dossiê do Comitê Popular traz
muitos exemplos: para limpar os lugares turísticos, por exemplo, crianças e adolescentes
em situação de rua foram recolhidas. Além disso, muitas crianças e adolescentes em
situação de rua foram encaminhados para unidades de internação do Departamento Geral
de Ações Socioeducativas (DEGASE) ou desapareceram sem que os próprios colegas
saibam onde se encontram.
Ao retornarem para a rua após quase um mês depois da Copa, as crianças e adolescentes
começaram a revelar as violências sofridas nos abrigos e em centros de internação do
DEGASE. Nas favelas também foram relatados muitos casos de violência policial contra
crianças e adolescentes, incluindo homicídios mascarados pelos Auto de Resistência.
Durante a Copa 2014, o Disque Denuncia registrou 1.658 casos de violações dos
direitos da criança, o que representa 17% a mais do que no mês respectivo do ano
anterior, que alcançou 9.753 denúncias.

163
Publicada em: http://www.observatoriodasmetropoles.net/index.php?option=com_k2&view=item&
id=1416%3Alan%C3%A7ametno-dossi%C3%AA-megaeventos-e-viola%C3%A7%C3%B5es-dos-direitos-
humanos-no-rio&Itemid=164&lang=pt .
158

Várias denúncias foram apresentadas contra o Ex-secretário Municipal de Assistência


Social, Rodrigo Bethlem, através de uma gravação telefônica apresentada à revista Época por sua
ex-mulher, onde ele debatia com ela valores referentes a esquemas de corrupção. Nestas
gravações, Rodrigo Bethlem confessava ter recebido mesada da ONG Tesloo (responsável por 03
abrigos especializados para tratamento de dependência química de adolescentes), suspeita de
desvios de verbas públicas, de receber caixa dois de empresa de ônibus164 e de ter aberto conta
em banco Suíço165.
Nessa época, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, pediu que o Supremo
Tribunal Federal (STF) instaurasse um inquérito para investigar o agora então deputado federal
Rodrigo Bethlem (PMDB), por suspeita de corrupção passiva, evasão de divisas e lavagem de
dinheiro. A Procuradoria Geral da República (PGR) já havia comprovado a autenticidade dos
vídeos gravados pela ex-deputada federal Vanessa Felippe, ex-mulher do deputado, e entregues à
revista “Época”.
Dados da execução orçamentária da prefeitura mostram que, em apenas um ano, entre 10
de maio de 2011 e 9 de maio de 2012, a Secretaria de Assistência Social, sob a gestão de
Bethlem, firmou seis contratos sem licitação, no valor de R$ 40,1 milhões, com a Tesloo. O
prefeito Eduardo Paes anunciou à época que faria uma auditoria especial para investigar todos os
contratos firmados por Bethlem nas três secretarias pelas quais ele passou: de Desenvolvimento
Social, de Ordem Pública e de Governo166. Estranhamente, mesmo com provas concretas de
prática de vários crimes, Rodrigo Bethlem nunca foi preso de fato. Ao contrário, permaneceu no
cenário político coordenando campanhas políticas, como o fará mais adiante, para eleger Marcelo
Crivella, em 2016, na prefeitura do RJ.

164
Publicado em: http://epoca.globo.com/tempo/noticia/2014/07/nova-gravacao-sugere-bcaixa-dois-bancado-pelo-
rei-do-onibusb-na-campanha-do-deputado-bethlem.html.
165
Publicada em: http://oglobo.globo.com/rio/ex-secretario-municipal-tera-contratos-investigados-13390563.
166
Publicada em: http://oglobo.globo.com/rio/procurador-geral-da-republica-pede-investigacao-contra-deputado-
rodrigo-bethlem-13517559#ixzz39uP4kEu8.
159

4.1.2.14 2015

Em 2015, O ano de 2015 foi um ano particularmente difícil. O Brasil e principais


capitais do país, mais especificamente o Rio de Janeiro apresentou um cenário de violação e
retrocessos extremamente graves em relação aos direitos humanos de crianças e adolescentes,
sejam das que estão em situação de rua, como das provenientes das favelas e periferias. Era o ano
anterior à realização da Olimpíada 2016 no Rio de Janeiro, a cidade receberia, mais uma vez,
centenas de milhares de turistas do mundo todo e tinha que estar limpa, segura, sob controle e
organizada.
A Operação Rio Verão foi mais uma vez antecipada e trouxe com ela uma série de
violações, como a retirada de adolescentes dos ônibus da periferia indo para as praias da zona sul
do Rio. Sobre este tema, teremos um subcapítulo específico ao término deste capítulo. Mas,
importante destacarmos que no ano de 2015 e 2016 a Operação Verão foi a prática que mais se
destacou em relação à repressão e expulsão de um grupo social dos espaços públicos e áreas
nobres da cidade, afrontando direitos constituídos, como o de ir e vir e o de liberdade.
Não bastasse o policiamento normal e a operação verão, em 1º de dezembro daquele
ano, o Governo do Estado do RJ, através de uma parceria com a FECOMÉRCIO (Federação do
Comércio do Estado do Rio), lançou a Operação “Segurança Presente”, inicialmente em 03
bairros: Lagoa, Aterro do Flamengo e Meier, inspirado na já existente “Lapa Presente”,
patrocinado pelo governo do Estado. É um modelo de policiamento em parceria do Estado do RJ
com a iniciativa privada. O sistema FECOMÉRCIO financiaria, a princípio por 02 anos,
investiria R$ 44 milhões ao longo do projeto — R$ 22 milhões/ano. Ao todo 363 PMs da reserva
e jovens recrutas das Forças Armadas iriam patrulhar as áreas a pé, de carro, bicicleta ou moto.
Os policiais usariam armas consideradas de baixa letalidade (spray de pimenta e pistola de
choque).
Logo no início das Operações Presente, várias denúncias foram feitas de violência e
violação de direitos, inclusive pelo Conselho Tutelar da Zona Sul, no dia 21/12, que fez um
pedido de socorro à RRC e a outras Instituições de defesa de direitos Humanos, denunciando o
início dessas operações, com policiais da reserva, sem identificação e com o uso de arma de fogo.
Os meninos estavam sendo retirados dos ônibus que iam em direção à zona sul e levados para a
160

9ª DP (Delegacia de Polícia), no bairro da Glória, onde cerca de 20 adolescentes estiveram


detidos por várias horas e estavam passando mal devido ao forte calor (mais de 40 graus no RJ) e
da falta de comida e água. A RRC se mobilizou e articulou várias instituições de direitos
humanos para atender, no dia seguinte, ao pedido de socorro da Conselheira Tutelar Marly de
Souza e, no dia 22/12, nos dirigimos ao CT da Zona Sul e apresentamos denuncia do caso ao MP,
que pediu explicações ao Estado. Muitas outras denúncias de arbitrariedades cometidas pelos
agentes das Operações Presente foram feitas, como a de que crianças e adolescentes em situação
de rua, principalmente no centro da cidade e zona sul, não poderiam ficar parados na rua, tinham
que circular; adolescentes com o perfil do “jovem perigoso” (negros e pobres), indesejável,
geralmente eram revistados e, qualquer suspeita, eram encaminhados para a DP ou DPCA. Em
contrapartida, muitas pessoas elogiavam a presença e o trabalho das operações Presente, pois
sentiam mais segurança.
Com as denúncias, em 23/12/15, a Defensoria Pública entrou com uma ação cautelar
pedindo explicações ao Governo do Estado sobre o convênio estabelecido com a FECOMÉRCIO.
A decisão proferida pela Juíza foi a seguinte:

Processonº: 0510162-67.2015.8.19.0001
Decisão
Descrição:
1 - DEFIRO, por ora, o pedido de fl. 06, item ´b´ para determinar a exibição do convênio
firmado entre os réus e a FECOMERCIO, bem como para que o segundo réu esclareça
qual o protocolo de atendimento e o projeto de intervenção relacionados às abordagens
de crianças e adolescentes em situação de risco, nos termos da obrigação que assumiu
com a assinatura do referido convênio. Intimem-se para ciência e cumprimento no prazo
de 48 horas. 2- Citem-se.

Essa forma de atuação arbitrária e violenta do Estado e Município do RJ nessas operações


teve consequência direta nas instituições que atuam nas ruas com os meninos/as. Mais uma vez a
RRC discutiu as dificuldades no atendimento junto às CASR, especialmente na construção de
vínculos e de se estabelecer elos de confiança, destacando a falta de continuidade no
atendimento, falta de interesse dos meninos/as em participar de atividades pedagógicas e, mesmo,
o comportamento agressivo das crianças e adolescentes como consequência das operações.
Vários defensores, instituições e organismos de direitos humanos se posicionaram contrários às
medidas adotadas pelo Poder Público do RJ, denunciando a intensificação de uma política
repressiva e higienista, especialmente em decorrência dos Megaeventos.
161

Enquanto o Prefeito Eduardo Paes anunciava as Olimpíadas no Rio de Janeiro como os


“Jogos da Inclusão”, prometendo um legado de tolerância, paz e inclusão social para a Cidade
Maravilhosa, o Comitê Popular da Copa e Olimpíadas do RJ167, divulgava uma imagem oposta,
através do lançamento da terceira parte do Dossiê "Megaeventos e Violações dos Direitos
Humanos no Rio de Janeiro168". Considera a Olimpíada Rio 2016: como os Jogos da Exclusão, e
revela violações de direitos humanos no contexto dos Megaeventos esportivos na cidade do Rio
de Janeiro, com destaque para questões de moradia, mobilidade, trabalho, esportes, meio
ambiente, segurança pública, gênero, criança e adolescente, transparência e orçamento169.
Segundo o dossiê, 4.120 famílias perderam suas casas e outras 2.486 estavam ameaçadas
pela mesma situação, como resultado do avanço de projetos de infraestrutura ligados aos Jogos e
à Copa do Mundo de 2014. Como consequência, milhares de crianças foram realocadas e
perderam, pelo menos temporariamente, acesso a educação, saúde e outros serviços. Jovens
foram vítimas de violência policial e do Exército, de remoções, exploração sexual e trabalho
escravo170. A Operação Choque de Ordem, criada em 2009 e intensificada durante os
megaeventos promovia a "limpeza das ruas", com o recolhimento de lixo, mercadorias ilegais de
ambulantes, mas também pessoas que estavam em situação de ruas.
Antes da Copa, diz o dossiê, houve um aumento de exploração sexual e assédio a meninas
pobres e em situação de vulnerabilidade - entre 9 a 17 anos – perto de novas zonas de prostituição
criadas no entorno das obras dos estádios. O Comitê Popular e parceiros solicitaram ao Comitê
Olímpico Internacional (COI) “que assegurasse de que os Jogos Olímpicos no Rio não causem ou
exacerbem os abusos aos direitos de criança e adolescentes no Rio”.

167
O Comitê congrega várias pessoas e instituições da sociedade civil.
168
Publicado em: http://www.observatoriodasmetropoles.net/index.php?option=com_k2&view=item&
id=1416%3Alan%C3%A7ametno-dossi%C3%AA-megaeventos-e-viola%C3%A7%C3%B5es-dos-direitos-
humanos-no-rio&Itemid=164&lang=pt acesso em dezembro/17.
169
O relatório mostra a falta de transparência nas licitações e no controle público do orçamento da Olimpíada, que
totaliza cerca de 39 bilhões, ressaltando a grave violação do direito à informação que dificulta o efetivo controle
social e debate público sobre a realização dos Jogos. Além disso, o Comitê demonstra que, ao contrario do que é
amplamente divulgado pelo poder público, a maior parte dos gastos da Olimpíada do Rio de Janeiro, cerca de 62%,
é de responsabilidade do poder público, enquanto o setor privado assume apenas os 38% restantes. O dossiê
nomeia as poucas empreiteiras que estão presentes em quase todos os grandes projetos que estão sendo
implementados.
170
Uma das situações mais grave de violação aos direitos humanos foi reportada pelo Ministério Público do Trabalho
do Rio de Janeiro (MPT-RJ) em uma das empreiteiras responsáveis pela construção da Vila Olímpica: a
empreiteira mantinha 11 trabalhadores em situação análoga à escravidão.
162

A Audiência Pública População em situação de rua e Olimpíadas, foi realizada no dia 17


de setembro, na Câmara Municipal de Vereadores, presidida pelo Vereador Reimont (PT),
Presidente da Comissão POP RUA. Nesta, foram feitas várias denúncias de negligência, maus
tratos e violência nas ruas e nos abrigos contra a população em situação de rua, inclusive de
abrigos, como o de Paciência, que tem entrada livre de traficantes, péssima estrutura, etc, como já
mencionado. Relatos de pessoas em situação de rua presentes à Audiência reafirmam o aumento
da repressão e do processo de higienização social com a organização dos Megaeventos / Jogos
Olímpicos. Apesar do Secretário Municipal de Desenvolvimento Social, Adilson Pires, presente à
audiência, informar que já haviam sido feitas melhorias, muita coisa ainda teria de ser feita. A
atuação da SMDS em parceria com a polícia nas operações de abordagem de rua (recolhimento)
foi duramente criticada. O Fórum da População de Rua fez leitura de um Manifesto criticando
duramente o atendimento e equipamentos públicos e denunciando graves violações de direitos
humanos.
Enquanto membro do CEDCA, ao final do ano de 2015, tivemos a notícia que a
Secretária Estadual de Assistência Social e Direitos Humanos (SEASDH), Tereza Cosentino (que
presidiu a Fundação da Infância e Adolescência – FIA), e também era Presidente do CEDCA,
havia sido exonera pelo Governador do Estado (Pezão), e que este nomeou o Pastor Ezequiel
Teixeira para a SEASDH, em 21/12. A sociedade civil e o movimento social de vários segmentos
(LGBTT, Mov. Negro, etc..), se mobilizaram contra a nomeação do Pastor Ezequiel, por este
representar um grande retrocesso na área dos direitos humanos. O Pastor Ezequiel sempre se
posicionou publicamente, enquanto Deputado, a favor da redução da idade penal, do Estatuto da
família, etc. Desde então, a situação da Assistência Social no Estado do RJ, que já era difícil, só
se agravou. O cenário político para o ano de 2016 nos pareceu extremamente preocupante.

4.1.2.15 2016

Ano de Olimpíada! Ano de eleições Municipais (Prefeitura e Vereança).


Os discursos sobre lei e ordem tornam-se base de campanhas políticas, noticiários e,
consequentemente, presentes no senso comum. Como resultado, Estado e Município adotam
163

medidas mais repressivas, especialmente sobre a classe empobrecida, dentre ela a população em
situação de rua e jovens das favelas e periferia. Não poderia ser diferente, especialmente por 2016
ser o tão esperado ano dos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro.
A Defensoria Pública do Estado do RJ, através da Coordenadoria de Defesa dos Direitos
da Criança e do Adolescente (CDEDICA), em fevereiro de 2016, denunciou ao Comitê dos
Direitos das Crianças da Organização das Nações Unidas (ONU), junto com outras 25
instituições, a prática de apreensão irregular de crianças e adolescentes por agentes do Estado.
Segundo o documento, a apreensão compulsória de meninos e meninas nas ruas da cidade ocorre
como uma forma de “higienização” preparatória para as Olimpíadas Rio 2016, o que viola o
direito de ir, vir e permanecer em áreas nobres do Rio. De acordo com o texto, “crianças e
adolescentes negros, pobres e moradores de periferia têm a sua liberdade de locomoção e
permanência, nos mais variados pontos da cidade, constantemente ameaçada por ações
desencadeadas no âmbito dos governos estadual e municipal” 171.
O subcoordenador da CDEDICA, o defensor público Rodrigo Azambuja, explicou que ele
e a coordenadora do setor, Eufrásia Souza, vinham recebendo denúncias dos Conselhos Tutelares
da zona sul e Centro há pouco mais de um ano. Os jovens suspeitos eram detidos nas abordagens
em ônibus em direção às praias e nas ruas e levados para a delegacia por equipes da Polícia
Militar, que chamavam os Conselhos Tutelares para acompanhar as crianças e adolescentes.
Mesmo sem encontrarem nada que se configurasse roubo ou furto, os meninos/as eram levados
para a delegacia para a averiguação da existência de mandato de busca e apreensão, o que é
contrário ao que versa a lei.
A CDEDICA entrou com pedido de habeas corpus coletivo para todas as crianças e
adolescentes, para evitar a repetição dessa prática. Porém, a medida não surtiu efeito. Em um
único fim de semana de agosto, foram cerca de160 levados ilegalmente para a delegacia.
Além da ilegalidade das apreensões, a rede de abrigos da cidade apresentava graves
problemas, as instalações são precárias e insuficientes para receber o número elevado de meninos
e meninas que são encaminhados. Em março de 2016, a Defensoria Pública ajuizou ação civil
pública e a 1ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso da Capital, determinou o fechamento e
paralisação das atividades do Abrigo Ayrton Senna, em Vila Isabel, por 30 dias, mas o mesmo
encontra-se fechado até os dias de hoje. De acordo com o juiz Pedro Henrique Alves, as
171
Esta notícia foi também publicada em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2016-
02/defensoria-denuncia-onu-apreensao-irregular-de-adolescentes-no-rio , acesso em 29/02/16.
164

condições do Ayrton Senna eram incompatíveis para o acolhimento de crianças e adolescentes172.


Fundado em 1994 para receber os adolescentes sobreviventes da chacina da Candelária, o Ayrton
Senna tinha capacidade para receber 85 acolhidos, entretanto, existiam mais de 140 crianças e
adolescentes à época do fechamento. Segundo o Juiz, “a má gestão e o descaso do Poder Público
Municipal acabaram por tornar a instituição em comento absolutamente imprópria para o
acolhimento de crianças e adolescentes, que são ali submetidos a condições indignas, insalubres e
até mesmo perigosas”, afirmou o juiz, que detalhou os problemas encontrados: abuso sexual
contra jovens, presença de traficantes, uso de drogas por acolhidos e até tentativa de homicídio
cometida por adolescentes contra funcionários.
Depois de uma série de denúncias informais sobre remoções forçadas e truculência do
Estado contra pessoas em situação de rua, representantes do Núcleo de Defesa dos Direitos
Humanos (Nudedh), outra frente da Defensoria Pública do RJ, criaram o grupo Ronda Direitos
Humanos (Ronda DH)173, para apurar o abuso das autoridades municipais, e coletar respostas
diretas sobre atos de violência e os agentes responsáveis. O resultado da pesquisa foi que houve
um aumento de 60% nas queixas de violações de direitos contra essas pessoas entre março e julho
de 2016. Após 50 relatos reunidos, o grupo concluiu que vem sendo realizado um processo de
"higienização" da cidade, em virtude do turismo relacionado às Olimpíadas. A defensora pública
Carla Beatriz Nunes Maia, declarou que "no Rio de Janeiro, é comum ocorrer esse tipo de
política pública de higienização em decorrência de megaeventos. Já ocorreu na Rio+20, na Copa
do Mundo e agora nas Olimpíadas. Na penúltima ronda, podemos constatar a retirada de parte
dos moradores dos locais estratégicos dos Jogos Olímpicos, que são onde eles tradicionalmente
permaneciam, como os Arcos da Lapa, o Largo da Carioca, o Museu de Arte Moderna e o
Aeroporto Santos Dumont. Muitos foram levados, não se sabe exatamente para onde. Por isso, na
hora de dormir, eles não ficam mais nesses lugares, estão buscando lugares alternativos para
evitar essa violência", disse a defensora pública.
De acordo com os dados de 50 questionários, a Secretaria Municipal de Ordem Pública
(SEOP) foi apontada em 49% dos depoimentos como a responsável pelas violações cometidas
contra a população em situação de rua, sendo 24% delas por agentes da Operação Choque de

172
Publicado em: http://www.jb.com.br/rio/noticias/2016/03/13/justica-do-rio-determina-fechamento-de-unidade-de-
acolhimento-para-menores/ , em 13/03/16.
173
O Ronda DH tem apoio da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), da
Câmara Municipal e do Movimento Nacional de População de Rua.
165

Ordem. A Guarda Municipal foi apontada em 17% dos dados e a Secretaria Municipal de
Desenvolvimento Social (SMDS), em 14%174-175.
Às vésperas da realização das Olimpíadas Rio 2016, o Governador do RJ, Luiz Fernando
Pezão, decretou estado de calamidade pública no Estado do RJ. A crise financeira nas contas
públicas do Estado teve impacto em várias áreas como saúde, educação, social, segurança e
outras, mas, a ajuda do governo federal, que autorizou à época um repasse de R$ 2,9 bilhões para
o Rio de Janeiro, seria destinado apenas para “auxiliar nas despesas com Segurança Pública em
decorrência dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos176”.
O esquema de segurança para os Jogos Olímpicos começou bem antes de sua realização,
que ocorreu no período de 05 a 21 de agosto. Diferente do período da Copa, praticamente não se
viu crianças e adolescentes em situação de rua nas áreas em que se realizaram os jogos, bem
como no Centro da cidade. Alguns ainda eram vistos na zona sul e norte. Além do controle
urbano, o direito à liberdade, de ir e vir e de expressão também sofreu suspensão. Manifestações
estavam proibidas, pessoas não podiam usar camisetas, levar faixas ou cartazes com slogans
negativos ao governo (ex: “F ORA TEMER!”) nos locais oficiais de realização dos jogos
olímpicos, bem como proibida a divulgação de informação ou publicidade negativa aos jogos
olímpicos.
O Ministério Público Federal entrou com Liminar contra essas práticas, consideradas
“abuso de autoridade”. Segue processo abaixo.

174
Publicado em: https://www.brasildefato.com.br/2016/08/13/rio-tem-aumento-de-60-em-denuncias-de-violencia-
contra-pessoas-em-situacao-de-rua/?referer=bdf_button_whatsapp , em 12/08/16.
175
Importante observar que após essa pesquisa, a população em situação de rua, principalmente a adulta, se
concentra à noite na calçada em frente ao prédio da Defensoria Pública e do Ministério Público, por terem câmeras
que ficam ligadas 24hs, o que os fazem sentir mais seguros. São mais de 100 pessoas ali concentradas.
176
Publicado em: http://brasil.elpais.com/brasil/2016/06/22/politica/1466550448_610963.html , julho/17.
166

Figura 3 – Despacho/Decisão MP sobre Jogos Olímpicos

Também como exemplo da imposição do estado de exceção, a Rede Rio Criança quando
da tentativa de lançamento de sua campanha “Jogos Olímpicos pra quem?”, criou 03 peças
publicitárias - Outdoor, Busdoor e Lambe-lambe, sobre a violação de direitos durante a
organização da cidade para / e nas Olimpíadas 2016. No entanto, segundo informação da firma
167

que faria a impressão e colocação de Outdoor, ao observar o conteúdo do material, disse que o
Comitê Olímpico Internacional (COI), com a concordância do Poder Executivo Municipal e
Estadual, estavam proibindo a publicização de mídias exteriores de teor negativo das Olimpíadas
em caminhos/áreas próximas aos jogos, bem como a realização de eventos nas áreas próximas
dos locais de realização dos jogos. Dessa forma, tivemos que optar pela divulgação virtual das
peças publicitárias177 (email e redes sociais: facebook e whatszapp).

Figura 4 – Jogos Olímpicos pra quem?

Umas das 03 peças criadas, outdoor foi proibido colocação.

O entorno das áreas onde se realizaram os jogos foram interditados, não só para o trânsito,
como para pessoas. Só poderia circular moradores e quem fosse assistir aos jogos. Independente
da proibição, o Comitê Popular da Copa e Jogos Olímpicos – Jogos da Exclusão organizou e
mobilizou vários segmentos para o ato público e manifestação que ocorreu no dia de abertura da
Olímpiada, 05 de agosto, na Tijuca, bairro próximo ao Maracanã. Os manifestantes se
concentraram na Pça Saenz Pena para irem, em passeata, até o Maracanã. A repressão já se fazia
presente desde o ato público na Praça e, posteriormente, durante a passeata, que foi impedida de
continuar seu percurso, pela polícia montada, no Largo da 2ª Feira, com muita violência, para que
os manifestantes não chegassem ao Estádio do Maracanã.

177
Publicadas em : https://www.facebook.com/RedeRioCrianca/.
168

Figura 5 – Calamidade Olímpica

Passeata impedida de chegar ao Maracanã, pela cavalaria da


PM, na abertura dos Jogos Olímpicos, dia 05/08/16.
Foto: Márcia Gatto

As repressões às manifestações tornaram-se cada vez mais violentas no RJ no período de


2016-2017. Podemos também considerar que a truculência da polícia, já tão familiar para os
moradores de favelas e periferias, desceram, com menor potência, para o asfalto. Menor potência,
pois até então nenhum manifestante foi alvejado ou morto por intervenção policial, apesar de
serem atingidos por balas de borracha e gás de pimenta.
A Lei Antiterrorismo, apesar de vetada vários artigos, pela Presidente Dilma Rousseff, foi
sancionada pela mesma em fevereiro de 2016. Direta ou indiretamente, a Lei deu respaldo ao uso
de violência e repressão por parte do Estado nas manifestações.

Aprovada pelo Congresso Nacional classifica como atos de terror "incendiar, depredar,
saquear, destruir ou explodir meios de transporte ou qualquer bem público ou privado".
Também prevê as ações de "interferir, sabotar ou danificar sistemas de informática ou
bancos de dados".
Segundo a presidente, tais definições apresentadas são "excessivamente amplas e
imprecisas". Além disso, são atos com diferentes potenciais ofensivos com penas
idênticas, em violação ao princípio da proporcionalidade e da taxatividade. A chefe do
Executivo argumenta também haver outros incisos que já garantem a previsão das
condutas graves que devem ser consideradas ato de terrorismo.
Apologia
Foi vetado ainda o artigo 4º, que previa pena de quatro a oito anos de reclusão para a
prática de apologia ao terrorismo. Segundo o governo, trata-se de um artigo que "busca
penalizar ato a partir de um conceito muito amplo e com pena alta, ferindo o princípio da
proporcionalidade e gerando insegurança jurídica". Além disso, da forma como previsto,
169

"não ficam estabelecidos parâmetros precisos capazes de garantir o exercício do direito à


liberdade de expressão178."

As dificuldades políticas e financeiras enfrentadas pelo Estado do RJ ao longo do ano de


2016 tiveram reflexos diretos no CEDCA, como: a não nomeação de representantes
governamentais para ocupar 03 cadeiras nesse espaço, como a Secretaria Estadual de Assistência
Social e Direitos Humanos (SEASDH); não liberação pelo Estado dos recursos do Fundo da
Infância e Adolescência; muita controvérsia, indefinição e descaso em relação à área social,
primeiro noticiada com a extinção da SEASDH, que passou a ser um braço da Secretaria Estadual
de Saúde; depois passa para a Secretaria Estadual de Tecnologia, e finalmente, depois de muitos
protestos, volta a existir como Secretaria de Governo. A Fundação para a Infância e Adolescência
(FIA) também sofreu muitos cortes. Há dois dias do término do ano, a FIA rompeu 118
convênios com ONGs, deixando várias instituições sem recursos, prejudicando milhares de
crianças e adolescentes que ficaram sem atendimento.
Importante destacar que o ex-Governador Sérgio Cabral havia sido preso no dia 08/11/16
no Rio, devido à sucessão de escândalos e denúncias de corrupção divulgadas já há alguns anos.
Cabral recebeu dois mandados de prisão preventiva, um expedido pelo juiz Marcelo Bretas, da 7ª
Vara Federal do Rio de Janeiro, e outro pelo juiz Sergio Moro, em Curitiba. Os mandados dizem
respeito a duas operações diferentes - a Calicute, tida como um braço da Lava Jato no Rio, com
base na delação premiada do empresário Fernando Cavendish, e a própria Lava Jato, baseada na
delação da Andrade Gutierrez e da Carioca Engenharia. A operação Calicute, responsável pelo
mandado de prisão de Cabral, investigou o desvio de recursos públicos federais em obras
realizadas pelo Governo do Rio de Janeiro, um prejuízo estimado em mais de R$ 220 milhões179.
Depois disso, foram noticiados outros envolvimentos de Cabral em práticas de corrupção,
propina e desvio de dinheiro público, chegando à ordem de R$ 3 bilhões dos cofres públicos.
Esse foi apenas o início de todo um processo que veio a público de um dos maiores escândalos de
desvio de dinheiro público, e reconhecida como a pior situação financeira já vivida pelo estado
do RJ, que deixou programas públicos, secretarias de governo, servidores e pensionistas sem
pagamentos por longo período.

178
Publicada em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/03/18/lei-antiterrorismo-e-sancionada-com-
vetos-pela-presidente-dilma , em 18/03/2016.
179
Publicado em: http://www.bbc.com/portuguese/brasil-38014852 , acesso em nov/17.
170

4.1.2.16 2017

O Município do Rio de Janeiro, sob a administração de um novo Prefeito, Marcelo


Crivella (PRB), noticia no dia 03 de janeiro, que a população em situação de rua será atendida
pelas Igrejas. A SMAS realiza levantamento da população em situação de rua na cidade do RJ e
informa que existem cerca de 15 mil pessoas nessa situação. As dificuldades permanecem ao
longo do período. Apesar do ano de 2017 não entrar nesse subcapítulo que trata sobre a 1ª prática
(Recolhimento / Expulsão), para finalizá-lo vou destacar uma campanha que saiu nas redes
sociais, em setembro de 2017, que expressa a visão preconceituosa e desumana de uma parte
considerável da sociedade em relação às pessoas em situação de rua. A matéria sobre a campanha
saiu no Jornal O Globo do dia 14/09/17.

Campanha prega o fim da caridade para evitar mendigos em Ipanema


Em rede social, morador do bairro é orientado a não dar esmola ou comida
André faz parte da população de rua da região. Mas, se depender de uma campanha no
Facebook, não receberá mais ajuda de ninguém. A página Alerta Ipanema sugere que os
moradores do bairro não deem mais esmola ou ofereçam comida. Eles devem até gritar
para impedir que qualquer pessoa faça caridade a mendigos.
Segundo o texto, os moradores de rua não nasceram em Ipanema e portanto só voltam,
após ações de recolhimento, porque recebem guarida. "Pessoal, a Superintendência da
Zona Sul e a Guarda Municipal do Rio de Janeiro têm retirado estas pessoas e
encaminhado a abrigos, mas vocês percebem que eles sempre voltam? Não vão para
Santa Cruz, nem para Nova Iguaçu, Campo Grande; eles vêm para Ipanema. Por que
será? Nascer aqui eles não nasceram. Vêm porque tem algo de bom. Esse algo de bom
são as pessoas que dão esmola e comida", argumenta a página Alerta Ipanema.
POSTAGEM APAGADA
No post, a página diz que a gritaria constrange quem ajuda moradores de rua. “Eu já
faço, mas preciso da ajuda de vocês. Quando virem alguém dando comida ou esmola,
chamem atenção, façam gritaria, mostrem a todos que estiverem passando, que aquela
pessoa tá contribuindo para que tenhamos mais mendigos nas ruas do bairro. Só assim
ficam constrangidos e param”, defende. O texto é acompanhado da imagem de um
homem negro com uma placa em que diz estar nas ruas o dia inteiro graças ao dinheiro
de esmolas180.

180
Publicada em: https://oglobo.globo.com/rio/campanha-prega-fim-da-caridade-para-evitar-mendigos-em-ipanema-
21819967 , acesso em set/17.
171

4.1.3 Operação Verão

Pelo direito de usar o mar181


Na primavera de 1964, o movimento pelos direitos humanos, liderado por
Martin Luther King, chegou com força a St Augustine, Florida, EUA. De
maio até julho de 1964, manifestantes em prol dos direitos humanos
haviam sofrido toda a sorte de abusos verbais e agressões, geralmente
sem qualquer retaliação.
Em uma das manifestações, onde um grupo de jovens negros decidiu
ocupar as praias da Ilha Anastasia, local frequentado pela população
branca onde imperava uma "proibição" velada à permanência de pessoas
negras. Os manifestantes foram espancados e levados para a água por
segregacionistas. Alguns dos manifestantes não sabiam nadar e tiveram
de ser salvos do possível afogamento por outros manifestantes.
23 de Agosto de 2015, Rio de Janeiro. Com apoio do Estado, práticas
segregacionistas que são características inerentes do processo contínuo de
racismo institucionalizado - endossados por uma população acostumada a
praticar atos de racismo - agentes de polícia, por sua vez os que seriam os
mantenedores da lei, coibiram o direito de ir e vir de um grupo de jovens
em sua maioria negros - apenas um era branco - nenhum deles portava
drogas, armas ou cometeu qualquer atitude suspeita que justificasse a
intervenção. Mesmo assim, foram levados para o Centro Integrado de
Atendimento à Criança e ao Adolescente (Ciaca) e ficaram
aproximadamente quatro horas sem poder comer.
O que o caso de St Augustine tem em comparação com o do Rio de
Janeiro? Segregação. Prática racista e discriminatória de isolacionismo,
processo de dissociação mediante o qual indivíduos e grupos perdem o
contato físico e social com outros indivíduos e grupos. Essa separação ou
distância social e física é oriunda de fatores biológicos e sociais, como

181
Publicado em: https://www.facebook.com/justicanegra?pnref=story , acesso em set/15.
172

raça, riqueza, educação, religião, profissão, nacionalidade etc. O Estado


deveria servir a todos, pois é de todos, assim como o mar e o direito de ir
e vir.
O artigo 2.º da Carta Internacional dos Direitos Humanos, exprime o
princípio básico da igualdade e da não discriminação no que se refere ao
gozo de direitos humanos e liberdades fundamentais, proíbe qualquer
distinção, nomeadamente de raça, de cor, de sexo, de língua, de religião,
de opinião política ou outra, de origem nacional ou social, de fortuna, de
nascimento ou de qualquer outra situação.

Vem chegando o verão... Rio de Janeiro, a cidade maravilhosa se prepara para o verão, a
principal estação do ano para a maioria dos cariocas, brasileiros e turistas que por aqui chegam,
em busca de sol, mar e diversão. Para administrar essa estação, uma das principais preocupações
do Estado é com a segurança pública, principalmente nos pontos turísticos e áreas nobres, como
as praias da zona sul da cidade.

Sou negro. Neste momento estou trajando bermuda de praia e camiseta. Estou em
Copacabana. Vou correr na areia da praia. Não levarei dinheiro, nem documentos.
Segundo a lógica carioca posso ser preso, levarei um tiro ao correr ou vou apanhar de
um justiceiro.
Para você que acha que me faço de vítima: essa é a minha realidade.
Enquanto você tem medo de ir à praia e perder seu Iphone, eu tenho receio de morrer.
Não é justo pra ninguém, correto?
Só que durante TODA a vida fui "confundido" com bandido apenas por ser negro. Meu
mundo é assim. A toda hora ter que provar que sou honesto.
Caso eu morra não terão protestos nas redes sociais, nas ruas, na mídia. Serei mais um
preto. Lamentarão a família e os amigos.
E você? Tem medo de que? 182

A chamada Operação Rio Verão foi assim formalmente batizada em 2014, mas na
realidade sempre houve um destacamento maior de policiais nas praias do Rio de Janeiro durante
o período de verão. Fazem parte da operação a Secretaria Municipal de Ordem Pública, de
Segurança Pública, Polícia Militar, Guarda Municipal, e, eventualmente, a Secretaria Municipal
de Assistência Social, através do Plano Verão, mencionado anteriormente. O objetivo é o

182
Texto de Ernesto Xavier, escrito no dia 24/09/15 e compartilhado pelo Movimento de Organização de Base.
Publicado em: https://www.facebook.com/events/1628582030745311/
173

ordenamento da cidade, dar segurança à população, evitar a prática de arrastões, roubos e furtos
na praia.
Notadamente, essa segurança está restrita a um grupo seleto de pessoas: moradores de
classe média e alta, assim como a turistas, considerados pessoas “de bem”, e que tenham a pele
clara. Para estes, o direito de ir e vir, o direito ao lazer estará assegurado. Porém, para aqueles que
vêm das favelas e periferias, ou mesmo das ruas, que tem a pele, digamos, mais escurinha, que
não sabem se comportar na praia, andam em galera, não são bem-vindos. Ao contrário, são
expulsos. Às vezes nem conseguem chegar ao seu destino, pois, a blitz da polícia os retiram dos
ônibus antes mesmo de chegarem à praia.
Em pesquisa feita em arquivos pessoais, podemos observar que são noticiados casos de
arrastão, pelo menos, desde a década de 1990, quando já se faziam operações nas praias da zona
sul da cidade, também refletindo preconceito e segregação.

Figura 6 – Repressão policial nas praias do Rio de Janeiro


174

Em meados de setembro de 2014, recebi ligação de um Educador informando que a


instituição tinha recebido a informação e o convite para participar de uma reunião do Comando
Geral da Polícia Militar para tratar sobre a violência, arrastões em Ipanema, operação de verão. A
reunião, que aconteceria no dia seguinte, não tinha sido divulgada, mas que era importante nossa
participação (Rede Rio Criança).
No dia 18/09, no horário previsto, dirigi-me ao Comando Geral da PM, que fica na Rua
Evaristo da Veiga, próximo à Cinelândia, Centro do RJ. Estava com muito receio, medo de entrar
naquele lugar, sozinha, sem saber o que iria encontrar. Quando entrei na sala de reuniões, havia
cerca de 30 homens fardados, Oficiais da Polícia Militar. Além de mim, apenas 02 representantes
do CMDCA, 01 da SMDS e 01 ONG do Complexo da Maré. Estávamos, portanto, em minoria. A
reunião foi presidida pelo Comandante Lemos, que nos informou que também haviam sido
175

convidados a I Vara da Infância e Juventude, DPCA, CEDCA, Secretaria Especial de Ordem


Pública (SEOP) e Guarda Municipal.
Foi apresentado inicialmente imagens dos arrastões que haviam ocorrido na praia de
Ipanema, no último final de semana, amplamente divulgadas pela mídia, bem como a ação de
repressão dos policias. Um quadro com informações dos delitos praticados por adolescentes, com
estatísticas de que aproximadamente 40% destes foram praticados no Centro do Rio por
adolescentes. Outra informação foi sobre a procedência desses meninos, a maioria da Zona Norte
(Bonsucesso, Penha, Ramos, Jacaré), e muitos não eram identificados a procedência. Das 41
pessoas detidas na praia (arrastão), naquele final de semana, 30 eram adolescentes. Estava
ficando bem claro que o foco da Operação Verão seria contra os adolescentes vindos da zona
norte e periferia...
Segundo o Comandante, a proposta da reunião era a de estabelecer parcerias e criar
estratégias de prevenção e repressão na Operação Verão Rio, que seria antecipada já com reforço
para o próximo final de semana; definir estratégias para minimizar o problema e agregar forças.
Pontos principais: Operações em vias de acesso às praias, ônibus; Batalhão Grandes Eventos;
utilização do carro comando (na praia do Arpoador).
Apesar da proposta ser a de agregar forças e definir estratégias para minimizar o
problema, a ótica do grupo de oficiais ali presente era bem clara, ou seja, aumentar a repressão
sobre o grupo de adolescentes que se deslocavam dos subúrbios e periferia em direção às praias
da zona sul. As colocações dos PMs eram carregadas de preconceitos e afrontavam direitos
constituídos (de liberdade e o direito de ir e vir). Se eu tinha dúvidas sobre que tipo de ideologia
permeava tais práticas, naquele momento elas foram dissipadas. Estávamos diante da proposta de
implantação de práticas de exceção pelo Estado, segregacionistas, racistas, de forte viés
nazifascista, direcionadas a um grupo social específico. Propostas de mapear a procedência dos
adolescentes, criar um banco de dados, abordá-los preventivamente antes de chegarem nos
ônibus, impedir a chegada na Zona Sul, foram feitas com naturalidade, em nome da preservação
da tranquilidade das pessoas “de bem” que queriam usufruir as praias.

A versão nazista de uma abordagem preventiva em relação ao crime previa que a polícia
identificasse prováveis criminosos e os prendesse antes que fizessem qualquer coisa
(GELLATELY, 2011, p. 150).
176

Uma segunda reunião do Comando Geral da PM foi marcada para acontecer uma
semana depois, no dia 24/09/14, para ampliar o debate e agregar possíveis parcerias. Uma grande
mobilização de instituições e defensores de direitos humanos foi feita pela Rede Rio Criança com
sucesso, quando garantimos a presença de um grupo amplo formado por representantes do
Ministério Público, Defensoria Pública, CEDCA, CMDCA, Conselho Tutelar, Comissão Direitos
Humanos ALERJ, Comissão Municipal POP RUA, Conselho Regional de Serviço Social
(CRESS), OAB, Rede Rio Criança, o que fortaleceu a discussão em torno dos direitos das
crianças e adolescentes, e não da repressão e controle dos mesmos.
O Coronel da PM, que presidiu a reunião, anunciou que seria colocado um efetivo de
710 policiais na orla (do Flamengo ao Recreio dos Bandeirantes). Dentre a proposta do Estado
Maior da PM de alinhar e traçar ações integradas junto aos órgãos públicos diante dos
acontecimentos nas praias do Rio (arrastões), os objetivos eram: adequar o planejamento da PM
de forma a enfrentar o problema; cooperação de diversos órgãos envolvidos; garantia de direitos
das cri/adol; identificação dos responsáveis dos adolescentes. Mesmo o Coronel do Comando
ressaltando que o principal objetivo era estabelecer parcerias dos diferentes órgãos e instituições
para que fossem feitas ações preventivas, sabemos que as práticas de “manutenção da ordem” são
repressivas, de controle e encarceramento. Nosso grupo fez os devidos esclarecimentos sobre os
direitos desses adolescentes (ir e vir, poder andar sem documentos e sem os responsáveis, de se
expressarem, participarem de atividades de lazer, etc..), e que estávamos ali para defender esses
direitos183. Destaco abaixo parte da fala de Margarida Prado, Conselheira pela OAB no CEDCA:

Eu represento o Conselho de Defesa da Criança e do Adolescente, então a minha


presença aqui só se justifica se for, exatamente, para lembrar e pontuar a perspectiva do
interesse maior da criança. Quer dizer, meu olhar não é o do interessa da sociedade, não
é o da segurança pública, não é das medidas a serem tomadas para a tranquilidade da
sociedade, e contra o comportamento indesejável que o jovem possa ter. Mas,
exatamente, a da garantia dos direitos da criança e do adolescente. Dado isso, eu gostaria
de pontuar que essa reunião começa dizendo: “o fato é o ato infracional”. A perspectiva
desse encontro é prever a segurança do cidadão, o que pretendemos: “evitar a
reincidência e o comportamento indesejável!” Então, a meu ver o viés dessa reunião já é
um viés bastante comprometido com um dos olhares possíveis, que é o olhar da
perspectiva do Estado, ou da perspectiva da segurança pública. Esse não é o meu olhar.
(...) Então chamar uma situação dessa, essa Operação Verão, sem considerar os inúmeros
fatores que estão condicionando essa situação, que é o desvio de jovens adolescentes que
obviamente se dirigem pra parte mais bonita da cidade em busca de lazer, em busca de
zoar, fazer bagunça sim. Muito poucos são aqueles que realmente roubam, porque não
tem por parte do Estado nenhum atendimento, nenhum direito atendido, a ausência total

183
A transcrição de destaques das falas da 2ª reunião do Comando Maior da PMRJ estão no anexo 6.
177

e a presença do Estado nesse cinturão de pobreza, então, pra mim, esse é o marco
negativo. Agora, Sr, Coronel, me espanta que eu seja chamada para um encontro desse
em momento algum se sai da perspectiva do ato infracional e se fale, por exemplo, da
situação drástica da polícia que atuou nesses eventos. O que nós vimos e o que
escutamos é de uma atuação totalmente despreparada da presença que se colocou na
areia, numa atitude tão ou até mais violenta como alguns rapazes de fato se
comportaram. Uma polícia despreparada, não cuidadosa, inclusive com a repercussão em
massa do que significaria soltar bombas de efeito moral. Bombas de efeito moral numa
areia??!! Onde as famílias estão deitadas!! Isso é tão grave quanto o grupo de jovens
furtar ou deixar de furtar, porque a final de contas, são pessoas preparadas para atuar
nessas situações (...).

Além desta, outras falas em defesa e pela garantia de direitos das crianças e adolescentes
rebateram as declarações dos oficiais da PM e Bombeiros presentes à reunião, bem como
algumas que buscavam uma mediação. Saímos com o compromisso de se estabelecerem parcerias
com a SMDS, Conselho Tutelar, dentre outros, na busca de uma atuação conjunta para melhor
atender a população e os adolescentes. No entanto, a Operação Verão foi antecipada e trouxe com
ela uma série de violações. Denúncias foram feitas de arbitrariedade cometidas por policiais ao
reprimirem e/ou impedirem o direito de ir e vir de adolescentes, “supostamente” perigosos, de
entrarem em ônibus para a zona sul (praia), bem como sendo retirados do coletivo em blitz
montada pela PM em ruas de acesso à Copacabana e Arpoador, ou mesmo quando de sua entrada
no ponto final dos ônibus na zona norte e periferia com destino à zona sul e praias da cidade. Os
principais alvos das operações eram adolescentes negros e pobres, vindos das periferias e favelas
do Rio, como “medida de prevenção”, ou mesmo de “proteção”, segundo declaração de gestores
da cidade do Rio. Estes também declararam que os meninos retirados dos ônibus eram levados
para a delegacia ou abrigos, para averiguação de mandato de busca e apreensão, ou aguardavam
até a chegada dos responsáveis.
A Defensoria Pública entrou com pedido de Habeas Corpus para garantir o direito de
liberdade e o de ir e vir das crianças e adolescentes, também para impedir que policiais retirassem
esses adolescentes dos ônibus. O Juiz da 1ª Vara da Infância, Juventude e Idoso também se
manifestou no sentido de garantir o direito e a lei. A mídia contribuiu com a instalação do medo,
e na produção de subjetividades sobre os “jovens perigosos”, com a divulgação sistemática de
imagens de roubos, furtos e arrastão nas praias e outras áreas da cidade, gerando um clima muito
desfavorável aos jovens objetos das ações, bem como estimulando a ação de “justiceiros”,
especialmente após as declarações do Governador, Prefeito e Secretário de Segurança Pública
afirmando que iriam continuar retirando os meninos dos ônibus, pois consideraram que
178

adolescentes sem dinheiro, sem documentos, descamisados e de chinelos já representava, por si


só, uma “atitude suspeita”.
Matéria intitulada “Para Pezão, se é jovem, preto e pobre, é ladrão”, foi capa no site
Brasil 247184, no dia 28/08/15. Para o Governador, a ação da PM de retirar adolescentes de ônibus
vindos de bairros da periferia em direção às praias da zona sul, foi tomada para impedir crimes na
orla, como arrastões. Segundo a Defensoria Pública do Rio, antes de chegar à orla, os
adolescentes foram retirados dos ônibus, em bairros como a Penha – onde fica o Complexo de
Favelas do Alemão, e levados para um centro de assistência social. A Defensoria Pública também
questionou a abordagem aos adolescentes e oficiou a Polícia Militar e a Delegacia da Criança e
do Adolescente Vítima (DCAV) para que investiguem o caso e suspendam as abordagens. De
acordo com a Defensora Eufrásia Souza das Virgens, a decisão de retirar dos ônibus jovens
pobres, em sua maioria negros, é um flagrante contra o direito de ir e vir e de lazer. “Não dá para
imaginar que o adolescente, em um ônibus, indo para praia, seja um adolescente que vai cometer
atos infracionais. Não tem como saber, a não ser por adivinhação”, disse. A Dra. Eufrásia
considerou que essa abordagem é uma forma de segregação e disse que caso um dos meninos
houvesse cometido ato infracional, ele deveria ter sido levado à DPCA e não para um abrigo. “O
que chegou até o momento é que eles foram levados porque, supostamente, foi entendido que
estavam em situação de risco por irem à praia sem um adulto – o que não tem cabimento, para
um menino de 15 e 16 anos”, comentou a Defensora.

Quem quer que não se encaixasse na nação “ariana” pura e branca estava sujeito não
apenas a uma crescente série de medidas discriminatórias, mas também sofria a ameaça
de ser enviado para os campos, trabalhar até a morte ou ser morto imediatamente
(GELLATELY, 2011, p. 150).

A ação questionada pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro, que alegou ser ilegal deter
um adolescente que não está cometendo nenhuma infração, ganhou repercussão internacional. No
jornal espanhol El País, a notícia foi publicada com o título: “Rio de Janeiro veta menores pobres
e negros em praias mais famosas”. Publicações como o Huffington Post e o Latin American
Herald Tribune também noticiaram a ação185.

184
Publicada em: https://www.brasil247.com/pt/247/favela247/194180/para-pez%c3%a3o-se%c2%a0%c3%a9-
jovem-preto-e-pobre-%c3%a9-ladr%c3%a3o.htm , em 24/08/15.
185
Link curto: http://brasileiros.com.br/VINbj.
179

Ao impetrar o Habeas Corpus e declarar que a Operação Rio Verão desrespeitava a lei
ao impedir e retirar os adolescentes dos ônibus, a Defensora Pública Eufrásia Souza sofreu
agressões e foi ameaçada através das redes sociais, sendo considerada defensora de
“bandidinhos”. Com a dita preocupação do poder público com os roubos, furtos e arrastões, a
medida adotada foi a intensificação do número de policiais e seguranças na cidade. Devido a essa
forma de atuação, claramente adotando uma política higienista e de exceção, várias Instituições
de Direitos Humanos e Organismos Internacionais manifestaram seu repúdio!
Dando continuidade às práticas abusivas e segregacionistas, cerca de 70 linhas de ônibus
foram retiradas, ou tiveram percurso modificado, pelo Prefeito Eduardo Paes186. Com o somatório
de protestos de defensores de direitos humanos, a segurança pública passou a usar o termo
“vulnerabilidade” dos meninos/as para justificar a intervenção junto a este grupo social,
flagrantemente violadora de direitos.
Muitas notícias foram divulgadas sobre esses casos e muita polêmica foi gerada. Apesar
de existirem comentários favoráveis ao direito ao lazer e o de ir e vir desses adolescentes, de que
a praia é aberta para todos, a maioria dos comentários na mídia e redes sociais não só
concordavam com as práticas abusivas e expressavam preconceito, racismo e ódio de classe, e
outras ainda propunham coisas absurdas, como uma famosa socialite que propôs colocar cercas
nas praias para a entrada apenas de moradores do bairro.

ECA do B (por Eliane Brum)

5ª Lei - Lei de Circulação de PP: Pobre e Preto de menor não pode pegar ônibus para ir
às praias da Zona Sul!
Nessa aí nem botei um nome, porque os marginalzinhos são tantos que a lista ia ter
quilômetros. Quem gosta de lei comprida é intelectual. O ECA do B é simples, branco
no preto. Em cima do preto! Qualquer mané consegue entender. O cara entra num ônibus
com nenhum dinheiro no bolso, mal vestido ou até sem camisa, o que calor nenhum
justifica, lá na PQP onde ele mora, e quer ir pras praias da Zona Sul do Rio de Janeiro.
Vai fazer o que lá? Arrastão, obviamente. Aí vem aquele papinho de que é uma minoria
que faz arrastão, que o resto da pretaiada só quer se divertir na praia. Tenha dó. Mesmo
que seja, como vai saber? Não dizem sempre que tem de prevenir o crime? Então, taí. Se
não é a polícia, é pessoa de bem como eu que tem de fazer a justiça valer. Levo filho,
sobrinho, tudo uns meninos fortes, de academia, menino bom, e tiro essa molecada pelo
pescoço de dentro do coletivo. Jogamos tudo lá, de volta à cloaca de onde nunca
deveriam ter saído. Depois tomamos um banho de álcool zulu pra descontaminar. O que
é que preto tem pra fazer no Leblon, Ipanema, Copacabana, me diga? Nada! No máximo
vender um coco, um biscoito Globo, mas assim, controlado, número restrito. Vai querer

186
Publicado em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/10/confira-mudancas-em-linhas-de-onibus-da-
zona-sul-do-rio.html , acesso em out/15.
180

tomar banho de mar, jogar um vôlei, curtir? É muita falta de ferro no lombo. Desde
quando a senzala pega praia? Mesmo que os moleques não assaltem, vão estragar o
cartão-postal do Rio com aquelas caras achatadas. Gringo vem aqui gastar seus dólares
pra ver garota de Ipanema, loirinha, olho azul. E as mulatas lá naquele outro lugar que a
gente sabe bem onde é e pra que serve. Se cada um soubesse o seu lugar, aliás, tava tudo
resolvido. O problema do Brasil hoje é que as criaturas não sabem mais o seu lugar. Mas
a gente explica pra elas, bem direitinho, numa chave de pescoço, colaborando com o
trabalho da polícia, que já não dá mais conta de tanto pobre querendo pegar praia. Preto
sai, branco fica. Inverti o nome daquele filme! Pessoalmente, inclusive, eu faria um
parágrafo único aqui nesta lei número 5: ônibus pra pobre sair da favela só se for pra
trabalhar. O cara mostra a carteira de trabalho registrada pra um policial, na porta do
474, e pode embarcar, com carimbo pra sair e carimbo pra voltar, assinado pelo patrão.
Horário determinado, tudo ali certinho, na ponta do lápis, como se diz. Fora daí, se o
negão for pego zanzando na Zona Sul, cadeia nele. Nessa aí preciso tirar o chapéu pros
paulistas. Não gosto muito de paulista, mas eles sabem fazer as coisas direito quando
querem. Não teve lá aquele, como é o nome mesmo? Ah, sim, Rolezinho, só preto pra
inventar um nome tão idiota. Então. A ralé queria passear no shopping. E em bando,
como se fosse moda adolescente andar em grupo. Polícia neles! Mais de três moleques
pretos num shopping é assalto e pronto. Volta pra favela! Vai querer usar grife? Te
enxerga, mané! Não tem grife que limpe a tua cara preta, não tem tênis de marca que te
faça ficar igual a nós. Repressão neles e tudo resolvido. No Rio o povo de bem também
sabe resolver as coisas, esse final de semana foi uma beleza. Revista na pobraiada!
Desde quando a senzala pega praia? Mesmo que os moleques não assaltem, vão estragar
o cartão-postal do Rio com aquelas caras achatadas.
Uso: a mais recente aplicação da Lei de Circulação de PP foi nesse último final de
semana, mas pode estar sendo usada agora mesmo. Lei que brasileiro concorda é que
nem gripe, pega na hora e se espalha.
Tá com pena? Leva pra casa!

A Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social criou o Plano Verão, em final de


setembro de 2015, compondo as respostas do Poder Público municipal ao acordo com o
Comando Geral da PM e ao clamor da mídia e de uma parte da sociedade em relação aos
chamados arrastões. O Plano Verão foi uma ação da SMDS, para atuar em conjunto com a
Operação Verão. Uma tenda foi montada em um ponto estratégico da praia do Arpoador, com a
presença de Educadores Sociais, e apoio técnico (Assistentes Sociais), para acolher as crianças e
adolescentes que eram abordadas pela operação verão e dar os devidos encaminhamentos.
Contrários à participação da categoria em ações que tem intencionalidade repressiva,
Assistentes Sociais da Secretaria de Proteção Especial da SMDS elaboraram e publicaram o
documento: “Assistentes Sociais dizem não à participação no ‘Plano Verão’”. O documento traz
recomendações aos assistentes sociais da proteção social especial de média e alta complexidade
da secretaria municipal de assistência social diante do Plano.
Com as sistemáticas violações de direitos cometidas pela Operação e Plano Verão,
defensores de direitos humanos fizeram o acompanhamento / monitoramento diário, com ênfase
nos finais de semana, através de plantão das Instituições e da militância nas praias. Para agilizar a
181

comunicação, foi criado um Grupo no Whatszap, do qual fazem parte: RRC, Defensoria Pública,
MP, CEDCA, Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura (MEPCT), Conselho Regional de
Serviço Social (CRESS), Justiça Global, OAB, Movimento Moleque, CEDECA RJ, Projeto
Legal, dentre outros. Esse grupo tem sido acionado sempre que tem acontecido uma situação de
violação nas praias ou no caminho, e realiza reuniões para discussão da situação e tirar
encaminhamentos e estratégias de ação em defesa dos direitos das crianças e adolescentes vítimas
das práticas abusivas do estado e município do Rio.
Em 2016, com a realização das Olimpíadas na cidade do Rio de Janeiro, a repressão
aumentou ainda mais não só pelo policiamento regular da cidade, mas também pela Operação
Verão. Já no 2º dia do ano foi realizada reunião extraordinária do grupo de militantes e
instituições que integram o GT Operação Verão. O Conselho Tutelar da Zona Sul fez denúncias
da apreensão de adolescentes (negros e pobres) nos ônibus que vão para a zona sul e são
encaminhados para a delegacia, por não portarem documentos e dinheiro.
Em setembro de 2016, foi postado um vídeo nas redes sociais, no qual um grupo de
adolescentes, em sua maioria negros e pobres, são expulsos da praia do Arpoador por policiais,
sem estes terem cometido crime algum, o que denunciava a violência e arbitrariedade da ação,
num ato flagrante de preconceito, higienismo e segregação.
A Defensoria Pública, mais uma vez, entrou com ação contra a retirada dos adolescentes
dos ônibus que saem do subúrbio e periferia da cidade em direção às praias da zona sul.
Questionados, a polícia informou à época que estava respeitando a ação e não tem feito a retirada
e encaminhamento dos adolescentes « suspeitos» para a delegacia. Mas, observamos que essa
atitude da polícia, que adotou na época uma postura de inércia frente a muitas situações que
envolvia adolescentes, seja em prática de ato infracional, arrastão, tumulto nos arredores da praia,
gerou nova controvérsia e apelos da sociedade por tomada de atitude pelo estado e município,
reforçados pela mídia, que exibia sistematicamente imagens de violência que envolvia
adolescentes.
Devemos destacar que, em alguns casos, especialmente na Linha 474, que faz o itinerário
Jacaré - Copacabana, grupos de adolescentes causaram muitos transtornos, não apenas para os
passageiros do ônibus e motorista, como para os transeuntes nas ruas, ao longo do percurso,
especialmente quando chegavam perto da praia. Cenas de quebra-quebra do ônibus, adolescentes
saindo pela janela, viajando em cima do ônibus, saindo do ônibus para assaltar uma pessoa na rua
182

e voltar para o ônibus, foram algumas cenas divulgadas pela mídia televisa e impressa, e pelas
redes sociais. Em um desses casos, em Copacabana, houve a ação de um grupo de “justiceiros”
que retirou à força um ou dois adolescentes do ônibus e os agrediu. A polícia nada fez. E a
sociedade aplaudiu. Discursos de ódio contra os adolescentes foram postados em comentários nos
jornais impressos e redes sociais.
Diante da questão, o Ministério Público recorreu da decisão que proibia a PM de retirar
“menores” dos ônibus que seguem para as praias na Zona Sul do Rio187. E, mais uma vez, em
todo final de semana de sol forte, os ônibus passaram por uma blitz e diversos jovens, negros e
pobres, passaram por situação vexatória, sendo alguns destes retirados do coletivo.
De 160 guardas municipais, em 2009, com o Choque de Ordem ocupando a orla,
chegamos em 2016, com o início oficial da Operação Verão, no dia 24/09/16, a 800 policiais e
guardas municipais ocupando a orla do Leme ao Recreio dos Bandeirantes.

(...) a essa altura a deportação de judeus alemães estava praticamente acabada, tendo
ocorrido sem causar a menor reação pública (GELLATELY, 2011, P. 232).
(...) em consequência da longa campanha antissemita, muitas pessoas se tornaram
antissemitas. (...) No final dos anos 1930, a propaganda incessante e as inúmeras
medidas adotadas contra os judeus convenceram cada vez mais alemães de que no
mínimo havia uma “questão judaica” e que talvez fosse melhor se eles simplesmente
deixassem o país (GELLATELY, 2011, p. 200).

Figuras 7 – Jovens negros apreendidos na


Operação Verão

187
Publicada em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2016/11/mp-ira-recorrer-de-decisao-que-proibe-pm-de-
retirar-menor-de-onibus-no-rio.html , em 11/11/16.
183

4.2 A Segunda Solução / Prática 2: Concentração / Encarceramento


Cárceres de Gastar Gente

Meu filho, não deram água para ele beber todos esses dias! Eu dei um
beijo nele para dar um pouco de saliva pra ele188!

475! Que número será esse? Seria o de uma linha de ônibus? Seria uma centena do jogo
de bicho? Antes fosse!! Não, não é!! 475 é o número da concentração / superlotação no
Educandário Santo Expedito (ESE)! 475 é o número de adolescentes internados em condições
sub-humanas no ESE! Descaso, desrespeito, desumanidade? 475 é o número da Barbárie! 475 é o
número do Campo de Concentração! 475 é o número do Cárcere de Gastar Gente!
Ver o desespero daquela Mãe.... Seu corpo retido tremendo, e as lágrimas caindo.... Seu
filho está lá! É um dos 475 do Cárcere! Atônita, desesperada, por não mais ver o brilho nos olhos
do filho de 17 anos! E não acreditava que a Juíza havia dado mais 04 meses de internação a seu
filho sob a alegação de que não tinha visto nele vontade de crescer, de mudar, de futuro! Não, não
é piada! Para tudo! O Judiciário que “soca” cada vez mais adolescentes autores de ato infracional
em unidades de internação superlotadas, insalubres, fétidas, acreditam (?) que é possível
“ressocializar”, “socioeducar” naqueles espaços? Só pode ser um deboche! Ou coisa pior! Com
certeza a Juíza nunca pisou no ESE! Nunca sentiu aquele cheiro... Nunca sentiu os ratos passando
pelo seu corpo quando tenta dormir (e não consegue!)! Nunca teve perebas pelo corpo devido a
tanta umidade e insalubridade! Nunca ficou com a mesma roupa durante meses! Nunca dormiu
em “comarcas” quebradas, colchonetes (quando há), ou mesmo no chão189!

188
Fala desesperada de uma mãe, na Assembleia Extraordinária do CEDCA, em julho de 2017, quando foi visitar seu
filho numa delegacia de polícia depois deste ter estado 03 dias desaparecido.
189
Esta introdução de capítulo foi escrita por mim em meados de 2016. Até o final daquele mesmo ano e em 2017, a
superlotação no Educandário Santo Expedito (ESE) ultrapassará os 500 adolescentes encarcerados, chegando a
mais de 540!
184

Em abril de 2012, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) traçou o perfil dos adolescentes
em conflito com a Lei190. Segundo a pesquisa, são adolescentes de 15 a 17 anos com famílias
desestruturadas, adolescentes em defasagem escolar e envolvidos com drogas que cometeram,
principalmente, infrações contra o patrimônio público como furto e roubo. Esse foi o quadro
revelado no estudo lançado, em 10/04/12, em Brasília (DF), pelo presidente do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ) à época, ministro Cezar Peluso. A pesquisa Panorama Nacional - A
Execução das Medidas Socioeducativas de Internação191 foi feita com base nos dados do
programa Justiça ao Jovem, buscou traçar o perfil dos 17,5 mil jovens infratores que cumpriam
medidas socioeducativas no Brasil e analisar o atendimento prestado pelas 320 unidades de
internação existentes em território nacional.
O superencarceramento do sistema prisional brasileiro é uma realidade sem precedentes.
A população carcerária do Brasil chegou ao número de 622.202 presos, dos quais 61,6% são
negros (pretos e pardos). É o que aponta o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias
(Infopen), que traz dados de dezembro de 2014 e foi divulgado em abril de 2016 pelo
Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), do Ministério da Justiça. Os números do Infopen
mostram, ainda, que as penitenciárias brasileiras ganharam 40.695 presos no período de um ano.
Além disso, cerca de 40% dos detentos são presos provisórios (aguardam julgamento) e o tráfico
de drogas é o crime que mais leva à prisão192.

No âmbito do judiciário a presença do racismo institucional é visível, seja pelas penas


mais rigorosas impingidas aos réus negros, seja ainda pela contumaz desqualificação do
crime de racismo por parte da maioria dos juízes. Com efeito, a conduta de revisão da
acusação de crime de racismo, imprescritível e inafiançável, reclassificando os delitos
como injúria, de penas bem mais brandas é uma prática recorrente entre nossos
magistrados. (Relatório da CPI Assassinatos Jovens, 2015, p. 30-31)

Com 622 mil pessoas privadas de liberdade (o que significa mais de 300 presos para cada
100 mil habitantes), o Brasil continua sendo o 4º país com maior número absoluto de detentos no
mundo, atrás apenas de Estados Unidos, China e Rússia. Porém, enquanto esses países têm

190
Publicado em: http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/58526-cnj-traca-perfil-dos-adolescentes-em-conflito-com-a-lei,
acesso em 10/04/12.
191
Publicada em: http://www.cnj.jus.br/images/pesquisas-judiciarias/Publicacoes/panorama_nacional_doj_web.pdf
192
Publicado em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/mais-de-60-dos-presos-no-brasil-sao-negros , acesso
em 30/04/16.
185

reduzido suas taxas de encarceramento nos últimos anos, o Brasil segue em trajetória oposta,
aumentando sua população prisional em 7% ao ano, em média.
A superlotação do sistema socioeducativo, para adolescentes autores de ato infracional,
também não é diferente. Em 2014, dos 24.628 adolescentes privados ou restritos de liberdade em
todo Brasil, 88% estavam internados, 66% cumprindo sentença e 22% cumprindo internação
provisória, segundo dados do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (CEDECA
Ceará).
Segundo dados do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), órgão
ligado à Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente (SNPDCA),
em 2013, 95% dos adolescentes privados de liberdade eram do sexo masculino; seis (06) em cada
dez (10) jovens infratores tinham entre 16 e 18 anos. Não há dados recentes sobre as
características sociais desses jovens, mas uma pesquisa realizada em 2003 pelo Ministério da
Justiça mostra que 60% dos menores infratores eram negros. Metade deles não frequentava
escola nem trabalhava quando cometeu o delito e 66% deles eram de famílias consideradas
extremamente pobres.

Um outro fator que complica gravemente o problema: o recorte da hierarquia de classe e


da estratificação etnorracial e a discriminação baseada na cor, endêmica nas burocracias
policial e judiciária. Sabe-se, por exemplo, que os indiciados de cor “se beneficiam” de
uma vigilância particular por parte da polícia, têm mais dificuldade de acesso a ajuda
jurídica e, por um crime igual, são punidos com penas mais pesadas que seus comparsas
brancos. E, uma vez atrás das grades, são ainda submetidos às condições de detenção
mais duras e sofrem as violências mais graves. Penalizar a miséria significa aqui “tornar
invisível” o problema negro e assentar a dominação racial dando-lhe um aval de Estado
(WACQUANT, 2001, p. 09 e 10).

O Estado Brasileiro teve que responder à Corte Interamericana de Direitos Humanos


(CIDH – OEA), na Audiência realizada no dia 19/05/17, em San Jose da Costa Rica, sobre as
graves violações em seu sistema de privação de liberdade, tanto para adultos como para
adolescentes, bem como sobre a política de encarceramento em massa que vigora no Brasil.
Foram 52 questões de violação de direitos humanos que o país teve que responder sobre a
situação atual dos presos, como também o número de torturas nesses espaços, assim como
apontar 11 medidas concretas para superar problemas como a superlotação e o enfrentamento a
facções criminosas nas unidades. As seguidas mortes e denúncias sobre a situação das pessoas
presas no Brasil levaram os juízes da CIDH a declarar que há indício de “um problema estrutural
186

de âmbito nacional do sistema penitenciário”. Os delegados brasileiros presentes à audiência da


Corte Interamericana, denunciaram uma política massiva de medidas de privação de liberdade,
superlotação das unidades, maus-tratos, más condições de higiene e falta de serviços de saúde193.
Os índices de encarceramento do Brasil e dos Estados Unidos aumentaram
vertiginosamente, sem necessariamente um aumento dos índices de criminalidade194. Destaque-
se, por exemplo, que enquanto a população brasileira aumentou cerca de 21% de 1994 a 2007
(157 milhões para 190 milhões) a população carcerária no mesmo período aumentou mais que
320%! Em 1994, ano do primeiro censo penitenciário do Brasil, a população carcerária brasileira
era de 129.169 encarcerados, perfazendo um índice de 88 condenados por 100 mil habitantes. Em
2008, a população carcerária passa para 435.551 presos, com índice superior a 345 presos por
100 mil habitantes.

O ensinamento disciplinar não tem mais sentido na sociedade pós-industrial/pós-fordista


porque não há mais ensinamento a propor, por isso, as instituições que foram criadas na
modernidade com esse objetivo perdem progressivamente a razão de ser. Resta apenas
aquilo que Cohen chamou de warehousing, o “armazenamento” de sujeitos que não são
mais úteis e que, portanto, podem ser administrados apenas através da incapacitation, da
neutralização (DE GIORGIO, 2006, p.18).

As 10 unidades de internação do Departamento Geral de Ações Socioeducativas


(DEGASE), vinculado à Secretaria Estadual de Educação do Rio de Janeiro, tinham 1.913
adolescentes em cumprimento de medida de internação, em junho de 2017. A capacidade total
dessas unidades, no entanto, é de 986 vagas195, ou seja, 194% acima da capacidade! Observa-se
que a superlotação é uma realidade. São dois meninos dividindo a mesma cama (comarca), e até
muitos dormindo no chão, pois faltam colchonetes. A insalubridade e a sujeira deixam o
ambiente ainda pior, com foco de doenças de pele e respiratórias, favorecendo a presença de
ratos, baratas, mosquitos e lacraias. A medida de internação deveria ser aplicada como último
recurso e pelo período mais breve possível segundo a legislação brasileira e acordos

193
Publicado em: http://www.global.org.br/blog/brasil-respondera-por-superencarceramento-homicidios-e-torturas-
na-corte-interamericana-nesta-sexta-feira/ , acesso em 23/06/17.
194
A população carcerária americana passa de 400.000 presos em 1975 para 750.000 em 1985, alçando dois milhões
ao final da década de 90. A média de encarceramento nos EUA é cinco vezes superior à Europeia. Se somarmos os
presos a todos aqueles que têm controle carcerário (liberados condicionais, pessoas em probation etc.) chega-se a
uma população controlada de 5 milhões de pessoas! (GIORGI, op. cit., p. 94).
195
Publicada em: https://oglobo.globo.com/rio/unidades-de-ressocializacao-de-menores-infratores-sao-precarias-
superlotadas-no-rio-21430866 , acesso em 26/06/17.
187

internacionais do Estado brasileiro, no entanto, apesar de ser medida de caráter excepcional, os


números demonstram que a internação tem sido a regra.

Os campos foram retratados de maneira sarcástica pelas SS no início de 1939 como


locais “excelentemente adequados” para fornecer aos antissociais uma “cura educativa
pelo trabalho”
Os campos de concentração nos últimos anos pré-guerra foram usados não apenas para
“inimigos [políticos] do Estado, mas também para aqueles socialmente indesejados. (...)
mesmo antes da guerra os campos confinavam cada vez mais outsiders sociais. No final
de outubro de 1938, por exemplo, o campo de Buchenwald (...), seus 10.188 prisioneiros
incluíam 1.007 “criminosos profissionais” e 4.341 “antissociais”. Portanto,
encarceravam tanto ou mais outsiders sociais quanto adversários políticos, como os
comunistas (GELLATEY, 2011, p. 162).

De acordo com informações da Defensoria Pública e MP, o ato análogo ao tráfico de


drogas é o segundo ato infracional que mais interna adolescente no país. De acordo com a
Súmula 492 do Superior Tribunal de Justiça, de agosto de 2012, este tipo penal não representa
um ato que caracterize extrema periculosidade ou extremo uso de violência pelo jovem infrator,
prevendo que “o ato infracional análogo ao tráfico de drogas, por si só, não conduz
obrigatoriamente à imposição de medida socioeducativa de internação do adolescente”, o que
pode garantir a excepcionalidade na aplicação da medida privativa de liberdade. No entanto, a
Súmula não é respeitada pelos Juízes e/ou Promotores de Justiça quando dão a sentença.
Outro fator que contribui com a superlotação é a constante prorrogação das medidas
provisórias, nas quais os adolescentes autores de ato infracional ficam internados até que a
sentença seja proferida. Segundo a legislação brasileira, o período máximo de internação
provisória seria de 45 dias, porém, estes dispositivos legais não têm sido suficientes para conter
as autoridades judiciais em determinar a prorrogação desse período sob a alegação de
“periculosidade do adolescente”. Tudo isso contribui para a superlotação das unidades de
internação, afetando a possibilidade de resguardar a integridade física e psicológica dos internos,
dificultando a assistência socioeducativa dos adolescentes em razão da sobrecarga de trabalho
dos profissionais que atuam na justiça juvenil.

(...) o ataque neoliberal ao Estado do bem-estar social prosseguiu ininterruptamente, até


determinar, de fato, a substituição do “Estado social” por um verdadeiro “Estado
penal”196 (WACQUANT, 2001, p.52).

196
“A desregulamentação econômica e a hiper-regulamentação penal caminham, na realidade, lado a lado. O
desenvestimento social implica o super-investimento carcerário, que representa o único instrumento em condições
188

Por outro lado, são inúmeros os relatos de tortura e outros tratamentos cruéis e desumanos
praticados pelos agentes estatais contra os adolescentes no interior das unidades, onde a tortura é
praticada por “socioeducadores”, com cassetetes, tapas na cara, no uso de armamentos menos
letais, como spray de pimenta, denunciado por vários desses adolescentes no RJ.
Muitos são os perigos da expansão da ideologia punitiva e seletiva, que demanda por mais
segurança e o recrudescimento penal, baseada na disseminação do medo social. A defesa da
Segurança Pública como direito fundamental tem servido como justificativa para a exacerbação
do controle social e encarceramento, bem como na ação de justiceiros, sendo as maiores vítimas a
juventude negra e pobre, sejam as que estão em situação de rua, ou as que estão nas favelas e
periferias da cidade, esses que denominamos “sujeitos indesejáveis”.
Os discursos carregados de ódio nas redes sociais e nos comentários de notícias sobre
adolescentes infratores escancara um tipo de fascismo latente na sociedade. Vejam alguns
exemplos de comentários da notícia do G1 da Globo, intitulada “Menor infrator é espancado até
a morte em unidade do DEGASE no RJ197, de 14/12/16”:

Luiz: realmente uma tragédia, infelizmente nesses casos morreu um só, deveria ser no
mínimo uns 15, todos.
Márcio: Tem que deixar eles se pegarem mesmo. Se possível espalhem boatos lá dentro
Paulo César: -1
Souza: Fecha a porta e joga a chave fora. É a melhor solução não tem recuperação esses
menores infratores.
Vilela: extinção da maioridade penal. Cometeu crime, paga.
Alessandro: Tomara que se matem todos, em Bangu também, deixem eles se matarem.
baah um a menos pra incomoda , enterra de cabeça pra baixo a carniça.
Ekuka: O ser humano é irrecuperável, já nasce ruim e assim será sua vida toda. Muito
bom, deixem eles se matarem, e os que estão vivos deixem apodrecer lá, parasitas dos
infernos...
Daniel: Primeiro, não vai acontecer exatamente nada com os assassinos. Segundo, se
matem a vontade.
Júlio Cesar: Nossa ganhei meu dia. Que notícia maravilhosa.

A realização do Seminário “Segurança Pública como direito fundamental”, realizado pelo


Ministério Público do RJ, no dia 15/09/17, endossa um projeto político maior, decorrente da

de fazer frente às atribulações suscitadas pelo desmantelamento do Estado social e pela generalização da
insegurança material que, inevitavelmente, se difunde entre os grupos sociais colocados nas posições mais baixas
da escala social” (L. Wacquant, Parola d’ordine: tolleranza zero. La transformazione dello stato penale nella società
neoliberale. 2000, p. 101)
197
Publicada em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/menor-infrator-e-espancado-ate-a-morte-em-unidade-do-
degase-no-rj.ghtml , acessso em 14/12/16.
189

aliança de um segmento do MP com a direita conservadora e elitista, defensora da ideologia


punitiva e seletiva, da redução da maioridade penal e do aumento do tempo de internação. A
presença, entre os convidados palestrantes, do fundador do Movimento Brasil Livre (MBL), Kim
Kataquiri, do autor do livro “Bandidolatria e Demonicídio”, e do autor do vídeo “Licença para
matar”, que circulou na internet e traz o apoio de Promotores e Procuradores de Justiça do RJ,
fomentam a crítica ao Estatuto da Criança e do Adolescente, e da ideia de que o recrudescimento
das práticas de justiça criminal e o aprimoramento do aparato punitivo do estado (o Estado Penal)
são a solução para os problemas da segurança pública, e esta ideia é propagada e acaba se
transformando em verdade, visto que a ideologia é um instrumento de dominação da classe
dominante (CHAUÍ, 1991).
Proibidos de entrar no Ministério Público para assistir ao seminário (na casa que é do
povo), defensores de direitos humanos realizaram em frente ao MP o Ato Público “O Ministério
Público prende e o Estado mata”, que provocou muitas críticas pelos organizadores do evento.
Hannah Arendt (2013), no livro Eichmann em Jerusalém, descreve Adolf Eichmann,
oficial alemão responsável pela logística do transporte de judeus para campos de concentração,
como um homem que não se sentia responsável em contribuir com o extermínio de milhões de
judeus e dos chamados “outsiders sociais” (ciganos, homossexuais, prostitutas, mendigos,
deficientes, etc..) durante o Terceiro Reich. No seu julgamento, Eichmann enfatizava que não
passava de um mero cumpridor de ordens do regime nazista. Para esse tipo de comportamento,
Arendt desenvolveu o conceito de “banalidade do mal”, já descrito anteriormente.
Qual a relação de Eichmann e a banalidade do mal com o que descrevemos aqui? Será que
quando a Justiça Criminal determina a sentença de internação em unidades superlotadas, seja em
presídios (adultos) ou no sistema socioeducativo (adolescentes), os juízes e promotores já
entraram nesses espaços, que em boa parte se assemelham a campos de concentração?
Superlotados, fétidos e sombrios ou mesmo em ruínas, palco de abandono, doenças, tortura e
morte. Quem entra nesses espaços jamais esquecerá aquela visão e aquele odor... Diante disso,
permanece a pergunta: Por que os Juízes continuam a encaminhar homens, mulheres e
adolescentes para esses lugares que violam os direitos mais fundamentais? Por que tantos
Promotores e Procuradores consideram que as penas tem que endurecer e os adolescentes têm
que cumprir um maior tempo de internação?
190

No Seminário sobre o DEGASE, em outubro/2016, a Juíza Vanessa Cavalieri, titular da


Vara da Infância e da Juventude da Capital para adolescentes infratores, disse que não adiantaria
reduzir a idade penal para 16 anos, pois ela ajuíza muitos crimes graves, como o latrocínio,
cometidos por adolescentes com 14 anos! E considerou que a superlotação no DEGASE poderia
ser resolvida com controle de natalidade.
Assim como Eichmann tinha certeza de que estava cumprindo ordens superiores e atuava
de acordo com a legalidade do regime político e ideologia do Terceiro Reich, no Brasil de nossos
dias, especialmente no Rio de Janeiro, um grupo majoritário de Juízes e representantes do
Ministério Público (Procuradores e Promotores), consideram que devem assim proceder com a
certeza de que ao darem sua sentença para o encaminhamento dessas pessoas para a prisão ou
para o sistema socioeducativo estão cumprindo com suas obrigações legais.
Da mesma forma, será que os policiais acham que estão fazendo a coisa certa quando
usam e abusam de sua autoridade, com violência e arbitrariedade, seja nas ruas, ou quando
entram nas favelas e disparam armas de fogo ferindo e causando a morte de inocentes? Parece
que sim, pois essa conduta junto aos classificados como “perigosos” tem sido adotada desde a
criação da polícia, no Brasil Império (1809).
Se Eichmann afirmava desconhecer o destino dos trens repletos de judeus para eximir-se
de qualquer culpa, também nossas autoridades judiciais e de segurança, ressalvadas as exceções,
parecem desconhecer, ou não se interessam por conhecer, a realidade do sistema prisional e
socioeducativo, verdadeiras masmorras / cárceres, para onde vão aqueles por eles considerados
culpados! São, na verdade, executores de uma política voltada ao encarceramento em massa que,
punitiva, racista e seletiva, alcança preferencialmente a parcela jovem, negra e pobre da
população, ou seja, os indesejáveis.

O problema com Eichmann era que muitos eram como ele, e muitos não eram nem
pervertidos, nem sádicos, mas eram e ainda são terrível e assustadoramente normais. (...)
esse era um tipo de criminoso, efetivamente hostis generis humanis, que comete seus
crimes em circunstâncias que tornam praticamente impossível para ele saber ou sentir
que está agindo de modo errado (ARENDT, 2013, p. 298).

Se o inimigo da Alemanha nazista era o povo judeu e os outsiders sociais, aqui os


principais inimigos são identificados nos adolescente em situação de rua, no adolescente autor de
ato infracional, e nos adolescentes negros e pobres que saem da periferia e favelas e adentram nos
191

espaços da classe dominante para fazerem “arruaças, arrastão”, etc... Contra eles toda a força da
lei. E ninguém se sente culpado por isso... É ou não é a “banalidade do mal”?
O problema da superlotação tem se agravado progressivamente, como será apresentado no
subcapítulo 4.2.1, a seguir. Mas, foi entre 2014 a 2017, época em que participei do Conselho
Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente (CEDCA) e do Comitê Estadual de Prevenção
e Combate à Tortura (CEPCT), que pude acompanhar mais de perto esta questão. Visitas às
unidades de internação do DEGASE, Assembleias Ordinárias e Extraordinárias do CEDCA e do
CEPCT, Audiências Públicas na ALERJ, reuniões com órgãos nacionais e internacionais de
direitos humanos, reuniões e relatos das Mães e Familiares, relatos dos próprios meninos que
cumprem medida de internação no DEGASE descortinaram a realidade perversa do
encarceramento de adolescentes no Estado do RJ, muito distante de uma solução!
Uma das principais Audiências Públicas sobre o tema foi a realizada em novembro de
2015, na ALERJ, pela Comissão de Educação em parceria com a Comissão de Direitos Humanos,
presidida pelo Deputado Marcelo Freixo, sobre violações de direitos humanos no sistema
socioeducativo198, com o objetivo de debater a superlotação do Departamento Geral de Ações
Socioeducativas (DEGASE) a partir da aplicação excessiva da medida socioeducativa de
internação no Estado do Rio de Janeiro. A audiência pública contou com a presença da
Subdiretoria Geral do DEGASE, a Promotoria de Tutela Coletiva do Sistema Socioeducativo da
Capital, Defensoria Pública, o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, a
Diretoria Especial de Unidades Escolares Prisionais e Socioeducativas da Secretaria Estadual de
Educação (SEEDUC), representantes da sociedade civil, além dos deputados Marcelo Freixo,
Flavio Serafini, Tio Carlos, Waldeck Carneiro e Dr. Julianelli, que lamentaram a ausência de um
representante do Tribunal de Justiça.
Entre janeiro e setembro de 2015, quase 9.859 mil adolescentes foram apreendidos pela
polícia no Rio de Janeiro. Todo os dias, em média, 25 jovens são encaminhados ao Centro de
Socioeducação Gelso de Carvalho Amaral, (CENSE-GCA), porta de entrada do DEGASE,
unidade responsável pela internação dos jovens apreendidos pela polícia. Essa realidade já
representa um aumento de 400% do encarceramento de adolescentes. “Há uma superlotação
evidente. A capacidade de alocação na unidade é de 64 jovens, mas hoje temos 248. Daqui a

198
Ver em: http://www.marcelofreixo.com.br/2015/11/04/a-superlotacao-do-degase-nao-pode-ser-ignorada/
192

pouco eles vão virar morcego, vão ter que dormir em pé! A gente está no fio da navalha”,
afirmou o Diretor do Cense GCA, Miguel Ângelo de Souza. .
Segundo Sílvio Castro, Sub Diretor Geral do DEGASE, a porta de entrada está com sua
capacidade 04 vezes maior do que aquela que foi projetada. “Estamos com déficit de funcionários
e de vagas nas 10 unidades; em 03 anos triplicamos o número de apreensões, tínhamos 8.300 no
ano passado, e esse ano a previsão é chegarmos a 10.000!” “Estamos chegando num colapso!”
De acordo com os dados apresentados na audiência, a realidade da superlotação estava
presente em quase todas as 10 unidades de internação do DEGASE: em Campos, são 60 vagas
para 171 adolescentes internados, sendo 38 provisórios; na Escola João Luiz Alves (EJLA), na
Ilha do Governador, que tem capacidade para 112 adolescentes, tinham 276.

A superlotação nas unidades do DEGASE passa a impressão de que é natural e


inevitável, mas não é. Isso é uma questão humana e é política. Nós estamos em uma casa
política e não podemos fugir a essa responsabilidade. Por isso, temos que levar esse
debate também a outras casas, dentre elas, o Tribunal de Justiça que responde pelo Poder
Judiciário. Sinceramente, peço desculpas aos funcionários do DEGASE, mas vocês não
vão entrar em colapso, é visível que já estão e há tempos! Temos que garantir a
audiência de custódia199 que não é uma prerrogativa que serve somente para o sistema
penal, pode ser usada para o DEGASE, então, por que não se faz? (...) Sinceramente o
que ocorre ali é cárcere! A gente fica politicamente se policiando na hora de utilizar as
palavras e, por isso, usamos uma série de palavras politicamente corretas, mas a gente
mente para nós mesmos. Quando falamos que são unidades socioeducativas, a gente
mente. Criamos um subterfúgio teórico e gramatical que é enganoso. É cárcere – e dos
piores! Entre 2011 a 2014 o número de adolescentes apreendidos subiu de 3.400 para
8.300. Isso é impunidade? A gente tem que garantir as medidas de custódias e o
semiaberto. E, se entendermos que metade desses garotos que estão sendo presos, e eu
não estou errando no meu vocabulário, é por conta de apreensão de drogas, fica evidente
que chegou e já ultrapassou a hora de fazermos um debate sobre essa política de drogas.
Chega de hipocrisia, porque o resultado dessa politica de drogas é isso: é a
criminalização da pobreza! (Deputado Marcelo Freixo – PSOL, em sua fala na
Audiência Pública).

Para Eneida Ramos, Coordenadora das medidas Socioeducativas, “é um sistema que não
tem condições de ser apreendido. O socioeducativo há muito tempo tem sido medida de castigo,
principalmente dos que vêm de outro município”. A Coordenadora disse que existem problemas
graves e que é preciso revisitar o que prevê o Sistema Nacional Socioeducativo (SINASE), que
estabelece uma série de medidas, inclusive que cada unidade de internação não pode ultrapassar a
capacidade de 90 adolescentes. Eneida comenta que “a imputação de medidas já começa errada.

199
A audiência de custódia é o instrumento processual que determina que todo preso em flagrante deve ser levado à
presença da autoridade judicial, no prazo de 24 horas, para que esta avalie a legalidade e necessidade de
manutenção da prisão (ver em: http://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario-e-execucao-penal/audiencia-de-custodia ).
193

O adolescente chegou lá, e numa situação de superlotação, já vai para internação provisória. É a
cultura do aprisionamento! Precisamos enfrentar e pensar alternativas outras não só do
aprisionamento”, disse.
A situação de baixa escolaridade dos adolescentes apreendidos foi uma questão que
também chamou a atenção na audiência. Dos adolescentes que estavam em cumprimento de
medida de internação em novembro de 2015, 95% não haviam completado sequer o ensino
fundamental. Dos 7.815 adolescentes cumprindo medida socioeducativa (regime fechado e em
meio aberto), naquele período em todo o Estado, segundo relatório do DEGASE, apenas 04
internos tinham concluído o ensino médio. “Mais de 95% dos jovens estão em defasagem
educacional. Ainda estão no ensino fundamental. Necessário implementar políticas de
acolhimento desses jovens, de acordo com o SINASE, política que acolhesse esse jovem, pois
muitos entram lá pela primeira vez e sentem-se perdidos. Política de acolher, incluir dentro do
sistema escolar”, argumentou Eneida Ramos.
Outros problemas também foram expostos como: a falta de agentes socioeducativos, má
infraestrutura de unidades com regime fechado e semiaberto e gargalos burocráticos de políticas
públicas voltadas aos adolescentes, dentre elas, o oferecimento do bilhete do Rio Card, que estava
em falta para os adolescentes que cumprem regime de semiliberdade e liberdade assistida que
frequentam escola formal.
O Promotor Marcos Fagundes, Coordenador, à época, do Centro de Apoio Operacional
das Promotorias da Infância e da Juventude (CAO Infância), do Ministério Público, comentou
que “da última audiência pra cá, pouco mudou no quadro da superlotação, e isso é muito grave! A
medida não é socioeducativa, é medida de encarceramento! A superlotação inviabiliza a
socioeducação! E isso é uma violação de direitos!”
O Deputado Flávio Serafim (PSOL), considera que a política é de encarceramento em
massa. Destacou que a Audiência estava sendo realizada pouco depois das ações da polícia do
estado de retirada dos adolescentes dos ônibus em direção às praias da zona sul (Operação
Verão):

Esse crescimento mais que o dobro dos adolescentes presos pela polícia não tem a ver
apenas pela prática de ato infracional! É também pela política de segurança pública
nessa cidade! É um sistema socioeducativo que não consegue funcionar por várias
razões. Temos que romper com a lógica de segregação, criminalização e encarceramento
em massa (Deputado Flávio Serafim).
194

O Deputado Marcelo Freixo fez suas considerações ao finalizar a Audiência Pública:

Já faz tempo que o sistema está em colapso! Não seria aceitável se fosse para “outros”.
Só é aceitável porque é para esses que estão lá! Aquilo lá é cárcere! E dos piores! E o
discurso hegemônico que está aí, estamos perdendo. Até quando vamos manter esse
estado de coisas?
O de apreensões teve um aumento de 2.400 em 2011, para 8.300 em 2014!! O sistema
carcerário teve aumento de 317% em 04 anos! Em sua maioria é jovem que lá está. Isso
não acontece em nenhum país do mundo!
95% dos jovens não têm ensino fundamental! Isso é uma tragédia!
Um jovem negro tem três vezes mais chance de ser assassinado do que um branco!
A lei sempre foi um instrumento da ordem. Para impedir a revolução!

No dia 05 agosto de 2016 aconteceu uma tragédia anunciada devido à superlotação200 e às


péssimas instalações do DEGASE, que foi o incêndio no interior de uma das celas da Escola João
Luiz Alves (EJLA), uma das unidades de internação do DEGASE201. O fogo começou devido a
um curto circuito na fiação da televisão, quando os adolescentes assistiam a abertura da
Olimpíada 2016. O socorro demorou a chegar. Dos 12 adolescentes na cela, 09 tiveram seus
corpos queimados, um deles, o jovem Ryan, de 15 anos, morreu no dia seguinte em consequência
das queimaduras de 3º grau em 50% do corpo e 100% do rosto. Um segundo adolescente, Isaías
de 16 anos, internado em estado grave, morreu um mês depois. De acordo com depoimento de
familiares e defensores de direitos humanos, importante desatacar que assim como os outros 07
internados no Hospital pelo incêndio, Isaías, com queimaduras generalizadas em todo o corpo e
que esteve internado em estado de coma, “por medida de segurança”, permaneceu algemado na
cama do hospital até a sua morte! A denúncia também foi publicada na mídia impressa202. Muitas
foram as denúncias, representantes do Ministério Público e Defensoria Pública estiveram no
hospital e constataram que alguns adolescentes estavam em precário estado de saúde, não
oferecendo risco de fuga, e que o uso de algemas, nessa situação, atenta contra a dignidade
humana.

200
Nesse dia, a EJLA que tem cerca de 120 vagas, estava com 400 adolescentes encarcerados.
201
Publicado em: http://extra.globo.com/casos-de-policia/nove-jovens-sao-hospitalizados-apos-fogo-em-unidade-
para-infratores-no-rio-19859620.html#ixzz4IwB4jM7X, acesso em 06/05/16.
202
Publicado em: http://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2016-08-11/adolescentes-feridos-em-incendio-no-degase-estao-
algemados.html , acesso em 12/08/16.
195

A maioria dos comentários da mídia impressa203 sobre as notícias do incêndio e dos


adolescentes algemados foram mais que cruéis, são perversos, fascistas. Segue 03 exemplos:

João, Universitário: “Estão de sacanagem estes "adolescentes" são todos bandidos


perigosos se deixar sem algema vão fugir ou matar alguém no hospital, tem é que
colocar coleira de ferro neles, o que fere a dignidade é o trabalhador ser morto e
ameaçado todos os dias por este marginais !!!!!!!!!!!!!
Jorge, Universitário: Eu me ofereço como voluntario para violenta-los sexualmente e
depois injetar cianureto nas correntes sanguíneas.
Gabriel, Arquiteto: Uma boa ideia, mande-os para a UFRJ como cobaias.

E, pelo menos um comentário que faz a defesa:

Mateus, Estudante: Deve ser um estuprador esse velho! São apenas jovens não sabem
nada da vida, e ninguém e perfeito todos cometemos erros!, Como você pode se sentir
uma boa pessoa com um pensamento desses? Chega dar nojo!

A Rede Rio Criança em conjunto com o Movimento Moleque (que reúne grupo de mães e
familiares), exatamente um mês depois da morte de Ryan, e no dia da morte de Isaías, realizou o
Ato Público “Ryan e Isaías Presente! Familiares em luta por Justiça!”, em frente ao Tribunal de
Justiça do RJ. A performance “De quem é a culpa”, feita pelo Núcleo de Educadores e
Educadoras Insurgentes (NEEI)204, rememorou a tragédia do incêndio e mote de Ryan, causando
grande comoção à todos os presentes ao ato, despertando a atenção de transeuntes.
Em relação aos casos de tortura, a Defensoria Pública, em reunião do GT DEGASE, em
agosto de 2017, citou um caso exemplar que ficou conhecido como “Caso Powbel205”, ocorrido
em 2013, na Escola João Luiz Alves (EJLA), unidade de internação do DEGASE, quando um
grupo de adolescentes foi torturado durante 04 dias seguidos (de sábado à terça-feira), sofreram
violência física e psicológica, tapas na cara, não deixaram os adolescentes dormir, nem tomar
água. Foi a primeira vez que a Defensoria conseguiu registrar um caso de tortura. Conseguiram
que os adolescentes fossem transferidos para outra unidade, o Centro de Atendimento Intensivo
Belford Roxo (CAI Baixada). No entanto, os adolescentes foram coagidos pelo Diretor desta
unidade para mudarem o depoimento. Os adolescentes confirmaram a tortura, mas o torturador

203
Publicado em: http://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2016-08-11/adolescentes-feridos-em-incendio-no-degase-estao-
algemados.html , acesso em 12/08/16.
204
Para ver a performance acessar o link: https://youtu.be/KRL_tI_BChc .
205
Powbel era um Agente Socioeducativo da Escola João Luiz Alves.
196

não foi punido, pois o MP pediu absolvição do réu por não terem provas concretas, apenas a
declaração dos adolescentes. Esse foi apenas um exemplo, semelhante a outros casos de tortura e
maus tratos sofridos pelos adolescentes encarcerados, e os culpados raramente são punidos ou
afastados, no máximo são remanejados para outro lugar, como o Caso Andreu, citado adiante, em
nota de rodapé 210.
Nessa reunião do GT DEGASE, também foi citada a forma como trabalha a Coordenação
de Segurança Investigativa do DEGASE (CSINT), que sempre é chamada para conter algum
conflito nas unidades. Segundo alguns relatos, a CSINT, que tem um uniforme semelhante ao do
BOPE (preto), faz uso da força e violência, abuso de poder, muitas vezes para intimidar os
adolescentes: “Houve caso de tirarem um menino de cada alojamento e sentarem a “porrada”
neles! É a violência institucionalizada, estrutural. E muitos funcionários são milicianos”,
comentou um dos presentes à reunião.

Nossa sociedade está doente. E o resultado é isso que vemos no sistema. Essa catarse
tem que resultar numa ação conjunta. Por que há superlotação? Porque há Juízes e
Promotores que internam? Será que estamos trabalhando dentro dos direitos?
Certamente não estamos!
Existem adolescentes que entram no sistema sem a carta de execução de medida, o que é
um absurdo!
A sociedade empurra esses meninos a isso! É fascista! Estamos num sistema de
segurança pública fascista! (dá o exemplo de um menino de 06 anos que foi preso por
supostamente estar furtando e entregue numa delegacia).
Temos defeitos porque temos também os defeitos da sociedade, fazemos parte dela!
(Desembargador Siro Darlan)

A pesquisa de campo às unidades fechadas do DEGASE foi muito importante, para atestar
in loco a superlotação e as condições das unidades. Descrevo a seguir parte do relatório de uma
das visitas ao Educandário Santo Expedito (ESE), que realizei enquanto Conselheira Estadual dos
Direitos da Criança e do Adolescente, em conjunto com o MEPCT e o CRESS / Fórum DCA.

4.2.1 Relatório visita ao Educandário Santo Expedito (ESE)

Data: 04/02/16.
Presentes: 02 representantes do CEDCA RJ; 02 representantes do MEPCT; 01 representante do
Fórum DCA RJ / CRESS.
197

A visita de fiscalização teve como principal objetivo verificar o caso de superlotação, bem como
as condições em que se encontravam os adolescentes. Ao chegarmos ao ESE, realizamos reunião
com a equipe: Diretor Operacional, Diretoria Técnica e Responsável do Plantão.
A informação foi a de que havia 415 adolescentes internados na unidade, apesar da capacidade do
ESE ser de 190. A Diretoria expressou sua preocupação, bem como de terem, frequentemente,
encaminhado ofícios sobre a superlotação e das dificuldades em decorrência desse fato para a I
Vara, Defensoria e MP, esclarecendo quanto ao não cumprimento do SINASE.
As Equipes são formadas por:
Plantonista 24h (25 X 72h) – 17
Contratados – 15
Plantão do dia – 30 agentes até as 19hs; à noite – 18 agentes no plantão.

Fomos informados de que até DEZ/2015 haviam 06 equipes formadas por Assistente
Social, Psicólogo, Pedagogo. Atualmente, segundo o diretor, só existe uma equipe incompleta.
O Diretor disse que cada um dos alojamentos tem capacidade para 08 adolescentes. No
entanto, havia cerca de 10 adolescentes a mais por alojamento, ou seja, cerca de 18 por
alojamento/cela. Os adolescentes são divididos por local de moradia, para evitar problema de
facção. Nos Módulos 01 e 02 se encontram os alojamentos chamados “Seguros”, para proteger os
adolescentes que são de facções diferentes, ou não pertencerem a facção.
Outra informação relevante e preocupante foi que toda 6ª feira chegam cerca de 15 a 20
adolescentes, do Cense GCA (unidade de entrada e triagem). E que haviam 139 adolescentes
maiores de 18 anos na casa.
Em relação ao lanche e a comida, a informação foi a de que a qualidade havia caído,
devido à superlotação. O serviço é terceirizado.
As aulas na Escola, com a superlotação, não tem tido frequência regular. A maioria dos
adolescentes está na 4ª e 5ª série. Apenas 14 frequentam o ensino médio. Em relação às
atividades de música e esportivas (ping-pong, totó), nesse cenário, eram feitas no período de 01h
com cada módulo, de 15 dias em 15 dias. O banho de sol era feito todos os dias, 01h para cada
alojamento. Doenças – 01 caso de doença respiratória. O caso de caxumba havia sido resolvido.
198

As visitas das famílias tiveram de ser reduzidas devido à superlotação. Estavam sendo
feitas apenas aos sábados e domingos, na parte da manhã. Anterior à superlotação, podiam ser até
04 familiares, mas agora só 02 visitantes por adolescente.
A revista vexatória ainda continuava sendo feita, pois, segundo informaram, ainda não tinham
recebido os scanners, e não haviam recebido nenhuma orientação em relação a isso. O MEPCT
informou que a SEAP – Secretaria de Estado de Administração Penitenciária, já tinha as
orientações e não realizam mais a revista vexatória, e que o DEGASE já havia recebido o
dinheiro para a compra do equipamento. A orientação que foi dada era que o DEGASE fosse
oficiado em relação a essa questão.
Aos adolescentes não é permitido a visita íntima, nem tão pouco recebem camisinha. Os
meninos tem um acordo entre eles em relação à prática de masturbação, que é a de não fazerem
na frente de visitas femininas.
Perguntados sobre como solucionar o problema da superlotação, responderam: a
construção das unidades em São Gonçalo e Niterói, pois muitos adolescentes vêm daquela região;
Juiz tem que internar menos adolescentes; e investir em outras medidas para crimes mais leves.
A maioria dos adolescentes internados é por tráfico. Latrocínio corresponde a cerca de
10%. Sobre o aumento das internações, para o Diretor as internações aumentaram muito de 2014
pra cá. De 120 adolescentes internados naquela época, aumentou para média de 420 em 2016.
Segundo ele, à época de sua entrada no DEGASE, em 2008, eram cerca de 70 adolescentes
internados no ESE. Esse aumento vem sendo progressivo, especialmente de 02 anos pra cá. Para
ele isso é decorrente da implantação das UPPs. Na rebelião, em 2015, tinham 330 adolescentes
no ESE.
A seguir, fomos fiscalizar os alojamentos e conversar com os adolescentes, que tinham
acabado de almoçar. Devido à superlotação, não comem no refeitório. As refeições são servidas
no próprio alojamento/cela. Como éramos em 04 pessoas, nos dividimos em grupo de 02 para
visitar as celas por ala. Ao entrarmos, o cheiro era bastante forte (“murrinha”), enjoativo, apesar
do local estar relativamente limpo. Fazia muito calor no RJ, verão de 40 graus! Imagine no
interior dos alojamentos... O ambiente, além de quente e mal cheiroso, era muito insalubre.
Algumas “celas” tinham ventilador, trazidos pelas famílias, e estoque de garrafas Pet, para
armazenarem água (que ficava quente, claro!).
199

O que me chamou muito a atenção logo na entrada dos alojamentos era que a maioria das
celas tinha um saco de lixo amarrado na grade, e uma espécie de cobertura / tampão na parte
inferior da grade, feita com papelão ou plástico, cerca de 3 a 4 palmos de altura. Perguntados para
que aquilo, os adolescentes responderam que era para os RATOS não entrarem! Mas, que não
adiantava, porque entravam mesmo assim!

Figura 8 – Gaiola cenográfica da superlotação em


unidade do DEGASE

Gaiola cenográfica, representando as celas do DEGASE


superlotadas e com a presença de ratos e baratas, apresentada
em performance realizada em Audiência Pública na OAB
sobre a superlotação no DEGASE. Foto: Márcia Gatto.

Outra coisa que observamos foi a falta de colchonetes, sendo que os poucos que
encontramos estavam em péssimas condições. A maioria das roupas (uniformes) que vestiam
estavam velhos (camiseta branca e bermuda azul marinho). Praticamente todos os adolescentes
estava com doença de pele – sarna, coceira, também chamada de “quiquita”.
Naquele lugar fechado, sem a entrada de sol, agravavam-se os problemas de saúde, de
sono, e muitos perdem a noção do tempo.
Antes de pedirmos informação aos meninos, sempre nos apresentávamos, informando
nosso nome, instituição que representávamos e objetivo de nossa ida lá. Importante destacar que
fomos muito bem recebidas por eles, e que os mesmos comentaram muitas coisas e fizeram
muitas denúncias.
Ressalto que para falar sobre as diversas situações de convivência e violação no interior
do sistema socioeducativo, temos que ouvir, dar voz aos adolescentes que estão lá encarcerados,
200

bem como às Mães e familiares destes. São relatos e depoimentos muito fortes que trazem à tona
uma perversa política de Estado de punição e confinamento de adolescentes no Rio de Janeiro. A
seguir, destaco alguns desses relatos.

4.2.2 Visita ao ESE, em 04/02/16 - Alojamentos “cela” dos adolescentes em cumprimento de


regime fechado.

Eu sou sujeito homem! Pai de família! Não tenho que ficar levando tapa
na cara, chinelada na bunda! Spray de pimenta! Vai ter rebelião!!!

Depoimento dos Meninos


- Já tivemos aqui até 27 na cela! No máximo seria 10! E só temos 06 comarcas, sendo que
estão rachadas!
- Eles não estão trocando a roupa; ficamos 02 dias sem água; não tem colchão. O rato
entra no alojamento; já vi até gambá. Não tem roupa de cama trocada; não tem roupa de visita pra
todos! Tem um que ganha e outro não. Estamos com coceira pelo corpo. Não dão pomada. O
corpo está com bolinhas.
Perguntados sobre o atendimento técnico, responderam que devem estar de 02 a 04 meses
sem atendimento técnico. Atendimento só é feito perto da audiência com o Juiz. Esperam de 05 a
06 meses para a audiência. Em relação aos cursos, comentaram que tem de cabeleireiro, garçom,
TV DEGASE, Fotografia, Mecânica, mas que não tem vagas para todos, só chamam alguns.
- Temos dificuldades de fazer a carteirinha da namorada, do amigo, para a visita.
- Têm muitos adolescentes aqui com mais de 18 anos, com 20 anos na unidade. A maioria
dos maiores que estão aqui é por mandato de busca! Era pra eles ficarem no máximo 03 meses, e
o Juiz está dando 06, 12 meses! Só nessa cela temos 09 maiores de 18 anos206.

206
Os adolescentes que cometem ato infracional e estão próximos aos 18 anos, ou não cumpriram a medida na época
(fugiram), e hoje foram presos por mandato de busca e apreensão e estão com idade entre 18 e 21 anos, vão para o
Educandário Santo Expedito (ESE). Nessa unidade, geralmente, se encontram os adolescentes mais velhos.
201

- A faxineira não está fazendo a faxina dentro do alojamento, só no corredor. A gente que
faz.
- Só recebemos 02 sabonetes por alojamento. A gente corta no meio, e tem que dar para o
banho e para lavar a nossa roupa.
- A visita está sendo muito agilizada, rápida!
- Banho de sol não tem data específica. Kit higiênico não estamos recebendo.
- Não estão trocando a roupa, alguns estão com a mesma desde que entraram.
- Não tem um tratamento pra abstinência da droga, do cigarro. E os caras passam aqui na
nossa frente fumando, de propósito!
- Falta remédio!
- Ano passado teve rebelião por causa das condições. Agora a situação está ainda pior.
Somos tratados que nem bicho! Vai ter outra rebelião! Não temos nada a perder!
- A nossa família vem nos visitar e tratam mal, mexem com elas, humilhando.
Observei nessa cela um jovem com os olhos inchados, perguntei o que tinha acontecido.
Ele respondeu que levou “porrada”, chinelada na cara. Perguntei quando. Ele disse que logo que
entrou, em novembro, quando o agente perguntou por que ele estava ali. “Respondi que era por
tráfico. Aí ele deu a chinelada na minha cara!” E até hoje o olho do rapaz ainda se apresentava
inchado. Os meninos da cela falaram que “o rosto ficou todo inchado, horrível mesmo!”
- No Natal e no ano Novo, queríamos dormir, esquecer a data, mas os agentes não
deixaram. Jogavam torpedo no corredor pra acordar a gente.
- Os agentes fumam cigarro, cheiram na nossa frente, e ficamos na abstinência!
- Temos família! Não temos que ficar levando tapa na cara, chinelada na bunda, spray de
pimenta! A gente não tem que aguentar isso! Estamos cheios de ódio! Não vamos aliviar
ninguém aqui! Vamos fazer rebelião! Matar esses caras!
O depoimento deste adolescente, em particular, chamou muito a atenção. Era muito
articulado, seguro, com certeza tinha uma liderança ali dentro e lá fora. Estava num cela da
facção ADA (Amigos dos Amigos). Os outros adolescentes da mesma cela também se
mostravam mais seguros do que os de outras celas e facções. Diferentemente do senso comum,
ou dos que tem a ânsia da punição, esses adolescentes são, especialmente, aqueles que gostamos
de trabalhar.
202

Quando estávamos terminando a visita, estavam chegando mais 08 adolescentes,


algemados, ao ESE. De 417 – passou para 425!!

4.2.3 2ª Visita ao ESE, dia 20/05/16

Capacidade física para 216 adolescentes (na 1ª visita fomos informados que a capacidade
era 190). Nesse dia estavam internados 422.

Quando entrei naquele corredor cheio de celas, parei em frente a uma na qual estavam
adolescentes da facção “ADA”, e vi aqueles olhares, vivos olhares, olhares de
resistência, vivos de tão vivos, olhares que se entreolhavam, misto de medo, dúvida,
revolta.... Em meio a tantos olhares, eu o reencontrei...

Passados três meses desde a última visita, retornamos ao ESE pela mesma razão da
anterior, superlotação! Éramos praticamente as mesmas pessoas, incluindo Margarida Prado,
representante da OAB no CEDCA. Entramos nos alojamentos cela e constatamos, a superlotação,
tendo inclusive celas com mais de 22 adolescentes dentro! Não há como alguém se ressocializar
num ambiente desses. Não há como permanecer “normal” num ambiente desses! Muitos não
conseguem dormir, como? Olhando por essa ótica, compreendo a necessidade de se drogar com
drogas lícitas (medicamentos).... Defensores de direitos humanos falam do excesso de
medicalização nas unidades de internação, como um tipo de contenção dos internos, mas acredito
que em muitos casos não seja isso, pois vem de uma demanda do interno, do encarcerado. Sim,
natural, pois num ambiente como aquele, para se manter “sadio”, só mesmo se drogando, se
anestesiando daquela realidade medonha, que mais parece um suplício... São mesmo cárceres
para gastar gente...
203

Figura 9 – Superlotação em alojamento DEGASE

Foto de Margarida Prado, tirada numa cela superlotada. Haviam 22 adolescentes na cela para uma
capacidade de 08.

De repente, olhando para uma das celas, meio que escondido ao meio de tantos, eu
reencontrei o jovem líder da visita anterior... Na verdade, eu o estava procurando... Mas, notei
uma diferença muito grande no seu comportamento, mas, principalmente, no seu olhar... Não
mais havia aquele brilho, estava ofuscado... Não mais havia aquela altivez, aquela garra, aquela
personalidade revolucionária, nada... O que teria acontecido... Olhei bem dentro do olho dele,
perguntei como estava, e que não ficasse daquele jeito... “Você é um cara bom!”, disse bom não
no sentido de bondade, mas bom no sentido de inteligência, sagacidade, liderança.... Mas, o
máximo que ele conseguiu fazer foi, de cabeça baixa, sorrir.... Aquilo me preocupou...
A seguir alguns depoimentos:
- Estou 06 meses na casa, não trocam minha roupa!
- Quase ninguém aqui está frequentando a escola!
- Todo dia apanhamos!
- Eu estou com uma bala alojada no tórax! Estou desde janeiro sem fazer revisão!
- Só temos 03 colchões na cela. Sabonete vem da visita, e só pode entrar 02 sabonetes.
Não tem troca de roupa, nós que lavamos. Ninguém frequenta a escola aqui nessa cela.
- Aqui convivemos com rato, barata e lacraia!
- Só apanha quem dá trabalho, quem vacila! Isso eu aprendi aqui! Ninguém gosta de levar
tapa na cara! Sou pai de família!
204

4.2.4 Depoimento Mães e Familiares

Não deram água para ele beber todos esses dias!!! Eu dei um beijo nele
para dar um pouco de saliva pra ele!!

Assembleia CEDCA - Data: 28/06/17

1) Mãe 1 (Filho está no CRIAAD207 São Gonçalo, cumprindo medida há mais tempo
que nos outros CRIAADs, geralmente 03 meses, e ele está há 06 meses) - Não tem ventilador,
não tem atividade, não tem nada que ofereça a eles. Eles não têm direito a nada! Não tem
televisão; fora as torturas psicológicas. Se os adolescentes chegam com 15 minutos de atraso, não
podem entrar. Tem que ir no Judiciário.
2) Mãe 2 (Filho também está no CRIAAD São Gonçalo há 06 meses, enquanto a
Juíza da Capital dá 03 meses) - No ESE temos um adolescente no castigo há 02 meses, dormindo
numa pedra, sem roupa. Nossos adolescentes estão sendo massacrados e treinados para serem os
bandidos de amanhã.
3) Mãe 3 (Mãe de um adolescente que ficou um ano e meio no ESE) - Meu filho foi
espancado, levou tapa na cara! Não cumpriu o CRIAM208, voltou para o DEGASE. Foi
novamente espancado! Como eles vão se recuperar nesse sistema? Meu filho foi ameaçado dentro
do CRIAAD. Meu filho foi levado para a delegacia no sábado, e só ontem (3ª feira) soube onde
ele estava. Ele foi mais uma vez espancado, está com o ouvido estourado! Não deram água para
ele beber todos esses dias!!! Eu dei um beijo nele para dar um pouco de saliva pra ele!!
4) Pai 1 - Meu filho está cheio de ódio! E esse ódio está sendo criado lá dentro do
ESE. Como pode reeducar num espaço que eles dormem no chão, com ratos!! Fui lá e eles
jogaram spray de pimenta! Essa agressão é por debaixo dos panos, não é quando a Defensoria vai
lá! Tem muita coisa errada lá dentro, e nada acontece! Tomem uma providência para acabar com
o ESE! Ele é, inclusive, irregular. É um presídio! De lá só sai bandido! É o ódio que eles tomam
do sistema!
207
CRIAAD - Centro de Recursos Integrados de Atendimento ao Adolescente.
208
CRIAM - Centros de Recursos Integrados de Atendimento ao Menor.
205

5) Mãe 4 – Meu filho também está no ESE. Para eu entrar tudo é problema. Qualquer
problema na roupa; eu uso uma touca porque estou em tratamento de câncer, e eles me obrigam a
tirar a touca!
6) Mãe 5 – Pedi providências urgentes em relação ao ESE, por abuso de autoridade
dos funcionários. O ESE tem que fechar porque é um presídio! Lá tem muitos adolescentes
presos indevidos. É um lugar que está com mais que o dobro da capacidade! É desumano as
condições em que eles se encontram! Eles são seres humanos!
7) Mônica Cunha – Eu frequento o CEDCA e esses espaços há anos! Fico um tempo
sem participar e quando volto é a mesma coisa! Nada muda! Não fazem nada para mudar o
sistema! Não dá mais! Essas pessoas tem família! Elas tem que continuar bem, tem que continuar
vivas! E essas mulheres estão adoecendo! Temos que olhar para esses adolescentes como
olhamos para os nossos filhos! Quem está lá? Isso é racismo! Vamos mudar isso! Eu não quero
mais que meu povo, que essas mulheres venham aqui e tenham que continuar falando essas
barbáries!
Outra questão também trazida pelo grupo foi o tratamento vexatório que os familiares
ainda passam com a revista, e da humilhação das mães nas audiências com a Juíza da Vara
responsável.
Para encerrar este subcapítulo (4.2) que trata da Concentração / Encarceramento como a
2ª Prática abusiva, antes de entrar no 4.2.1 que traz os dados da superlotação no DEGASE, trago
o relato da reunião mais reveladora do ano de 2016, talvez a principal sobre essa temática ao
longo do período de estudo, que para essa pesquisadora não deixou dúvidas quanto à presença de
um tipo de ideologia muito próxima ao que foi a ideologia nazifascista que permeia nossos
tempos, especialmente junto aos sujeitos indesejáveis.

4.2.5 Relato Reunião do Ministério Público com Dr. Enriques Fontes, do Subcomitê de
Prevenção e Combate à Tortura da ONU

Data: 01/12/16
A RRC foi convidada a participar da reunião ampliada do Ministério Público (MP) com o
representante do Subcomitê de Prevenção e Combate à Tortura da ONU, Dr. Enriques Fontes, em
206

01/DEZ/16. A reunião não foi fechada, mas a proposta era reunir um grupo restrito de pessoas e
instituições comprometidas com a defesa de direitos humanos no sistema socioeducativo. Como
foi uma reunião fechada, preservarei o nome das pessoas que participaram, designando apenas a
instituição que representava: 04 representantes do MP (01 Procuradora, 02 Promotoras e 01
Promotor), 02 representantes do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura
(MEPCT), 01 representante da RRC, 02 representantes do CEDECA RJ, 01 representante do
Projeto Legal; 01 representante da Associação de Mães AMAR.
O tema da reunião foi sobre o Sistema Socioeducativo (DEGASE), envolvendo a
superlotação, maus tratos, falta de materiais e, especialmente, uma consulta do MP ao Subcomitê
da ONU sobre quais caminhos percorrer para garantir um tratamento digno, visto que , segundo a
Procuradora, os meninos estão em verdadeiros « campos de concentração », e tudo que o MP fez
em termos de ações contra o Estado não surtiu efeito e não foram respeitadas, e que por isso
estariam recorrendo a um organismo internacional!
O objetivo do encontro foi para o Ministério Público buscar novas estratégias de
intervenção, como denúncia aos organismos internacionais sobre a situação do sistema
socioeducativo no RJ. Foi, como disse a Procuradora, como um pedido de socorro: “Os meninos
estão em verdadeiros campos de concentração!”, comentou emocionada a Procuradora.
Eu fui a primeira a falar. Primeiramente falei sobre a Operação Verão desde a sua
implementação, em 2014, e todo o processo de violação de direitos, desrespeito à CFB, e a
segregação imposta aos meninos quando de sua retirada dos ônibus em direção às praias da zona
sul da cidade.
Dr. Enriques (SPCT ONU), diz que uma pessoa não pode ser retirada de onde estiver, a
não ser por seus próprios meios. O Estado não é obrigado a implementar as recomendações do
Comitê da ONU, do Mecanismo, mas se há algo grave, concreto, alguma coisa tem que ser feita
de fato. Existem retrocessos não só no Brasil, mas em toda a América Latina, disse o
representante do Subcomitê da ONU.
Segundo Dr. Enriques, “a negação do fenômeno é uma impossibilidade para resolvê-lo”,
referindo-se à negação do Estado brasileiro que existe tortura no país. Aconselhou que o MP
utilizasse o Protocolo de Istambul209, que são regras mínimas de prevenção e atenção,

209
Protocolo de Istambul, ratificado pelo Brasil, trata-se de um manual para a investigação e documentação eficaz da
tortura e outras penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, produzido no âmbito da Organização das
Nações Unidas – ONU. O Protocolo apresenta, em resumo: as normas internacionais aplicáveis no que tange ao
207

denunciando o descumprimento do Protocolo pelo Estado Brasileiro. Se o Estado descumpre o


Protocolo de Istambul, prova que ele descumpre tudo o mais, prova que existe tortura. Para ele,
pode ser feita uma ação do MP que aborde isso, ou seja, que os adolescentes não têm acesso à
educação, à saúde e provar que a internação causa um dano à saúde. Outra orientação foi a de, em
relação aos adolescentes mortos no sistema, que se observe se o Protocolo de Minesota210 é
respeitado.
A representante do Projeto Legal, relatou o caso do adolescente Andreu, que foi torturado
e morto por 06 agentes do DEGASE, em 2008211, através de uma intensa sessão de tortura
(pancada no crânio, cerca de 30 perfurações no corpo), disse que nenhum agente está preso, e que
o Estado tem que ser responsabilizado por tudo isso, pelas mortes dentro do sistema. “Meu filho
não era um lixo como eles falavam! Eu gerei meu filho, eu sei! Temos lá amontoados verdadeiros
navios negreiros”, comentou indignada.
O representante do Subcomitê ONU, Dr. Enriques, fez as seguintes considerações:

- Tortura e maus tratos são crimes que são cometidos com a conivência do próprio
Estado.
É um fenômeno estendido. É impossível resolver o fenômeno negando-o. Temos que
romper com esse ciclo de negação para que se possa desenvolver políticas públicas.
O fenômeno tem que ser reconhecido. No Brasil a negação do fenômeno é o principal
problema que encontramos, sobretudo na privação de liberdade de adolescentes.
- Como romper esse ciclo de negação?

tema; os códigos éticos aplicáveis; informações quanto a inquéritos legais sobre a prática da tortura; considerações
gerais para as entrevistas; e indícios físicos e psicológicos da tortura. Publicado em: https://canalcienciascriminais
com.br/protocolo-istambul/
210
El Protocolo de Minnesota es una guía de cómo llevar a cabo una autopsia para determinar si una persona
fallecida ha sido torturada. El Protocolo es norma oficial adoptada por las Naciones Unida. El Protocolo de
Minnesota contiene los hallazgos de autopsia para la detección dela tortura empleada en la víctima, tales como
golpes, colgamiento, descargaseléctricas, etcétera. Publicado em: https://pt.scribd.com/doc/133509494/Protocolo-
de-Minnesota
211
RIO - O Ministério Público denunciou seis agentes do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (Degase)
por crime de homicídio doloso. De acordo com o MP, o é acusado de envolvimento na morte de um interno,
ocorrida em janeiro de 2008, no Instituto Padre Severino, na llha do Governador. O Ministério Público propôs
também que a Justiça decrete prisão preventiva dos agentes e a imediata suspensão do exercício de suas funções
públicas. De acordo com a denúncia, usando pedaços de madeira, um saco repleto de cocos e uma lata de lixo, os
agentes (...) dominaram o adolescente Andreu Luiz Silva de Carvalho, à época com 17 anos, e o agrediram por
quase uma hora, causando traumatismo craniano e outras lesões. A denúncia relata ainda que os agentes Wallace
Crespo Rodrigues (Seu Gaspar), Dorival Correia Teles (Paredão) e Arthur Vicente Filho (Mais Velho ou Coroinha)
não só foram omissos em evitar as agressões que resultaram na morte do rapaz, como participaram da agressão,
dando socos e chutes. Andreu Luiz Silva de Carvalho, que havia sido detido por crime de roubo, morreu no
Hospital Municipal Paulino Werneck. Ele chegou à unidade com graves ferimentos provocados por pauladas, socos
e chutes desferidos pelos denunciados. Publicado em: https://oglobo.globo.com/rio/mp-denuncia-seis-agentes-do-
degase-por-agredir-jovem-ate-morte-no-padre-severino-2763560 .
208

1º - Audiência de custódia pode ser uma oportunidade de detectar tortura e maus tratos.
Quase nenhuma dessas vítimas está em condições de fazer a denúncia (está preso,
criminalizado, etc.);
2º - Instituto Médico Legal tem que ser autônomo, independente.
Estar no DEGASE já é uma tortura.
As Instituições tem que ter protocolos ativos. Um Estado que não detecta a existência de
tortura e maus tratos, não cumpre sua responsabilidade de proteção e defesa. Tem que se
romper esse ciclo de negação. Se não cumpre Protocolo de Istambul, se descumpre todos
os outros.

A Procuradora presente disse que “estamos aqui por esse motivo. Precisamos de ajuda,
pois nada do que fizemos surtiu efeito! Por isso estamos recorrendo a organismos
internacionais!” Após a fala embargada da Procuradora, todas as 03 representantes do MP se
emocionam e também choram... Nessa hora, percebi que a gravidade da questão era ainda muito
maior e pior...

Segundo o historiador Sybille Steinbacher, a essa altura a população de Dachau,


influenciada pela ideologia nazista e pela cobertura da mídia, passara a considerar o
campo “como uma instituição legítima e necessária, na qual estranhos à comunidade
teriam de ser reeducados. Por um longo tempo, a opinião dominante foi a de que era
bastante adequado que ‘inimigos do Estado’ fossem confinados em um campo de
concentração” (GELLATLY, p. 96).

4.2.6 Abrindo a Caixa Preta

O Departamento Geral de Ações Socioeducativas (DEGASE) é um órgão do Poder


Executivo do Estado do Rio de Janeiro, responsável pela execução das medidas socioeducativas,
preconizado pelo Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), aplicadas pelo Poder Judiciário
aos adolescentes autores de ato infracional. Vinculado desde 2008 à Secretaria de Estado de
Educação (SEEDUC), foi criado pelo Decreto nº 18.493, de 26/01/93.
Para tratar da questão da superlotação no DEGASE e sua progressão a partir de 2ª década
do ano 2000, época em que a cidade do Rio de Janeiro já se preparava para os Megaeventos
(Copa das Confederações (2013), Copa do Mundo (2014), Jornada Mundial da Juventude (2015),
e Olimpíadas (2016)), fundamental ter acesso aos dados das unidades de internação ao longo do
período de estudo (2011 a 2016). Minha pesquisa por dados se iniciou em 2014 com a busca de
informações através do próprio órgão, mas os dados não eram disponibilizados de forma pública.
209

Era necessário o envio de ofício solicitando os dados, o que, mesmo enviando para diferentes
Diretorias do DEGASE, o mesmo não foi conseguido. Outro caminho foi através do Conselho
Estadual de Direitos da Criança e do Adolescente (CEDCA RJ), órgão no qual eu tenho acento
enquanto Conselheira Estadual desde meados de 2015, no entanto, também não obtive sucesso,
mesmo tendo acento e solicitando para uma representante do DEGASE enquanto Conselheira no
CEDCA. A 3ª opção foi diretamente em âmbito federal, através do Sistema Nacional
Socioeducativo (SINASE), solicitando a um amigo, em 2015, à época Coordenador do SINASE,
em Brasília. Para mim seria mais fácil conseguir os dados com Ele ‘in loco’, pois mensal ou a
cada dois meses eu viajava para Brasília para participar de Grupo de Trabalho Criança e
Adolescente em situação de rua do CONANDA, na construção de uma Política Nacional de
Atendimento às Crianças e Adolescentes em situação de rua. Tive dois encontros com meu
amigo, em Brasília, o primeiro para explicar minha pesquisa / tese e encaminhar ofício. O
segundo foi para, finalmente, ter acesso aos dados das unidades do sistema socioeducativo do Rio
de Janeiro. Ele me mostrou as planilhas e disse que iria me enviar os links por email. Aguardei
por algumas semanas. Assim que recebi dei uma rápida confirmada nos arquivos recebidos,
salvei-os no laptop na pasta DEGASE e me tranquilizei...
No entanto, qual não foi minha surpresa quando, alguns meses depois, ao abrir as
planilhas (2011, 2012, 2013 e 2014) verifico com mais atenção que só foi feita a sistematização
de dados referentes ao mês de novembro de cada ano, ou seja, só existia um dado mensal por ano,
o que inviabilizava a minha proposta de uma pesquisa de acompanhamento e defesa da
progressão do superencarceramento ao longo do período de estudo!
A pesquisa de dados da Defensoria Pública foi outra tentativa. Mas, a informação que tive
com dois Defensores, referência para todos nós no atendimento ao sistema socioeducativo, foi
que tinham dados, mas que estes não eram sistematizados com a frequência requerida. Os dados
não eram sistematizados, eram solicitados ao DEGASE sem uma periodicidade prévia, ou seja,
existiam dados soltos. O Ministério Público foi o 5º caminho, numa perspectiva de que seria
acertada, pois o MP sempre teve acesso aos dados do DEGASE e, claro, pensava, haveria
sistematização sequencial. A coleta de dados começou pela Promotoria de Tutela Coletiva da
Infância e Juventude em Matéria Infracional da Capital. Porém, foi relatado que aquela
promotoria nunca havia feito um levantamento de dados sistemático do DEGASE. Não existia
essa informação arquivada do período pretendido (2011 a 2016). Os dados, a partir de uma
210

iniciativa individual da Promotora responsável por essa Promotoria, Dra. Janaína Pagan,
começaram a ser solicitados ao DEGASE, em meados de 2016, para que este enviasse dados de
meados de 2015 em diante. A princípio, não existiam dados mensais, mas foram considerados,
mesmo de forma alternada. Importante ressaltar que também tive acesso, através da Promotoria,
de alguns dados de alguns relatórios do Centro de Apoio Operacional da Infância e Juventude
(CAO Infância), do Ministério Público. Em reunião com a Promotora, sugeri que era importante
para nossa atuação uma sistematização mensal dos dados, não apenas numéricos, mas, se
possível, também relacionado à raça, o que foi considerado positivo, mas, este último quesito não
foi possível a elaboração.
O 6º campo de pesquisa foi o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura
(MEPCT/RJ), um órgão criado pela Lei Estadual n.º 5.778 de 30 de junho de 2010, vinculado à
Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ), que tem como objetivo planejar,
realizar e conduzir visitas periódicas e regulares a espaços de privação de liberdade, qualquer que
seja a forma ou fundamento de detenção, aprisionamento, contenção ou colocação em
estabelecimento público ou privado de controle, vigilância, internação, abrigo ou tratamento, para
verificar as condições em que se encontram submetidas as pessoas privadas de liberdade, com
intuito de prevenir a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos e degradantes. Nas
visitas do MEPCT às unidades do DEGASE, algumas delas com a minha participação enquanto
Conselheira do CEDCA, os dados do número de adolescentes internados nas unidades sempre
eram solicitados à diretoria. No entanto, mais uma vez se configurou a falta de uma
sistematização regular, só apresentando dados eventuais, quando das visitas de fiscalização às
unidades que, por envolverem muitos espaços e instituições de internação de adultos, idosos,
crianças e adolescentes no RJ, as visitas à mesma unidade não são frequentes.
Em início de agosto de 2017 resolvi, novamente, entrar em contato com a Promotoria de
Tutela Coletiva da Infância e Juventude em Matéria Infracional para ver se já haviam conseguido
os dados que faltavam de 2015 ao período atual (junho de 2017). Felizmente, consegui os dados
mensais de parte de 2015, e da maior parte de 2016 até meados de 2017.
Todas as dificuldades encontradas, associadas à falta de uma sistematização dos dados das
unidades fechadas do Sistema Socioeducativo do Rio de Janeiro nos aponta uma questão muito
grave e preocupante, que interfere diretamente na execução de políticas públicas e no
enfrentamento à superlotação. Ao total, foram 06 fontes de dados para se conseguir um mínimo
211

de periodicidade para uma análise mais consistente, porém muito distante do inicialmente
desejado. A falta de uma sistematização regular, de transparência, de socialização das
informações e da não publicação desses dados também é um analisador. A omissão, ou recusa
dos órgãos e/ou instituições do poder público em não disponibilizar informações públicas,
deliberadamente, implica na falta de interesse em executar políticas públicas que respondam às
reais necessidades desse público e na garantia de direitos. É uma forma de ocultação da realidade
social, ou produção de uma realidade que interessa à classe dominante, pautada numa ideologia
punitiva e seletiva que contribui com a manutenção e no agravamento do quadro de superlotação,
direcionada a um grupo específico: adolescentes e jovens negros e pobres, os sujeitos
indesejáveis.

Além de procurar fixar seu modo de sociabilidade através de instituições determinadas,


os homens produzem ideias ou representações pelas quais procuram explicar e
compreender sua própria vida individual, social, suas relações com a natureza e o
sobrenatural. Essas ideias ou representações, no entanto, tenderão a esconder dos
homens o modo real como suas relações sociais foram produzidas e as origens das
formas socais de exploração econômica e de dominação política. Esse ocultamento da
realidade social chama-se ideologia. Por seu intermédio, os homens legitimam as
condições sociais de exploração e de dominação, fazendo com que pareçam verdadeiras
e justas (CHAUÍ, 1991, p. 21).

A falta de sistematização regular e/ou a não divulgação de dados oficiais também


contribui com o cenário de divergências de campos em disputa, como Estado e sociedade civil. A
Audiência Pública organizada pelo Ministério Público do RJ sobre o Sistema Socioeducativo e
Educação, em abril de 2016, foi um forte exemplo da ideologia punitiva e seletiva que permeia
esta instituição através de um grupo majoritário de Procuradores e Promotores de Justiça. A
referida audiência descortinou a divisão e disputa interna entre dois grupos: a ala conservadora e
a ala progressista do MP. Mesmo associada à Defensoria Pública e aos defensores de direitos
humanos da sociedade civil, a ala progressista do MP não teve força suficiente para sustentar suas
convicções. Apoiada pela mídia e a segmentos elitistas e reacionários da sociedade, a ala
conservadora e punitiva do MP ganha espaço e avança com sua ideologia e práticas. A matéria
do jornal O Globo, daquela época intitulada “Hoje nenhum jovem infrator está internado há mais
de dois anos - Ministério Público quer mudar legislação”, publicada no dia seguinte à Audiência
Pública gerou muita controvérsia e contradição em relação aos dados do DEGASE apresentados:
212

(...) levantamento do Ministério Público estadual revela que não há um único jovem
mantido por mais de dois anos no sistema, por mais bárbaro que seja o crime. (...) Dos
680 adolescentes que, no mês passado (março), cumpriam medidas socioeducativas nas
comarcas da capital, que também atendem o estado, apenas quatro, 1% do total, estavam
nas unidades fechadas por um período entre 18 meses e dois anos.
A sensação de impunidade encorajou um grupo de promotores e procuradores de Justiça
a defender mudanças na lei. Os alvos da emenda proposta são o artigo 112 do Estatuto
da Criança e do Adolescente (ECA) — que prevê a aplicação de medidas diferenciadas
de acordo com os crimes ou contravenções cometidos — e a lei 12.594/2012 — que
disciplina a execução das punições. Em vez de brigar pela polêmica redução da
maioridade penal, os membros do MP reivindicam que a Justiça passe a ter o direito de
impor de uma só vez, ao jovem infrator, os três anos máximos de internação, sem a
necessidade de renovar a medida periodicamente.
— Os adolescentes precisam de limites. Se o Estado não fizer aquilo que a família e a
escola deixaram de fazer, esses jovens vão acabar se tornando pessoas irrecuperáveis.
Vão escalando a gravidade dos atos que praticam — lamenta a procuradora de Justiça do
Rio Flávia Ferrer, uma das autoras da emenda212.

As principais divergência entre os Promotores (MP) expostas pela Audiência Pública


foram: quanto aos tipos de atos infracionais; a quantidade de medidas aplicadas X aplicação; o
número de vagas por população cumprindo medidas (Artigo 122); o tempo médio de
cumprimento da medida; a questão do limite ao adolescente X ação socioeducativa; guia de
medidas apreendidas; número de apreensões de adolescentes; e levantamento de mortes no
sistema em 2015.
O que a Procuradora omitiu é que o adolescente ao cumprir um período mínimo da
medida de internação (06 a 08 meses), recebe uma progressão de medida a ser cumprida em
regime em meio aberto, ou seja, cumprirá o restante da medida em semiliberdade ou liberdade
assistida, não estará em liberdade pelas ruas, como dão a entender. No entanto, defendem mais
punição e encarceramento, mesmo nas péssimas condições do sistema, mesmo sabendo que as
unidades estão superlotadas, dificultando qualquer trabalho de socioeducação.
O total de vagas no DEGASE é de 1.051 (internação provisória e permanente). Segundo a
Defensoria Pública, em maio de 2016 havia 2.660 adolescentes internados (2.000 meninos; e 660
meninas). Até o final de 2016 e início de 2017, como veremos, esse número aumentou ainda
mais....

212
Publicado em: https://oglobo.globo.com/rio/hoje-nenhum-jovem-infrator-esta-internado-ha-mais-de-dois-anos-
19157224
213

Metodologia
Os dados serão apresentados a seguir, destacando que como a proposta era a de analisar a
superlotação nas 10 unidades de internação213 no período compreendido entre 2011 e JUN 2017,
optei, primeiro, por destacar em uma tabela os dados das 05 fontes214 utilizadas em cores
distintas. Analisados os dados, foi elaborada uma 2ª tabela com seleção dos dados que
representavam os maiores números de internação ao mês de cada unidade, visto que o número de
adolescentes em cumprimento de medida de privação de liberdade muda constantemente e, a
cada visita, mesmo feita na mesma semana, é recorrente existirem mudanças nesse número.
Como a proposta desse estudo é a de acompanhamento da superlotação, foram considerados os
maiores dados entre as 05 fontes.
A seguir, o exemplo da forma como foi construída a primeira tabela elaborada, na qual
destaco os dados informados pelas 05 fontes, que aparecem juntos num mesmo período, em cores
diferentes, quando são referentes ao mesmo mês do ano em questão (a tabela é a de 2016).
Observa-se que, por exemplo, no mês de fevereiro de 2016, no ESE (Educandário Santo
Expedito) temos 04 dados diferentes: 420, 409, 405 e 415, para uma capacidade de 220
adolescentes. Isso se dá porque as visitas nesta unidade, de 05 diferentes fontes215, se deram em
datas diferentes, e o número de adolescentes internados no DEGASE pode variar de um dia pro
outro. Na tabela final da superlotação considerei o maior dado, ou seja, 420 adolescentes
internados no ESE, em fevereiro/2016.

213
Centro de Socioeducação Gelso de Carvalho Amaral (Cense GCA), Centro de Socioeducação Dom Bosco (Cense
Dom Bosco), Educandário Santo Expedito (ESE), Escola João Luiz Alves (EJLA), Centro de Atendimento
Intensivo Belford Roxo (CAI Baixada); Centro de Socioeducação Professor Antonio Carlos Gomes da Costa
(Cense PACGC), Centro de Socioeducação Santos Dumont, Centro de Socioeducação Irmã Asunción de La
Gándara Ustara (Cense Volta Redonda), Centro de Socioeducação Professora Marlene Henrique Alves (Cense
Campos).
214
SINASE; Defensoria Pública, Ministério Público (Promotoria Tutela Coletiva Ato Infracional e Cao Infância);
Mecanismo Estadual de Proteção e Combate à Tortura.
215
Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva da Infância e Juventude Infracional da Capital; Relatório vistoria técnica
do MP - CAO Infância; Defensoria Pública; Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate a Tortura; CEDCA.
214

Tabela 2 - Superlotação DEGASE 2016


UNIDADES Capac JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ
idade
CENSE GCA 64 220 235 255 224 186 164 168 187 138 160 132 174
180 225 250 (tela) 148 221
194 229
DOM 215 322 297 394 377 337 343 324 345 323 303 327 355
BOSCO 313 386 490 445 318 340 356
306 402 394 (lista 328)
ESE 220 354 420 341 385 438 438 456 476 462 470 481 460
390 409 384 422 456 449 500
405
415
EJLA 112 289 268 307 319 374 372 385 370 368 311 293 302
259 268 323 356 413 400 320 273
406 414 400
CAI 127 235 290 298 356 356 369 363 367 348 323
BAIXADA 297 392 380 372

CENSE PAC 44 45 53 63 63 67 65 73 69 77 65 66 63
GC 54 52 55 74 71 66 66

CENSE 32 33 34 43 40 50 39 46 44 44 48
ILHA 40 39 38
S. DUMONT 64 48 64 68 67
C. V. 90 125 150 143 25 30 38 136 132
REDONDA 110 139 171 190
(Cense 171
IALGU)
CENSE 80 190 191 227 231 209
CAMPOS 201
(Cense
PMHA)

Fontes:
1) Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva da Infância e Juventude Infracional da Capital
2) Relatório vistoria técnica do MP - CAO Infância
3) Defensoria Pública
4) Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate a Tortura
5) CEDCA
OBS: Os dados do SINASE não entraram na tabela acima porque estes são dados de 2012 a 2014.
215

Nas quatro páginas a seguir encontra-se a tabela da superlotação no DEGASE, no período


de 2011 a junho de 2017, na qual foi apenas considerado o maior número de internação de cada
mês, de acordo com os dados fornecidos pelas 05 diferentes fontes. Importante ressaltar que do
último trimestre de 2015 até junho de 2017, a maioria dos dados sistematizados foram fornecidos
pela Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva da Infância e Juventude Infracional da Capital
(MP).
O ano de 2011 foi um marco para este estudo, pois foi nesse ano que foi aprovada a
Resolução 20/2011 pela SMAS – o Protocolo do Serviço Especializado em Abordagem Social,
que institucionalizou o recolhimento e a internação compulsória de crianças e adolescentes em
situação de rua no RJ. Foi um período de aumento significativo do controle e repressão desse
público e, consequentemente, maiores apreensões e internações seja em abrigos, ou em unidades
do DEGASE. Por isso, consideramos a importância do levantamento de dados a partir de 2011.
Porém, como relatado anteriormente, as dificuldades foram grandes, e não foram encontradas
informações quantitativas relevantes desse período nas 05 fontes pesquisadas, apenas os dados do
SINASE de 2012, 2013 e 2014, com uma única referência anual do mês de novembro.
216

Tabela 3 - Superlotação DEGASE - Período: 2011 a 2016 e 1º semestre 2017


2011
UNIDADES Capaci JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ
dade
CENSE GCA 64
Pe SEVERINO 233 190
ESE 220
EJLA 133
CAI BAIXADA 124 156
CENSE 44
PAC GC
CENSE ILHA 40
S. DUMONT 64
TOTAL
TOTAL 156 190
2012
UNIDADES Capaci JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ
dade
CENSE GCA 64 70
DOM BOSCO 215 241 234
ESE 220 102 153
EJLA 133 148
CAI BAIXADA 124 128 180 145
CENSE 44 30
PAC GC
CENSE ILHA 40
S. DUMONT 64

TOTAL 471 180 780


2013
UNIDADES Capaci JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ
dade
CENSE GCA 64 81
DOM BOSCO 215 257
ESE 232 201
EJLA 112 190
CAI BAIXADA 124 148
CENSE 44 39 41
PAC GC
217

CENSE ILHA 40
S. DUMONT 64
C. V. 100
REDONDA
(IALGU)
CENSE 50 69
CAMPOS
(C. PMHA)
TOTAL 1.040
TOTAL 39 987
2014
UNIDADES Capaci JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ
dade
CENSE GCA 64 72 119
DOM BOSCO 215 227 245 275
ESE 220 205 261
EJLA 112 175 193
CAI BAIXADA 124 171
CENSE 44 49
PAC GC
CENSE ILHA 40 42
S. DUMONT 64
C. V. 100 160*(dep 89
REDONDA ois da
rebelião.
(C. IALGU) Antes
haviam
200 na
unidade)
CENSE 50 135
CAMPOS
(C. PMHA)
TOTAL 1.040
TOTAL 402 72 245 365 1.334
2015
UNIDADES Capaci JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ
dade
CENSE GCA 64 120 177 210 185 248 179
DOM BOSCO 210 395 300 378 400 379 369 307
ESE 220 310 335 345 354
218

EJLA 112 225 248 238


CAI BAIXADA 124 238 273 206 236
(Obs: 10 (Obs: 13
EM) EM)
CENSE 44 52 53 71 64
PAC GC
CENSE ILHA 40 39 43 40
S. DUMONT 64 53 67
C. V. 100 148 135 140
REDONDA
(C. IALGU)
CENSE 50 146 144 256 257 80
CAMPOS
(Cense PMH)
TOTAL 1.040
TOTAL 238 146 1.122 459 555 758 1.787 1.780 1.598
2016
UNIDADES Capaci JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ
dade
CENSE GCA 64 220 235 255 224 186 164 168 187 138 160 221 174

DOM BOSCO 210 322 402 490 377 445 343 324 345 323 303 356 355
(Obs: 27 (Obs: 34
EM) EM)

ESE 220 390 420 384 385 438 438 456 476 462 470 500 460

EJLA 112 289 268 323 319 406 372 413 370 368 311 320 302

CAI BAIXADA 124 235 - 297 298 356 356 392 380 372 367 348 323

CENSE 44 54 53 63 63 67 65 74 71 77 65 66 63
PAC GC
CENSE ILHA 32 40 39 43 40 50 39 - 46 44 44 48 -

S. DUMONT 64 48 - 64 68 67 - - - - - - -
C. V. 90 125 150 143 - - - 171 190 - - 136 132
REDONDA
(C. IALGU)
CENSE 80 201 191 227 - - - 231 - - - 209
219

CAMPOS (OBS: 07
EM)
(Cense PMHA)
TOTAL 1.040
TOTAL 1.924 1.758 2.289 1.774 2.015 1.777 2.229 2.065 1.784 1.720 2.204 1.809
2017
UNIDADES Capaci JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ
dade
CENSE GCA 64 188 201 213 191 168 168

DOM BOSCO 210 310 296 310 370 295 262


ESE 220 474 479 488 519 534 487
EJLA 112 306 313 329 324 298 281
CAI BAIXADA 124 297 306 309 290 283

CENSE PACGC 44 65 55 50 43 44 44
CENSE ILHA 40
S. DUMONT 64
C. V. 124
REDONDA
(C. IALGU)
CENSE 50 280 191
CAMPOS
(C. PMHA)
TOTAL 1.040
TOTAL 1640 1.624 1.696 1.756 1.629 1.840
Fontes:
1) Promotoria de Justiça de Tutela coletiva da Infância e Juventude Infracional da Capital
2) Relatório vistoria técnica do MP – CAO Infância
3) Defensoria Pública
4) Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate a Tortura
5) SINASE (não existe uma periodicidade mensal dos dados sistematizados do SINASE. Os dados apresentados pelo DEGASE são referente apenas ao mês
de novembro de cada ano)
NOTA: Como os dados são referentes à superlotação no DEGASE, optei por considerar o maior quantitativo de cada período (ao longo do mês, de acordo
com as diferentes). A sigla EM quer dizer Ensino Médio, ou seja, número de adolescentes que estavam cursando o nível médio.
220

Analisando as tabelas ao longo do período, especialmente a partir do último trimestre de


2015 ao 1º semestre de 2017 (21 meses), no qual os dados se apresentam de forma mais
sistemática, percebemos que o aumento no número das internações de adolescentes ocorre
progressivamente em todas as 10 unidades do DEGASE, muito acima de sua capacidade de
atendimento, configurando a superlotação. A capacidade de internação das 10 unidades do
DEGASE, atualizadas, é de 1.040 adolescentes. Considerando a mesma referência de período, ou
seja, os últimos 21 meses com dados consolidados, em todos eles a capacidade sempre esteve
bem acima do permitido, superando a marca de 2.000 adolescentes encarcerados em cinco dos
meses de 2016, ano de realização das Olimpíadas no RJ, entre 05 e 21 de agosto. Importante
destacar que o que prevê o SINASE é de, no máximo, 90 adolescentes por unidade de internação,
número este que o Estado brasileiro está muito longe de respeitar.
 Março: 2.280 – 220% acima da capacidade
 Maio: 2.015 – 194% acima da capacidade
 Julho – 2.229 – 215% acima da capacidade
 Agosto: 2.065 – 198,5 % acima da capacidade
 Novembro: 2.204 – 212% acima da capacidade

Observe nas tabelas e gráficos a seguir, a progressão da superlotação nas 05 principais


unidades de internação do DEGASE para adolescentes, do sexo masculino: Cense Dom Bosco
(antigo Instituto Padre Severino), Cense GCA, Educandário Santo Expedito (ESE), Escola João
Luiz Alves (EJLA) e CAI Baixada. Os dados de 2012 a 2014 são incipientes. Importante destacar
que os dados mensais de cada uma das unidades de internação não podem ser contabilizados de
forma progressiva, porque estaríamos incorrendo a erro, pois contaríamos dobrado muitos dos
adolescentes encarcerados, por exemplo, no ESE, no qual o mesmo adolescente pode permanecer
internado por vários meses consecutivos, ou mesmo por dois ou três anos, dependendo do ato
infracional praticado. A proposta aqui é a de acompanhar a progressão da superlotação, onde,
mesmo estando as unidades já superlotadas, continuam a encarcerar.
221

Tabela 4 - Superlotação DEGASE em 05 unidades - Período: 2012 a 1º semestre 2017


2012
UNIDADES Capaci JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ
dade
CENSE GCA 64 70
DOM BOSCO 233 241 234
ESE 220 102 153
EJLA 133 148
CAI BAIXADA 124 128 180 145
TOTAL 774 471 180 750
2013
UNIDADES Capaci JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ
dade
CENSE GCA 64 81
DOM BOSCO 215 257
ESE 220 201
EJLA 112 190
CAI BAIXADA 124 148
TOTAL 774 877
2014
UNIDADES Capaci JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ
dade
CENSE GCA 64 72 119
DOM BOSCO 215 227 245 275
ESE 220 205 261
EJLA 112 175 193
CAI BAIXADA 124 171
TOTAL 774 402 72 245 205 1.019
2015
UNIDADES Capaci JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ
dade
CENSE GCA 64 120 177 210 185 248 179
DOM BOSCO 210 395 300 378 400 379 369 307
ESE 220 310 335 345 354
EJLA 112 225 248 238
CAI BAIXADA 124 238 273 206 236
(Obs: 10 (Obs: 13
EM) EM)
TOTAL 774 238 978 420 555 610 1.330 1.210 1.314
222

2016
UNIDADES Capaci JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ
dade
CENSE GCA 64 220 235 255 224 186 164 168 187 138 160 221 174

DOM BOSCO 210 322 402 490 377 445 343 324 345 323 303 356 355
(Obs: 27 (Obs: 34
EM) EM)

ESE 220 390 420 384 385 438 438 456 476 462 470 500 460

EJLA 112 289 268 323 319 406 372 413 370 368 311 320 302

CAI BAIXADA 124 235 - 297 298 356 356 392 380 372 367 348 323

TOTAL 774 1.456 1.325 1.749 1.603 1.831 1.673 1.753 1.758 1.663 1.611 1.745 1.610
2017
UNIDADES Capaci JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ
dade
CENSE GCA 64 188 201 213 191 168 168

DOM BOSCO 210 310 296 310 370 295 262


ESE 220 474 479 488 519 534 487
EJLA 112 306 313 329 324 298 281
CAI BAIXADA 124 297 - 306 309 290 283
0bs: 16/05,
visita
MEPCT
haviam 303
TOTAL 774 1.575 1.289 1.646 1.713 1.585 1.481
Fontes: Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva da Infância e Juventude Infracional da Capital; Relatório vistoria técnica do MP – CAO Infância; Defensoria
Pública; Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate Tortura; SINASE.
223

Tabela 5 - Superlotação Educandário Santo Expedito - Período: 2015 a 1º semestre 2017


2015
UNIDADE Capaci JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ
dade
ESE 220 310 335 345 354
2016
Capaci JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ
dade
ESE 220 390 420 384 385 438 438 456 476 462 470 500 460

2017
Capaci JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ
dade
ESE 220 474 479 488 519 534 487
224

As 10 unidades de internação para adolescentes autores de ato infracional no estado do


Rio de Janeiro (DEGASE), são consideradas fora dos padrões estabelecidos pelo SINASE, com
péssimas instalações, insalubres, não oferecendo atendimento minimamente digno para os
adolescentes em privação de liberdade. No entanto, o Educandário Santo Expedito (ESE) é
considerado, dentre as 10, a pior unidade de internação para adolescentes no Rio de Janeiro, por
tudo o que já foi colocado, mas também por originalmente fazer parte do complexo prisional de
Bangu, ou seja, tem a arquitetura de um presídio para adultos. Por isso, dentre as 05 unidades
mais superlotadas, destacamos o ESE, pois, mesmo com todas essas características, os números
da superlotação aparecem com um grave crescimento, chegando a mais de 500 adolescentes
encarcerados em, pelo menos, 03 meses entre 2016 e 2017, para uma capacidade de 220
(questionável):
 Novembro/16: 500 – 227% acima da capacidade
 Abril/17: 519 – 236% acima da capacidade
 Maio/17: 534 – 243% acima da capacidade

Gráfico 1 - Superlotação - Período 2016

Gráfico 1 - Período: 2016


600
500
400
300
200
100
0
JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ

CENSE GCA: 64 DOM BOSCO: 210 ESSE: 232


EJLA: 112 CAI BAIXADA: 124
225

Gráfico 2 – Superlotação - Período 2017

Gráfico 2 - Período: 2017


600
500
400
300
200
100
0
JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ

CENSE GCA: 64 DOM BOSCO: 210 ESSE: 232


EJLA: 112 CAI BAIXADA: 124

Diante de tantas denúncias sobre a superlotação do sistema socioeducativo, em dezembro


de 2016, o Ministério Público do Estado do RJ ajuizou Ação Civil Pública na tentativa de garantir
direitos essenciais dos adolescentes que se encontram em cumprimento de medidas
socioeducativas no estado216. De acordo com o órgão, fiscalizações apontam que os adolescentes
infratores sofrem com condições insalubres nas unidades de internação e, até mesmo, com
alimentação insuficiente. Apesar disso, praticamente nada se alterou. Outra saída para a
superlotação das unidades foi a criação da Central de Regulação de Vagas (CRV), que vamos
tratar mais adiante nessa tese.
A notícia do Jornal O Globo da Ação Civil Pública do MP para impedir colapso no
sistema socioeducativo teve centenas de comentários, em sua maioria condenando a medida do
MP. Destaco abaixo 03 deles que expressam bem a opinião de uma maioria da sociedade sobre
esse tema:

Comentários
(Gleison)
Chega de passar a mão na cabeça destes vermes. Estes centros educativos deveria ser
para punir severiamente e ser um inferno para por medo nestes menores e evitar por
meio do medo que eles retornassem ao crime do jeito que o ECA impôs parece mais um
SPA em que eles entram tem mordomias e sai sem nenhuma punição e a tendência é
voltar ao mundo do crime já que não tem medo da punição.

216
Publicado em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/mp-do-rj-recorre-a-justica-para-impedir-colapso-do-
sistema-socioeducativo.ghtml
226

(Spfc Libertadores)
Deixa eles morrerem aí .... não vai fazer falta pra ninguém! Querem estuprar, matar,
roubar e depois serem encaminhamos pra um hotel?! Vamos deixar de hipocrisia! Se
morrerem vai ser melhor.

(Thiago)
Tadinhos, porque o MP não leva pra casa, pra eles cuidarem de suas filhas, esposas e
maridos, a final são apenas crianças...

O Instituto de Segurança Pública (ISP) foi outra base de dados pesquisada. O


levantamento do ISP se baseia nos registros de ocorrências da Polícia Civil do Estado do Rio de
Janeiro (PCERJ), fornecidos pelo Departamento Geral de Tecnologia da Informação e
Telecomunicações da Polícia Civil (DGTIT/PCERJ), e divulgado pelo Instituto de Segurança
Pública, são relativos às autuações em flagrante lavradas nas delegacias distritais e especializadas
que já integravam o Sistema Delegacia Legal no ano de 2010, que representam 118 delegacias no
estado. A partir dessas informações, foram elaboradas estatísticas e relatórios, como o Dossiê
Criança e Adolescente (2007, 2012 e 2015).
A autuação em flagrante ocorre quando, ao cometer uma infração, a pessoa é
encaminhada à delegacia e a autoridade policial lavra um Auto de Prisão em Flagrante ou um
Auto de Apreensão de Adolescente por Prática de Ato Infracional, dependendo da idade da
pessoa (maior ou menor de 18 anos, respectivamente). É importante frisar que nem todas as
pessoas que recebem uma autuação são encarceradas, pois o encaminhamento ao sistema
prisional dependerá ainda da gravidade do crime e da possibilidade de pagamento de fiança, entre
outros fatores. Tampouco todos os infratores são autuados, mas apenas aqueles que são
capturados em flagrante217.
Para este estudo, selecionamos os dados sobre apreensão de adolescentes no Estado do RJ
/ apreensão de adolescentes conduzidos à DP, de 2002 a abril/2017; e apreensão de adolescentes
conduzidos ao sistema socioeducativo, esta tendo início só a partir de 2015 pelo ISP.
Importante destacar que diferentemente dos adultos que são autuados em flagrante delito e
conduzidos ao sistema prisional menos da metade - 47%218, a maioria dos adolescentes
apreendidos são conduzidos ao sistema socioeducativo (DEGASE), ou seja, entre 85% e 90% dos
adolescentes são encarcerados. Em 2015, por exemplo, o número de apreensões de adolescentes
teve um aumento expressivo, especialmente devido à operação verão, com a retirada de
217
Relatório Juventude e Crime, do Instituto de Segurança Pública, 2016, p. 06.
218
Prisões e apreensões de Adolescentes no Estado do RJ, ISP, 2015.
227

adolescentes “suspeitos” dos ônibus em direção às praias da zona sul do Rio e estes sendo
levados para a delegacia e sendo atuados.

Esses números, no entanto, não revelam todo o esforço policial empenhado na repressão
ao cometimento de delitos. Um número expressivo de pessoas
levadas à delegacia policial não são encaminhadas ao sistema prisional ou ao sistema de
medidas socioeducativas. (...) Entre janeiro e setembro de 2015, 9.859 adolescentes em
conflito com a lei foram levados para delegacias de polícia na situação de apreendidos.
Destes, 8,7% assinaram Boletins de Ocorrência Circunstanciados (BOC), o que, via de
regra, não resultaria em apreensão do adolescente ao sistema socioeducativo; e 91,3%
assinaram Notas de Pleno e Formal Conhecimento. Ao final do procedimento na
delegacia, o que se observa é que a maioria dos adolescentes apreendidos e levados para
a DP (87,7%) é recolhida à unidade de entrada do DEGASE para aguardar decisão do
Ministério Público. Dos 7.894 adolescentes apreendidos e recolhidos ao sistema, 94,6%
foram levados em autos de apreensão de ato infracional em flagrante. Como dito
anteriormente, durante este processo, o adolescente apreendido fica sob a guarda do
DEGASE e recolhido em um centro de medidas socioeducativas, onde permanece por,
no máximo, 24 horas até ser apresentado à Vara da Infância, da Juventude e do Idoso
para audiência e decisão quanto à liberação ou à internação do adolescente. Assim, o
percentual de Guias de Apreensão de Adolescente não revela o total de adolescentes
recolhidos ao sistema socioeducativo, visto que a decisão de internação depende, ainda,
de decisão judicial da Vara da Infância, da Juventude e do Idoso (Prisões e apreensões
de Adolescentes no Estado do RJ, ISP, 2015, p.4).

Como se pode ver, o trabalho de segurança pública no Estado do RJ tem como principal
atribuição o controle e a repressão de delitos, tendo como desdobramentos a apreensão e o
encarceramento daquele que cometeu algum tipo de crime ou ato infracional, especialmente
adolescentes. Quanto ao período máximo de “24 horas” do adolescente à espera de uma decisão
da Vara da Infância, Juventude e do Idoso, na maioria das vezes, esse período é bem maior.
Assim como o período do adolescente numa unidade provisória, que não poderia ser maior do
que 45 dias, o adolescente pode esperar até 06 meses para ser encaminhado a uma unidade de
internação fechada.
A seguir veremos as tabelas e gráficos de apreensão de adolescentes e dos adolescentes
conduzidos ao sistema socioeducativo, com os dados do Instituto de Segurança Pública.
228

Tabela 6 - Dados da apreensão de adolescentes no Estado do RJ - Período: 2002 a 2017


2002
APREENSÃO DE ADOLESCENTES NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ TOTAL
3.956
2003
APREENSÃO DE ADOLESCENTES NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ TOTAL
3.383
2004
APREENSÃO DE ADOLESCENTES NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ TOTAL
2.026
2005
APREENSÃO DE ADOLESCENTES NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
JAN JAN JAN JAN JAN JAN JAN JAN JAN JAN JAN JAN JAN
149 159 219 127 171 171 169 198 190 165 182 126 2.026
2006
APREENSÃO DE ADOLESCENTES NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ TOTAL
145 223 215 177 142 145 133 134 146 147 142 141 1.890
2007
APREENSÃO DE ADOLESCENTES NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ TOTAL
166 124 167 181 172 141 145 159 137 171 167 123 1.853
2008
APREENSÃO DE ADOLESCENTES NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ TOTAL
143 152 162 146 162 149 156 136 151 178 141 128 1.806
2009
APREENSÃO DE ADOLESCENTES NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ TOTAL
163 174 170 159 182 138 198 243 253 199 201 192 2.272
2010
APREENSÃO DE ADOLESCENTES NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ TOTAL
199 182 218 222 254 213 216 220 253 295 306 228 2.806
2011
APREENSÃO DE ADOLESCENTES NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
229

JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ TOTAL
250 221 268 356 296 281 276 283 289 276 334 336 3.466
2012
APREENSÃO DE ADOLESCENTES NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO (*Não foi encontrado registro mensal, só anual)
JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ TOTAL
5.042
2013
APREENSÃO DE ADOLESCENTES NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ TOTAL
402 617 711 593 548 685 591 577 699 690 681 528 7.222
2014
APREENSÃO DE ADOLESCENTES NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ TOTAL
562 696 632 555 628 534 658 725 871 956 838 725 8.380

2015
APREENSÃO DE ADOLESCENTES CONDUZIDOS À DP
JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ TOTAL
980 945 1.025 918 818 775 775 1.192 1.197 1.190 807 968 11.590
2015
APREENSÃO DE ADOLESCENTES RECOLHIDOS AO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO
JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ TOTAL
956 921 990 894 791 760 846 876 860 880 790 698 10.262
2016
APREENSÃO DE ADOLESCENTES CONDUZIDOS À DP
JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ TOTAL
1.293 1.217 1.038 1.239 873 869 779 825 852 817 855 824 11.481
2016
APREENSÃO DE ADOLESCENTES RECOLHIDOS AO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO
JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ TOTAL
907 809 1.011 858 736 741 639 769 832 780 825 797 9.704
2017
APREENSÃO DE ADOLESCENTES CONDUZIDOS À DP
JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ TOTAL
824 594 845 740 3.003
2017
APREENSÃO DE ADOLESCENTES RECOLHIDOS AO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO
JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ TOTAL
795 553 823 698 2.869
230

Fonte: Elaborado pelo Instituto de Segurança Pública (ISP) com base em informações da PCERJ

Tabela 7 - Apreensão de adolescentes no Estado do RJ -


Período: 2002 a 2017
APREENSÃO DE
APREENSÃO DE
ADOLESCENTES
ANO ADOLESCENTES
RECOLHIDOS AO SISTEMA
CONDUZIDOS À DP
SOCIOEDUCATIVO

2002 3.956
2003 3.382
2004 2.206
2005 2.206
2006 1.890
2007 1.853
2008 1.806
2009 2.272
2010 2.806
2011 3.466
2012 5.042
2013 7.222
2014 8.380
2015 11.590 10.262
2016 11.481 9.704
Fonte Instituto de Segurança Pública (ISP) com base em informações da PCERJ
231

Gráfico 3 – Apreensão de Adolescentes no Estado do RJ (2012-2016)

Gráfico 3: Apreensão de Adolescentes no Estado do RJ (2002 - 2016)


APREENSÃO DE ADOLESCENTES CONDUZIDOS À DP APREENSÃO DE ADOLESCENTES RECOLHIDOS AO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO

11.590 11.481
2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016
10.262
9.704

8.380

7.222

5.042

3.956
3.382 3.466
2.806
2.206 2.206 2.272
1.890 1.853 1.806
232

Ao analisarmos o gráfico anterior, verificamos a progressão no número de apreensões a


partir de 2009, mas, para nosso estudo, consideraremos a partir de 2011, com 3.466 adolescentes
apreendidos, passando para 11.481 apreensões no ano de 2016, o que representa um aumento de
331%. Os dados confirmam o aumento nos índices de apreensão e encarceramento de
adolescentes com a Resolução 20/2011 e a preparação da cidade do Rio de Janeiro para os
Megaeventos.
De acordo com o Dossiê Criança e Adolescente de 2007, do ISP, é possível perceber uma
queda muito significativa entre os anos de 2002 e 2006, representando uma redução de pouco
mais de 50% das apreensões de adolescentes infratores no estado do Rio de Janeiro. Observamos
que entre 2002 e 2004, em comparação ao período compreendido entre 2004 e 2006, houve uma
queda maior no número de apreensões. De 2002 para 2004 a redução no número de apreensões
foi de 44,2%; de 2002 para 2005 e de 2002 para 2006, foram 48,8% e 52,2% respectivamente.
O perfil de crianças e adolescentes que cometeram atos infracionais no Estado do Rio de
Janeiro, em 2006, é majoritariamente do sexo masculino, correspondendo a cerca de 87,3%,
enquanto o sexo feminino representou apenas 7,8% dos registros. Em relação à faixa etária, o
Dossiê diz que entre os jovens de 15 e 16 anos o percentual é de 43,3%, e entre os jovens de 17
anos é de 45,8%, o que corresponde a um percentual total é de 89,1% de jovens entre 15 e 17
anos.
Os dados sobre a cor das crianças e adolescentes, classificação esta atribuída pelo policial
no momento de realização do registro de ocorrência, revelam que o maior percentual de registro
de apreensão refere-se a jovens pardos, representando 43,4%. Os não brancos, junção de pretos
com pardos, representam a maioria das crianças e adolescentes apreendidos, com 68,6%.
Quanto ao local de moradia de crianças e adolescentes apreendidos verifica-se que a
maior parte residia na capital do Estado. No ano de 2006, o percentual de jovens moradores no
município do Rio de Janeiro foi de 61,9%. Os dados apontam que os municípios de Niterói,
Duque de Caxias e São Gonçalo contabilizaram cerca de 22% de crianças e adolescentes
apreendidas.
O tráfico e o roubo são os delitos com maior número de registros, correspondendo o
tráfico a 1002 apreensões, e roubo a 771 no ano de 2005, enquanto no ano de 2006
representaram, respectivamente, 809 e 693 apreensões.
233

De acordo com o Dossiê Criança e Adolescente 2012, informa que de 2010 para 2011,
ocorreu aumento de 23,5%, ou seja, 660 apreensões a mais em todo o estado do Rio de Janeiro. O
maior aumento da série se deu de 2008 para 2009, com mais 25,8%. A maior redução aconteceu
de 2005 para 2006: foram menos 6,7% casos. De 2005, com cerca de 2.026 adolescentes autores
de ato infracional, até 2008, com 1.806 adolescentes, houve redução.
Depois desse ano, houve aumento ao longo de toda a série, até 2011, com 3.466
adolescentes envolvidos com atos infracionais. A diferença percentual de 2005 para 2011 foi de
mais 71,1% de jovens apreendidos, ou ainda, mais 1.440 jovens apreendidos em situação de ato
infracional em todo o estado nesse período.
A distribuição espacial dos adolescentes apreendidos teve maior concentração na Baixada
Fluminense, com cerca de 1.011 jovens, representando 29,2% do total. Na Capital ocorreram 955
casos, ou ainda, 27,6% do total. Na cidade do Rio de Janeiro foi onde mais ocorreram apreensões,
com 955 casos. (Dossiê Criança e Adolescente, 2012, p.54)
Quanto ao perfil de jovens envolvidos com atos infracionais, em 2011, constatou-se que a
maioria absoluta era do sexo masculino, atingindo, aproximadamente, 91,8%. As do sexo
feminino representaram 7,3% do total. A falta de informação sobre o sexo dos envolvidos foi de
0,9%. Com relação às idades, o maior percentual de acusados está entre os jovens de 16 a 17
anos, com 71,0% do total. A outra faixa etária, que vai dos 13 aos 15 anos de idade, significou
27,2% do total. Os jovens de cor parda foram os mais apreendidos, com 47,9% do total. Os
negros somaram 30,1% dos casos, e os brancos, 18,3% do total. Os não brancos chegaram a
78,0% do total de jovens apreendidos. Em 3,7% dos casos não havia informação sobre a cor dos
jovens (Dossiê Criança e Adolescente, 2012, p. 56)
Observando o tipo de envolvimento que levou à apreensão de adolescentes em 2011, nota-
se que são os mesmos envolvimentos de 2006, e na mesma ordem de grandeza, ou ainda, há
cinco anos, as apreensões se davam pelos mesmos atos infracionais de 2011. A maior parte dos
envolvimentos está ligada às drogas, com cerca de 39,9%, em 2011. Em 2006, quando da edição
do primeiro Dossiê, as drogas também eram responsáveis pela maior parte das apreensões, com
cerca de 29,8% do total, e isso revela um incremento de 10,1%, em cinco anos, sobre o total de
registros de atos infracionais. Os roubos representaram 18,6% do total. Em 2011, esse percentual
reduziu, se comparado ao ano de 2006, quando os roubos concentraram 23,4% do total. Os furtos
234

representaram 12,0% desse total para o ano de 2011, e em 2006, eles foram da ordem de 13,1%.
(Dossiê Criança e Adolescente, 2012, p.58)
O que se observa, além da repetição dos mesmos tipos de atos infracionais, é o aumento
relativo da participação das drogas no envolvimento de crianças e adolescentes em situações de
infração. Os outros tipos de atos infracionais reduziram sua participação no total, à medida que os
percentuais de envolvimento com drogas aumentaram entre os anos de 2006 e 2011. (Dossiê
Criança e Adolescente, 2012, p.59)
O Dossiê Criança e Adolescente 2015, que cobre os dados de 2010 a 2015, faz a análise
de que em 2010, crianças e adolescentes somavam 4.597.165 de pessoas no estado do Rio de
Janeiro e representavam 28% da população total do estado (Censo Demográfico, 2010). Quantos
dessas crianças foram vítimas de algum crime? Quantos desses adolescentes cometeram algum
delito? Os menores de idade sofreram mais delitos do que cometeram?

Criança e Adolescente Vítima


O número de vítimas é sempre potencialmente maior do que o de infratores. Essa
afirmação vale para qualquer idade, para qualquer local, para qualquer época. Devido à natureza
da atividade criminal, todas as pessoas estão sujeitas a ser vítima de alguém e estão sempre
expostas a uma possível ocorrência. Mas, dada uma oportunidade de cometer um crime, nem
todas as pessoas têm intenção de cometê-lo. As pessoas estão sempre expostas a serem vítimas,
mas nem todas estão dispostas a cometer crimes. (Dossiê Criança e Adolescente, 2015, p. 9)
Além do tipo de infração, há outras características que se diferem entre as crianças e os
adolescentes vítimas e os adolescentes em conflito com a lei. Com relação à cor, entre os
autuados, predominam os jovens pardos (49,8%) e negros (31,5%). Já entre as vítimas, a maioria
é de brancos (46,9%), seguida por pardos (40,8%).
Observa-se também a distribuição por sexo. Os meninos constituem a maioria dos
autuados em flagrante (93,5%), enquanto as vítimas têm uma divisão mais equilibrada - e mais
parecida com a população -, com 55,4% de meninas. No entanto, selecionando apenas os “crimes
contra a dignidade sexual”, o percentual de vítimas do sexo feminino sobe para 79,3%. (Dossiê
2015, p. 12)
235

Ao analisar a tabela do Instituto de Segurança Pública com os dados de apreensão de


adolescentes, observa-se que há um aumento progressivo de 409%, entre 2010 a 2016, no número
de apreensões, bem como no número de adolescentes apreendidos e recolhidos para o sistema
socioeducativo (DEGASE), e uma redução de cerca de 10% em 2016. Esse aumento progressivo
das apreensões de adolescentes foram também destacados na Audiência Pública da Comissão de
Direitos Humanos em parceria com a Comissão de Educação da ALERJ, em 2015,
comprovadamente apresentados nas tabelas apresentada para esse estudo.

Tabela 8 - Apreensão de Adolescentes


ANO Adolescente Adolescente apreendido
apreendido e recolhido ao DEGASE
2010 2.806
2011 3.466
2012 5.042
2013 7.222 -
2014 8.380 -
2015 11.590 10.262
2016 11.481 9.704

Já em 2008, na sessão de abertura do Seminário Depois do Grande Encarceramento,


realizado pelo Ministério da Justiça e Instituto Carioca de Criminologia, Nilo Batista, destacou:

(...) a assustadora expansão dos sistemas penais no capitalismo de barbárie. Como


observamos no sumário de nosso debate, na periferia brasileira desse capitalismo, a
constatada redução nos vergonhosos níveis históricos de desigualdade e o
correspondente incremento nos índices de desenvolvimento humano não repercutiram na
curva ascendente do encarceramento, nos números chocantes do filicídio ou na
incansável demanda da mídia orgânica por repressão punitiva. Não há fronteiras para
essa insaciável criminalização dos conflitos sociais e das estratégias de sobrevivência da
pobreza, dos deserdados da corrida tecnológica, desempregados e irremediavelmente
“inempregáveis”, mesmo quando essa estratégia se reduz à migração para o centro em
busca de trabalho. É proibido falar da estratégia da classe social tornada descartável pela
nova economia; só podemos referirmos a ela reduzindo-a às representações jurídico-
penais, pelas quais a polícia e a mídia apreendem seus movimentos (BATISTA, 2010,
p.07).

Em matéria do Jornal O Globo, de 21/06/13, intitulada “Apreensões de menores infratores


aumentaram 237% na cidade do RJ de 2011 para 2013”, noticiou que as estatísticas oficiais
revelaram um crescimento do número de apreensões de jovens nos primeiros três meses daquele
236

ano no estado (1.730) em comparação com o total do mesmo período de 2011 (739). O aumento
chegou a 134,1% no estado e a 237,61% na capital do Rio de Janeiro, onde passou de 210
apreensões para 709. No primeiro trimestre de 2012, 342 adolescentes foram apreendidos na
capital e 1.021 no estado. Em média, foram 22 novas detenções por dia. O DEGASE teve um
aumento de 100% no número de internos, passando de 500 para 1.000 em dois anos, estourando
em mais de 60% de aumento. Análises do próprio DEGASE, do Instituto de Segurança Pública
(ISP), da DPCA e do Ministério Público identificaram que, na capital, o crescimento de jovens
envolvidos com crimes está ligado às alterações na estrutura do tráfico de drogas, após as
pacificações de favelas. Estudo realizado pelo ISP mostra uma mudança no perfil do adolescente
apreendido no estado. Se antes os crimes contra o patrimônio estavam entre as principais causas,
hoje o tráfico é o crime mais comum.
— O que puxou esse aumento foi o tráfico. Vimos também uma certa mudança de função.
Antes, os adolescentes trabalhavam mais como fogueteiros ou como radiocomunicadores. Nas
comunidades pacificadas, essas funções não existem mais. Eles estão trabalhando na venda direta
de drogas. Aqui no Centro, a Providência ainda tem uma outra característica. Eles (jovens)
desceram a favela e ocuparam casarões e outras áreas abandonadas do Centro para vender drogas.
Assim, acabam mais expostos — explicou a titular da à época DPCA, Bárbara Lomba219.
Se formos fazer uma análise da relação do aumento das apreensões de adolescentes com o
surgimento das UPPs, podemos considerar que a explicação da titular da DPCA, em 2013, tem
algum fundamento, mas não é o único. O programa de segurança pública que deu origem às
UPPs começou a funcionar no RJ em 19 de dezembro de 2008, quando foi instalada a primeira
Unidade de Polícia Pacificadora, no Morro Santa Marta, no bairro de Botafogo, na Zona Sul do
Rio. Desde então, 38 UPPs foram implantadas no RJ, e a Polícia Pacificadora naquela época
contava com um efetivo de 9.543 policiais220. Porém, com o agravamento da violência no RJ, a
Secretaria de Segurança Pública anunciou, em agosto de 2017, que iria reduzir o efetivo em 30%,

219
Publicado em: https://oglobo.globo.com/rio/apreensoes-de-menores-infratores-aumentaram-2376-na-cidade-do-
rio-de-2011-para-2013-8448515, acesso em 30/06/13.
220
Publicado em: http://www.upprj.com/index.php/historico, acesso em 17/09/17.
237

e esses cerca de 3.000 policiais irão fazer policiamento ostensivo na Capital e Baixada
Fluminense221.
Não vamos nos estender em relação às UPPs, mas, importante ressaltar que houve um
grande investimento financeiro (mais de R$ 3,85 bilhões) e, praticamente, não observamos
melhoras na vida nas favelas222. Para 66% dos moradores as UPPs são um projeto falido223. Não
houve políticas públicas como saúde, saneamento, educação, cultura. A Segurança Pública foi a
única politica de investimento privilegiado, funcionando na lógica da perseguição e punição ao
inimigo, de que a favela precisa de ocupação policial e não de políticas necessárias às
necessidades desse público.
Há um aumento significativo de adolescentes e jovens que ingressaram no tráfico, e é a
maioria desses jovens que estão sendo encarcerados e também vítimas da violência letal. Mas,
aqui cabe uma pergunta: Por que eles ingressam no tráfico? Em primeiro lugar por ser um
mercado de trabalho que recebe esse grupo social (os indesejáveis), mas, não todos. Não é
qualquer garoto que resolve entrar para o tráfico que consegue, e muito menos faz carreira lá
dentro. Existe um processo seletivo, sim! Geralmente, são, dentre aqueles que buscam esse
caminho, os considerados melhores, os mais destemidos, os que têm liderança, ousadia,
inteligência, rapidez de raciocínio, dentre outras. Sabem que podem ser presos ou morrer a
qualquer momento, mas consideram que esse poder que passam a ter vale a pena o risco. O
consumo, o desejo de possuir determinadas mercadorias, também influencia muito.
No período compreendido entre 2011 e 2015, como já apontado, houve um aumento de
331% no número de apreensões de adolescentes no Estado do Rio de Janeiro: de 3.466 para
11.590. Consideramos que este aumento não se deu unicamente pela implantação das UPPs, que
expulsou um número desses jovens para o asfalto. Não existe um exército do tráfico formado por
tantos adolescentes e jovens assim. As apreensões aumentaram, principalmente, pela ofensiva
higienista, seletiva e punitiva que se instalou não só no Estado do RJ, mas em vários centros
urbanos. Para Margarida Prado, Professora de Direito na Universidade Cândido Mendes e

221
Publicado em: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/08/1912108-em-meio-a-crise-rio-retira-30-do-
efetivo-de-policiais-em-upps.shtml, acesso em 01/10/2017.
222
Publicado em: https://oglobo.globo.com/rio/gastos-de-mais-de-385-bilhoes-nao-melhoram-vida-nas-favelas-com-
upp-20387997 , acesso em 01/10/17.
223
Publicado em: https://exame.abril.com.br/brasil/5-dados-provam-falencia-das-upps-no-rio-segundo-moradores/ ,
acesso em 01/01,17.
238

Conselheira pela OAB no CEDCA, “o aumento do número de apreensões não é porque aumentou
a criminalidade, mas por causa da irresponsabilidade do Estado, da corrupção, dos grandes
eventos, da limpeza urbana. Tudo que é prioritário, o principal valor é a segurança pública. A
aplicação da lei está sendo feita fora dos parâmetros normativos”.
Uma medida para minimizar a superlotação foi uma determinação da Juíza da Vara de
Execução de Medidas Socioeducativas da Capital do RJ, Dra. Lúcia Glioche, do dia 25/01/16,
para que não fossem encaminhados mais adolescentes para unidades superlotadas. A
determinação obriga o Estado a limitar a capacidade máxima das unidades, principalmente as
unidades: ESE, EJLA, Cense GCA e Dom Bosco. Porém, os Juízes têm descumprido e
continuam enviando os adolescentes para as unidades do DEGASE. Veja a notícia abaixo
publicada no Jornal Extra, em 20/02/16224:

A juíza Lúcia Glioche, da Vara de Execução de Medidas Socioeducativas da Comarca


da Capital (RJ), determinou, nesta sexta-feira, que o Departamento Geral de Ações
Socioeducativas (Degase), acabe com a superlotação em quatro unidades para menores
infratores. Em sua decisão, a magistrada determinou o número de adolescentes não
ultrapasse a capacidade das unidades. Duas ações foram movidas pela Defensoria
Pública e outras duas, pelo Ministério Público estadual.
O caso mais grave é o do Centro de Socioeducação Gelso de Carvalho Amaral (Cense-
GCA), na Ilha do Governador, onde o número de menores internados (243) era quase
quatro vezes maior do que a capacidade no dia da inspeção feita pela vara (64). Já na
Escola João Luiz Alves, havia 268 menores e o número de vagas é 112. No Centro de
Socioeducação Dom Bosco, o limite é de 216 adolescentes, mas havia 416. Por fim, no
Educandário Santo Expedito, a capacidade é de 210 menores e havia 415. O DEGASE
tem 10 dias para cumprir a decisão. A juíza estabeleceu multa diária de R$ 200 mil por
cada unidade, caso a determinação seja descumprida.
Nas ações que propôs, a defensoria pediu a aplicação do artigo 49 da Lei do Sistema
Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), que prevê que sejam colocados em
liberdade os adolescente que não tiverem praticado atos infracionais com grave ameaça
ou violência caso não haja vaga nas unidades para cumprimento das medidas
socioeducativas. No fim de sua decisão, a juíza Lúcia Glioche determina que o processo
volte para suas mãos 45 dias após a publicação de sua determinação para que seja
analisado esse pedido da defensoria.
Durante inspeções nas quatro unidades do DEGASE que são alvo da ação, técnicos da
Vara de Execução de Medidas Socioeducativas constataram, além da superlotação, falta
de água potável, colchão, uniformes, toalhas, lencóis, entre outros itens. Os adolescentes
relataram ainda aos técnicos que são agredidos frequentemente pelos agentes
socioeducativos.

Veja alguns comentários sobre essa notícia:

224
Publicada em: https://extra.globo.com/casos-de-policia/juiza-determina-que-degase-acabe-com-superlotacao-em-
quatro-unidades-para-menores-infratores-18761235.html, acesso em 03/09/17.
239

“O que estes ¨%$#@ vão fazer pelas ruas? Evidente que o governo vai liberar uma parte
desses ¨%$#@! e quem vai acalmar o ódio deles? as vítimas, o povo, as crianças, os
idosos...Isso é a DEMOCRACIA que eles implantaram no Brasil..povo tolo!”
“Porque essa anta não os leva pra casa dela já que está com tanta pena desses va ga bun
dos?!”

Em maio de 2017, o Educandário Santo Expedito (ESE) chegou a 540 adolescentes


encarcerados!! Esse número representa 245% a mais de sua capacidade, com instalações para 220
adolescentes! O que confirma a não aplicação da determinação da juíza, nem tão pouco o que
preconiza o Sistema Nacional Socioeducativo (SINASE225), que prevê, dentre outas coisas, um
máximo de 90 adolescentes por unidade de internação. O ESE destaca-se em violações a leis,
protocolos, resoluções e deliberações. Construído originalmente como um presídio parte do
Complexo de Bangu I, passou a ser uma unidade de internação, de caráter provisório, para
adolescentes em cumprimento de medida de privação de liberdade. Em 2007, o CEDCA RJ
deliberou pelo fechamento do ESE. Já se passaram 10 anos e o ESE ainda está ativo. Em 25 de
março de 2015, o CEDCA aprovou a Deliberação 40, que dispõe sobre recomendações ao
sistema socioeducativo, dentre elas:
- Proibição legal da aplicação da medida de internação, por parte do Judiciário, no caso de
incapacidade de acolhimento, por superlotação.
- Construção de um controle de regulação de vagas de forma a impedir a superlotação.
Fortalecimento do oferecimento de cumprimento em regime aberto, mutirão sobre o
225
Lei nº 12.594, de 18 de janeiro de 2012.
Art. 1o Esta Lei institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) e regulamenta a execução das
medidas destinadas a adolescente que pratique ato infracional.
§ 1o Entende-se por Sinase o conjunto ordenado de princípios, regras e critérios que envolvem a execução de
medidas socioeducativas, incluindo-se nele, por adesão, os sistemas estaduais, distrital e municipais, bem como
todos os planos, políticas e programas específicos de atendimento a adolescente em conflito com a lei.
§ 2o Entendem-se por medidas socioeducativas as previstas no art. 112 da Lei no 8.069, de 13 de julho de 1990
(Estatuto da Criança e do Adolescente), as quais têm por objetivos:
I - a responsabilização do adolescente quanto às consequências lesivas do ato infracional, sempre que possível
incentivando a sua reparação;
II - a integração social do adolescente e a garantia de seus direitos individuais e sociais, por meio do cumprimento
de seu plano individual de atendimento; e
III - a desaprovação da conduta infracional, efetivando as disposições da sentença como parâmetro máximo de
privação de liberdade ou restrição de direitos, observados os limites previstos em lei.
§ 3o Entendem-se por programa de atendimento a organização e o funcionamento, por unidade, das condições
necessárias para o cumprimento das medidas socioeducativas.
§ 4o Entende-se por unidade a base física necessária para a organização e o funcionamento de programa de
atendimento.
§ 5o Entendem-se por entidade de atendimento a pessoa jurídica de direito público ou privado que instala e
mantém a unidade e os recursos humanos e materiais necessários ao desenvolvimento de programas de
atendimento.
Publicado em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2011-2014/2012/lei/l12594.htm .
240

cumprimento das medidas de internação desnecessárias, agilização da liberação sobre as medidas


que já foram cumpridas.
- Condicionar a aprovação do Plano Decenal Socioeducativo, que é atribuição exclusiva
do CEDCA, à implantação do fechamento gradual do Educandário Santo Expedito.
Ambas as deliberações, assim como o SINASE, nunca foram respeitados no RJ.

Isaías acabou de falecer. Terceira morte no Sistema Socioeducativo do nosso Novo


DEGASE, nesse mês. Segundo a morrer decorrente de queimaduras - do incêndio
ocorrido em uma “cela" superlotada na Unidade Joao Luiz Alves - enquanto brilhávamos
no dia da abertura dos Jogos Olímpicos. Esse jovem , como os outros queimados, não
deveria estar cumprindo medida de internação- simplesmente o juiz que aplicou a
medida desconsidera a lei. Foi mantido algemado em coma - hospitalizado- porque outro
juízo indeferiu o pedido conjunto da Defensoria Pública e do Ministério Público - pedido
de que as algemas fossem retiradas. Médicos e enfermeiros também se submeteram a
orientação paranóica da Direção do Degase de que este menino era um inimigo em
potencial- desconsideraram qualquer razoabilidade ética do exercício de suas profissões.
Estão todos satisfeitos agora- dever cumprido - e afinal é apenas mais um corpo que será
entregue à mais uma mãe. A direção do Degase , o judiciário e a sociedade podem
dormir em paz? Meu Deus - onde está o Conselho Nacional de Justiça que não fiscaliza
o Estado do Rio de Janeiro?? (Desembargador Siro Darlan, em 03/09/16226)

Depois de várias articulações, negociações e discussões sobre a superlotação do


DEGASE, o CEDCA/RJ deliberou a recomendação da criação da Central de Regulação de Vagas
para o Sistema Socioeducativo, em Assembleia Ordinária no dia 20/04/2016, e publicada no
Diário Oficial (D.O) no dia 12/05/2016, entendendo ser esta uma medida urgente no
enfrentamento dos desafios impostos e insustentáveis da superlotação das unidades de internação
do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (DEGASE), que apresentam um cenário de
total violação de direitos da pessoa humana. A medida foi acordada em 04/05/17, pela
Promotoria de Tutela Coletiva da Infância e Juventude em Matéria Infracional da Capital e da
Tutela na área de Educação, do Ministério Público, a Vara de Execução de Medida
Socioeducativa, a Defensoria Pública, o DEGASE e a Procuradoria do Estado.
Iniciativa aplaudida por vários segmentos de direitos humanos, esta medida teve efeito
negativo e acirrou ainda mais a divisão no Ministério Público, que apresenta uma maioria
contrária à Central de Regulamentação de Vagas (CRV), por considerar que este dispositivo
colocaria em liberdade vários adolescentes que estão presos por crimes graves. A mídia
contribuiu com o fortalecimento da ideia contrária à Central de Regulamentação de Vagas,

226
Publicado em: http://www.blogdosirodarlan.com/ , acesso em 05/09/16.
241

divulgando notícias equivocadas e alarmistas em relação ao tema, considerando que esta medida
iria afrouxar as penalidades, quando a necessidade era a de aplicação de penas mais duras para os
adolescentes autores de ato infracional, bem como aumentar o tempo de internação.

Os nazistas insistiram que penas mais rígidas e punições mais severas também
funcionavam para dissuadir os contraventores e apressaram-se em proclamar seus êxitos
antes do primeiro aniversário da ditadura de Hitler (GELLATELY, 2011, p. 153).

Dessa forma, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro adotou medida de “efeito
suspensivo na apelação do acordo da Central de Regulação de Vagas” para o Sistema
Socioeducativo227. Essa decisão causou grande indignação do coletivo de defensores de direitos,
considerando um retrocesso e uma contradição do Judiciário e Ministério Público, pois favorece
o não cumprimento dos preceitos da garantia de direitos de adolescentes autores de ato
infracional de acordo com os parâmetros normativos nacionais e internacionais, levando em
consideração principalmente a excepcionalidade na aplicação de medida socioeducativa de
internação, conforme art. 121 do Estatuto da Criança e do Adolescente, e o art. 122228 que versa
sobre a aplicabilidade da medida. Considera que não é o tempo da internação que vai mudar o
comportamento do jovem e sim o desenvolvimento de um processo socioeducativo de fato,
associado ao trabalho de psicologia e assistência social dirigido a ele e sua família. A Central de
227
Publicado em: http://justicaecidadania.odia.ig.com.br/2017-05-23/tj-derruba-criacao-de-central-de-vagas-de-
internacao-para-menores-infratores.html , acesso em maio/2017.
228
ECA - Seção VII - Da Internação
Art. 121. A internação constitui medida privativa da liberdade, sujeita aos princípios de brevidade,
excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.
§ 1º Será permitida a realização de atividades externas, a critério da equipe técnica da entidade, salvo expressa
determinação judicial em contrário.
§ 2º A medida não comporta prazo determinado, devendo sua manutenção ser reavaliada, mediante decisão
fundamentada, no máximo a cada seis meses.
§ 3º Em nenhuma hipótese o período máximo de internação excederá a três anos.
§ 4º Atingido o limite estabelecido no parágrafo anterior, o adolescente deverá ser liberado, colocado em regime de
semi-liberdade ou de liberdade assistida.
§ 5º A liberação será compulsória aos vinte e um anos de idade.
§ 6º Em qualquer hipótese a desinternação será precedida de autorização judicial, ouvido o Ministério Público.
§ 7o A determinação judicial mencionada no § 1o poderá ser revista a qualquer tempo pela autoridade
judiciária.
Art. 122. A medida de internação só poderá ser aplicada quando:
I - tratar-se de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência a pessoa;
II - por reiteração no cometimento de outras infrações graves;
III - por descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta.
§ 1o O prazo de internação na hipótese do inciso III deste artigo não poderá ser superior a 3 (três) meses, devendo
ser decretada judicialmente após o devido processo legal.
Publicado em: http://www.planalto.gov.br/Ccivil_03/leis/L8069.htm .
242

Regulação de Vagas tem, principalmente, o objetivo de humanizar o sistema e garantir que


apenas jovens com infrações de grave ameaça e violência sejam internados. A CRV não foi
defendida por uma maioria, porque esbarrou na ideologia seletiva e punitiva do Judiciário.

A maioria dos adolescentes está internada por roubo e não por homicídio e latrocínio
consumados ou atentados. A Central de Vagas apenas humaniza a internação. Hoje, com
a superlotação, o adolescente não é sequer ouvido por técnicos que permitam que a
reflexão sobre o ato praticado ocorra. A família não é acolhida. Ele não estuda. Não sai
do alojamento para refeições, beber água, nada. É um confinamento, no qual a atividade
praticada é a “troca de experiências”. Os agentes e profissionais que trabalham na
unidade estão apenas preocupados com a segurança e os riscos que o excesso de jovens
causa. A Central de Vagas visa a humanizar a internação. Há juízes que ainda internam
por fatos que não são roubo, homicídio e latrocínio. Na hora da execução, esses
adolescentes superlotam a unidade. Mesmo com a central de vagas, haverá mais
adolescentes internados do que vagas, pois a central de vagas não vai tirar da internação
quem praticou fato grave. Assim, o Estado ainda precisa se preocupar em construir
novas unidades.
A progressão da medida de internação para outra é um direito do jovem. Ele não pode
ser presumido perigoso, apenas pelo ato grave que praticou. Cabe ao Estado dar
segurança para a população e não manter os adolescentes internados pelo máximo da lei,
como meio encontrado para a população ter a sensação de que tem segurança, disse a
Juíza Lúcia Glioche229 .

4.3 A Solução Final / Prática 3: Assassinato, Homicídio, Eliminação


Indignos de Viver

Eu paguei ao Estado a bala que matou meu filho!


(D. Terezinha, mãe do menino Eduardo, 11 anos, morto no Complexo da Maré, em
2015)

No início da década de 1990, o Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua


(MNMMR – RJ) elaborou levantamento de dados sobre os crimes de extermínio contra crianças
e adolescentes no Estado do Rio de Janeiro. Um minucioso dossiê foi elaborado ao longo de
1991, e entregue, no início de 1992, a Organismos Internacionais (Anistia Internacional,
Comunidade Europeia, ONU, etc.), no qual denunciava o assassinato de 470 crianças e

229
Publicado em: https://oglobo.globo.com/rio/nao-o-tempo-de-internacao-que-mudara-comportamento-de-menores-
infratores-defende-juiza-21436757 .acesso em junho/17.
243

adolescentes, sendo 82,12% destes crimes (386) cometidos contra adolescentes com idade entre
13 e 18 anos, do sexo masculino, em sua maioria afrodescendente (pardos e negros), sendo que
em 78,99% destes casos (371) foram utilizadas armas de fogo. A capital do Rio destacou-se
nesse levantamento com 54,68% dos assassinatos (257), seguida pela Baixada Fluminense com
28,72% (135 casos), e com 16,59% (78 assassinatos) ocorridos em outras regiões do Estado.
Naquele tempo, não havia internet, nem sistematização desses dados, tivemos que pesquisa-los
em jornais impressos diários, especialmente dois deles: O Dia e O Povo. Eu, enquanto assessora
de imprensa do MNMMR – RJ, era a responsável pela pesquisa, análise e divulgação dos dados.
A repercussão internacional do dossiê foi muito grande. Jornalistas de vários países vieram ao
país entrevistar o MNMMR. Nessa época, o Brasil ficou internacionalmente conhecido como um
país que exterminava “meninos e meninas de rua”.
Pouco mais de um ano depois de ocorridas das denúncias de extermínio, em 23 de julho
de 1993, aconteceu a “Chacina da Candelária”, quando 08 jovens, de um grupo de cerca de 70
crianças, jovens e adultos, foram executados, com o dia ainda amanhecendo, aos pés do centro
comercial e religioso da cidade do Rio de Janeiro, na Praça Pio X, em frente à Igreja da
Candelária. Mais uma vez, manchetes foram estampadas nas primeiras páginas dos jornais e
televisões do mundo inteiro. Pela primeira vez os autores de uma chacina ousaram executá-la
numa região central, na capital do Rio de Janeiro, o que antes era feito na Baixada Fluminense. E
a cidade Maravilhosa se desnudou, mostrou o seu avesso e todos viram que ela não era tão
maravilhosa assim.
Lembro-me que na década de 1990 os grupos de extermínio da Baixada Fluminense,
especialmente de Duque de Caxias e Belford Roxo, colavam cartazes em postes com uma lista
dos nomes daqueles considerados indignos de viver, daqueles marcados para morrer. Passados
mais de 25 anos, a história se repete quando ouvi da empregada de minha mãe, moradora de
Nova Iguaçu, que os milicianos (ou traficantes) haviam também colado um cartaz num poste com
uma lista daqueles que seriam mortos. É muita ousadia, pensei... A vida, para alguns, de fato vale
muito pouco, ou não vale nada, para aqueles que têm a vida considerada indigna de ser vivida.
Segundo o autor Giorgio Agamben (2012) a vida nua se encontra no paradoxo específico
da própria inclusão e depois exclusão do sujeito de direito. A vida se torna matável através da
ordem jurídica do poder soberano. É a ordem jurídica que torna o sujeito passível de morte,
excluído do direito. Toda sociedade estabelece quem serão considerados os homens sacros e essa
244

determinação parte de um ato soberano do Estado, que define os seus cidadãos e os que serão
tratados como “vida sem valor”, aqueles sujeitos indesejáveis.
Para o historiador Salloma Jovino, existe vários processos genocidas acontecendo, sendo
um deles nas periferias dos grandes centros, como em Pernambuco, Alagoas, Fortaleza, São
Paulo, Rio de Janeiro, dentre outros.

Tem um resquício disso que poderíamos chamar de cultura da violência. Ou seja, desde
o início da colonização, uma das marcas é a violência, seja essa violência para limpar os
campos e tirar os nativos para implementar uma fazenda, seja essa violência
racionalizada da produção. Quando eu capturo outras pessoas, em um outro lugar, e
trago pra trabalhar nessa terra, pra transformar aquele ser humano capturado em um ser
humano produtivo pra um engenho, pra uma fazenda, eu tenho que racionalizar a
violência. Isso vai gerar no longo do tempo longo, um conjunto de práticas, de normas,
de procedimentos, de aprendizagens e tradições que vão chegar até nós. Essa cultura,
essa racionalização, esse aprendizado transformado em pedagogia pelos fazendeiros, ele
vai entrar nas relações cotidianas230.

Pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indica que o Brasil tem
207.660.926 habitantes e uma taxa de crescimento populacional de 0,77% entre 2016 e 2017, um
pouco menor do que a de 2015/2016 (0,80%). Nesse período, 25% dos municípios tiveram suas
populações reduzidas. Os dados foram publicados, no dia 30/08/17, no Diário Oficial da
União231.
A taxa de crescimento da população brasileira vem caindo ao longo dos anos. Diversos
processos, ligados à urbanização e à modernização da sociedade brasileira, originaram quedas
progressivas nas taxas de fertilidade, o que derivou no estreitamento da base da pirâmide
populacional do país. Mas esse ritmo de crescimento no número absoluto de jovens – de 25,1
milhões, em 1980, para 34,6 milhões, em 2008 – começou a declinar progressivamente já em
meados da década atual, em função das mudanças nas curvas demográficas do país.
A taxa global de mortalidade da população brasileira caiu de 633 por 100 mil habitantes,
em 1980, para 568, em 2004, fato bem evidente no aumento da expectativa de vida da população,
um dos índices cuja progressiva melhora possibilitou significativos avanços no Índice de
Desenvolvimento Humano – IDH dos últimos anos. Apesar desses ganhos gerais, a taxa de

230
Publicado em: https://www.youtube.com/watch?v=enZISbyxgGU&feature=share, acesso em 04/10/17.
231
Publicado em: http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=1&pagina=58&data=30/08/2017 ,
acesso em 02/09/17.
245

mortalidade juvenil manteve-se praticamente inalterada ao longo do período e só teve leve


aumento, passando de 128, em 1980, para 133 a cada 100 mil jovens, em 2008.
Em 2013, o Brasil possuía uma população de 201,5 milhões de pessoas, dos quais 59,7
milhões tinham menos de 18 anos de idade (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios -
Pnad 2013). Mais da metade de todas as crianças e adolescentes brasileiros são afrodescendentes
e mais de um terço dos 821 mil indígenas do país são crianças (Censo Demográfico 2010).
Embora o Brasil tenha feito grandes progressos em relação à sua população mais jovem,
os avanços não atingiram todas as crianças e todos os adolescentes da mesma forma. O Brasil é
ainda um dos países mais desiguais do mundo. Por exemplo, enquanto 37% das crianças e dos
adolescentes brancos viviam na pobreza em 2010, esse percentual se ampliava para 61% entre os
negros e pardos (Censo Demográfico 2010).
O Brasil é uma referência no mundo por estar conseguindo atingir as Metas do Milênio
pela rápida redução nas últimas décadas de suas taxas de mortalidade infantil (crianças menores
de um ano) e na infância (crianças menores de cinco anos) pelas diversas ações no campo da
saúde, da sanidade pública e de acesso a outros benefícios sociais. De 1990 a 2012, a taxa de
óbito entre crianças menores de 01 ano foi reduzida em 68,4%, atingindo a marca de 14,9 mortes
para cada 1.000 nascidos vivos, segundo o Ministério da Saúde (Sistema de Informação sobre
Mortalidade - SIM/Sinasc 2012). No entanto, o mesmo não acontece na área dos homicídios, que
marcadamente avança na contramão dessas tendências. O Brasil superou a mortalidade infantil,
mas mata essas pessoas quando chegam na adolescência e juventude.
A face mais trágica das violações de direitos que afetam meninos e meninas no Brasil são
os homicídios de adolescentes. De 1990 a 2014, o número de homicídios de brasileiros de até 19
anos mais que dobrou: passou de 5 mil para 11,1 mil casos ao ano (Datasus, 2014). Isso significa
que, em 2014, a cada dia, 30 crianças e adolescentes foram assassinados232.
As vítimas têm cor, classe social e endereço. São em sua maioria meninos negros, pobres,
que vivem nas periferias e áreas metropolitanas das grandes cidades. A taxa de homicídio entre
adolescentes negros é quase quatro vezes maior do que aquela entre os brancos: 36,9 a cada 100
mil habitantes, contra 9,6 entre os brancos (Datasus, 2013).
Dos adolescentes que morrem no país, 36,5% são assassinados. Na população total, esse
percentual é de 4,8% (Índice de Homicídios na Adolescência no Brasil, 2015). Esse cenário
232
Estimativa feita pelo UNICEF no Brasil baseada em dados do Datasus, 2014. Publicado em:
https://www.unicef.org/brazil/pt/activities.html .
246

perturbador coloca o Brasil em segundo lugar no ranking dos países com maior número de
assassinatos de meninos e meninas de até 19 anos, atrás apenas da Nigéria (Hidden in Plain Sight,
UNICEF, 2014).
Dessa forma, consideramos que os homicídios da juventude negra e pobre brasileira se
somam ao declínio das taxas de natalidade da população, pois se o Brasil conseguiu reduzir as
taxas de mortalidade infantil, não conseguiu superar as mortes provocadas pela violência letal
quando essas crianças chegam na adolescência e juventude.
Estudos históricos realizados em São Paulo e no Rio de Janeiro mostram que as epidemias
e doenças infecciosas – as principais causas de morte entre os jovens há pelo menos seis décadas,
foram progressivamente substituídas pelas denominadas “causas externas” de mortalidade,
principalmente homicídios e acidentes de trânsito. As causas externas de mortalidade vêm
crescendo de forma assustadora nas últimas décadas: se, em 1980, representavam 6,7% do total
de óbitos nessa faixa etária, em 2010, a participação elevou-se de forma preocupante: atingiu o
patamar de 26,5%. Tal é o peso das causas externas que em 2010 foram responsáveis por 53,2% -
acima da metade – do total de mortes na faixa de 1 a 19 anos de idade. Para se ter uma ideia da
dimensão, a segunda causa individual: neoplasias – tumores – representam 7,8%; e a terceira,
doenças do aparelho respiratório: 6,6%. Isoladamente, homicídios de crianças e adolescentes, que
fazem parte das causas externas, foram responsáveis por 22,5% de total de óbitos nessa faixa
(Mapa da Violência 2012).
Segundo dados do IBGE – 2016, o Brasil possui aproximadamente 61,4 milhões de
crianças e adolescentes entre 0 e 19 anos, e mais de um terço deles se concentra no Sudeste233.
No ano de 2014, mais de 59 mil mortes por homicídios foram notificadas ao Sistema de
Informações sobre Mortalidade (SIM) do Brasil, sendo 18,8% das mortes por homicídios, ou seja,
cerca de 11.092, foram cometidas contra pessoas menores de 19 anos. Mais de 80% dos
homicídios contra crianças e jovens entre 0 e 19 anos foram cometidos por armas de fogo. E a
Região Nordeste concentra a maior proporção de homicídios de crianças e adolescentes por
armas de fogo e supera a proporção nacional em 6,5 pontos percentuais.
Avolumam-se os corpos nas favelas e periferias, com cerca de 03 mortos por dia pela
polícia do Rio de Janeiro, totalizando 642 civis assassinados entre janeiro e julho de 2017.
Exacerbam-se operações policiais violentas, que deixam milhares de crianças e jovens sem aulas

233
Publicado em: http://www.crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/publi/abrinq/cenario_brasil_abrinq_mar2016.pdf
247

todos os dias e impedem moradores de comunidades de saírem para trabalhar, disseminando o


terror nas vielas e casas. Do alto do “Águia da Morte234” da CORE (Coordenadoria de Recursos
Especiais da Polícia Civil do RJ), o Estado suspende os direitos civis e tortura física e
psicologicamente milhares de cidadãos das favelas, cujos corpos tremulam ao escutar os
sobrevoos rasantes do helicóptero, tipo de “caveirão voador”. São vidas matáveis, vivendo em
constante “Estado de Exceção”.
A violência cotidiana é marcada com a presença do Estado policial nas favelas, com ou
sem as Unidades de Polícia Pacificadora (UPP), nas incursões da polícia e do Batalhão de
Choque (BOPE), com os “Caveirões” que adentram as favelas, tratando os moradores como se
fossem inimigos, com violência, abuso, desrespeito. Tapa na cara, invasão em casa de morador
sem mandato, xingamentos, tiroteio, balas perdidas e certeiras... Os policiais que matam
moradores das favelas geralmente dizem: “foi troca de tiros, era traficante....”, como se isso
justificasse o assassinato, carta branca para matar. É uma polícia seletiva e racista, que desfecha
seu ódio de classe e de cor em cima do estereótipo de um inimigo histórica e socialmente
construído, ou seja, negros e pobres – os indesejáveis. Conviver com essa rotina não é fácil, e
deixa marcas...
Na Alemanha nazista, Hitler criou a Kripo e a Gestapo, polícias especializadas no
combate ao inimigo, a primeira como braço de coerção policial, e a segunda como polícia política
(Gellately, 2011). Interessante observarmos a semelhança em certas práticas com a nossa polícia.
O Estado nazista criou uma polícia e um processo penal “volkisch”, que significava poder do
povo, espírito do povo, mas com uma conotação étnica, de poder da raça, de uma etnia (leia-se
alemã, branca).

Um historiador do nazismo os descreve assim: “esse tipo de polícia “volkisch”, ou


biológica, da polícia foi apresentado ao povo alemão como a base racional para o que a
polícia fazia. (...) a nova polícia não estava mais sujeita a quaisquer restrições formais
para realizar sua missão, que incluía fazer valer a vontade da liderança e criar e defender
o tipo de ordem social que esta desejava. Para a nova polícia, a prioridade era ‘a
proteção e o avanço da comunidade do povo’, e contramedidas policiais eram
justificadas para deter toda “agitação” oposta ao povo, que precisava ser sufocada”. (...)
A polícia podia tomar quaisquer medidas necessárias, incluindo a invasão de lares,
‘porque não existe mais esfera privada, na qual o indivíduo tem permissão para trabalhar
sem ser molestado na base da vida da comunidade nacional-socialista. “A lei é aquilo
que serve ao povo, e ilegal é aquilo que o fere” (GELLATELY, 2011, p. 79-80).

234
“Águia da Morte” é o nome popular ao helicóptero da CORE.
248

Nossa polícia não é “volkisch”, mas tem coisas em comum com a polícia nazista. Suas
práticas abusivas são seletivas, direcionadas a um determinado grupo social (étnico) e territórios
específicos. Esse cotidiano de violência nas favelas e periferia da cidade do Rio de Janeiro tem
deixado duras consequências em seus moradores (crianças, adolescentes, jovens, adultos, idosos),
que variam do medo e o trauma à revolta. São milhares de alunos que não podem ir à escola por
causa dos tiroteios; adoção do toque de recolher; proibição de eventos nas comunidades (bailes
funks, festival do passinho, etc.); comércio que fecha; pessoas que perdem seus entes queridos,
muitos são crianças e jovens... Certa vez ouvi de um presidente de uma associação de moradores
um discurso contundente, que ao final destacou: “Estão matando meu povo! Mas, nós não vamos
nos ajoelhar! Se eu tiver que tombar, tombarei de pé!”
O cenário da violência no Rio de Janeiro, no ano de 2017, fez com que o Governo do
Estado, mais uma vez, solicitasse apoio das Forças Armadas. Tanques de guerra e jovens
recrutas armados com fuzis passaram a fazer parte da paisagem da cidade, mas foi especialmente
nos territórios das favelas que se sentiu o peso do estado de exceção. Rocinha, Jacarezinho e
Manguinhos, foram, principalmente, os territórios que mais sofreram com essa intervenção, entre
agosto e outubro de 2017. Intensos tiroteios marcaram e marcam o cotidiano das favelas,
interferindo diretamente na vida dos moradores. Muitas pessoas assustadas com os tiros se jogam
no chão para não ser mais uma vítima de balas perdidas... São inúmeros militares que chegam
com seus blindados e até tanques de guerra (só na Rocinha, em 22/09/17, chegaram com 950
homens das forças armadas), armados com fuzil e pistolas, com o objetivo de combater a
violência do tráfico. Mas, o combate não está apenas restrito aos ditos traficantes... Entrando no
território do inimigo, o conflito não poupa ninguém, seja bandido, morador ou criança.
Qual será o custo financeiro e ético de tudo isso, como o de uma operação que só em um
dia mobilizou 500 homens das forças armadas do Exército invadindo a favela do Muquiço, em
Guadalupe (RJ), para apenas a apreensão de uma pistola roubada de um militar235?
De 2015 a 2017, o grande número de Audiências Públicas realizadas no RJ no período
nos aponta uma dura e sombria realidade, na qual a violência, a repressão, o encarceramento e o
extermínio, principalmente da juventude negra e pobre tem tido proporções altíssimas.

235
Publicado em: https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/exercito-faz-operacao-com-500-homens-para-
recuperar-pistola-roubada-de-militar-no-rio.ghtml , acesso em 20/09/17.
249

Para a elaboração deste subcapítulo, que trata do assassinato/homicídio como a 3ª prática


abusiva direcionada contra os sujeitos indesejáveis, foram pesquisadas várias fontes de dados, por
entender que pela gravidade do tema em si importante o cruzamento dessas informações. Foram
pesquisados dados do Mapa da Violência, do Atlas da Violência, do Índice de Homicídios na
Adolescência (IHA), do Instituto de Segurança Pública (ISP), do IPEA e o acompanhamento de
notícias veiculadas na mídia sobre violência e assassinato de crianças e adolescentes. São
números assustadores, alarmantes que disparam um sinal vermelho fazendo do Brasil o país que
mais mata a sua juventude.
Enquanto metodologia será apresentada os dados de cada uma das fontes, através de
planilhas e gráfico, do período entre os anos 2000 a 2016 e parte de 2017, em números absolutos
(Brasil), em nível estadual e local (RJ), destacando notícias veiculadas sobre o tema, bem como a
análise destes. Outra fonte a ser apresentada serão partes do relatório da CPI dos Assassinatos de
Jovens no Brasil, do Senado Federal, e relatos de Audiências Públicas sobre o Genocídio da
juventude negra.
Partes do artigo “ECA do B236”, da escritora Eliane Brum, uma analogia às avessas do
Estatuto da Criança e do Adolescente, publicado na coluna opinião do Jornal El País, no dia
28/09/15, que discorre sobre a morte matada de 06 crianças pela polícia militar em incursões nas
favelas do RJ, também serão inseridos, aleatoriamente, ao longo deste subcapítulo, para ilustrar o
homicídio de crianças e adolescentes, mas também como forma de trazer à luz a ideia / visão que
permeia a sociedade sobre essas mortes.

4.3.1 CPI do Assassinato de Jovens no Brasil

De acordo com o relatório final da CPI do Senado sobre o Assassinato de Jovens no


Brasil237 (2016), que teve como Relator o Senador Lindberg Farias (PT), cerca de 23.100 jovens
negros, de 15 a 29 anos, são assassinados a cada ano. São 63 jovens negros assassinados por dia.

236
Publicação: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/09/28/opinion/1443448187_784466.html, acesso em 28/09/15.
237
Publicado em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/06/06/cpi-do-assassinato-de-jovens-
apresenta-relatorio-final-na-quarta-feira, em 06/06/16.
250

Um a cada 23 minutos. O objetivo da Comissão foi identificar as principais causas e os seus


respectivos responsáveis pela violência letal da nossa juventude, a fim de criar mecanismos de
prevenção da violência e de combate ao extermínio da juventude negra. Os números do estatuto
da Juventude apontam que: 77% dos jovens que morrem assassinados no Brasil são negros e
93% do sexo masculino. Em entrevista para a Agencia Brasil sobre o lançamento do relatório o
Senador Lindbergh Farias, Relator da CPI, afirmou que “o que existe hoje no País é uma política
de extermínio da nossa juventude, e em especial da nossa juventude negra, pobre, moradora das
periferias. Hoje, nós temos no Brasil uma média de 60 mil homicídios por ano, 50% desses são
jovens, 77% dos jovens são negros e moradores das periferias” (o relato da CPI do Assassinato
de jovens no Brasil será apresentado posteriormente).

No Brasil, os homicídios dolosos são uma triste realidade: 56.000 pessoas são
assassinadas todos os anos no País, o que equivale a 29 vítimas por 100.000 habitantes,
índice considerado epidêmico pela SF/16203.78871-55 5 Organização das Nações
Unidas (ONU). Este patamar vergonhoso e preocupante tem se mantido inalterado ao
longo de três décadas, com pequenas variações.
Importante salientar que a vitimização apresenta padrões particulares: 53% das vítimas
são jovens; destes, 77% são negros e 93% do sexo masculino. Os homicídios dolosos são
a primeira causa de morte entre os jovens. Ademais, o risco não se distribui aleatória e
equitativamente por todos os segmentos sociais e raças, ao contrário, concentra-se na
camada mais pobre e na população negra, reproduzindo e aprofundando as
desigualdades sociais e o racismo estrutural238 (Relatório da CPI Assassinato de Jovens
no Brasil, 2016, p. 26).

43.1.1 Relatos da CPI Assassinato de Jovens

Rio de Janeiro, 06/11/15


Presidente: Senadora Líndice da Mata (PSB)
Relator - Lindberg Farias (PT)
A CPI percorreu várias capitais no país. No Rio de Janeiro ocorreu na Ordem dos
Advogados do Brasil (OAB RJ), no dia 06 de novembro de 2015. Participaram várias pessoas e
instituições de governo e da sociedade civil, além de representantes do movimento social e das
Mães de crianças, adolescentes e jovens que foram vítimas da violência do Estado. A CPI foi

238
Publicado em: https://www12.senado.leg.br/noticias/arquivos/2016/06/08/veja-a-integra-do-relatorio-da-cpi-do-
assassinato-de-jovens , acesso em julho 2016.
251

cercada de muita emoção, mas também de revolta pelo número alarmante dos homicídios no
Brasil e no RJ, mas revolta pela política de segurança pública do Estado que tem sido a principal
responsável por esses assassinatos. A apresentação do representante da Secretaria de Segurança
Pública, logo na primeira fala, arrancou muitos protestos dos presentes, por querer
responsabilizar os jovens que fazem parte do tráfico pela violência letal no Estado.
Segue abaixo alguns destaques das principais falas:
Pehkx Jones Silveira (Representante da Secretaria Segurança Pública do Estado do RJ):
- A polícia hoje no RJ apreende em média 01 fuzil por dia. O público que está usando esse
armamento são jovens. E também foram apreendidas 461 granadas de janeiro a junho deste ano.
(O público se revolta nesse momento, muitas vaias e protestos!)
Segundo dados da SSP, os mortos em 2011 foram:
Brancos – 1033; Pardos – 2063; Negros – 1.107; Relação: 3 X 1
(Mais contestação do público, dizendo que pardo é negro também!)

Deputado Marcelo Freixo (PSOL):


- Beltrame cria uma fronteira de fumaça falando dessa questão das armas. As pessoas não
são mortas pelas armas de guerra! São mortas pelas armas de curto alcance. Mais de 80% das
mortes acontecem por fuzis! Até quando vocês vão continuar encobrindo isso! Vocês não
fiscalizam as empresas das armas, de segurança privada.
- Os autos de resistência vêm aumentando. Esse ano, aproximamos de 02 por dia! O
Estado mata oficialmente! Essa é a tragédia que a gente oficializa!
- Jovens mortos-vivos estão no DEGASE. Ali esses jovens não são contabilizados. Estão
recebendo 25 adolescentes por dia! Essa juventude é transformada em zumbis!

Dona Terezinha (mães do menino Eduardo, 10 anos, morto no complexo do Alemão, em


abril/15239):
- Não aceito o resultado da investigação! Eles disseram que os policiais mataram em
legítima defesa, mas é muita mentira desses policiais! Não houve troca de tiros. Meu filho, eu
vou lutar com unhas e dentes! Eu não aceito, esse resultado é podre! A morte de meu filho não
vai ficar em vão! Os policiais que tiraram meu filho dos meus braços não vão ficar impunes! (...)
239
Publicado em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/04/menino-morre-baleado-durante-operacao-da-
elite-da-pm-no-alemao.html , acesso em 02/04/15.
252

Os policiais disseram que mataram meu filho porque é isso que eles fazem porque filho de
bandido é bandido também! Quiseram colocar arma na mão do meu filho morto pra livrar a cara
deles! Não foi legítima defesa! Meu filho só tinha 10 anos! O Estado está devendo uma
investigação pela morte de meu filho! Eu paguei ao Estado a bala que matou meu filho!

Senador Lindberg Farias (PT) – Vamos fazer de tudo para reabrir esse inquérito.

Ana Paula (Mãe de Jonathan, 19 anos, morto em Manguinhos, em 2014, com um tiro nas
costas):
– Temos que nos unir! Juntas somos fortes! A vida de nossos filhos era importante.
Manguinhos já teve 05 vítimas pela UPP. O caso do meu filho, como de muitos outros, não teve
repercussão na mídia. (...) A vida numa favela, apesar de todos pensarem que não vale nada, eu tô
aqui para dizer que essa vida vale muito! Nós não temos o direito de viver nosso luto! Eles
mataram os nossos filhos e temos que provar que os nossos filhos não eram bandidos! Temos que
provar?! Não tem pena de morte no Brasil? Esse extermínio tem que parar! Tantos criminosos
nesses condomínios de luxo e não fazem nada! Ele falou que esses armamentos estão nas mãos
dos jovens, mas como chegam esses armamentos na favela?! Eles deixam chegar pra depois
matarem nossos filhos! Eu exijo justiça!

Deputado Federal Wadih Damous (PT):


- Atentados ao processo civilizatório, ao Brasil! Lá se aprovou a Redução, diminuir a
idade mínima para quem porta arma, Estatuto da Família, etc... Lá estamos assistindo a
conformação do Estado de Exceção. A exceção vai tomando conta da Constituição, do nosso
ordenamento jurídico! Vamos ali consolidando uma pauta da barbárie! É a Casa do atentado à
democracia! Outro aspecto do Estado de Exceção permanente é a criminalização da pobreza. É
como dizermos para os nossos jovens que é isso o que temos pra vocês: extermínio! Não há vida
civilizada na Câmara, onde uma escalada fascista tenta impetrar o golpe! Uma regressão das
conquistas que foram obtidas com muito sangue! O que aconteceu no caso do menino Eduardo
não foi legítima defesa, foi a política de extermínio do Estado! Estamos aqui para preservar o
processo civilizatório!
253

Orlando Zaccone (Delegado de Polícia):


– Temos policiais que estão comprometidos com a mudança, mas tem muitos que não
estão. Autos de resistência é uma política de Estado de extermínio! Todos os autos de resistência
de 2000 até 2008 estavam arquivados. Isso é uma política! Não é um desvio de conduta de
policiais! Temos que chamar o Estado para essa realidade não individualizando a culpa. (...)
Fundamentam a legítima defesa pela condição de quem morreu (jovem, traficante, morador de
favela...). O inimigo, hoje, é o traficante de drogas. Constroem um inimigo! O que está em jogo é
a quem essa violência é dirigida. Esses policiais são chamados diariamente não só pelo estado,
mas pela mídia. É máquina de moer pessoas! Vamos acabar com o tráfico! Como? Legalizando!
Isso é um marco na redução da violência! Temos que acabar com essa hipocrisia! O Presidente da
AMBEV é um traficante! Estão dando Ritalina para as crianças, legalizada!

Maria de Fátima (Fatinha, mãe de Hugo Leonardo, morto na Rocinha):


– Meu filho era negro! Sempre foi acuado pela polícia desde pequeno. Era usuário de
maconha, isso era um direito dele! Mas ele trabalhava informal, tinha o dinheiro dele. Quando foi
executado estava desempregado. A polícia sempre machucava ele. Falam um monte de mentira
do meu filho e eu que tenho que provar?! Os jovens e pais da PUC ficam lá usando suas drogas e
ninguém faz nada porque são brancos, de classe média! Favelado matam!

Muitos foram os assassinatos de crianças e adolescentes no período deste estudo, mas


algumas são emblemáticos, como a morte do menino Eduardo, de 10 anos, citado na CPI dos
Assassinatos de Jovens, morto por um policial militar no Complexo do Alemão, zona norte do
Rio de Janeiro, em abril de 2015. A escritora Eliane Brum, em seu artigo ECA do B, faz sua
analogia na Lei de nº 3:

“ECA do B”, por Eliane Brum:

3ª) - Lei Jesus: criança pobre não pode ficar sentada na frente de casa!
O que é que um moleque de 10 anos tem na cabeça pra se sentar no batente da porta de
casa se mora numa das favelas do Complexo do Alemão? Não, sério, me diz. Nada, não
tem nada na cabeça. Ou melhor, não tinha. Agora tem uma bala. Os policiais lá, fazendo
o seu trabalho, que é matar bandido, e o moleque lá, atrapalhando a operação. Aí a mãe,
mais uma tipinha daquelas, começa a berrar com o policial. Se a mulher fica fazendo
arruaça, o agente da lei tem mesmo é de apontar a arma pra ela. Vai aguentar calado, que
nem mulherzinha? Aí a vagabunda grita: “Pode me matar! Pode me matar que você já
acabou com a minha vida!”. Mulher é um bicho histérico mesmo, né? E essas aí, de
254

favela, então, bem mostram que nasceram no esgoto. Sou eu, que tenho cabeça quente, já
dou logo um tiro e aproveito pra enterrar mãe e filho na mesma cova, que o cemitério já
não tá dando mais conta daquela plantação de pretos a meio palmo do chão. Se aquela
uma não estivesse aboletada no sofá vendo televisão, tinha reparado que o filho tava
sentado onde não devia. Ou porta de casa é lugar de uma criança se sentar pra brincar?
Mas não, tá lá, distraída com novela ou alguma outra bobagem, e depois faz aquela
choradeira. “Quando eu vi, uma parte do crânio do meu filho tava na sala”. Se tivesse
cuidado, não estaria, simples assim. Disse que trabalha como doméstica.... Tava fazendo
o que em casa num final de tarde, então? E mais pobre interrompendo o trânsito pra
fazer protesto. Mais direitos humanos enchendo o saco. Esse país tá ficando inviável. Se
eu não fosse tão patriota, ia logo pra Miami e até votava no Donald Trump, um homem
que vai botar as coisas no lugar depois de desinfetar a Casa Branca daquela negrada.
Mas, não, sou do Brasil, com muito orgulho, e vou fazer a minha parte pra varrer essa
pretaiada daqui. Sem contar que, e eu não tenho medo de dizer, eu falo a verdade
mesmo, na cara de quem precisar: se esse moleque não tivesse levado um tiro, mais dois
anos e já era bandido. A mãe falou que queria ser bombeiro. Aham. Dois anos no
máximo e já era aviãozinho. Se ia morrer de qualquer jeito, pelo menos morreu sem ter
feito mal pra nenhum cidadão de bem. Nesse caso não é bala perdida nem achada: é bala
preventiva.
Se esse moleque não tivesse levado um tiro na cabeça, mais dois anos e já era bandido.
Não é bala perdida nem achada: é preventiva.

Uso: A última aplicação conhecida da lei número 3 do ECA do B ocorreu em 2 de abril


de 2015. Eduardo de Jesus Ferreira, 10 anos, foi baleado na cabeça, na porta da sua casa,
no conjunto de favelas do Complexo do Alemão, na zona norte do Rio de Janeiro.

Tá com pena? Leva pra casa!

Passados quase dois anos da CPI, a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ)
realizou a Audiência Pública sobre o Genocídio da população negra e periférica, no dia 13 de
setembro de 2017, época que várias comunidades do Rio de Janeiro viviam uma situação de
muita violência e conflitos entre a polícia e traficantes, convivendo com a suspensão de direitos e
segregação (Manguinhos240, Jacarezinho241, Rocinha242, São Gonçalo243). Por outro lado, tivemos
denúncias do envolvimento de policiais na morte de moradores, corrupção244, favorecimento de

240
Publicado em: https://extra.globo.com/casos-de-policia/guerra-do-rio/mae-nao-aguento-mais-essa-guerra-diz-
menina-de-dez-anos-em-meio-tiroteio-21715038.html , acesso em 17/08/17
241
Publicado em: http://justificando.cartacapital.com.br/2017/08/22/em-manifesto-juristas-denunciam-apartheid-
social-no-jacarezinho/ , acesso em 22/08/17..
242
http://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2017-10-17/um-mes-apos-invasao-da-rocinha-incerteza-quanto-a-paz-na-
favela-ainda-preocupa.html, acesso em 09/17.
243
http://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2017-06-29/policia-realiza-megaoperacao-para-prender-96-pms.html , acesso
em 02/09/17.
244
Publicado em: https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/pm-manda-traficante-roubar-e-assim-ter-dinheiro-para-
a-propina-da-policia.ghtml , acesso em 02/09/17.
255

policiais na invasão de traficantes na Cidade Alta, colocando os traficantes dentro do caveirão245,


dentre outras. O período também foi marcado pela morte de vários policiais no RJ, 102 entre
janeiro e setembro de 2017246.
Vários segmentos de defesa de direitos humanos da sociedade civil e o movimento social
estiveram presentes e representações do poder público, dentre eles Movimento das Mães de
Manguinhos, Movimento Moleque, CEDCA, Rede Rio Criança, Rede Comunidades contra a
violência, Movimento Negro, Ministério Público, Segurança Pública, dentre outros. Foram
aproximadamente 04 horas de audiência, carregada de indignação, protestos, mas também de
muita emoção. A fala emocionada do pai de um dos 05 adolescentes fuzilados com 111 tiros em
Costa Barros247, em novembro de 2015, fez com que a maior parte dos presentes também se
emocionasse...

Figura 10 – 111 Tiros

245
Publicado em: https://extra.globo.com/casos-de-policia/pm-investiga-se-policiais-colocaram-bandidos-em-
caveirao-para-retomar-cidade-alta-21308066.html , acesso em 02/09/17.
246
Publicado em: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/09/1916618-policial-morre-ao-reagir-a-roubo-no-rj-
ja-sao-102-pms-assassinados-neste-ano.shtml , acesso em 20/09/17.
247
Publicado em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/12/mais-de-100-tiros-foram-disparados-por-pms-
envolvidos-em-mortes-no-rio.html , acesso em 29/11/16.
256

4.3.1.2 Audiência Pública Genocídio da população negra e periférica

ALERJ 13/09/17
Realização: Comissões de Segurança Pública, Direitos Humanos, Combate à
Discriminação, Política Urbana.
Deputado Marcelo Freixo (PSOL) – Audiência Pública é para o Estado ouvir. Essa
audiência foi convocada e organizada pelos moradores das favelas. O RJ tem como ponto agudo
a Segurança Pública. A resposta à morte de um policial é a morte de vários moradores? Qual o
protocolo? Temos que criar um protocolo. Não queremos continuar contando corpos! Não é essa
a segurança pública que queremos! Temos que ter escuta a esses moradores, pelos diversos
segmentos.

Deputado Carlos Minc (atualmente sem partido) – Audiência Pública é para se ouvir as
pessoas, mas também para assumir compromissos. No tempo do Marcelo Alencar (1995) havia a
chamada “gratificação faroeste”, que era dada ao policial que matasse mais pessoas (bandidos).
Vimos que o número de mortes pela polícia não eram em confrontos, mas sim em execuções! A
nossa polícia é a que mais mata no mundo, a que mais morre, e aumentam os crimes! Todo o dia
tem um massacre novo: é índio, sem-terra, negros, jovens!

Deputado Zaqueu (PDT) - É uma política de segurança que privilegia o confronto. Tudo
que foi investido em segurança não teve resultado!

Rumba (Movimento das Favelas) - 102 policiais mortos; 57 agentes comunitários mortos;
2.900 pessoas assassinadas no RJ entre Jan e Maio deste ano, segundo o Instituto de Segurança
Pública (ISP). Ainda somos tratados como coisas! Vítimas desse extermínio! Nós não temos
culpa das drogas, das armas que entram em nossas favelas! Cadê os serviços de inteligência?
Existe uma armadilha histórica: Na Ditadura criaram o AI5 para aqueles que eram contra o
regime, a ditadura! Hoje criaram a “associação ao tráfico” para prender e matar os moradores de
favela! Fora UPP! Favela unida jamais será vencida! Existe uma política no Estado de
extermínio! Será que a gente tem que dizer pra eles que dentro da favela não existe violência? A
violência existe quando o braço do Estado entra! Violento é o Estado que não cumpre o ser papel!
257

99% dos moradores da favela são pessoas de bem! R$ 300 mil por semana era pra dar pro
Batalhão de São Gonçalo!

Dra. Lívia Cásseres (Defensoria Pública) – A favela tem sido colocada pelo Estado como
inimigo público! Eles dizem que não vão cumprir a lei porque estamos em estado de guerra!

Ana Paula (Mães do Mov. Manguinhos) – Tivemos nossos filhos arrancados da forma
mais covarde, mais injusta! Nós não precisamos de mais CPIs, mais audiências! Precisamos que
o que foi resultado dessas seja cumprido! Acabaram com nossa família, com nossos filhos! Nós
não vamos mais admitir esses autos de resistência que eles usam para legitimar essas mortes! Nós
queremos que se faça Justiça! Queremos o afastamento desses policiais! Colocar a público quem
são esses policiais envolvidos nos autos de resistência. Não é só a arma que mata nossos filhos! É
também essa mídia corporativista, o Judiciário, o MP! Todas essas instituições também tem que
ser responsabilizadas pelas mortes nas favelas!

Sr. Jorge (emocionado, pai do um dos 05 adolescentes mortos com 111 tiros, em Costa
Barros, em 2015) – Cinco jovens foram executados! Meu filho, 16 anos, foi executado com mais
de 111 tiros! Essa dor não passa nunca! A gente não consegue esquecer! Todos são iguais perante
a lei... Mas, que lei é essa?! Perdi um filho de forma covarde! 16 anos, no primeiro emprego....
Eu não desejo isso a ninguém. Inverteram o valor da vida.... Eu com 50 anos perdi meu filho com
16 anos... É uma dor que não desejo a ninguém!

Dolores (Mov. Mulheres Negras) – Antes do genocídio da população negra, mataram a


sua alma! Sociedade racista que projetou seu projeto de poder, que em 2010 eles não existiriam
mais! Isso tem sido processado há anos! Precisamos repensar esse projeto que foi arquitetado
para essa população que tem cor. Considerando que o meu povo foi retirado de seu lugar sem ser
consultado, isso não é questão de intolerância religiosa, é extermínio de uma raça!
Mov. Pop. Manguinhos –Temos casos de morte indireta, ou seja, pessoas que morrem de
infarto, depressão, devido aos homicídios nas favelas e incursões policiais! Em 11 tipos de
violência / morte pelo impacto da violência nas favelas, o adoecimento psíquico foi o maior
deles.
258

Cel PM Anderson – A cada 03 mortes de policiais no Brasil, 01 é no RJ. Por que estamos
vivendo esse recrudescimento? As intervenções policiais nas comunidades até que ponto estão
valendo a pena? Acho que o caminho é observar para onde estamos indo realmente com esse
derramamento de sangue? Como mudar esse quadro? Podemos construir um novo caminho, novo
processo. Temos que apresentar soluções. A corporação está preocupada com esse derramamento
de sangue. Temos que servir e proteger! (Missão PM)

Paulo Roberto (MP) – É difícil falar como órgão de um Estado que até hoje não
reconheceu sua dívida com o povo negro! Um Estado que ainda vê o negro e a negra como
elementos indesejáveis! Que só são desejáveis enquanto úteis com sua mão de obra, e mantendo
seus corpos dóceis. O MP, através do GAEP, denunciou 64 policiais, destes, 39 estão afastados e
09 presos. Vivemos um problema que é estrutural e generalizado.

Deputado Paulo Ramos (PSOL – atualmente sem partido) – A polícia é deliberadamente


racista. Ela não se fundamenta no controle da criminalidade. Ela se fundamenta na eliminação do
inimigo! Ela é racista, discriminatória, exige rótulos falsos. Não é polícia pacificadora; ela faz o
uso da força! Os altos de resistência não refletem a letalidade. A realidade é muito maior. (...) A
mentalidade do BOPE é a do extermínio, tanto que o símbolo é uma caveira! Quantos chefes,
comandantes da PM, comentaristas, vieram do Bope? Esse modelo que está aí não pode ser
aperfeiçoado! Ele tem que ser substituído!

O filho do Sr. Jorge foi um dos 05 adolescentes e jovens executados com 111 tiros (!) na
chacina de Costa Barros, ocorrida no dia 28 de novembro de 2015, zona norte, periférica, da
cidade do Rio de Janeiro. Foram 81 tiros de fuzil e 30 de pistolas! Os 05 jovens, todos negros e
pobres, tinham saído de carro para fazer um lanche, e, quando abordados por uma blitz, foram
fuzilados pelos policiais.
Átila Roque, diretor da Anistia Internacional, no artigo “Segurança pública, racismo e a
construção dos sujeitos ‘matáveis’”248, comenta a execução dos cinco adolescentes em Costa
Barros, e demonstra que a discussão vai além de ser um perfil, mas da “vida descartável”:

248
Disponível em http://bit.ly/28VBsob Acesso Jan/2016.
259

A geografia segregada das cidades, a impunidade que prevalece em homicídios


cometidos por policiais e a política de segurança focada na guerra e no enfrentamento
armado do tráfico suspendem na prática o estado de direito e instalam o estado de
exceção em certas áreas das cidades, sinalizando com uma autorização tácita para a
execução dos “elementos suspeitos”. Uma seletividade perversa que torna alguns
sujeitos matáveis, sem que sintamos qualquer horror ou responsabilidade em relação a
isso.

Segundo o Instituto de Segurança Pública - ISP, órgão subordinado à Secretaria de


Segurança Pública do Rio de Janeiro, das 644 pessoas mortas em confronto (sic)249, com a polícia
no estado do Rio de janeiro em 2015, 497 (77,2%), são negros ou pardos. O negro possui 147%
mais chances de morrer por homicídios, em relação aos indivíduos não negros. Segundo o Atlas
da Violência 2016, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (IPEA), no Brasil,
os jovens entre 15 e 29 anos, são as maiores vítimas dos homicídios.

Bandido bom é bandido morto! E enterrado em pé pra ocupar pouco espaço! (Deputado
Policial Sivuca)

4.3.2 Terrorismo de Estado - Marcas da Violência Policial

O relatório “Você matou meu filho” – Homicídios cometidos pela polícia do Rio de
Janeiro- foi lançado pela Anistia Internacional em agosto de 2015250. De acordo com o estudo, a
imagem negativa associada à juventude, em especial dos jovens negros que vivem em favelas,
leva para "a banalização e a naturalização da violência". O documento aponta que as políticas de
segurança pública no Brasil são marcadas por operações policiais repressivas em áreas pobres e,
com frequência, com o uso de força letal, como em casos de pessoas suspeitas de envolvimento
com grupos criminosos. "É uma prática recorrente, nestes casos, o desmonte da cena. Raramente
tem perícia feita no momento em que as mortes ocorrem. O que temos com mais frequência é que
rapidamente a polícia isola a área, retira o corpo e pronto", disse o diretor-executivo da Anistia

249
Sabe-se que essa dominação “confronto”, não se aplica em todos os casos de mortes vítimas da violência policial.
250
Ver: https://anistia.org.br/direitos-humanos/publicacoes/voce-matou-meu-filho/. Acessado em agosto de 2015.
260

Internacional Brasil, Átila Roque, em entrevista à Agência Brasil251. O referido relatório se baseia
em uma série de homicídios praticados por policiais militares nos anos de 2014-2015 na cidade
do Rio de Janeiro, em especial na favela de Acari. De acordo com o os dados, das 1.275 vítimas
de homicídios decorrentes de intervenções policiais em 2010 a 2013 na cidade do Rio de Janeiro,
95,5% eram homens, 79% eram negros e 75% tinha entre 15 e 29 anos de idade. E, no RJ, apenas
7,8 dos homicídios são investigados. Para a Anistia Internacional, o Brasil tem a polícia que mais
mata no mundo.
De acordo com o relatório, em 2014, 15,6% dos homicídios tinham um policial envolvido.
O relatório apresenta um levantamento que se concentrou na Zona Norte do Rio de Janeiro, que
inclui a Favela de Acari. Entre as vítimas da violência policial no Rio, entre 2010 e 2013, 99,5%
eram homens. Quase 80% das vítimas eram negras e três em cada quatro, 75%, tinham idades
entre 15 e 29 anos.
Diante de gravidade da situação, a Anistia Internacional lançou a campanha “Queremos
nossos Jovens Vivos252”, em novembro de 2015, na qual inclui as taxas de homicídio de jovens
no Brasil, e a produção e divulgação de vídeos, que foram veiculados no site da Anistia e
compartilhados nas redes sociais. Dados da Campanha: veja as taxas de homicídios de jovens no
Brasil.

251
Publicado em: http://www.ebc.com.br/cidadania/2015/08/anistia-internacional-aponta-violencia-policial-no-rio-
de-janeiro.
252
Publicado em: https://anistia.org.br/noticias/dados-da-campanha-veja-taxas-de-homicidio-de-jovens-brasil/
261

Figura 11 – Homicídios de jovens no Brasil


262

Dados da campanha: Veja as taxas de homicídio por raça/cor no Brasil

Figura 12 – A cor dos homicídios


263

Audiência Pública sobre as Execuções extrajudiciais por policiais na cidade do RJ foi


realizada no dia 31/08/15, na ALERJ. Presidida pela Comissão de Direitos Humanos, a audiência
teve o objetivo de discutir o alto índice de violência e homicídios praticados por policiais, de
acordo com Relatório da Anistia Internacional – “Você Matou meu filho!” A pesquisa conclui
que a Polícia Militar tem usado a força de forma desnecessária, excessiva e arbitrária,
desrespeitando normas e protocolos internacionais sobre o uso da força e armas de fogo. Isso
resulta em diversas violações dos direitos humanos e em um número elevado de vítimas fatais,
que são em sua maioria homens jovens e negros. A Anistia estima que, em média, nos últimos
cinco anos, os homicídios decorrentes de intervenção policial responderam por cerca de 16% dos
homicídios registrados na cidade do Rio de Janeiro. Foram levantados dados que mostram que do
total de 220 registros de homicídios decorrentes de intervenção policial na cidade do Rio de
Janeiro em 2011, até abril de 2015, mais de 80% dos casos permaneciam com a investigação em
aberto e apenas um deles foi denunciado à justiça pelo Ministério Público. A pesquisa também
revela que a sistemática não investigação e consequente impunidade dos casos assim registrados
fazem com que policiais militares usem este registro administrativo como forma de encobrir a
prática de execuções extrajudiciais. As estatísticas trazidas na pesquisa mostram que o perfil das
vítimas de homicídios decorrentes de intervenção policial na cidade do Rio de Janeiro segue o
padrão do perfil da vítima de homicídios em geral no país. Das vítimas de homicídios decorrentes
de intervenção policial entre 2010 e 2013 na cidade do Rio de Janeiro, 99,5% são homens, 79%
são negros e 75% tem idade entre 15 e 29 anos, perfil semelhante ao das vítimas de homicídio em
geral.
O cenário de violação de direitos no Rio de Janeiro, ao longo da história da cidade, só
corrobora com o agravamento da violência urbana, na qual várias crianças e adolescentes têm
sido vítimas de homicídios causados por intervenção policial ou bala perdida, em decorrência de
confrontos nas favelas da polícia com traficantes. Não que isso fosse algo atípico, mas alguns
casos e situações tiveram uma grande repercussão na mídia e, mais recentemente, também nas
redes sociais.
264

Figura 13 – Letalidade e violência policial

A letalidade policial cresceu 78% no RJ nos meses que antecederam as Olimpíadas Rio
2016. Os dados são do Instituto de Segurança Pública. Entre os meses de fevereiro e maio, o
número de mortes por ação policial no Rio de Janeiro cresceu de 47 para 84 mortes. Em maio, a
polícia matou uma pessoa a cada 9 horas253. Veja abaixo o gráfico 4:

Gráfico 4 – Homicídios decorrentes de intervenção policial (2016)

Mortes por ação policial no período de fevereiro a maio de 2016, em preparação para as
olimpíadas. Dados: Instituto de Segurança Pública

253
Publicado em: http://midiacoletiva.org/letalidade-policial-cresce-78-no-rio-antes-das-olimpiadas/ , acesso em
julho/17.
265

O Rio de Janeiro teve quase 4 mil homicídios decorrentes de intervenção policial entre
2010 e 2016. A disparada dos indicadores de violência no Estado do Rio em 2016 tem nos
homicídios decorrentes de intervenção policial alguns de seus números alarmantes. Em 2016,
entre janeiro e agosto, foram mais de 544. O número é 18% maior do que a quantidade de casos
no mesmo período de 2015, quando foram computados 459 casos254. Veja gráfico 5 abaixo.

Gráfico 5 – Mortes em intervenção policial

O Jornal Globo publicou uma série de reportagens sobre a violência no RJ, no período
entre a o final da década de 1980 até 2017. Destaco 02 delas por retratarem casos exemplares de
mortes por intervenção policial e balas perdidas que tiveram destaque na mídia e que acompanhei
ao longo da elaboração dessa tese, especialmente os casos de homicídios compreendidos entre
2015, 2016 e 2017. A primeira delas foi publicada no dia 28/11/16, intitulada “Mortes
provocadas por policiais, e 10 casos de violência que chocaram o Rio255”, devido à grande
incidência de mortes provocadas pela intervenção policial, chegando ao número alarmante de 9
mil pessoas mortas por policiais entre 2005 e 2015 no RJ. A reportagem destaca as Chacinas da
Candelária, Vigário Geral e Baixada, o caso Amarildo, bem como homicídios, especialmente de

254
Publicado em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2016/10/rio-soma-quase-4-mil-homicidios-por-
intervencao-policial-entre-2010-e-2016.html , acesso em
255
Publicado em: http://acervo.oglobo.globo.com/em-destaque/mortes-provocadas-por-policiais-10-casos-de-
violencia-que-chocaram-rio-19654901 , acesso em 28/09/17.
266

crianças e adolescentes, que tiveram grande repercussão nacional e internacional. Segue a


reportagem abaixo.

Mata-se muito no Brasil. O país é líder em número de homicídios no mundo: mais de 59


mil pessoas foram mortas em 2014, segundo o 9º Anuário Brasileiro de Segurança
Pública, publicação elaborada pelo Fórum de Segurança Pública. As estatísticas
relacionadas à letalidade policial também não são animadoras: as mortes decorrentes de
intervenção policial já são a segunda causa de mortes violentas intencionais no país. Por
intervenção policial compreendem-se os registros de óbitos provocados por policiais em
serviços e justificadas com base na legítima defesa, antes conhecidos como autos de
resistência.
A polícia do Rio de Janeiro é a mais letal do país. Em 2014, de cada cem mil habitantes
do estado, 3,5 morreram por ação dos agentes de segurança. Entre 2005 e 2015, foram
registrados 9.111 homicídios decorrentes de intervenção policial no estado, sendo mais
da metade somente na capital. Segundo relatório divulgado pela ONG Human Rights
Watch, para cada policial morto em serviço no Rio de Janeiro, em 2015, a polícia matou
24,8 pessoas, mais que o dobro do que na África do Sul e três vezes a média dos EUA. O
estudo indica ainda que, em 2016, entre os meses de janeiro e maio, já foram registrados
322 homicídios cometidos por policiais militares no estado.
A lógica da guerra ao tráfico de drogas sustenta operações policiais altamente
militarizadas que têm como consequência um número elevado de mortes, tanto de civis
como de agentes de segurança em serviço. A experiência recente das Unidades de
Polícia Pacificadoras (UPP), cujo objetivo é combater o controle armado de
determinadas áreas da cidade, contribuiu para a diminuição do número de homicídios
nos locais em que foram implantadas, mas não impediram abusos. O desaparecimento de
Amarildo de Souza na Favela da Rocinha, em São Conrado, Zona Sul carioca, ocupada
em 2012, é um exemplo. O caso tornou-se símbolo dos abusos praticados por forças
policiais.
A ação de grupos de extermínio caracteriza outra vertente do desvio de conduta policial.
Segundo o relatório "Você matou meu filho", da Anistia Internacional, esses grupos são,
em sua maioria, formados por policiais civis e militares na ativa, ex-agentes que foram
expulsos da corporação e aposentados. Atuam no sentido de realizar uma "higiene
social", eliminando criminosos ou grupos classificados como indesejáveis por
comerciantes, empresários ou políticos. Em 1993, em Vigário Geral, 21 pessoas foram
mortas por policiais militares integrantes do grupo de extermínio Cavalos Corredores.
Episódios de violência policial evidenciam abusos e despreparo dos agentes
responsáveis por fazer cumprir a lei e proteger a sociedade. Abaixo, dez casos noticiados
no GLOBO, nos últimos 30 anos, que chocaram a população do Rio:
1) MARCELLUS GORDILHO - O estudante de Educação Física e professor de natação
Marcellus Gordilho Ribas, de 24 anos, foi morto por cinco policiais militares após ter
resistido a prisão na Cidade de Deus, em Jacarepaguá, em 17 de março de 1987.
2) CHACINA DA CANDELÁRIA - Quatro homens em dois carros atiraram contra mais
de 40 crianças e adolescentes que dormiam nos arredores da Igreja da Candelária, no
Centro do Rio, matando seis menores – com idades entre 11 e 17 anos – e dois adultos,
na madrugada de 23 de julho de 1993. O caso chocou o Brasil e estampou capas de
jornais ao redor do mundo. Segundo investigações, a chacina se dera em represália a
uma ação de meninos de rua na véspera. Quando um de seus companheiros foi detido
por policiais, os menores reagiram quebrando uma das janelas da viatura com uma
pedra. O policial militar Marcus Vinícius Emmanuel Borges, mentor da chacina, ficou
levemente ferido. Wagner, um lavador de carros, foi baleado quatro vezes, mas
sobreviveu ao massacre, tornando-se a testemunha-chave do caso. Borges e mais seis
homens (entre eles, dois policiais militares na ativa e um ex-PM expulso da corporação)
foram indiciados. Apenas três foram condenados. Todos já se encontram em liberdade.
267

3) CHACINA DE VIGÁRIO GERAL - Na noite de 29 de agosto de 1993, a favela de


Vigário Geral foi invadida por cerca de 50 homens encapuzados e armados. Vinham
com fuzis, metralhadoras e desejo de vingança. Na véspera, quatro policiais militares
haviam sido assassinados por seguranças de Flávio Negão, que comandava o tráfico da
favela na época. Quando entraram na favela por três pontos diferentes, o bando –
policiais militares integrantes do grupo de extermínio Cavalos Corredores – tinha com
alvo a quadrilha do traficante. Cortaram linhas de telefone e apagaram lâmpadas a tiros.
Ao saírem a favela, duas horas depois, deixaram um rastro de sangue inocente: 21
pessoas fuziladas. Ao todo, 52 pessoas foram denunciadas: 47 policiais militares, três
policiais civis e dois informantes. Sete foram a julgamento e apenas um segue preso.
4) CHACINA DA BAIXADA - Na noite de 31 de março 2005, um grupo de policias
militares insatisfeitos com as medidas rigorosas impostas pelo comando do 15º BPM
(Duque de Caxias) assassinou 29 pessoas nos municípios de Queimados e Nova Iguaçu,
no episódio que ficou conhecido como Chacina da Baixada Fluminense. Durante a ação,
que ocorreu em 11 lugares diferentes numa extensão de 15 quilômetros, foram mortos
trabalhadores, estudantes e crianças. O estopim para a chacina ocorrera dois dias antes,
quando oito PMs acusados de matar duas pessoas e jogar a cabeça de uma delas no pátio
do batalhão foram presos. O Ministério Público denunciou 11 agentes por participação
na chacina, mas apenas cinco foram condenados.
5) CASO AMARILDO - Em 14 de julho de 2013, Amarildo de Souza foi visto pela
última vez ao ser conduzido por policiais militares até uma viatura, na favela da
Rocinha, em São Conrado, Zona Sul do Rio. Investigações revelaram que o ajudante de
pedreiro foi torturado e morto por policiais da Unidade de Polícia Pacificadora (UPP) da
comunidade, que acreditavam que ele tinha informações sobre o paradeiro de armas e
drogas guardadas por traficantes. O desaparecimento do morador em uma comunidade
ocupada repercutiu na imprensa e nas grandes manifestações que ocorreram naquele ano.
O corpo de Amarildo nunca foi encontrado. Vinte e cinco PMs respondem
criminalmente pelo caso, entre eles o major Edson Raimundo dos Santos, ex-
comandante da UPP do local.
6) ARRASTADA POR UMA VIATURA - Em 16 de março de 2014, Cláudia Silva
Ferreira foi morta durante uma operação policial na comunidade do Congonha, em
Madureira. O caso ganhou notoriedade quando foi divulgado um vídeo que mostrava o
corpo de Cláudia sendo arrastado por um trecho de 300 metros por uma viatura policial
na Estrada Intendente Magalhães, em Marechal Hermes. Alertados por pedestres e
motoristas, os policiais militares só pararam em um sinal de trânsito. Segundo os PMs, a
auxiliar de serviços gerais foi atingida durante um ataque de 15 bandidos ao comboio
policial. Ao fim do confronto, os policiais teriam socorrido a mulher, transportando-a no
porta-malas até o hospital. Moradores, no entanto, relatam não ter havido confronto e
afirmam que Cláudia foi assassinada pelos PMs, que acreditavam que ela tivesse
envolvimento com o tráfico. A cena de Cláudia sendo arrastada foi exibida pelos
principais canais de TV e repercutiu no mundo inteiro. Seis policiais foram indiciados,
mas, dois anos após o crime, nenhum ainda foi julgado.
7) RENDIDOS E EXECUTADOS - Os cabos Fábio Magalhães Ferreira e Vinícius Lima
Vieira foram presos acusados de executar o menor Mateus Alves dos Santos, de 14 anos,
no Morro do Sumaré, em 11 de junho de 2014. Um outro menor, de 15 anos, também
capturado pelos PMs, foi baleado duas vezes, fingiu-se de morto e sobreviveu. Os
adolescentes seriam suspeitos de roubos na região da Avenida Presidente Vargas. A ação
dos policiais foi gravada por duas câmeras instaladas na viatura. A filmagem e o
testemunho do menor que sobreviveu foram fundamentais para a incriminação dos
agentes, que serão julgados pelo júri popular por homicídio duplamente qualificado. Em
outro flagrante, em 29 de setembro de 2015, cinco PMs foram filmados por uma
moradora forjando um auto de resistência no Morro da Providência, uma das
comunidades pacificadas da cidade. Nas imagens, é possível ver os policiais atirando em
Eduardo Felipe Santos Victor, de 17 anos, que estava deitado no chão, rendido. Em
seguida, um dos agentes atira para o alto e depois coloca a arma na mão do menor, a fim
268

de simular um confronto. No último dia 30, foram revogadas as prisões preventivas dos
cinco PMs sob a alegação de que não representariam perigo à população.
8) INFÂNCIA PERDIDA – Herinaldo Vinícius de Santana, de 11 anos, morreu após ser
baleado na comunidade Parque Alegria, no Complexo do Caju em 24 de setembro de
2015. Segundo uma testemunha, um grupo de policiais da UPP da comunidade fazia
uma ronda quando um deles disparou ao se assustar com a criança, que vinha correndo
comprar uma bola de pingue-pongue. Cinco PMs foram afastados e um inquérito para
apurar as circunstâncias da morte de Herinaldo foi instaurado. Em junho de 2011, o
menino Juan Moraes, de 11 anos, desapareceu após um suposto confronto entre policiais
do 20º BPM (Mesquita) e traficantes da Favela Danon, em Nova Iguaçu. Seu corpo só
apareceu dez dias depois, em um rio da região. O inquérito policial concluiu que Juan foi
morto por PMs durante uma operação policial e que não houve troca de tiros com
bandidos, como afirmavam os agentes. Quatro policiais foram condenados pelo crime
em 2013.
9) CONFUNDIDOS COM BANDIDOS – Jorge Lucas Paes, de 17 anos, e Thiago
Guimarães, de 24, foram mortos na Pavuna, no dia 29 de outubro de 2015, após um
sargento da Polícia Militar confundir o macaco hidráulico que um deles carregava com
uma arma. O tiro atingiu os dois amigos, que vinham em uma moto. Eles perderam o
controle do veículo e bateram em um muro. O comandante do 41º BPM (Irajá), onde o
sargento servia, admitiu que o agente errou ao atirar.
10) CHACINA EM COSTA BARROS - Na noite de 28 de novembro de 2015, cinco
jovens morreram quando o carro em que se encontravam foi alvo de inúmeros disparos
em Costa Barros, subúrbio do Rio. Os cinco amigos voltavam para casa após uma
comemoração no Parque Madureira, Zona Norte da cidade, quando foram abordados por
quatro policiais militares do 41º BPM (Irajá). Rendidos e desarmados, foram executados
com 81 tiros de fuzil. Após a ação, os PMs adulteraram a cena do crime, plantando uma
arma dentro do automóvel com o objetivo de simular um confronto. Foram presos em
flagrante e denunciados por homicídio doloso e fraude processual. O secretário de
Segurança do Rio, José Mariano Beltrame, classificou a ação como indefensável. Em 21
de junho de 2016, o STJ concedeu habeas corpus aos PMs. No dia 1 de dezembro de
2015, O GLOBO noticiava que o batalhão responsável pela execução dos jovens totaliza
13% das mortes em operação no Estado do Rio.

A segunda reportagem, intitulada “Mortes de crianças por balas perdidas no Rio: casos
que chocaram os cariocas256”, foi publicada em 01/09/17, na qual destaca que a faixa etária de 0
a 19 anos representa 30% das vítimas de balas perdidas no estado do RJ, e que entre 2015 e 2017,
18 crianças morreram tragicamente. Segue a 2ª reportagem:

O alto índice de vítimas de balas perdidas se tornou um dos retratos da realidade de


violência urbana vivida pelo Brasil nas últimas décadas. No ranking da ONU, o país
ocupa o segundo lugar em número de vítimas na América Latina, atrás apenas da
Venezuela. O Rio de Janeiro, por sua vez, é o estado que registra o maior número de
casos, com cerca de 45% das ocorrências, como demonstrou um levantamento realizado
pelo portal G1, em 2015. (...).
Segundo uma pesquisa realizada pelo jornal “Extra”, entre janeiro de 2014 e junho de
2015, o perfil etário de crianças e adolescentes (entre 0 e 19 anos) concentra o maior
número de vítimas de balas perdidas no Estado do Rio, com cerca de 30% dos atingidos.
Outro levantamento, promovido pela ONG Rio de Paz, noticiado pelo GLOBO em 23 de

256
Publicada em: http://acervo.oglobo.globo.com/em-destaque/mortes-de-criancas-por-balas-perdidas-no-rio-casos-
que-chocaram-os-cariocas-20819049#ixzz4wk5DjvwG , acesso em 02/09/17
269

janeiro de 2017, demonstrou que, desde 2007, 31 crianças e adolescentes (de 0 a 14


anos) se tornaram vítimas fatais de balas perdidas, sendo que 18 delas morreram entre
janeiro de 2015 e janeiro de 2017.
O alto número de vítimas de balas perdidas se deve principalmente aos constantes
confrontos entre organizações criminosas e entre criminosos e policiais em comunidades
dominadas pelo tráfico, com uso de armas potentes e de longo alcance. Mais de 80% dos
casos se devem a confrontos armados, que não raramente também tem o asfalto como
palco. Das 18 crianças que morreram por balas perdidas entre janeiro de 2015 e janeiro
de 2017, oito foram atingidas em favelas com UPPs.
A seguir, 10 casos trágicos de mortes de crianças e adolescentes por balas perdidas no
Rio de Janeiro, conforme retratados nas páginas do GLOBO :
1) FERNANDA - No final de 1989, a menina Fernanda Carracellas, de 3 anos, foi
atingida com um tiro na cabeça enquanto brincava no pátio de uma creche, em Vila
Isabel. O caso comoveu a opinião pública e foi um dos primeiros de uma série trágica,
que registrou vários casos na década de 90.
2) GABRIELA - Em março de 2003, a estudante Gabriela do Prado Maia Ribeiro, de 14
anos, morreu ao ser atingida na estação do metrô de São Francisco Xavier, na Tijuca,
após tiroteio entre um policial e bandidos que assaltavam a bilheteria do local. (...).
3) LOHAN, GUILHERME E RENAN - Em 2006, num período de apenas 15 dias, três
crianças foram vítimas fatais de balas perdidas. Em 16 de setembro, o menino Lohan, de
9 anos, morreu com um tiro de fuzil no rosto durante um confronto entre traficantes e
policiais no Morro do Borel, na Tijuca. Cinco dias depois, Guilherme, de 8 anos, foi
atingido na barriga também em meio ao fogo cruzado entre a polícia e traficantes, na
favela Guarabu, na Ilha do Governador. Por fim, no primeiro dia de outubro, uma ação
da polícia na Favela Nova Holanda, no Complexo da Maré, terminou com a morte do
menino Renan, de 3 anos. O pequeno estava com a avó numa rua da comunidade quando
levou um tiro de fuzil no abdômen. Ele chegou a ser levado para o Hospital Geral de
Bonsucesso, mas não resistiu aos ferimentos.
4) ALANA - Em março de 2007, a menina Alana Ezequiel, de 13 anos, ficou no meio do
fogo cruzado entre policiais e traficantes num dos acessos ao Morro dos Macacos, em
Vila Isabel. Alana, que voltava para casa após deixar a irmã caçula na creche, foi
atingida na região lombar e chegou a ser levada ao Hospital do Andaraí, mas morreu no
centro cirúrgico. Durante o enterro da filha, um repórter do GLOBO indagou-lhe sobre o
maior sonho de sua filha e ela respondeu: "Moço, quem mora no morro não tem sonho".
5) WESLEY - Em 2010, foi a vez do menino Wesley, de 11 anos, se tornar mais uma
vítima fatal, ao levar um tiro no peito dentro da sala de aula de uma escola municipal,
em Costa Barros. Dias antes, Wesley foi personagem de uma série de reportagens do
GLOBO que traçou o perfil de estudantes que vivem em comunidades com altos índices
de violência. Na série "O x da questão: Rascunhos do futuro", o menino revelou em
questionário que seu maior temor no dia-a-dia eram os tiros ocorridos no local.
6) ADRIELLY - Na noite de Natal de 2012, a menina Adrielly dos Santos Vieira, de 10
anos, foi atingida na cabeça por uma bala perdida no portão de casa, na Rua Amália,
próximo à comunidade Urubuzinho, no bairro de Piedade. Em busca de assistência, a
família conduziu Adrielly ao Hospital Municipal Salgado Filho. Porém, o atendimento
por um neurocirurgião só foi realizado cerca de oito horas depois, (...). Adrielly foi
submetida a delicada cirurgia, mas não resistiu e teve morte cerebral cinco dias depois.
7) KAYO - No final de 2013, a morte de outro menino, Kayo, de 8 anos, provocou forte
comoção. Kayo seguia para um treino na escolinha de futsal, ao lado da avó, quando foi
atingido por um tiro proveniente de tiroteio entre policiais e criminosos que tentavam
resgatar comparsas no fórum de Bangu, na Zona Oeste.
8) LARISSA e ASAFE – Em janeiro de 2015, Larissa de Carvalho, de 4 anos, tornou-se
mais uma vítima fatal de bala perdida. A menina foi baleada na cabeça quando estava
com seus pais numa esquina do bairro, em área próxima a local de confronto armado
constante. Ainda abalada pela tragédia, a cidade recebeu, um dia depois, a notícia sobre
a morte do menino Asafe William Costa, de 9 anos, que foi atingido no olho quando saía
270

da piscina do Sesi de Honório Gurgel, clube localizado em área vizinha aos Complexos
do Chapadão e da Pedreira, dominados por facções rivais.
9) RYAN - Na noite de 27 de março de 2016, domingo de Páscoa, foi a vez do menino
Ryan, também de 4 anos, ser atingido e morto quando brincava na porta da casa dos avós
numa rua próxima à favela do Cajueiro, em Madureira. Na época, foi levantada a
hipótese de homicídio por vingança, uma vez que o menino era filho de um dos chefes
do tráfico da comunidade. No entanto, a polícia concluiu que Ryan foi vítima de tiroteio
ocorrido durante um ataque de traficantes da Serrinha ao local.
10) SOFIA – Em janeiro de 2017, Sofia Lara Braga, de 2 anos, morreu vítima de bala
perdida, dentro de uma lanchonete, em Irajá. A menina brincava no parquinho do
estabelecimento, ao lado pai, quando policiais militares e um bandido passaram pelo
local trocando tiros. Um dos disparos atingiu o rosto de Sofia, que chegou a ser levada
pelos PMs ao Hospital estadual Getúlio Vargas, na Penha, mas não resistiu aos
ferimentos.
11) FERNANDA ADRIANA - Na noite de 15 de junho de 2017, a menina Fernanda
Adriana Caparica Pinheiro, de 7 anos, morreu após ser atingida por uma bala perdida no
Parque União, Complexo da Maré, Zona Norte do Rio. Ferida em um dos ombros, ela
foi socorrida por moradores e levada para o Hospital Geral de Bonsucesso, mas não
resistiu aos ferimentos. De acordo com a Polícia Militar, o tiroteio no local teria sido
protagonizado por criminosos de facções rivais.
12) MARIA EDUARDA - Em 30 de março de 2017, a adolescente Maria Eduarda Alves
da Conceição, de 13 anos, foi morta após ser atingida por um tiro de fuzil dentro da
Escola Municipal Daniel Piza, em Acari, durante confronto entre policiais e traficantes.
Manifestantes fizeram um protesto violento na Avenida Brasil, incendiando caçambas de
lixo e interditando a via nos dois sentidos. No mesmo dia, um vídeo gravado por um
morador da área mostrou o momento em que dois policiais teriam executado dois
bandidos que estavam baleados em frente à escola. Identificados, o sargento David
Gomes Centeno e o cabo Fábio de Barros Dias, foram indiciados por homicídio
qualificado, presos, e também investigados pela morte da estudante.
13) VANESSA - Na tarde de 5 de julho de 2017, a menina Vanessa Vitória dos Santos,
de 10 anos, aluna do 6º ano, que havia acabado de chegar da escola, foi atingida por um
tiro dentro de casa, na comunidade Camarista Méier, no Complexo do Lins, na Zona
Norte do Rio. Baleada na cabeça, ela morreu antes mesmo de chegar ao Hospital
Salgado Filho. Segundo a PM, o tiroteio que vitimou a menina teve início quando uma
equipe da UPP do local foi atacada por criminosos.
14) ARTHUR - Em 30 de junho de 2017, na Favela do Lixão, em Duque de Caxias, a
gestante Claudineia dos Santos, grávida de 9 meses, foi baleada quando deixava um
mercado. Os dois tiros que a atingiram vieram de confronto traficantes e PMs e também
deixaram ferido, dentro de sua barriga, o bebê Arthur. O menino nasceu numa cesariana
de emergência e ficou internado no Hospital Adão Pereira Nunes em estado gravíssimo,
com lesão no tórax, fratura de clavícula e traumatismo craniano. Exatamente um mês
depois, ele não resistiu e morreu.

A Defensora Pública Eufrásia Souza, que coordenou a Coordenadoria de Defesa dos


Direitos da Criança e do Adolescente (CDEDICA) no período de 2014 a início de 2017, destacou
casos de homicídio de crianças e adolescentes no Estado do RJ, causados por intervenção policial
e bala perdida que passaram pela CDEDICA, entre os anos de 2015 e início de 2017, alguns
destes não incluídos na reportagem de o Globo:
11/01/15 – PATRICK FERREIRA DE QUEIROZ, 11 anos de idade, morto na favela
Camarista Méier (uma semana antes levado para delegacia policial, por alegação de participação
271

no tráfico; sem estudar desde agosto de 2014, de acordo com a Secretaria Municipal de
Educação, após solicitação da CDEDICA, sem notícia de encaminhamento da evasão escolar ao
Conselho Tutelar da área para aplicação de medidas protetivas).
21/02/15 – ALAN DE SOUZA LIMA, 15 anos, morador da Palmeirinha, em Duque de
Caxias, estava com outros 02 amigos e foram alvejados pela polícia. O celular gravou a sua
própria morte e impediu que a polícia descaracterizasse a cena do crime e fizesse a alegação de
que o adolescente estaria portando arma. Os amigos sobreviveram.
02/04/15 – EDUARDO DE JESUS, 10 anos de idade, vítima de disparo feito por policial
no Complexo do Alemão, tendo o Ministério Público do Estado denunciado o PM, a despeito da
conclusão do inquérito policial, que alegou que o menino portava arma. O caso foi acompanhado
pelo Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública, que atendeu a família e fez tratativas
com o estado do Rio de Janeiro para pagamento de indenização aos pais.
08/09/15 – CHRISTIAN SOARES DE ANDRADE, 13 anos, morto quando estava
jogando futebol no momento da troca de tiros entre policiais da Core e traficantes, em
Manguinhos, Zona Norte do Rio.
23/09/15 – HERINALDO VINICIUS SANTANA, 11 anos, morto com um tiro no peito,
por um policial da UPP que se assustou com a criança correndo, na comunidade Parque Alegria,
no Complexo do Caju, zona portuária do Rio de Janeiro.
28/11 – JEFERSON ASSIS DO NASCIMENTO, 16 anos, morto no Morro da
Providência, conforme notícia do jornal O Dia de 29 de novembro com o título “Menor morre
após ser baleado durante troca de tiros no Morro da Providência257”.
28/11/15 – Cinco adolescentes e jovens foram mortos a tiros de fuzil e pistola disparados
por policiais militares em Costa Barros, noite de sábado: BETO, CARLOS, CLEITON,
WESLEY e WILTON, moradores do Morro da Lagartixa, no Complexo da Pedreira, subúrbio do
Rio de Janeiro, foram ao Parque de Madureira, Zona Norte, comemorar o primeiro salário de
Beto, contratado como jovem aprendiz pelo Atacadão da Avenida Brasil. Perto das 23h, já de
volta, no carro Fiat Pálio branco, dirigido por Wilton, os meninos decidiram parar numa
lanchonete da Estrada João Paulo, que cruza a Avenida Brasil, perto do Morro da Lagartixa. Sem
qualquer chance de defesa foram fuzilados por 04 policiais militares, que dispararam contra o

257
http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2015-11-28/menor-e-baleado-durante-troca-de-tiros-no-morro-da-
providencia.html , acesso em novembro 2015.
272

veículo 81 tiros de fuzil e 30 de pistola. O triste episódio ficou conhecido como “execução de 05
jovens com 111 tiros”.
29/12/15 - WESLEY DANIEL SANTOS OLIVEIRA, 17 anos foi atingido por três tiros
— na cabeça, no rosto e no peito, quando saia da igreja na comunidade do Jacarezinho, na zona
norte do Rio de Janeiro, de 17 anos, O rapaz foi surpreendido em tiroteio que acontecia entre
policiais militares da UPP e traficantes de drogas.

ECA do B, por Eliane Brum:

4ª) Lei Alan: adolescente pobre não pode brincar com celular
Esse aí é outro caso de óbvio ululante. Mas como a gente precisa explicar tudo, vamos
lá. Três moleques brincando com um celular numa favela, em cima de bicicletas. O que
um policial pensa? Tão fazendo coisa errada, claro. Com certeza as bicicletas são
roubadas e o celular também. Aí um deles corre. O que um policial bom faz? Atira,
claro. E não vai atirar pra aleijar, que não é um homem cruel, atira logo pra matar, que o
Estado não tá podendo arcar com tanto benefício por invalidez assim. Aliás, é o sonho
dessa gente. Ter um filho aleijado pela polícia pra ficar mamando nas tetas do Estado
sem precisar trabalhar. Aí o moleque cai. O policial, bem educado, pergunta pro amigo
que ficou vivo: “Por que vocês estavam correndo?”. O moleque, um desses vendedores
de chá mate que ficam assediando os turistas na praia, diz: “A gente tava brincando,
senhor”. Pronto, os direitos humanos fazem um escarcéu com essa frase, vai até parar em
jornal estrangeiro. Por isso que não pode ter celular na mão de preto. Começam a se
achar gente e ficam gravando tudo. Tou aqui, pensando se não é melhor fazer logo um
parágrafo extra pra essa lei, proibindo preto e pobre de usar celular. A ver.
Não pode ter celular na mão de preto. Começam a se achar gente e ficam gravando tudo,
até a própria morte.
Uso: A última aplicação conhecida da lei número 4 do ECA do B ocorreu em 20 de
fevereiro de 2015. Alan de Souza Lima, 15 anos, foi morto pela polícia na favela da
Palmeirinha, em Honório Gurgel, subúrbio do Rio de Janeiro.
Tá com pena? Leva pra casa!

Em 2017, a violência letal contra crianças e adolescentes continua no RJ. Como a


morte violenta da estudante de 13 anos, Maria Eduarda258, vítima de bala perdida, ocorrida dentro
da Escola Municipal Daniel Piza, em Acari, Rio de Janeiro, no dia 30/03/17, durante operação
policial que resultou também na execução de outros dois supostos traficantes que já estavam
caídos no chão, em frente à Escola. O vídeo mostra os policiais recolhendo o que seria um fuzil e
uma pistola que estariam com os homens. O crime ocorreu no lado externo da escola onde,
durante este tiroteio, a estudante Maria Eduarda Alves, de 13 anos, morreu atingida por pelo
menos dois tiros. As imagens da execução dos dois homens foram veiculadas em telejornais e
programas de transmissão nacional, o que deveria deixar perplexa e indignada a população

258. Publicado em: http://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2017-03-31/mataram-meu-bebe-desabafa-mae-de-


adolescente-morta-dentro-de-escola-em-acari.html, acesso em 30/03/17.
273

brasileira diante da brutalidade do fato. No entanto, enquanto era decretada a prisão preventiva
dos policiais que executaram os dois homens, um abaixo assinado foi criado em apoio aos dois
PMs. Em 24 horas, a petição online já havia coletado mais de 50 mil assinaturas259.
Sem menção à ilegalidade na conduta, o texto da petição considera os policiais presos
"heróis do 41° BPM" e diz que eles estão sendo "massacrados por uma mídia tendenciosa e
covarde". Boa parte dos comentários dos apoiadores considera condená-los uma inversão de
valores e reproduz a frase: “bandido bom é bandido morto”. É, por exemplo, a opinião de Carina,
que justificou sua assinatura: "Bandido que atira para matar tem que tomar tiro para morrer.
Parabéns, guerreiros", escreveu ela, que teve 381 curtidas. O segundo comentário mais curtido foi
o de Gustavo: "Apoio operações policiais, e se os marginais resistirem, devem ser aniquilados".

O novo regime não hesitava em empregar muitas formas de repressão contra seus
inimigos declarados, mas também buscava o consentimento e o apoio do povo a toda
hora. (...). O consentimento e a coerção estiveram inextricavelmente entrelaçados
durante o Terceiro Reich, até certo ponto porque a maior parte da repressão e do terror
foi usada contra indivíduos específicos, minorias e grupos sociais pelos quais o povo
tinha pouca simpatia (GELLATELY, 2013, p. 22).

Podemos citar também citar outros casos exemplares de homicídios de crianças e


adolescentes, que ocorreram nesse primeiro semestre de 2017, em decorrência da violência por
disparos de arma de fogo:
- SOFIA LARA BRAGA, 02 anos, dia 21/01/2017, Irajá, RJ;
- Fernanda Adriana Pinheiro, 07 anos, dia 15/02/17, Parque União, Complexo da
Maré, RJ;
- HOSANA DE OLIVEIRA, 13 anos, 03/04/17, Favela de Acari, RJ;
- PAULO HENRIQUE DE MORAIS, 13 anos, 25/04/17, Complexo do Alemão, RJ;
- VANESSA VITÓRIA DOS SANTOS, 10 anos, 04/07/17, Favela Camarista Meier,
Lins, RJ;
- BRYAN EDUARDO MERCÊS, 06 anos, 09/07/17, Estrada do Campinho, Campo
Grande, RJ;
- GUILHERME ANCELMO ALVES TRANQUILINO, 15 anos, 12/07/17, Água
Santa.

259
Publicado em: http://oglobo.globo.com/rio/em-24-horas-50-mil-assinam-peticao-em-apoio-policiais-flagrados-
em-execucoes-21147127.
274

As notícias da violência letal de crianças e adolescentes, por si só, já são muito duras,
mas os comentários da maioria delas, especialmente, quando a vítima é adolescente ou jovem
negro, pobre e morador de favela, são bem piores! Expressam um tipo de ódio de classe, de cor,
de intolerância que desnuda, sem nenhum pudor um tipo de ideologia nazifascista que atravessa a
sociedade. Isso fica também muito claro no comentário abaixo, publicado no jornal O Globo, na
notícia intitulada “Criança e subcomandante de UPP são baleados durante tiroteio no Camarista
Meier260”, a respeito da morte da menina Vanessa, de 10 anos, citada acima, morta por bala
perdida em um tiroteio na comunidade do Camarista Meier, zona norte do RJ, em 04/07/17:

Pela milésima vez. Enquanto não derrubarem todas as favelas que são fábricas de
bandidos e dizimar essa SUB RAÇA HUMANA de favelados escutadores de Funk a
situação só vai piorar. Essa gentalha se reproduzem mais que peixes e não tem condições
nem de se auto sustentarem mais o lema é E VAMU BUTA FILHU NU MUNDO.
Agem pior que bichos irracionais, não tem modos e já nascem com a decadência e anti
socialidade correndo nas veias. São um atraso a sociedade de bem e a evolução da
humanidade. Exterminem todos em fila indiana indo direto para uma Câmara de Gás. Só
assim! (Comentários, Jornal O Globo, 05/07/17).

A primeira câmara de gás foi construída em 1939, para implementar o decreto de Hitler
datado de 1º de setembro daquele ano, que dizia que “pessoas incuráveis devem receber
uma morte misericordiosa. (...) O decreto foi cumprido imediatamente no que dizia
respeito aos doentes mentais, e entre dezembro de 1939 e agosto de 1941, cerca de 40
mil alemães foram mortos com monóxido de carbono em instituições cujas salas de
execuções eram disfarçadas como seriam depois em Auschwitz – como salas de duchas e
banhos (ARENDT, 2013, p. 124).

A violência policial no Brasil, em especial no Rio de Janeiro, carrega a marca da


impunidade como regra na maioria dos julgamentos envolvendo policiais. Um caso exemplar foi
a “Chacina da Candelária”, os evolvidos na execução eram policiais militares. Dos 03 que
chegaram a cumprir pena, foram absolvidos, e os demais nem chegaram a ser julgados. A
conclusão do inquérito da morte do menino Eduardo (Eduardo de Jesus Ferreira), de 10 anos,
morto no dia 2 de abril de 2015, no Complexo do Alemão, na Zona Norte do Rio, foi uma
verdadeira “aberração”, segundo a Anistia Internacional. A investigação da Divisão de
Homicídios afirmou que os PMs que atingiram a criança agiram em legítima defesa ao tentarem

260
Publicada em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/crianca-e-subcomandante-de-upp-sao-baleados-durante-
tiroteio-no-camarista-meier.ghtml?utm_source=whatsapp&utm_medium=share-bar-smart&utm_campaign=share-
bar
275

se defender de traficantes, e nenhum deles foi indiciado261. Legítima defesa? Era um menino de
10 anos!
O Brasil tem a polícia que mais mata no mundo, mas ela não mata sozinha. A sociedade
aplaude quando a violência é dirigida aos ‘matáveis’. Quando essa ação transborda e atinge
outros inocentes (leia-se brancos de classe média e/ou alta), sem ser aqueles considerados
‘indesejáveis’, essa mesma sociedade não tolera e exige a punição do assassino. Ou seja, está
tudo bem, desde que os mortos sejam jovens negros da favela e periferia.
Pesquisa divulgada pelo Ipea262, em junho de 2017, indica que os assassinatos causados
por policiais superaram os crimes de latrocínio. Segundo o Ipea, o número de latrocínios (roubo
seguido de morte) foi de 2.314, e as mortes causadas por intervenção policial foram 3.320.
Em números absolutos, os estados onde a polícia mais mata são: São Paulo (848
mortes), Rio de Janeiro (645 mortes) e Bahia (299). Dos 3.320 assassinatos causados por policiais
em 2015 no país inteiro, 53,5% foram em serviço (um total de 1.778 mortes); cerca de 13,7% fora
do serviço (455 mortes); e as outras 1.087 não foram especificadas no relatório do Ipea, já que
alguns estados não divulgam os dados detalhados.
Quando se considera a diferença entre mortes por policiais e latrocínios, o Rio de Janeiro
é o estado que lidera: a polícia matou quase cinco vezes mais do que os ladrões. Foram 645
mortes por policiais, contra 133 mortes por latrocínio, uma diferença de 512 mortes. Em todos
esses eventos o que você vê é uma violência absurda, desproporcional, perversa das forças
policiais locais (violência do Estado) e das forças da guarda nacional (exército e marinha).
Diante de um cenário tão grave, de tanta violação e redução de direitos humanos, do
avanço sistemático de práticas repressivas, arbitrárias e violentas, explicitadas com o aumento do
número de encarceramentos, dos casos de extermínio de adolescentes e jovens, em sua maioria
negros e pobres, demonstra a face oculta (?) do racismo e da barbárie de nossos tempos, bem
como as contradições e incapacidade do Estado brasileiro enquanto garantidor de direitos
igualitários para todos.

ECA do B, por Eliane Brum:


1ª) Lei Herinaldo: criança preta não pode correr na rua!

261
Publicado em : http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/11/conclusao-de-inquerito-da-morte-de-eduardo-
e-aberracao-diz-anisitia.html , em 03/11/2015.
262
Ver relatório publicado em: http://www.forumseguranca.org.br/wp-
content/uploads/2017/06/FBSP_atlas_da_violencia_2017_relatorio_de_pesquisa.pdf , acesso em Julho/17.
276

Onze anos de idade e correndo na favela? Vai trabalhar!


Para que criança vai correr, me diz? Não tem nada que correr. Onze anos de idade e
correndo? Vai trabalhar! O policial se assusta com aquele corpinho escuro e mirrado
vindo na sua direção e atira. Pronto, a bala acha. Aconteceu agora, na semana passada,
com o Herinaldo. Peraí, preciso rir um pouco. Ah, onde esses pobres acham esses
nomes? Herinaldo, vê bem se alguém tem futuro com um nome desses. O Herinaldo
correu, levou bala. Bum, um tiro no peito. Dizem que estava indo comprar uma bolinha
de pingue-pongue. Sei! Desde quando preto sabe jogar pingue-pongue? Tava era indo
comprar fumo na boca. Ou era aviãozinho. E era viadinho o moleque. Em vez de lidar
com a situação como homem, ficou gritando: “Quero a minha mãe!”. Afe. O que importa
é que por causa dessa falta de atenção do Herinaldo, meu SUV ficou parado no trânsito.
Favelado adora trancar rua, deve ser por inveja de quem tem carro. Em vez de ensinarem
aos seus abortos que criança pobre não pode correr, fazem protesto. Brasileiro é muito
subdesenvolvido, mesmo. Eita país que não vai pra frente. Por sorte a PM distribuiu
umas bombas de gás e botou a macacada pra correr. Deu pra chegar pro jantar a tempo,
mas foi por pouco. E a Rosinete faz uma comida muito boa, essa é uma negra de alma
branca, praticamente da família. Depois vi no Balanço Geral o apresentador
entrevistando a mãe do estropício. O jornalista foi na veia mesmo. Onde a senhora tava
quando aconteceu? A mulher disse que tava cuidando de um idoso, vê bem. Em vez de
cuidar do filho, mantê-lo em casa, tava batendo perna na casa dos outros. Disse que
trabalhando, mas vá saber o que essa gente anda fazendo! Depois o repórter perguntou se
o Herinaldo era metido com tráfico. A mãe negou, mas na cara que era. Se não fosse,
tava correndo por quê? Por acaso criança de 11 anos corre na rua?
Uso: a aplicação mais recente da lei número 1 do ECA do B ocorreu em 23 de Setembro
de 2015. Herinaldo Vinícius Santana, 11 anos, levou um tiro no peito, no Caju zona
portuária do Rio de Janeiro.
Tá com pena? Leva pra casa!

4.3.3 Dados da Morte Matada

1.195 pessoas foram assassinadas em uma semana no Brasil. São todos os casos de morte
que se teve notícia e foram registrados no período de 21 a 27 de agosto de 2017. Uma média de
uma a cada oito minutos no país. A notícia, do projeto “Monitor da Violência”, foi publicada no
G1 da Globo, no dia 28/09/17, e é uma parceria do G1 com o Núcleo de Estudos da Violência
(NEV) da USP e com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública263. Vítimas da violência letal, são
crimes que, na maioria das vezes, ficam esquecidos – casos de homicídios, latrocínios,
feminicídios, mortes por intervenção policial e suicídios espalhados pelo Brasil. Ao que eles
chamam de “epidemia da violência”, a sociedade civil organizada, especialmente o movimento

263
Publicado em: https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/uma-semana-de-mortes-o-retrato-da-violencia-
no-brasil.ghtml?utm_source=whatsapp&utm_medium=share-bar-smart&utm_campaign=share-bar, acesso em
27/09/17.
277

negro, chama de “genocídio” da juventude negra e pobre, por ser este o perfil da maioria das
vítimas da violência letal e intervenção policial como temos observado.
De acordo com o monitor da violência, os recortes que se destacam no levantamento
feito são:
 Do total de vítimas, 89% são homens;
 Os jovens – especialmente os de 18 a 25 anos – são a faixa etária mais vulnerável
à violência (33% do total);
 Negros correspondem a 2/3 das vítimas em que a etnia é informada;
 A maior parte dos crimes ocorre à noite (35%);
 O fim de semana concentra um grande percentual dos casos (36%);
 81% morrem vítimas de arma de fogo (quando a arma é informada);
 Em 15% dos casos, o autor do crime conhece a vítima.

Figura 14 – Perfil das vítimas


278

Por outro lado, mais de 45 cidades registraram índice superior a 10 mortes a cada 100 mil
habitantes – índice considerado extremamente alto se for levado em conta o período de apenas
sete dias analisados (já que a taxa é usada como parâmetro anual). O Ceará foi o recordista de
casos em números absolutos: 128 mortes – quase uma por hora.
A questão da transparência dos dados foi uma dificuldade apontada pelo pela pesquisa,
pois as Secretarias de Estado demoram em liberar, bem como as mortes por intervenção policial,
geralmente adotam outra nomenclatura como “autos de resistência”, confronto com policiais, etc.,
o que torna mais lenta a verificação dos homicídios.
A tabela a seguir foi elaborada a partir de pesquisa de dados para esta tese e descreve uma
série histórica dos homicídios de crianças e adolescentes, de 0 a 18 anos incompletos, no Estado
do Rio de Janeiro, no período de 2002 a 2016, tendo como fonte os dados do Instituto de
Segurança Pública (ISP). Importante observar que de 2002 a 2011 as mortes violentas
(assassinatos) de crianças e adolescentes eram identificados como “homicídios dolosos”. Entre os
anos de 2012 e 2013, em todo o material pesquisado não foram encontrados dados. Foi só a partir
de 2014 que a identificação das mortes violentas, ou seja, os homicídios dolosos, foram
“tipificados”, divididos nas seguintes categorias: homicídio provocado por projétil de arma de
fogo, homicídio provocado por intervenção policial, homicídio provocado por arma branca,
homicídio outros (autoria desconhecida). Nos anos de 2015 e 2016, a categoria “homicídio
doloso” já não aparece mais.
Para esse estudo resolvi também considerar outras duas categorias do ISP, a partir de
2014: encontro de cadáver e encontro de desaparecido morto, por termos constatado alguns casos
desse tipo de homicídio envolvendo crianças e adolescentes. Segue planilhas e gráficos abaixo.
279

Tabela 9 - Crianças e adolescentes vítimas de homicídio no estado RJ - Período: 2002 a 2016


2002
TIPO JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ TOTAL
Homicídio 477
Doloso
2003
TIPO JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ TOTAL
Homicídio 463
Doloso
2004
TIPO JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ TOTAL
Homicídio 472
Doloso
2005
TIPO JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ TOTAL
Homicídio 24 21 19 18 13 13 18 28 20 19 19 15 227
Doloso
2006
TIPO JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ TOTAL
Homicídio 3 27 23 21 20 24 15 16 12 21 20 16 218
Doloso
2007
TIPO JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ TOTAL
Homicídio 15 11 28 15 21 10 11 23 14 25 16 27 216
Doloso
2008
TIPO JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ TOTAL
Homicídio 21 20 27 14 20 11 12 12 19 21 25 26 228
Doloso
2009
TIPO JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ TOTAL
Homicídio 12 13 16 13 19 14 20 20 14 12 12 13 178
Doloso
2010
TIPO JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ TOTAL
Homicídio 10 20 16 22 08 16 05 15 16 26 17 20 191
Doloso
2011
280

TIPO JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ TOTAL
Homicídio 09 12 15 17 15 10 17 24 18 16 13 23 189
Doloso
2012
TIPO JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ TOTAL
Homicídio Sem
Doloso informação
2013
TIPO JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ TOTAL
Homicídio Sem
Doloso informação
2014
TIPO JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ TOTAL
Homicídio 33 27 32 34 45 24 22 23 30 23 21 38 352
Doloso
Encontro de 2 2 3 0 1 1 0 2 2 1 0 2 16
Cadáver
Homicídio 6 5 5 3 5 7 6 8 5 10 5 5 75
Intervenção
policial
TOTAL 443
2015
TIPO JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ TOTAL
Encontro de 10
Cadáver
Homicídio 73
oposição
Intervenção
policial
Homicídio 202
provocado
projétil arma
de fogo
Homicídio 4
arma branca
Encontro 4
desaparecido
morto
Homicídio 69
281

outros
(autoria
desconhecida)
TOTAL 362
2016
Encontro de 16
Cadáver
Homicídio 108
oposição
Intervenção
policial
Homicídio 291
provocado por
projétil arma
de fogo
Homicídio 4
arma branca
Encontro 5
desaparecido
morto
Homicídio 67
outros
(autoria
desconhecida)
TOTAL 491
Fonte: Instituto de Segurança Pública (ISP)
282

Tabela 10 - Crianças e adolescentes vítimas de homicídio no estado


RJ - Período: 2002 a 2016
ANO Nº Homicídios
2002 477
2003 463
2004 472
2005 227
2006 218
2007 216
2008 228
2009 178
2010 191
2011 189
2012 -
2013 -
2014 443
2015 362
2016 491
Fonte: Instituto de Segurança Pública (ISP)

Analisando a tabela, observamos no Estado do RJ uma queda acentuada a partir de 2005


até 2011. O que corrobora com os dados nacionais (Mapa da Violência, dentre outros) que
analisaram que na região Sudeste a violência mostra fortes sinais de regressão. Como será
mencionado adiante, foram os estados de São Paulo e Rio de Janeiro que alavancaram essas
quedas, com crescimento negativo de 57,7% e 47,8%, respectivamente. Porém, mesmo sem os
dados de 2012 e 2013, constatamos que os números aumentam na ordem de 235% de 2011 a
2014, alcançando aumento de 260%, em 2016.

Gráfico 6 - Crianças e adolescentes vítimas de homicídio no estado RJ – Período de 2002 a 2016

GRÁFICO 6: CRIANÇAS E ADOLESCENTES VÍTIMAS DE


HOMICÍDIO NO ESTADO RJ - Período de 2002 a 216

2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016

477 463 472 443 362 491


227 218 216 228 178 191 189
- -
283

De acordo com o ISP, quanto ao perfil de crianças e adolescentes vítimas de homicídio


doloso em 2006, constata-se que a maioria era do sexo masculino, atingindo o percentual de
79,8%. Com relação à idade das vítimas, observa-se que o maior percentual está entre jovens de
16 a 17 anos, correspondendo a 68,3%. Acerca da cor dos jovens, é a cor parda que mais
apresenta o percentual das vítimas que sofreram homicídio doloso no Estado do Rio de Janeiro,
atingindo um percentual de 45% dos casos registrados.
O Dossiê Criança e Adolescente 2012, analisa que o maior número absoluto de vítimas
crianças e adolescentes na série histórica apresentada entre 2005 e 2011, ocorreu em 2008, com
228 vítimas, e o menor número se deu em 2009, com 178 vítimas. Em toda a série analisada,
houve 1.447 homicídios dolosos ligados a crianças e adolescentes no estado do Rio de Janeiro. A
redução de 2005 para 2011 foi de 16,7%, o que significou menos 38 vítimas de homicídio doloso
no período considerado. Já a redução de 2010 para 2011 foi de 1,0%. A média do ano de 2011 foi
de 16 crianças e adolescentes vítimas/mês. No início da série, em 2005, a média era de,
aproximadamente, 19 vítimas mensais. A redução, em média, nesses sete anos, foi de três
vítimas/mês. A arma de fogo foi o instrumento mais utilizado na prática de homicídio doloso,
com maioria absoluta de 72,5% dos óbitos.
A distribuição dos homicídios dolosos teve concentração na capital do estado do Rio de
Janeiro, com cerca de 67 vítimas, representando 35,4% do total. Na Baixada Fluminense
ocorreram 55 homicídios dolosos, ou ainda, 29,1% do total. O Interior representou cerca de
27,0% do total, ou 51 vítimas. Na região da Grande Niterói foram vitimados cerca de 8,5% dos
jovens, ou seja, 16 crianças e adolescentes.
A maior parte dos homicídios ocorre em pessoas do sexo masculino, cerca de 80% dos
casos. Em relação à idade das vítimas, o maior percentual está entre jovens de 16 a 17 anos,
correspondendo a mais de 2/3 das crianças e adolescentes, com 70,9% do total. Os jovens com
idade entre 13 e 15 anos responderam por 20,1% dos casos. Observa-se que o percentual de
vítimas aumenta à medida que as idades também aumentam. Os jovens de cor parda são os mais
vitimizados, com 52,4% do total. Os brancos foram vitimizados em 15,9% dos casos, e os negros,
em 24,3% do total de episódios ocorridos no estado do Rio de Janeiro. Em 7,4% dos casos, não
foi possível recuperar informações referentes a cor/raça das vítimas. Os considerados não
brancos, soma dos negros e pardos, chegaram a mais de 3/4 do total de vítimas.
284

Já o Dossiê Criança e Adolescente 2015, apenas diz que no estado do Rio de Janeiro,
entre 2010 e 2014, o número anual de vítimas264 menores de 18 anos passou de 33.599 para
49.276, um aumento de 46,7% (contra um aumento de 24,4% de vítimas maiores de idade). Ao
longo dos cinco anos, foram 213.290 vítimas menores de idade, das quais 26,2% eram crianças
(de zero a 11 anos) e 73,8% eram adolescentes (de 12 a 17 anos).

4.3.3.1 Atlas da Violência

O Atlas da Violência 2016265, produzido pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada


(Ipea), em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, destacou que em média, “um
brasileiro é assassinado a cada 09 minutos”. Levantamento baseado no ano de 2014, contabilizou
59.627 homicídios no Brasil, ou 29,1 mortes a cada 100.000 habitantes, um aumento, segundo o
Ipea de 3,9% em relação a 2013 – o número representa uma média de 6,8 mortes a cada hora, ou
uma morte a cada 9 minutos. 10% de todos os homicídios do mundo se deram no Brasil, de
acordo com o estudo. Em dez anos, o total de homicídios no país cresceu 21,9%.
Ainda de acordo com o levantamento, cinco brasileiros são assassinados a cada hora
vítimas de armas de fogo. Em 2014, foram 44.861 pessoas – o que corresponde a 76,1% do total
de homicídios registrados no Brasil. A pesquisa destaca a evolução dos homicídios entre jovens.
Só em 2014 morreram no Brasil 31.419 pessoas (61 a cada 100.000) entre 15 e 29 anos de idade
vítimas de homicídio, sendo 93,8% do total dos homicídios nessa faixa etária são do sexo
masculino.
Alagoas aparece como o estado mais perigoso para os jovens, 270,3 perderam a vida para
cada grupo de 100.000 homens entre 15 e 29 anos em 2014. Os indicadores mostraram que a

264
As infrações sofridas pelas vítimas foram classificadas nos seguintes grupos: “crimes contra a dignidade sexual”
(inclui os crimes de estupro2, ato obsceno, sedução, exploração sexual e corrupção de menores); “periclitação da
vida e da saúde” (são os crimes de maus tratos, omissão de socorro, abandono e exposição a contágio); “lesão
corporal” (lesão corporal e tentativa de lesão corporal); “rixa e vias de fato” (rixa e vias de fato); “crimes contra a
vida” (homicídio doloso, homicídio culposo, tentativa de homicídio, aborto e auxílio a suicídio); “crimes contra a
honra e ameaça” (difamação, injúria, calúnia e ameaça); “crimes contra o patrimônio” (roubo e furto) e “outros”
(todos os demais crimes).
265
Ver em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/160322_nt_17_atlas_da_
violencia_2016_finalizado.pdf , acesso em março/17.
285

maior parcela das vítimas era de indivíduos de baixa escolaridade, com no máximo sete anos de
estudo.
O levantamento também ressalta o número de negros vítimas de homicídio no Brasil, com
um crescimento de 18,2% entre 2004 e 2014 – no último ano analisado, morreram 37,5 negros a
cada 100.000 habitantes. Já o mesmo indicador associado a não negros diminuiu 14,6% no país.
O estudo mostra que, aos 21 anos de idade – o pico da probabilidade de uma pessoa ser
vítima de homicídio no Brasil -, negros e pardos têm risco 147% mais elevado de ser mortos, do
que brancos, amarelos e indígenas.
O Atlas da Violência 2017266, lançado em 05/05/17, não difere muito do ano anterior.
Revela que homens, jovens, negros e de baixa escolaridade são as principais vítimas de mortes
violentas no País. A população negra corresponde à maioria (78,9%) dos 10% dos indivíduos
com mais chances de serem vítimas de homicídios. De acordo com o estudo, de cada 100 pessoas
assassinadas no Brasil, 71 são negras. Os negros possuem chances 2,6 vezes maiores de serem
assassinados do que brasileiros de outras raças, já descontado o efeito da idade, escolaridade, do
sexo, estado civil e bairro de residência.

Figura 15 – A cor dos homicídios

266
Ver em: http://ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=30253 , acesso em 06/07/17.
286

O Atlas da Violência 2017, que analisou a evolução dos homicídios no Brasil entre 2005 e
2015, também a partir de dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) do
Ministério da Saúde, mostra ainda que aconteceram 59.080 homicídios no país, em 2015. Quase
uma década atrás, em 2007, a taxa foi cerca de 48 mil.
Ainda segundo o Atlas, este aumento de 48 mil para quase 60 mil mostra uma
naturalização do fenômeno por parte do Estado brasileiro. Daniel Cerqueira, coordenador de
pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, explica que a naturalização dos
homicídios se dá por processos históricos e econômicos de desigualdade no país, “que fazem com
que a sociedade não se identifique com a parcela que mais sofre com esses assassinatos”, afirma.
No Atlas da Violência, compilado pelo Ipea com dados do IBGE e do Ministério da
Saúde, os pesquisadores também alertam para a conivência da sociedade com um uso abusivo do
poder da polícia e com execuções sumárias. Além disso, também podemos citar a naturalização
desses homicídios por esta mesma sociedade.

Hitler, como político, continuou relutante em revelar detalhes precisos da “solução


final”. Ele com certeza sabia que, apesar das reservas, no início da guerra no mais tardar,
a maioria dos alemães concordava com o antissemitismo nazista e a exclusão dos judeus
da vida nacional, e que a promoção dessa política granjeara apoio à ditadura
(GELLATELY, 2011, p. 229).

4.3.3.2 Índice de Homicídios na Adolescência (IHA)

No Brasil, a cada mil adolescentes de 12 anos, 3,65 serão assassinados


antes mesmo de completar os 19 anos (IHA, 2017).

O dado acima foi apontado pelo Índice de Homicídios na Adolescência (IHA), outra fonte
que utilizamos na tese, e que é elaborado pelo Unicef, Observatório de Favelas e a Secretaria
Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente, do governo federal. Segundo o
UNICEF, o futuro do Brasil, representado por esses jovens, está em risco, e alertam: “Essa alta
incidência de violência letal significa que, se as circunstâncias que prevaleciam em 2014 não
287

mudarem, aproximadamente 43 mil adolescentes serão vítimas de homicídio no Brasil entre 2015
e 2021, apenas nos municípios com mais de 100 mil habitantes”.
Os adolescentes e jovens são as maiores vítimas da violência letal, como temos
constatado. O IHA de 2017 é o maior desde 2005, quando começou o estudo. É o índice mais alto
da história no Brasil. Segundo a pesquisa, um jovem negro tem 2,88 vezes mais chances de ser
assassinado do que um jovem branco267.

No outono de 1939, eles já tinham tirado muitos judeus do país, realizado um amplo
programa de esterilização e começado a matar indivíduos “defeituosos” sob cuidados
crônicos, que tinham “vidas que não valiam ser vividas” (GELLATELY, 2011, p. 235).

Conforme a pesquisa do IHA 2017, os assassinatos dos adolescentes no Brasil vêm


subindo de forma contínua desde 2012. Em 2011, registrou 2,8; em 2012, 3,3; em 2013, 3,4, até
alcançar o nível atual. No início da série, em 2005, o IHA era de 2,8. Seu valor mais baixo foi de
2,6, nos anos de 2007 e 2009.
O Nordeste tem o maior índice: 6,5. O Ceará apresenta o índice mais alto: são 8,71
assassinatos para cada 1.000 adolescentes. O Sudeste, que já encabeçou a lista, tem 2,8
assassinatos para cada 1.000 adolescentes. Rio de Janeiro com 4,28 e, São Paulo, 1,57.
A questão da diferenciação racial em relação aos dados com predominância de violência
letal contra os negros descortina que, de fato, a ideologia racista atravessa as relações sociais e o
modus operandi da violência de Estado, determinando os altos índices de assassinato de nossa
juventude negra.

O regime racista considerava os poloneses e outros povos do leste como racialmente


inferiores (GELLATELY, 2011, p. 234)

ECA do B, por Eliane Brum

2ª) Lei Cristian: adolescente preto não pode jogar futebol!


Para que jogar futebol? Vê bem o que um sonso desses têm na cabeça. Se o moleque tem
13 anos e mora num favelão cheio de traficantes, vai fazer o quê? Jogar futebol? Não!
Vai ficar trancado no barraco, sei lá, vendo Netflix na TV ou jogando no tablet, já que
não gosta de estudar. Não se gabaram tanto que viraram Classe C, comprando TV de tela
plana bem grande? Então, aproveita. Faz 40 graus dentro de casa? Toma um banho de
hidromassagem pra baixar os hormônios! Mas não, o projeto de bandido pensa que é o
Neymar e vai lá jogar futebol. Desde quando moleque joga futebol no Brasil? Aí a
polícia tá lá, fazendo o seu serviço, atrás de um animal que tinha matado um PM, um pai
de família, um trabalhador, e uma bala acaba achando o moleque. É culpa de quem? Da

267
Ver em: https://www.unicef.org/brazil/pt/media_37221.html , acesso em 11/10/17.
288

polícia? Só na cabeça de bagre desses direitos humanos. Se o moleque tivesse


trabalhando numa hora dessas, não tinha acontecido nada. Mas não, tava lá, jogando
futebol, antes do meio-dia. Tem deputado de esquerda aí dizendo que quando ouviu os
tiros o moleque até parou pra ajudar uma idosa a se proteger. Ah, tá, agora virou santo.
O fato é: como é que a polícia vai botar ordem na bagaça com esses vagabundos no meio
do caminho? E a mãe do moleque? Fazendo teatro no enterro: “Meu filho, acorda, meu
filho, acorda...”. Patético, por acaso a mulher não consegue juntar o tico e o teco e
perceber que aquele ali já tava no inferno? É só um, pra que tanto escândalo? Do jeito
que é esse povo deve ter mais uns 13 pretinhos em casa, tudo da mesma laia, que é pra
ter bastante Bolsa Família. Mas aí a pobraiada protesta, mais confusão. Aquela Anistia
Internacional, que deveria estar lá na Síria, cuidando daqueles meninos branquinhos, faz
nota falando em “lógica de guerra”. Que guerra? É lei. ECA do B pra limpar o Brasil!
Jogou futebol em hora errada, a bala acha. Simples assim. Quer que eu desenhe?
O moleque tá no meio do caminho atrapalhando o trabalho da polícia e uma bala acaba
achando ele. É culpa de quem?
Uso: a aplicação conhecida mais recente da lei número 2 do ECA do B foi em 8 de
Setembro de 2015. Cristian Soares Andrade, 13 anos, foi morto na região de
Manguinhos, no Rio de Janeiro.
Tá com pena? Leva pra casa!
E aqui encerro o ECA do B, um conjunto de cinco leis simples, claras e objetivas.
Espero ter colaborado para tranquilizar os turistas que virão para a Olimpíada 2016 ver
nossas belezas, conhecer o nosso povo cordial e as maravilhas da nossa terra alegre e
hospitaleira. Como é mesmo o lema da Olimpíada mesmo? “Somos Todos Brasil!!”
Uhú!

4.3.3.3 Estudo e análise do Mapa da Violência – 2010 a 2016268

O Mapa da Violência compõe uma série de estudos desenvolvidos pelo pesquisador Julio
Jacobo Waiselfisz, desde 1998, que tem como temática as muitas formas de violência que
acontecem no país, especialmente os homicídios que acometem crianças, adolescentes e jovens
no Brasil. Esses homicídios têm grande incidência nos setores considerados vulneráveis da
população, especialmente crianças, adolescentes, jovens, mulheres e negros. Essa grande
vulnerabilidade se verifica, no caso das crianças e adolescentes, não só pelo preocupante 4º lugar
que o país ostenta no contexto de 99 países do mundo, mas também pelo vertiginoso crescimento
desses índices nas últimas décadas. As taxas cresceram 346% entre 1980 e 2010, vitimando
176.044 crianças e adolescentes nos trinta anos entre 1981 e 2010. Só em 2010 foram 8.686
crianças assassinadas: 24 a cada dia daquele ano.

268
Fonte: Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) - Ministério da Saúde, referentes a mortes por causas
violentas, como homicídios, acidentes de transporte e suicídios. Consideraremos para fins desta tese apenas os
dados referentes aos homicídios.
289

O homicídio é a principal causa de mortes não naturais e violentas entre os jovens (14 a
25 anos,), a maioria pertencentes à classe empobrecida e são não brancos. A cada 100 mil jovens,
53,4 foram assassinados, em 2011, cerca de 90% são do sexo masculino. Segundo algumas
comparações do Mapa Violência com Chacinas de alta repercussão, o Brasil de 2011 registrou
52.198 vítimas de homicídio. Isso representa 143 homicídios a cada dia daquele ano. Bem mais
que um Carandiru diário. Naquele período, foram registrados 18.436 jovens assassinados, o que
equivale a 51 assassinatos da juventude a cada dia do ano. Esse dado corresponde a 6,37
Chacinas da Candelária diárias.

CHACINA DA CANDELÁRIA: 23-07-1993 – Oito pessoas foram executadas:


1. Paulo Roberto de Oliveira, 11 anos
2. Anderson de Oliveira Pereira, 13 anos
3. Marcelo Cândido de Jesus, 14 anos
4. Valdevino Miguel de Almeida, 14 anos
5. "Gambazinho", 17 anos
6. Leandro Santos da Conceição, 17 anos
7. Paulo José da Silva, 18 anos
8. Marcos Antônio Alves da Silva, 19 anos

De acordo com o Prof. Julio Jacobo Waiselfisz, se formos destacar as vítimas de


homicídio na faixa etária equivalente aos que foram mortos na Chacina da Candelária, ou seja,
entre 11 e 19 anos, teremos (em 2011), de acordo com a tabela 11 abaixo:

Tabela 11 – Candelária e as vítimas de homicídio


VÍTIMAS DE HOMICÍDIO
IDADE
BRASIL RJ - ESTADO RJ - CAPITAL
11 ANOS 23 3 2
12 ANOS 64 4 2
13 ANOS 171 13 4
14 ANOS 428 34 10
15 ANOS 895 63 10
16 ANOS 1.534 127 19
17 ANOS 2.215 196 43
18 ANOS 2.336 207 53
19 ANOS 2.470 229 55
11 A 19 ANOS 10.136 876 198

Candelárias 3,5 diárias 1 cada 3 dias 2 por mês


290

Nos estudos publicados sobre o tema, a partir de 2004 já era indicado uma mudança nos
padrões de evolução dos homicídios no país. Mais recentemente, no Mapa da Violência
divulgado em dezembro de 2015, já se destacava a existência de dois processos concomitantes
nessa mudança. Por um lado um fenômeno de interiorização da violência letal. Se até 1996 o
crescimento dos homicídios centrava-se nas capitais e nos grandes conglomerados
metropolitanos, entre 1996 e 2003 esse crescimento praticamente estagna e o dinamismo se
transfere aos municípios do interior dos estados. A partir de 2003, as taxas médias nacionais das
capitais e regiões metropolitanas começam a encolher, enquanto as do interior continuam a
crescer, mas com um ritmo mais lento.
A seguir, apresentamos os levantamentos do Mapa da Violência de 2015 e 2016.

Dados Mapa da Violência 2015


Evolução das taxas de mortalidade (por 100 mil) de crianças e adolescentes de 0 a 19 anos
segundo causas externas e naturais, concentrando-se na faixa etária de 16 e 17 anos, período de
1980/2013. Para nosso estudo, estaremos nos concentrando apenas nos homicídios, porém, outros
dados devem ser vistos como um comparativo para conclusão da gravidade dos assassinatos,
especialmente de nossa juventude no Brasil.

Gráfico 7 - Taxas (por 100 mil) 1980/2013


291

Tabela 12 - Evolução do número, das taxas (por 100 mil) e da participação (%) na
mortalidade de adolescentes de 16 e 17 anos segundo causa. Brasil, 1980/2013
Número de óbitos Taxas (por 100 mil) Participação %

Homi-

Homi-

Homi-
Trans-

Trans-

Trans-
porte

porte

porte
cídio

cídio

cídio
cídio

cídio

cídio
Ano

Sui-

Sui-

Sui-
1980 661 156 506 11,9 2,8 9,1 12,7 3,0 9,7
1985 800 121 901 13,8 2,1 15,5 14,5 2,2 16,3
1990 860 139 1583 14,3 2,3 26,2 14,0 2,3 25,8
1995 1053 194 1898 15,8 2,9 28,4 15,4 2,8 27,8
2000 955 195 2719 13,3 2,7 37,9 13,3 2,7 37,8
2005 1040 222 2870 13,4 2,9 36,8 14,6 3,1 40,3
2010 1101 205 3033 16,2 3,0 44,7 15,5 2,9 42,8
2013 1136 282 3749 16,4 4,1 54,1 13,9 3,5 46,0
∆% 80/13 71,9 80,8 640,9 38,3 45,5 496,4 9,7 15,4 372,9
Fonte: Mapa da Violência 2015. Adolescentes de 16 e 17 anos do Brasil.

Gráfico 8 - Participação % das causas de mortalidade de crianças e adolescentes (0 a 19


anos) por idades simples. Brasil. 2013
292

Gráfico 9 - Vítimas de Homicídio em 2013 por UF

Gráfico 10 - Vítimas de Homicídio em 2013 nas Capitais


293

Tabela 13 - A cor dos Homicídios


Homicídios por faixas, UF/Região e cor de adolescentes de 16 e 17 anos de idade. Brasil. 2013.
16 e 17 16 e 17
UF/Região UF/Região
Branco Negro Vitim.% Branco Negro Vitim.%
Acre 1 7 85,5 Espírito Santo 22 140 250,4
Amapá 4 16 46,3 Minas Gerais 70 277 156,2
Amazonas 5 72 325,2 Rio de Janeiro 73 249 174,1
Pará 11 184 379,3 São Paulo 126 155 61,4
Rondônia 6 9 -24,6 Sudeste 291 821 167,4
Roraima 0 6 Paraná 137 35 -51,2
Tocantins 0 8 Rio Grande do Sul 79 33 22,9
Norte 27 302 246,9 Santa Catarina 33 6 -3,5
Alagoas 7 176 805,2 Sul 249 74 -17,2
Bahia 17 364 349,3 Distrito Federal 6 69 709,2
Ceará 15 150 324,1 Goiás 34 146 152,3
Maranhão 3 105 595,9 Mato Grosso 11 54 113,3
Paraíba 8 95 482,5 Mato Grosso do Sul 4 23 299,6
Pernambuco 11 169 641,2 Centro-Oeste 55 292 209,00
Piauí 3 35 132,1 BRASIL 703 2.737 173,60
Rio Grande do Norte 16 91 295,3
Sergipe 1 63 1926,3
Nordeste 81 1.248 408,0

Tabela 14: Participação (%) dos meios nos homicídios por idade simples. 2013
tant

etra
nto/

Cor

Obj

Cor

Out

Mei
Fog

Pen

For
den
ran

con

por

Tot
ção
oca

tun
Ida

Suf
Est

gul

ros
ma

nte
eto
me

Ar

de
de

ça

os
a-

al

al
te
e-
o

0 10,5 10,5 5,3 10,5 3,3 59,9 100,0


1 12,8 15,4 7,7 15,4 10,3 38,5 100,0
2 3,8 42,3 11,5 7,7 3,8 30,8 100,0
3 4,8 19,0 14,3 23,8 0,0 38,1 100,0
4 13,3 26,7 20,0 6,7 0,0 33,3 100,0
5 8,7 43,5 4,3 17,4 4,3 21,7 100,0
6 13,0 47,8 4,3 8,7 0,0 26,1 100,0
7 10,0 40,0 0,0 20,0 10,0 20,0 100,0
8 4,3 39,1 13,0 8,7 8,7 26,1 100,0
9 19,0 38,1 9,5 4,8 0,0 28,6 100,0
10 3,2 54,8 16,1 6,5 3,2 16,1 100,0
11 13,0 52,2 17,4 8,7 0,0 8,7 100,0
12 4,7 68,8 14,1 4,7 1,6 6,3 100,0
13 2,9 72,5 12,9 3,5 1,2 7,0 100,0
14 2,3 80,4 10,3 4,0 0,2 2,8 100,0
15 1,3 81,1 10,8 3,0 0,9 2,8 100,0
294

16 1,3 81,9 9,5 3,4 0,5 3,4 100,0


17 0,9 84,1 9,8 2,2 0,5 2,5 100,0
Total 1,9 78,2 10,0 3,5 0,8 5,6 100,0

Gráfico 11 - Ordenamento das UFs - participação % de armas de fogo de 0 a 17 anos

De acordo com os dados do Mapa da Violência 2015, os homicídios representam quase


metade das causas de morte entre jovens de 16 e 17 anos. O estudo revela que 46% dos jovens
mortos nessa faixa de idade foram assassinados no Brasil. O Brasil é o 3º país do mundo em
homicídios de crianças, adolescentes e jovens, em sua maioria negros e pobres, entre 85 países
analisados, com a taxa de 16,3 assassinatos para cada 100 mil crianças e adolescentes de até 19
anos de idade, ficando atrás apenas do México e de El Salvador.
Em 2013, foram assassinados 10.520 crianças e adolescentes no Brasil, o que resulta em
uma média de 29 casos por dia. Esses são índices maiores que países em guerra! A maioria das
vítimas era negra, do sexo masculino e foi atingida por disparo de arma de fogo. Quando se foca
nos adolescentes de 16 e 17 anos, a taxa de homicídios de brancos foi de 24,2 por 100 mil. Já a
taxa de adolescentes negros foi de 66,3 em 100 mil. A vitimização, neste caso, foi de 173,6%.
Proporcionalmente, morreram quase três vezes mais negros que brancos.
295

"É um número bárbaro, extremamente elevado", afirma o sociólogo Julio Jacobo


Waiselfisz, autor do estudo e coordenador do Programa de Estudos sobre Violência da Flacso
(Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais), responsável pela série Mapa da Violência.

Mapa da Violência 2016: Homicídios por Armas de Fogo no Brasil269


Esta edição do Mapa da Violência focaliza especialmente a questão da violência por
armas de fogo e suas variáveis. Dentre eles, destaca-se o crescimento da violência contra negros.
Entre 2003 e 2014, as taxas de homicídios por armas de fogos de brancos caem 27,1%, de 14,5,
em 2003, para 10,6, em 2014; enquanto a taxa de homicídios de negros aumenta 9,9%: de 24,9
para 27,4. Com esse diferencial, a vitimização negra do país, que em 2003 era de 71,7%, em
poucos anos mais que duplica: em 2014, já é de 158,9%, ou seja, morrem 2,6 vezes mais negros
que brancos vitimados por arma de fogo.

Evolução dos homicídios por armas de fogo: 1980-2014


De 1980 até 2014 morreram no Brasil 967.851 vítimas de disparo de arma de fogo. Desse
total 830.420 (85,8%) foram homicídios. Os registros do Sistema de Informação sobre
Mortalidade (SIM) permitem verificar que, entre 1980 e 2014, as vítimas passam de 8.710, no
ano de 1980, para 44.861, em 2014, o que representa um crescimento de 415,1%. Temos de
considerar que, nesse intervalo, a população do país cresceu em torno de 65%. Mesmo assim, o
saldo líquido do crescimento da mortalidade por armas de fogo, já descontado o aumento
populacional, ainda impressiona pela magnitude.

Versões posteriores do “Plano Geral Leste” expandiram-se ainda mais e anteviram


genocídios em série e a morte ou a deportação de 30 a 40 milhões de pessoas
“racialmente indesejáveis”, como poloneses e judeus, da região a ser colonizada no leste.
Um segundo grupo, de cerca de 14 milhões, principalmente eslavos, permaneceria para
ser usado como escravos (GELLATELY, 2011, P. 239).

O Mapa da Violência também destaca que a evolução da letalidade das armas de fogo não
foi homogênea ao longo do tempo. Entre 1980 e 2003, o crescimento dos homicídios por armas
de fogo foi sistemático e constante, com um ritmo acelerado: 8,1% ao ano. A partir do pico de
36,1 mil mortes, em 2003, os números, num primeiro momento, caíram para aproximadamente

269
Publicado em: http://www.mapadaviolencia.org.br/ , acesso em 25/08/16.
296

34 mil e, depois de 2008, ficam oscilando em torno das 36 mil mortes anuais, para acelerar
novamente a partir de 2012. Assim, no último ano com dados disponíveis (2014), temos um
volume de 42,3 mil homicídios por arma de fogo. O Estatuto e a Campanha do Desarmamento,
iniciados em 2004, constituem-se em um dos fatores determinantes na explicação dessa quebra de
ritmo, segundo avaliação do estudo do Mapa da Violência.
As 44.861 mortes ocorridas em 2014, representam 123 vítimas de arma de fogo a cada dia
do ano, cinco óbitos a cada hora. Número bem maior do que temos notícia de grandes chacinas e
atentados pelo mundo, como os acontecidos na Palestina, ou no Iraque, ou na Bélgica em março
do ano de 2016, quando morrem, nos atentados, 31 vítimas. Ainda pior: praticamente, temos, a
cada dia, o equivalente aos massacres de Paris de novembro de 2015, quando morreram 137
pessoas, incluindo sete dos agressores. Nosso número diário de mortes por arma de fogo é maior
que o resultado do massacre do Carandiru, ocorrido em outubro de 1992, quando foram
executados 111 detentos, fato de grande repercussão nacional e internacional. Embora esse nosso
número de mortes diárias por armas de fogo represente mais do que um massacre do Carandiru
por dia, não provoca o mesmo forte impacto emocional, seja nacional, seja internacional, pelo
contrário: discute-se hoje ampliar ainda mais a circulação de armas de fogo no país, de
endurecimento das penas, de redução da maioridade penal. É um tipo de solidariedade seletiva,
da qual determinados grupos sociais não são merecedores, dentre eles estes que chamamos
indesejáveis.

Na realidade, a situação era tão simples quanto desesperada: a arrasadora maioria do


povo alemão acreditava em Hitler (...). Contra essa sólida maioria, ficava um número
indeterminado de indivíduos isolados, completamente conscientes da catástrofe nacional
e moral (...) (ARENDT, 2013, P. 114).

De acordo com o Mapa da Violência 2016, 94,4% das vítimas são do sexo masculino,
sendo a juventude a principal vítima da violência letal no Brasil. A faixa de 15 a 29 anos de idade
apresentou o crescimento da letalidade bem mais intenso do que no resto da população, no qual
os homicídios por arma de fogo passaram de 6.104, em 1980, para 42.291, em 2014: crescimento
de 592,8%. Na faixa jovem, o estudo apontou que este crescimento foi bem maior: pula de 3.159
homicídios por arma de fogo, em 1980, para 25.255, em 2014, representando um crescimento de
699,5%.
297

Mais uma vez foi destacada a preocupação com a queda na taxa de crescimento
populacional: segundo estimativas do IBGE, os jovens de 15 a 29 anos de idade representavam,
aproximadamente, 26% da população total do país no período analisado. Mas a participação
juvenil no total de homicídios por arma de fogo mais que duplica o peso demográfico dos jovens:
58%. Pode ser vista a enorme concentração de mortalidade nas idades jovens, com pico nos 20
anos de idade, quando os homicídios por armas de fogo atingem a impressionante marca de 67,4
mortes por 100 mil jovens. De acordo com o Mapa, a escalada de violência começa nos 13 anos
de idade, quando as taxas iniciam uma pesada espiral, passando de 1,1 homicídios por arma de
fogo, aos 12 anos, para 4,0, aos 13 anos, quadruplicando a incidência da letalidade e crescendo de
forma contínua até os 20 anos de idade.
A região Nordeste foi a que apresentou as maiores taxas de homicídios por armas de fogo
em quase todos os anos da década 2004/2014 analisada. Sua taxa média em 2014, de 32,8
homicídios por arma de fogo por 100 mil habitantes, fica bem acima da taxa da região que vem
imediatamente a seguir, Centro-Oeste, com 26,0.
Em situação diametralmente oposta, na região Sudeste a violência armada mostra fortes
sinais de regressão. A taxa de homicídios por arma de fogo, que em 2004 foi de 23,9, em 2014
retrocede para 14,0 por 100 mil, impressionante queda regional de 41,4%. Como já mencionado,
foram os estados de São Paulo e Rio de Janeiro que alavancaram essas quedas, com crescimento
negativo de 57,7% e 47,8%, respectivamente. As causas dessa redução são controversas, mas, no
RJ, alguns dizem que essa redução se deu com a implantação das UPPs nas comunidades. E, já
em SP, a justificativa mais controversa foi a de que a redução dos homicídios se deu em função
de uma determinação do PCC (Primeiro Comando da Capital), organização criminosa do Estado
de São Paulo.
A evolução da mortalidade por armas de fogo nas capitais acompanhou bem de perto a
registrada nas UFs, mas com índices ainda mais elevados de vitimização de sua população: se a
taxa nacional de homicídios por arma de fogo foi, em 2014, de 21,2 por 100 mil, a das capitais foi
de 30,3. As seis capitais com maiores taxas são do nordeste: Fortaleza, Maceió, São Luís, João
Pessoa, Natal e Aracaju, região que teve o maior crescimento médio no período: 89,2%.
298

4.3.3.4 Homicídios: comparações internacionais

Informações internacionais sobre o tema permitem obter uma visão comparativa sobre
níveis de violência existentes no país. Observamos que, com uma taxa de 27,4 homicídios por
100 mil habitantes e 54,8 por 100 mil jovens, o Brasil ocupa a sétima posição no conjunto dos 95
países do mundo com dados homogêneos, fornecidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS)
sobre o tema, dados compreendidos entre 2007 e 2011.
O quadro comparativo internacional já foi bem pior para o Brasil. No ano de 1999, com
taxas menores que as atuais – 26,3 homicídios por 100mil habitantes – o Brasil ocupava o
segundo lugar, imediatamente atrás da Colômbia. E com 48,5 homicídios por 100mil jovens de
15 a 24 anos de idade, o terceiro lugar, depois da Colômbia e de Puerto Rico. Segundo o Mapa,
“não podemos interpretar essa sétima posição como uma melhoria dos índices nacionais, pois foi
mais devido ao crescimento explosivo da violência em vários outros países do mundo que
originou esse recuo relativo”. Nesse caso, se incluem vários países centro americanos, como El
Salvador e Guatemala, onde eclode a violência das gangues ou marras juvenis, ou o da
Venezuela, com problemas político-estruturais.
O Mapa da Violência 2012 também fez uma comparação dos índices de homicídios do
Brasil com os de outros países tidos como “civilizados”. Comparando nossos níveis de
homicídios na população total, a taxa de 27,4 homicídios por 100mil habitantes é:
 274 vezes maior que a de Hong Kong.
 137 vezes maior que as do Japão, Inglaterra e Gales ou Marrocos.
 91 vezes maior que as do Egito ou Sérvia.
Já a taxa de 54,8 homicídios por 100mil jovens resulta:
 547 vezes superior às taxas de Hong Kong.
 273 vezes superior às taxas da Inglaterra ou Japão.
 137 vezes superior às taxas da Alemanha ou Áustria.

O Mapa da Violência 2013 publicou o Relatório sobre o Peso Mundial da Violência


Armada. Tomando como base fontes consideradas altamente confiáveis, o Relatório elabora um
quadro de mortes diretas em um total de 62 conflitos armados no mundo, acontecidos entre os
anos 2004 e 2007.
299

Tabela 15 - Mortes diretas e taxas*em conflitos armados no


mundo e por arma de fogo no Brasil: 2004 a 2007
Conflitos armados 2004 2005 2006 2007 Total % Taxas
Mortes do médias
To
tal

Restantes 50 conflitos 11.388 9.252 8.862 9.273 38.775 18.6


Total 62 conflitos 46.071 42.490 55.878 63.910 208.349 100
Brasil: Armas de fogo 37.113 36.060 37.360 36.840 147.373
*taxas por 100 mil habitantes.
Fontes. Conflitos armados: Global Burden of Armed Violence. Mortalidade por AF Brasil:
SIM/SVS/MS

Os 12 maiores conflitos — que ocasionaram 81,4% do total de mortes diretas no total dos
62 conflitos — vitimaram 169.574 pessoas nos quatro anos computados. No Brasil, considerado
um país sem disputas territoriais, movimentos emancipatórios, guerras civis, enfrentamentos
religiosos, raciais ou étnicos, conflitos de fronteira ou atos terroristas, foram contabilizados, nos
últimos quatro anos disponíveis – 2008 a 2011 – um total de 206.005 vítimas de homicídios,
número bem superior aos 12 maiores conflitos armados acontecidos no mundo entre 2004 e 2007.
Mais ainda, esse número de homicídios resulta quase idêntico ao total de mortes diretas nos 62
conflitos armados desse período, que foi de 208.349. E essas magnitudes não podem ser
atribuídas, como muitas vezes se faz, ao gigantismo, às dimensões continentais do Brasil. Países
com número de habitantes semelhante ao do Brasil, como o Paquistão, com 185 milhões de
habitantes, têm números e taxas bem menores que os nossos. E sem falar da Índia, que possui
1.214 milhões de habitantes e taxas de homicídio muito inferiores às do Brasil. O Brasil, com sua
taxa de 27,4 homicídios por 100mil habitantes, supera largamente os índices dos 12 países mais
populosos do mundo. Só o México se aproxima: sua taxa foi de 22.1270.

270
Fonte: Mapa da Violência 2016. Publicado em:
http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2016/Mapa2016_armas_web.pdf .
300

Tabela 16 - Número e taxas de homicídios (por 100 mil) nos países mais populosos do
mundo
País Ano População Homicídios Homicídios Fonte
(milhões) Número Taxa /100mil
China 2010 1.339,20 13.410 1.0 Unodc
Índia 2010 1.184,60 41.726 3.4 Unodc
USA 2010 301,6 16.129 5.3 Whosis
Indonésia 2008 234,2 18.963 8.1 Unodc
Brasil 2010 190,8 52.260 27.4 SIM/MS
Paquistão 2010 170,3 13.208 7.6 Unodoc
Nigéria 2008 164,4 18.422 12.2 Unodc
Bangladesh 2010 158,3 3.988 2.7 Unodc
Rússia 2010 142,5 18.951 13.3 Whosis
Japão 2011 125,8 415 0,3 Whosis
México 2011 112,5 24.829 22.1 Whosis
Filipinas 2008 96.1 12.523 13.0 Whosis
Fontes: SIM/MS: Sistema de Informações de Mortalidade/MS; Unodc: United Nations Office on Drugs and Crime; e
Whosis: Sistema de Estatísticas da OMS

Os dados são extremamente altos no Brasil e, mesmo assim, continuamos afirmando que
o país não vive uma guerra. Não é o que parece para, por exemplo, os moradores de favelas no
Rio de Janeiro, como Jacarezinho e Rocinha, que viveram nos últimos meses (setembro, outubro
de 2017) verdadeiro terror.
O conceito de guerra também pode ter uma outra interpretação para alguns autores na
atualidade. Para o autor e professor Marildo Menegat (2012),

A conjuntura histórica recente tem apontado, não apenas no Brasil, mas como uma
tendência mundial, a efetivação da guerra como um acontecimento cotidiano. Ela tem
invadido a vida de milhões e indivíduos em tempos de paz aparente, destruindo não
apenas seus bens materiais como também invalidando os laços sociais, a partir de uma
descontinuidade na esfera pública onde as classes estabeleciam pactos de regulação de
distribuição de riqueza produzida. As formas de violência, que vão irrompendo o estado
civil, apontam para diferentes elos que não podem ser isolados. Desde a ação da polícia
nos bairros populares da cidade, que invariavelmente resultam em mortes de jovens
negros desempregados – sempre acusados de envolvimento com essa entidade mítica
chamada “tráfico” -, até os casos de crime financeiro de grandes empresas, passando
pelo desmonte do Estado, todos esses elementos estão presentes na efetivação da guerra
que inviabiliza a democracia e sua radicalização (MANEGAT, 200, p.15).

O número de mortos em decorrência de guerras aumentou 28% em 2014 na relação com


2013. A constatação é fruto de uma pesquisa realizada pelo Project for The Study of the 21st
301

Century, instituição que reúne especialistas de diferentes áreas de atuação dedicados ao estudo de
temas de relevância global, incluindo conflitos internacionais271.
De janeiro de 2011 a dezembro de 2015, foram mortas 278.839 pessoas no Brasil, número
maior do que o de mortos na guerra da Síria, onde 256.124 morreram no mesmo período,
segundo o Fórum. Os números do país do Oriente Médio são do Observatório de Direitos
Humanos na Síria e da ONU.

Figura 16 – Homicídios no Brasil e no mundo

Segue tabela com os dados dos 20 conflitos armados no mundo, onde se verifica que
apenas a Síria, país que tem vivido um verdadeiro massacre, é o único que supera as mortes no
Brasil, no período de 2013 e 2014.

271
Publicado em: http://exame.abril.com.br/mundo/as-20-guerras-mais-mortais-acontecendo-hoje-no-planeta/ ,
acesso em 11/06/2015.
302

Tabela 17 - 20 maiores conflitos armados no mundo e mortes em 2013 e 2014


País Ano Nº de Mortes Posição
Síria 2014 76.021 1º
2013 73.447
Iraque 2014 21.073 2º
2013 9.742
Afeganistão 2014 14.638 3º
2013 10.172
Nigéria 2014 11.529 4º
2013 4.727
Sudão do Sul 2014 6.389 5º
2013 4.168
Paquistão 2014 5.496 6º
2013 5.739
Sudão 2014 5.335 7º
2013 6.816
Ucrânia 2014 4.707 8º
2013 n/d
Somália 2014 4.447 9º
2013 3.153
República Centro-Africana 2014 3.347 10º
2013 2.364
Líbia 2014 2.825 11º
2013 643
Israel/Palestina 2014 2.365 12º
2013 46
Iêmen 2014 1.500 13º
2013 600
Congo 2014 1.235 14º
2013 1.976
Índia 2014 976 15º
2013 885
Filipinas 2014 386 16º
2013 322
Mali 2014 380 17º
2013 870
Cáucaso do Norte 2014 341 18º
2013 529
Tailândia 2014 330 19º
2013 455
Argélia 2014 242 20º
2013 340

O perfil dos adolescentes e jovens que estão sendo assassinados no país os dados não
deixam dúvidas: são em sua grande maioria adolescentes e jovens, do sexo masculino, negros,
faixa etária entre 15 e 25 anos; um jovem negro tem cerca de três (3) vezes mais chances de ser
assassinado que um jovem branco; os homens têm um risco 12 vezes maior de serem
assassinados do que as mulheres. Ou seja, essa violência é seletiva, racista, e tem demonstrado a
vulnerabilidade em que estão os adolescentes e jovens, especialmente os jovens negros e pobres.
303

A sociedade brasileira tem naturalizado essas mortes e muitos poucos têm se mobilizado para
enfrentar esse extermínio / genocídio de um segmento considerável da população. Uma das
razões que mantém a indiferença de grande parte da sociedade e das autoridades em enfrentar
esse problema é o perfil da maioria dos jovens que estão sendo mortos: negros e pobres. São
esses que estão em situação de rua, que estão nas favelas e periferias, que estão encarcerados;
esses a que chamamos “os indesejáveis”!
A ideologia que permeia esta visão da sociedade, a qual a consideramos como muito
próxima da que foi a ideologia nazifascista, está presente quando temos o dado de que metade da
sociedade brasileira considera que ‘bandido bom é bandido morto’. Esse foi o resultado da
pesquisa Datafolha, divulgada em outubro/15. Dos 1.307 entrevistados em 84 cidades com mais
de 100 mil habitantes, 50% concordam com a expressão, 45% discordam e 5% não concordam
nem discordam ou não sabem272. Acreditamos que esse dado tenha aumentado no período atual
(2017).
Uma das dimensões do racismo entranhado em nossas instituições e representações ou
subjetividades é acreditar que a vida desses adolescentes e jovens vale menos, ou não vale a pena
ser vivida. São negros, pobres, favelados, muitos dos quais vivem à margem do Estado de
Direito, submetidos às práticas cotidianas do estado de exceção. São constantemente vítimas de
preconceito, perseguidos e criminalizados pela única política pública permanente, que se fez
presente ao longo de suas vidas, a política de segurança pública. As políticas sociais, quando os
alcançam, são políticas compensatórias, pontuais, e que não promovem a vida desses sujeitos. Há
esgotamento das políticas de acolhimento para adolescentes, por exemplo, várias instituições
estão fechando por falta de recursos, e esse grupo social é jogado nas ruas. E não se prioriza uma
política de redução e/ou prevenção de homicídios junto a esse segmento da população brasileira.
É importante sempre destacar que é a população negra que mais sofre com a violência letal no
país. Isso explica o porquê muito pouco tem sido feito nos últimos anos para transformar essa
triste realidade. A falta ou o desinteresse em desenvolver políticas que, de fato, respondam às
reais necessidades dessas pessoas é também uma forma de, invariavelmente, matá-las, deixar
morrer... É como fortalecer uma política de extermínio.

272
Publicada em: http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2015/10/para-metade-do-pais-bandido-bom-e-bandido-
morto-diz-datafolha.html , acesso em 05/10/15.
304

Márcia Gatto - Daquela época do Movimento Nacional de Meninos/as de Rua


(1991), que denunciamos o extermínio de ‘meninos de rua’ no RJ, muitos
meninos que você atendeu já morreram?
Antônio Futuro273 – Muitos, muitos, muitos. Eu tenho fotos e mais fotos lá em
casa que não tem nenhum menino vivo mais...

O Estatuto da Criança e do Adolescente nunca foi efetivamente implementado no Brasil.


Direitos têm sido negados a milhares de crianças e adolescentes brasileiros, resultando nesse
cenário trágico de mortalidade por homicídios na adolescência.
Finalizo esse capítulo com um pequeno, porém importante texto de Átila Roque (Anistia
Internacional) e Pedro Abramovay, de título “A banalidade do extermínio274”, publicado na
coluna Opinião do jornal Globo, em 30/10/14, que tem muito a ver com o que estamos trazendo
nessa tese, por isso, importante para a nossa reflexão.

A banalidade do extermínio
É difícil entender como os alemães conviviam com a violência nos anos 30.
Mas estamos indo pelo mesmo caminho...
(Átila Roque / Pedro Abramovay)
Seis jovens. Dois com 12 anos, um com 14, um com 15 e dois com 18. Foram vítimas de
uma chacina em Duque de Caxias. Um dos meninos de 12 sobreviveu. Esta notícia não
estampou a capa de nenhum jornal nacional. E também não mereceu a manifestação de
nenhuma autoridade pública. É razoável que lidemos com normalidade com a execução
de adolescentes? Não se trata de apontar o dedo para a imprensa. Apontemos para nós
todos. Convivemos com normalidade com esses fatos.
Convivemos com normalidade com a morte de 1 milhão de brasileiros em pouco mais de
duas décadas. É a maior tragédia da nossa história desde a escravidão. Alguns pensam:
“O mundo é mesmo um lugar violento.” Não. Violento mesmo é o Brasil. São 56 mil
homicídios por ano. Somos responsáveis por mais de 10% dos homicídios do mundo.
Desse total, 30 mil eram jovens com idade entre 15 e 29 anos. O homicídio foi também a
principal causa da morte de adolescentes entre 12 e 18 anos (45,2%), em cidades com
mais de cem mil habitantes. Conhecemos esses dados, mas naturalizamos o horror.
Como se essas mortes fossem destino. Não eram. É uma escolha, resultado de escolhas
que fizemos ou deixamos de fazer.
Um dos desafios de grandes pensadores do século XX foi tentar entender como tantos
alemães lidaram com normalidade com a brutalidade da tragédia que ocorria por lá
durante o holocausto. Como as pessoas podiam ir trabalhar, comprar seu pão, pensar em
coisas triviais, enquanto corpos se acumulavam?
Uma dessas pensadoras, Hannah Arendt, descreveu esse fenômeno como a banalização
do mal. As pessoas perdiam a capacidade de perceber a monstruosidade dos fatos. A
ideia contemporânea de direitos humanos surge daí. A sociedade, o Estado, todos
devemos nos indignar, nos sensibilizar, nos chocar, quando se violam direitos, quando se
produzem tragédias. Achar isso normal não é humano.

273
Antônio Futuro, Pedagogo, Mestre em Educação, Educador Social e militante do movimento social em defesa da
criança e do adolescente desde meados da década de 1980.
274
Publicado em: https://oglobo.globo.com/opiniao/a-banalidade-do-exterminio-14402323 , acesso em 30/10/14
305

É muito difícil, para nós, no século XXI, olhar para a Alemanha dos anos 1930 e
compreender como eles conviviam com isso. Olhar para os nossos antepassados e
compreender como se convivia com a escravidão. Mas nós estamos indo pelo mesmo
caminho. Convivemos com uma tragédia de proporções indescritíveis com uma
normalidade que não será perdoada pela História. E por quê? Não nos enganemos. Os
que morrem são em sua maioria negros, são pobres, são invisíveis.
Não pensamos que, por trás do número de um milhão de mortos, há um milhão de mães,
de familiares, de vidas roubadas, histórias interrompidas. Tornamos tudo isso invisível.
Não se resolve o problema dos homicídios com um passe de mágica. Políticas públicas
complexas são necessárias. Mas o primeiro passo é perceber que a tragédia não é banal,
não é apenas um notícia de jornal, é chamar a atenção de que não queremos passar para a
História como outra geração que tolerou a morte em massa de jovens. Não queremos que
nossos netos tenham vergonha de nós.
Atila Roque é diretor executivo da Anistia
306

5 TANTA “PORRADA” TEM CONSEQUÊNCIAS!

A minha felicidade é a desgraça de vocês! É saber que vocês vão ficar


eternamente nessa situação275!

Este capítulo destaca o modelo que vem sendo implantado ao longo do tempo pelo Poder
Público, do Estado e Município do Rio de Janeiro, especialmente pela Secretaria de Assistência
Social e de Segurança Pública, no atendimento ao grupo social que denomino “sujeitos
indesejáveis”. As consequências desse modelo junto a este público, através de práticas que
historicamente violam direitos de crianças e adolescentes, sejam das que estão em situação de rua
(no sentido amplo do conceito), das provenientes de favelas e periferias, das que estão
encarceradas, ou mesmo, das que são vítimas da violência letal, são extremamente cruéis e
desumanas, comprometendo o bom desenvolvimento físico, psíquico, social.
A apresentação será feita a partir de casos exemplares que foram objeto de práticas e
posturas abusivas direcionadas a esse grupo social, e ressaltar que essa forma de atuação não
passa impune, pois tem consequências na vida e no comportamento dos meninos e meninas.
Desde o período de constituição da Rede Rio Criança (2001), foram produzidos 03
Manifestos das Crianças e Adolescentes em situação de rua que participaram do Fórum de
Meninos/as276 (2004, 2011 e 2014). Esses manifestos contêm várias denúncias de violências
sofridas pelos meninos/as nas ruas, nas favelas, nos abrigos, nas unidades do DEGASE, dentre
outras que, independente do tempo e do espaço, são práticas sistemáticas de atuação de atores do
poder público (servidores, contratados e terceirizados) junto a esse grupo social.
Para melhor análise e compreensão dessas denúncias, transcrevo abaixo os manifestos:

275
Fala de um Agente da Central de Recepção Taiguara, um equipamento da Secretaria Municipal de Assistência
Social (RJ), em 2015, para os meninos/as em situação de rua que lá estavam abrigados.
276
O Fórum de Crianças e Adolescentes em situação de rua da Rede Rio Criança (Fórum de Meninos/as) é um
espaço político-lúdico-pedagógico, de formação e organização, mas também de muita criatividade. É um espaço
privilegiado para esses grupos, quando se reúnem crianças, adolescentes e jovens das Instituições que integram a
Rede Rio Criança. São realizados uma média de 04 Fóruns ao ano.
307

2004
Manifesto das Crianças e Adolescentes em situação de rua na cidade do Rio de
Janeiro

Nós, crianças e adolescentes em situação de rua na cidade do Rio de Janeiro, repudiamos


toda e qualquer violência contra a infância e juventude que está em situação de rua.
Denunciamos e repudiamos a violência ocorrida nas ultimas semanas na Lapa, onde
guardas municipais nos acordaram debaixo de tapas, cassetetes e pontapés.
Denunciamos e repudiamos a política de limpeza exercida pelos recolhimentos do
Estado e Prefeitura.
Denunciamos e repudiamos o Projeto Zona Sul Legal, que caçou-nos e violentou-nos
como bichos ou bandidos, que serviu apenas para nos esculachar, violentar, maltratar e
traumatizar.
Denunciamos o abuso exercido pelos agentes do DEGASE, que algemam, abusam
sexualmente em trocas de drogas e cigarro e, principalmente, o castigo do quarto escuro,
no qual, há menos de um ano, uma menina se suicidou.
Denunciamos a falta de políticas e serviços para nos atender com respeito e dignidade.
Denunciamos e repudiamos as invasões violentas nas favelas pela policia, que espanca,
tortura e mata, destruindo a nossa esperança de vivermos na comunidade, fazendo com
que a gente vá morar nas ruas.
Denunciamos e repudiamos a ação do Governo, através da policia, na Rocinha,
afugentando diversas crianças e adolescentes da comunidade para as ruas.
Denunciamos e repudiamos a ausência de Justiça, na grande maioria dos casos de
desrespeito aos nossos direitos.
Denunciamos o caso do irmão de um adolescente aqui presente, que foi assassinado pela
policia, na Lapa, no ano passado, e o assassino ainda está solto e barbarizando.
Reivindicamos que os nossos direitos sejam respeitados e que nossas denúncias sejam
resolvidas e encaminhadas para as autoridades competentes.
Reivindicamos que os governantes e as autoridades adotem políticas publicas que
realmente deem certo para todas as crianças e adolescentes que estão nas ruas. E que
essas políticas não abandonem jovens que chegam na idade de 18 anos.
Agradecemos esta oportunidade e acreditamos no nosso direito de expressão, e que este
possa ser o único e real instrumento de transformação das ações exercidas até aqui.
Muito Obrigado.
Elaboraram este Manifesto Jovens atendidos pelas seguintes Instituições: Rede Rio
Criança (São Martinho, EXCOLA, Criança Rio, Se Essa Rua Fosse Minha, SMDS - CR
3.1), I Vara da Infância e Juventude e IBISS. Em 05/05/2004.

2011
Manifesto das Crianças e Adolescentes em Situação de Rua na cidade do Rio de
Janeiro contra as operações de recolhimento

Considerando a prática do recolhimento da população que se encontra em situação de


rua, adotada historicamente pelo Poder Público do Rio de Janeiro, como uma prática
arbitrária e desumana, que faz uso da força e violência policial para retirar pessoas que
estão em situação de abandono nas ruas;
Considerando a RESOLUÇÃO SMAS Nº 20 DE 27 DE MAIO DE 2011, que cria e
regulamenta o Protocolo do Serviço Especializado em Abordagem Social, tendo em seus
objetivos o recolhimento e a internação compulsória de crianças e adolescentes em
situação de rua na cidade do Rio de Janeiro, uma resolução que viola a Constituição
Federal, o Estatuto da Criança e do Adolescente, a Convenção Internacional dos Direitos
da Criança e a Lei de Saúde Mental, dentre outras;
Considerando que a citada resolução infringe as diretrizes estabelecidas na Política
Municipal de Atendimento às Crianças e Adolescentes em Situação de Rua, deliberada
pelo CMDCA Rio em 2009, crianças e adolescentes reunidos no Fórum das Crianças e
308

277
Adolescentes em Situação de Rua, realizado pela Rede Rio Criança , no dia 15 de
junho de 2011, denunciam e reivindicam:
- Nós, crianças e adolescentes em situação de rua denunciamos as operações de
recolhimento, feitas na cidade do Rio de Janeiro pela Prefeitura do Rio, todas feitas de
forma violenta pela polícia, que chegam batendo, agredindo, e nos levam para a
delegacia como se fôssemos bandidos, e para abrigos que não adiantam de nada. O que
adianta tirar as pessoas da rua e não oferecer nada melhor? Antes de recolher tem que ter
um plano que ofereça melhores condições de vida para as pessoas.
- Denunciamos os policiais que levam nosso dinheiro, levam tudo o que a gente tem.
- Denunciamos a forma como os policiais entram nas comunidades, dando tiro, achando
que todo mundo é bandido. Eles não respeitam as pessoas.
- Denunciamos a forma como tratam as pessoas que fazem uso de droga, pois em vez de
tratarem, reprimem e dopam a gente. Eles ficam só em cima dos “cracudos” e têm muita
gente morrendo de overdose por outras drogas.
- Denunciamos a clínica de Barra Mansa, Casa Reviva, que dopam a gente o dia todo e
ainda nos amarram na cama.
- Denunciamos o tipo de tratamento nas clínicas para tratamento de drogadição, que dão
remédios e não nos oferecem outras atividades. O tratamento é importante, mas é tudo
fogo de palha, é tudo por causa da Copa; estão apenas maquiando a cidade.
- Denunciamos o DEGASE (Instituto Padre Severino), pois eles batem, esculacham os
adolescentes lá dentro, oprimem o menor. E muitas vezes pegam o dinheiro das famílias
quando vão visitar. Os adolescentes saem pior do que quando entraram.
- Nós reivindicamos que tem sim que acabar com a cracolândia, mas tem que dar um
tratamento digno. Tem que levar as pessoas para um local que oferecesse alguma coisa
melhor, escolas, estágio, profissionalização. As pessoas que estão na rua têm que ser
respeitadas, tem que dar outra alternativa, e não cadeia. Tem que ouvir as pessoas, e não
ficar agindo por elas. Tem que saber o que elas querem, o que precisam. Tem que ter
escuta, afeto, cuidado, e não repressão. A polícia e a prefeitura devem selecionar melhor
as pessoas que abordam, não pode colocar pessoas despreparadas.
- Queremos, enfim, que nos tratem como pessoas que somos, e que respeitem nossos
direitos.
Fórum das Crianças e Adolescentes em Situação de Rua da Rede Rio Criança,
15/06/2011.

2014
Manifesto das Crianças e Adolescentes em Situação de Rua contra a violação de
direitos humanos na cidade do Rio de Janeiro

Considerando que historicamente pessoas que estão em situação de abandono e miséria


nas ruas, especialmente crianças e adolescentes, são recolhidas das ruas de forma
arbitrária e violenta pelo Poder Público da cidade do Rio de janeiro, como um tipo de
prática higienista e desumana, fazendo uso da força e violência policial;
Nós, Crianças e Adolescentes em situação de rua na cidade do Rio de Janeiro, reunidos
278
no Fórum de Meninos e Meninos da Rede Rio Criança , no dia 02 de abril de 2014, na
Associação Beneficente São Martinho, denunciamos e repudiamos:
- As operações de recolhimento compulsório feitas pela Prefeitura do Rio de Janeiro,
através da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SMDS), feitas de forma

277
A Rede Rio Criança é uma articulação de referência no atendimento às crianças e adolescentes em situação de rua
na cidade do Rio de Janeiro, formada por 16 ONGs, que atuam de forma articulada e complementar. E-mail:
rederiocrianca2001@gmail.com
278
Instituições filiadas à Rede Rio Criança: Associação Beneficente Amar, Associação Beneficente São Martinho,
Associação Brasileira Terra dos Homens, Associação Excola, Banco da Providência, CEDECA RJ, Centro de
Teatro do Oprimido, Movimento Moleque, REMER, Pastoral do Menor e Se Essa Rua Fosse Minha.
309

arbitrária e violenta, e com a participação da polícia, que chega batendo, agredindo e


esculachando a gente;
- Denunciamos a Central de Recepção Taiguara e um dos seus Agentes que nos bate,
xinga e diz que “A minha felicidade é a desgraça de vocês. É saber que vocês vão ficar
eternamente nessa situação”.
- Denunciamos a violência policial nas ruas e os choques elétricos que recebemos da
polícia e da guarda municipal na rua e nos abrigos;
- Não queremos mais que a polícia continue nos esculachando, abusando de autoridade
dentro da Central Carioca e Taiguara, que entra batendo, mandando a gente abaixar a
cabeça, deitar no chão e chama todo mundo de Fdp;
- Denunciamos o Racismo! Somos chamados de ladrão só porque somos negros!
- Denunciamos a P2, que bate e aponta a arma pra gente em Copacabana e no Centro;
- Denunciamos a polícia que fica sarqueando a gente;
-Denunciamos o grupo de “justiceiros” que vem barbarizando, batendo, ameaçando e
prendendo os meninos em poste, etc...;
- NÃO QUEREMOS MAIS:
- Ser oprimido, espancado; Ser afastado da sociedade.
- Não quero mais apanhar na rua; Não quero mais ser forjado; Não quero mais ser
xingado; Não quero mais tomar choque; Não quero tomar cacetada, porrada; Não quero
UPP; Não quero mais Lapa Presente; Não quero roubar; Não quero fazer nada de ruim;
Não quero mais sofrer!
Fórum de Crianças e Adolescentes em situação de rua da Rede Rio Criança (Fórum de
Meninos/as)
Rio de Janeiro, 02 de abril de 2014.

Diante das denúncias diárias de agressão, violência e tortura trazidas pelos meninos/as, e
muitas delas também presenciadas pelos Educadores Sociais das Instituições da sociedade civil
que tem atuação direta com esses meninos/as nas ruas, buscávamos apoio no Sistema de Garantia
de Direitos da Criança e do Adolescente279, e também através de denúncias aos organismos
internacionais, mas, as respostas foram muito poucas. A higienização das ruas era muito mais
importante do que garantir direitos.

Tanta “porrada” tem consequências!!

Muitos são os casos exemplares que retratam o abuso de violência sofrida por esses
meninos/as. Alguns desses foram noticiados na mídia, especialmente pela atuação da Defensoria
Pública do Rio de Janeiro e dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (CEDECAs).
Temas como operações de recolhimento, operação verão, superlotação no DEGASE, já
trouxemos no capítulo anterior. Mas, existem outros casos também graves de intervenções
279
O Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente constitui-se na articulação e integração das
instâncias públicas governamentais e da sociedade civil na aplicação de instrumentos normativos e no
funcionamento dos mecanismos de promoção, defesa e controle para a efetivação dos direitos da criança e do
adolescente, nos níveis Federal, Estadual, Distrital e Municipal. (Ver em: http://www.sdh.gov.br/assuntos/criancas-
e-adolescentes/programas/fortalecimento-de-conselhos/garantia-de-direitos-da-crianca-e-do-adolescente )
310

públicas que aqui merecem serem destacados, como casos de maus tratos e tortura em Abrigos
públicos, e a retirada e adoção compulsória de bebês de adolescentes e mulheres em situação de
rua supostamente usuárias de crack, e de como esse somatório de modelos e práticas tiveram
consequências diretas no comportamento desses meninos/as ao longo do tempo.
Para contextualizar e ilustrar melhor essas questões, serão apresentados alguns desses
casos, relatos e notícias sobre casos /fatos notórios e seus desdobramentos, sem esquecer que
estes são apenas parte de uma realidade social muito mais ampla e complexa.

5.1 1º Caso: A Casa Viva

O segundo manifesto do Fórum de Meninos/as da Rede Rio Criança, produzido em


meados de 2011, tem como principal questão a Resolução 20/2011 – o Protocolo do Serviço
Especializado em Abordagem Social, que traz com ela uma série de arbitrariedades e afrontas à
Constituição Federal e normativas nacionais, especialmente por institucionalizar o recolhimento e
a internação compulsória de crianças e adolescentes em situação de rua, supostamente usuárias de
drogas. No capítulo 4 dessa tese, já tratamos amplamente desse tema. Mas, o que destacaremos
aqui é um tipo de equipamento que foi criado pela Assistência Social para tratar dos casos de
drogadição de crianças e adolescentes recolhidos e internados compulsoriamente, que foi
duramente criticado e denunciado: as chamadas Casas Vivas, um tipo de “abrigo
especializado280” da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social. A primeira Casa Viva foi
inaugurada no bairro de Laranjeiras, zona sul do Rio de Janeiro, com muita pompa, mas objeto de
muita polêmica e denúncias. Sua estrutura era para atender a 12 adolescentes, e tinha uma equipe
de funcionários formada por psiquiatra, presença constante fundamental nos casos de internação,
mas que só aparecia, eventualmente, uma vez por semana; enfermeiro, educador social,
psicóloga, assistente social. A medicação era prescrita de forma geral, sem respeito à

280
, Abrigo especializado é um tipo de equipamento criado pela Secretaria Municipal de Assistência Social (RJ), em
2011, com quadro de equipe multidisciplinar, para o atendimento de determinados casos que necessitem de
atendimento diferenciado, como o tratamento de saúde (neste caso dependência química de crianças e adolescentes
em situação de rua). Esse equipamento não é tipificado, ou seja, não existe no documento Tipificação dos Serviços
Socioassistenciais. Além de sofrer críticas por isto, outras ainda maiores surgiram por parte da área da Saúde, que
considerou que não cabe à Assistência Social tratar questões que são da área de saúde.
311

particularidade e individualidade de caso a caso. Representantes de entidades de direitos humanos


e dos conselhos regionais de enfermagem, assistência social e psicologia criticaram a medida,
classificada como "inconstitucional e de faxina da cidade". A estrutura também foi muito
criticada, considerada pouca adequada e perigosa.
As primeiras denúncias que surgiram foi por parte dos vizinhos, falando que ouviam
gritos à noite e de madrugada, e que os adolescentes sofriam maus tratos. Alguns meninos
também eram vistos tentando fugir pelo telhado da casa. Entidades de direitos humanos que
visitaram o equipamento denunciaram o fato de as crianças e adolescentes não receberem
tratamento adequado, conforme preconiza a política nacional de saúde mental e ainda, de estarem
privados de liberdade, bem como sem participarem de atividades pedagógicas e/ou lúdicas.
“Temos recebido ainda relatos sobre agressões sofridas por esses jovens dentro dos abrigos”,
afirmou a presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB à época (2011), Margarida
Pressburguer, que também afirmou ter sido informada que “os jovens passavam boa parte do
tempo medicalizados com remédios de tarja preta e sem acompanhamento adequado”.
O Programa Profissão Repórter que foi ao ar no dia 09 de julho de 2011, tratou desse
tema, quando o repórter Caco Barcellos foi à Casa Viva. Observamos grande manipulação na
reportagem, quando a intenção era mostrar ao público a importância daquele equipamento no
tratamento dos adolescentes internados, supostamente sob o efeito de drogas. Para os leigos,
talvez tenha surtido efeito, mas para quem trabalha na área, ou tem um mínimo de informação
sobre o tema, não foi convincente. Para ilustrar, segue o relato de um profissional do CAPS
(Centro de Atenção Psicossocial) que viu o programa.
O Relato de Luciano:

Em 26 de julho de 2011 09:19, Luciano escreveu:

Caros,
Eu estava fora do Rio passando uma semana de férias e por isso assisti a este programa
de que Sandra fala. No Rio, nunca vejo TV, mas lá eu vi.
Fiquei MUITO IMPRESSIONADO com o programa. Mostram crianças sendo
violentamente aprisionadas, à força e levadas desta forma para dentro das casas
chamadas "vivas" (???!!!). Diante do quadro brutal, Caco Barcellos, que entrevistava
pessoas, entre eles médicos nesta ação, repetia um dito de um dos médicos: "Isso é
abstinência, olha como eles ficam. Tiramos eles do crack e ficam assim! Depois vai
passar..." E essas coisas eram repetidas, sem que ninguém, nem mesmo o inteligente
jornalista-repórter, fizesse uma simples pergunta: "Mas como assim, abstinência, se eles
acabaram de ser arrancados da droga, do crack? Não estão portanto ainda sob seu efeito?
Não estão se debatendo desta forma PORQUE ESTÃO SENDO PEGOS À FORÇA E
PRESOS?" O Caco Barcellos só repetia: "É abstinência, é abstinência!" E seguia
312

mostrando esta mesma cena, repetida incansavelmente com meninos diferentes. Só os


meninos eram diferentes, o resto era igual.
Em outro fragmento, os meninos apresentavam o quadro de suas vidas: "Não tenho nada
a perder, minha mãe está presa (ou foi embora, ou morreu), não tenho pai, não tenho
nada mesmo". Bem, esse é verdadeiro crack na vida deles, certo? Mas não, o que o
PROFISSÃO REPÓRTER e muita gente pensa é que o único e verdadeiro mal da vida
deles é o crack, o resto vai bem, e é por isso que é preciso arrancá-los deste mal...
O jornalista mostrava o quadro do menino depois de algum tempo de "tratamento".
Comendo uma refeição, o menino caía de sono em cima do prato. Comentário: "como
ficam enfraquecidos com o uso do crack". Ninguém era capaz de perguntar que drogas
medicamentosas o menino estava tomando, e em que doses, para ficarem assim tão
dopados a ponto de, mesmo esfomeados, preferirem "dormir" a comer.
A mãe que estava presa saiu da cadeia. Levaram o menino ao seu encontro, da mãe e da
irmã, e elas ao menino. A mãe não conseguia fazer outra coisa senão criticar o menino,
dura e rija, e... passados alguns dias, nunca mais foi vê-lo na "casa de tratamento".
Também não cogitaram de ela levar o menino quando foi até lá, pois ele ainda precisava
de mais alguns dias de "tratamento". Mesmo que tivessem proposto isso, estava claro
que ela não o levaria. Era tudo encenação. De todos, menos talvez do menino, que
mostrou-se bastante apreensivo e inquieto nos poucos momentos em que esteve próximo
à mãe.

Essa reportagem da qual relata Luciano, foi motivo de várias críticas de profissionais de
saúde e de defensores de direitos humanos quanto ao tratamento que era dado àqueles que eram
internados compulsoriamente. As informações corriam e circulavam entre as crianças e
adolescentes em situação de rua, que também faziam suas denúncias e fugiam de tal internação e
tratamento. Outros “abrigos especializados” foram abertos, 03 deles na zona oeste do Rio, que
também foram denunciados por maus tratos, abuso no uso de medicalização, desvio e má gestão
de verba pública, já mencionados em capítulo anterior.
A Casa Viva de Laranjeiras tentou se adequar depois das denúncias, mas não conseguiu
alcançar o modelo ideal, nem o possível, especialmente pela sua estrutura física e metodologia de
ação. Outras três Casas Vivas foram abertas para esse tipo de atendimento, mas sempre foram
criticadas por especialistas e, muitas vezes, por profissionais que trabalharam no equipamento,
por não desenvolverem uma metodologia adequada.
313

5.2 2º Caso: Recolhimento, “Pingo de mel", abuso e Tortura nas Centrais de Recepção281

Em início de 2014, ano de realização da Copa do Mundo na cidade maravilhosa, além da


intensificação das operações de recolhimento, tivemos várias denúncias de maus tratos e tortura
em abrigos e Centrais de Recepção da Prefeitura. Época também em que foi elaborado o 3º
manifesto do Fórum de Meninos/as da Rede Rio Criança, que foi lido e teatralizado em
Audiência Pública na Câmara Municipal de Vereadores, em 10 de abril de 2014, intitulada
“Violência sistemática às crianças e adolescentes em situação de rua na cidade do RJ282”.
Ainda me lembro do dia em que uma Educadora, defensora de direitos humanos, me
contou, muito assustada e revoltada, o que estava acontecendo na Central de Recepção Taiguara,
no Centro do Rio, me pedindo para ajudar a denunciar, mas não poderia aparecer o seu nome,
nem o das meninas, pois haveria represálias. Sentamo-nos num dos bancos da Cinelândia e ela
fez várias denúncias: que as meninas da Central Taiguara estavam sofrendo abuso sexual por um
dos funcionários, e que elas a procuraram muito nervosas e contaram que essa pessoa ficava se
insinuando e mostrando as partes íntimas; que a polícia era sempre chamada quando tinha algum
tumulto na casa e que fazia uso de violência física e psicológica, usando, inclusive, arma não letal
(choque); e que havia também um funcionário da casa que repetia uma frase “tenebrosa” para os
adolescentes, frase essa que, ao ouvi-la, senti meu corpo estremecer: “A minha felicidade é a
desgraça de vocês! É saber que vocês vão ficar eternamente nessa situação!” É impossível ouvir
tal barbaridade sem sentir o peso e o requinte de crueldade que cada palavra apresenta! Saímos da
Cinelândia, eu, ela e mais um Educador meio tontos e, sinceramente, abalados, amortecidos, com
um sentimento profundo de dor e solidariedade àquelas meninas e meninos, meio sem entender e
nos perguntando a que ponto chegamos enquanto civilização, a que ponto chegou a humanidade?
Fica também a certeza de que ninguém sai ileso depois de ouvir isso!

Tanta “porrada” tem consequências!!

281
As Centrais de Recepção são a porta de entrada das crianças e adolescentes que são recolhidas das ruas, ou
encaminhadas pelo Conselho Tutelar, dentre outros. De lá, é feita a triagem para outros equipamentos.
282
Publicada em: http://www.ciespi.org.br/eventos-e-noticias/635-nota-sobre-o-debate-publico-violencia-
sistematica-contra-criancas-e-adolescentes-desdobramentos-do-debate-publico-do-dia-10-de-abril ,
e em: https://www.youtube.com/watch?v=9exSyaKoBC0 .
314

A denúncia foi encaminhada para a ouvidoria da Secretaria de Direitos Humanos da


Presidência da República (segue abaixo), bem como através do Manifesto elaborado pelo Fórum
de Meninos/as da Rede Rio Criança e performance, ambos apresentados na Audiência Pública
“Violência sistemática às crianças e adolescentes em situação de rua na cidade do RJ”, em
abril/2014.

Rio de Janeiro, 28 de março de 2014.


À Ouvidoria da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República
Prezados Senhores,
Vimos, por meio desta, denunciar uma série de violações de direitos humanos cometidas
por órgãos governamentais do Município do Rio de Janeiro contra crianças e
adolescentes em situação de rua e abrigadas em equipamentos do Estado.
1ª) Recolhimento de crianças e adolescentes em situação de rua – As sucessivas e
sistemáticas operações de recolhimento da população que se encontra nas ruas,
especialmente crianças e adolescentes, têm sido feitas de forma compulsória, arbitrária e
violenta por profissionais (agentes) da Secretaria Municipal de Assistência em conjunto
com a polícia militar e guarda municipal, contra essa população, principalmente após a
implementação da Resolução nº 20 da Secretaria Municipal de Assistência Social
(atualmente designada Sec. Munic. Desenvolvimento Social) – o Protocolo do Serviço
Especializado em Abordagem Social, em maio de 2011. Várias pessoas são
criminalizadas, levadas para a delegacia (DPCA – Delegacia de Proteção à Criança e ao
Adolescente) e DEGASE (Departamento Geral de Ações Socioeducativas), que
encontra-se superlotado.
2ª) Casos de violência, abuso e tortura na Central de Recepção Taiguara, Centro do
RJ, um equipamento do Município do RJ, que abriga crianças e adolescentes
provenientes das operações de recolhimento – Nos foi relatado a seguinte denúncia:
Casos de maus tratos e violência policial no interior do abrigo – A Coordenação do
Abrigo, em qualquer caso de conflito interno (briga entre os meninos/as, ou danos ao
patrimônio, etc.), a polícia militar e guarda municipal são chamadas para reprimir as
crianças e adolescentes abrigadas. Isso é feito com muita violência, a polícia entra
armada num equipamento público, agride os meninos/as oral e fisicamente, os segura
pelo pescoço, bate e obriga-os a deitar no chão, fazendo uso, inclusive, do “Taser” –
aparelho de choques elétricos. A estrutura do local é péssima e insalubre. Também foi
dito que jovens adolescentes (meninas) já foram vítimas de abuso sexual feitos por um
agente/educador e um porteiro (que foi demitido).
Com tudo isso, vários profissionais (sejam da área da saúde, assistência ou educadores
sociais), estão adoecendo vendo o sofrimento das crianças e adolescentes vítimas dessas
medidas de cunho higienista, arbitrárias e violentas, executadas por um Estado que em
nome da proteção viola direitos.
Solicitamos, assim, que a Secretaria de Direitos Humanos tome providências urgentes
para frear esse ciclo de barbáries que se instalou na cidade do Rio de Janeiro, agravadas
diante dos grandes eventos.

Outra grave denúncia feita pelo Educador Jô Ventura foi um tipo de violência conhecida
com “pingo de mel”. Geralmente praticada por policiais, que podemos identificar como prática de
tortura, com requinte de crueldade, era derreter o plástico e deixar pingar o líquido fervente
(“pingo de mel”) na pele, preferencialmente nos pés, de adolescentes pegos na operação de
recolhimento. O plástico derretido provocava, imediatamente, queimaduras de 3º grau.
315

Figura 17 – Pingo de mel

Foto: Jô Ventura

No segundo semestre de 2014, a representante da Secretaria de Direitos Humanos (SDH)


veio ao Rio de Janeiro para fiscalizar a Central de Recepção Taiguara. Convidamos também para
a visita de fiscalização o Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, além de mim,
enquanto representante da sociedade civil. Visitamos o local, conversamos com funcionários e
adolescentes abrigados. O espaço não oferecia as condições ideais de estrutura para o
atendimento. A diretora adjunta da Central nos informou que a Secretaria Municipal de
Assistência estava providenciando um novo local, bem mais amplo e adequado ao atendimento, e
o posterior fechamento da Central de Recepção Taiguara. Em relação às denúncias, a diretora
informou que os funcionários foram advertidos, um foi demitido e outro transferido. Na conversa
com os funcionários, alguns admitiram as dificuldades em relação à estrutura, interferindo,
inclusive, na realização de suas atividades. As meninas que sofreram os abusos não mais se
encontravam na Central de Recepção. Já as adolescentes que encontramos confirmaram que
tinham conhecimento das denúncias de maus tratos e abuso feitas à época, mas não tinham como
provar. Dessa forma, os relatos foram apenas anexados ao relatório da SDH, sem esta ter como
tomar medidas mais concretas em relação à Central Taiguara, deixando apenas a orientação e
recomendação de fechamento do local.
316

5.3 3º Caso: Retirada e adoção compulsória de bebês de jovens mães que estão em situação
de rua, supostamente usuárias de drogas

Denúncia feita pelo Fórum da População de Rua, numa reunião no Conselho Regional de
Serviço Social (CRESS RJ), em meados de março/2014, na qual participaram representantes da
sociedade civil, profissionais de maternidades e hospitais públicos, assistentes sociais, dentre
outros. Foi relatado que existia uma orientação / determinação do Ministério Público (mas que a
princípio nenhuma instituição presente havia visto ou recebido por escrito), de que toda
adolescente grávida em situação de rua, que estivesse em acompanhamento pré-natal ou que
tivesse dado entrada na maternidade para ter o bebê, se fosse detectado essa ser usuária de drogas
(crack, dentre outras), que o Hospital ou Maternidade deveria notificar imediatamente a I Vara da
Infância e Juventude, que procederia a suspensão do poder familiar ou, quando possível, a
entrega do bebê à família extensa ou substituta. Das maternidades presentes à reunião, a Carmela
Dutra foi a única que relatou que recebeu uma orientação por escrito da 9ª Promotoria da Infância
e Juventude (Meier / RJ) na qual versava sobre a questão. Com isso, muitos têm sido os casos de
retirada compulsória dos bebês de suas mães, sem nem o direito de amamentá-los. Com medo de
perderem seus filhos, muitas dessas jovens grávidas não fazem exames e/ou pré-natal.
De acordo com informação do Conselho Regional de Serviço Social, das 53 mães
atendidas em maternidades municipais do RJ, identificadas como usuárias de crack e em situação
de rua, apenas 14 saíram do hospital com seus filhos. As demais 39 foram afastadas de seus
bebês, que tiveram os seguintes encaminhamentos: encaminhados para abrigos (19), outros
familiares (10), adoção (4), dentre outros. Os dados foram levantados em três maternidades –
Carmela Dutra, Leila Diniz e Herculano Pinheiro -, entre janeiro e junho de 2013. Uma jovem em
situação de rua presente à reunião e que não quis se identificar, contou que uma amiga foi
agredida pela polícia quando estava grávida de oito meses. E acrescentou: “Ela não fez o pré-
natal com medo de perder a criança. Nós somos muito discriminados, no hospital somos os
últimos a ser atendidos.” E, sobre os abrigos, disse que “a rua continua sendo melhor que os
abrigos do Rio283.”

283
Informações dadas durante reunião ocorrida em março de 2014, no Conselho Regional de Serviço Social
(CRESS), no RJ, e publicada na Revista Praxis, nº 76, março/abril de 2014, pág. 16.
317

Como forma a dar continuidade a essa discussão, o Ministério Público resolveu criar uma
Oficina sobre retirada e adoção compulsória de bebês, com a realização de reuniões quinzenais
sobre essa temática, com o objetivo de articular diferentes grupos e segmentos envolvidos nesse
tema. As reuniões foram muito expressivas, envolvendo profissionais de saúde, de assistência,
movimento social, legislativo, sociedade civil, ministério público, defensoria pública, com muitos
debates, denúncias, troca de experiências na busca da garantia de direitos para as mulheres,
adolescentes e seus bebês.
Esse tema foi por mim levado para o Grupo de Trabalho no CONANDA284, do qual
participava o Ministério da Saúde, dentre outros, bem como por representante do Movimento
Nacional da População de Rua, que também trouxe denúncias dessa ocorrência em outros
Estados, especialmente na cidade de Belo Horizonte (MG) e Espírito Santo. O Ministério da
Saúde elaborou Nota Técnica com orientações para os profissionais de saúde sobre o tema, como
forma de prevenção e cuidado dessas mulheres (apresentada no capítulo 6).
É interessante observar que propostas e práticas de restrição da maternidade de mulheres e
jovens em situação de rua é um fato que tem sido acompanhado e, de fato implantado, em alguns
períodos de nossa história recente. Na década de 1990, por exemplo, quando de minha atuação no
Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, lembro-me de notícias e debate sobre a
“esterilização de mulheres no Brasil”. A esterilização forçada de mulheres, especialmente negras,
das camadas de baixa renda, já foi objeto de grande polêmica no Brasil nos anos 1990285. Àquela
época, foi formada uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, em 1993, presidida pela então
Deputada Benedita da Silva (PT RJ), para examinar a "incidência de esterilização em massa de
mulheres no Brasil286", que produziu um relatório de 141 páginas que concluiu pela confirmação
da esterilização em massa de mulheres no Brasil na década de 80, pela existência de
financiamento externo para essa campanha, e pela maior incidência de esterilizações em mulheres
da raça negra, entre outras conclusões.

284
Grupo formado pelo CONANDA por representantes de governo (Ministérios) e sociedade civil constituído para
formular propostas de diretrizes nacionais pata o atendimento às crianças e adolescentes em situação de rua.
285
Ver em "A Esterilização Feminina no Brasil: Diferenciais por Escolaridade e Renda" (Ignez Helena Oliva
Perpétuo e Simone Wajnman, Revista Brasileira de Estudos da População, v. 10, n. 1/2, p. 25-39, 1993).
286
Relatório n. 2, de 1993 - CN : Relatório final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito destinada a examinar a
incidência de esterilização em massa de mulheres no Brasil. Para acessar o relatório, ver em:
http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/85082/CPMIEsterilizacao.pdf?sequence=7 .
318

De acordo com as informações, o financiamento externo viria dos Estados Unidos, através
de um plano secreto de esterilização de mulheres em países subdesenvolvidos, entre eles o Brasil,
o “Memorando 200”, elaborado em 1974 por Henry Kissinger, conselheiro para a segurança
nacional dos EUA. Em 1989, o plano deixou de ser secreto. O seu tema era o crescimento da
população no mundo e as suas consequências para a segurança dos EUA e dos seus interesses no
estrangeiro. Ao propor medidas para a redução significativa de população, Kissinger escreveu:
“O mundo depende cada vez mais dos fornecimentos de minérios dos países em
desenvolvimento, e se o crescimento rápido da população violar as suas perspectivas do
desenvolvimento econômico e do progresso social, a instabilidade que surge poderá minar as
condições para a produção alargada e para o apoio da corrente constante desses recursos287”.
A esterilização tornou-se o meio contraceptivo mais popular na América Latina nos anos
de 1980-1990. No início dos 1990, o Ministério da Saúde do Brasil começou a investigar a
esterilização em massa de mulheres brasileiras. Constatou-se que cerca de 44% de todas as
mulheres brasileiras em idades entre 14 e 55 anos foram regularmente esterilizadas. A
esterilização era realizada por várias organizações e agências, sendo muito poucas delas
brasileiras. A Federação Internacional de Planejamento Familiar, a Fundação Pathfinder norte-
americana, a Associação pela Contracepção Cirúrgica Voluntária, a Saúde Familiar Internacional
agiam todas sob a égide da Agência de Desenvolvimento Internacional do Departamento de
Estado dos EUA (USAID). Em 1989, o governo brasileiro, que inicialmente era um adepto
convicto desse programa, motivado pela luta contra a pobreza, informou a USAID de que os
programas de esterilização se tornaram “excessivos e inúteis”288.

Os nazistas aceitavam como fato as conexões “auto evidentes” entre defeitos raciais ou
biológicos e crime, e essa teoria começou a ser usada como parte da justificativa para os
campos, assim como para outras medidas, como a esterilização daqueles considerados
criminosos inveterados ou como casos de assistência social (GELLATELY, p. 111).

Programas de esterilização de mulheres são ainda enunciados em alguns países, como na


África (mulheres portadoras do vírus HIV), e, no Brasil, quando o tema foi trazido pelo Ex
Governador do Rio de Janeiro, Sérgio Cabral, que propôs, em 2007, a legalização do aborto como
287
Publicado em: https://br.sputniknews.com/portuguese.ruvr.ru/2014_04_13/face-escura-dos-eua-esterilizacao-para-
reduzir-a-populacao-2360/ , acesso em 20/05/17.
288
Leia mais: https://br.sputniknews.com/portuguese.ruvr.ru/2014_04_13/face-escura-dos-eua-esterilizacao-para-
reduzir-a-populacao-2360/ .
319

forma de conter a violência no Rio de Janeiro: "Tem tudo a ver com violência”, disse Cabral.
“Você pega o número de filhos por mãe na Lagoa Rodrigo de Freitas, Tijuca, Méier e
Copacabana, é padrão sueco”. “Agora, pega na Rocinha, é padrão Zâmbia, Gabão”. “Isso é uma
fábrica de produzir marginal", declarou289. O Vereador Carlos Bolsonaro, filho do Deputado Jair
Bolsonaro, defende um projeto para facilitar a esterilização de moradores de rua. Em 2013,
quando realizamos o Seminário Regional da Rede Nacional de Atenção às Crianças e
Adolescentes em situação de rua, em Salvador (BA), o Secretário Municipal de Promoção Social
e Combate a Pobreza, Maurício Trindade, disse na mesa de abertura que a população de rua “só
bebia cachaça, não tomava banho e que as mulheres deveriam ser esterilizadas e homens fazerem
vasectomia”!

Tanta “porrada” tem consequências!!

Sim, tanta “porrada” tem consequências!! As sucessivas operações de recolhimento e


operação verão, as várias formas de abuso e agressão, a violência policial, os casos de tortura, a
ação de justiceiros, etc., ao longo de tantos anos junto a esse grupo social que denomino “sujeitos
indesejáveis”, e o particular recrudescimento dessas práticas a partir de 2011, com a Resolução
20 com os preparativos e organização da cidade do Rio de Janeiro para os Megaeventos,
prejudicou em muito o trabalho desenvolvido pelas Instituições da RRC que atuam diretamente
com as crianças e adolescentes, mas, principalmente, teve graves consequências no
comportamento dos meninos/as, e nas relações interpessoais Educador - Menino, tornando-os
cada vez mais agressivos e, muitas vezes, indiferentes ao atendimento e ao estabelecimento de
vínculos.
Por mais que tenhamos conhecimento que estamos em outros tempos, que os jovens de
hoje não são como os de outrora e que isso nos impõe novos desafios, nos exige utilizar de novas
estratégias de ação, novas metodologias, etc., é indiscutível as consequências dessas práticas no
comportamento e vida desses sujeitos. Em nosso caso, ou seja, para os educadores sociais e
defensores de direitos humanos que atuam, principalmente, com crianças e adolescentes em
situação de rua, essa preocupação foi fruto de muitos debates, pois estava claro que não

289
Publicado em: http://g1.globo.com/Noticias/Politica/0,,MUL155710-5601,00-CABRAL+DEFENDE+
ABORTO+CONTRA+VIOLENCIA+NO+RIO+DE+JANEIRO.html , acesso em outubro/2007.
320

estávamos conseguindo ter respostas ao trabalho realizado, e que a cada dia mais dificuldades
apareciam.
É... tanta “porrada” tem consequências!! Eu repetia isso em todas as reuniões que
participava, nos diferentes espaços e coletivos, por cerca de 02 anos.
Para ilustrar, relato dois casos que nos deixou impressionados e muito preocupados. O
primeiro ocorreu no Fórum de Crianças e Adolescentes em situação de rua da Rede Rio Criança
(Fórum de Meninos/as), realizado em 2014, na ONG Se Essa Rua Fosse Minha, em
Laranjeiras/RJ. Um grupo aproximado de 12 adolescentes participou através de uma das
Instituições (São Martinho). Eram jovens com idade entre 15 e 18 anos, todos bem vestidos, e nos
chamou a atenção que alguns, ou a maioria, ostentavam celulares e cordão de ouro. Não quiseram
participar das atividades, observavam tudo, mostravam-se desafiadores, e diziam que queriam
almoçar logo.
Certa hora, vimos que alguns deles tinham conseguido entrar na parte de cima da
Instituição, que estava fechada, pois vários equipamentos e bolsas dos profissionais presentes
estavam numa das salas. Os Educadores interviram e os jovens desceram, mas isso gerou um
clima muito ruim, de desconfiança e agitação. Havia sido quebrado um elo importante, o de
confiança! Luiz, um dos educadores responsáveis pelo grupo, aconselhou a darmos logo o
almoço, para acalmar um pouco os ânimos e para eles irem embora, pois já estavam impacientes.
E foi o que fizemos! Almoço servido, o grupo todo foi embora dizendo que estavam já atrasados
para uma ação em Copacabana!
Refletimos sobre o ocorrido, pois envolvia muita coisa sobre a atualidade do contexto da
rua, do atendimento e relações. O perfil dos adolescentes apresentava mudanças significativas
envolvendo um comportamento mais agressivo, indiferente às atividades, preocupação com a
aparência, ostentação e consumo. É fato que a necessidade de consumir, ou obter o objeto de
consumo, a mercadoria, é o grande fetiche do capitalismo, que cria um suposto sistema de
necessidades que impõe a “necessidade” do consumo, e não seria diferente entre esse grupo
social por estar nas ruas, ao contrário, pois a posse do objeto de consumo é também uma forma
de aceitação, de inclusão na sociedade ou no grupo o qual se faz parte. Em Grundrisse, Marx
(2011) já destacava:
321

Sem necessidade, nenhuma produção. Mas, o consumo reproduz a necessidade. A isso


corresponde, do lado da produção, que ela: 1) fornece ao conjunto o material, o objeto.
2) Ela também dá ao consumo sua determinabilidade, seu caráter, seu fim. (...) por essa
razão, não é somente o objeto do consumo que é produzido pela produção, mas também
o modo do consumo, não apenas objetiva, mas também subjetivamente. 3) A produção
não apenas fornece à necessidade um material, mas também uma necessidade ao
material. (...) A produção, por conseguinte, produz não somente um objeto para o
consumo, mas também um sujeito para o objeto. Logo, a produção produz o consumo,
na medida em que: 1) cria o material para o consumo; 2) determina o modo do consumo;
3) gera como necessidade no consumidor os produtos por ela própria postos
primeiramente como objetos. Produz, assim, o objeto do consumo, o modo do consumo,
e o impulso do consumo. Da mesma forma, o consumo produz a disposição do produtor,
na medida em que o solicita como necessidade que determina a finalidade (MARX,
2011, p. 47).

Fazer parte da sociedade capitalista representa ser consumidor, consumir as mercadorias


produzidas e se revestir delas. No mundo da aparência, não importa muito o meios que são
utilizados para obter a mercadoria, mas sim tê-las e exibi-las. Dessa forma, várias são as
representações que são socialmente produzidas para impulsionar o consumo, especialmente da
marca da vez: Mitsubishi, Volkswagen, Iphone 7, Android G5, Tablet, Nike, Mizuno, ouro, prata,
Redley, Cantão, etc... Independente de classe, cor, endereço, o desejo, o fetiche da mercadoria e
sua compra perpassa pela maior parte ou toda população.
O segundo caso que destaco aconteceu no ano seguinte, em 2015, na Instituição AMAR.
Sebastião Andrade (Tião), Coordenador do Centro Socioeducativo, Educador Social de grande
referência para todos nós, há algum tempo levava questões preocupantes para nossa discussão e
reflexão no âmbito da Rede Rio Criança. Devido a dificuldades com os meninos/as atendidos, por
duas vezes haviam fechado o Centro Socioeducativo (atendimento dia), só ficando com o
trabalho de abordagem de rua290. O motivo era o desrespeito com o espaço, quebra de regras
como levar drogas e produtos de furto e roubo para dentro da Instituição. Até aí, ainda era
possível contornar a situação. Mas, algo pior aconteceu... Em Assembleia da RRC ele contou que
mais uma vez teve que fechar a Casa, pois 03 adolescentes tentaram enforcar um educador! E nos
disse que “foi a primeira vez, nesses mais de 20 anos de trabalho com crianças e adolescentes em
situação de rua, que eu não sabia o que fazer!”. Essa declaração deixou todos os presentes à
reunião abalados, pois ouvir essa declaração de uma pessoa tão experiente, com certeza nos

290
O trabalho dito de abordagem de rua é feito por Educadores Sociais, e consiste numa aproximação das crianças e
adolescentes de modo processual, objetivando o estabelecimento de uma relação de confiança que permita o
levantamento das necessidades e potencialidades dos meninos/as, com o acompanhamento de cada caso e o
desenvolvimento de atividades sócio-educativas-culturais, realizando também os encaminhamentos necessários aos
serviços e retaguardas existentes.
322

remetia a uma grande reflexão sobre os desafios impostos pelo atual contexto da rua e as
consequências em nosso trabalho, especialmente por esse fato ter acontecido numa instituição
que desenvolve um trabalho pautado em metodologia da educação social de rua, no acolhimento,
na garantia de direitos. Se fosse ocorrido em um abrigo da prefeitura, não nos causaria esse
espanto...
Desde 2013, reiteradas vezes, as Instituições que realizam ação direta nas ruas relatam as
dificuldades do trabalho com as crianças e adolescentes em situação de rua (CASR), no
atendimento, na questão dos vínculos, de adesão às atividades, da mudança de comportamento,
etc.. Destacamos abaixo alguns relatos sobre a questão numa das Assembleias da RRC, em 2015:
(Márcia Gatto, RRC) - O tempo da adolescência / juventude está mesmo diferente, não é
uma particularidade das CASR, eles fazem parte dessa mesma humanidade. O uso de drogas
também contribui para essa aceleração, dispersão, agitação. Esses meninos são muito ativos.
Vocês não consideraram o uso de cocaína, mas é bom vermos isso, pois atualmente está mais
fácil conseguir este tipo de droga. Tanta violência na rua sofrida pelos meninos tem
consequências no comportamento deles. E essa agitação toda, etc... Chega uma hora do dia que
eles querem sair da instituição para ganhar as ruas, fazerem o seu ganho.
(Tião, AMAR) – Intensificação do recolhimento em São Cristóvão (Coreto e Praça),
assim como no Museu de Arte Moderna (MAM), no Centro. A Instituição concluiu o Projeto
Petrobrás e consideram que a renovação do financiamento será difícil dentro dos moldes atuais,
na qual a área social tem sido prejudicada. Mesmo com as dificuldades, há um compromisso
institucional de não fechar, mesmo sem a verba da Petrobrás. Estamos utilizando recursos
próprios.
(Valdinei, São Martinho) – Contexto difícil. Nos meses de junho/julho aumentou o
número de CASR no Centro. Média de 30 a 50 meninos têm frequentado diariamente a
Instituição. Em Julho observamos uma crescente agressividade; confronto direto às regras,
passando inclusive, a momento de uma quase rebelião. Com isso, optamos por terminar as
atividades mais cedo. Analisamos que com a parada da AMAR, aumentou o quantitativo na casa.
Voltaram os furtos no Centro da cidade (ouro, celular, dinheiro), e eles levando inclusive para
dentro da instituição. Estamos pegando eles com muita maconha. Eles estão usando muito o
“desfazedor” de maconha. As CASR têm sido uma prioridade para a São Martinho. Porém, os
323

meninos estão resistentes às propostas educativas. Estamos ampliando o quadro de atividades


(capoeira, informática, etc..), bem como a alimentação.
Mesmo com as Instituições ampliando as atividades, um grande questionamento foi em
relação às atividades que despertassem interesse, que seduzam os meninos.
(Beth Serra, EXCOLA) - Antes existiam muitas instituições trabalhando com este público
e podiam ofertar muitas coisas. Quanto menos instituições e pessoas trabalharem com eles, será
essa a tendência, pois antes tínhamos um trabalho em rede. A inconstância da rua cria esta
instabilidade. Os programas não são mais permanentes, são pontuais. Isso não foi bom para o
menino/a. Eles não passam mais muitas horas conosco. A focalização do trabalho tem também
uma questão aí. Você não passa mais muito tempo com o menino, eles têm circulado muito. A
instabilidade das ações tem também a ver com o tempo que se ficava com eles.
(Valdinei, São Martinho) - Considero que essa violência que eles sofrem nas ruas, tem seu
reflexo nas instituições. Eles estão usando mais drogas (maconha é a maior, seguida de loló –
também muita, e que deixa eles muito loucos; tinner não deixaram de usar, só que em menor
quantidade). Os meninos comentam que não consideram maconha uma droga.
(Tião, AMAR) - O menino não consegue se concentrar por muito tempo. Os que ficam
por mais tempo é na informática. Acham todo tipo de site, inclusive pornográfico. Optamos por
trabalhar com eles até o horário do almoço. O dia inteiro não tem mais como, pois é o limite
deles. E percebemos isso também com os educadores.
Muitos são as dificuldades e desafios, mas podemos considerar que o que para alguns
significa comportamento agressivo, para outros representa rebeldia, insurgência, insubordinação!
Esses meninos/as nunca foram santos ou ingênuos, pelo contrário, a vivência na rua faz com que
pulem etapas, pois têm que aprender a se virar sozinhos desde cedo, ou contar apenas com o
grupo que fazem parte, na busca de sua sobrevivência. Indesejáveis pela maioria da população, a
resposta para tanta “porrada” física e psicológica eles dão quando dizem: “Vou ser preso mesmo,
então vou barbarizar!”
As causas desta realidade, geralmente, nunca são colocadas, nem tão pouco, o que essas
práticas trazem como consequências adversas para a estruturação psíquica da personalidade
dessas crianças, adolescentes e jovens. O que prevalece, e tem sido cada vez mais fortalecida, é a
tônica excludente, higienista e criminalizadora, em especial de nossa juventude negra e pobre.
324

Muitos dos agentes promotores dessas práticas (policiais, guarda municipal, ou mesmo
funcionários da SMDS), não questionam ordens ou essa forma de atuação arbitrária e violenta
junto às crianças e adolescentes em situação de rua e as provenientes das favelas, nem tão pouco
se preocupam com as consequências que essas práticas podem causar na vida dessas pessoas
objeto das práticas. Para aqueles que questionam (Educadores, Assistentes Sociais, Psicólogos)
muitas vezes são obrigados a se adaptarem às regras, ou são transferidos como represália. Já os
que agem desprovidos de senso crítico, em sua maioria estão convictos de executarem o que é
certo. Arendt (2013) utiliza o conceito “banalidade do mal” para descrever a atitude de
funcionários de Hitler, no caso Heichman, o responsável pela condução dos judeus aos campos
de concentração, que executavam as ordens sem questionar, banalizando os danos e malefícios
que causaram a um segmento inteiro da população.
Perguntado sobre as consequências psicológicas acarretadas nos meninos/as que passam
pelas operações de recolhimento, Sebastião Andrade (Tião) comentou:

Há um dano psicológico, há um dano emocional, há um dano moral, o menino se sente


humilhado. O Estatuto diz assim: “É crime expor qualquer criança e adolescente a uma
situação de vexame, uma situação de ridicularização”. E uma criança e adolescente ser
cercado numa praça, numa rua onde está um Guarda Municipal de um lado, a PM do
outro, Educador não sei do que de onde, (...) todo mundo como que jogando rede para
291
pegar na rede a fera perigosa, é expor. Isso causa um dano grande .

O Prof. Antônio Futuro, também Educador de referência, considera que todo o processo
de violência sofrido por essas crianças e adolescentes na família, na comunidade e,
principalmente, nas ruas, isso pode acarretar consequências prejudiciais em sua vida:

Aí vem a operação choque de ordem e dá porrada no moleque. O moleque sai de casa


vítima de um processo violento que foi porrada, né? Se não foi porrada física, foi
porrada moral. O moleque sai de casa, ele vai pra rua e na rua todo dia o Estado dá uma
porradinha nele, todo dia o Estado diz pra ele assim: “Você é um merda! Você é um
macaquinho! Você é um bandido! Você é uma semente do mal”. Esse é um processo de
bullying constante.

Tanta “porrada” tem e teve consequências.....

291
Parte da entrevista feita com Sebastião Andrade (Tião), da Assoc. AMAR, em 2011.
325

Desde 2015 não conseguimos realizar o Fórum de Meninos/as de forma ampla, com a
participação integrada de adolescentes das diferentes instituições da Rede Rio Criança. Os fóruns
têm acontecido de forma institucional, ou seja, localizada, isolada, com os adolescentes atendidos
em cada instituição. Além das dificuldades relatadas acima, outra questão alertada pelos
Educadores foi a divisão por facções292 na rua, que acarreta a intensificação das rivalidades entre
eles. Facções sempre existiram, até mesmo como uma forma de identidade, pertencimento,
inclusão para alguém que a sociedade exclui. Mas, isso não era impedimento para a realização de
encontros e atividades conjuntas, como o Fórum, que era uma atividade realizada no mínimo 03 a
04 vezes ao ano pela RRC, com participação de até 70 crianças e adolescentes em situação de rua
de diferentes localidades da cidade. No entanto, com a intensificação da violência nas ruas, e a
questão da divisão por facção dificultou a realização de ações e atividades. Porém, acredito que a
principal consequência tenha sido nas relações interpessoais, especialmente na relação Educador
– Menino/a, na construção e fortalecimento de vínculos de amizade e confiança, que são
fundamentais para o desenvolvimento de um trabalho político-pedagógico com o menino/a,
dentro dos princípios da Educação Social de Rua293, pautada nos ensinamentos de Paulo Freire,
uma metodologia utilizada pela sociedade civil desde a década de 1980, desprezada pelo poder
público, que fez a opção de “educar” através da “porrada”!

Tanta “porrada” tem consequências...

Lembro-me que num Fórum de Meninos, em 2015, falamos sobre a Operação Verão.
Alertamos aos meninos/as presentes o que estava acontecendo, que a polícia estava tirando
adolescentes “suspeitos” dos ônibus que saíam da zona norte e periferia para as praias da zona sul
da cidade! Que era para tomarem cuidado, se prevenirem, não andarem sem documentos, sem
camisa, descalços, sem dinheiro (ah... como assim?). Um adolescente me perguntou com grande
susto e pesar: “Tia, nós estamos proibidos de ir à praia??” “Não”, respondi. “Mas, vocês têm que
tomar cuidado... Não facilita, não faz besteira, porque eles (a polícia) estão de olho”!

292
O termo facção aqui designando facção criminosa, grupo do crime organizado. No RJ as facções se diferem por
territórios, regiões, favelas. São 03 principais: Comando Vermelho, Terceiro Comando e Amigos dos Amigos.
293
Sobre a Educação Social de Rua (ESR) falaremos no próximo capítulo (6).
326

Será que os policiais e guarda municipal que executam essas práticas acham que estão
certos? Têm noção do que estão fazendo? Ou o fazem como a banalidade do mal em Arendt?
Difícil responder .... Depois não sabem por que aumentou o número de arrastões nas praias, de
furto e roubo a pedestres...
Às vezes nos perguntamos onde foi parar este ou aquele adolescente, “você tem visto o/a
fulano/a”? Isso acontece muitas vezes, pois, simplesmente, não temos mais notícias. Supomos
que estão presos, ou que foram forçados a irem para outras áreas, ou mesmo, em última hipótese,
que morreram. É, vida breve... O que fazer se à maioria deles não lhes é dada uma oportunidade...
Digo uma boa oportunidade! Não essas de cursinhos profissionalizantes e/ou empregos
medíocres, que simplesmente os manterão como cidadãos de 2ª, 3ª classe, eternamente na
subalternidade! Muitos desses jovens querem mais da vida! São ambiciosos, são inteligentes!
Não é à toa que buscaram o tráfico! Não é qualquer um que chega lá! Costumo dizer que são os
melhores! Sim, você vê o brilho nos olhos, o sorriso esperto, a fala e o raciocínio rápido! Você
olha e reconhece nele aquele jovem que você gosta de trabalhar! Infelizmente, a porta da
oportunidade que se abriu foi essa que muitos consideram uma vida torta, a do crime. Mas, para
quem tem outro olhar que não o da criminalização, você vê a potência desses adolescentes! Vi
isso, claramente, numa visita que fiz ao Educandário Santo Expedito (ESE), uma unidade de
internação de adolescentes autores de ato infracional (DEGASE). Dividido por alas e facções, lá
conheci o jovem W, de 18 anos, na ala da facção ADA (Amigos dos Amigos). Estava, como
todos os outros, numa cela superlotada com 18 adolescentes, para uma capacidade de 10. Era em
pleno verão carioca, em fevereiro, em Bangu, zona oeste do Rio de Janeiro, local onde a
temperatura chega fácil a 40º ou mais. Local quente, fechado, insalubre, úmido, com um cheiro
de “murrinha” que te penetra, propício a proliferação de doenças de pele e da presença de bichos
(ratos, baratas, lacraias). Conversando com o grupo da cela, W se destacou e logo percebi que
deveria ser uma liderança ali. Muito bem articulado e inteligente, de fala dura e direta, olho no
olho, nos contou o que estava se passando ali, como eram tratados, e da raiva que sentiam por
estarem naquele lugar e com esse tipo de tratamento:
- Temos família! Não temos que ficar levando tapa na cara, chinelada na bunda, spray de
pimenta! A gente não tem que aguentar isso! Estamos cheios de ódio! Vamos fazer rebelião!
Saí dali impressionada com W, pensando que era uma vida que estava sendo desperdiçada
naquele lugar, como tantas outras vidas de jovens em cumprimento de medidas no DEGASE. Em
327

uma outra oportunidade, três meses depois (maio/16), voltamos ao ESE, numa visita de inspeção
do CEDCA, pois os números da superlotação só aumentavam. Voltei ao alojamento da facção
ADA e procurei por W. O encontrei, só que desta vez estava abatido, sem aquele brilho nos
olhos, de cabeça baixa, quase sem falar... O que teria acontecido? Fiz questão de dizer que me
lembrava dele e do quanto ele era bom (bom no sentido de ser esperto, sagaz, inteligente)! Ele só
esboçou um leve sorriso... Sim, é o que acontece com muitos ali, se deprimem...
Procurei saber mais informações sobre ele, que tipo de crime tinha cometido e por quanto
tempo ficaria preso, visto que já tinha 18 anos294. Queria fazer alguma coisa por ele, tirá-lo de lá!
Um defensor público, amigo, pesquisou e me informou que W havia cometido latrocínio e que
ainda ficaria preso por um tempo! Senti muito por ele, e por estarmos perdendo tantos Ws para
um sistema perverso! São vidas que estão se perdendo nesses cárceres de gastar gente, nova
gente!
Nesse mesmo dia de hoje, que escrevo esta parte da tese, li o artigo do El País intitulado
“Marcos morreu”, um ano após de ter sido escrito, não sei por que estava perdido entre tantos
outros que pesquisei. Marcos, então com 17 anos, era um rapaz que a escritora conheceu em uma
unidade para adolescentes infratores reincidentes, em São Paulo, em 2015, e já era sua terceira
passagem pela Fundação por crime análogo ao tráfico. Ele morreu com um tiro no peito numa
tentativa de assalto, em meados de 2016. E é com esse último parágrafo do artigo de Maria
Martin que encerro este capítulo da tese.

Meu sonho era escrever para o jornal um diário sobre os desafios do jovem para se
reintegrar na sociedade, nunca sobre sua morte. Meu chefe me consola com uma frase do
jornalista e ex-presidente da República italiano Sandro Pertini: "Às vezes na vida temos
de saber lutar não só sem medo, mas também sem esperança 295".

294
No ESE são levados os adolescentes com mais idade, geralmente entre 16 e 17 anos, podendo ficar até os 21 anos,
dependendo da gravidade do ato / crime.
295
Publicado em: http://brasil.elpais.com/brasil/2016/06/29/politica/1467231637_117091.html , acesso em 13/06/17.
328

6 PRA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DAS FLORES

(Da Luta pela revogação de práticas de recorte ideologicamente nazifascistas, e do


processo de construção de Resoluções, Políticas e Diretrizes pautadas em direitos humanos296)
A luta pela formulação e implementação de Políticas Públicas que respondessem às reais
necessidades de crianças e adolescentes em situação de rua sempre foi uma prerrogativa da Rede
Rio Criança e outras frentes e coletivos que abordam essa temática. Dessa forma, nos
concentramos durante um longo período na articulação, com diferentes atores, no combate a toda
e qualquer forma de violação de direitos e na busca de estratégias para a adoção de políticas e
ações governamentais de defesa, respeito e promoção da vida desses sujeitos. Uma tarefa árdua e
difícil em tempos de recrudescimento de práticas arbitrárias e violentas direcionadas a esse
público.
Nesse cenário tão sombrio, não poderia deixar de destacar algumas conquistas
alcançadas no âmbito das políticas públicas, uma luta de vários anos. Em nível nacional,
foram aprovadas: (1) a Resolução Conjunta nº 1/2016 do Conselho Nacional de Assistência
Social (CNAS) e Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente
(CONANDA)297, de 15 de dezembro de 2016, que dispõe sobre “[...] o Conceito e o Atendimento
de criança e adolescente em situação de rua e inclui o subitem 4.6. no item 4, do capítulo III do
documento Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes” (em
anexo). Fruto da luta e trabalho de um coletivo, que se iniciou em 2013, através do Comitê
Nacional das Redes de Atenção às Crianças e Adolescentes em situação de rua298, com o apoio da
Secretaria Nacional de Direitos Humanos e, posteriormente (meados de 2015), com a
constituição do GT Criança e Adolescente em situação de rua do CONANDA, formado por
representantes de Ministérios e Sociedade Civil - Redes Comitê Nacional (abordaremos sobre o
296
Do artigo de minha autoria, intitulado Políticas Públicas no enfrentamento da situação de rua de crianças e
adolescentes, publicado no livro “Eu Não Quero Mais!”, Editora Imperial Novo Milênio, 2016, Org. Márcia Gatto
e Elizabeth Serra Oliveira, atualizado para esta Tese.
297
A Resolução CNAS/CONANDA nº1, de 15 de dezembro de 2016, foi publicada no dia 20/12/16, no Diário
Oficial da União. Ver em: http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?data=20/12/2016&jornal=1&
pagina=61&totalArquivos=80
298
Fazem parte do Comitê Nacional: Campanha Nacional Criança Não é de Rua, Movimento Nacional de Meninos e
Meninas de Rua, Rede Rio Criança (RJ), Rede Amiga da Criança (MA), Rede Inte-Rua (RS), Projeto Meninos de
Rua (SP), e dois adolescentes.
329

GT posteriormente). A Resolução Conjunta nº 1/2016 contemplou dois pontos importantes para


uma Política Nacional de Atendimento às Crianças e Adolescentes em situação de rua, que foi a
atualização do conceito de crianças e adolescentes em situação de rua, e da inclusão de
acolhimento institucional específico para CASR, na Tipificação Nacional dos Serviços
Socioassistenciais; (2) Resolução 187/2017 do CONANDA, de 23 de maio de 2017, que aprova o
documento Orientações Técnicas para Educadores Sociais de Rua em programas, projetos e
serviços voltados a crianças e adolescentes em situação de rua; (3) Resolução Conjunta
CNAS/CONANDA nº 1/2017, de 07 de junho de 2017, que estabelece as Diretrizes Políticas e
Metodológicas para o Atendimento de Crianças e Adolescentes em situação de rua no âmbito da
Política de Assistência Social299.
Destacaremos também a (4) Nota Técnica 001/SAS e SGEP do Ministério Da Saúde 300:
Diretrizes e Fluxograma para a Atenção Integral à Saúde das Mulheres e Adolescentes em
situação de rua e/ou usuárias de crack/outras drogas e seus filhos recém-nascidos, importante
documento fruto de várias denúncias e mobilização de segmentos contrários às práticas de
retirada e adoção compulsória de bebês de jovens mães e mulheres em situação de rua,
supostamente usuárias de drogas.
Em âmbito municipal, uma grande vitória foi a Revogação da Resolução 20/2011 e a
assinatura da (5) Resolução 64/2016 da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social – o
novo Protocolo do Serviço Especializado em Abordagem Social, respeitando as normativas
nacional e internacional como forma de garantir um atendimento humanizado e respeitando
direitos humanos, trazendo novos parâmetros para a abordagem social no município do Rio de
Janeiro. Fruto de uma luta intensa da RRC, desde a sua criação em 2001, intensificada em 2011,
com a implementação da Resolução 20 da SMAS (que institucionalizou o recolhimento e a
internação compulsória de CASR) e, especialmente, fruto de um intenso trabalho coletivo, que
mobilizou ao longo de dois anos o Grupo de Trabalho Criança e Adolescente da Comissão da
População de Rua da Câmara Municipal de Vereadores (representantes do Ministério Público,
Defensoria Pública, Comissão População de Rua (POP RUA), Rede Rio Criança (RRC), Centro
Internacional de Estudo e Pesquisa sobre a Infância (CIESPI), Se Essa Rua Fosse Minha).

299
Ambas resoluções e diretriz foram fruto da construção coletiva no âmbito do GT Criança e Adolescente em
situação de rua do CONANDA.
300
As siglas correspondem a: SAS - Secretaria de Atenção à Saude; e SGEP - Secretaria de Gestão Estratégica e
Participativa.
330

Importante destacar o movimento de resistência e os resultados obtidos ao longo do


tempo, como os exemplos acima, com destaque no âmbito municipal para a revogação da
Resolução 20/2011, em abril de 2016, após quase cinco anos de denúncias e luta pela sua
revogação. Cabe ressaltar que a referida Resolução 20, apresentada nessa tese em várias
passagens, mais especificamente no capítulo IV, pode ser considerada de fato a
institucionalização de um protocolo de ação com práticas atravessadas por um tipo de ideologia
bem próxima do que foi a ideologia nazifascista adotado por uma Secretaria do Governo
Municipal do Rio de Janeiro, não apenas pela formalização do recolhimento e da internação
compulsória, mas também por desrespeitar uma série de leis e a própria constituição federal, bem
como acordos e normativas internacionais.
O que está previsto na lei e em normativas nacionais e internacionais no âmbito dos
direitos humanos ainda está muito distante da prática cotidiana, mas não por isso podemos deixar
de considerar que elas existem e foram fruto da luta de um coletivo. Quando se faz a opção
política de não implantar ou ignorar políticas públicas de promoção e garantia de direitos, e se
continua com as mesmas práticas de exceção, arbitrárias e violentas, junto a um grupo social
específico é porque existe uma ideologia dominante por trás que fortalece e fomenta esse tipo de
práticas.
A seguir, iremos destacar de forma mais descritiva as principais conquistas em termos de
políticas públicas para crianças e adolescentes em situação de rua, no período de 2009 a 2017, em
âmbito municipal (RJ) e nacional. Enquanto metodologia, a cada política, resolução e/ou diretriz
deliberada, será mencionado o histórico, o contexto e o documento (em anexo).

6.1 Política municipal de atendimento às crianças e adolescentes em situação de rua –


deliberação 763/2009

O dia 22 de junho de 2009 foi um marco histórico na luta pela promoção, defesa e
garantia de direitos das crianças e adolescentes, em especial dos que se encontram em situação de
rua na cidade do Rio de Janeiro. O Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente
331

(CMDCA Rio) foi o primeiro Conselho de Direitos no Brasil a elaborar e aprovar uma Política
Pública para crianças e adolescentes em situação de rua.
A deliberação 763/2009 - Política Municipal de Atendimento às Crianças e Adolescentes
em Situação de Rua da cidade do Rio de Janeiro foi o resultado de um longo trabalho coletivo,
que envolveu sociedade civil e poder público desde o início de sua formulação em 2008, quando
foi formado um Grupo de Trabalho paritário, constituído por 05 representações governamentais e
05 não governamentais, no âmbito do CMDCA Rio. Além das diversas perspectivas
representadas por estas instituições implicadas na elaboração da política, essa também privilegiou
demandas das crianças e dos adolescentes em situação de rua, através da participação dessas no
Fórum de Meninos e Meninas da Rede Rio Criança, quando debateram e elegeram suas propostas
para a referida política.
Histórico
O início dos debates sobre a importância da formulação e implementação de uma política
pública que respondesse, concretamente, às necessidades das crianças e adolescentes em situação
de rua iniciou-se em 2003, no âmbito da Rede Rio Criança (RRC), já quando de sua constituição,
em 2001, nasce com essa missão. Ao longo de 05 anos (2003 a 2008), a RRC desenvolveu todo
um trabalho interno, implicando as instituições e pessoas, nas leituras, reflexão, discussão e
debate sobre a temática, bem como na articulação necessária para que alcançássemos esse
objetivo.
Dessa forma, a Rede Rio Criança foi um ator fundamental na articulação e na defesa do
tema das crianças e adolescentes em situação de rua nos espaços de organização política da área
da infância e adolescência. As Instituições que compõem a RRC, em sua maioria, sempre
estiveram representadas no Fórum Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente - Fórum
DCA Rio (espaço de articulação de instituições da sociedade civil) e nas Assembleias do
CMDCA, contribuindo com os debates na perspectiva de formulação de políticas públicas e
programas que garantissem direitos, fortalecendo também a participação das crianças e
adolescentes nesses espaços.
Durante o período de aproximadamente 05 anos, a RRC garantiu a representação de
algumas de suas Instituições enquanto Conselheiras em várias gestões nos Conselhos de Direitos
Municipal e Estadual da Criança e Adolescente (CMDCA e CEDCA), por considerar importante
a representação nesses espaços, mas também enquanto estratégia para garantir a abordagem do
332

tema e da formulação de uma política pública específica para crianças e adolescentes em situação
de rua. As instituições da RRC se fizeram presentes nesses espaços, defendendo a realização de
diagnósticos que norteassem a elaboração de políticas que beneficiassem aqueles que
prioritariamente necessitam de ações emergenciais e contínuas. Vários percalços surgiram no
caminho, inclusive divergências de concepção com o poder executivo municipal quanto aos
princípios norteadores da política e na conceituação desse grupo social. Ao longo do processo,
tivemos também outras conquistas como a Política de Abrigos, o Plano Municipal de
Enfrentamento à Violência Sexual e, finalmente, a Política Municipal de Atendimento a Crianças
e Adolescentes em Situação de Rua no Rio de Janeiro.
Objetivos
Os dois objetivos centrais da Política Municipal de Atendimento às Crianças e
Adolescentes em Situação de Rua consistem em “Garantir os Direitos Humanos de crianças e
adolescentes em situação de rua”; e “Promover e assegurar a interlocução e a integração das
diversas Secretarias de Governo e Sociedade Civil Organizada. Importante a articulação entre os
Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário na garantia de direitos de crianças e adolescentes do
Município do Rio de Janeiro, especialmente das que se encontram em situação de rua”.
O conceito de “situação de rua” adotado na referida Política (Deliberação 763/2009 do
CMDCA Rio) foi o seguinte:

Situação de rua é uma complexa relação dinâmica que envolve “casa – rua – abrigo –
rua – projetos sociais / instituições – rua – família / comunidade – rua”, em que a rua, em
diferentes graus, ocupa um lugar de referência predominante e um papel central em suas
vidas.

Visando monitorar e avaliar o cumprimento das diretrizes (em anexo), coube ao CMDCA
Rio instituir uma comissão paritária, composta por conselheiros, instituições da sociedade civil e
secretarias de governo conselheiras (ou não), com a finalidade de elaboração de diagnóstico,
plano de aplicação, avaliação e monitoramento. A comissão foi instituída no ano seguinte, em
2010, mas funcionou por apenas 02 anos.
As 64 diretrizes que constam na política de rua, foram fruto de intensos e calorosos
debates no interior do grupo de trabalho, e que à época foram consideradas inovadoras e que
respondiam às principais necessidades desse público. Passados 08 anos desde a deliberação da
Política Municipal de Atendimento às Crianças e Adolescentes em situação de rua pelo CMDCA
333

Rio, das 64 diretrizes, apenas uma (01) foi de fato implantada: o Programa Saúde da Família Sem
Domicílio, atualmente denominado Consultórios na Rua. Não obstante, mesmo sabendo da
necessidade de revisão e readequação de algumas dessas diretrizes, e da urgência em garantir
direitos junto a esse público, continuamos na luta por sua implementação e efetivação pelo
Governo Municipal do Rio de Janeiro. A Deliberação 763/2009 do CMDCA encontra-se no
anexo A.

6.2 Nova resolução quebra paradigma na aborgagem social no Rio de Janeiro: a Resolução
64/2016 – Protocolo do Serviço Especializado em Abordagem Social301

A Revogação da Resolução 20/2011 foi finalmente conquistada no dia 13 de abril de


2016, com a assinatura da Resolução 64/2016 da Secretaria Municipal de Desenvolvimento
Social (SMDS) - a nova Proposta do Protocolo do Serviço Especializado em Abordagem Social,
documento que se adequou às normativas nacionais e internacionais, retiradas todas as formas de
compulsoriedade no atendimento às crianças e adolescentes em situação de rua. A nova
resolução quebrou paradigmas na cultura do atendimento à população em situação de rua na
cidade do Rio de Janeiro.
Histórico
A apresentação pública da Proposta de Adequação da Resolução nº 20, de 27 de maio de
2011, da Secretaria Municipal de Assistência Social – SMAS302 (atual Secretaria Municipal de
Desenvolvimento Social – SMDS), que criou e regulamentou o Protocolo do Serviço
Especializado em Abordagem Social, foi realizada no dia 15 de outubro de 2015, no auditório da
Câmara Municipal de Vereadores. A proposta resultou da atuação conjunta do Grupo de Trabalho
Criança e Adolescente da Comissão da População em Situação de Rua da Câmara Municipal do
Rio de Janeiro (GT Criança e Adolescente da Comissão Pop Rua).

301
Produção elaborada pelo GT Criança e Adolescente da Comissão da População de Rua da Câmara Municipal de
Vereadores)
302
Na Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro – PMRJ, a secretaria responsável pela política de assistência social está
atualmente nomeada como Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social – SMDS. Manteremos nesse
documento a menção ao nome antigo da Secretaria responsável pela política de Assistência Social.
334

É preciso lembrar que a Resolução nº 20/2011 da SMAS ficou conhecida como uma
política de recolhimento compulsório e internação forçada para a população em situação de rua
que impactou especialmente crianças e adolescentes na cidade do Rio de Janeiro, que por meio de
seu caráter de higienização social contribuiu para a confusão entre assistência social e segurança
pública. Os representantes que integram o grupo de trabalho citado entendem que a questão da
população, sobretudo crianças e adolescentes em situação de rua, é complexa e desafiadora, e não
está de acordo com as formas com que o poder público vem lidando, historicamente, com o
problema. Nesse sentido, o grupo optou por incluir a proposta de adequação da Resolução nº 20
como uma das prioridades de sua agenda política para 2015, visto que essa normativa se impôs
sobre o processo de monitoramento da implementação da Política Municipal de Atendimento às
Crianças e Adolescentes em Situação de Rua, devidamente deliberada pelo Conselho Municipal
de Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA Rio), em 2009, e que tem sido ignorada pelo
governo municipal.
A questão da população em situação de rua é pauta na Câmara Municipal do Rio de
Janeiro desde 2010, quando se constituiu a Comissão Especial da População Adulta em Situação
de Rua. Desde então, a Comissão tem se renovado anualmente, sendo que, no encerramento dos
trabalhos do ano de 2013, deliberou-se pela retirada da palavra “adulta” do nome da Comissão
Pop Rua, a fim de incluir as questões relacionadas às especificidades da população infanto-
juvenil. Em 2015, ela foi instituída na Câmara Municipal pela Resolução 1310, sendo presidida
pelo Vereador Reimont (PT).
No início do ano de 2014, as discussões envolvendo a violação de direitos de crianças e
adolescentes tornaram-se mais frequentes, e, no dia 10 de abril de 2014, foi realizada a audiência
pública na Câmara Municipal de Vereadores “Violência sistemática contra crianças e
adolescentes em situação de rua”, tendo como objetivo abordar uma série de episódios
alarmantes que denunciavam o contexto de violação de direitos que vinham ocorrendo no Rio de
Janeiro. A audiência resultou de uma construção coletiva de organizações, grupos e militantes
atuantes no campo da defesa dos direitos humanos das crianças e dos adolescentes, e mobilizou
diversos segmentos da área. Várias denúncias de violação de direitos da população em situação
de rua foram feitas, especialmente a violência e repressão policial, bem como os maus-tratos em
equipamentos públicos (abrigos).
335

Como desdobramento da audiência pública, foi constituído este Grupo de Trabalho, para
aprofundar as reflexões e o debate no eixo da criança e adolescente da Comissão Pop Rua,
visando sistematizar propostas que visassem cooperar com o aprimoramento das práticas
existentes no município. Com efeito, tais práticas muitas vezes tornam-se vetores de violação de
direitos, pela forma como atingem crianças e adolescentes em situação de rua.
O GT, ao longo desse período (2014 a primeiro trimestre de 2016), se reuniu de forma
sistemática (2 vezes ao mês) para discutir essas questões, em especial os serviços de abordagem
social e de acolhimento institucional no Município do Rio de Janeiro, com a participação social
de diferentes atores.
Cabe salientar que durante o processo de discussão do GT Criança e Adolescente em
situação de rua foi identificada a importância da participação de representantes do órgão gestor
da política de assistência social, do Conselho Municipal de Assistência Social (CMAS) e do
CMDCA Rio. Entretanto, optou-se, num primeiro momento, pela realização de reuniões com a
finalidade de aprofundar o conhecimento sobre abordagem social, recepção, triagem e
acolhimento de crianças e adolescentes, tendo em vista a necessidade de apropriação do conteúdo
das normativas atuais sobre esses temas pelos integrantes do grupo.
Nesse ensejo, o grupo decidiu por iniciar essa apropriação pelos documentos municipais,
a saber: Deliberação CMDCA Rio n° 763/2009 e Resolução SMAS n° 20/2011. Em seguida, o
grupo realizou reuniões para discutir o conteúdo normativo nacional sobre o tema em foco, tendo
sido identificada a aprovação de uma série de dispositivos após a publicação das normativas
municipais mencionadas, em especial as Resoluções do Conselho Nacional de Assistência Social
– CNAS e do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – CONANDA, que
instituiu o Grupo de Trabalho Criança e Adolescente em situação de rua para discutir e formular
propostas para uma Política Nacional. O conjunto de referências legais traz alterações
significativas para o trabalho voltado para crianças e adolescentes em situação de rua, tanto no
contexto da política de assistência social, quanto ao nível da política de atendimento ao público
da infância e adolescência que é de caráter transversal.
Identificamos a necessidade de atualização da Deliberação CMDCA Rio n° 763/2009, e
da adequação da Resolução n° 20/2011 pelos órgãos competentes, de modo que estas normativas
possam incorporar os avanços significativos operados nos últimos anos.
336

No decorrer das atividades, integrantes do GT participaram de reunião intersetorial 303 em


que representante da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SMDS) informou que
seria feita revisão da Resolução n° 20/2011, e sinalizou a possibilidade de participação dos
presentes nesse processo. Dessa forma, o GT decidiu elaborar proposta de adequação da
Resolução n° 20/2011 que tangencia questões relacionadas à conformação da Política Municipal
de Atendimento à Criança e ao Adolescente em Situação de Rua aprovada pelo CMDCA Rio.
Além de encaminhar a proposta de adequação para a SMDS, considerou-se imprescindível
apresentá-la ao CMDCA Rio, bem como sugerir o restabelecimento da comissão de
monitoramento da implementação da política em questão no âmbito deste órgão304.
A proposta de adequação da Resolução nº 20 foi formulada com base em premissas que
divergem de sua concepção original, e é pautada em normativas nacionais e numa abordagem
humanizada. Destacam-se as principais mudanças no trato às crianças e aos adolescentes em
situação de rua:
- A abordagem social não é medida de repressão, sendo seu exercício incompatível com
as ações das forças da segurança pública;
- A abordagem não é um fim em si mesmo e, por isso, deve ocorrer de forma continuada,
com a construção de vínculos entre as crianças e os educadores e/ou equipe técnica;
- Nem todas as ações de proteção social ou de abordagem devem resultar em acolhimento,
o qual é medida excepcional;
- É urgente investir na adequação das Centrais de Recepção conforme os parâmetros e as
orientações técnicas previstas na resolução conjunta entre CONANDA e CNAS;
- As abordagens que ocorrem no período noturno não devem resultar necessariamente em
acolhimento;
- Em caso de uso abusivo de drogas, a criança e/ou adolescente deve ser avaliado por uma
unidade de serviço de saúde, priorizando o atendimento ambulatorial, sendo acionado o Conselho
Tutelar e a autoridade judiciária;

303
Reunião realizada em 28 de maio de 2015, na 1ª Vara da Infância, Juventude e do Idoso, na Comarca da Capital
do RJ.
304
Elaborado ofício da Comissão Pop Rua, datado de 09 de junho de 2015 e entregue à Mesa Diretora do CMDCA.
337

- A abordagem social não deve ser utilizada para promover a condução de adolescentes
para delegacias ou centrais de recepção para fins de sarqueamento, fora em casos de flagrante de
ato infracional e cumprimento de mandato de busca e apreensão;
- É necessário e urgente investir na qualificação profissional daqueles que atuam na linha
de frente das abordagens sociais.
O processo de diálogo iniciado junto à SMDS deu-se a partir do dia 15 de outubro de
2015, data da apresentação pública da Proposta de Adequação da Resolução nº 20. Foram
realizadas 04 reuniões do GT com a Subsecretaria de Proteção Social Especial da SMDS, a fim
de fazer avançar as negociações das propostas apresentadas, na busca de concordância entre
pontos que mereciam uma maior discussão, especialmente no que se referia à compulsoriedade.
Dentre as diretrizes em debate que mereceram ser destacadas por seu aspecto controverso
registra-se no artigo 5º, inciso XXXIII, o caso em que a abordagem social só deve solicitar o
apoio policial quando da tentativa de agressão ou risco eminente à equipe ou demais pessoas.
Consideramos que este tipo de abordagem junto à população em situação de rua deve ser
processual e continuada e que, portanto, a intervenção não precisa se dar a qualquer custo,
descaracterizando a ação de proteção social, e fazendo prevalecer ações de caráter
coercitivo/repressivo. Também apresenta uma grande complexidade, ainda no artigo 5º, o §3°,
que prevê os procedimentos para os casos em que a criança e/ou adolescente esteja nitidamente
sob a influência do uso de drogas. Entendemos que esses casos devem ser encaminhados para
atendimento em unidade ou serviço de saúde para avaliação, sendo providenciados os cuidados
mais adequados para cada caso e a notificação dos órgãos competentes. Dessa forma, foi
sustentado que o texto para adequação da normativa não deveria citar o abrigo especializado
como cuidado em detrimento a outros não citados, visto que essa modalidade tem sido
amplamente questionada por razões diversas.
Por fim, com o acolhimento das propostas apresentadas de adequação da Resolução
20/2011 pelo então Subsecretário de Proteção Social Especial, Rodrigo Abel, exaltando que havia
interesse por parte da SMDS nessa questão, após as reuniões travadas pelo GT com esta
Subsecretaria, a nova Resolução (64/2016) foi aprovada e assinada pelo então Secretário
Municipal de Desenvolvimento Social, Adilson Pires (PT), em Cerimônia realizada na Câmara
Municipal de Vereadores, no dia 13 de abril de 2016, e publicada no Diário Oficial no dia 16 de
abril de 2016, revogando a Resolução anterior (20/2011), o que representou uma grande vitória
338

para todos os defensores de direitos humanos, mas, especialmente, para população em situação de
rua, principalmente as crianças e adolescentes. Não obstante, seguimos atentos e firmes para
enfrentar os desafios quanto da implementação e efetivação da Resolução 64/2016, um marco no
atendimento e na abordagem social junto às crianças e adolescentes em situação de rua na cidade
do Rio de Janeiro. Segue, no anexo B, a Resolução SMDS 64/2016 em sua íntegra.

6.3 Nota técnica 001/SAS e SGEP do Ministério da Saúde: diretrizes e fluxograma para a
atenção integral à saúde das mulheres e das adolescentes em situação de rua e/ou
usuárias de crack/outras drogas e seus filhos recém-nascidos

Os casos de retirada compulsória de crianças recém-nascidas de mães em situação de rua


e/ou de usuárias de crack/ou outras drogas têm levado muitas mulheres nessa condição a evitarem
os hospitais e maternidades para exames de pré-natal e no momento do parto. Esta decisão
aumenta consideravelmente os riscos de saúde e de vida das mulheres e de seus filhos recém-
nascidos e revela a ineficácia de uma medida tida como “protetiva”. Ao retirar o recém-nascido, o
estado faz uma opção de proteger a criança e deixar a mãe a própria sorte, aprofundando ainda
mais sua situação de vulnerabilidade e negligenciando para ambos o direito a convivência
familiar e comunitária.
Denúncia feita pelo Movimento Nacional de População em situação de rua e por
categorias profissionais e organizações de direitos humanos em várias cidades do país,
especialmente em Belo Horizonte (MG), Rio de Janeiro (RJ) e Vitória (ES), o caso foi levado ao
Ministério Público, Defensoria Pública, Conselhos de Saúde, Assistência Social e Direitos
Humanos e ao próprio Ministério da Saúde.
Como alternativa à retirada compulsória, o Ministério da Saúde e o Ministério do
Desenvolvimento Social, expediram uma nota técnica conjunta, orientando suas respectivas redes
de serviços, para uma atenção diferenciada junto a mulheres grávidas em situação de rua e/ou
usuárias de drogas, a partir de um trabalho articulado no acompanhamento pré-natal, nascimento
e puerpério, visando a proteção de mãe e filho e sua consequente inclusão social.
339

A Secretaria de Atenção à Saúde (SAS) e Secretaria de Gestão Estratégica e Participativa


(SGEP) do Ministério da Saúde lançaram, em 16/09/15, a Nota Técnica conjunta sobre o direito à
convivência familiar e ao acesso a serviços públicos de qualidade. A Nota Técnica orienta que
todas as mulheres, adolescentes e crianças têm direito à convivência familiar e ao acesso a
serviços públicos de qualidade, conforme suas demandas.
Cada vez mais verificamos a prática, em diversos lugares do Brasil, de retirada de bebês
de mulheres em situação de rua e/ou usuárias de crack e outras drogas. O Ministério da Saúde
entende que decisões imediatistas de afastamentos das crianças de suas mães, sem o devido apoio
e acompanhamento antes, durante e após o nascimento, bem como uma avaliação processual de
cada situação, violam direitos básicos, tais como a autonomia das mulheres e a convivência
familiar, legalmente assegurados às mulheres e às crianças.
Sabe-se que nem todas as mulheres que estão em situação de rua fazem uso de drogas.
Para as que utilizam essas substâncias é fundamental um direcionamento cauteloso das ações
sanitárias que construa com as mulheres, em primeiro plano, a oportunidade de desenvolver
hábitos, modos e estilos de vida mais saudáveis - sozinhas ou em parceria familiar. Esse tipo de
intervenção é que possibilitará a essas mulheres e adolescentes que ressignifiquem as escolhas
sobre tudo que lhes afeta e por elas é desejado, inclusive por manter ou não o uso de substâncias
psicoativas.
No âmbito da saúde pública, compreende-se, igualmente, que o tratamento baseado no
encarceramento, na punição e/ou na repressão possui pouco ou nenhum efeito terapêutico. As
necessidades das mulheres e das adolescentes com quadro de intenso sofrimento psíquico
decorrente do uso de álcool e outras drogas, ou mesmo em outra situação de vulnerabilidade
social, como a vivência na rua, são muitas e de diferentes naturezas e gradações. Nessas
circunstâncias, o papel do Estado brasileiro direciona-se a promover ações para o fortalecimento
dessas mulheres e adolescentes, agindo a partir de demandas e especificidades que apresentam.
A eventual condição gestante ou nutriz não enseja a relativização ou flexibilização dos
direitos, inclusive de autonomia e liberdade.
340

As Diretrizes e Fluxograma da referida nota técnica, por serem muito extensas, não foram
anexadas nessa tese. Estas estão publicadas no site do Ministério de Desenvolvimento Social
(MDS)305.

6.4 O processo de construção das diretrizes para uma Política Nacional de Atendimento às
Crianças e Adolescentes em Situação de Rua306

Neste subcapítulo encontram-se os processos de construção das seguintes resoluções e


diretriz: (1) Resolução Conjunta Nº 1/2016 CNAS / CONANDA (anexo C), (2) Resolução
183/2017 CONANDA e (3) Diretrizes Políticas e Metodológicas para o Atendimento às Crianças
e Adolescentes em situação de rua na Assistência Social (anexo D).
Em 10 de agosto de 2012, a convite da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da
República (SDH/PR), reuniram-se, em Brasília, os coordenadores da Campanha Nacional
Criança Não é de Rua (CNER), do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua
(MNMMR), da Rede Rio Criança (RRC) e da Coordenação Geral da Política do Direito à
Convivência Familiar e Comunitária da SDH/PR. O Objetivo da reunião era propor a
participação da sociedade civil organizada na formulação de uma política nacional para crianças e
adolescentes em situação de rua.
Os representantes da SDH/PR reconheciam que as políticas voltadas para crianças e
adolescentes não estavam sendo capazes de proteger aquelas que estavam nas ruas. Reconheciam
também a imensa contribuição da sociedade civil nas últimas décadas na defesa destes “meninos
e meninas de rua” e, por isso, deveriam subsidiar a política a ser construída. Entretanto, para
garantir a participação da sociedade civil era necessário fortalecê-la e apoiá-la. Assim, em
parceria com o Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), foi
incluída no edital Nº 01/2012/CONANDA/SDHPR, especificamente na área de interesse “Apoio

305
Publicado em: http://www.mds.gov.br/webarquivos/legislacao/bolsa_familia/nota_tecnica/nt_conjunta_
01_MDS_msaude.pdf .
306
Produção elaborada pelo Comitê Nacional de Atenção às Crianças e Adolescentes em situação de rua
341

aos Fóruns, Comitês, Associações e Redes de Promoção e Defesa dos Direitos da Criança e do
Adolescente”, uma diretriz inédita:
Serão apoiadas iniciativas de mobilização de fóruns e redes, em âmbito nacional e
regional, que fazem parte do Sistema de Garantia de Direitos, com foco na estruturação e
fortalecimento da rede de atenção às crianças e adolescentes em situação de rua, através da
formação de um Comitê Nacional.
Reunidos em Fortaleza, em setembro do mesmo ano, a coordenação da CNER e
representantes do MNMMR, da RRC, do Fórum Nacional da População de Rua, Fórum Nacional
de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência
Sexual Contra Crianças e Adolescentes e Fórum Nacional dos Direitos da Criança e do
Adolescente debateram e aprovaram as linhas gerais de um projeto coletivo para construir
subsídios para a formulação de uma política nacional de atendimento à criança e ao adolescente
em situação de rua. A proposta foi submetida ao Edital e aprovada no final de outubro do mesmo
ano. Em dezembro, o Convênio foi celebrado entre a Associação Beneficente O Pequeno
Nazareno e a SDH/PR, tendo como objeto:
Contribuir com a formulação de uma política pública para crianças e adolescentes em
situação de rua no Brasil a fim de garantir a efetivação dos seus direitos fundamentais,
especialmente a convivência familiar e comunitária a partir da estruturação de uma rede
nacional de atenção à criança e ao adolescente em situação de rua e da composição de um
Comitê Nacional.
Em 20 de fevereiro de 2013, os primeiros passos foram dados para concretização das
metas e etapas estabelecidas no projeto. A primeira delas, mobilizar a sociedade civil através das
redes locais e nacional, cujo foco era a criança e o adolescente em situação de rua, com o objetivo
de estruturar uma rede e iniciar um processo de escuta da sociedade no levantamento de subsídios
para uma política nacional.
Entre 14 a 16 de agosto de 2013, 60 especialistas participaram do Seminário Nacional de
Estruturação da Rede de Atenção à Criança e Adolescente em Situação de Rua, realizado em
Brasília. Estavam presentes militantes, estudiosos, educadores e técnicos que atuam
especificamente com crianças e adolescentes em situação de rua, além de adolescentes de vários
estados com vivência em situação de rua.
342

O seminário debateu e aprovou 50 propostas nas mais diversas áreas temáticas com
destaque para assistência, saúde, educação, desporto e lazer, cultura, segurança pública,
planejamento, entre outros. Também elegeu 11 representantes da sociedade civil para compor um
comitê cuja missão era conduzir o processo de estruturação da Rede Nacional de Atenção às
Crianças e Adolescentes em situação de rua, incluindo a participação de quatro (04) adolescentes,
sendo dois (02) titulares e dois (02) suplentes. Além dos representantes da sociedade civil e dos
adolescentes, o Comitê contou com a participação de uma técnica da Coordenação Geral da
Política do Direito à Convivência Familiar e Comunitária da SDH/PR.
O Comitê Nacional de Atenção às Crianças e Adolescentes em situação de rua foi
formado por redes nacionais e locais de referência na área das 05 regiões do país: Campanha
Nacional Criança Não é de Rua (CNER), Movimento Nacional de Meninos e Meninos de Rua
(MNMMR), Rede Rio Criança (RJ), Rede Inter Rua (RS), Rede Amiga da Criança (MA), Equipe
Interinstitucional de Abordagem de Rua (CE), Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da
República (SDH PR) e 02 adolescentes em situação de rua. Teve o objetivo de contribuir com a
formulação de uma política pública para crianças e adolescentes em situação de rua do Brasil, e
garantir a efetivação dos seus direitos fundamentais. O Comitê Nacional reuniu-se oito (08)
vezes, em dez (10) meses, entre setembro de 2013 e maio de 2014, cinco (05) dessas reuniões
aconteceram de maneira regionalizada e aberta à participação pública, em formato de seminários
regionais: Brasília, Manaus (região norte), Salvador (região nordeste), Goiânia (região centro-
oeste), Porto Alegre (região sul) e Rio de Janeiro (região sudeste). A primeira reunião, em
Brasília, serviu para formulação de um planejamento estratégico para o Comitê. Os seminários
regionais tiveram participação ampla da sociedade civil e Poder Público. A estratégia era
apresentar o conjunto de propostas colhidas no Seminário Nacional e permitir aos participantes se
manifestarem com críticas, vetos, acréscimos ou novas propostas. Grupos de trabalho temáticos
foram formados para garantir a o grande número dos participantes (cerca de 150 pessoas em cada
seminário), entre representantes da sociedade civil e do governo.
Ao final do processo, o Comitê Nacional tinha 141 propostas, sendo 59 sugestões dos
próprios adolescentes, construídas coletivamente por 786 participantes, destes 301 eram
representantes de organizações governamentais, de todas as regiões do Brasil, da agora
consolidada Rede de Atenção à Criança e Adolescente em Situação de Rua.
343

Em cada reunião, a partir das contribuições do seminário nacional e dos encontros


regionalizados, o Comitê Nacional focou em um conjunto de propostas agrupadas por um tema
central, submetendo-as ao debate para análise aprofundada e posterior sistematização. Ao final,
64 propostas permaneceram como resultado do processo de construção de consensos.
Em 13 de fevereiro de 2014, em Brasília, o Comitê Nacional foi convidado a participar de
um encontro de planejamento com representantes do Ministério da Saúde para a criação de um
Grupo de Trabalho com foco na criança e adolescente em situação de rua. No dia seguinte, a
convite do Comitê, foi a vez dos representantes do Ministério de Desenvolvimento Social e
Combate à Fome se reunirem com o grupo em torno do mesmo tema, agora no âmbito da
assistência social. Na terceira passagem pela capital federal, em maio, o Comitê Nacional recebeu
ainda o representante do Ministério do Planejamento no CONANDA. Por fim, o grupo foi
recebido pela Secretária Nacional de Promoção da Criança e do Adolescente, Angélica Goulart
(in memoriam), da SDH/PR. Ainda no mês de maio daquele ano, o Comitê Nacional foi
convidado para participar de uma Oficina Técnica do MDS para Aprimoramento dos Serviços do
SUAS para Crianças e Adolescentes em Situação de Rua e suas Famílias. Em cada um desses
espaços, era socializado todo o histórico, os subsídios que estavam sendo gerados, a rede que se
estruturava em torno da temática e, sobretudo, o momento histórico que se escrevia para as
crianças e adolescentes em situação de rua e suas famílias.
Cada Ministério se posicionou favorável à iniciativa, sendo a principal recomendação a
necessidade de o Comitê Nacional alcançar sua institucionalização na estrutura governamental
para garantir sua sustentabilidade, oficialidade e permanência; sobretudo para que sua
contribuição não se limitasse a um convênio com prazo de curta validade. Dessa forma, em junho
de 2015, foi constituído, a partir da Resolução 173 do CONANDA, de 08 de abril de 2015, um
Grupo de Trabalho (GT) com a finalidade de formular e propor estratégias de articulação de
políticas públicas e serviços para o atendimento, proteção, promoção e defesa dos direitos de
crianças e adolescentes em situação de rua no Brasil (Política Nacional de Atendimento às
Crianças e Adolescentes em situação de rua). Participaram do GT representantes de Ministérios
(Ministério de Desenvolvimento Social, Ministério da Saúde, Ministério da Educação, Secretaria
de Direitos Humanos), CIAMP RUA (Comitê Interministerial População de Rua), e
representantes da Sociedade Civil (Campanha Nacional Criança Não é de Rua, Movimento
Nacional de Meninos/as de Rua – estes representados por 02 Conselheiros do CONANDA, Rede
344

Rio Criança (RJ), Rede Amiga da Criança (MA), Rede Inter Rua (RS), Projeto Meninos de Rua
(SP), e 01 adolescente com vivência de rua).
Ao todo, participaram do GT Criança e Adolescente em situação de rua do CONANDA
41 representantes, sendo 08 da sociedade civil, e os demais do poder público (que se revezavam
e/ou eram substituídos), que se reuniram 08 vezes entre agosto de 2015 e novembro de 2016. A
partir de forte mobilização da Sociedade Civil, as reuniões começaram a acontecer a partir do
mês de agosto/15, de forma bimestral. No 1º encontro do grupo: apresentação de todos os
integrantes do grupo e sua atuação na área, definição de cronograma, construção do plano de ação
e metodologia de trabalho. Na 2ª reunião: alinhamento da produção acumulada pelos Ministérios
e pela Sociedade Civil – Marcos, serviços, estudos, subsídios. Apresentaram-se o Ministério de
Desenvolvimento Social, o Ministério da Saúde e o Ministério da Educação, cada qual
apresentando os referidos programas / política setorial de governo junto a esse público. Ressalta-
se que o Ministério da Educação, por ainda não ter um programa que atenda à essa população,
informou à época que havia criado um Grupo de Trabalho específico para tratar a temática das
crianças e adolescentes em situação de rua. Na 3ª reunião, foram propostas diretrizes ao Plano
Decenal do CONANDA, considerando as especificidades do público em questão. A partir desta
reunião, ao observarmos que o tempo seria curto diante da necessidade de discussão e análise de
várias questões no âmbito das políticas públicas para crianças e adolescentes em situação de rua,
deliberou-se pela realização das reuniões do GT em dois dias consecutivos.
A 4ª reunião do GT, que aconteceu em fevereiro de 2016, contou com uma ampla
participação dos representantes dos Ministérios e da Sociedade Civil (28 pessoas), na qual se
discutiu o Conceito de “crianças e adolescentes em situação de rua”, que foi rediscutido e
atualizado307, além de conter as tipificações para “situação de rua308”. Outro ponto discutido foi a

307
De acordo com o documento, Crianças e Adolescentes em situação de rua, são crianças e adolescentes com
direitos violados, caracterizados por sua heterogeneidade (diversidade de gênero, orientação sexual, étnico-racial,
religiosa, geracional, territorial, de nacionalidade, de opção política, entre outros), pela interrupção ou fragilidade
dos vínculos familiares, em situação de pobreza ou pobreza extrema, com dificuldade de acesso às políticas
públicas, utilizando logradouros públicos e/ou áreas degradadas de forma permanente ou intermitente.
308
Tipificação das situações de rua: Situação de trabalho nas ruas; Situação de pedir nas ruas; Situação de abuso e
exploração sexual nas ruas; Situação de uso e abuso de drogas nas ruas; Situação de ameaça de morte nas ruas;
Situação de pernoite ou moradia nas ruas; Situação de pernoite ou moradia nas ruas de criança e adolescente
acompanhado da família. Utiliza-se o termo “situação” exatamente para enfatizar a possível transitoriedade e
efemeridade dos perfis desta população. Ou seja, as crianças e adolescentes que estão em situação de rua podem
mudar por completo o perfil repentina ou gradativamente, em razão de um fato novo. Ocorre também uma forte
interseção das várias situações de rua.
345

implantação de um equipamento específico para crianças e adolescentes em situação de rua, os


Centros de Convivência. A 5ª reunião do GT, que aconteceu em Maio/16, se retomou a discussão
do Centro de Convivência para crianças e adolescentes em situação de rua, apresentando uma boa
aceitação pelo coletivo, mas um tema que ainda era preciso ter maior discussão e
aprofundamento, apesar da experiências exitosas da sociedade civil.
Em relação aos trâmites para uma política nacional específica para cri/adol em situação de
rua, as discussões do grupo se concentraram em decidir que tipo de documento seria mais rápido
e certo a aprovação e implementação, levando-se em conta a conjuntura nacional diante da
abertura do processo de impeachment da Presidenta Dilma Rousseff. Com o contexto político
grave e preocupante, considerou-se difícil e muito longo o processo até se chegar a uma Política
Nacional. Dessa forma, as discussões se convergiam para uma emenda ao Decreto 7053/2009,
que dispõe sobre a Política Nacional da População de Rua (adulta), destacando uma vertente para
a área da criança e do adolescente. Outra proposta em consonância a esta, foi a de elaboração de
uma resolução conjunta dos Conselhos Nacionais (CONANDA, CNAS, CNS), para a criação de
um Comitê Interministerial para tratar a temática da criança e do adolescente em situação de rua.
Porém, diante do preocupante cenário político que o país atravessava, de grandes retrocessos,
houve um desmantelamento dos Ministérios estratégicos, como no caso do Ministério de
Desenvolvimento Social (MDS) e do Ministério das Mulheres, Direitos Humanos e Igualdade
Racial, o que gerou muita preocupação com a continuidade dos trabalhos em nível nacional.
A 6ª reunião do GT CONANDA, finalmente foi realizada nos dias 08 e 09 de
agosto/2016, após dois cancelamentos devido a não viabilização pelo governo interino de
recursos para deslocamento dos integrantes do GT. As dificuldades políticas e dúvidas em
relação ao processo foram mais uma vez apontadas pelos representantes da sociedade civil e por
alguns representantes do governo, em sua maioria substituídos, após o golpe que destituiu a
Presidenta Dilma Rousseff, no âmbito do GT Criança e Adolescente em situação de rua do
CONANDA, observando que alguns Ministérios e Secretarias de Governo ainda estariam se
reestruturando.
Novos caminhos deveriam ser traçados para a consolidação do documento final, diante
das críticas feitas quanto à proposta de emenda ao Decreto 7053/2009, bem como da formulação
de um Comitê Específico para tratar a temática das crianças e adolescentes em situação de rua. A
proposta de construção de uma Resolução conjunta envolvendo 04 Conselhos Nacionais
346

(Assistência - CNAS, Saúde - CNS, Direitos Humanos - CNDH e da Criança e do Adolescente –


CONANDA), apesar de ser considerada muito boa, levaria muito tempo. Dessa forma, várias
questões foram levadas à Assembleia do CONANDA, que dentre os encaminhamentos
considerou: a ampliação dos trabalhos do GT Cri/Adol em situação de rua do CONANDA até
dezembro/16, a elaboração de Resoluções por produtos resultantes desse Grupo de Trabalho, bem
como a articulação com os Conselhos Nacionais e o CIAMP Rua, sendo que este último com a
proposta de constituição de uma cadeira para representante do tema da criança e adolescente em
situação de rua.
A materialização dos trabalhos do GT se deu no plenário do Conselho Nacional de Saúde
(CNS), em sua reunião ordinária do mês de outubro de 2016. Foi aprovada, com base na Nota
Técnica Conjunta n.º 001/2016- SAS/MS e SGEP309, de 10 de maio de 2016, dos Ministérios da
Saúde e do Desenvolvimento Social, a Recomendação n.º 11 do CNS, orientando o Ministério
Público, os conselhos estaduais e municipais de saúde, gestores do SUS e profissionais de saúde
acerca das medidas de promoção da atenção integral à saúde das mulheres e das adolescentes em
situação de rua e/ou usuárias de crack/outras drogas e seus filhos recém-nascidos.
Na Assembleia do CNAS realizada também no mês de outubro, foi discutido e analisado
os documentos (propostas) elaborados pelo GT Cri/Adol Rua do CONANDA, quando foram
aprovadas a proposta de alteração das Orientações Técnicas para o Serviço de Acolhimento
Institucional (Resolução n.º 01/2009 CONANDA/CNAS310311) com a inclusão de um tópico
sobre acolhimento especializado para crianças e adolescentes em situação de rua (CASR). O
texto substitutivo foi aprovado por meio da Resolução Conjunta CNAS/CONANDA n.º 01/2016,
publicada em 20 de dezembro 2016, versando sobre “[...] o conceito e o atendimento de criança e

309
Publicado em: http://www.mds.gov.br/webarquivos/legislacao/bolsa_familia/nota_tecnica/nt_conjunta_
01_MDS_msaude.pdf , acesso em maio 2016.
310
Resolução n.º 01/2009 CONANDA/CNAS publicada em: http://www.crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/
legis/cnas/res_conj_cnas_conanda_2009_01.pdf
311
O Caderno “Orientações Técnicas: Serviço de Acolhimento Institucional”, lançado pelo CNAS e CONANDA em
18 de junho de 2009, dispõe de uma série de princípios, orientações metodológicas e parâmetros de funcionamento
para o serviço de acolhimento institucional, mas não previu as especificidades para crianças e os adolescentes em
situação de rua no acolhimento. É forçoso reconhecer os limites impostos à permanência de crianças e adolescentes
em situação de rua nas unidades de acolhimento institucional, sendo relato comum entre profissionais e técnicos
deste serviço a desistência do atendimento de sujeitos com este perfil, culminando, na maioria dos casos, no
imediato retorno destes às ruas. Todavia, a não adesão das crianças e adolescentes ao equipamento requer
mudanças de concepção, sejam elas de ordem metodológicas, equipe profissional e de infraestrura. Para acessar na
íntegra o documento, ver em: http://www.crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/publi/conanda/orientacoes_tecnicas_
crianca_adolescente_2009.pdf
347

adolescente em situação de rua e inclui o subitem 4.6. no item 4, do capítulo III do documento
Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes”.
Um dos traços característicos de parte das crianças e adolescentes que estão em situação
de rua é o rompimento ou a fragilidade do cuidado e dos vínculos familiares, o que demanda um
esforço dos diversos órgãos que compõem o Sistema de Garantia de Direitos para fortalecer a
convivência familiar e comunitária, como meio de assegurar à criança e/ou o adolescente seus
direitos fundamentais.
Nesse sentido, o GT considerou que o serviço de acolhimento institucional pressupõe o
estabelecimento de rotinas, horários, regras de convivência, manutenção da higiene, regramento
sobre uso de espaços coletivos e individuais. São fatores que impactam diretamente na dinâmica
com que esses indivíduos se acostumaram ao viver nas ruas, sobretudo para crianças e
adolescentes em situação de longa permanência, cujos referenciais de convivência e relações
sociais foram abalados.
Assim, junto com a definição e conceito de criança e adolescente em situação de rua, foi
proposto, no âmbito da Resolução Conjunta 01/2016, a inclusão de um capítulo no documento de
orientações técnicas, trazendo subitem para contemplar a atenção especializada à CASR em
medida de acolhimento institucional, sem que haja, todavia, segregação, isolamento e
discriminação, como enfatiza o próprio documento. O texto inclui dois parágrafos introdutórios,
um tópico sobre metodologias e formas de oferta, e finaliza com 13 pressupostos para o trabalho
com CASR no acolhimento institucional. A referida resolução está disponível, na íntegra, no
Anexo C.
Dois outros documentos (produtos) foram apresentados na Oficina promovida pelo MDS,
nos dias 10 e 11 de novembro, que teve o objetivo de discutir novas ofertas de atendimento
socioassistencial às crianças e adolescentes em situação de rua, a qual foi a última atividade de
participação coletiva do GT Cri/Adol Rua do CONANDA. A oficina contou com a participação
de cerca de 50 representantes de instituições e especialistas no tema de todo o país, e integrantes
do Sistema Único de Assistência Social, na qual o GT apresentou e discutiu suas propostas
elaboradas nesse período para crianças e adolescentes em situação de rua (CASR), quais sejam: a
Conceituação, o Acolhimento Institucional, o Centro de Referência Especializado, e as
Orientações Técnicas para Educadores Sociais em Programas, Projetos e Serviços com CASR.
348

Nessa oficina, tivemos a contribuição dos participantes incluindo especificidades outras


que aprimoraram o conceito de CASR e, na tentativa de orientar os diversos profissionais da
política de assistência social, se verificou a necessidade de produzir um conjunto de diretrizes que
norteassem o trabalho da rede SUAS de maneira transversal. O objetivo foi levar a todos os
serviços ofertados pela Assistência Social, a especificidade do público em questão e sua peculiar
situação de desenvolvimento e de ser objeto de violação de direitos. Dessa forma, a partir de
diretrizes então produzidas no âmbito do GT Cri/Adol em situação de rua do CONANDA, foi
gerada a primeira redação para um documento contendo diretrizes políticas e metodológicas para
o atendimento de crianças e adolescentes em situação de rua no âmbito da assistência social. O
documento seguiu para consulta pública entre 23 de dezembro 2016 e 10 de março de 2017,
através do site do Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário312 (MDSA), e foi aprovado
em plenária do CNAS, realizada em maio de 2017, bem como pela plenária da Assembleia do
CONANDA, em junho de 2017. As referidas diretrizes encontram-se no Anexo D.
Em dezembro de 2016, o CONANDA aprovou a Resolução 183/2016, que dispõe sobre
as Orientações Técnicas para Educadores Sociais em Serviços, Programas e Projetos com
Crianças e Adolescentes em Situação de Rua, posteriormente revogada, por um erro na
numeração, e substituída pela Resolução 187/2017, publicada em 23 de maio de 2017, que
manteve todo o conteúdo da anterior. O documento é muito importante para os profissionais que
atuam diretamente com as crianças e adolescentes em situação de rua, os chamados Educadores
Sociais, que são a base do trabalhado desenvolvido com esse público. A resolução pode ser
encontrada no site do CONANDA313.
A Educação Social e Popular está pautada nos ensinamentos de Paulo Freire, sua principal
referência. São princípios que nortearam e norteiam os Educadores, principalmente atuantes nas
Organizações Não Governamentais (ONGs), desde a década de 1980, com o Movimento
Nacional de Meninos/as de Rua, e aqueles das Comunidades Eclesiais de base. Para uma maior
compreensão sobre esta metodologia, destaco um pequeno texto, que pode ser considerado um
verbete, de minha autoria.

312
Após o golpe que destituiu a Presidenta Dilma Rousseff, o Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à
Fome (MDS) passa a ser nomeado com Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário.
313
Publicada em: http://www.mdh.gov.br/sobre/participacao-social/conselho-nacional-dos-direitos-da-crianca-e-do-
adolescente-conanda/resolucoes/resolucoes-1
349

Educação Social de Rua


(Márcia Gatto314)

A Educação Social de Rua (ESR) se constitui em uma ponte entre a exclusão social em
que vivem as crianças e os adolescentes em situação de rua e a realização dos
seus direitos humanos, sociais, políticos, culturais, econômicos. Tem enquanto
pressuposto os ensinamentos de Paulo Freire (1967), que pode ser considerado um
grande inspirador da Pedagogia Social. Para ele, a pedagogia social caracteriza-se como
um projeto de transformação política e social visando ao fim da exclusão e da
desigualdade, voltada, portanto, para as classes populares. A Educação Social tem papel
fundamental no processo de mudança. Não é um papel abstrato, é um papel construído
socialmente que implica na análise da mudança e da estabilidade como expressões da
forma de ser da estrutura social, que se lhe oferece como campo de seu fazer, estrutura
social que é obra dos homens e que, se assim for, a sua transformação será também obra
dos homens (Freire, 1979:47-48). Ela é orientada por uma proposta político-pedagógica
de trabalho que, por sua vez, se caracteriza no espaço de uma atividade educativa, mas
também política, junto às crianças e adolescentes em situação de rua, propondo que estes
desenvolvam coletivamente suas próprias formas de aprender, explicar e se posicionar
diante das relações da vida social, para que elas exerçam seu poder de decisão que
conduzam ações de transformação social.
A ESR busca eliminar a cultura da indiferença e instaurar uma nova cultura, a cultura da
solidariedade que possa neutralizar a banalização da vida à qual as elites brasileiras se
acostumaram. É uma pedagogia que se arrisca na aventura de construir o novo, o
inusitado, o saber militante, invadindo e desinstalando o saber burocrático, intolerante e
arrogante. Determina, dessa forma, tanto o seu papel como seus métodos e técnicas de
ação para a conscientização dos indivíduos com quem se trabalha, enquanto com eles
também se conscientiza.
A Educação Social de Rua se dá através do encontro dos Educadores Sociais com os
meninos e meninas em situação de rua, através do estabelecimento de vínculos, da
criação de laços de amizade e confiança, buscando a construção coletiva de um projeto
de vida com eles e para eles315.

Falar das Flores, necessário destacar a fundação do Movimento Nacional de Meninos e


Meninas de Rua (MNMMR), em 1985, que foi determinante para a luta em defesa e a garantia de
direitos das crianças e adolescentes. Focado nos “meninos de rua”, organizou educadores /
militantes e os próprios meninos/as de todos os estados desse país denunciando a violência, o
extermínio e a falta de políticas públicas para este grupo social. Várias sementes foram jogadas
em terrenos ainda não muito férteis e, por isso, era necessário adubar e preparar a terra. O
primeiro fruto colhido foi a Lei 8.069/1990 – o Estatuto da Criança e do Adolescente. Podemos
garantir que as crianças e adolescentes desse Brasil, sejam elas da classe alta, média ou baixa,
brancas ou negras, têm uma lei que as protege devido, principalmente, aos meninos e meninas de
314
Márcia Gatto é Mestre e Doutoranda em Políticas Públicas e Formação Humana (UERJ), Coordenadora da Rede
Rio Criança, Conselheira Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente (CEDCA RJ).
315
Fontes: FREIRE, Paulo, Pedagogia do Oprimido. 17. Ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1967.
GADOTTI, Moacir. Educação Popular, Educação Social, Educação Comunitária: conceitos e práticas diversas,
cimentadas por uma causa comum. In: Revista Diálogos: pesquisa em extensão universitária. 2012.
GRACIANI, M. Pedagogia Social de Rua. São Paulo: Editora Cortez, 2001.
350

rua, pois essa conquista teve entre seus principais defensores e articuladores a liderança do
MNMMR.
Passados 27 anos desde que a lei foi sancionada, o ECA para muitos ainda é um estranho,
para outros precisa ser revisto ou é o grande vilão da história, pois é considerado o defensor de
“bandidinhos”, dos “menores”. Os inúmeros projetos de lei prevendo a redução da maioridade
penal e o aumento do tempo de internação dos adolescentes autores de ato infracional exigem
alterações no ECA e, apesar de muita polêmica em torno do tema, a maior parte da sociedade é
favorável à redução. Acreditamos que neste cenário de tantos retrocessos e redução de direitos
esta matéria tem grande chance de ser aprovada na Câmara e no Senado Federal. No entanto,
apesar das margens que o oprimirem, o Estatuto da Criança e do Adolescente é uma lei
reconhecida internacionalmente de respeito aos direitos de crianças e adolescentes, sem distinção.
As flores apresentadas neste último capítulo da tese são para exemplificar que mesmo
diante de uma realidade dura e sombria, o movimento de resistência tem que abrir brechas, tem
que ser como uma minhoca que faz o seu caminho por dentro da terra e a oxigena. A militância
precisa disso pra não sucumbir... E continuamos sabedores de que ainda teremos um longo
caminho a percorrer para se conseguir vislumbrar um mundo melhor, mais florido e possível para
todos...

Referências para a elaboração deste capítulo:


Comitê Nacional de Atenção às Crianças e Adolescentes em situação de rua;
Política Municipal de Atendimento às Crianças e Adolescentes em situação de rua no RJ
(Deliberação 763/2009), Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente
(CMDCA Rio), 2009;
Propostas de Diretrizes para uma Política Nacional de Atendimento às Crianças e
Adolescentes em situação de rua (Comitê Nacional de Atenção às Crianças e
Adolescentes em situação de rua).
Resolução 173 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente
(CONANDA), de 08 de abril de 2015;
Resolução Conjunta 01/2016 CNAS e CONANDA;
351

Resolução 64/2016 da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social – Protocolo do


Serviço Especializado em Abordagem Social (SMDS RJ), Diário Oficial do Município do
Rio de Janeiro, 12 de abril de 2016. (http://doweb.rio.rj.gov.br/ler_pdf.php?edi_id=3078&page=28).
Diretrizes Nacionais para o Atendimento a Criança e ao Adolescente em Situação de Rua,
elaborado pela Campanha Nacional Criança Não é de Rua (CNER), com apoio da
SDH/CONANDA, 2017.
352

CONSIDERAÇÕES

Conclusão? Considerações finais? Sinceramente, tenho dúvidas se esta tese deveria ter
conclusão ou considerações finais, visto que temos sido atropelados, a cada dia, por fatos sociais
que desnudam uma realidade cheia de retrocessos e violações. O mais apropriado é fazer apenas
considerações em relação ao que foi apresentado e defendido nesta tese, mas que não são finais...
Muita coisa foi por mim vivenciada ao longo de mais de 25 anos de atuação direta e na
defesa de direitos humanos de crianças e adolescentes, sejam das que estão em situação de rua ou
daquelas que estão nas favelas, periferias e encarceradas, majoritariamente negras e pobres, essas
que são, sistematicamente, as maiores vítimas das práticas e posturas abusivas e violentas de um
poder dominante que os quer fora dessa sociedade, essas que são denominados “os sujeitos
indesejáveis”. E como fazem ao longo de um longo tempo? Recolhendo-as, expulsando-as dos
espaços públicos, dos territórios considerados “nobres”, dos restaurantes e bares, de debaixo das
marquises (que têm sido retiradas dos prédios), das praças, dos ônibus em direção às praias da
zona sul da cidade maravilhosa; prendendo-as, encarcerando-as em verdadeiros campos de
concentração e mesmo eliminando-as fisicamente, pois estas fazem parte daquele grupo
considerado ‘indignos de viver’! O que dizer de tantos horrores?
Foi muito difícil e doloroso escrever esta tese, pois fui colocada frente a frente, inúmeras
vezes, com uma realidade que combatemos o tempo todo. Pesquisar e rememorar
acontecimentos, fatos que integram essa realidade dura, sombria, perversa, desumana, nos causa
náuseas, indignação, raiva, e também desilusão e desesperança...
Muitos foram os caminhos e descaminhos, as dificuldades e desafios que se apresentaram,
e as contradições, intrínsecas nesse processo de pesquisa, sobressaltado por uma conjuntura
política de graves e perigosos retrocessos que atropelou e golpeou a democracia e o estado de
direito no país. O que para mim no início dos estudos, em 2010, época da qualificação de
mestrado, já indicava a possibilidade da presença de um tipo de fascismo, que abordei, muito
ainda de forma incipiente, através do conceito de “fascismo societal”, de Boaventura Santos, ao
decidir entrar para o doutorado, em meados de 2013, não mais existiam dúvidas. Sim, estávamos
diante de algo muito próximo ao fascismo, apesar da universidade acadêmica ainda resistir.
353

Com o avançar do tempo, talvez um ano depois, percebi que existia alguma coisa ainda
além, mas que talvez tivesse medo de reconhecer... Foi quando uma velha amiga, companheira de
luta do Movimento Candelária Nunca Mais! e de outros coletivos, me disse: “Não é Fascismo
Márcia! É Nazismo!” Ao ouvir essa afirmação, senti um arrepio que me estremeceu! Sim, era o
que eu não tive a coragem de dizer, mas ela estava certa! Esse era o caminho que eu tinha que
percorrer, caminho esse que tinha, nas práticas abusivas, a presença de algo semelhante ao que
também se manifestou no nazifascismo. Como afirmar isso? Qual a base de sustentação teórica?
Inicialmente pensei que fosse possível através da criação de um novo conceito que
conseguisse expressar o que na teoria não havia referência até então. No entanto, mais
resistências surgiram, só encontrando alguma concordância em raríssimas exceções. A negação
acadêmica fez com que eu perdesse o rumo, o que me paralisou por um ano. Só me reencontrei
quando o que de maior existe em mim, a minha “essência”, falou mais alto e me confirmou o que
sou: Defensora de direitos humanos! E, enquanto tal, não poderia abandonar minhas convicções.
A partir de então retomei as bases da tese, com a certeza que estava no caminho certo. Não mais
em defesa de um conceito, mas buscando as respostas através das práticas e da ideologia que as
atravessa.
Construir as bases da defesa de que na atualidade existe um tipo de ideologia muito
próxima à que esteve presente na Alemanha nazista de Hitler, não foi fácil. Por desconhecer
estudo ou conceito que tenha uma linha de pensamento semelhante ao que defendo nesta tese,
optei por considerar a existência de um tipo de ideologia que apresenta semelhanças com a
ideologia nazifascista que perpassa a sociedade, ora oculta, ora manifestada, principalmente nas
práticas abusivas e posturas do poder dominante direcionadas aos “sujeitos indesejáveis”.
Importante destacar que não me refiro a um tipo de regime político como o instalado na Itália, o
Fascismo de Mussolini, ou na Alemanha, o Nazismo de Hitler. Não é um regime formal, mas traz
em si algumas permanências e semelhanças, especialmente através da ideologia dominante.
Destaco que, como muitos autores, considero o nazismo um tipo de fascismo, pois várias são as
características e categorias que os constituem de forma semelhante, porém, o nazismo incorpora
outra, a raça, a supremacia da raça ariana sobre as demais, o que não encontramos no fascismo,
bem como o direcionamento de práticas abusivas junto a grupos sociais específicos. Por isso, uso
o termo nazifascismo.
354

A ampliação do objeto foi necessária, pois incialmente a tese trataria apenas de crianças e
adolescentes em situação de rua, no entanto, as práticas abusivas são também direcionadas a
outros grupos: adolescentes das favelas e periferias e os que estão em cumprimento de medidas
socioeducativas. Dessa forma, defino “sujeitos indesejáveis” como o grupo social composto pelas
crianças e adolescentes em situação de rua, pelas provenientes das favelas e periferias, pelos
adolescentes autores de ato infracional que são apreendidos e encarcerados, e também aqueles
que são alvos da violência letal do Estado, todos, em sua maioria, negros e pobres.
A indicação do referencial teórico de Arendt (2013) foi fundamental para o
desenvolvimento da tese, base para uma melhor compreensão das práticas abusivas. No livro
Heichmann em Jerusalém, que introduz o conceito “banalidade do mal”, a autora Hanna Arendt
aponta e descreve três fases/soluções do Nazismo para a questão dos judeus e outros grupos
indesejáveis: (1ª) Expulsão, (2ª) Concentração e (3ª) Assassinato / Eliminação. A partir dessas
três soluções/fases faço uma analogia com as práticas abusivas do poder dominante que são
direcionadas aos nossos “sujeitos indesejáveis”, quais sejam: (1ª) Recolhimento / Expulsão, (2ª)
Encarceramento / Concentração, e (3ª) Homicídio / Assassinato / Eliminação. Importante explicar
que enquanto na Alemanha nazista as soluções eram dadas como fases em ordem cronológica,
nossas práticas não seguem a mesma lógica, ou ordenamento, podendo ocorrer de forma isolada
ou mesmo simultânea.
Compreender que tipo de ideologia atravessa essas práticas, os referenciais teóricos de
Marx, Chauí (1991) e Lukács (2012) foram importantes, assim como Agamben (2012) e
Gellately (2011). A partir da teoria, as fontes primárias e base de dados pesquisada, associada às
notícias e comentários veiculados na mídia, e toda a pesquisa empírica, foram os principais
elementos de comprovação desta realidade que dá sustentação à hipótese de que um tipo de
ideologia dominante bem próxima ao que foi a ideologia nazifascista está oculta na racionalidade
que sustenta as práticas do recolhimento, do encarceramento e do homicídio, bem como na visão
e nas posturas da sociedade e da mídia em relação às crianças e adolescentes em situação de rua,
das provenientes das favelas e periferias da cidade, dos adolescentes autores de ato infracional e
daqueles que são vítimas da violência letal do Estado, quais sejam: apresentação do contexto
político e das operações de recolhimento de crianças e adolescentes em situação de rua, entre
2001 e 2016; de dados da superlotação nas unidades de internação para adolescentes autores de
ato infracional, do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (DEGASE), no período de
355

2011 ao 1º semestre de 2017; e do levantamento de dados sobre os homicídios de crianças,


adolescentes e jovens, que faz o Brasil liderar o rancking mundial no assassinato de sua
juventude.
São eles, os sujeitos indesejáveis, os primeiros a serem objetos dessas práticas, todos os
dias, ao longo da história. E só quem está na base, quem está nas ruas, só quem está apanhando
da polícia nas favelas, só quem é retirado dos ônibus e das praias, quem está encarcerado, sabe o
que é sentir na pele, no corpo e na vida, a mão forte desse tipo de ideologia e prática!
Entender como se construiu a racionalidade estigmatizadora da infância e juventude negra
e pobre no Brasil, do por que a polícia persegue, reprime e muitas vezes mata um estereótipo,
compreender a visão preconceituosa e muitas vezes fascista da sociedade sobre um determinado
grupo social, temos que buscar respostas na história de constituição do povo brasileiro, bem
como de um conjunto de relações que foram se estabelecendo atravessadas por conceitos, pré-
conceitos, pressupostos, ideologias que foram se constituindo, se fortalecendo e permanecendo
até os dias atuais, reforçadas pelo modo de produção capitalista que amplia a desigualdade e o
distanciamento, ou mesmo a exclusão deste grupo social dos processos produtivos, fazendo surgir
o que chamo de “formação do exército dos sujeitos indesejáveis ao sistema”. Importante também
compreender as bases em que foram se constituindo as representações que ocultam e sustentam
esse tipo de ideário nazifascista nas práticas abusivas direcionadas aos sujeitos indesejáveis. Isto
porque, desenvolvo a tese a partir de uma leitura marxista desta realidade, mas, não considero ser
apenas o sistema capitalista o maior responsável pela adoção e desenvolvimento de políticas e
práticas abusivas direcionadas a segmento específico da população. Marx traz uma infinita e atual
contribuição no estudo e entendimento da realidade intrínseca ao modo de produção capitalista,
fundado na relação social entre duas classes: a dos proprietários dos meios de produção, que
compram a força de trabalho, e a classe trabalhadora (proletariado), que vende a sua força de
trabalho. Porém, Marx, ao seu tempo e espaço, não inclui a questão racial e supremacia de uma
raça como outra forma de dominação. Este é um ponto importante que trago e dá base para
afirmar que existe uma ideologia dominante muito próxima à ideologia nazifascista, que tem na
supremacia da raça ariana um forte pilar de sustentação.
O racismo se apresenta com um dos maiores problemas sociais no Brasil, que se relaciona
diretamente com as sequelas dos mais de três séculos de vigência do regime escravocrata. A
escravidão dos seres humanos retirados compulsoriamente do continente africano e a divisão
356

racial entre brancos e negros, acarretou tanto a chaga do racismo, quanto do preconceito e da
discriminação racial. Até os dias de hoje as desigualdades sociais - notadamente as de renda e,
principalmente, a de oportunidades, têm na diferenciação racial sua principal causa.
Uma das dimensões do racismo entranhado em nossas instituições e representações ou
subjetividades é acreditar que a vida desses adolescentes e jovens vale menos, ou não vale a pena
ser vivida. São negros, pobres, favelados, muitos dos quais vivem à margem do Estado de
Direitos, submetidos às práticas cotidianas do Estado de Exceção. São constantemente vítimas de
preconceito, perseguidos e criminalizados pela única política pública que se faz presente ao longo
de suas vidas, a política de segurança. As políticas sociais, quando os alcançam, são políticas
compensatórias, pontuais, e que não promovem a vida desses sujeitos. É importante sempre
destacar que é a população negra que mais sofre com a violência letal no país. Isso explica o
porquê muito pouco tem sido feito nos últimos anos para transformar essa triste realidade. A falta
ou o desinteresse em desenvolver políticas que, de fato, respondam às reais necessidades dessas
pessoas é também uma forma de, invariavelmente, matá-las, deixá-las morrer... É como fortalecer
uma política de extermínio.
Desde o golpe que destituiu a Presidenta Dilma Rousseff, em abril de 2016, o país
vivencia grandes retrocessos e redução de direitos conquistados ao longo dos últimos anos, nas
áreas da saúde, assistência social, educação, cultura, trabalho, previdência social. Assistimos
diariamente a uma avalanche de denúncias envolvendo o pessoal do 1º escalão do atual governo,
bem como a imposição de medidas prejudiciais ao país e à classe trabalhadora em benefício do
mercado, do capital financeiro, de interesses internacionais. A conjuntura brasileira, de grave
crise multidimensional (econômica, social, política, ética), reiteradas vezes alarmada pelo
governo e reforçadas pela mídia, abre um perigoso campo para a instalação de forças
reacionárias, de recorte ideologicamente nazifascista. A exaltação do fascismo, de grupos de
extrema direita, encontrou lugar num cenário propício para a violência, o arbítrio e o retrocesso.
Nesse cenário que dividiu a sociedade brasileira, observamos por atos e palavras, sejam nas ruas
ou redes sociais, o descortinar e a incitação do ódio à diferença, da intolerância, da violência.
As políticas públicas adotadas pelo governo municipal do RJ, bem como em outras
grandes metrópoles do mundo, de atendimento à população em situação de rua (mendigos,
desempregados, sem-teto, “menores de rua”, adolescentes negros e pobres provenientes das
favelas, etc.), pouco avançaram em sua filosofia e prática. Em pleno século XXI, observamos
357

ainda a permanência e manutenção de ações arbitrárias, violentas, atravessadas por um viés


eugênico e higienista, reforçadas pela mídia na veiculação de notícias discriminatórias e
criminalizadoras, que fortalecem o apoio de grande parcela da sociedade ansiando a retirada
dessas pessoas de suas calçadas, praças, praias e avenidas. Essas ideias e visão que desqualificam
aquele que é diferente, transformando determinado grupo social numa ameaça, um perigo para a
sociedade determinam a necessidade de sua repressão, expulsão, contenção, encarceramento
(concentração), ou mesmo, eliminação.
Consideramos que os homicídios da juventude negra e pobre brasileira se somam ao
declínio das taxas de natalidade da população, pois se o Brasil conseguiu reduzir as taxas de
mortalidade infantil, não conseguiu superar essas mortes provocadas pela violência quando essas
crianças chegam na adolescência e juventude.
O perfil dos adolescentes e jovens que estão sendo assassinados no país os dados não
deixam dúvidas: são em sua grande maioria adolescentes e jovens, do sexo masculino, negros,
faixa etária entre 15 e 25 anos; um jovem negro tem cerca de três (3) vezes mais chances de ser
assassinado que um jovem branco; os homens têm um risco 12 vezes maior de serem
assassinados do que as mulheres. Ou seja, essa violência é seletiva, racista, e tem demonstrado a
vulnerabilidade em que estão os adolescentes e jovens, especialmente os jovens negros e pobres.
A sociedade brasileira tem naturalizado essas mortes e muitos poucos têm se mobilizado para
enfrentar esse extermínio / genocídio de um segmento considerável da população.
Uma das razões que mantém a indiferença de grande parte da sociedade e das autoridades
em enfrentar esse problema é o perfil da maioria das crianças, adolescentes e jovens que estão
sendo recolhidos, encarcerados e assassinados: eles são negros e pobres. Esse tipo de ideologia,
semelhante à nazifascista, que permeia tudo isso, no modo de produção capitalista, é também
determinante para a continuidade das práticas e posturas abusivas direcionadas aos que estão em
situação de rua, que estão nas favelas e periferias, que estão no DEGASE, que estão na lista dos
homicídios, esses a que denominamos “os indesejáveis”!
358

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363

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Índice de Homicídios na Adolescência (IHA)

Atlas da Violência 2016 e 1017

Relatório Juventude e Crime - Um estudo a partir das autuações em flagrante no estado do Rio
de Janeiro entre 2010 e 2014, Instituto de Segurança Pública, 2016.

Cenário da Infância e Adolescência no Brasil 2016, Fundação Abrinq.

Comissão de Defesa dos Direitos Humanos e Cidadania da ALERJ, Relatório 2014, 2015.

Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Relatório anual 2014, 2015, 2016.
364

ANEXO A - Política Municipal de Atendimento às Crianças e Adolescentes em situação de rua


Deliberação 763/2009 do CMDCA Rio

DIRETRIZES
Esta política implica na adoção das seguintes diretrizes e responsabilidades institucionais:
Secretaria Municipal de Assistência Social
Garantir a permanência de ações de acolhimento sistemáticas, em todas as áreas de concentração de
crianças e adolescentes em situação de rua no Município do Rio de Janeiro, visando a sua saída ativa da
rua. Entende-se por acolhimento, ações sistemáticas com processo pedagógico que incluam respeito à
história de vida de crianças e adolescentes em situação de rua e suas famílias, levando em conta seus
desejos e direitos sociais;
Garantir junto às famílias e/ou referências socioafetivas das crianças e adolescentes em situação de rua,
ações e programas intersetoriais;
Garantir vagas em condições excepcionais e provisórias, em todas as modalidades de acolhimento
institucional para crianças e adolescentes em situação de rua, em consonância com o Art. 92 do ECA, a
Política de Abrigo para Crianças e Adolescentes do Município do Rio de Janeiro - Deliberação nº 201/01,
do CMDCA-Rio, e as Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento para Crianças e
Adolescentes/Secretaria Nacional de Assistência Social/CONANDA, fevereiro de 2008;
Garantir vagas em serviços de acolhimento institucional específicos para famílias em situação de rua, em
consonância com a demanda;
Garantir a existência de Centros de Convivência para crianças e adolescentes em situação de rua,
preservando seu caráter pedagógico e de articulação de serviços e redes sociais, em parceria com a
sociedade civil e/ou com outras secretarias, contemplando as demandas de cada área programática;
Garantir a inclusão das famílias em situação de rua no Programa Bolsa Família e outros benefícios
socioassistenciais;
Garantir a inclusão das crianças e adolescentes que trabalham nas ruas, com ou sem referência domiciliar,
no Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – PETI e/ou correlatos;
Garantir na política permanente de formação de todos os servidores desta secretaria, as temáticas sobre os
Direitos Humanos e o Sistema de Garantia de Direitos para Crianças e Adolescentes, bem como
informações sobre acesso à rede de serviços, em consonância com as deliberações do CMDCA-Rio,
visando desenvolver ações/relações baseadas no respeito à cidadania e aos direitos humanos da população
que utiliza as ruas como referência;
Incluir adolescentes, jovens e famílias em situação de rua em programas de capacitação para o mundo do
trabalho e geração de renda, em parceria com a Secretaria Municipal de Trabalho e Emprego;
Possibilitar à população que se encontra em situação de rua ou inserida nos diversos serviços de
acolhimento institucional, o retorno aos seus Municípios ou Estados de origem;
Buscar junto à Secretaria Municipal de Trabalho e Emprego prioridade para as famílias de crianças e
adolescentes que estejam em situação de rua nos programas de habitação do município.

Secretaria Municipal Educação


Estabelecer a situação de rua como um dos critérios a serem priorizados para vagas em creche;
Priorizar vagas nas creches para filhos de mães adolescentes, estejam elas em situação de rua ou não;
Garantir o acesso em creches para todas as crianças em situação de rua;
Criar mecanismos para garantir a inserção de mães adolescentes no Ensino Fundamental e nos Programas
de Extensão Educacional ou correlatos voltados para a sua faixa etária;
Garantir o acesso e a permanência de crianças e adolescentes em situação de rua às escolas de horário
integral, por meio da implementação das mudanças administrativas e pedagógicas pertinentes que
contemplem as especificidades deste público;
365

Fortalecer e ampliar a participação da comunidade nos Conselhos Escola Comunidade – CEC – e no


Conselho Municipal de Educação – CME;
Garantir o acesso e a permanência de adolescentes em situação de rua no Programa de Educação de
Jovens e Adultos – PEJA e de crianças e adolescentes no Programa de Extensão Educacional – Clube
Escolar, Núcleo de Artes, Pólo de Educação pelo Trabalho e outros.

Coordenadoria Especial de Promoção da Política de Prevenção à Dependência Química


Instrumentalizar os educadores sociais, em parceria com outras Secretarias como Esporte e Lazer, Cultura,
Saúde, Educação entre outras, num trabalho em rede, para oferecer oficinas, encontros e material
informativo sobre proteção e prevenção à dependência química, ampliando a atual estrutura de formação e
capacitação;
Criar um Fórum permanente e articulado (entre OGs e ONGs) de jovens que já passaram pela experiência
e de profissionais que lidam diretamente com crianças e adolescentes em situação de rua, no que tange aos
fatores de proteção e prevenção à dependência química;
Elaborar um diagnóstico sobre o uso e abuso de drogas, lícitas e ilícitas por parte de crianças e
adolescentes nos espaços públicos, tais com Vilas Olímpicas, Cidade da Criança e demais equipamentos,
em articulação com outras secretarias, OSC e Conselhos Tutelares.

Secretaria Municipal de Esporte e Lazer


Capacitar as equipes socioeducacionais das Vilas Olímpicas na temática sobre a criança e o adolescente
em situação de rua;
Garantir horários/vagas para atividades esportivas com crianças e adolescentes em situação de rua nas
quadras de esportes localizadas em espaços públicos da cidade;
Garantir o acesso de crianças e adolescentes em situação de rua e suas famílias nas Vilas Olímpicas;
Garantir o acesso desta população aos bens e equipamentos esportivos e de lazer da cidade;
Garantir ações articuladas entre a SMEL e as demais secretarias;
Garantir atividades sociopedagógicas para a inclusão social de crianças e adolescentes em situação de
vulnerabilidade nas Vilas Olímpicas.

Secretaria Municipal de Saúde e Defesa Civil


Qualificar e garantir o atendimento a crianças e adolescentes em situação de rua em todas as Unidades de
Saúde da prefeitura, através de sensibilização, capacitação, formação e produção de materiais;
Ampliar e qualificar as equipes de Saúde da Família e Agentes Comunitários para favorecer a
identificação e a abordagem precoce das situações de vulnerabilidade social;
Contemplar a criança e o adolescente em situação de rua no Plano Municipal de Saúde, integrando-os aos
programas e atividades desenvolvidos pela SMSDC, através de temas transversais que priorizem o
fortalecimento dos vínculos familiares e comunitários, o protagonismo juvenil, as questões de gênero, a
saúde da população negra, o uso e abuso de drogas, a prevenção de DST/AIDS e a prevenção das
violências contra a criança e o adolescente, com destaque para a violência sexual, intrafamiliar,
institucional e daquela decorrente da negação de direitos básicos;
Capacitar as equipes das maternidades na garantia do direito à convivência familiar e comunitária,
qualificando o atendimento no acompanhamento dos casos que possam requerer acolhimento institucional,
em parceria com o Sistema de Garantia de Direitos;
Desenvolver ações de prevenção de doenças transmissíveis como DST, AIDS, Tuberculose, Hanseníase,
Hepatites Virais e coinfecções, em parceria com ONG que já realizem trabalho direto nas ruas, visando a
redução de vulnerabilidade frente a esses agravos;
Ampliar e fortalecer as equipes de Saúde Mental - em especial dos Centros de Atenção Psicossocial para
Álcool e Drogas - CAPS-AD, visando articular e apoiar as ações de secretarias e organizações que
realizem trabalho direto nas ruas, centros de convivência e de acolhimento institucional;
Qualificar as equipes dos hospitais de emergência para o atendimento a essa população;
366

Ampliar os espaços de Saúde onde o adolescente é o centro das atenções (como o Adolescentro, atual
programa da SMSDC), envolvendo a criança e o adolescente em situação de rua;
Utilizar diversos instrumentos de coleta de informações já existentes para identificação de situações de
violência contra as crianças e adolescentes em situação de rua;
Promover estudos na área de Saúde Pública que possibilitem a análise da situação de saúde desta
população;
Criar equipes de Saúde da Família para atendimento da população sem domicílio.

Guarda Municipal
Garantir, na política permanente de formação de todos os funcionários da Guarda Municipal, as temáticas
sobre os Direitos Humanos e o Sistema de Garantia de Direitos para Crianças e Adolescentes, em
consonância com as deliberações do CMDCA-Rio;
Estabelecer um programa de capacitação para todos os profissionais da Guarda Municipal, para as ações
de proteção a crianças e adolescentes em situação de rua;
Priorizar o acesso de crianças e adolescentes em situação de rua aos programas culturais e esportivos da
Guarda Municipal, tais como Projeto Judô e Conhecendo os Corredores da Quinta, entre outros.

Companhia Municipal de Limpeza Urbana – COMLURB


Garantir, na política permanente de formação de todos os empregados da COMLURB, as temáticas sobre
os Direitos Humanos e o Sistema de Garantia de Direitos para Crianças e Adolescentes, bem como
informações sobre acesso à rede de serviços, em consonância com as deliberações do CMDCA-Rio;
Contemplar, nas capacitações para os garis e demais empregados da empresa, incluindo setores gerenciais
e outros níveis hierárquicos superiores, uma abordagem temática visando desenvolver ações/relações
baseadas no respeito à cidadania e aos direitos humanos da população que utiliza as ruas como referência;
Esta política orienta, explicitamente, a não retirada dos pertences de crianças e adolescentes em situação
de rua, por considerar estes como elos fundamentais no seu desenvolvimento socioafetivo;
Fomentar ações na área de educação ambiental voltadas para crianças e adolescentes em situação de rua,
em articulação com cooperativas, associações e organizações que trabalhem com economia popular
solidária, visando contribuir com a sua formação integral e a promoção da cidadania;
Desenvolver estratégias de inclusão deste público em ações gerais de educação ambiental existentes.

Secretaria Municipal de Cultura


Garantir acesso às informações do cadastro atualizado dos equipamentos culturais e suas programações;
Garantir o acesso de crianças e adolescentes em situação de rua nos equipamentos que oferecem
espetáculos culturais, disponibilizando ingressos gratuitos;
Disponibilizar os espaços dos Teatros, Centros e Lonas Culturais para utilização e apresentação de grupos
culturais populares;
Promover integração entre a Secretaria Municipal de Cultura e a Secretaria Municipal de Assistência
Social nas ações de acolhimento de crianças e adolescentes em situação de rua;
Promover ações entre a SMC e Organizações Sociais para apresentações culturais, utilizando as Unidades
Móveis de Cultura, nos locais de concentração de crianças e adolescentes em situação de rua, com
objetivo de sensibilizá-los para participação em programas sociais;
Viabilizar o acesso de crianças e adolescentes em situação de rua às Unidades Escolares que desenvolvam
o Projeto Segundo Tempo Escolar;
Ampliar o acesso de crianças e adolescentes e suas famílias em oficinas gratuitas desenvolvidas nos
Centros e Lonas Culturais;
Fomentar a criação de oficinas de capacitação profissional para adolescentes e suas famílias, que visem à
inserção no mercado de trabalho em cadeias produtivas culturais, garantindo a diversidade cultural e a
formação humana.

Organizações da Sociedade Civil


367

Articular com os demais operadores do Sistema de Garantia de Direitos ações e serviços, de modo
integrado e complementar, com o objetivo de promover e garantir os direitos das crianças e adolescentes,
notadamente das que se encontram em situação de rua, e ampliando seu acesso à cidade (equipamentos
culturais, educacionais, de lazer e de expressão autônoma), de maneira a contribuir com uma melhoria na
qualidade vida;
Pautar a questão da criança e do adolescente em situação de rua, na sua complexidade, nos diversos
espaços de fomento de políticas voltadas a crianças e adolescentes;
Propor, acompanhar e monitorar recursos que contemplem ações voltadas para a garantia de direitos de
crianças e adolescentes em situação de rua no Orçamento Criança;
Fomentar e garantir a participação de crianças e adolescentes na implementação desta política pública;
Promover espaços permanentes de diálogos entre profissionais que desenvolvem ações com crianças e
adolescentes em situação de rua, suas famílias e comunidades, de modo a fortalecer a troca de
experiências, metodologias e o trabalho articulado em redes sociais;
Garantir uma política permanente de sensibilização, formação e capacitação dos diversos atores sociais
nas temáticas sobre os Direitos Humanos e o Sistema de Garantia de Direitos para Crianças e
Adolescentes, bem como informações sobre acesso à rede de serviços, em consonância com as
deliberações do CMDCA-Rio, contemplando uma abordagem temática que vise desenvolver
ações/relações baseadas no respeito à cidadania e aos direitos humanos da população que utiliza as ruas
como referência;
Fomentar e incentivar espaços permanentes de organização, debate e articulação de crianças e
adolescentes em situação de rua e suas famílias, voltados a garantir o seu protagonismo, em parceria com
o poder público municipal, tendo recursos atrelados à implementação desta política.

Monitoramento e Avaliação
O CMDCA-Rio deverá instituir uma comissão paritária, composta por conselheiros, instituições da
sociedade civil e secretarias de governo não conselheiras, no prazo de até 120 dias a partir da publicação
da presente política, com a finalidade de elaboração de diagnóstico e planos de implementação, avaliação
e monitoramento.

RECOMENDAÇÕES
Destacamos as seguintes recomendações:
Recomenda-se a utilização do conceito “em situação de rua” como definido nesta política, nas ações e
diagnósticos relativos ao referido público.
A supressão de todo e qualquer ato violento e ação vexatória, inclusive os estigmas negativos e
preconceitos sociais em relação à população em situação de rua.
A Política de Atendimento à Criança e ao Adolescente em Situação de Rua orienta ao CMDCA-Rio que
encaminhe propostas de peça orçamentária à Chefia do Poder Executivo para incorporação no processo
legislativo de elaboração da Lei Orçamentária (Plano Plurianual e Lei Orçamentária Anual).
368

ANEXO B - Resolução 64/2016, SMDS RJ– Protocolo do Serviço Especializado em Abordagem


Social

ATO DO SECRETÁRIO
RESOLUÇÃO SMDS Nº 64 e 12 DE ABRIL DE 2016316.

CRIA E REGULAMENTA O PROTOCOLO DO SERVIÇO


ESPECIALIZADO EM ABORDAGEM SOCIAL, NO
ÂMBITO DAS AÇÕES DA PROTEÇÃO SOCIAL
ESPECIAL DE MÉDIA COMPLEXIDADE DA
SECRETARIA MUNICIPAL DE DESENVOLVIMENTO
SOCIAL.

O Secretário Municipal de Desenvolvimento Social, no uso das atribuições que lhe são conferidas pela
legislação e,
CONSIDERANDO a Lei Orgânica da Assistência Social nº 8.472, de 7 de Dezembro de 1993, e suas
alterações;
CONSIDERANDO a Resolução nº 145 do Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS, de 15 de
outubro de 2004, que aprova a Política Nacional de Assistência Social;
CONSIDERANDO a Resolução nº 130 do Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS, de 15 de
julho de 2005, que aprova a Norma Operacional Básica do Sistema único de Assistência Social;
CONSIDERANDO a Resolução nº 269 do Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS, de 13 de
Dezembro de 2006, que aprova a Norma Operacional Básica de Recursos Humanos do Sistema Único de
Assistência Social;
CONSIDERANDO a Resolução nº 109 do Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS, de 11 de
Novembro de 2009, que aprova a Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais;
CONSIDERANDO o Decreto Federal nº 7.053, de 23 de Dezembro de 2009, que institui a Política
Nacional para População em Situação de Rua;
CONSIDERANDO a Deliberação nº 763/09 do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do
Adolescente, que institui a Política de Atendimento às Crianças e aos Adolescentes em Situação de Rua;
CONSIDERANDO a cartilha elaborada em agosto de 2014 pelo Comitê Nacional de Atenção à Criança e
ao Adolescente em situação de Rua- “Subsídios para elaboração de uma política nacional de atenção à
criança e ao adolescente em situação de rua”;
RESOLVE:

Art. 1º. Fica criado o Protocolo do Serviço Especializado em Abordagem Social no âmbito das ações de
Proteção Social Especial de Média Complexidade vinculada a Secretaria Municipal de Desenvolvimento
Social, cabendo a todos os profissionais envolvidos nessas ações o cumprimento do disposto nesta
Resolução.
316
Publicada em: http://doweb.rio.rj.gov.br/ler_pdf.php?edi_id=3078&page=28 , Diário Oficial do Município do
Rio de Janeiro.
369

Parágrafo Único. Para efeitos desta resolução são consideradas pessoas em situação de rua as crianças,
adolescentes, jovens, adultos, idosos e famílias que possuam em comum a pobreza extrema, os vínculos
familiares interrompidos ou fragilizados, a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os
logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e sustento, de forma temporária ou
permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite ou como moradia provisória,
observando-se as considerações estabelecidas pelo Comitê Nacional de Atenção à Criança e ao
Adolescente em Situação de Rua, para esse público em específico.

Art. 2º. O Serviço Especializado em Abordagem Social é uma ação da Proteção Social Especial de Média
Complexidade, localizado nos Centros de Referência Especializados de Assistência Social - CREAS, em
serviços referenciados aos CREAS e no Centro de Referência Especializado para População em Situação
de Rua - CENTRO POP, possuindo como locus de atuação os logradouros da cidade do Rio de Janeiro.

Art. 3º. São objetivos do Serviço Especializado em Abordagem Social:

I – Construir o processo de saída das ruas e possibilitar condições de acesso à rede de serviços e
benefícios assistenciais;
II - Identificar crianças, adolescentes, adultos, famílias e idosos com direitos violados, a natureza das
violações, as condições em que vivem, estratégias de sobrevivência, procedências, aspirações, desejos e
relações estabelecidas com a rua e com as instituições considerando a história de vida destes usuários.
III – Promover ações de sensibilização para divulgação do trabalho realizado, direitos e necessidades de
inclusão social e estabelecimento de parcerias;
IV - Atender a população em situação de rua através do Serviço Especializado de Abordagem Social da
Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social, objetivando o resgate da cidadania, autonomia,
emancipação e reinserção familiar e/ou comunitária;
V - Identificar as áreas de concentração de situações de exploração sexual e de trabalho infanto-juvenil no
âmbito do município do Rio de Janeiro;
VI - Promover a proteção integral através da escuta qualificada e inserção em programas sociais da
Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social e demais políticas intersetoriais;

Art. 4º. São consideradas Diretrizes e Princípios do Protocolo do Serviço Especializado em Abordagem
Social:
I - Promoção da cidadania dos indivíduos e respeito à dignidade do ser humano;
II – Promoção da convivência e reinserção familiar e comunitária;

III – Não pactuação com qualquer forma de discriminação por motivo de gênero, religião, faixa etária,
orientação sexual, origem étnica ou social dentre outras;
IV – Igualdade de direitos no acesso ao atendimento;
V – Garantia da participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das
políticas e no controle das ações;
VI – Sensibilização da população quanto à mudança de paradigmas culturais concernentes aos direitos
humanos, econômicos, sociais e culturais da população em situação de rua;
370

VII – Incentivo à capacitação de profissionais para atuação na rede de proteção às pessoas em situação de
rua, além da promoção de ações educativas permanentes para a sociedade.

Art. 5º. São considerados procedimentos do Serviço Especializado de Abordagem Social, devendo ser
realizados pelas equipes do CREAS (Equipe Técnica e Equipe de Educadores) e pelos demais serviços
referenciados aos CREAS e CENTROS POP:
I - Mapear mensalmente o território com vistas à elaboração de diagnóstico sócio territorial sinalizando
sobre a identificação de cenas de uso de drogas, exploração sexual infanto-juvenil, trabalho infantil dentre
outras violações de direitos;
II - Acionar os órgãos do Sistema de Garantia de Direitos, em caso de identificação de situações graves
que demandem ações em conjunto, visando discutir a melhor forma de atuação, previamente à realização
da ação de abordagem;
III – Realizar abordagem continuada, programada e permanente, visando estabelecer uma escuta ativa,
que favoreça o fortalecimento de vínculos para conhecer a pessoa em suas peculiaridades e história de
vida, priorizando os casos envolvendo crianças, adolescentes, idosos e pessoas com deficiência;
IV - Sensibilizar a população em situação de rua para a adesão às ofertas dos serviços socioassistenciais,
orientando-a sobre os riscos de permanência nas ruas, e realizar os devidos encaminhamentos para a Rede
Socioassistencial, a partir do aceite do usuário;
V - Ofertar acolhimento como medida protetiva excepcional e provisória, em consonância com as normas
vigentes;
VI - As equipes deverão proceder aos encaminhamentos monitorados a partir da consolidação da
referência e contra referência dos usuários junto ao território;
VII - Nos casos de emergência a equipe deverá solicitar o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência –
SAMU;
VIII - Os casos de necessidade de atendimento de urgência de saúde deverão ser direcionados às unidades
de atendimento de saúde no território da abordagem, de acordo com a demanda do usuário;
IX – Verificando-se a necessidade da aplicação de medidas protetivas, acionar o Conselho Tutelar,
facultando-se o acolhimento emergencial quando inviabilizada a atuação desse órgão, hipótese em que
deverá ser observado o art. 93 do Estatuto da Criança e do Adolescente;
X – Em Caso de ausência de documento que comprove o vínculo familiar entre a criança ou o adolescente
e o terceiro que o acompanha, e havendo possível situação de violação de direitos, encaminhar a todos
obrigatoriamente ao Conselho Tutelar do território para as providências cabíveis;
XI - Realizar o Cadastro Único do Governo Federal e/ou o encaminhamento as demais políticas públicas a
esta população e considerar que se trata de ferramenta fundamental ao acompanhamento da população,
buscando qualificar o acompanhamento socioassistencial;
XII – Participar de reunião periódica com equipe dos CREAS, Centros POP e CDS's para supervisão do
trabalho realizado e discussão das especificidades da ação de abordagem e avaliação, segundo as diretrizes
do SUAS e da SMDS;
371

XIII – Participar de reuniões periódicas a serem organizadas pelos CREAS, Centros POP, CDS's e os
integrantes da rede dos serviços socioassistenciais de proteção social básica e proteção social especial;
serviços de políticas públicas setoriais; sociedade civil organizada, órgãos do Sistema de Garantia de
Direitos; instituições de Ensino e Pesquisa; serviços, programas e projetos de instituições não
governamentais e comunitárias para mobilização, articulação e definição de fluxos locais, sem prejuízo da
discussão dos casos de crianças e adolescentes em situação de rua pelos atores competentes;
XIV - Registrar diariamente em banco de dados todas as informações contidas na ficha de abordagem,
sistematizando mensalmente as informações, conforme instrumento específico da SMDS;
XV - Participar de reuniões com a rede local e fóruns intersetoriais para fortalecimento do trabalho
realizado, estudo de caso, sensibilização para ressignificação da situação de rua e discussão de
metodologias de enfrentamento para essa questão;
XVI – Articular e acionar os recursos necessários ao atendimento da população em situação de rua,
através da interlocução com a rede socioassistencial;
XVII – Promover e implementar as articulações intersetoriais, governamentais e não governamentais, para
discussão da temática da população em situação de rua;
XVIII – Elaborar relatórios de diagnóstico do território e respostas às solicitações do Sistema de Garantia
de Direitos, dentre outros;
XIX – Acionar os órgãos do Sistema de Garantia de Direitos, sempre que necessário;

XX - Atender as demandas oriundas da ouvidoria da SMDS e outros órgãos, com envio de relatório
informando os encaminhamentos dados aos casos, utilizando a ouvidoria como ferramenta de acesso às
demais políticas intersetoriais, desde que sejam competentes da Proteção Social Especial de Média
Complexidade;
XXI – Elaborar projetos voltados para as pessoas em situação de rua, conforme diretrizes da Proteção
Social Especial de Média Complexidade da SMDS e normas pertinentes;
XXII – Organizar e participar de fóruns, seminários e eventos sobre o tema e participar de capacitação em
temas afins;
XXIII – Solicitar aos CREAS, Centros POP e CDS's da área de abrangência os recursos materiais e
humanos necessários ao desenvolvimento das ações planejadas;
XXIV – Compartilhar as informações, por meio eletrônico ou físico, dos casos atendidos com a equipe do
CREAS do local da referência familiar da criança ou adolescente, realizando estudos de casos de forma
conjunta, de modo a assegurar a referência e contrarreferência do atendimento prestado;
XXV – Nos casos de ausência de documentação dos usuários a equipe deverá encaminhá-los para os
órgãos competentes, com vistas à retirada de documentos ou 2ª via;
XXVI - Na abordagem às famílias em situação de violação de direitos, informar sobre as consequências
legais da situação e encaminhar relatório ao conselho tutelar da área de abrangência para providências
cabíveis;
XXVII – Àqueles que aderirem a proposta ao acolhimento institucional, deverão ser encaminhados às
Centrais de Recepção de Acolhimento, de acordo com o perfil;
372

XXVIII - Ao abordar os usuários, os profissionais deverão identificar-se através da apresentação do


documento profissional com foto, fornecido pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social e
deverão esclarecer o objetivo da ação e os serviços ofertados;
XXIX - Em caso de tentativa de agressão ou risco iminente à equipe ou demais pessoas, avaliar a
continuidade da ação de abordagem e, se for o caso, solicitar imediato apoio policial.
§ 1º. Os procedimentos elencados neste artigo poderão ser realizados tanto pela equipe de educadores
quanto pela equipe técnica do CREAS, Centro POP e equipe dos serviços referenciados, ressalvadas as
competências privativas dos profissionais, e serão registrados em instrumento próprio, garantindo a
informação sobre a evolução dos atendimentos.
§ 2º. A criança e o adolescente que esteja nitidamente sob a influência do uso abusivo de drogas, afetando
sua saúde física mental, deverão ser encaminhados para atendimento em unidade ou serviço de saúde, sem
prejuízo do acompanhamento pela equipe de abordagem social que deverá acionar o Conselho Tutelar e os
órgãos assistenciais nos moldes do inciso IX deste artigo.

Art. 6º. São atribuições dos Técnicos do Serviço Especializado em Abordagem Social e também daqueles
que atuam em unidades referenciadas aos CREAS:
I – Planejar as atividades a serem realizadas, observando o mapeamento e pré-diagnóstico realizado para
execução das ações de Abordagem de rua;
II – Participar das ações de abordagem;
III – Assessorar e subsidiar teórico-metodologicamente o trabalho realizado pela equipe de educadores
sociais;
IV – Realizar visitas domiciliares, quando necessário;
V – Prestar atendimento socioassistencial individual ou grupal dos usuários;
VI – Participar de reuniões periódicas relativas ao serviço de abordagem;

VII – Elaborar plano de intervenção junto aos usuários atendidos, bem como acompanhar as intervenções
realizadas;
VIII – Elaborar relatórios circunstanciados acerca da denúncia de violação de direitos recebida, e
encaminhá-los para a rede de proteção social e ao sistema de defesa e garantia de direitos;
IX – Realizar articulações com outras instituições objetivando viabilizar o atendimento dos usuários;
X – Realizar estudos de casos e elaborar relatórios técnicos;

XI – Efetuar registro de dados, em instrumentos próprios, para fins de diagnóstico quantitativo e


qualitativo;
XII – Respeitar o sigilo profissional a fim de proteger, por meio da confidencialidade, a intimidade das
pessoas, grupos ou organizações, a que tenha acesso no exercício profissional;
XIII – Participar de reuniões técnicas e/ou administrativas, treinamentos e encontros de capacitação
profissional internos e externos, sempre que convocado.
373

Art. 7º. São atribuições da equipe de educadores sociais do Serviço Especializado em Abordagem Social:
I – Mapear as áreas de concentração de população em situação de rua;
II – Abordar o usuário conforme metodologia estabelecida pelo Serviço de Abordagem;

III – Identificar as áreas de concentração de situações de exploração sexual comercial e trabalho infantil
de crianças e adolescentes no âmbito do Município do Rio de Janeiro;
IV – Participar do planejamento das ações junto com a equipe técnica;

V – Preencher os instrumentais, registrando os dados dos usuários, possibilitando o processo de


intervenção continuado;
VI – Acompanhar os técnicos nas visitas domiciliares;
VII – Acompanhar os usuários à rede socioassistencial;
VIII – Recepcionar e acolher os usuários no CREAS e Centro POP;

IX – Participar de reuniões técnicas e/ou administrativas, treinamentos e encontros de capacitação


profissional internos e externos;
X – Integrar-se com a equipe técnica, contribuindo com dados e informações relativas ao trabalho,
solicitando subsídios teórico-práticos, quando necessários, visando a construção de rede apoio dentre
outros;
XI – Elaborar relatórios quantitativos e qualitativos de suas atividades, a partir dos planos e projetos
elaborados pela equipe técnica;
XII – Comunicar imediatamente à equipe técnica situação de violação de direitos que demande
intervenção urgente;
XIII – Seguir orientações do CREAS e Centro POP sobre a conduta ética no atendimento da população;

XIV – Elaborar, em conjunto com a equipe técnica, o plano de trabalho, bem como executá-lo sob
supervisão do CREAS e Centro POP;
XV – Respeitar o sigilo profissional a fim de proteger, por meio da confidencialidade, a intimidade das
pessoas, grupos ou organizações, a que tenha acesso no exercício profissional;
XVI - Garantir o preenchimento das fichas de coleta e sistematização de dados para a elaboração do perfil
dos usuários para a construção de indicadores sociais que subsidiem a formulação de políticas públicas.
Art. 8º. A Subsecretaria de Proteção Especial será a responsável pela divulgação e acompanhamento da
implantação deste protocolo.
Art. 9º. A elaboração deste protocolo teve a participação dos profissionais das dez Coordenadorias de
Desenvolvimento Social, da Subsecretaria de Proteção Social Especial e da Comissão Especial de
População em situação de rua da Câmara Municipal do Rio de Janeiro.
Art.10. Os atos infracionais e atos ilícitos praticados por adolescentes, adultos e idosos, respectivamente,
serão considerados como esfera de atuação da segurança pública.
Art. 11. Todas as intercorrências alheias a este procedimento operacional padrão deverão ser
encaminhados à chefia imediata.
Art. 12. Integra este Protocolo o Anexo contendo a Ficha de Abordagem-2016 – CREAS-CENTRO POP.
374

Art. 13. Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as Resoluções SMAS nº 20,
de 27 de maio de 2011, a Resolução SMAS nº 33, de 13 de janeiro de 2012, e as demais disposições em
contrário.

ADILSON PIRES
SECRETÁRIO MUNICIPAL DE DESENVOLVIMENTO SOCIAL
375

ANEXO C - Resolução conjunta CNAS/CONANDA nº 1, de 15 de dezembro de 2016

RESOLUÇÃO CONJUNTA CNAS/CONANDA Nº 1, DE 15 DE DEZEMBRO DE 2016.


Dispõe sobre o conceito e o atendimento de criança e adolescente em situação de rua e inclui o
subitem 4.6, no item 4, do Capítulo III do documento Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento
para Crianças e Adolescentes.
O CONSELHO NACIONAL DE ASSISTÊNCIA SOCIAL - CNAS e o CONSELHO
NACIONAL DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE - CONANDA, em reunião
ordinária realizada no dia 15 de dezembro de 2016, no uso de suas atribuições estabelecidas,
respectivamente, no art. 18 da Lei nº 8.742, de 7 de dezembro de 1993, e no art. 2º da Lei nº 8.242, de 12
de outubro de 1991,
CONSIDERANDO o Decreto nº 7.053, de 23 de dezembro de 2009, que institui a Política
Nacional para a População em Situação de Rua e seu Comitê Intersetorial de Acompanhamento e
Monitoramento, e dá outras providências;
CONSIDERANDO que o acolhimento institucional é medida extrema, excepcional e provisória e
que todos os esforços devem ser realizados para garantir o direito fundamental da criança e do adolescente
à convivência familiar e comunitária;
CONSIDERANDO o que dispõe a Resolução do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do
Adolescente – CONANDA nº 173, de 08 de abril de 2015, de que cria o Grupo de Trabalho Criança e
Adolescente em Situação de Rua;
CONSIDERANDO a RESOLUÇÃO CONJUNTA Nº 1, DE 18 DE JUNHO DE 2009, que
aprovou o documento Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes,
RESOLVEM:
Art. 1º. Definir como crianças e adolescentes em situação de rua os sujeitos em desenvolvimento
com direitos violados, que utilizam logradouros públicos, áreas degradadas como espaço de moradia ou
sobrevivência, de forma permanente e/ou intermitente, em situação de vulnerabilidade e/ou risco pessoal e
social pelo rompimento ou fragilidade do cuidado e dos vínculos familiares e comunitários,
prioritariamente situação de pobreza e/ou pobreza extrema, dificuldade de acesso e/ou permanência nas
políticas públicas, sendo caracterizados por sua heterogeneidade, como gênero, orientação sexual,
identidade de gênero, diversidade étnico-racial, religiosa, geracional, territorial, de nacionalidade, de
posição política, deficiência, entre outros.
§ 1º Utiliza-se o termo “situação” para enfatizar a possível transitoriedade e efemeridade dos
perfis desta população, podendo mudar por completo o perfil, repentinamente ou gradativamente, em
razão de um fato novo.
§ 2º A situação de rua de crianças e adolescentes pode estar associada a:
I - trabalho infantil;
II – mendicância;
III - violência sexual;
IV - consumo de álcool e outras drogas;
V - violência intrafamiliar, institucional ou urbana;
376

VI - ameaça de morte, sofrimento ou transtorno mental;


VII - LGBTfobia, racismo, sexismo e misoginia;
VIII – cumprimento de medidas socioeducativas ou medidas de proteção de acolhimento;
IX - encarceramento dos pais.
§ 3º Pode ainda ocorrer a incidência de outras circunstâncias que levem crianças e adolescentes à
situação de rua, acompanhadas ou não de suas famílias, existentes em contextos regionais diversos, como
as de populações itinerantes, trecheiros, migrantes, desabrigados em razão de desastres, alojados em
ocupações ou desalojados de ocupações por realização de grandes obras e/ou eventos.
Art. 2º. O item 4, Capítulo III, do Documento “ Orientações Técnicas: Serviço de Acolhimento
para Crianças e Adolescentes”, aprovado pela Resolução Conjunta nº 1, de 18 de Junho de 2009, do
Conselho Nacional de Assistência Social e do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do
Adolescente – Conanda, passa a vigorar acrescido do subitem 4.6, com a seguinte redação:

Capitulo III
4 PARÂMETROS DE FUNCIONAMENTO
..........................................................................................................................

4.6 Serviços de Acolhimento para crianças e adolescentes em situação rua:


Crianças e adolescentes em situação de rua compõem um público que requer serviços que adotem
estratégias diferenciadas de atendimento e níveis de cuidado peculiar, especialmente para aqueles que
pernoitam nas ruas, permanecendo nestes espaços por períodos prolongados, afastados da residência de
seus familiares ou responsáveis, estabelecendo com a rua uma relação semelhante àquela de moradia,
estando associadas a esta situação diversas outras violações de direitos, como o trabalho infantil, a
mendicância, a violência sexual infanto-juvenil, o consumo de álcool e outras drogas, a violência
intrafamiliar, institucional e/ou urbana e o sofrimento mental.
Os Serviços de Acolhimento para crianças e adolescentes em situação de rua devem contar com
processos e diferenciais para atendimento desse público e não podem, de modo algum, constituírem-se
espaços de estigmatização, segregação, isolamento, discriminação, não devendo possuir natureza de
acolhimento compulsório, devendo favorecer, com ênfase e sempre que possível, o restabelecimento dos
vínculos familiares e comunitários – caso isto não possa ser realizado, deve-se buscar o encaminhamento
para família substituta ou, ainda, o desenvolvimento da autonomia e a preparação gradativa para o
desligamento e/ou para a vida adulta.

4.6.1 Metodologias e formas de oferta


A atenção especializada poderá ser prestada nas modalidades institucional (abrigo institucional e
casa-lar) e familiar (família acolhedora) e deverá ser assegurada em articulação com a rede
socioassistencial, com outras políticas públicas e com os demais órgãos do Sistema de Garantia de
Direitos, de modo a proporcionar respostas mais efetivas às demandas das crianças e adolescentes em
situação de rua.
Ressalta-se que a implantação de Serviços de Acolhimento para crianças e adolescentes em
situação de rua é particularmente recomendada nos casos em que o diagnóstico socioterritorial assim
indicar, devendo ser resguardadas as seguintes condições:
a) Toda criança e adolescente que necessitar de acolhimento, em qualquer situação ou condição,
deverá ter seu atendimento assegurado pela rede de serviços de acolhimento local, regional e/ou em
articulação com o Estado, conforme a situação;
b) A especialização do serviço não poderá resultar na não garantia do acesso de crianças e
adolescentes ao mesmo;
c) Nenhum grupo de irmãos que necessite de acolhimento será separado, salvo se houver
determinação judicial em contrário.
A depender da realidade local, e como forma de garantir o atendimento adequado e a proteção das
crianças e adolescentes em situação de rua, poderá haver separação dos acolhidos por faixas etárias nos
377

serviços de acolhimento, desde que estas não sejam demasiado estreitas e as condições descritas
anteriormente sejam respeitadas. Ainda, deverá ser garantido o acolhimento da criança ou adolescente em
situação de rua que se encontra nessa condição junto com seus familiares ou responsáveis em Serviço de
Acolhimento para Adultos e Famílias, salvo nos casos em que houver impedimento judicial, quando esta
oferta fizer parte da composição da rede socioassistencial. Concomitante ao período de acolhimento, o
órgão competente deve garantir o acesso a programas habitacionais e socioassistenciais, que promovam a
inclusão social dessa família.
Ressalta-se que o ente federado deverá considerar as especificidades do atendimento a crianças e
adolescentes em situação de rua nos processos de formação continuada e permanente das equipes de
referência dos serviços de acolhimento existentes na redesocioassistencial, independente da oferta de
atenção especializada, de forma a assegurar de igual modo o cuidado integral e humanizado de crianças e
adolescentes em situação de rua naqueles serviços.
A decisão do ente federado quanto à oferta da atenção especializada para crianças e adolescentes
em situação de rua deverá envolver a rede socioassistencial, outras políticas públicas, com ênfase na rede
de educação e saúde; e demais órgãos do Sistema de Garantia de Direitos, em especial os conselhos de
direitos, os Conselhos Tutelares e o Sistema de Justiça.
4.6.2 Pressupostos do trabalho social
Além das orientações específicas previstas neste capítulo, são pressupostos do trabalho
desenvolvido por esses serviços:
a) Desenvolvimento de práticas e intervenções profissionais alinhadas com processos de
construção e reafirmação da identidade, pertencimento, integração e de rompimento com preconceitos e
estigmas das crianças e adolescentes em situação de rua;
b) Registro e manutenção de prontuário atualizado para cada criança ou adolescente atendido no
serviço, contribuindo para a preservação de sua história de vida;
c) Organização da documentação básica da criança e do adolescente para garantir seu acesso a
serviços, programas, projetos e benefícios ofertados pela rede socioassistencial ou demais políticas
públicas;
d) Participação da criança ou do adolescente nos processos e nas atividades do serviço, em
especial no que tange à elaboração do Plano Individual de Atendimento (PIA);
e) Participação das famílias na elaboração do Plano Individual de Atendimento (PIA), assim como
em outros processos e atividades em que seu envolvimento seja possível;
f) Realização de atividades individuais e coletivas com as crianças ou adolescentes e suas famílias,
sempre que o envolvimento destas for possível, fomentando espaços de discussão, planejamento e
avaliação das práticas e rotinas do serviço;
g) Promoção de atividades com as crianças ou adolescentes integradas à comunidade, envolvendo
as famílias, quando isto for possível;
h) Inclusão das crianças e adolescentes na rede de ensino e em cursos, observados seus interesses,
habilidades e aptidões, criando estratégias para o aprendizado escolar e a qualificação profissional, com
vistas ao acesso, permanência e à superação de sucesso escolar e profissionalizante, superando eventuais
dificuldades;
i) Articulação com a rede socioassistencial, em especial com as equipes do Serviço Especializado
em Abordagem Social da Proteção Social Especial de Média Complexidade, na perspectiva do serviço de
acolhimento, facilitando seu ingresso, acolhida e permanência no serviço;
j) Articulação com as diversas políticas públicas, como saúde, educação, profissionalização,
habitação, cultura, lazer e esporte, dentre outras, buscando a inclusão da criança ou adolescente e suas
famílias nos serviços, programas, projetos e benefícios existentes no território, para além do mero
encaminhamento, definindo fluxos e procedimentos com a rede intersetorial, com vistas à garantia de
direitos e a proteção integral;
k) Articulação e integração com os demais órgãos do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e
do Adolescente, em especial com o Sistema de Justiça, os Conselhos Tutelares e os Conselhos de Direitos
378

da Criança e do Adolescente, com vistas ao atendimento das demandas das crianças ou adolescentes e suas
famílias, definindo fluxos e procedimentos e realizando discussão e intervenções conjuntas, se for o caso;
l) Garantir que crianças e adolescentes com deficiência recebam atendimento qualificado e
adequado de acordo com suas necessidades de recursos humanos e tecnológicos que garantam igualdade
de condições com as demais crianças e adolescentes; e,
m) Garantir o respeito à orientação sexual e a identidade de gênero de crianças e adolescentes em
todos os espaços e ações dos serviços.
Art. 3º Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação.

Fábio Moassab Bruni


Presidente do Conselho Nacional de Assistência Social
Cláudia Vidigal
Vice-Presidente do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente
379

ANEXO D – Diretrizes Políticas e Metodológicas para o Atendimento de Crianças e


Adolescentes em Situação de Rua na Assistência Social

MINISTÉRIO DO DESENVOLVIMENTO SOCIAL E AGRÁRIO

Secretaria Nacional da Assistência Social


Departamento de Proteção Social Especial
Setor de Múltiplas Atividades Sul – SMAS, Trecho 03, Quadra 2, Lote 1 Cep: 70.610-051 – Brasília – DF
Diretrizes Políticas e Metodológicas para o Atendimento de Crianças e Adolescentes em Situação de Rua
na Assistência Social

Apresentação

Este documento compõe um conjunto de iniciativas da sociedade e do Governo na qualificação


das ofertas da Política Nacional de Assistência Social para o atendimento de crianças e adolescentes em
situação de rua, baseado em diagnósticos de ausência ou insuficiência de estratégias de proteção e
cuidados adequados a crianças e adolescentes e suas famílias que fazem da rua o seu espaço de
sobrevivência e/ou moradia, agravadas por situações de risco pessoal e social, com vários direitos
violados. Fundamenta-se, nessa observação, uma cultura latente de apartação, de desconhecimento,
preconceitos, discriminações, omissões, negligências, sobreposições de ações, dentre outras medidas que,
ao invés de proteger, acabam por violar outros direitos fundamentais de crianças e adolescentes.
Foi com o objetivo de traçar caminhos coerentes com uma proteção integral que de fato asseguram
os direitos humanos e socioassistenciais a essa população que este documento foi pensado e elaborado. A
proposta de construção de Diretrizes Políticas e Metodológicas para o Atendimento de Crianças e
Adolescentes em Situação de Rua decorre de debates realizados no Grupo de Trabalho instituído no
âmbito do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – Conanda para aprofundar as
estratégias de proteção social das políticas sociais voltadas a esse público, tendo sido formulado em sua
versão preliminar em Oficina sobre o atendimento a crianças e adolescentes em situação de rua no SUAS,
ocorrida em Brasília, entre 10 e 11 de novembro de 2016.
Essa versão preliminar foi disponibilizada em consulta pública no período de 20 de dezembro de 2016 a
10 de março de 2017, e obteve diversas contribuições das seguintes instituições: Projeto Meninos e
Meninas de Rua MNMMR- Município de São Bernardo do Campo-SP; Secretária do Trabalho e
Desenvolvimento Social- Município de Barbalha-CE; Instituto Sócio Cultural, Tecnológico e Ambiental
de Economia Solidária- Distrito Federal-DF; Fundação de Assistência Social de Caxias do Sul-
FAS/Prefeitura Municipal de Caxias do Sul-RS; Fundação Criança de São Bernardo do Campo-SP;
Secretária Municipal da Criança e Assistência Social- São Luís- MA; Rede Rio Criança-RJ; Município de
Açailândia –MA; Ministério da Saúde no Município de João Pessoa-PB; Associação Nacional Criança
Não é de Rua- CE; Junta de Missões Nacionais da Convenção Batista Brasileira-RJ; Centro de Referência
de Assistência Social (CREAS)-Porto Feliz-SP e Ministério Público Federal-DF.
Após a sistematização dos conteúdos pelo Departamento de Proteção Social Especial, da
Secretaria Nacional de Assistência Social, segue para apreciação e aprovação pelo Conanda e Conselho
Nacional de Assistência Social – CNAS, guardiães da Política para a Infância e Adolescência e da
Assistência Social, respectivamente, que no cumprimento de suas funções de defesa e garantia de direitos
seguem avançando na proteção integral dos direitos socioassistenciais de crianças e adolescentes em todo
380

o Brasil. Assim, nossa expectativa é que essas 21 Diretrizes fundamentem a gestão da Política de
Assistência Social em todo o país em ofertas que afiancem as seguranças socioassistenciais para todas as
crianças e adolescentes em situação de rua, acompanhadas ou não de suas famílias, que apoiem o
exercício do controle social pelos seus vários olhares, estimulem o exercício correto dos órgãos de
fiscalização e justiça, e, ainda que indiretamente, contribuam para uma mudança gradativa de uma cultura
excludente e discriminatória na sociedade brasileira.

Diretrizes Políticas e Metodológicas para o Atendimento


de Crianças e Adolescentes em Situação de Rua na Assistência Social

1. Reconhecimento da criança e adolescente em situação de rua como sujeito de direitos, pessoa em


desenvolvimento e público prioritário das políticas sociais, incluindo a Política Nacional de
Assistência Social;
2. Respeito aos ciclos de vida das crianças e dos adolescentes, sua diversidade e autonomia;
3. Respeito às especificidades das crianças e adolescentes em situação de rua, como raça/etnia, gênero,
orientação sexual, identidade de gênero, geracional, territorial, de nacionalidade, de posição política,
deficiência, condições físicas, sensoriais e mentais, entre outros;
4. Respeito à liberdade de crenças ou religião, isento de qualquer julgamento, permitindo um
atendimento em ambiente laico, livre de qualquer constrangimento à criança e ao adolescente;
5. Não discriminação, desde o primeiro contato na rua até o acesso a benefícios, programas, projetos e
serviços socioassistenciais, tratando a criança e o adolescente com dignidade;
6. Garantia da segurança de renda, promovendo-se o acesso a programas de transferência de renda e a
benefícios socioassistenciais;
7. Intersetorialidade e interdisciplinariedade desde o planejamento até a execução de projetos,
programas e serviços socioassistenciais voltados às crianças e adolescentes em situação de rua,
sobretudo das políticas de saúde, educação, habitação, cultura, esporte, lazer, segurança alimentar,
segurança pública, trabalho/aprendizagem, entre outras;
8. Atendimento baseado na livre adesão da criança e do adolescente, respeitando sua vontade e seu
tempo, devendo contar com uma avaliação conjunta com a política de saúde e atores do Sistema de
Garantia de Direitos para casos extremos de insegurança social que eventualmente venham a
comprometer o seu desenvolvimento e a sua integridade física e mental;
9. Atendimento e acompanhamento familiar sistemáticos e continuados, desde a busca ativa às
aproximações gradativas para a vinculação aos serviços de proteção social básica e especial,
objetivando o fortalecimento e/ou reconstrução dos vínculos familiares, garantindo-se a segurança de
convívio familiar;
10. Fortalecimento da convivência comunitária como base da contextualização das histórias de vida das
crianças e dos adolescentes em situação de rua, garantindo-se a segurança de convívio comunitário;
11. Inclusão da criança ou do adolescente em situação de rua em Serviços de Acolhimento na modalidade
que melhor se fizer adequada a cada caso, priorizando-se o acolhimento do grupo familiar em
serviços de acolhimento para famílias (quando estiverem acompanhada dos pais ou responsáveis na
rua) ou, ainda, em modalidades de serviços de acolhimento em famílias acolhedoras, como medida de
proteção judicialmente aplicada de forma excepcional e provisória, desde que esgotadas todas as
possibilidades de reinserção em sua família nuclear ou extensa;
12. Garantia de interlocução entre as equipes dos serviços de acolhimento que atendem crianças e
adolescentes em situação de rua, enquanto moradia provisória, e as demais equipes da rede
socioassistencial (pública ou privada);
13. Provisões socioassistenciais baseadas em ações planejadas e fundamentadas em diagnósticos
quantitativos e qualitativos periódicos sobre criança e adolescente em situação de rua e suas famílias,
tendo como perspectiva o melhor interesse da criança e do adolescente;
14. Garantia de escuta qualificada à criança e ao adolescente em todos os serviços socioassistenciais, bem
como à sua família, quando identificada;
381

15. Garantia de espaços e de metodologias que assegurem a construção gradativa de vínculos de


confiança entre as crianças e adolescentes e os profissionais dos serviços socioassistenciais, para a
elaboração conjunta de novos projetos de vida enquanto alternativa à vida nas ruas, respeitando a
história de vida de cada sujeito;
16. Adoção e/ou construção de metodologias que considerem as especificidades dos sujeitos e dos
territórios, valorizando a cultura local, e que contemplem a oferta de atividades pedagógicas variadas
e atrativas no atendimento a crianças e adolescentes em situação de rua, em conjunto com as demais
políticas sociais;
17. Formação continuada dos profissionais que trabalham com crianças e adolescentes em situação de
rua, considerando suas especificidades;
18. Garantia da qualidade da oferta pela rede socioassistencial, pública ou privada, independente da fonte
de financiamento.
19. Garantia da articulação com a rede socioassistencial, as demais políticas públicas, o Sistema de
Garantia de Direitos, a comunidade local e a sociedade em geral, objetivando a proteção integral da
criança e adolescente em situação de rua;
20. Articulação com a rede socioassistencial, com as demais políticas públicas, como a política de
segurança pública, e Sistema de Garantia de Direitos, para priorizar abordagens sociais e evitar
práticas higienistas e abusivas que se utilizam da força física no atendimento de crianças e
adolescentes em situação de rua, inclusive no cumprimento de medidas judiciais que determinam a
retirada compulsória;
21. Ampliação de ferramentas e sistemas de monitoramento e avaliação da política socioassistencial,
visando ao seu aperfeiçoamento para a gestão do Sistema Único de Assistência Social no
atendimento de crianças e adolescentes em situação de rua.
382

ANEXO E - Audiência Pública Superlotação DEGASE

Comissão Educação em parceria com a Comissão Direitos Humanos


Audiência Pública Superlotação DEGASE
Data: 04/11/15

Rodrigo Fuly (Defensoria Pública) - A medida em meio aberto é eficaz, no entanto a medida de
privação de liberdade (internação) é a que prevalece. A Defensoria ajuizou várias Ações Civis Públicas ao
longo do período; juntou o Habeas Corpus. DEGASE tem hoje 03 vezes a sua capacidade.
Sílvio Castro (Sub Diretor Geral do DEGASE) - A porta de entrada está com sua capacidade 04
vezes maior do que aquela que foi projetada.
- Estamos com déficit de funcionários, de vagas que chegam à monta de 10 unidades. Em 03 anos
triplicamos o número de apreensões. Tínhamos 8.300 no ano passado, e esse ano a previsão é chegarmos a
10.000. Estamos chegando num colapso!
Eneida Ramos (Coordenadora das medidas socioeducativas) – É um sistema que não tem
condições de ser apreendido. O Socioeducativo há muito tempo tem sido medida de castigo,
principalmente dos que vêm de outro município. Temos também que falar da questão da facção. Muitos
adolescentes vêm do sistema penal e vão para o socioeducativo. Grande quantidade de meninos de 12 e 13
anos estão em unidade de privação de liberdade.
- A capacidade do JLA é de 64 internos (?), e atualmente tem 248 adolescentes. Só no sábado
chegaram 15 adolescentes de Niterói vindos da DPCA.
Mirthes Bandeira (Pedagoga) – A superlotação está sendo um caos, tudo se torna mais difícil
garantir esse direito ao jovem. Isso angustia o profissional que está lá. É no caos que buscamos sápidas.
Infelizmente, nós temos que receber esses adolescentes. Tem o parecer técnico que pode rever a medida.
O pedagogo que tem que atender a 20, está atendendo a 50, e é claro que este atendimento estará
comprometido!
Miguel Angelo de Souza (Diretor da Unidade de entrada do DEGASE - CENSE GCA) - Em 2010
a média de entrada eram 10 adolescentes diários. Hoje são pelo menos 25 adolescentes diariamente!! Isso
se estabelecendo esse ano. Essa é a unidade que acolhe jovens da rua. Desde aquele jovem que foi pego
com uma peteca de maconha, até aquele que foi preso por estupro, tráfico, etc.
- Abrimos a casa hoje com 248! Daqui a pouco estarão virando morcegos, pois vão ter que dormir
de cabeça pra baixo! Isso é preocupante!
383

- A média atual é recebermos 48% da capital e 46% do interior. Os outros 6% é situação atípicas.
(ele considera interior a região metropolitana, Baixada Fluminense)
- Precisamos da construção de novas unidades. Estamos trabalhando num esgotamento. É uma
tensão constante! Eles não conseguem se relacionar e criar muitos vínculos. Por isso conseguimos resolver
questões de maneira rápida.
(Representante da UBES) – Fazem investimentos após os arrastões, e não investem na prevenção.
Deputado Marcelo Freixo (PSOL) – Tem mais de 01 ano que os adolescentes saem do DEGASE
sem o documento para inseri-los no sistema da Rede Educacional. Documento da série em que se encontra
geralmente ensino fundamental.
Eneida Ramos (Coordenadora das medidas socioeducativas) - Temos problemas graves e
precisamos rever o SINASE, revisitar. A imputação de medidas já começa errado. O adolescente chegou
lá, e numa situação de superlotação, já vai para internação provisória.
- Cultura do aprisionamento! Precisamos enfrentar, pensar alternativas outras não só do
aprisionamento.
- Muita coisa que estava visibilizada até os arrastões.
- Mais de 400 adolescentes em situação de internação provisória.
- Mais de 90% dos jovens estão em defasagem educacional. Ainda estão no ensino fundamental.
Necessário implementar políticas de acolhimento desses jovens. Implementamos de acordo com o
SINASE, política que acolhesse esse jovem, pois muitos entram lá pela primeira vez e sentem-se perdidos.
Política de acolher, incluir dentro do sistema escolar.
- Não podemos ficar só no emergencial apagando incêndios.
Deputado Marcelo Freixo – É inaceitável que os meninos do DEGASE estejam sem o RIOCARD
por causa da empresa de ônibus, que está preocupada com fraudes!! (o jovem para ter o riocard tem que
ter um email)
Dra. Janaína Vaz Candela (Promotora Justiça de Tutela Coletiva do SSE) – Na internação
provisória, na capital do RJ, não temos adolescentes passando do período máximo de 45 dias. Esse é um
problema mais do interior.
- Quanto ao gargalo da porta de entrada do CENSE GCA, pensamos na implementação do Plantão
Judicial. O DEGASE assumi esse encaminhamento dos jovens que vem da DPCA.
- Devemos fortalecer o cumprimento de medidas em meio aberto. Existe dificuldade de
infraestrutura e material humano. Não temos a presença do tutor nos CREAS.
- Fechamos um levantamento mensal, e no último temos:
- Unidades de internação no RJ observamos que do número total 38% são da capital, 30% da
Região Metropolitana, que inclui São Gonçalo; 10% Região dos Lagos; 4% Vale do Paraíba.
384

- Temos que construir novas unidades, e para além, avançar na questão das unidades em meio
aberto. Tem que se ter unidades perto dos municípios dos adolescentes, pois a família fica muito afastada.
- 86% dos internados tem cumprido internação de 04 meses na Capital.
Marcos Fagundes (MP - Coordenador da CAO Infância) – Da última audiência pra cá, pouco
mudou no quadro da superlotação. É muito grave! A medida não é socioeducativa, é medida de
encarceramento! A superlotação inviabiliza a socioeducação; e isso é uma violação de direitos! A
superlotação esbarra com a questão da descentralização / municipalização das medidas. Mas, aquele
município, muitas vezes, não quer a construção de unidades de internação. Esse adolescente é de todos
nós! Eles não têm que ser excluídos, têm que ser incluídos! Descentralização, fiel cumprimento da
medida, maior investimento nas medidas em meio aberto.
DEGASE Educação - O quadro só piora! Só 04 alunos, dos 7.815 alunos internos no DEGASE,
tem o ensino médio concluído! (Relatório DEGASE Educação)
- 05 adolescentes morreram no sistema esse ano. Todos eles eram a 1ª passagem!
Deputado .....- Essa situação se inicia no modelo de segurança pública implementado no RJ, e vem
à reboque. A superlotação traz o que? A facção, por que? Porque ele tem que se proteger. Ele busca a sua
segurança pessoal quando se associa a uma facção.
- Se vc tem superlotação mais facção, o que teremos? Mais áreas de atrito, consequentemente as
05 mortes esse ano!
- Existe uma falha do Estado em garantir segurança desses jovens. Eles estão sob tutela do Estado.
- As medidas em meio aberto são a solução. Se temos a metade dos adolescentes presos por
crimes leves, eles não têm que estar internados. Construção de mais unidades pode ser necessária, mas não
é a solução. Quando falamos em descentralização, estamos estimulando mais construção.
Deputado Waldeck Carneiro (PT) – Quando o jovem vai para o sistema é porque ele já viveu um
processo de violação de direitos. O fenômeno é estrutural.
- Ausência de políticas públicas que garantam direitos, de promoção. Ausência de direitos.
- Banalização das medidas de privação de liberdade. Cultura do aprisionamento. O que é isso se
não contribuir com a Redução da idade Penal!
Deputado Flávio Serafim (PSOL) – Política de encarceramento em massa, E esse debate pouco
depois dos adolescentes retirados dos ônibus é importante.
- *Esse crescimento mais que o dobro dos adolescentes presos pela polícia não tem a ver apenas
pela prática de ato infracional! É também pela política de segurança pública nessa cidade!
- Um SSE que não consegue funcionar por várias razões.
- temos que romper com a lógica de segregação e criminalização / encarceramento em massa.
Deputado Marcelo Freixo – Proposta ao TJ para que possamos fazer uma audiência lá.
385

- Já faz tempo que o sistema está em colapso! Não seria aceitável se fosse para “outros”; só é
aceitável porque é para esses que estão lá! Aquilo lá é cárcere! E dos piores! E o discurso hegemônico que
está aí, estamos perdendo. Até quando vamos manter ....
- De 2.400 internos em 2011 – para 8.300 em 2014!!
- O sistema carcerário teve aumento de 317% em 04 anos; e em sua maioria é jovem que lá está.
Isso não acontece em nenhum país do mundo!
- 95% dos jovens não têm ensino fundamental! É uma tragédia!
- Um jovem negro tem 3 x mais chance de ser assassinado do que um branco.
- A lei sempre foi um instrumento da ordem. Para impedir a revolução.
- Metade desses garotos está sendo preso por tráfico de drogas. Temos que fazer um debate sobre
isso! É a criminalização da pobreza!
386

ANEXO F - 2ª Reunião Comando Maior da Polícia Militar RJ

Data: 25/SET/14
Mais uma vez a reunião começa com o Comando da PM exibindo um vídeo do ultimo final de
semana na praia de Ipanema/Arpoador, que foi amplamente divulgado na mídia, mostrando um suposto
arrastão e a policia reprimindo a ação, inclusive com bombas de efeito moral na praia, o que causou
grande pânico, confusão e correria na praia.
- Essas ações poderiam até para prevenir a prática de atos infracionais. Acho que isso seria
fundamental, até porque muitos adolescentes, simplesmente, eles pegam esses ônibus sem pagar
passagem, ficam ali naquela parte de trás, eles vão à praia não para curtir a praia, mas vão pra praticar atos
infracionais.
(PM) - Pessoas de comunidades têm por costume transportar sua bebida em isopor, bolsas
térmicas..., então se aquele volume se excede, aquele volume não embarca. Essa é uma medida positiva
para que adolescente não se embriague na praia e não pratique ilicitude. Menor de 12 anos, a criança tem
que ir só com o responsável! E por vezes, isso é mal interpretado pela sociedade, que vê aquele jovem ali
e diz que “eu não sou o responsável dele, e eu não tenho poder legal para impedir”.
(Margarida Prado, OAB, CEDCA) – Sou advogada, sou membro do Conselho Estadual de Defesa
da Criança e do Adolescente, (...) é muito bom ter uma reunião que segmentos diferentes se coloquem
conjuntamente, e que as posições fiquem bem claras qual é a perspectiva de cada um (...). Então,
começando esclarecendo qual é a minha perspectiva, é a da defesa da criança e do adolescente. Eu
represento o Conselho de Defesa da Criança, então a minha presença aqui só se justifica se for,
exatamente, para lembrar e pontuar a perspectiva do interesse maior da criança. Quer dizer, meu olhar não
é o do interessa da sociedade, não é o da segurança pública, não é das medidas a serem tomadas para a
tranquilidade da sociedade, e contra o comportamento indesejável que o jovem possa ter. Mas,
exatamente, a da garantia dos direitos da criança e do adolescente. Dado isso, eu gostaria de pontuar que
essa reunião começa dizendo: “o fato é o ato infracional”. A perspectiva desse encontro é prever a
segurança do cidadão; o que pretendemos: “evitar a reincidência e o comportamento indesejável!” Então,
a meu ver o viés dessa reunião já é um viés bastante comprometido com um dos olhares possíveis, que é o
olhar da perspectiva do Estado, ou da perspectiva da segurança pública. Esse não é o meu olhar. (...) Então
chamar uma situação dessa, essa Operação Verão sem considerar os inúmeros fatores que estão
condicionando nessa situação, que é o desvio de jovens adolescentes que obviamente se dirigem pra parte
mais bonita da cidade em busca de lazer, em busca de zoar, fazer bagunça sim. Muito poucos são aqueles
que realmente roubam, porque não tem por parte do Estado nenhum atendimento, nenhum direito
atendido, a ausência total e a presença do estado nesse cinturão de pobreza, então, pra mim, esse é o marco
negativo. Agora, Sr, Coronel, me espanta que eu seja chamada para um encontro desse em momento
nenhum se sai da perspectiva do ato infracional e se fale, por exemplo, da situação drástica da polícia que
atuou nesses eventos. O que nós vimos e o que escutamos é de uma atuação totalmente despreparada, da
presença que se colocou na areia, numa atitude tão ou até mais violenta do que como alguns rapazes de
fato se comportaram. Uma polícia despreparada, não cuidadosa, inclusive com a repercussão em massa do
que significaria soltar bombas de efeito moral. Bombas de efeito moral numa areia?!! Onde as famílias
estão deitadas... Isso é tão grave quanto o grupo de jovens furtar ou deixar de furtar, porque afinal de
contas, são pessoas supostamente preparadas para atuar nessas situações. (...) a minha perspectiva aqui é
de que crianças e jovens são sujeitos de direitos, e por isso eu ocupo o lugar que eu ocupo. Eu não
confundo a minha perspectiva. Que cada um faça a sua parte e a minha aqui é a de estar extremamente
atenta para toda e qualquer medida ou procedimento da parte do Estado que ultrapasse ou que extrapole
em cima do seu estrito direito de atuar!
387

- (Márcia, Defensoria Pública - CDEDICA) – Reitero a Margarida, o meu intuito aqui é o de


contribuir, eu e meus colegas, mas de nossos acentos. Superada um pouco essa fase da abordagem ....,
apreenderam lá os adolescentes. Eles foram transferidos exatamente pra onde?
- (Comandante PM) - Eles foram conduzidos pra delegacia policial.
- Todo adolescente apreendido é conduzido à DPCA?
- Todos os possíveis infratores ou acusados de atuarem, cometido infração ou crime, são
conduzidos pra delegacia da área. Com todos os direitos e garantias, são entregues para apreciação do
delegado.
(Marly Souza, CT) – Sou Conselheira Tutelar da área, em todas as vezes o CT chama os
responsáveis... De 10 desses meninos apreendidos, nove vão pra casa. Os que vão pra abrigo já é aquele
adolescente que fica dia a dia na rua. Aí a gente pergunta “o que você fez?”, aí ele diz que “Eu tava
correndo, eu vi um amigo correndo ai eu corri também”. Aí eu fico indignada, porque a maioria daqueles
adolescentes não estavam roubando. A maioria vai pra praia em quantidade mesmo. Saem pela janela do
Ônibus.... quem não aprontou, meu deus?! Eles não estão roubando. Aí você leva pra delegacia e a maioria
vai de volta pra casa.... Uns com o responsável, outros vão sozinhos... Eles sabem como voltar pra casa
sozinhos... Eles têm o direito de ir e vir. Eu vejo aqui a preocupação com os turistas....
(Coronel PM) – Eu quero deixar claro aqui que a preocupação não é só com os turistas, a
preocupação é com todos! A gente como sociedade tem que ter a coragem de falar o que a gente quer.
Quer o que, que não faça nada? (...) Nós agimos ali reativamente. Agora, se uma comunidade, um grupo
de pessoas não sabe se comportar, não interessa se foi na Fanfest, se é na praia, se é num show de rock,
nós temos que preservar o público. Se essas crianças e adolescentes fossem à praia sem fazer algazarras,
furtos e atos infracionais, vai todo mundo pra casa feliz da vida! Não era preciso ir pra delegacia toda
hora, levando o mesmo infrator e voltar... É comportamental. Por isso que a gente está aqui, pra tentar
chegar num consenso. E vocês podem ajudar. Falar que a gente está agindo errado, vê a solução. Não quer
fazer nada?
- Marly – não, ao contrário.
(Vereador Reimont – Comissão POP Rua) – Sou Vereador aqui na cidade do RJ, do PT, na
Câmara sou da Comissão de Cultura e presido a Comissão que discute a política de controle para
População em situação de rua, incluindo criança e adolescente. Eu fico querendo contribuir com a
discussão, mas ao mesmo tempo preocupado. A fala do Coronel, pelo que eu entendi, e que nós não
queremos fazer segregação. Mas, na realidade, o que há mesmo é segregação. Quando ele fala que os
adultos não poderão portar isopor, e ele usou a expressão “os adultos da linha 2”, o que a gente nota nessa
fala é que nós consideramos que os moradores da periferia do RJ que eles são perigosos pra nós. Então
nós o mantenhamos lá. Não os tragamos para a zona sul do RJ, pois nós temos que preservar a nós, a
preservar os moradores daquela região e preservar os turistas que vão gastar aqui no RJ. Então, a nossa
intenção é uma intenção que já prescindi já na sua origem, não uma intenção, mas é uma ação secular de
segregação. Quando nós estamos aqui nessa mesa, com o Estado representado, a Defensoria, a sociedade
civil, a Promotoria, os Conselhos... Nós estamos com 300 escolas paradas. Eu não estou vendo a
Secretaria de Educação e a da Assistência aqui....
- (Coronel PM) - Eu queria interromper pra dizer que o fórum aqui é a questão da praia. Se a gente
for questionar ações sociais ou políticas de estado, não.... O senhor pode continuar falando, mas eu só não
quero discurso político aqui!
- O meu discurso sempre é político. Porque eu sou um cidadão e tem que ter discurso político!
- Todos nós somos!
- Não é porque eu sou Vereador que faço discurso político, é por ser cidadão! Então, se a gente faz
uma discussão de política pública com cidadania, que é o que eu estou entendendo que a gente quer
construir aqui, e aí eu não posso compreender segurança pública apenas na coerção e no rompimento dos
direito das pessoas.
- (PM) E a gente está rompendo o direito aqui de alguém? Nós estamos querendo garantir o acesso
de todos à praia.
- (PM) E é exatamente por isso a presença dos senhores aqui.
388

- (PM) Acho que eu estou sendo claro, pelo amor de Deus! Garantir o acesso a todos à praia e o
seu retorno em paz e segurança. Com a contribuição caso alguém aqui queira dar. Fui bem claro agora?
(Reimont) – (...) Nós temos que estender essa discussão, mas temos que compreender que essa
discussão tem na sua gênese, por mais que não tenha a intenção do senhor e do comando da polícia
militar, ela tem sim um tom muito forte de segregação!
- (PM) Não, eu discordo completamente do senhor!
(Marcos Fagundes, Ministério Público) – (...) Pelo que entendi essa reunião aqui se presta para
compatibilizar o direito das pessoas que querem ir à praia, com o direito desses adolescentes também. Na
verdade até que ponto esses adolescentes tem o direito de estar na praia fazendo alguma atividade que
venha a incomodar aquelas pessoas. Quer dizer, todos tem o direito de ir à praia. Então, a posição da
polícia é justamente a de garantir a segurança e a tranquilidade de todos. O que eu imagino que seja a sua
dúvida, a da polícia, seja até que ponto a polícia pode atingir para garantir a tranquilidade das pessoas na
praia sem violar o direito daquelas crianças e adolescentes? Eu concordo com a Margarida, realmente a
gente tem que assegurar e garantir os direitos das crianças e adolescentes, as nossas promotorias da
infância e juventude também tem esse dever, mas, o papel da polícia é o de garantir o direito de todos. A
partir do que foi mostrado ali naquelas imagens, poderia avaliar o que foi feito de certo, de errado? É o
caso de jogar bomba? O que a polícia pode fazer pra preparar melhor os seus policiais para que possa
garantir a segurança da melhor forma possível. É pra isso que estamos aqui.
- (PM) Seria mais que isso! Não chegarmos naquele ponto!
(Marcos Fagundes) – Então, traçar ações preventivas e garantir dentro da legalidade, ou seja, não
fazendo essa segregação, não impedindo esse adolescente de pegar o ônibus..., isso seria uma ação ilegal!
Então a gente quer discutir medidas legais.
- (PM) O foco daquela minha colocação foi o seguinte: poderia um grupo daqui do Conselho
tutelar, ou do juizado da infância e Juventude junto com o policial militar abordar, por exemplo, vem um
ônibus com 05 pessoas no teto, 20 com cabeça pra fora, parou o ônibus e o que poderia ser feito? Aqui a
gente quer uma ação em conjunto. Eu não vou segregar ninguém, eu não vou impedir ninguém de chegar,
eu não vou levar ninguém sem ter cometido... Não vou! A minha colocação achei que fosse clara, é o que
cada um dentro do seu quadrado, pode fazer ou sugerir para que a gente não chegue ao ponto do policial
ter de soltar bomba de feito moral... Está sendo feita a apuração e ele vai ter que responder por isso se
tiver que ser. O que a gente quer é que não cheguemos a esse ponto. Temos que sair daqui com algo
concreto, garantindo o direito de todos.
- (Márcia Gatto- RRC) - Estive aqui na primeira reunião, estou aqui representando a Rede Rio
Criança, eu acho que é um momento muito importante de estar aqui, e agente tem que saber usufruir disso.
Mas, com certeza um tema tão difícil e grave, nós não vamos conseguir resolver de imediato. Sei que a
policia militar vive sob tensão, ela tem que dar resposta não só ao Estado, mas também à sociedade, mas
só que tem certas coisas, e eu aqui enquanto também defensora dos direitos da criança e do adolescente,
tenho aqui que assumir o meu quadrado. (...) não podemos assumir uma posição de violador de direitos.
Pois, em muitas vezes, violamos em nome da proteção. E a polícia, o MP, CT, Defensoria, governo,
sociedade civil, eles fazem parte desse sistema de garantia de direitos que existe para que os direitos sejam
cumpridos. E a gente tem que ter muito cuidado, porque muitas vezes, em nosso discurso, agente pode
extrapolar e confundir coisas, pq eu ouvi algumas falas aqui que eu fiquei muito temerosa, e a gente não
pode perder a mão. A gente não pode assumir um estado que tem a mão de um estado de exceção.
- (Comandante PM) – eu queria que a senhora falasse qual foi a fala que lhe causou essa
percepção.
- (Márcia Gatto) – Do adolescente não poder ir à praia.... Primeiro eu vou dizer que o adolescente
é irreverente. Ele chega fazendo festa, ainda mais quem está longe da praia ele vai chegar fazendo festa
sim. Sinto muito! (...) Claro que temos que prevenir e é papel da polícia, mas a única coisa que temos que
ter atenção é pra não errar na dose. Porque se vc começar... e eu não estou falando que isso não é papel da
PM, não. Mas, vamos com calma, porque se vc começar a reprimir lá de onde eles vêm, do Jacaré, do
Meier, etc..
- (Comandante) - Ninguém falou em repressão.
389

- (Márcia Gatto) Sim, me desculpe, eu usei o termo errado, a prevenção. Mas, cuidado porque às
vezes erram na mão. Então esses mesmos turistas, essa sociedade quer sim mantê-los longe! “Essa praia é
minha. O que vc está fazendo aqui!” E eles geralmente falam isso, porque é do negro e do pobre! Porque
nenhum garotinho da zona sul, que também está lá zoando na praia, e ele só tem 13 anos e já é surfista,
ninguém vai pedir pra ele sair da praia ou que esteja lá com o responsável! Acho que temos que chegar
num denominador comum, e saber que a gente não pode errar na dose, mas também o que temos que fazer
para também garantir a praia, a tranquilidade pra todos!
Márcia (DP) – (...) primeiro eu gostaria de deixar claro que o adolescente pode ir à praia, pode ir à
praia sozinho, pode vir se é de outro município vizinho, e sem portar identidade! O adolescente não
precisa estar portando identidade. Tem as apreensões e muitas vezes esses adolescentes são encaminhados
para a delegacia. Num primeiro momento, não há a necessidade de todo o adolescente que é apreendido
ser encaminhado para a delegacia. Então, poderia se estreitar, eu acredito que aí na divisão de vocês, tenha
um coordenador, um gestor dessa operação para ficar no plantão. É essencial que a equipe saiba o telefone
e endereço do Conselho Tutelar da área. Essas distritais não é o atendimento apropriado para o
adolescente, não é constitucional, não está no ECA! Ninguém pode ficar muito tempo com o adolescente.
Se for no CT, em situações que realmente precisa do Conselho, ele não precisa ir a uma delegacia para
pegar o telefone da mãe do adolescente.
390

ANEXO G - Decreto nº 6.085, de 19 de abril de 2007

Promulga o Protocolo Facultativo à Convenção contra a


Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos
ou Degradantes, adotado em 18 de dezembro de 2002.
O PRESIDENTE DA REPÚBLICA, no uso da atribuição que lhe confere o art. 84, inciso IV, da
Constituição, e
Considerando que pelo Decreto no 40, de 15 de fevereiro de 1991, foi promulgada a Convenção
contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, de 10 de dezembro
de 1984;
Considerando que o Congresso Nacional aprovou, por meio do Decreto Legislativo n o 483, de 20 de
dezembro de 2006, o texto do Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos
ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes, de 18 de dezembro de 2002;
Considerando que o Brasil depositou o instrumento de ratificação do Protocolo junto ao Secretário-
Geral da Organização das Nações Unidas em 11 de janeiro de 2007;
Considerando que o Protocolo entrou em vigor internacional em 22 de junho de 2006, e entrou em
vigor para o Brasil em 11 de fevereiro de 2007;
DECRETA:
Art. 1o O Protocolo Facultativo à Convenção contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas
Cruéis, Desumanos ou Degradantes, adotado em Nova York em 18 de dezembro de 2002, apenso por
cópia ao presente Decreto, será executado e cumprido tão inteiramente como nele se contém.
Art. 2o São sujeitos à aprovação do Congresso Nacional quaisquer atos que possam resultar em
revisão do referido Protocolo ou que acarretem encargos ou compromissos gravosos ao patrimônio
nacional, nos termos do artigo 49, inciso I, da Constituição.
Art. 3o Este Decreto entra em vigor na data de sua publicação.
Brasília,19 de abril de 2007; 186o da Independência e 119o da República.
LUIZ INÁCIO LULA DA SILVA
Celso Luiz Nunes Amorim
(Este texto não substitui o publicado no DOU de 20.4.2007)
391

ANEXO H - Protocolo facultativo à convenção contra a tortura e outros tratamentos ou


penas cruéis, desumanos ou degradantes

PREÂMBULO
Os Estados-Partes do presente Protocolo,
Reafirmando que a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes são
proibidos e constituem grave violação dos direitos humanos,
Convencidos de que medidas adicionais são necessárias para atingir os objetivos da Convenção
contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (doravante
denominada a Convenção) e para reforçar a proteção de pessoas privadas de liberdade contra a tortura e
outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes,
Recordando que os Artigos 2 e 16 da Convenção obrigam cada Estado-Parte a tomar medidas
efetivas para prevenir atos de tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes em
qualquer território sob a sua jurisdição,
Reconhecendo que os Estados têm a responsabilidade primária pela implementação destes Artigos,
que reforçam a proteção das pessoas privadas de liberdade, que o respeito completo por seus direitos
humanos é responsabilidade comum compartilhada entre todos e que órgãos de implementação
internacional complementam e reforçam medidas nacionais,
Recordando que a efetiva prevenção da tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou
degradantes requer educação e uma combinação de medidas legislativas, administrativas, judiciais e
outras,
Recordando também que a Conferência Mundial de Direitos Humanos declarou firmemente que os
esforços para erradicar a tortura deveriam primeira e principalmente concentrar-se na prevenção e
convocou a adoção de um protocolo opcional à Convenção, designado para estabelecer um sistema
preventivo de visitas regulares a centros de detenção,
Convencidos de que a proteção de pessoas privadas de liberdade contra a tortura e outros tratamentos
ou penas cruéis desumanos ou degradantes pode ser reforçada por meios não-judiciais de natureza
preventiva, baseados em visitas regulares a centros de detenção,
Acordaram o seguinte:
Parte I
Princípios Gerais
Artigo 1
O objetivo do presente Protocolo é estabelecer um sistema de visitas regulares efetuadas por órgãos
nacionais e internacionais independentes a lugares onde pessoas são privadas de sua liberdade, com a
intenção de prevenir a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes.
Artigo 2
1. Um Subcomitê de Prevenção da Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou
Degradantes do Comitê contra a Tortura (doravante denominado Subcomitê de Prevenção) deverá ser
estabelecido e desempenhar as funções definidas no presente Protocolo.
2. O Subcomitê de Prevenção deve desempenhar suas funções no marco da Carta das Nações Unidas
e deve ser guiado por seus princípios e propósitos, bem como pelas normas das Nações Unidas relativas
ao tratamento das pessoas privadas de sua liberdade.
3. Igualmente, o Subcomitê de Prevenção deve ser guiado pelos princípios da confidencialidade,
imparcialidade, não seletividade, universalidade e objetividade.
4. O Subcomitê de Prevenção e os Estados-Partes devem cooperar na implementação do presente
Protocolo.
392

Artigo 3
Cada Estado-Parte deverá designar ou manter em nível doméstico um ou mais órgãos de visita
encarregados da prevenção da tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes
(doravante denominados mecanismos preventivos nacionais).
393

ANEXO I - Portaria normativa nº 3.461 /md, de 19 de dezembro de 2013

MINISTÉRIO DA DEFESA
GABINETE DO MINISTRO
PORTARIA NORMATIVA Nº 3.461 /MD, DE 19 DE DEZEMBRO DE 2013.
Dispõe sobre a publicação “Garantia da Lei e da Ordem317”.

O MINISTRO DE ESTADO DA DEFESA, no uso das atribuições que lhe conferem o inciso II do
parágrafo único do art. 87 da Constituição, e observado o disposto nos incisos III, VI e IX do art. 1o do
Anexo I do Decreto nº 7.974, de 1º de abril de 2013, resolve:
Art. 1o Aprovar a publicação “Garantia da Lei e da Ordem - MD33-M-10 (1ª Edição/2013)”, na forma do
anexo a esta Portaria Normativa.
Parágrafo único. O Anexo de que trata o caput deste artigo estará disponível na Assessoria de Doutrina e
Legislação do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas.
Art. 2o Esta Portaria Normativa entra em vigor na data de sua publicação.
CELSO AMORIM
(Publicado no D.O.U. nº 247 de 20 de dezembro de 2013.)
CAPÍTULO I
INTRODUÇÃO
1.1 Finalidade
Esta publicação tem por finalidade estabelecer orientações para o planejamento e o emprego das Forças
Armadas (FA) em Operações de Garantia da Lei e da Ordem (Op GLO).
1.2 Antecedentes
Embora a referência ao emprego das Forças Armadas em atividades de segurança pública já se fizesse
presente em Constituições anteriores, a atuação das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem prevista
no art. 142 da Constituição Federal de 1988 somente veio a ser disciplinada, em âmbito
infraconstitucional, com o advento da Lei Complementar nº 97/99. A regulamentação desta forma de
emprego veio a ocorrer somente com a aprovação do Decreto nº 3.897/2001.
Conceituações
A fim de facilitar o entendimento desde a parte inicial, destacam-se as seguintes conceituações: -
Operação de Garantia da Lei e da Ordem (Op GLO) é uma operação militar conduzida pelas Forças
Armadas, de forma episódica, em área previamente estabelecida e por tempo limitado, que tem por
objetivo a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio em situações de
esgotamento dos instrumentos para isso previstos no art. 144 da Constituição ou em outras em que se
presuma ser possível a perturbação da ordem.
1 - Forças Oponentes (F Opn) são pessoas, grupos de pessoas ou organizações cuja atuação comprometa a
preservação da ordem pública ou a incolumidade das pessoas e do patrimônio.
- Ameaça são atos ou tentativas potencialmente capazes de comprometer a preservação da ordem pública
ou a incolumidade das pessoas e do patrimônio, praticados por F Opn previamente identificadas ou pela
população em geral.
Esta publicação tem por finalidade estabelecer orientações para o planejamento e o emprego das Forças
Armadas (FA) em Operações de Garantia da Lei e da Ordem (Op GLO).

317
Publicada em:
http://www.defesa.gov.br/arquivos/File/doutrinamilitar/listadepublicacoesEMD/md33_m_10_glo_1_ed2013.pdf

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