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Márcia Gatto
Rio de Janeiro
2017
Márcia Gatto
Rio de Janeiro
2017
CATALOGAÇÃO NA FONTE
UERJ / REDE SIRIUS / BIBLIOTECA CEH/A
es CDU 306
Autorizo, apenas para fins acadêmicos e científicos, a reprodução total ou parcial desta
tese, desde que citada a fonte.
___________________________________ _______________
Assinatura Data
Márcia Gatto
Banca Examinadora:
_______________________________________
Profª. Drª. Esther Maria de Magalhães Arantes (Orientadora)
PPFH UERJ
_____________________________________________
Profº Dr. Marildo Menegat (Coorientador)
UFRJ
_____________________________________________
Profº Dr. Helder Molina
Faculdade de Educação da UERJ
____________________________________________
Profª. Drª Elizabeth Serra Oliveira
Instituto Nacional de Educação dos Surdos (INES)
____________________________________________
Prof. Dr. Rodrigo Lima
Faculdade de Serviço Social da UFF
Rio de Janeiro
2017
DEDICATÓRIA
Eu teria muitos agradecimentos a fazer, pois muitas são as pessoas e coletivos que
estiveram comigo ao longo dessa caminhada que não terminou. Como diz Galeano, “a utopia
serve para isso, para que nunca deixemos de caminhar”! Por isso, queridos amigos e
companheiros, que resistem e não desistem de lutar, agradeço a todos e todas por resistirem e
ainda acreditarem num outro mundo possível!
Devo agradecer, especialmente, à Rede Rio Criança e todas as pessoas e instituições que
fazem parte deste coletivo que, juntos há 16 anos, somos como uma família. Agradeço pela
confiança em mim depositada ao longo desses anos, agradeço a troca de experiência, discussões,
debate, mas também muita ação em prol desses que são a nossa razão de existência: as crianças e
adolescentes em situação de rua.
Aos meus amigos e companheiros da Campanha Nacional Criança Não é de Rua e do
Comitê Nacional da Rede de Atenção às Crianças e Adolescentes em situação de Rua,
representantes de redes e coletivos que se destacam nas 05 regiões desse país na temática das
crianças e adolescentes em situação de rua.
À todos que contribuíram com a pesquisa de dados das unidades de internação do
Departamento Geral de Ações Socioeducativas (DEGASE) para adolescentes autores de ato
infracional: Dra Janaína Pagan (MP), Dra Eufrásia Souza e Rodrigo Azambuja (Defensoria
Pública), Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, Cláudio Vieira (SINASE),
Conselho Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente (CEDCA).
E agradeço aos Professores da Banca, especialmente Esther Arantes, minha orientadora,
que acolheu a mim e ao meu tema, no PPFH – UERJ, e Marildo Menegat, meu coorientador, pela
sua generosidade em compartilhar tanto conhecimento e pela indicação de livros, que muito me
ajudou a pensar e que foi determinante para desenvolver esta tese.
A todos e todas o meu muito obrigado!
RESUMO
Esta tese de doutorado defende que na atualidade existe um tipo de ideologia muito
próxima ao que foi a ideologia nazifascista da Alemanha do Terceiro Reich, que perpassa esta
sociedade, ora oculta, ora manifestada, principalmente nas práticas abusivas e posturas do poder
dominante direcionada aos “sujeitos indesejáveis”, que defino como o grupo social composto
pelas crianças e adolescentes em situação de rua, as provenientes das favelas e periferias, bem
como os adolescentes autores de ato infracional que são encarcerados, e os que são alvo da
violência letal do Estado do RJ, em sua maioria, negros e pobres. Estabeleço uma analogia entre
as três soluções/fases do nazismo para a questão dos judeus e outros grupos indesejáveis com as
três práticas adotadas pelo poder dominante do RJ: (1ª) Prática: Recolhimento / Expulsão; (2ª)
Prática: Encarceramento / Concentração; (3ª) Prática: Assassinato / Homicídio. O modo de
produção capitalista tem contribuído com o agravamento desta situação, estabelecendo padrões
de desigualdade e exclusão desse segmento do processo produtivo.
GATTO, Márcia. The Undesirable: from abusive practices and dominant ideology of coping with
undesirable subjects in Rio de Janeiro. 2017.396f. Thesis (Doctorate in Public Policies and
Human Education) - Graduate Program in Public Policies and Human Education, Rio de Janeiro
State University, Rio de Janeiro, 2017.
This doctoral thesis argues that at present there is a type of ideology very close to the
Nazi-fascist ideology of Germany of the Third Reich, which runs through society, now hidden,
now manifested mainly in the abusive practices and attitudes of the dominant power directed to
"Undesirable subjects", which I define as the social group composed of street children and
adolescents, those coming from the favelas and peripheries, as well as the adolescents who
commit an offense that are incarcerated, and those who are targeted by the state's lethal violence
of RJ, mostly black and poor. I establish an analogy between the three solutions / phases of
Nazism for the question of the Jews and other undesirable groups with the three practices adopted
by the ruling power of RJ: (1st) Practice: Recollection / Expulsion; (2ª) Practice: Incarceration /
Concentration; (3rd) Practice: Assassination / Homicide. The capitalist mode of production has
contributed to the worsening of this situation, establishing patterns of inequality and exclusion of
this segment of the productive process.
INTRODUÇÃO .............................................................................................................. 18
1 OS FASCISTAS ESTÃO PASSANDO ........................................................................ 32
1.1 Sobre Fascismo e Nazismo ............................................................................................. 44
2 SUJEITOS INDESEJÁVEIS!: CONSTRUÇÃO DA RACIONALIDADE
ESTIGMATIZADORA DA INFÂNCIA E JUVENTUDE NEGRA E POBRE
NO BRASIL .................................................................................................................... 53
2.1 Racismo no Brasil ........................................................................................................... 54
2.2 Crianças pretas e pobres nas ruas – Não pode! ........................................................... 58
3 O MODO DE PRODUÇÃO CAPITALISTA E A FORMAÇÃO DO
EXÉRCITO DE SUJEITOS INDESEJÁVEIS............................................................ 72
4 DAS PRÁTICAS E POSTURAS ABUSIVAS ADOTADAS PELO PODER
DOMINANTE NO ENFRENTAMENTO AOS SUJEITOS INDESEJÁVEIS ........ 90
4.1 A Primeira Solução / Pratica 1 : Expulsão / Recolhimento / Retirada Forçada:
Operações de recolhimento, Operação Presente, Operação Verão ........................... 99
4.1.1 Um olhar sobre as operações de recolhimento de crianças e adolescentes em situação
de rua, nas gestões de César Maia (2001 a 2008) e de Eduardo Paes (2009 a 2016) na
Prefeitura da cidade do Rio de Janeiro ........................................................................... 105
4.1.2 Gestão da Cidade e cronologia da Expulsão dos “sujeitos indesejáveis” ...................... 108
4.1.2.1 2002 ................................................................................................................................ 109
4.1.2.2 2003 ................................................................................................................................ 110
4.1.2.3 2004 ................................................................................................................................ 114
4.1.2.4 2005 ................................................................................................................................ 117
4.1.2.5 2006 ................................................................................................................................ 118
4.1.2.6 2007 ................................................................................................................................ 120
4.1.2.7 2008 ................................................................................................................................ 122
4.1.2.8 2009 ................................................................................................................................ 125
4.1.2.9 2010 ................................................................................................................................ 130
4.1.2.10 2011 ............................................................................................................................... 131
4.1.2.11 2012 ................................................................................................................................ 138
4.1.2.12 2013 ................................................................................................................................ 143
4.1.2.12.1 Manifestações, Terrorismo de Estado e avanço dos Movimentos Fascistas ............. 149
4.1.2.13 2014 ................................................................................................................................ 152
4.1.2.14 2015 ................................................................................................................................ 159
4.1.2.15 2016 ................................................................................................................................ 162
4.1.2.16 2017 ................................................................................................................................ 170
4.1.3 Operação Verão .............................................................................................................. 171
4.2 A Segunda Solução / Prática 2: Concentração / Encarceramento - Cárceres de
Gastar Gente ................................................................................................................. 183
4.2.1 Relatório visita ao Educandário Santo Expedito (ESE) ................................................. 196
4.2.2 Visita ao ESE, em 04/02/16 - Alojamentos “cela” dos adolescentes em cumprimento
de regime fechado. ......................................................................................................... 200
4.2.3 2ª Visita ao ESE, dia 20/05/16 ....................................................................................... 202
4.2.4 Depoimento Mães e Familiares ...................................................................................... 204
4.2.5 Relato Reunião do Ministério Público com Dr. Enriques Fontes, do Subcomitê de
Prevenção e Combate à Tortura da ONU ....................................................................... 205
4.2.6 Abrindo a Caixa Preta .................................................................................................... 208
4.3 A Solução Final / Prática 3: Assassinato, Homicídio, Eliminação - Indignos de
Viver .............................................................................................................................. 242
4.3.1 CPI do Assassinato de Jovens no Brasil ......................................................................... 249
43.1.1 Relatos da CPI Assassinato de Jovens ........................................................................... 250
4.3.1.2 Audiência Pública Genocídio da população negra e periférica ...................................... 256
4.3.2 Terrorismo de Estado - Marcas da Violência Policial .................................................... 259
4.3.3 Dados da Morte Matada ................................................................................................. 276
4.3.3.1 Atlas da Violência .......................................................................................................... 284
4.3.3.2 Índice de Homicídios na Adolescência (IHA) ............................................................... 286
4.3.3.3 Estudo e análise do mapa da violência – 2010 a 2016 ................................................... 288
4.3.3.4 Homicídios: comparações internacionais ....................................................................... 298
5 TANTA “PORRADA” TEM CONSEQUÊNCIAS! .................................................. 306
5.1 1º Caso: A Casa Viva.................................................................................................... 310
5.2 2º Caso: Recolhimento, “Pingo de mel", abuso e tortura nas Centrais de
Recepção ........................................................................................................................ 313
5.3 3º Caso: Retirada e adoção compulsória de bebês de jovens mães que estão em
situação de rua, supostamente usuárias de drogas .................................................... 316
6 PRA NÃO DIZER QUE NÃO FALEI DAS FLORES ............................................. 328
6.1 Política Municipal de Atendimento às Crianças e Adolescentes em situação de
rua – Deliberação 763/2009 ......................................................................................... 330
6.2 Nova resolução quebra paradigma na aborgagem social no Rio de Janeiro: a
Resolução 64/2016 – Protocolo do Serviço Especializado em Abordagem Social .. 333
6.3 Nota técnica 001/SAS e SGEP do Ministério da Saúde: diretrizes e fluxograma
para a atenção integral à saúde das mulheres e das adolescentes em situação de
rua e/ou usuárias de crack/outras drogas e seus filhos recém-nascidos .................. 338
6.4 O processo de construção das diretrizes para uma Política Nacional de
Atendimento às Crianças e Adolescentes em Situação de Rua ................................ 340
CONSIDERAÇÕES ..................................................................................................... 352
REFERÊNCIAS ........................................................................................................... 358
ANEXO A - Política Municipal de Atendimento às Crianças e Adolescentes em
situação de rua – Deliberação 763/2009 CMDCA Rio .................................................. 364
ANEXO B - Resolução 64/2016, SMDS RJ– Protocolo do Serviço Especializado em
Abordagem Social .......................................................................................................... 368
ANEXO C - Resolução conjunta CNAS/CONANDA nº 1, de 15 de dezembro de
2016 ................................................................................................................................ 375
ANEXO D – Diretrizes Políticas e Metodológicas para o Atendimento de Crianças e
Adolescentes em Situação de Rua na Assistência Social ............................................... 379
ANEXO E - Audiência Pública Superlotação DEGASE .............................................. 382
ANEXO F - 2ª Reunião Comando Maior da Polícia Militar RJ .................................... 386
ANEXO G - Decreto nº 6.085, de 19 de abril de 2007.................................................. 390
ANEXO H - Protocolo facultativo à convenção contra a tortura e outros tratamentos
ou penas cruéis, desumanos ou degradantes .................................................................. 391
ANEXO I - Portaria normativa nº 3.461 /md, de 19 de dezembro de 2013 .................. 393
18
INTRODUÇÃO
Um país reacionário.
Quadrado.
É também roda.
De samba.
De capoeira.
De poesia.
É uma espiral.
É a mata, os bichos, as ervas, a arte, o povo.
Tudo que nele brota.
É uma idosa distribuindo sopa e cuidando de pessoas em situação de rua.
É uma benzedeira curando as crianças da comunidade.
É um professor mal pago e apaixonado mudando a vida de crianças e jovens.
É um poeta desconhecido.
Uma dançarina sonhadora.
Uma enfermeira incansável.
Um músico genial.
Um gari cantarolando enquanto varre.
Um garçom simpático.
Uma cozinheira incrível.
Um sábio pajé.
Uma mulher quilombola líder comunitária.
Uma criança alcançando o paraíso na amarelinha.
Um bando de gente linda e anônima.
O Brasil é imenso!
Desistir dele é deixar de perceber a beleza que nele contém.
Abrir mão da potência que dele provém.
Vamô junto!
Contra a perda de direitos e o desmonte do país, o lema do povo guerreiro:
"Só a luta muda a vida!"
André do Amaral, 13.07.2017
20
Quem são e qual o lugar que ocupa na sociedade as crianças e os adolescentes que estão
em situação de rua, as que estão nas favelas e periferias e os adolescentes encarcerados, autores
de ato infracional, em sua maioria negros e pobres? Quais ações e intencionalidades do poder
dominante1 são direcionadas historicamente para esse público, fortalecidas no modo de produção
capitalista? Quais são as consequências dessas ações na sociedade, e no comportamento dos
próprios meninos/as?
Para se analisar e compreender as práticas e posturas do poder dominante de
enfrentamento aos “sujeitos indesejáveis”, dentre as quais destacamos o recolhimento
compulsório, o encarceramento e o assassinato de crianças e adolescentes das classes populares
(em situação de rua, moradores de favelas e periferias), no Estado do Rio de Janeiro, é necessário
identificar os diferentes fatos que integram essa realidade social, assim como a ideologia que
permeia e dá sustentação ao fenômeno em sua totalidade.
Os fenômenos não são isolados, imutáveis. Não se pode conceber o fenômeno deslocado
do processo histórico/social, como se eles fizessem parte das ciências naturais, como um fato
dado, como se essas pessoas fossem as responsáveis pela situação que vivenciam.
Somente nesse contexto, que integra os diferentes fatos da vida social (enquanto
elementos do desenvolvimento histórico) numa totalidade, é que o conhecimento dos
fatos se torna possível enquanto conhecimento da realidade (LUKÁCS, 2012, p.76).
1
Enquanto poder dominante considero a classe que controla o poder econômico e político, detentora dos meios de
produção, incluindo a mídia e o Estado.
21
Dessa forma, pretendemos buscar ao longo da história as conexões com o que vivemos na
atualidade, nas relações sociais que foram se constituindo, e em saber que tipo de ideologia
permeia as práticas e posturas abusivas do poder dominante que são direcionadas às crianças e
adolescentes em situação de rua, e às provenientes das favelas e periferias da cidade, grupos
sociais que perpassaram por um processo histórico de exclusão, controle, repressão,
encarceramento, e mesmo eliminação.
Essas relações entre os homens e deles com a natureza constituem as relações sociais
como algo produzido pelos próprios homens, ainda que estes não tenham consciência de
serem seus próprios autores. É, portanto, das relações sociais que precisamos partir para
compreender o que, como e por que os homens agem e pensam de maneiras
determinadas, sendo capazes de atribuir sentido a tais relações, de conservá-las ou de
transformá-las. (...) Trata-se de compreender a própria origem das relações sociais, de
suas diferenças temporais, de encará-las como processo histórico (CHAUÍ, 1998, p. 19 e
20).
Pensar este fenômeno em sua totalidade é considerar não só o fato enquanto realidade
social, mas também as várias determinações que são partes de um processo histórico que, em
termos de Brasil, não podemos desconsiderar a questão do mesmo ter sido um país invadido,
dominado e explorado quando feito colônia portuguesa, e que adotou a escravatura como forma
de relação social de produção de trabalho (compulsório), desde o período colonial (sec. XVI) até
o Brasil Império (final séc. XIX), sendo o último país do mundo a abolir a escravidão, através da
Lei Áurea, em 1882, que na verdade não surtiu grande efeito, como veremos adiante.
Importante também considerar não apenas a abordagem do fenômeno fortalecido pelo
capitalismo na produção de mais valia, desigualdade e exclusão, como também todo o processo,
ao longo desse tempo, de produção de subjetivações e/ou representações negativas,
desqualificantes e racistas sobre os descendentes dos seres humanos que foram escravizados e
que formam o segmento dos “sujeitos indesejáveis” ao sistema vigente e à própria sociedade.
Quando Chauí (1998) diz que “é, portanto, das relações sociais que precisamos partir para
22
compreender o que, como e por que os homens agem e pensam de maneiras determinadas (...)”, a
autora está, implicitamente, também falando de ideologia, pois é esta que vai operar e definir, a
seu tempo, o como e por que os homens agem e pensam de maneiras determinadas.
2
Cesare Lombroso, psiquiatra, antropólogo, cientista, higienista, foi um professor universitário e criminologista
italiano, nascido em 1835. Tornou-se mundialmente famoso por seus estudos e teorias no campo da caracterologia,
ou a relação entre características físicas e mentais. Lombroso tinha em mente chamar a atenção para a importância
de estudos científicos da mente criminosa, um campo que se tornou conhecido como antropologia criminal.
23
3
Marx e Engels. Manifesto do partido Comunista, p.26.
25
feudalismo; 2) das lutas entre os Estados italianos por um equilíbrio no âmbito italiano,
que era dificultado pela existência do Papado e dos outros resíduos feudais,
municipalistas, da forma estatal urbana e não territorial; 3) das lutas dos Estados
italianos mais ou menos solidários por um equilíbrio europeu, ou seja, das contradições
entre as necessidades de um equilíbrio interno italiano e as exigências dos Estados
europeus em luta pela hegemonia (Gramsci, 1984, p.15).
Gramsci, em sua teoria ampliada de Estado, destaca o papel da relação entre a sociedade
política e a sociedade civil. A sociedade política é interpretada pelo autor como Estado em
sentido “estrito” ou Estado-coerção, o qual é representado pelos aparelhos de coersão sob o
controle das burocracias executivas e policial-militar. A sociedade civil é compreendida por uma
rede complexa de organismos “internos e privados”, de instituições educativas e ideológicas
necessárias ao estabelecimento do Estado. É nesse espaço que se estabelece a relação entre o
grupo hegemônico e o contra-hegemônico.
Pode-se fixar dois grandes ‘planos’ superestruturais: o que pode ser chamado de
‘sociedade civil’ (isto é, o conjunto de organismos chamados comumente de ‘privados’)
e o da ‘sociedade política ou Estado’, que corresponde à função de ‘hegemonia’ que o
grupo dominante exerce em toda a sociedade e àquela de ‘domínio direto’ ou de
comando, que se expressa no Estado e no governo ‘jurídico” (GRAMSCI, 1982, p. 13-
14).
Essa relação de bando, à priori, podemos também considerar quando falamos dos
“sujeitos indesejáveis”, abandonados em potencial, estando no limiar da vida e da morte.
O bando é uma forma de relação, (...) a pura forma de referência a algo em geral, isto é,
a simples posição de uma relação com o que está fora de relação (SCHOLZ, 2014, Apud
AGAMBEN, 2002, p.39).
O que o bando mantém unidos são justamente a vida nua e o poder soberano. (..) O
bando é propriamente a força, simultaneamente atrativa e repulsiva, que liga os dois
polos da exceção soberana: a vida nua e o poder, o homo sacer e o soberano
(AGAMBEN, 2012, p. 85).
Vida nua..., em seu livro Homo Sacer – o poder soberano e a vida nua, Agambem (2012)
traz à luz o vínculo oculto que sempre ligou a vida nua - a vida natural não politizada, ao poder
soberano, aquele que tem o poder da vida e da morte, de fazer viver e deixar morrer. Vida nua, a
vida desprovida de humanidade, e por isso matável. O autor faz referência ao Homo Sacer, uma
figura do direito romano arcaico, um ser humano que podia ser morto por qualquer um
impunemente, ou seja, um ser matável, e traz essa reflexão para os dias atuais, quando considera
que a política tornou-se biopolítica, e o campo de concentração surge como o paradigma político
da modernidade.
Soberana é a esfera na qual se pode matar sem cometer homicídio e sem celebrar um
sacrifício, e sacra, isto é matável e insacrificável, é a vida nua que foi capturada nessa
esfera (AGAMBEN, 2012, p. 85).
4
Sobre as políticas e práticas adotadas, historicamente, junto a esse grupo social iremos abordar no quarto capítulo
dessa tese.
27
“As ideias da classe dominante são, em cada época, as ideias dominantes, isto é, a classe
que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, sua força espiritual.
A classe que tem à sua disposição os meios de produção material dispõe, ao mesmo
tempo, dos meios de produção espiritual, o que faz com que a ela sejam submetidas, ao
mesmo tempo e em média, as ideias daqueles aos quais faltam os meios de produção
espiritual. As ideias dominantes nada mais são do que a expressão ideal das relações
materiais dominantes, as relações materiais dominantes concebidas como ideias;
portanto, a expressão das relações que tornam uma classe a classe dominante; portanto,
as ideias de sua dominação. Os indivíduos que constituem a classe dominante possuem,
entre outras coisas, também consciência e, por isso, pensam. Na medida em que
dominam como classe e determinam todo o âmbito de uma época histórica, é evidente
que o façam em toda a sua extensão e, consequentemente, entre outras coisas, dominem
também como pensadores, como produtores de ideias; que regulem a produção e
distribuição das ideias de seu tempo e que suas ideias sejam, por isso mesmo, as ideias
dominantes da época” (CHAUÍ, 2004 Apud MARX, 1985, p. 93).
5
Segundo o Mapa da Violência 2014, o Brasil registrou em 2012 o maior número absoluto de assassinatos e a taxa
mais alta de homicídios desde 1980. Nada menos do que 56.337 pessoas foram mortas naquele ano, num acréscimo
de 7,9% frente a 2011. A taxa de homicídios, que leva em conta o crescimento da população, também aumentou
7%, totalizando 29 vítimas fatais para cada 100 mil habitantes. (Acesso em abril 2015).
28
Essa ilusão fetichista, cuja função consiste em ocultar a realidade e envolver todos os
fenômenos da sociedade capitalista, não se limita a mascarar seu caráter histórico, isto é,
transitório. Mais exatamente, essa ocultação se torna possível pelo fato de que todas as
formas de objetividade, nas quais o mundo aparece necessária e imediatamente ao
homem da sociedade capitalista, ocultam igualmente, em primeiro lugar, as categorias
econômicas, sua essência profunda, como formas de objetividade, como categorias de
relação entre homens; as formas de objetividade aparecem como coisas e relação entre
coisas (LUKÁCS, 2012, p.87).
As 03 práticas serão aprofundadas com (1º) uma linha do tempo sobre o contexto político, as
operações de recolhimento e os principais fatos do período (2001 a 2016, e parte 2017); (2º)
levantamento de dados do superencarceramento de adolescentes, no Estado do RJ, especialmente
entre 2011 a 2016 e parte de 2017; e (3º) dados sobre o assassinato de crianças, adolescentes e
jovens no Brasil e no RJ9. No Capítulo V – Tanta “porrada” tem consequências, traz histórias e
casos exemplares que ilustram as consequências de tanta violência no comportamento dos
sujeitos indesejáveis. E, finalmente, no Capítulo VI – Pra não dizer que não falei das flores, trago
a luta pela revogação de práticas de recorte ideologicamente nazifascistas, e do processo de
construção de Resoluções, Políticas e Diretrizes pautadas em direitos humanos.
Muitos foram os fatos e sucessão de acontecimentos ao longo desses 05 anos de
construção desta tese. Fatos estes que não se deram isolados, pois fazem parte de uma totalidade.
Dessa forma, enquanto método utilizado por mim de estudo e análise o materialismo histórico é
aquele com que tenho maior aproximação, que nos ajudará a melhor compreensão da dura e
sombria realidade social que vivenciamos. Pela minha implicação direta com o tema há mais de
25 anos, enquanto educadora e defensora de direitos humanos de crianças e adolescentes, esta
pesquisa pode ser considerada como de intervenção e análise do real.
Dessa forma minha Pesquisa Empírica teve a relevância e contribuição de vários coletivos
dos quais faço parte: Rede Rio Criança (RRC), Campanha Nacional Criança Não é de Rua
(CNER), Conselho Estadual de Defesa da Criança e do Adolescente (CEDCA RJ), Comitê
Nacional Criança e Adolescente em situação de rua, Grupo de Trabalho Crianças e Adolescentes
em Situação de Rua do Conselho Nacional de Direitos da Criança e do Adolescente
(CONANDA), Grupo de Trabalho Criança e Adolescente em Situação de Rua da Comissão de
População de Rua da Câmara Municipal de Vereadores, Movimento Candelária Nunca Mais!
Grupo de Trabalho Operação e Plano Verão, Grupo de Trabalho DEGASE, Frente Nacional
Contra a Redução da Idade Penal, Fórum Estadual de Defesa da Criança e do Adolescente
(Fórum DCA RJ), Comitê Estadual de Prevenção e Combate à Tortura (CEPCT), Comissão
Especial de População em situação de rua do Conselho Nacional de Direitos Humanos (CNDH).
Bem como, das ricas informações coletadas em Audiências Públicas, CPIs, Grupo de Mães e
Familiares de Adolescentes vítimas da violência do Estado, Crianças e Adolescentes em situação
9
Importante destacar que foram utilizadas uma série de notícias veiculadas na mídia convencional e redes sociais ao
longo da tese e, especialmente, no capítulo IV, como forma de amparar e constatar os diferentes fatos que
integraram a realidade social retratada ao longo do período de estudo.
31
10
Importante destacar que a série de notícias divulgadas nesta tese tem a função de subsidiar os fatos que integram
essa realidade social.
32
11
1 OS FASCISTAS ESTÃO PASSANDO
Esta noite fiquei a pensar quando a Humanidade errou e não parou Hitler no momento
certo, quando a Humanidade errou e não parou Mussolini no momento certo... Eles estão
de volta. Será que vamos errar de novo e vamos deixá-los tomar o poder?", conclamou.
"A democracia não permite descanso. Eles [os fascistas] estão de volta. Temos que pará-
los!
Lédio Rosa de Andrade, Desembargador do Tribunal de Justiça (TJ-SC) e professor de
Direito da UFSC, em 05/10/1712
Muitas são as preocupações com a guinada política à direita, que se consolidou com a
vitória de Donald Trump nos Estados Unidos (2017), e no avanço de candidaturas de extrema
direita, como a de Marine Le Pen, na França (2017), e de Jair Bolsonaro no Brasil (em 2º lugar
nas pesquisas de intenção de voto para as eleições em 201813).
Na América Latina, golpes de estado fazem parte de uma conjuntura recente, como o
Golpe de Estado em Honduras, em 2009; no Paraguai, em 2012; e na eminência de um golpe na
Venezuela a qualquer momento (2017). No Brasil, a Ditadura Militar golpeou o Presidente João
Goulart em 1964, e em abril de 2016, o golpe que resultou no impeachment da Presidenta
legitimamente eleita Dilma Rousseff. Alguns especialistas, para tentar explicar o atual cenário,
dizem que não se fazem mais golpes com tanques e armas. Vão se criando pretextos sejam eles
políticos, jurídicos, econômicos, ou ambos, e uma ambiência de fragilidade e medo, com forte
amparo da mídia, para justificar o golpe com a retirada de presidentes legitimamente eleitos pelo
voto!
No Brasil, a democracia brasileira vive o seu pior momento, desde a ditadura militar. É
um período histórico sombrio de séria crise multidimensional (política, econômica, jurídica,
social, ética) que compromete o Estado Democrático de Direito. A realidade social é atravessada
11
O título “Os Fascistas estão passando” é uma alusão, às avessas, ao lema: “Fascistas não passarão!”
12
A declaração do Profº e Desembargador foi um desabafo em relação ao suicídio do Reitor Luiz Carlos Cancellier
de Olivo, da UFSC, ocorrido em 02/10/17, por ter sido vítima de investigação e exposição da polícia federal por,
supostamente, ter cometido crime de obstrução da justiça.
13
De acordo com pesquisa Data Folha divulgada em final setembro e dezembro de 2017.
33
pobres. A PEC 55 foi aprovada mesmo com as denúncias de inconstitucionalidade feitas pela
Procuradoria Geral da União, por especialistas, pelo movimento social, sindicatos e organismos
internacionais, inclusive a ONU, que alegou que a referida PEC prejudica os mais pobres e fere
os direitos humanos14.
A sucessão de votações no Congresso Nacional e Senado Federal de aprovação a Projetos
de Lei de flagrante abuso e afronta aos direitos; a sucessão de medidas provisórias aprovadas na
calada da noite; de conluios políticos e aprovação da continuidade de mandatos de parlamentares
acusados de cometerem crimes; a pública e notória compra de votos de parlamentares para a não
abertura do processo contra o atual presidente, apesar das denúncias, associadas à forte repressão
e criminalização das lutas e movimentos sociais, e o total descaso e desprezo político ao clamor
popular, têm gerado fragilização da mobilização social e a desmobilização da luta.
A exaltação do fascismo, de grupo de extrema direita, encontrou lugar num cenário
propício para a violência, o arbítrio e o retrocesso. Assistimos a divisão da sociedade brasileira
em duas: uma apoiando o Golpe, liderada principalmente pelo PSDB (partido que perdeu a
eleição presidencial em 2014), PMDB (Partido do Movimento Democrático Brasileiro),
Democratas (DEM), com apoio de grandes empresas organizadas na Federação das Indústrias do
Estado de São Paulo (FIESP), e transnacionais, contando com a mídia como forte aliada; e outra
parte da sociedade que denunciava e se manifestava contrária ao golpe, formada por partidos de
esquerda, movimento sindical e movimentos sociais. Nesse cenário que dividiu a sociedade
brasileira, observamos por atos e palavras, sejam nas ruas ou redes sociais, o descortinar e a
incitação do ódio à diferença, da intolerância e da violência.
A participação e o engajamento dos estudantes nas manifestações e no movimento de
ocupação das escolas, em 2016-2017, foram emblemáticos. O movimento, organizado por
estudantes secundaristas, por melhores condições escolares e com posicionamentos contrários às
medidas do governo golpista foram duramente combatidas pela polícia e força nacional, com
práticas semelhantes às da ditadura militar e/ou estado de exceção, onde os direitos ou parte deles
são suspensos, e a liberdade de expressão é tratada com repressão. Caso exemplar foi a ordem do
Juiz Alex Costa de Oliveira, da Vara de Infância e Juventude, do Distrito Federal (Brasília)
quando autorizou a polícia militar o uso de instrumentos similares aos de tortura (uso de
aparelhos sonoros para privar o sono dos alunos) para forçar a desocupação dos estudantes que
14
Publicada em: http://www.jb.com.br/pais/noticias/2016/12/09/onu-critica-pec-do-teto-de-gastos-prejudica-mais-
pobres-e-fere-direitos-humanos/ , em 09/12/16.
35
ocupavam o Centro de Ensino Asa Branca de Taguatinga, por serem contrários à PEC 55 do
congelamento dos gastos públicos por 20 anos15; ou da prisão de manifestantes.
Segundo o Deputado Estadual do Ceará Renato Roseno (PSOL), “estamos numa crise
multifacetada: social, política, ecológica, econômica, ética. É uma crise de padrão civilizatório.
Há uma imposição de um novo regime de acumulação por espoliação. O capital não consegue se
realizar e acumular sem destruir quaisquer mediações, por isso destrói os mecanismos de
proteção social que ferem o processo de exploração. A Reforma Trabalhista é um exemplo. É um
processo de desconstituição de direitos sociais16”.
Em termos gerais, as desigualdades socioeconômicas foram reduzidas no período de 2004
a 2014, principalmente pelos programas socioassistenciais (como o Bolsa Família, Minha Casa
minha vida, Luz para todos, etc.), programas de transferência de renda, geração de empregos e
valorização do salário mínimo. No entanto, o comprometimento de grande parte do orçamento
federal com a dívida pública tem reduzido as condições para a realização dos direitos humanos,
sociais, econômicos e culturais colocando em risco a garantia do que está previsto na
Constituição Federal e nos compromissos assumidos diante dos pactos e convenções
internacionais. Para se ter uma ideia, o orçamento público federal de 2015 destinou 47% dos seus
recursos ao pagamento de juros e amortização da dívida pública. Em 2014 foram destinados
apenas 3,73% do orçamento para a educação, 3,98% para saúde e 0,04% para cultura. As
medidas de ajuste fiscal cortaram do orçamento público em 2015 cerca de R$ 34,96 bilhões e,
representaram perdas de 42,7% na pasta da Saúde e 23,7% na Educação. As medidas do ajuste
somadas aos novos cortes nos investimentos sociais anunciados pelo atual governo, em especial a
PEC 55/2016 que congelou os gastos públicos por 20 anos no país, apontam para uma retomada
do aumento da pobreza no Brasil, segundo recente estudo do Banco Mundial17.
No último período, o governo federal tem apresentado propostas de reformas da
Constituição que reduzem garantias de direitos conquistados, frutos de muitas lutas. A Reforma
Trabalhista (Projeto de Lei 6787/16), recentemente negociada e aprovada pela Câmara e Senado
15
Publicado em: http://educacao.uol.com.br/noticias/2016/11/01/por-desocupacao-juiz-do-df-libera-isolamento-de-
alunos-e-privacao-de-sono.htm, acesso em 01/11/16.
16
Uma das falas do Deputado Renato Roseno na Mesa de Abertura do VII Encontro Nacional de Educação Social,
dia 12/10/17, em Fortaleza (CE). Renato é Advogado, Servidor Público do MDS e Militante de Direitos Humanos,
principalmente na área da infância e juventude.
17
Publicado em: https://medium.com/@padbrazil/direitos-humanos-e-democracia-no-brasil-
viola%C3%A7%C3%B5es-e-retrocessos-e50cc26d4523 , acesso em 08/07/17.
36
Federal, representa um grande retrocesso para a classe trabalhadora. No total, o projeto mexe em
cem pontos da legislação (CLT – Consolidação das Leis Trabalhistas), mudando as regras em
questões como jornada de trabalho, férias, e planos de carreira, além de regulamentar novas
modalidades de trabalho, como o home office (trabalho remoto) e o trabalho intermitente18. Outra
reforma que retira direitos é a da Previdência - Projeto de Emenda Constitucional 278/2016, que
muda as regras da aposentadoria dos brasileiros. Caso aprovada, conforme proposta atual, o
trabalhador poderá ter que contribuir por 49 anos para assegurar o recebimento integral do regime
geral da previdência, e muitos terão de trabalhar até morrer.
Dentre a ofensiva do governo golpista de redução de direitos e liquidação do patrimônio
nacional privilegiando o agronegócio, o capital financeiro e empresas multinacionais, não poderia
deixar de destacar:
(1º) O Decreto que previa a abertura da Reserva Nacional de Cobre e Associados
(RENCA), na Amazônia, entre os estados do Pará e Amapá, para a exploração de mineradoras,
uma área comparada com a Dinamarca. A RENCA é uma área de 46.450 km2 criada em 1984 e
que era bloqueada aos investidores privados. No Decreto de criação da RENCA foi instituído que
a Companhia de Pesquisa de Recursos Minerais (CPRM) teria a exclusividade para conduzir os
trabalhos de pesquisa geológica para determinar e avaliar as ocorrências de cobre e minerais
associados. As descobertas deveriam ser negociadas com empresas de mineração, para fins de
viabilizar as atividades de extração19.
Com a reação de ambientalistas e da comunidade internacional, o governo federal teve
que recuar e revogou o decreto, e volta a valer o decreto de 1984, que criou a reserva e proibiu a
exploração privada de minérios na área20.
(2º) O Leilão do Pré-Sal, realizado no dia 27/10/17, no qual o governo federal arrecadou
6,15 bilhões com a venda de seis das oito áreas ofertadas. Segundo o colunista Noblat do Jornal
O Globo, este foi o “escândalo do século”. Os dois leilões puseram fim à exclusividade da
Petrobras na exploração da imensa riqueza, que foi considerada a maior descoberta (em 2006) de
18
Publicado em: https://www.cartacapital.com.br/politica/entenda-as-mudancas-na-reforma-trabalhista-com-mp-de-
temer.3. Acesso em Nov/2017.
19
Publicada em: http://www.mme.gov.br/documents/1138775/32082396/Perguntas+e+Respostas+-
+Renca+.pdf/96641130-6057-4711-bc59-f1863676c5de , acesso em 15/11/17.
20
Publicada em: https://g1.globo.com/politica/noticia/decreto-que-revoga-extincao-da-renca-e-publicado.ghtml ,
acesso em out/17.
37
petróleo dos últimos 30 anos21. O leilão tirou do país a sua capacidade de desenvolvimento
autônomo para ser mero fornecedor de matéria prima, à preço bem inferior ao do mercado, para
empresas multinacionais.
Com o leilão, “o Brasil abriu mão e deixa de arrecadar R$ 1 trilhão em receitas. Um
trilhão de isenções graciosamente cedidas às maiores e mais ricas empresas do planeta Terra.
Sem qualquer amparo em dados econômicos, em projeções de investimentos, e de estudos
confiáveis”, disse o Senador Roberto Requião em pronunciamento de mais de 30 minutos no
plenário, no dia 06/11/17. O Senador cobrou fortemente os operadores da Lava Jato, à Presidente
do Supremo Tribunal Federal (STF), Juíza Carmem Lúcia, à Procuradora Geral da União, Raquel
Dodge, aos Promotores Deltan e Dallagnoll, e delegados da Polícia Federal, “que assistem
passivamente a entrega do país e do desmantelamento do setor público sem qualquer reação, por
que nada fazem quando um governo absolutamente mergulhado na corrupção vende o Brasil a
preço de banana”. De acordo com Requião, nunca aconteceu na história do Brasil de um
presidente ser denunciado por corrupção durante o exercício do mandato, e nunca um presidente
da República desbaratou o patrimônio nacional de forma “tão açodada, irresponsável e suspeita”.
Com o leilão o governo passa a arrecadar apenas R$ 0,1 centavo com a venda de cada litro de
petróleo, disse Roberto Requião22 23.
(3º) O Ministério do Trabalho lançou Portaria 1.129, que modifica o conceito de trabalho
escravo, divulgada em 16/10/17. Segundo o texto, apenas poderá ser considerada escravidão a
submissão do trabalhador sob ameaça de castigo, a proibição de transporte obrigando ao
isolamento geográfico, a vigilância armada para manter o trabalhador no local de trabalho e a
retenção de documentos pessoais.
A Portaria foi duramente criticada pelo Ministério do Trabalho e pela Organização
Internacional do Trabalho (OIT), por representar um retrocesso para o país, que havia se
transformado em referência internacional no combate a esse tipo de exploração. O decreto
21
Publicada em: http://noblat.oglobo.globo.com/artigos/noticia/2017/10/leilao-do-pre-sal-o-escandalo-do-
seculo.html, em 24/10/17.
22
Integra do discurso Senador Roberto Requião publicado em: https://youtu.be/fW9f9TxbNgE, acesso em 07/11/17.
23
A título de informação, cada barril de petróleo tem cerca de 159 litros, o que, com o leilão, representa o valor de
R$ 1,23 para cada litro de petróleo, uma perda em torno de 1.230%. Uma informação importante sobre o preço real
é que o barril de petróleo bateu recorde em final de outubro/17, chegando à marca de U$S 60 dólares, o maior
desde 201523. O valor do dólar hoje (08/11/17) está em R$ 3,27. Isso significa que o barril de petróleo está
custando R$ 196,20. (Ver em: https://g1.globo.com/economia/mercados/noticia/preco-do-petroleo-sobe-e-bate-
marca-de-us-60-por-barril-no-maior-valor-desde-2015.ghtml , acesso em 07/11/17).
38
24
Publicado em: https://g1.globo.com/economia/noticia/oit-expressa-preocupacao-por-decreto-sobre-trabalho-
escravo-no-brasil.ghtml ,em 16/10/17.
25
Publicado em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/geral/noticia/2017-10/ministra-rosa-weber-do-stf-suspende-portaria-
sobre-trabalho-escravo , em 24/10/17.
26
Publicada em: https://www.facebook.com/search/top/?q=lindbergh%20farias, acesso em setembro/17.
39
No contexto estadual, o Rio de Janeiro também viveu e vive uma crise sem precedentes
em sua história. O Estado de calamidade pública decretado pelo Governador Luiz Fernando
27
Novo REFIS, programa de refinanciamento da dívida com o fisco, beneficiará várias empresas com a prorrogação
de prazos.
40
Pezão no período de realização das Olimpíadas Rio 2016, se agravou com as inúmeras denúncias
de corrupção e desvio de verba pública, principalmente pelo Ex Governador Sérgio Cabral, na
ordem de bilhões de reais. As consequências são gravíssimas, com atrasos nos pagamentos de
salários de funcionários públicos, aposentados, pensionistas, sucateamento de hospitais, serviços
e equipamentos públicos, universidade, como a Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(UERJ), que está praticamente paralisada, escolas, dentre outros. Muitos falam, inclusive, da
necessidade de intervenção federal no estado.
Os índices de violência no Rio de Janeiro só aumentaram em relação ao ano anterior.
Muitas crianças e adolescentes foram vítimas da violência sistemática em suas comunidades, nas
escolas, em casa, alvejadas por disparos de arma de fogo! Segundo dados da polícia civil, o Rio
de Janeiro tem uma vítima de bala pedida a cada 07 horas 28! Perdida? É bala achada! As
comunidades exigem justiça. A população está amedrontada e exige segurança. Tudo isso
também tem reflexo para as crianças e adolescentes, sejam as que estão em situação de rua, ou
nas favelas e periferias da cidade, com o aumento da repressão e violência policial.
Muitas são as contradições ao analisarmos os fatos sociopolíticos que integram essa
realidade, pois, ao mesmo tempo em que ao longo do governo do Partido dos Trabalhadores (PT),
período compreendido entre os anos de 2003 – 2011, com Lula, e de 2012 a abril 2016, com
Dilma Rousseff, o Brasil apresentou os maiores índices de crescimento e credibilidade
internacional, grandes avanços em políticas e programas sociais, educacionais, culturais, ciência e
tecnologia, direitos humanos, redução nos índices de desigualdade, quando milhões de brasileiros
saíram da faixa de pobreza e pobreza extrema, no entanto, também foi um período de aumento da
violência letal e do encarceramento de adolescentes e jovens, ocupando o Brasil um dos líderes
no ranking mundial. Contradição também nas relações e acordos estabelecidas pelo PT com
políticos e partidos que protagonizaram o golpe que destituiu a Presidenta Dilma, que hoje são
alvo de críticas do próprio PT.
Nesse cenário sombrio de redução, ou mesmo de suspensão, de direitos, especialmente
para um determinado grupo social, de aumento da violência, do medo e insegurança, é propício
para a instauração de práticas totalitárias, abusivas. Podemos perceber que quando a classe e o
poder dominante se veem ameaçados, muitas vezes faz uso de duas formas de atuação: pela
coerção e/ou pelo consenso, ambas práticas que foram muito utilizada pelo nazifascismo.
28
Publicado em: https://extra.globo.com/casos-de-policia/rio-tem-em-media-uma-pessoa-vitima-de-bala-perdida-
cada-sete-horas-em-2017-21558626.html .
41
Gellately (2011), em seu livro Apoiando Hitler, ao falar sobre o nazismo enquanto novo
regime na Alemanha, comenta:
O novo regime não hesitava em empregar muitas formas de repressão contra seus
inimigos declarados, mas também buscava o consentimento e o apoio do povo a toda
hora. (...) o consentimento e a coerção estiveram inextricavelmente entrelaçados durante
a história do Terceiro Reich, até certo ponto porque da repressão e do terror foi usada
contra indivíduos específicos, minorias e grupos sociais pelos quais o povo tinha pouca
simpatia. A coerção e o terror eram altamente seletivos (...). (GELLATELY, 2011,
p.22).
A lista dos antissociais que se enquadravam nessa definição vaga incluíam todos os que
“por meio de infrações menores da lei”, mas repetidas com frequência, demonstram que
não respeitarão a ordem social, que é uma condição fundamental do Estado nacional-
socialista, como: mendigos, sem-teto, ciganos, prostitutas, alcóolatras, portadores de
doenças contagiosas (...) (GELLATELY, 2011, p. 162).
A questão fatídica para a espécie humana parece-me ser saber se, e até que ponto, seu
desenvolvimento cultural conseguirá dominar a perturbação de sua vida comunal
causada pelo instinto humano de agressão e autodestruição. Talvez, precisamente com
relação a isso, a época atual mereça um interesse especial. Os homens adquiriram sobre
as forças da natureza um tal controle que, com sua ajuda, não teriam dificuldades em se
exterminarem uns aos outros, até o último homem. Sabem disso, e é daí que provém
grande parte de sua atual inquietação e infelicidade e de sua ansiedade. (FREUD, 1978,
p. 194).
O nazifascismo enquanto regime político não caberia mais nesse tempo (apesar de ainda
existirem simpatizantes, como grupos de neonazistas, lideranças políticas e a ascensão de
movimentos totalitários no Brasil e no mundo). Porém, sua ideologia deixou
continuidades/aderências que para se manifestar foi preciso se camuflar. E reaparecem, por
exemplo, em momentos de crise, na violência sistemática dos aparelhos do Estado nas operações
de recolhimento e internação compulsória da população em situação de rua; na retirada
compulsória de bebês de jovens mães em situação de rua, supostamente usuárias de drogas; na
tortura de adolescentes em abrigos e nas unidades de internação para adolescentes infratores
(agressão e uso de "taser" – choque; spray de pimenta, maus tratos, tortura, superlotação, etc.);
nos altos índices de homicídio de jovens negros e pobres, nos autos de resistência, nos
43
desaparecimentos, nas agressões à manifestantes, nas incursões da polícia nas favelas, dentre
outras.
De fato, o que consideramos ideologia nazifascista não está correlacionado com um
regime político formalizado como o da Alemanha Nazista, mas não deixa de carregar um
substrato deste, que observamos nos exemplos citados acima, materializados nas posturas e
práticas arbitrárias, ilegais, que afrontam direitos constituídos, que temos vivenciado,
especialmente, nesses tempos mais que sombrios do governo golpista brasileiro, com a
conivência de grande parte do Judiciário e Legislativo, reforçados pela grande mídia. Apesar de
parte da sociedade brasileira só ter se dado conta disso em um período recente, pessoas em
situação de rua e moradores de favelas e periferias, principalmente negros e pobres, convivem
com essas forças há muito tempo...
Hanna Arendt (2013) também nos faz um alerta quando escreve:
É bem sabido que Hitler começou seus assassinatos em massa brindando os “doentes
incuráveis” com a “morte misericordiosa”, e que pretendia ampliar seu programa de
extermínio se livrando dos alemães “geneticamente defeituosos” (doentes do coração e
do pulmão). Mas à parte disso, é evidente que esse tipo de morte pode ser dirigido contra
qualquer grupo determinado, isto é, que o princípio de seleção é dependente apenas de
fatores circunstanciais. É bem concebível que na economia automatizada de um futuro
não muito distante os homens possam tentar exterminar todos aqueles cujo quociente de
inteligência seja abaixo de determinado nível (ARENDT, 2013, p.312).
social, onde os direitos estão ausentes ou minimizados. De acordo com o autor, na categoria do
“Fascismo Societal”, existem 06 formas fundamentais do tipo fascista de sociabilidade que
vivenciamos em nossa época: o Fascismo do Apharteid Social, o Fascismo do Estado Paralelo, o
Fascismo Paraestatal (dividido em duas vertentes: contratual e territorial), o Fascismo Populista,
o Fascismo da Insegurança e o Fascismo Financeiro.
O fascismo societal de Boaventura não é um regime político, mas aquela forma que está
presente nas relações sociais na sociedade capitalista enquanto parte da própria civilização. Esta
definição conceitual do autor apresenta semelhanças com o que defendemos nessa tese, porém, o
que nos diferencia é, especialmente, a questão de raça, uma categoria não abordada pelo autor nas
seis formas de fascismo que destaca, nem mesmo em sua em sua 1ª forma: o Fascismo do
Apartheid Social29. Dessa forma, considero que o que nos diferencia é a ideologia dominante que
permeia as práticas e posturas abusivas que são direcionadas a um grupo específico da população,
majoritariamente negros e pobres, que foram excluídas do “contrato social”, ou seja, um tipo de
ideologia bem próxima ao que foi a ideologia nazifascista.
Fascismo e Nazismo foram dois regimes políticos que surgiram no início do século XX:
em 1919 o Fascismo de Mussolini, na Itália; e em 1920 o partido nazista na Alemanha, mas que
só se constitui enquanto regime quando da ascensão de Hitler ao poder, em 1933. Existem muitos
autores que escreveram sobre o fascismo, nazismo e a ideologia nazifascista, porém há diferenças
em algumas concepções. Muitos consideram o nazismo um tipo de fascismo, por isso o termo
“nazifascismo” (que adotamos nessa tese), porém o nazismo tem em sua ideologia características
que os diferencia, como veremos a seguir. Procurei buscar referências teóricas que se identificam,
em seu tempo, com esse estudo, para explicar resumidamente o que foi cada um desses regimes e
a ideologia que os permeou.
29
A primeira forma é o Fascismo do Apartheid Social. Trata-se da segregação social dos excluídos através de uma
cartografia urbana dividida em zonas selvagens e zonas civilizadas. As zonas civilizadas são as zonas do contrato
social e vivem sob a constante ameaça das zonas selvagens. Para se defenderem, transformam-se em castelos
neofeudais, os enclaves fortificados que caracterizam as novas formas de segregação urbana (SANTOS, 1998,
p.23).
45
No livro As Origens do Fascismo, o autor José Carlos Mariátegui (2010), quando de sua
passagem pela Itália no início da instauração do regime fascista, assim o descreveu:
O fascismo foi fundado em 1919 por Benito Mussollini e outros elementos de entusiasta
figuração intervencionista, para preconizar um programa expansionista e nacionalista
contra aqueles que, a seu juízo, desvalorizavam, dentro do governo, a vitória italiana na I
Guerra Mundial. A denominação de “fascismo” vem da palavra “fascio”, que quer dizer
“feixe”, com a qual foi designado na Itália, durante a guerra o feixe de partidos, o bloco
de forças políticas nacionais (...). A palavra “fascismo” tem, portanto, por essa origem,
um conteúdo nacionalista e guerreiro (MARIÁTEGUI, 2001, p.147).
(...) No princípio, o “fascismo” operou principalmente sobre uma plataforma de política
externa. Agitou a bandeira das máximas aspirações territoriais. (...) Mais tarde, quando
esse programa nacionalista aglutinou ao redor dos “fascios” uma multidão batalhadora e
acalorada, o fascismo iniciou seu ataque armado ao socialismo. Situou sempre sua ação
num terreno claramente nacionalista. Qualificou de agressiva sua atividade, como uma
afirmação do patriotismo italiano contra a doutrina internacionalista do socialismo e do
anarquismo. (...) O fenômeno “fascista” adquiriu, a partir de então, uma importância
muito maior. Hoje, o “fascismo” é uma milícia civil antirrevolucionária. Já não
representa somente o sentimento de vitória. Já não é exclusivamente um prolongamento
do ardor bélico da guerra. Agora significa uma ofensiva das classes burguesas contra a
ascensão das classes proletárias. As classes burguesas aproveitam o fenômeno “fascista”
para sair de encontro à revolução (Idem, p. 148).
O fascismo italiano foi mais proveitoso ao capital na medida em que extinguia sidicatos e
obstáculos à administração patronal do trabalho. Ali sim, o movimento foi no interesse de velhas
classes dominantes em reação às agitações esquerdistas revolucionárias que se avolumavam. O
fascismo, liderado por Mussolini, foi um regime antidemocrático no qual o poder ficava nas mãos
de um chefe de Estado, havia grande incentivo à educação e preparação de indivíduos para a
guerra. Os fascistas se apresentavam como solução para a crise econômica e greves italianas.
Através de violência e mortes eles sufocaram os movimentos grevistas e Mussolini conquistou
oficialmente o poder.
A ideologia nazifascista é o conjunto de ideias e valores que deram sustentação ao
Terceiro Reich da Alemanha, governado por Adolf Hitler e pelo Partido Nacional Socialista dos
Trabalhadores Alemães (NSDAP), mais conhecido como Partido Nazista, no período de 1933 a
1945. O nazismo era um regime totalitário, desde seu início, antiliberal tendo derrubado antigas
estruturas institucionais imperiais bem como antigas elites consolidadas. Tinha dentre suas
principais características o ultranacionalismo, militarismo, unipartidarismo, controle da
propaganda, culto ao líder, anticomunismo, racismo, expansionismo, antissemitismo.
Diferenciava-se do fascismo principalmente por pregar a superioridade da raça ariana. A
ideologia nazifascista pregava a superioridade do povo germânico perante todas as outras raças,
46
especialmente judeus, eslavos e mestiços. O nazifascismo foi a resposta da burguesia para a grave
crise que atingia o capitalismo no início do século XX e, como uma ditadura capitalista, teve no
comunismo seu primeiro grande inimigo30.
Segundo o historiador Gellately31 (2001), o estabelecimento da ditadura de Hitler ocorreu
logo após sua indicação como Chanceler no fim de janeiro de 1933. Ele começou meramente
como líder de um governo de coalizão num país tomado por problemas políticos, econômicos e
sociais. (...) em poucos dias depois de sua nomeação já falava com líderes militares sobre como
pretendia acabar com o “câncer da democracia”, instalar a “mais rígida e autoritária liderança de
Estado” e até mesmo embarcar na “conquista de um novo espaço vital no leste, com a implacável
germanização”. Alguns meses após sua indicação como Chanceler, a maior parte dos cidadãos
alemães passou a aceita-lo e a apoiá-lo com firmeza. (...) A coisa mais importante que poderia
fazer para conquistar a simpatia da população era resolver o enorme problema do desemprego32.
O novo regime não hesitava em empregar muitas formas de repressão contra seus
inimigos declarados, mas também buscava o consentimento e o apoio do povo a toda
hora. (...) a maior parte da repressão e do terror foi usada contra indivíduos específicos
(...). A partir do início de 1933, a polícia e as Tropas de Assalto nazistas começaram a
recorrer à violência, e novos campos de concentração foram estabelecidos
(GELLATELY, 2001, p.22).
Uma das questões que mais exigem nossa atenção e reflexão crítica nos tempos atuais é o
avanço das forças que vêm corroendo o Estado Democrático de Direito e vão introduzindo um
Estado de Exceção. Podemos perceber a presença, já não tão oculta, de um tipo de ideologia
semelhante à que foi a ideologia nazifascista em casos exemplares como, alguns já mencionado
anteriormente, no percentual de aprovação do Deputado Jair Bolsonaro33 , bem como de como ele
tem sido ovacionado nos discursos que faz em diferentes cidades pelo país, referenciado como
“mito” e, surpreendentemente, quando de sua visita à Sociedade Hebraica do RJ, em abril/2017,
justamente uma casa de referência para os Judeus, quando disse, dentre outras: “Eu fui num
30
Fontes: http://www.historiadigital.org/curiosidades/10-ideologias-do-nazi-fascismo/ ;
http://arturbruno.com.br/cursos/texto.asp?id=930 .
31
Robert Gellately é um acadêmico canadense e um dos principais historiadores da Europa moderna, particularmente
durante a Segunda Guerra Mundial e o período da Guerra Fria. (Ver em:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Robert_Gellately ).
32
Fonte: Gellately, Apoiando Hitler, Editora Record, 2011 (p. 21).
33
Jair Bolsonaro era do Partido Social Cristão (PSC) e atualmente está no Partido Social Liberal (PSL).
47
quilombo. O afrodescendente mais leve lá pesava sete arrobas. Nem pra procriador ele serve
mais”. Qual seria a explicação para o número tão expressivo de admiradores de uma pessoa que
defende torturadores e a volta da ditadura, como o fez na Câmara dos Deputados na votação do
impeachment da presidente Dilma Rousseff, quanto exaltou o nome do Coronel Ustra34, expõe
abertamente seu racismo, sua intolerância, seu ódio às diferenças, aos homossexuais, desrespeita
e ofende as mulheres, como o fez com a Deputada Maria do Rosário, numa sessão na Câmara
Federal de Deputados, em 2014, quando disse que “Ela não merece [ser estuprada] porque ela é
muito ruim, porque ela é muito feia, não faz meu gênero, jamais a estupraria. Eu não sou
estuprador, mas, se fosse, não iria estuprar, porque não merece"?
Sempre que de algum modo o diferente é tratado como inimigo, excluído do povo,
desqualificado em sua humanidade, associado à desvalores, mau, falso, injusto, sujo,
sempre que alguém procura uniformizar o meio social como um organismo por tal
método está diante de uma atitude fascista. A chave é essa: alguns são “o povo” e devem
ser protegidos; outros não são o povo, não tem direitos e podem ser excluídos. O ódio à
diferença é o fenômeno social fascista por definição. Há hoje no Brasil problemas com a
diferença. Devemos prestar atenção quando a luz amarela acende (FELIPPE, 2013)35.
34
Coronel do Exército Carlos Ustra foi chefe do Doi Codi durante a ditadura militar, entre 1970 e 1974. Foi o
primeiro militar reconhecido pela Justiça como torturador e comandante de uma delegacia de polícia acusada de ser
palco de mais de 40 assassinatos e de, pelo menos, 500 casos de torturas. (Ver em:
http://www.gazetadopovo.com.br/vida-e-cidadania/historia/conheca-o-coronel-ustra-homenageado-por-bolsonaro-
e-chefe-do-temido-doi-codi-8sed82y14k1b2hnuu1yxk5pnb .
35
Márcio Sotelo Felippe, Fascismo no Brasil de hoje, 2013. Artigo publicado em
http://mariafro.com/2013/05/29/marcio-sotelo-felippe-fascismo-no-brasil-de-hoje/ , acesso em 28/05/13.
48
36
Publicado em: http://politica.estadao.com.br/blogs/roldao-arruda/o-brasil-esta-chocando-o-ovo-da-serpente-diz-
frei-betto-ao-defender-estado-laico/ , acesso em novembro 2013.
37
Estatuto da Família define família como a união entre homem e mulher, por meio de casamento ou união estável,
ou a comunidade formada por qualquer um dos pais junto com os filhos. O Projeto é de autoria do Deputado
Anderson Ferreira (PR – PE).
38
Publicado em: http://www.gazetadopovo.com.br/blogs/caixa-zero/mbl-arte-
degenerada/?doing_wp_cron=1505303825.2400069236755371093750 O conceito de “arte degenerada”, em
alemão, “entartete Kunst”, surgiu para criticar as tendências do modernismo que iam contra tudo aquilo que o
nazismo, um movimento reacionário por excelência, defendia. Tudo o que era contra o conceito tradicional de
beleza ofendia. Entre as obras consideradas degeneradas estavam produções de artistas que se tornaram símbolos
do que de melhor o século 20 nos deu, como Picasso e Chagall . Em artigo publicado no Jornal o Globo, no dia
12/09/17, “Não há arte possível para a gente de bem”, Daniele Name, escritora e curadora, escreve sobre o fato:
Uma exposição que inflamou aquela cidade fria. Os cidadãos de bem comentavam, mesmo sem ter visto. As mães
protegiam seus filhos daquelas telas, esculturas, fotografias e objetos, consideradas uma ameaça à família, ao
espírito nacional, aos altos valores. Cada obra como um ataque premeditado à ordem; cada defensor desse tipo de
arte como um pervertido, pedófilo, bandido ou prevaricador — talvez todos os atributos combinados. Uma patrulha
civil, milícia da moral, de plantão do lado de fora, abordando e intimidando as pessoas. Afinal de contas, quem não
é pelo bem compactua com o mal. Porto Alegre? MBL? Mostra Queer? Não. Este texto começou em Munique,
onde, há exatos 80 anos, em 1937, um certo Adolf Hitler transformou a mostra "Arte degenerada" em uma de suas
principais peças de propaganda ideológica. (...) A exposição "Arte degenerada" deu ao ditador a chancela para a
destruição de obras dos artistas participantes e também de Picasso, Kandinsky e Matisse — todos vistos como
vetores "judaico-bolcheviques". O resto da história conhecemos bem — ou ao menos deveríamos: obras de arte
queimadas, escondidas, destruídas. Artistas e pensadores fugindo ou morrendo. Publicado em:
https://oglobo.globo.com/cultura/artes-visuais/artigo-nao-ha-arte-possivel-para-gente-de-bem-
21810164?utm_source=facebook&utm_medium=social&utm_campaign=compartilhar
49
39
Publicado em: http://www.brasildefato.com.br/node/27484#.UwOpqOAPV8w.facebook, em 19/02/14.
40
Dentre as formas de restrição à liberdade de locomoção previstas no arcabouço jurídico pátrio figura a condução
coercitiva, que consiste em um meio conferido à autoridade para fazer comparecer aquele que injustificadamente
desatendeu a sua intimação, e cuja presença é essencial para o curso da persecução penal. (Ver em:
http://www.ambito-juridico.com.br/site/?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=12490). Conforme prevê o
artigo 218 do Código de Processo Penal Brasileiro, a condução coercitiva só é legitima quando é precedida de uma
intimação prévia. Quando este método é aplicado sem a intimação, configura-se como uma violação do direito de
liberdade da testemunha ou do indiciado.
41
Prisões consideradas ilegais por não terem mandato de busca e apreensão; por serem objeto de delações premiadas,
sem apresentação do ônus da prova, apenas suposições, por isso, consideradas uma inversão da presunção de
inocência.
50
empresários, etc, quando a lei é clara quanto ao sigilo desse tipo de informação em processo
penal.
Observamos que essa forma de conduta é a que tem se tornado regra no alto escalão do
governo atual, no Congresso Nacional, no Judiciário, amparados pela grande mídia, de forma
feroz, desde o golpe que destituiu a presidenta Dilma, e em todo o período posterior. A cada dia,
o país é sobressaltado por denúncias envolvendo parlamentares (Deputados, Senadores) e
Ministros em crimes de corrupção, desvio de dinheiro público, formação de quadrilha,
negociação de propina e compra de votos, que envolve também aquele que ocupa a atual
presidência da República, por crime organizado e obstrução da justiça, duas denúncias muito
mais graves do que a que envolveu a Presidenta Dilma quando de sua retirada da presidência da
república (por crime de responsabilidade ao assinar decretos sem a autorização do Congresso),
enquanto o atual presidente permanece no cargo, apesar dos 24 pedidos de impeachment
apresentados à Câmara Federal de Deputados, sem nunca terem entrado na pauta do Congresso
Nacional.
A conjuntura brasileira descrita com a relação dos fatos sociais aqui apresentados,
associados à grave crise econômica reiteradas vezes alarmada pelo governo e o seu 1º escalão,
reforçadas pela mídia, abrem um perigoso campo para a instalação de forças reacionárias, de
recorte ideologicamente nazifascista, como já destacamos. Em tempo, importante relembramos
do período que representou a queda da República de Weimar e a ascensão do nazismo na
Alemanha, semelhantes ao período que o Brasil atravessa.
Segundo o historiador Robert Gellately (2011), os anos que precederam 1933 foram
difíceis para a Alemanha. O parlamento da República de Weimar estava dividido entre mais de
uma dúzia de partidos políticos e, desde a Grande Depressão em 1929, os chanceleres alemães
dependiam cada vez mais dos poderes emergenciais do presidente para aprovar leis. No final de
1932, quando a crise no país se aprofundou e o governo ficou imobilizado, um grupo de
conservadores influentes disse ao presidente Paul Von Hindenburg que a liderança de Adolf
Hitler seria um modo de lidar com a crise social, econômica e política que se avolumava. Hitler
foi nomeado em 30 de janeiro de 193342.O estabelecimento da ditadura de Hitler e a ascensão do
Partido Nazista na Alemanha ocorreram logo após sua indicação como Chanceler no fim de
janeiro de 1933.
42
GELLATELY, 2011, p.33.
51
Diante de tudo, não podemos desconsiderar os rumos que o país vem tomando e as graves
consequências que foram impingidas ao povo brasileiro. Giorgio Agambem (2012) descreve em
poucas palavras um cenário preocupante não só para o Brasil, mas para mundo.
Enquanto referência teórica de ideologia em Marx, Chauí (1991) e Lukács (2012), bem
como nos referenciais de Arendt (2013), Gellately (2011) e Agambem (2012), buscaremos base
nesse estudo para responder à hipótese de que um tipo de ideologia dominante que tem
aproximação com o que foi a ideologia nazifascista está oculta na racionalidade que sustenta as
práticas do recolhimento, do encarceramento e do homicídio, bem como na visão e nas posturas
da sociedade em relação às crianças e adolescentes em situação de rua, das provenientes das
favelas e periferias da cidade, e dos adolescentes autores de ato infracional, considerando que
essa ideologia se manifesta em momentos de crise, na adoção de determinadas práticas e no
discurso do poder público, dos veículos de comunicação e da própria sociedade. Sobre essa
questão, destacamos casos exemplares: a Resolução 20/2011 da Secretaria Municipal de
Assistência Social, que regulamentou o recolhimento e a internação compulsória de crianças e
adolescentes em situação de rua; a Operação Rio Verão, de retirada de adolescentes negros e
pobres dos transportes coletivos e praias no município do Rio de Janeiro; as denúncias de maus
tratos e tortura nos abrigos e Centrais de Recepção do Poder Público; a superlotação, violência e
tortura nas unidades de internação do DEGASE43 para adolescentes autores de ato infracional; na
violência policial nas favelas; no caso de um adolescente, de 15 anos, espancado e preso por
“justiceiros” a um poste por uma trava de bicicleta no pescoço por ter praticado um assalto 44; nos
Projetos de Lei contrários ao Estatuto da Criança e do Adolescente, e favoráveis à Redução
43
Departamento Geral de Ações Socioeducativas (DEGASE), no RJ.
44
Publicado em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2014/02/menor-preso-poste-diz-policia-que-foi-agredido-
por-15-homens-no-rio.html , acesso em 05/02/14.
52
Outra inspiração inovadora de Florestan, (...) foi perceber que a democracia racial
brasileira, mais que um ideal normativo, tinha se transformado em mito. Mito não no
sentido de falsidade, como alguns pensam, mas no sentido de uma ideologia dominante,
de uma percepção de classe que pensa o seu ideal de conduta como verdade efetiva
(Prefácio de Antônio Cesar Alfredo Guimarães em FERNANDES, 2011, p. 12-13).
45
Publicado em: http://blogs.oglobo.globo.com/gente-boa/post/bar-de-ipanema-se-recusa-servir-crianca-de-rua-isso-
nao-e-gente-e-bicho.html , acesso em 20/10/16.
54
O termo “preto” sempre foi usado pelo branco para designar o negro e o mulato em São
Paulo, mas através de uma imagem estereotipada e sumamente negativa, elaborada
socialmente no passado (FLORESTAN, 2008, p. 25).
46
Publicado em: https://www.brasil247.com/pt/247/favela247/194180/Para-Pez%C3%A3o-se%C2%A0%C3%A9-
jovem-preto-e-pobre-%C3%A9-ladr%C3%A3o.htm , acesso em 28/08/15.
47
Publicado em: http://m.brasil.estadao.com.br/noticias/rio-de-janeiro,menor-praticando-crime-e-problema-de-
policia-nao-social-diz-paes,1691657 , acesso em 31/05/15.
48
Ipanema é um bairro nobre situado na zona sul da cidade do Rio de Janeiro.
49
Publicado em: http://blogs.oglobo.globo.com/gente-boa/post/bar-de-ipanema-se-recusa-servir-crianca-de-rua-isso-
nao-e-gente-e-bicho.html , acesso em 20/10/16.
55
Se vamos à essência da nossa formação, veremos que na realidade nos constituímos para
fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros; mais tarde ouro e diamantes; depois,
algodão, e em seguida café, para o comércio europeu. Nada mais que isto. É com tal
objetivo, voltado para fora do país e sem atenção a considerações que não fossem o
interesse daquele comércio, que se organizarão a sociedade e a economia brasileira.
Tudo se disporá naquele sentido: a estrutura, bem como as atividades do país. Virá o
branco europeu para especular, realizar um negócio; recrutará a mão-de-obra que
precisa: indígenas ou negros importados. Com tais elementos, articulados numa
organização puramente produtora, industrial, se constituirá a colônia brasileira. Este
início, cujo caráter se manterá dominante através de três séculos, se gravará
profundamente nas feições e na vida do país. O “sentido” da evolução brasileira que é o
que estamos aqui indagando, ainda se afirma por aquele caráter inicial da colonização.
Tê-lo em vista é compreender o essencial deste quadro que se apresenta em princípios do
século passado. (PRADO JUNIOR, 2011, p. 31-32)
O Brasil tem uma herança escravocrata que persiste e se manifesta em vários processos
históricos. Esse passado colonial de escravidão é marcado por um dualismo de contradição: de
um lado a apropriação dos bens materiais por uma minoria; por outro lado a expropriação dos
bens materiais pelos donos dos meios de produção.
Nossa escravidão tem permanências enquanto processo no Brasil. Desde o Brasil colônia
subsiste a visão de que os negros escravos e seus descendentes são perigosos, inferiores,
diferentes da elite dominante, e isso deixou marcas até a atualidade. Esse grupo social se
integram aos que conceituo como “sujeitos indesejáveis”, remanescentes dos seres humanos que
foram escravizados, formado principalmente por adolescentes e jovens negros e pobres, os mais
temidos, também reconhecidos como integrantes da “classe perigosa” por, supostamente,
colocarem em perigo a ordem social e a organização da cidade. Para esse grupo, a questão social
passa a ser encarada como questão de polícia, e os conflitos sociais são resolvidos, geralmente, na
delegacia, no encarceramento e até mesmo em sua eliminação. Parece ser mais fácil recolher,
encarcerar e/ou matar do que implantar políticas públicas que respondam, concretamente, às reais
necessidades desses sujeitos.
56
Da segunda metade do século XVI até 1850, período que marca o fim do tráfico negreiro,
foram trazidos de forma compulsória para o Brasil cerca de 3,6 milhões de negros africanos, que
foram escravizados, para trabalhar na lavoura e, posteriormente, também na mineração. A
principal relação era a de exploração do trabalho servil. O escravo era de propriedade do senhor,
privado de direitos, não tinha sequer uma existência civil, ou seja, não era considerado uma
pessoa, mas sim um objeto, e recebia o mesmo tratamento dado aos animais. O senhor de
escravos era como o soberano, e este podia vender, penhorar, alugar ou mesmo matar seu
escravo, e seus direitos também se estendiam aos filhos ainda no ventre de suas escravas.
O racismo se apresenta com um dos maiores problemas sociais no Brasil, que se relaciona
diretamente com as sequelas dos mais de três séculos de vigência do regime escravocrata. A
escravidão dos seres humanos retirados compulsoriamente do continente africano e a divisão
racial entre brancos e negros, acarretou tanto a chaga do racismo, quanto do preconceito e da
discriminação racial. Até os dias de hoje as desigualdades sociais - notadamente as de renda e,
principalmente, a de oportunidades, têm na diferenciação racial sua principal causa.
Racismo também pode ser definido como uma ideologia, ou seja, um conjunto de crenças
e valores que classifica e ordena os indivíduos em função de suas características externas, sua
aparência, sua cor e biotipo. Na escala de valores proporcionada pelo racismo, o modelo branco
europeu assume a posição de destaque, como padrão positivo superior, enquanto que, do outro
lado, o modelo negro africano se fixa como padrão negativo e inferior.
O racismo está incrustrado nas relações sociais em geral, atuando como uma espécie de
filtro social, abrindo oportunidades para uns, fechando portas para outros, a desenhar uma
sociedade extremamente desigual e injusta, cujas bases dessa injustiça social estão enraizadas na
separação das raças e supremacia de uma (branca), em detrimento da outra (negra).
57
Hitler há muito tempo sustentava que a esterilização, ilegal na Alemanha até 1933,
deveria ser usada para restaurar a “pureza racial” da comunidade. Uma das primeiras
medidas amplas introduzidas no Terceiro Reich foi a “Lei para a Prevenção de Prole de
50
A Eugenia é definida como a ciência que se ocupa com o estudo e cultivo de condições que tendem a melhorar as
condições físicas e morais de gerações futuras. Esse saber médico surgiu no século XIX, e quebrou o paradigma da
normalidade, ao afirmar que o diferente é anormal, e por isso ele tem que ser eliminado.
58
Impressiona observar que ao longo da história brasileira sempre houve uma preocupação
com as crianças e adolescentes abandonadas e infratoras, considerando que o melhor caminho era
a sua retirada das ruas através da internação em instituições correcionais, quando foram
implantados políticas ou programas voltados à ressocialização através do trabalho e educação.
51
A lei visava, inicialmente, aqueles que sofriam de variados problemas mentais e físicos, tais como debilidade
mental e congênita, esquizofrenia, cegueira hereditária surdez e epilepsia.
52
Publicado em: http://racismo-cientifico.weebly.com/branqueamento-no-brasil.html, acesso em agosto de 2017.
59
Estamos falando de um período que se inicia no século XVIII, perpassa o século XIX e XX, e
permanece até os dias de hoje do século XXI. Mas, por que até hoje não observamos mudanças
qualitativas na vida da maioria desses sujeitos? Por que não são implantadas, de fato, políticas e
programas que promovam, concretamente, essas crianças e adolescentes? Considero que seja
porque esse grupo social sempre foi considerado “indesejável” para a sociedade brasileira,
especialmente por serem, majoritariamente, negros e pobres. E, por ser indesejáveis, pouco
importa seu destino, futuro, cidadania. Para esse tipo de hipocrisia social, o melhor é a reclusão
dessas pessoas ignoradas e ao mesmo tempo tão temidas pela sociedade. Ao longo desse capítulo,
veremos como isso foi se constituindo no Brasil...
Adotado desde o final do Brasil Império (séc. XIX), a retirada forçada de crianças e
adolescentes das ruas é uma prática predominante até os dias de hoje. Assim, do ponto de vista
histórico, o recolhimento não é um fato novo, assim como o encarceramento dessas crianças e
adolescentes, seja em orfanatos ou nas casas de correção para menores, ou em abrigos e nas
unidades de internação para adolescentes autores de ato infracional de hoje.
Ao longo da história brasileira, a preocupação com as crianças pobres e abandonadas foi
tratada de diversas maneiras e sob a responsabilidade de vários segmentos e instituições. As
relações sociais sejam com a família, a Igreja, ou o Estado, perpetraram valores morais, religiosos
e culturais reproduzindo dominadores e subjugados (Rizzini & Pilotti, 2009). Em se tratando de
políticas públicas, clara é a diferenciação feita entre as crianças das diferentes classes, como se
existisse duas infâncias: políticas para as “crianças” privilegiadas, filhos de “homens de bem”,
geralmente com direitos sociais garantidos; e políticas para os “menores” marginalizados, filhos
da classe subalterna, geralmente com seus direitos negados. Sobre esses últimos vamos nos ater a
atenção!
Os autores Rizzini e Pilotti (2009) observaram que “de mão em mão”, essas crianças
foram passando desde o período colonial, quando estiveram sob a responsabilidade dos jesuítas,
que tinham o papel de evangelizá-las; passando pelas mãos dos senhores de escravos que, na
verdade, consideravam-nas um fardo, pois pouco era a sua produção e muitas morriam devido às
péssimas condições em que viviam; posteriormente passaram pelas mãos das Santas Casas de
Misericórdia, que dos expostos e desvalidos se responsabilizavam, como exemplo, as crianças
deixadas na famosa Roda dos Expostos, geralmente filhos indesejáveis de senhores com suas
escravas, ou de jovens solteiras.
60
Desde o início da colonização, as escolas jesuítas eram poucas e para poucos. O ensino
público só foi instalado, e mesmo assim de forma precária, durante o governo do
Marques de Pombal, na segunda metade do século XVIII. No século XIX, a alternativa
para os filhos dos pobres não seria a educação, mas a sua transformação em cidadãos
uteis e produtivos na lavoura (...). No final do século XIX, o trabalho infantil continua
sendo visto pelas camadas subalternas como “a melhor escola”. (DEL PRIORI, 2008, p.
10)
Mas, foi com a Lei do Ventre Livre (1871) que surge uma grande inquietação: o que fazer
com aquelas crianças fruto do Ventre Livre? Elas não eram órfãs, não eram expostas, nem tinham
cometido crime algum e, sobretudo, deixariam de ter um dono que as tutelassem (ARANTES,
2008) 53. Ou seja, o que fazer com as crianças que eram livres e pobres e que perambulavam pelas
ruas, filhos tanto de escravas como também de imigrantes e que se dirigiam aos centros urbanos
em busca de trabalho? Começava-se a dizer que aquelas crianças pelas ruas estavam abandonadas
material e moralmente, ou seja, abandonadas à própria sorte, podendo assim se tornar possíveis
criminosos. Os depósitos e escolas correcionais para os menores foi uma forma encontrada para
tirá-las ou recolhê-las das ruas. O trabalho também foi tido, para essas crianças, como a salvação
para não se tornarem futuros criminosos (“é melhor trabalhar do que roubar”). O
encaminhamento de crianças para o trabalho era feito mediante uma sentença judicial como
forma de correção preventiva. Segundo Arantes (2008), todo o período que corresponde ao final
do Império ao início da República, a assistência ao menor foi assentada no trabalho infantil como
forma de prevenção. Era uma medida de “proteção” dada pelo Juiz. A assistência foi pensada,
nesse período, como um braço da Justiça.
A categoria “menor abandonado” surge, assim, após o advento da Lei do Ventre Livre,
possibilitada, também, pela discussão do sistema prisional: aquelas crianças seriam os futuros
criminosos, a encher os cárceres já superlotados, caso nada se fizesse para corrigi-las
preventivamente. Vistas, agora, como “menores abandonados material e moralmente”, as
crianças pobres, negras, nas ruas, consideradas órfãos de pais vivos e futuros delinquentes,
deveriam ser encaminhados às instituições preventivas, em regime de internato. O que a
República fez com este público? Recolheu-o das ruas, com o objetivo de “protegê-los” (da
família, da delinquência, da má índole, etc.). De acordo com Arantes (2008), ao se definir a
assistência como braço da Justiça, tratava-se de contornar o que poderia ser considerado um
53
ARANTES, E. A reforma das prisões, a lei do Ventre livre e a emergência no Brasil da categoria “menor
abandonado”. CFP: 2008. Disponível em: <http://www.pol.org.br/pol/export/sites/default/pol/noticias/
noticiaDocumentos/A_reforma_das_prisxes.pdf> . Acesso em Agosto/2010.
61
grande “escândalo jurídico”, ou seja, recolher aos internatos crianças livres, não criminosas e não
órfãs ou expostas, como era o caso permitido até então.
O “menor abandonado” era uma categoria jurídica que implicava nas ações do Juiz de
Menores e do Código de Menores de 1927. A adoção do termo “menor” passa a ser uma
nomenclatura jurídica e social adotada na virada do século XX, classificando a infância pobre,
distinguindo-a de outros segmentos infantis da época.
O menor era visto como uma ameaça social, e o atendimento a ele dispensado pelo
Poder Público tinham por fim corrigi-lo, regenerá-lo, reformulá-lo pela reeducação, a
fim de devolvê-lo ao convívio social desvestido de qualquer vestígio de periculosidade,
cidadão, ordeiro, respeitador da lei, da ordem, da moral e dos bons costumes (COSTA,
1993, p.27).
Crianças e jovens eram caracterizados como “menores” provenientes das periferias das
grandes cidades, filhos de famílias desestruturadas, de pais desempregados, na maioria
migrantes, e sem noções elementares da vida em sociedade. A nova política (...)
pretendia mudar comportamentos não pela reclusão do infrator, mas pela educação em
reclusão (...) para formar um indivíduo para a vida em sociedade. Eles são menores de
idade juridicamente, independentemente da procedência de classe social e são “menores”
quando procedentes de estratos mais baixos da hierarquia socioeconômica (PASSETTI
in DEL PRIORI, 2008, p. 357).
chamar para si as tarefas de educação, saúde e punição para crianças e adolescentes. Por
isso é que desde o tempo dos imigrantes europeus (...) até o dos imigrantes nordestinos,
o Estado nunca deixou de intervir com o objetivo de conter a alegada delinquência
latente das pessoas pobres. Dessa forma, a integração dos indivíduos na sociedade, desde
a infância, passou a ser tarefa do Estado por meio de políticas sociais especiais
destinadas às crianças e adolescentes provenientes de famílias desestruturadas, com o
intuito de reduzir a delinquência e a criminalidade (PASSETTI in Del Priori, 2008, p.
358).
De acordo com Passetti (2008), uma história de internações para crianças e jovens
provenientes das classes sociais mais baixas, caracterizados como abandonados e delinquentes
pelo saber filantrópico privado e governamental (médicos, juízes, promotores, advogados,
assistentes sociais, padres, pastores, etc..), deve ser anotada como parte da história da caridade
com os pobres e a intenção de integrá-los à vida normalizada. Mas também deve ser registrada
como componente da história contemporânea da crueldade.
A categoria “meninos de rua” surge na década de 1980, época de criação do Movimento
Nacional de Meninos e Meninas de Rua (1985), do qual foi constituído por Educadores Sociais
de praticamente todo o Brasil, dentro do movimento social da infância e adolescência. Na busca
de novas abordagens e pedagogia, os princípios da educação popular de Paulo Freire foram
adotados como metodologia no trabalho com os “meninos de rua”, a chamada Educação Social
de Rua. Nesta época, tem início uma grande discussão nacional quanto à histórica e desumana
diferenciação entre “crianças” e “menores”, entendendo que esta era incabível. No bojo das lutas
pelo fim da Ditadura Militar e pela redação de uma nova Constituição Federal, através de
processo Constituinte, tem início uma grande mobilização do movimento social pela mudança na
lei e no atendimento a essas crianças e adolescentes.
Com a aprovação da Constituição Federal de 1988, que traz a relevante contribuição do
movimento social em seu artigo 22754, e em 1990 da Lei 8.069/90 - o Estatuto da Criança e do
Adolescente (ECA), há uma quebra de paradigma não apenas de concepção da criança e do
adolescente, mas também no sentido e aplicação da lei que dispõe sobre a proteção integral à
criança e ao adolescente (art. 1º), e na condição peculiar de pessoas em desenvolvimento (art. 6º).
54
O Artigo 227 da CFB teve o peso de um milhão e meio de assinaturas, a partir da emenda popular denominada
“Criança prioridade nacional”, liderada pelo Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua (MNMMR) e
Pastoral do Menor, que mobilizou a sociedade brasileira de norte a sul. Versa o Artigo 227: É dever da família, da
sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à
alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à
convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação,
exploração, violência, crueldade e opressão.
63
Tal abrangência deste sistema dito de proteção à infância que, praticamente, cobria todo
o universo de crianças e adolescentes pobres, pois que à existência do “menor”
correspondia uma suposta família “desestruturada” - por oposição ao modelo burguês de
família tomado como norma - à qual a criança pobre sempre escapava: seja porque não
tinha família (“abandonada” ou “órfã”); porque a família não podia assumir funções de
proteção (“carente”); porque não podia controlar os excessos da criança (“conduta anti-
social”); porque os comportamentos e envolvimentos da criança ou do adolescente
colocavam em risco sua segurança, da família ou de terceiros (“infratora”); seja porque a
criança era dita portadora de algum desvio ou doença com a qual a família não podia ou
não sabia lidar (“deficiente”, “doente mental”, com “desvios de conduta”); seja
ainda porque, necessitando contribuir para a renda familiar, fazia da rua local de
moradia e trabalho (meninos e meninas “de rua”); ou ainda porque, sem um
ofício e expulsa/evadida da escola ou fugitiva do lar, caminhava ociosa pelas ruas, à
cata de um qualquer expediente (“perambulante”)” 57.
A relação das instituições que esses meninos e meninas foram passando “De mão em
mão” (RIZZINI E PILOTTI, 2009), do período colonial até o ECA (1990), podemos
resumidamente destacar:
1) Asilos de órfãos, abandonados ou desvalidos;
2) Higienistas (Moncorvo Filho, 1901) e filantropos (ações caritativas);
3) Tribunais /Juristas: reformatórios e casas de detenção;
4) Polícia: recolhimento de menores, limpeza das ruas;
5) Patrões: crianças trabalhadoras (meados sec. XIX);
55
ECA, Artigo 2º - Considera-se criança, para efeitos desta lei, a pessoa até 12 anos incompleto, e adolescente
aquela entre 12 e 18 anos incompletos de idade.
56
São seis as medidas socioeducativas para o adolescente autor de ato infracional: (1) Advertência; (2) Obrigação de
reparar o dano; (3) Prestação de serviço à comunidade (PSC); (4) Liberdade Assistida (LA); (5) Semiliberdade
(SL); e (6) Internação.
57
Ver ARANTES, Esther, 2008, já citado e também Rostos de crianças no Brasil. In: PILOTTI, Francisco e
RIZZINI, Irene (Orgs). A Arte de governar crianças. São Paulo: Editora Cortez, 2011. 3ª edição.
64
De acordo com os estudos da época (Lusk apud Rizzini, 1991), a grande maioria das
crianças e adolescentes encontrados nas ruas fazia parte do primeiro perfil (os/as
meninos/as nas ruas). Este grupo era composto por crianças e adolescentes que
trabalhavam nas ruas, como por exemplo, engraxates, vendedores de balas e
malabaristas nos sinais de trânsito. Ali estavam em busca de complementação da renda
familiar, em relação a qual também se sentiam responsáveis. Eram conhecidos como
“trabalhadores de rua”. A maioria possuía residência fixa e retornava para casa
regularmente.
O segundo perfil descrito por Lusk refere-se àqueles que comumente dormiam na rua
(os/as meninos/as de rua). Muitos eram usuários de drogas e pediam dinheiro ou
roubavam para consegui-las. Eram em sua maior parte crianças e adolescentes que
abandonaram ou foram abandonados pela família, gradualmente, e para quem a rua
parecia haver se tornado a principal referência de vida (RIZZINI; CALDEIRA;
RIBEIRO e CARVANO , 2010, p. 18).
Essa diferenciação era considerada necessária para diversos segmentos, sejam eles
acadêmicos, governamentais, ou mesmo da sociedade civil, mas sempre incomodou aos
educadores sociais que faziam parte do movimento social da infância e adolescência e que
trabalhavam cotidianamente com essa garotada, entendendo que independentemente de serem
meninos “de rua” ou “na rua”, ambos passavam pelas mesmas dificuldades, violências e
privações, sejam elas de ordem socioeconômica, racial, cultural e/ou familiar; ambos dividiam o
espaço da rua em busca de melhores condições de vida, local o qual também sofriam uma série
de violações de direitos, inclusive a violência policial. Por isso, ambos, àquela época, pertenciam
ao grupo que foi denominado “crianças e adolescentes em situação de risco social”.
65
O menino que trabalhava nas ruas para contribuir com a renda familiar, que ainda
mantinha vínculo com a família e voltava para casa ao final do dia, ou seja, o “menino na rua”,
não se considerava um “menino de rua”, e às vezes até discriminava-o. Porém, ao permanecerem
algum tempo nessa condição na rua, desconheciam que eram potencialmente candidatos a
migrarem para o segundo perfil, o de “meninos de rua”. O menino na rua quando não conseguia
dinheiro suficiente, ia ficando mais tempo na rua, dormia um, dois, três dias seguidos e voltava
para casa. Isso se repetia até que, aos poucos, iam se acostumando e gostando da rua, pois a rua
pode apresentar muitos perigos, mas tem também muitos atrativos. Eles iam fazendo amizades,
experimentando coisas novas, e o retorno para casa ia se espaçando, até que não voltavam mais,
ou ficavam um bom tempo sem aparecer e rever a família e, aos poucos, iam perdendo o vínculo
familiar.
Já o menino que havia rompido com sua família e/ou comunidade, ou que sai para tentar
na rua outra forma de sobrevivência, ou seja, o “menino de rua” era aquele que tinha a rua como
espaço de moradia, liberdade e sobrevivência. Juntava-se logo a um grupo de meninos, pois
percebe que era perigoso estar sozinho. Faz amizades, conhece novos lugares, pede dinheiro ou
comida, consegue se alimentar melhor do que em casa e, quando lhe era negado, podia furtar para
conseguir se alimentar e se drogar, caso fosse usuário de drogas. Esse menino amadurece rápido
nas ruas, pula etapas, pois muito cedo tem que ser responsável por si próprio. Circulava entre a
rua, os abrigos e, novamente, ia para a rua. Esse era o grupo preferencial no atendimento feito
pelos Educadores Sociais das Organizações Não Governamentais (ONGs), também chamadas de
Organizações da Sociedade Civil, da época, apesar de também observarem os “meninos na rua”
e, se esses expressassem desejo, não lhes era recusado atendimento.
Outro termo também muito utilizado foi o de crianças e adolescentes em situação de
“vulnerabilidade social”, que é um conceito multidimensional que se refere à condição de
indivíduos ou grupos em situação de fragilidade, que os tornam expostos a riscos e a níveis
significativos de desagregação social.
Muitos foram os estudos e pesquisas realizadas, numa tentativa de catalogar ou
enquadrar esse público, dentro de categorias e perfis que muitas vezes não davam conta, ou não
conseguiam englobar todas as circunstâncias que envolviam o fenômeno. Porém, é importante
ressaltar que a persistência em categorizá-las, acaba também por levar a uma homogeneização e
estigmatização e, novamente, promove um distanciamento e uma divisão entre “meninos de rua”
66
e “crianças e adolescentes”, como se aqueles, como já dito, fossem um outro tipo de infância, e
não, simplesmente, crianças e adolescentes como qualquer outra, porém, que naquele momento
de suas vidas o “estar na rua” apresenta uma referência muito importante.
(...) o avanço das pesquisas sobre o tema, vem demonstrando que o processo de
apropriação da rua é incorporado, de forma gradual e progressiva, ao sistema identitário
da criança e do adolescente. Ou seja, qualquer fator, mesmo que extremamente
importante como a situação familiar ou a condição de pobreza, não pode explicar
sozinho a complexidade do fenômeno. O conhecimento da trajetória de vida da criança
ou do adolescente é, portanto, o elemento central que permite compreender a sua relação
com a rua como seu espaço prioritário de vida. (RIZZINI; CALDEIRA; RIBEIRO e
CARVANO , 2010, p. 19).
A categoria “crianças e adolescentes em situação de rua”, surge por volta do ano 2000, a
partir de discussões também nacionais, respeitando o Estatuto da Criança e do Adolescente que
os constitui como sujeitos de direitos. No âmbito interno da Rede Rio Criança58 (RRC), desde a
sua constituição, em meados de 2001, esta categoria foi alvo de muitas discussões e debates.
Pesquisadores do tema, como Ricardo Luccini e Daniel Stocklin (2003), sociólogos suíços, foram
convidados pela Foundation Terre dês hommes para um Seminário da Rede Rio Criança, em
2002, para apresentarem seus estudos sobre esse grupo na Guatemala e na China, nos quais
ressaltaram “que o mais importante a ser levado em consideração é o processo de relacionamento
entre um ator e a rua, entre um ator e sua família, entre um ator e a polícia, entre outros”
(RIZZINI; CALDEIRA; RIBEIRO e CARVANO , 2010, p. 19).
Em Vida nas Ruas, Rizzini et al (2003) já atentavam para o surgimento de uma nova
série de termos que denotam o caráter particular da “situação” em que se encontram essas
crianças e adolescentes, como por exemplo: “crianças em circunstâncias especialmente difíceis,
crianças em situação de rua, crianças em situação de risco ou vulnerabilidade”.
Para a Rede Rio Criança, o fundamental era desmistificar o caráter naturalizado, ou
seja, aparentemente cristalizado, permanente, das categorias “meninos de/na rua”, como se o
estar na rua fizesse parte da natureza daquelas crianças e adolescentes, bem como envolver outros
sujeitos que também tinham a rua, o estar na rua como uma importante passagem em suas vidas.
Era necessário dar movimento, fluidez à categoria, pois a relação com a rua é processual,
58
Rede Rio Criança é uma articulação de ONGs, de referência nacional, que atuam de forma articulada no trabalho e
na defesa dos direitos humanos de crianças e adolescentes em situação de rua.
67
heterogênea, individual, diferenciada, mas, ao mesmo tempo, para cada uma dessas crianças e
adolescentes, em determinado/s momento/s de suas vidas, a rua tinha uma referência muito forte.
O termo “em situação de rua” era usado, mas ainda faltava um conceito que conseguisse
abarcar a complexidade que envolvia esta questão. Depois de muitas discussões, especialmente
entre 2008 e 2009, época de formulação da Política Municipal de Atendimento às Crianças e
Adolescentes em Situação de Rua no RJ59, no âmbito do Grupo de Trabalho constituído no
Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA), de forma paritária,
envolvendo representantes de OGs e ONGs, chegou-se ao seguinte conceito, que é, inclusive,
adotado na referida Política:
Situação de rua é uma complexa relação dinâmica que envolve “casa – rua – abrigo –
rua – projetos sociais / instituições – rua – família / comunidade – rua”, em que a rua, em
diferentes graus, ocupa um lugar de referência predominante e um papel central em suas
vidas.
De acordo com este conceito, os meninos/as que estão em situação de rua não são
apenas os que dormem nas ruas ou os que trabalham nas ruas, mas também aqueles que mesmo
estando ora abrigados ou fazendo parte de projetos sociais, ora em sua família/ comunidade,
reiteradas vezes retornam às ruas, pois esta ainda é uma referência forte ou, para uma grande
parte, é ainda a única alternativa. É um conceito amplo, mas que procura abranger a
complexidade que envolve este fenômeno, entendendo o estar nas ruas como uma violação de
direitos humanos, mas também como um dos reflexos do sistema capitalista na produção de
desigualdades, exclusão, violência e opressão.
Em final de 2014 – início de 2015, um novo conceito é definido para “Crianças e
Adolescentes em Situação de Rua”, elaborado coletivamente, ao longo do processo de construção
das propostas de diretrizes para uma Política Nacional de Atenção às Crianças e Adolescentes em
situação de rua, pelo Comitê Nacional da Rede de Atenção às Cri/Adol em situação de rua 60,
formado, em 2013, por Redes e Instituições de referência nessa temática das 05 regiões do Brasil
(a maior parte integra também a Campanha Nacional Criança Não é de Rua), e 02 Adolescentes.
59
Sobre a Política Municipal de Atendimento às Crianças e Adolescentes em Situação de Rua no RJ será trazido no
VI Capítulo desta tese.
60
Instituições que compõem o Comitê Nacional: Campanha Nacional Criança Não é de Rua, Mov. Nacional de
Meninos/as de Rua, Rede Rio Criança (RJ), Rede Inter-Rua (RS), Rede Amiga da Criança (MA), Projeto Meninos
de Rua (SP), e dois Adolescentes.
68
Devido à abrângência do termo, o grupo optou por definir o conceito e desenvolver também as
Tipificações para “situação de rua”. Importante resslatar que a definição do conceito pelo Comitê
Nacional considerou conceitos anteriores e apresenta proximidade com a definição de população
em situação de rua (adulta) referida na Política Nacional para a População em situação de Rua
(Decreto 7053/2009). De acordo com o documento, o conceito é o seguinte,
A) Situação de trabalho nas ruas: São crianças e adolescentes que frequentam as ruas,
acompanhados ou não por familiares ou responsáveis, para conseguir recursos diversos para
complementar a renda, através do trabalho precarizado. Podendo ou não conciliar a atividade de
trabalho na rua com a escola e cuja convivência familiar e comunitária apesar de fragilizada, não
foi rompida. Geralmente atuam como vendedores ambulantes, artistas de rua, limpadores de para-
brisa de carros, flanelinhas, vigias de carro, catadores de material reciclável, entre outros.
B) Situação de pedir nas ruas: São crianças e adolescentes acompanhados ou não por
familiares ou responsáveis que vão às ruas, abordando a população para pedir dinheiro, comida
ou roupas em locais de grande fluxo de pessoas ou veículos, como praças, terminais rodoviários,
sinais de trânsito, corredores turísticos, nas residências, entre outros.
C) Situação de abuso e exploração sexual nas ruas: São crianças e adolescentes que
ocupam pontos específicos das cidades, identificados como zonas de prostituição, levados por
aliciadores, estimulados por amigos, ou por iniciativa própria, para manter relação sexual com
abusadores frequentes em troca de favores, dinheiro, droga ou comida. Existem também os casos
onde, mesmo fora das zonas de prostituição, crianças ou adolescentes em situação de rua são
69
procurados por abusadores, que se aproveitam da situação de vulnerabilidade das ruas, para
abordá-los e abusá-los em troca de dinheiro, comida, droga, entre outros.
D) Situação de uso abusivo de drogas nas ruas: São crianças e adolescentes que foram
para as ruas motivados pelo uso abusivo de droga, ou ainda, crianças e adolescentes que foram
iniciados ao uso de drogas nas ruas, tornando-se usuários frequentes com o tempo, fazendo com
que a sua permanência nas ruas seja mais prolongada e diretamente relacionada ao uso de drogas.
O conceito mais recente e atual para definir “crianças e adolescentes em situação de rua”
foi elaborado a partir desse último, no âmbito do Grupo de Trabalho Criança e Adolescente em
situação de rua do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente61 (CONANDA),
e posteriormente finalizado, no âmbito da Oficina do Minstério de Desenvolvimento Social
(MDS), que ocorreu nos dias 10 e 11/1/17, com contribuições de várias instituições de diferentes
regiões do Brasil, também de referência nessa temática, aprovado conjuntamente pelo Conselho
Nacional de Assistência Social (CNAS) e pelo Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do
Adolescente (CONANDA), de forma inédita, e publicado através da Resolução Conjunta nº 1
61
Constituído a partir da Resolução 173 do CONANDA, de 08 de abril de 2015, que dispõe sobre a instituição do
Grupo de Trabalho com a finalidade de formular e propor estratégia de articulação de políticas públicas e serviços
para o atendimento, proteção, promoção e defesa dos direitos de crianças e adolescentes em situação de rua no
Brasil (Política Nacional de Atendimento às Cri/Adol em situação de rua). Participam do GT representantes de
Ministérios: Ministério de Desenvolvimento Social, Ministério da Saúde, Ministério da Educação, Secretaria de
Direitos Humanos, CIAMP RUA (Comitê Interministerial População de Rua), e representantes da Sociedade Civil:
Campanha Nacional Criança Não é de Rua (CNER), Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua
(MNMMR), estes 02 Conselheiros do CONANDA; Rede Rio Criança (RJ), Rede Amiga da Criança (MA), Projeto
Meninos de Rua (SP), Rede Inter Rua (RS).
71
CNAS/CONANDA62, de 15/12/16, que segue abaixo e será mais uma vez abordado no capítulo 6
desta tese.
Para fins desta Tese, adoto este último conceito de crianças e adolescentes em situação de
rua (CASR), da Resolução Conjunta nº 1 CNAS/CONANDA, que traz as referências e
atravessamentos da situação de rua de crianças e adolescentes, sob as quais esses sujeitos
perpassam e que, frequentemente, retornam às ruas. Sob esse conceito podemos considerar um
adolescente que passou pela rua e foi para um abrigo, ou que está cumprindo ou cumpriu medida
socioeducativa em unidades para adolescentes autores de ato infracional e que, podem retornar às
ruas.
62
A Resolução Conjunta nº 1 dispõe sobre o conceito e o atendimento de criança e adolescente em situação de rua e
inclui o subitem 4.6, no item 4, do Capítulo III do documento Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento para
Crianças e Adolescentes.
72
Um dia desses fui rever e assistir ao show de um querido amigo, militante e companheiro
de trabalho e lutas – “Totonho e os novos Cabras – Coco Ostentação”, na Praça Tiradentes, Rio
de Janeiro. Antônio Carlos Bezerra, nome artístico Totonho, é um dos maiores Educadores
Sociais / Populares que conhecemos e o mais criativo. Está na lista dos Dinossauros da Educação
Social de Rua do RJ. Havia algum tempo que não o víamos, pois estava morando na Paraíba, sua
terra natal, e atualmente mora em SP. Antes do show, tentando vender balas pelas mesas dos
bares, um grupo de cerca de quatro crianças ia oferecendo sua mercadoria. Indaguei que já era
muito tarde para elas estarem por ali àquela hora da noite (eram mais de 22h00min), e perguntei
o nome e a idade do menorzinho, que me respondeu que se chamava Tiago (nome fictício) e que
tinha oito anos. Ele me disse que vinha quase todas as noites, já estava acostumado, e que depois
voltava pra casa. Não vi nenhuma pessoa maior de idade responsável por aquelas crianças por ali,
mas deveria estar alguém em algum local próximo, ou as crianças (e duas pareciam que já eram
adolescentes), voltariam sozinhas pra casa. Essa mesma cena também acontece na noite de outras
várias áreas da cidade... Trabalho infantil? Sim. Exploração de menores? Talvez. Porém,
podemos estar certos que ali está um exemplo da desigualdade social, fortalecido pela exclusão e
o descarte de um segmento considerável da população do mercado de trabalho e, como uma bola
73
de neve, vai passando de geração em geração. Mais que cultural, como defendido por alguns
autores, esse quadro é principalmente caracterizado pela falta histórica de políticas e
oportunidades concretas de promoção de vida desses sujeitos e suas famílias, associadas à
espoliação do capital. Dentre os marcos de nossa história sobre o fenômeno, devemos considerar
que esta situação começa a se tornar visível com a lei do Ventre Livre e a abolição dos escravos,
como descrito no capítulo anterior.
A partir de 1888, a situação dos negros libertos não foi fácil. Enquanto a preocupação
pelo destino do escravo se mantivera em foco quando se ligava a ele o futuro da lavoura, uma
preocupação apenas enquanto mão-de-obra servil e explorada, com a abolição não se deu
importância ao futuro ou destino para os ex-escravos. De acordo com Florestan Fernandes
(2008), com o final do regime escravocrata no Brasil não houve a preocupação em amparar os
antigos agentes de trabalho escravo de assistência e garantias na transição para o novo sistema de
trabalho livre. Para o autor, essas facetas da situação humana do antigo agente do trabalho
escravo imprimiam à abolição o caráter de uma espoliação extrema e cruel.
Os negros quando libertos e com a vinda dos imigrantes, perderam sua importância como
mão-de-obra para a classe dominante. A abolição não se preocupou com o destino de milhões de
pessoas que ficaram à margem das novas condições de trabalho livre e assalariado, que expulsou
os negros das relações de produção e como agente de trabalho. A preferência da mão-de-obra
nessa nova fase se deu para os brancos e migrantes que chegavam em larga escala e bem mais
preparados.
Perdendo sua importância privilegiada como mão-de-obra exclusiva, ele também perdeu
todo o interesse que possuía para as camadas dominantes. A legislação, os poderes
públicos e os círculos politicamente ativos da sociedade se mantiveram indiferentes e
inertes diante de um drama material e moral que sempre fora claramente reconhecido e
previsto, largando-se o negro no penoso destino que estava em condições de criar por ele
e para ele mesmo (FERNANDES, 2008, p. 32).
74
Não podemos perder de vista que desde a abolição, o negro se viu fora do sistema de
trabalho livre, sendo vítima do desemprego e do desequilíbrio social. A ligação do negro e seus
descendentes com a servidão, a vagabundagem e a criminalidade, permeada pela ideologia
dominante racista que sempre viu o negro como um ser inferior, deixou marcas profundas que se
perduram até os dias atuais.
Para uma maior compreensão sobre a relação capital-trabalho, e de como e porque se foi
formando o “exército dos sujeitos indesejáveis”, importante compreendermos a dinâmica do
modo de produção capitalista, fundado na relação social entre duas classes: a dos proprietários
dos meios de produção, que compram a força de trabalho, e a classe trabalhadora (proletariado),
que vende a sua força de trabalho. Para o trabalhador a sua força de trabalho é considerada valor
de troca; para o capital essa força de trabalho é valor de uso, uso para a produção.
Para o homem, sua relação com a natureza é fundamental, não porque ele permaneça
sendo um ser da natureza, mas, ao contrário, porque ele luta contra ela (...). Como e por qual
meios? Através do trabalho, pelos instrumentos do trabalho e pela organização do trabalho
(Lefebvre, 2009). Segundo Marx, a capacidade de realizar trabalho é uma necessidade humana.
Para que o homem se objetive no mundo é necessário que ele o faça por meio de uma atividade
produtiva, e esta atividade produtiva é o trabalho. Essa é a grande determinação do capital, o
homem deve produzir através do trabalho, sem isto não se tem nenhuma serventia para o capital.
As relações fundamentais de toda sociedade humana são, portanto, as relações de
produção, isto é, os relacionamentos fundamentais dos homens com a natureza e dos homens uns
com os outros durante o trabalho. Os relacionamentos de produção revelam assim à análise três
fatores ou elementos: as condições naturais, as técnicas e a organização e a divisão social do
trabalho. Esses três elementos constituem o que o marxismo denomina de forças produtivas de
uma sociedade determinada (LEFEVBRE, 2009).
Outra questão importante a ser analisada, é a divisão do trabalho e suas implicações. Ao
longo do desenvolvimento histórico, a partir do momento em que se instituiu a divisão do
trabalho, implicou o surgimento da propriedade privada. Os instrumentos e os meios de
produção, ao se diferenciarem, caem em poder de indivíduos ou de grupos. Nessa divisão do
trabalho também se aplica a desigualdade dos trabalhos. Como a diferenciação dos trabalhos
acompanhou a formação da propriedade privada, vimos que, no decorrer do desenvolvimento
histórico, esses dois fenômenos sociais reagiram um com o outro.
76
O trabalho torna-se, nas sociedades de classe, uma atividade da qual a classe detentora
dos modos de produção explora os indivíduos vinculados diretamente à atividade produtiva, ou
seja, a classe trabalhadora. No capitalismo, este processo de trabalho é processo de constituição
de valor. Para Marx, valor é o tempo de trabalho socialmente necessário para se produzir uma
determinada mercadoria. O valor está dividido em valor de uso e valor de troca. Porém, no
capitalismo, não basta somente produzir valor; para que o capital se reproduza constantemente é
indispensável a produção de um mais-valor. Nas sociedades de classe, além de o produtor realizar
um trabalho necessário à sua existência, ele realiza também um trabalho excedente. Este
trabalho excedente, este mais-trabalho, no capitalismo, assume a forma de mais-valia.
Anterior à Marx, Hegel (2011)63 havia se confrontado com questão semelhante que,
àquela época, denominou formação de uma “plebe”. Para o autor, a busca do bem-estar, a
63
HEGEL, F. Enciclopédia das Ciências Filosóficas em compêndio:1830. A Filosofia do Espírito. São Paulo:
Edições Loyola, 2ª edição, 2011.
78
realização das necessidades, é o que nos leva à liberdade. Quanto mais elevada nossas
necessidades, mais elevada nossa produção. E isso nos liberta, diz Hegel, que considera que é por
meio do sistema de necessidades que os indivíduos atingem seus interesses para atingir o
universal. E o sujeito das necessidades precisa do sujeito da produção como sujeito da razão. E
para isso, vai precisar do trabalho. É a dialética da necessidade e da produção – mediada pelo
trabalho. Com isso, segundo Hegel, por meio da cultura prática que é o trabalho, o homem se
realiza.
Com o conjunto de mudanças que ocorreram com a Revolução Industrial, a partir do
século XVIII (1760), que teve como marco principal a substituição do trabalho artesanal pelo
trabalho assalariado e com o uso das máquinas, os trabalhadores perderam o controle do processo
produtivo, uma vez que passaram a trabalhar para um patrão (na qualidade de empregados ou
operários), perdendo a posse da matéria-prima, do produto final e do lucro. Esses trabalhadores
passaram a controlar máquinas que pertenciam aos donos dos meios de produção os quais
passaram a receber todos os lucros. De acordo com Marx, a Revolução Industrial, iniciada na
Grã-Bretanha, integrou o conjunto das chamadas Revoluções Burguesas do século XVIII,
responsáveis pela crise do Antigo Regime (Absolutista, Aristocrático), na passagem do
capitalismo comercial para o industrial.
Com a revolução industrial, Hegel se deparou com um problema: na medida em que a
força do trabalho era substituída pela máquina, parte da população passa a ser sobrante; não tem
mais como vender a sua força de trabalho, e é jogada para fora do sistema de necessidades. É aí
que se dá a “formação de uma plebe”, que, segundo o autor, desce além de um mínimo de
subsistência.
O trabalho, que por isso é ao mesmo tempo mais abstrato, conduz de um lado,
por sua uniformidade, à facilitação do trabalho e ao aumento da produção; de
outro lado, à limitação de uma habilidade única, e assim à dependência mais
incondicionada em relação à conexão social. A habilidade mesma torna-se,
dessa maneira, mecânica e recebe a capacidade de deixar a máquina tomar o
lugar do trabalho humano (HEGEL, 2011, p. 298).
Hegel ao ver essa contradição, tenta contorná-la. Segundo ele, nesse estado de crise, é
fundamental que o Estado intervenha através de políticas com prerrogativas reais de intervenção,
pois, é papel do Estado, dentre outras, garantir que a sociedade continue funcionando e intervir
nas consequências: controlar a desordem, dar assistência às massas. “Uma sociedade que produz
79
esse problema (sobrantes), e não resolve esse problema, é uma sociedade desumana”, diz ele.
Humana ou desumana a sociedade, Hegel e Marx, cada um em seu tempo, já denunciavam, uma
questão que ainda não foi resolvida na atualidade.
Para a escritora Marilena Chauí (1991), o Estado, como imaginava Hegel, não é a
superação das contradições, mas a vitória da uma parte da sociedade sobre outras.
O Estado não é um poder distinto da sociedade, que a ordena e a regula para o interesse
geral definido por ele próprio enquanto poder separado e acima das particularidades dos
interesses de classe. Ele é a preservação dos interesses particulares da classe que domina
a sociedade. Ele exprime na esfera da política as relações de exploração que existem na
esfera econômica (CHAUÍ, 1991, p. 70).
O Estado brasileiro ainda não foi capaz de contornar o problema da “formação de uma
plebe” que, com o passar do tempo, ganhou outras dimensões identificadas como aquelas pessoas
sobrantes, desnecessárias ao modo de produção capitalista.
Marx (1979) também observou que outra parte do exército de reserva só consegue
empregar-se em intervalos irregulares, ou em pontos críticos, fornecendo assim ao capital um
reservatório inesgotável de força de trabalho disponível a um baixo custo, submetendo-se às
exigências do capital. A condição desses trabalhadores desce abaixo do nível normal de trabalho,
e o capital encontra neles uma larga base de exploração. Dessa forma, por ainda apresentar
alguma serventia para a produção capitalista, os produtores dos meios de produção ainda
toleravam o chamado exército industrial de reserva.
Diferentemente da época em que Marx (2011) apontou essa situação (séc. XIX), quando,
no decorrer da acumulação capitalista, realizava-se mais trabalho sem contratar mais operários e,
por outro lado, um capital variável da mesma grandeza realizava mais trabalho com a mesma
força de trabalho e, finalmente, ocupava mais forças inferiores (mulheres e crianças) eliminando
as forças superiores (operários qualificados), obtendo assim maior lucro, de forma inversa, com o
incremento da era tecnológica no Brasil (meados década de 1970), o mercado de trabalho vem se
especializando e exigindo a contratação de profissionais cada vez mais qualificados, restringindo
80
Uma análise do capitalismo atual nos obriga a compreender que as formas vigentes de
valorização do valor trazem embutidos novos mecanismos de trabalho excedente, ao
mesmo tempo em que expulsa da produção uma infinidade de trabalhadores que se
tornam sobrantes, descartáveis e desempregados. E esse processo tem clara
funcionalidade para o capital, uma vez que permite a ampliação do bolsão de
desempregados e reduz ainda mais a remuneração da força de trabalho, em amplitude
global, pela retratação salarial daqueles assalariados que se encontram desempregados.
(ANTUNES, 2013, p. 14).
Para De Giorgi (2006), o processo produtivo do sistema capitalista vem dependendo cada
vez menos da força de trabalho diretamente empregada. A introdução de novas tecnologias
(principalmente informáticas) tem diminuído progressivamente a quantidade de trabalho vivo
necessário à valorização do capital, até reduzi-lo a um mínimo. Essa reestruturação contribui com
a marginalização e exclusão de grande parcela da população dos contextos produtivos, passando
a integrar o “exército da população desempregada, não empregada e subempregada”, ou mesmo
“inempregáveis”. Com isso, grande parte da força de trabalho contemporâneo é caracterizada
pela insegurança e precariedade.
Apesar das crises, o modo de produção capitalista, dessa forma, vai se desenvolvendo e
destruindo, seja a natureza, seja antigas mercadorias através da incorporação de novas (exemplo:
a renovação de tecnologias, como os celulares), seja a destruição de valores, de direitos, da ética,
em nome da manutenção dos privilégios da classe dominante, do lucro, da acumulação
capitalista, do dinheiro.
Marx e Engels (1982) ressaltam a destruição das forças produtivas acumuladas como
ponto central da caracterização da barbárie, em meio a relações de produção que haviam se
esgotado. Em seu livro o “Olho da Barbárie”, Marildo Menegat (2006) destaca que:
(..) e para que esse processo não seja interrompido, é necessário que de
tempos em tempos destruam-se parte destas levando então a sociedade a
momentâneas regressões. A face bárbara do capitalismo não é mais do que
um elemento necessário para a sua continuidade, diferente dos períodos
anteriores, é a primeira vez que a destruição das forças produtivas faz parte
do próprio modo de produção – o que demonstra por si só a irracionalidade
dessa estrutura social (Idem, p.31-32).
E o estado capitalista mostra cada vez mais a sua face bárbara e selvagem nesse processo
acelerado de um modo de produção que só consegue se desenvolver destruindo. Para o Prof. José
Paulo Netto (2010), em A face contemporânea da barbárie,
65
Publicado em: http://pcb.org.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=2117:uma-face-
contemporanea-da-barbarie&catid=43:imperialismo.
83
(...) no Brasil a difusão do medo do caos e da desordem tem sempre servido para detonar
estratégias de neutralização e disciplinamento planejado das massas empobrecidas. (...)
É no campo simbólico e na ação prolongada de inculcação que se desenvolvem relações
de concorrência pelo monopólio do exército legítimo da violência simbólica
(MALAGUTTI BATISTA, 2003, p.21).
(...) a hegemonia conservadora da nossa formação social trabalha a difusão do medo
como mecanismo indutor e justificador de políticas autoritárias de controle social. O
medo torna-se fator de tomadas de posição estratégicas seja no campo econômico,
político ou social. Historicamente este medo vem sendo trabalhado desde a visão
colonizadora da América, na incorporação do modelo colonial escravista e na formação
de uma República que incorpora excluindo, com forte viés autoritário (Idem, p.23).
Esses indivíduos são assujeitados, sistematicamente, pelo Estado com o incentivo e apoio
da mídia e sociedade em geral. As práticas e posturas abusivas, violentas e desumanas
perpetradas pelo governo do Estado e Município do RJ, com o envolvimento de forças policiais,
estão presentes no ato de recolher e internar compulsoriamente crianças e adolescentes nas ruas,
na expulsão de adolescentes, negros e pobres, vindos das favelas e periferias, dos ônibus em
direção às praias, no encarceramento de adolescentes, seja em abrigos, ou nas unidades de
privação de liberdade para aqueles que cometem ato infracional e/ou estão em descumprimento
de medida socioeducativa.
Falar da História da Assistência à Infância no Brasil é remontar um período de
contradições, abusos e discriminação contra crianças e adolescentes, desprovidos de direitos e se
quer de voz. Excluir é ignorar o outro, desconsiderar. Uma pessoa ignorada deixa de existir, se
torna transparente, não é vista, não é ouvida. Segundo a filósofa Viviane Mosé, “no Brasil, a
exclusão se tornou regra. É comum, é natural, se tornou normal excluir o que nos incomoda”. As
ações de governo no atendimento da população empobrecida (mendigos, desempregados, sem-
teto, crianças e adolescentes em situação de rua, etc.), de fato, não têm resultados satisfatórios de
84
das chamadas famílias “desestruturadas”, na década de 1920, que perdura até os dias atuais; pelo
Código de Menores de 1927, que traz a categoria menor abandonado / delinquente; pelo Serviço
de Assistência Social aos Menores (SAM); pela FUNABEM e Política Nacional do Bem Estar do
Menor; pelo Código de Menores de 1979, que traz a categoria de menor em situação irregular;
pelos muitos filhos e filhas de pais encarcerados; dentre outras leis, mecanismos e dispositivos
que em verdade não conseguiram a real promoção desses sujeitos, mas, no mínimo, através de
políticas compensatórias lhes deram as migalhas para continuarem subalternizados. Vamos
encontra-los na atualidade em situações semelhantes, principalmente pelo poder de destruição do
capitalismo. Essas crianças e adolescentes são levados, muitas vezes, a auxiliar na renda familiar
e/ou ficam em casa tomando conta dos irmãos mais novos enquanto a mãe vai trabalhar, com
isso, não conseguem frequentar regularmente a escola, tem baixa escolarização e/ou são
obrigados a abandonar a escola (90% dos adolescentes autores de ato infracional e que cumprem
medida socioeducativa no DEGASE não concluiu o nível fundamental; a maioria dos
adolescentes e jovens em situação de rua só tem no máximo até o 3º ano do ensino fundamental).
Faltam-lhes oportunidades, ou trabalham em funções que exigem força bruta, como o que ocorreu
depois da abolição com os escravos libertos, ou vendem kits de balas e doces nos ônibus e pelos
bares, ou, para um grupo reduzido, são arregimentados pelo tráfico varejista de drogas nas
favelas, ou cometem pequenos furtos.
(...) a conjuntura histórica deu origem a formações sociais que inseriam certos focos de
agravamento dos problemas sociais dos “homens de cor” no próprio âmago da sociedade
se classes. A degradação resultante desse processo facilitava, originalmente, a
acomodação passiva da sociedade inclusiva à “degenerescência” da vida social do negro
e do mulato sob o “regime de liberdade”. Entendia-se, de modo franco, que o
pauperismo, a desorganização da família, o alcoolismo, a vagabundagem, a prostituição,
a criminalidade, etc, constituíam “sintomas naturais” e, por assim dizer, o dividendo
fatal das propensões biológicas, psicológicas, antissociais do “homem de cor”. Os mores
cristãos e os fundamentos legais da ordem social competitiva não neutralizaram nem
suavizaram os efeitos destrutivos dessas avaliações, que desorientaram ainda mais os
negros e os mulatos (...) (FERNANDES, 2008, p. 295-296).
Invisíveis para a maioria da sociedade, esses sujeitos só se tornam visíveis quando entram
em algum tipo de tensão com a sociedade, como quando praticam algum delito, ou ferem a
estética da cidade e o conforto da classe dominante. Este tipo de conformação da sociedade tem
feito com que legitimemos, por atos e/ou omissões, todo um processo de violações de direitos
humanos e sociais, em especial da população negra e empobrecida. As práticas abusivas
86
compete fazer o necessário, com o auxílio ou não de pessoal especializado, para resolver o seu
problema. O modelo da sociedade e o sistema capitalista, geralmente, não são questionados. As
pessoas que estão à margem deste sistema é que precisam adaptar-se às exigências da sociedade
de mercado, bem como devem adquirir os recursos necessários para tornarem-se trabalhadores
produtivos, autônomos e não precisarem mais de ajuda. Esse pensamento liberal tem sido
reproduzido e fortalecido enquanto visão dominante, que deixa obscura a verdadeira causa dessa
situação tão desigual que acomete, principalmente, nas camadas mais pobres da população que é,
mais uma vez, penalizada. Em crítica a esse pensamento, Menegat (2012) considera que,
A ideologia liberal do individualismo abstrato, que diz ser possível por meio do esforço
individual alguém se subtrair a essas condições e prosperar não encontra mais evidências
empíricas (MENEGAT, 2012, p. 26).
De fato, não existem condições abstratas ou materiais para esse grupo social se
desenvolver. Os exemplos que temos acompanhado de superação e ascensão, ao longo de vários
anos de experiência, são apenas de casos exemplares, quando um ou outro menino ou menina que
passou pela vivência das ruas ou pelo sistema socioeducativo conseguiu uma melhor colocação
na vida. A maioria deles resiste, sim, constituiu família, mas está trabalhando na informalidade,
ou está ou passou pelo sistema prisional, ou continua em situação de rua, ou está morto.
Alienados dessa situação, o que prevalece, por estar tão fortemente inculcado na
sociedade capitalista, é esse tipo de pensamento que acredita que “só vence na vida quem quer”.
Mas, num sistema tão desigual e, consequentemente, de oportunidades desiguais, os direitos
também obedecem a essa determinação. O Estado não tem cumprido bem o seu papel em garantir
os direitos fundamentais, a promoção e dignidade a todos os cidadãos, bem como em garantir a
igualdade entre todos, independentemente da cor, raça, etnia, credo, ou gênero. Ao contrário,
apesar das conquistas alcançadas com a Declaração dos Direitos do Homem, a igualdade entre
todos tem sido um direito muito distante, e um privilégio só de alguns. O Capitalismo vai mostrar
que não é possível sermos iguais e felizes ao mesmo tempo. A felicidade de alguns convive com
uma imensa desigualdade de uma maioria.
a particularidade se sobrepõe ao todo. Isso implica dizer que, na lógica dessa forma
social, a propriedade e as coisas têm primazia sobre o Homem (MENEGAT, 2012, p.
141)
A reificação das relações sociais, ou a coisificação dessas relações, termo usado por
Lukács (2012), considera que no modo de produção capitalista os homens são transformados em
coisas e as coisas são transformadas em homens. Essa relação social determinada dos próprios
homens assume para eles a forma “fantasmagórica” de uma relação entre coisas. A reificação das
relações sociais é trazida também pelo autor em relação às mercadorias:
A essência da estrutura da mercadoria (...) se baseia no fato de uma relação entre pessoas
tomar o caráter de uma coisa e, dessa maneira, o de uma “objetividade fantasmagórica”
que, em sua legalidade própria, rigorosa, aparentemente racional e inteiramente fechada,
oculta todo o traço de sua essência fundamental: a relação entre os homens (LUKÁCS,
2012, p. 194).
De acordo com Lukács (2012), sob essa determinação, é absolutamente necessário que a
sociedade aprenda a satisfazer todas as suas necessidades sob a forma de mercadorias.
A coisificação das relações sociais que faz com que o trabalhador seja visto como uma
coisa denominada força de trabalho tem relação direta com a formação do exército dos sujeitos
indesejáveis, pois estes sujeitos, ou a maioria deles, não possuem os atributos necessários para
suprir as necessidades do capital, não conseguem apresentar-se como “proprietários” de sua força
de trabalho diante das novas exigências do mercado.
Os nazistas, sempre ansiosos por generalizar, pensaram ter demonstrado que os judeus
eram “indesejáveis” em toda parte e que todos não judeus eram um antissemita real ou
em potencial. Por que, então, alguém haveria de se importar se eles tratavam esse
problema “radicalmente”? (ARENDT, 2013, p.173).
90
Ao longo dos últimos anos, especialmente com a organização das cidades para a
realização dos Megaeventos, o Brasil e principais capitais do país, mais especificamente o Rio de
Janeiro, apresentou um cenário de violação e retrocessos extremamente graves em relação aos
direitos humanos de crianças e adolescentes, sejam das que estão em situação de rua, como das
provenientes das favelas e periferia, principalmente direcionadas aos jovens negros e pobres. É
importante ressaltar o recorte de cor e de classe, pois, como veremos ao longo desse capítulo,
esse segmento é aquele que tem sofrido, historicamente, as consequências de um sistema seletivo,
racista e excludente.
O Brasil está entre os 10 países que mais mata jovens no mundo, e a maior parte deles são
negros e pobres, das periferias das grandes cidades. Mais de 25 mil jovens entre 15 e 29 anos por
armas de fogo foram mortos em 2014, o que representa um aumento de quase 700% em relação
aos dados de 1980, quando o número de vítimas nessa faixa etária foi pouco mais de 3 mil no
período66.
A superlotação nas unidades de internação do Departamento Geral de Ações
Socioeducativas (DEGASE) tem sido também objeto de várias denúncias. O DEGASE está com
três vezes a sua capacidade de adolescentes cumprindo medida de internação. Em 2010, a média
de entrada eram 10 adolescentes diários; em 2015 e 2016, essa média passou para 25
adolescentes diariamente! Essa realidade já representa um aumento de aproximadamente 400%
nos índices de encarceramento de adolescentes no RJ. É o Estado atravessado por uma ideologia
seletiva e punitiva.
A atuação arbitrária e violenta do Poder Público nas operações de recolhimento e
internação compulsória de crianças e adolescentes em situação de rua também foi objeto de
denúncias ao longo do período. Teve consequências diretas no trabalho desenvolvido pelas
instituições que atuam com esses meninos e meninas, causando um retrocesso e descontinuidade
do atendimento, dificuldades na construção de vínculos, no estabelecimento de elos de confiança,
falta de interesse dos adolescentes em participar de atividades pedagógicas, e mesmo, influência
66
Mapa da violência 2016.
91
O novo internamento configura mais do que qualquer outra coisa como uma tentativa de
definir um espaço de contenção, de traçar um perímetro material ou imaterial em torno
das populações que são “excedentes”, seja a nível global, seja a nível metropolitano, em
relação ao sistema de produção vigente (DE GIORGIO, 2006, pg 28).
Importante ressaltar que a analogia que trago não deve ser entendida como algo
correlato, pois os referenciais atuais, sociais, culturais, políticos, temporais são outros. Se no
período de Hitler as três soluções se deram enquanto fases do nazismo de forma ordenada, no
caso do Brasil, Rio de Janeiro, contemporâneo, essas se misturam, acontecem, inclusive, ao
mesmo tempo, por isso a analogia subtende-as como práticas, porém carregadas por um tipo de
ideologia bem próxima ao que foi a nazifascista.
Hannah Arendt (2013) descreve o oficial alemão Adolf Eichmann, responsável pela
logística do transporte de judeus para os campos de concentração, como um homem que não
reconhecia qualquer culpa no trabalho que realizava enquanto responsável por transportar
milhões de judeus para os campos e concentração onde foram exterminados, durante o Terceiro
Reich. Em seu julgamento, Eichmann enfatizava que não passava de um mero cumpridor de
ordens e, como tal, jamais poderia ser punido por realizar com eficiência as funções a ele
designadas pelo regime nazista. Daí o conceito “banalidade do mal”, um tipo de banalização da
violência, do ato que causou mal a terceiros e, aquele que comete a agressão, a violência, por
cumprir ordens de um superior, não se sente responsável pelas consequências de seus atos. Esse
tipo de “banalização do mal” observamos em muitos dos agentes de segurança do município e do
estado do Rio de Janeiro, ou seja, guarda municipal, policiais militares e civis nas ruas da cidade,
nas UPPs, quando de suas incursões nas favelas, violam direitos, reprimem, encarceram e
também matam. Assim como, nos agentes no sistema socioeducativo e prisional, que tratam com
violência, desprezo e desumanidade aquelas pessoas, ali encarceradas, considerando que estão
cumprindo seu dever, cumprindo ordens, junto àqueles considerados “indesejáveis” e, por isso,
merecedores do seu destino. Também podemos observar esse tipo de entendimento/compreensão
no Juiz que determina a internação (prisão) de um adolescente numa unidade superlotada, por um
tipo de ato infracional que poderia ser cumprido em regime em meio aberto 69. Esses são
exemplos aos quais podemos considerar que pode estar embutida a banalidade do mal de Arendt.
69
São consideradas medidas em meio aberto: Liberdade Assistida, Semi Liberdade, Prestação de Serviço à
Comunidade.
93
“Havia 15 mil pessoas paradas lá, com centenas de guardas à frente – por que vocês não
se revoltaram, não partiram para o ataque?”, elaborava ainda mais essa questão, mesmo
que insignificante. Mas, a triste verdade é que ela era tomada erroneamente, pois
nenhum grupo ou indivíduo não judeu se comportou de outra forma. Dezesseis anos
antes, ainda sob o impacto dos acontecimentos, David Rosset, ex prisioneiro de
Buchenwald, descrevia o que sabemos ter acontecido em todos os campos de
concentração: “o triunfo das SS exige que a vítima torturada permita ser levada à
ratoeira sem protestar, que ela renuncie e se abandone a ponto de deixar de afirmar sua
identidade. E não é por nada. Não é gratuitamente, nem por mero sadismo, que os
homens da SS desejam sua derrota. Eles sabem que o sistema que consegue destruir suas
vítimas antes que elas subam ao cadafalso... é incomparavelmente melhor para manter
todo um povo em escravidão. Em submissão. Nada é mais terrível do que essas
procissões de seres humanos marchando como fantoches para a morte” (Les Jours de
notre mort, 1947) (ARENDT, 2013, p. 22).
o que afetava as cabeças desses homens que tinham se transformado em assassinos era
simplesmente a ideia de estar envolvido em algo histórico, grandioso, único, o que,
portanto, deve ser difícil aguentar o trabalho exigido. Isso era importante, porque os
assassinos não eram sádicos ou criminosos por natureza; ao contrário, foi feito um
esforço sistemático para afastar todos aqueles que sentiam prazer físico com o que
faziam (ARENDT, 2013, p. 121).
70
REGO, Caminhos da Desumanização: Análises e Imbricamentos Conceituais na Tradição e na História Ocidental,
Universidade de Brasília, 2014. Publicado em: http://www.repositorio.unb.br/bitstream/10482/17549/1/2014
_PatriqueLamounierRego.pdf
94
Nos campos, assim como no sistema socioeducativo foi retirada a identidade das
pessoas, que passam a serem identificadas por números. Aí está mais uma prática análoga, que
carrega em si uma intencionalidade não casual, mas planejada de anular a identidade e dignidade
do outro a fim de desqualifica-los, fazê-los se sentir sem referência, como nada, ninguém. Essa
violência contra o ser, que também se dá na expulsão e extermínio dos judeus da Alemanha, é
análogo ao recolhimento ou expulsão das crianças e adolescentes em situação de rua dos espaços
públicos e do extermínio da juventude negra e pobre, todas passaram por um processo de
desumanização do outro.
Saber que tipo de ideologia permeia tais práticas é determinante para compreendermos a
visão de mundo e das relações socialmente produzidas, espécie de ilusão exterior que esconde
uma essência. A ideologia pode ser compreendida como o processo material de produção de
ideias, crenças, valores na vida social, que simbolizam a legitimação de interesses de um grupo
ou classe específico, de um poder social dominante. As ideias da classe dominante são, em cada
época, as ideias dominantes. A classe dominante detém os meios de produção material, os
dispositivos culturais, e esses são mecanismo de dominação. Dessa forma, se mantém o poder
dominante. De acordo com Marx (1979),
(...) até o presente os homens sempre fizeram falsas representações sobre si mesmos.
(…) Os produtos de sua cabeça acabaram por se impor à sua própria cabeça (MARX,
1979, p. 17)71.
Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência
(Idem, p. 37).
Em relação aos sujeitos indesejáveis tratados nesta tese, observamos que desde a Lei do
Ventre livre e Abolição da escravatura, foi-se construindo esse ideário no Brasil, foi se
71
MARX, Karl e Friedrich Engels. A ideologia alemã. 2a ed. São Paulo: Livraria Editora Ciências Humanas, 1979.
95
O Estado não é um poder distinto da sociedade, que a ordena e regula para o interesse
geral definido por ele próprio enquanto poder separado e acima das particularidades da
classe que domina a sociedade. Ele exprime na esfera da política as relações de
exploração que existem na esfera econômica. (...) o Estado é a expressão política da
sociedade civil enquanto dividida em classes. Não é, como imaginava Hegel, a
superação das contradições, mas a vitória de uma parte da sociedade sobre as outras
(CHAUÍ, 1991, p. 70).
Nesse contexto, é esse o Estado que, atendendo aos anseios do poder dominante, se utiliza
dos aparelhos coercitivos para reprimir, recolher, encarcerar e, muitas vezes, eliminar o grupo
social denominado “os indesejáveis”.
Períodos da história brasileira, como a escravatura e ditadura militar, em que pessoas que
se encontravam em situação de mendicância, ou outras formas consideradas “suspeitas e
perigosas”, eram criminalizadas pelo simples fato de estarem nas ruas, o Estado, fazendo uso da
violência policial, em nome da proteção violava direitos.
96
O Rio de Janeiro, por haver tido uma grande população de escravos, desde
1830, organizou sua polícia com o objetivo de manter e garantir a ordem, o
que quer dizer reprimir os negros, principalmente. Em meados do século
XIX, esse controle passou a incidir também sobre todos aqueles que um
decreto de 1861 chamou de "mundo da desordem": expressão que, nos
documentos oficiais da época, compreendia os escravos, ex-escravos,
vendedores, barqueiros, diaristas que iam de um emprego a outro, assim
como uma série de outros segmentos sociais, percebidos pelas elites como
suspeitos e, portanto, perigosos (COIMBRA, 2010)72.
72
COIMBRA, Cecília. Prendam os suspeitos de sempre. Artigo publicado no site do CRP SP. Disponível em:
<http://www.crpsp.org.br/portal/comunicacao/cadernos_tematicos/1/frames/fr_justica_cecilia.aspx> . Acesso em
27/10/2010.
73
Coordena, na Universidade Federal Fluminense (UFF), Pesquisa sobre a estrutura repressiva dentro das
Universidades e contra os Movimentos Sociais, com o Golpe de 1964, no Brasil. Considerações feita na Palestra
“Desaparecidos e Desterrados”, no IV Congresso Latino Americano de Direito Penal e Criminologia, em 29 e
30/10/15.
97
(...) os nazistas afirmavam se sentir ofendidos pela vida marginal, e em 1933 fizeram
manifestações para afastar das ruas prostitutas, cafetões e aborteiros. Eles ameaçaram
todos os que não trabalhavam em empregos regulares, e ao longo do verão várias
autoridades se lançaram contra “ciganos, “preguiçosos” e vagabundos por “perturbarem
a população”. Em meados de setembro de 1933, os nazistas ordenaram uma operação
nacional de busca e detenção para acabar com o que chamaram de “praga de mendigos”
nas ruas (GELLATELY, 2011, p. 157).
Nossa referência nesse capítulo será feita ao longo de um período de 15 anos (2001 -
2016), porém com foco no período compreendido entre 2011 a 2016, quando foi
institucionalizado o recolhimento e a internação compulsória na cidade do Rio de Janeiro, a partir
da Resolução 20 da Secretaria Municipal de Assistência Social74 - o Protocolo do Serviço
Especializado em Abordagem Social, época em que a cidade começa a se organizar para a
realização dos Megaeventos (Copa do Mundo e Olimpíadas). Abordaremos 02 grupos sociais e
períodos distintos. 1º grupo – crianças e adolescentes em situação de rua, objeto das operações de
recolhimento no período de 2001 a 2016; 2º grupo – crianças e adolescentes negros e pobres,
moradores de favelas da zona norte e periferia da cidade do Rio, no período de implementação da
Operação Rio Verão, entre 2014 e 2016.
“(...) por um lado, o estudo das técnicas políticas (como a ciência do policiamento) com
as quais o Estado assume e integra em sua esfera o cuidado da vida natural dos
74
Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social desde 2012 a atual.
98
indivíduos; por outro, o estudo das tecnologias do eu, através das quais se realiza o
processo de subjetivação que leva o indivíduo a vincular-se à própria identidade e,
conjuntamente, a um poder de controle extremo” (AGAMBEN, 2012, p. 13).
A escritora Eliane Brum traduz muito bem o que destacamos nesse capítulo, no seu artigo
“ECA do B75”, publicado na coluna opinião do Jornal El País, no dia 28 de setembro de 2015, e
discorre sobre a morte matada de 06 crianças pela polícia militar em incursões nas favelas, e do
caso da retirada de adolescentes dos ônibus indo para as praias da zona sul do Rio. O ECA do B é
uma analogia às avessas do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). No decorrer desse
capítulo, iremos incorporando as seis Leis definidas pela autora, e abaixo destacamos a
introdução do artigo.
ECA do B
As crianças negras e pobres do Brasil só são achadas por bala perdida porque não sabem
ler o verdadeiro Estatuto da Criança e do Adolescente
Eliane Brum
75
Publicado em: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/09/28/opinion/1443448187_784466.html .
99
76
Neste caso, o entrevistado está fazendo uma referência ao Instituto Padre Severino, porta de entrada, uma unidade
de internação para adolescentes infratores no Rio de Janeiro. Atualmente, esta unidade chama-se Dom Bosco.
100
R – É um negócio muito ruim, muito triste. Eu sentia assim uma coisa que
eu queria que isso nunca mais vai acontecer na minha vida, uma tragédia
dessa77.
Uma cidade localizada entre o mar e a montanha, visitada por pessoas do mundo inteiro,
tão bela que é chamada “Maravilhosa”. Porém, por trás do véu que a encobre vislumbram-se
muitas mazelas, violência e opressão. Possuidora de uma das maiores desigualdades sociais do
mundo78, que convivem lado a lado, o Rio de Janeiro desnuda-se e mostra que não é tão
maravilhoso assim.
O Rio de Janeiro tem um histórico de práticas de controle e repressão contra a população
considerada “perigosa”, caracterizada pela expulsão dessas pessoas, principalmente crianças e
adolescentes em situação de rua, dos espaços urbanos considerados territórios nobres - áreas do
Centro e Zona Sul da cidade. Esse histórico de expulsões, que nessa tese identifico nas operações
de recolhimento da população em situação de rua, a Operação Rio Verão e Operações Presente,
realizadas o primeiro pelo Governo Municipal, e as duas últimas pelo Governo Estadual em
parceria com o Municipal do RJ, com a participação de agentes de segurança (polícia militar e
guarda municipal), serão descritos ao longo desse subcapítulo. Mas, cabe destacar que, apesar da
prática de expulsar as pessoas consideradas “perigosas”, ou “indesejáveis”, fazerem parte do
histórico da cidade do Rio de Janeiro, faço um recorte a partir de 2001 até 2016, destacando,
principalmente, o período que começa em 2011, já com a preparação da cidade do Rio de Janeiro
77
Transcrição de Entrevista feita com o adolescente R., 15 anos, que está em situação de rua há alguns anos, e é
atendido por uma das Instituições que integram a Rede Rio Criança.
78
Um novo relatório da ONG britânica Oxfam a respeito da desigualdade social no Brasil mostra que os seis
brasileiros mais ricos concentram a mesma riqueza que os 100 milhões de brasileiros mais pobres. Os dados estão
no relatório A Distância Que Nos Une, lançado no dia 25/09/17, pela Oxfam Brasil.
A conclusão tem origem em um cálculo feito pela própria ONG, que compara os dados do informe Global Wealth
Databook 2016, elaborado pelo banco suíço Credit Suisse, e a lista das pessoas mais ricas do mundo produzida
pela revista Forbes. Segundo a Forbes, Jorge Paulo Lemann (AB Inbev), Joseph Safra (Banco Safra), Marcel
Hermmann Telles (AB Inbev), Carlos Alberto Sicupira (AB Inbev), Eduardo Saverin (Facebook) e Ermirio Pereira
de Moraes (Grupo Votorantim) têm, juntos, uma fortuna acumulada de 88,8 bilhões de dólares, equivalente a 277
bilhões de reais atualmente. Relatório também mostrou que os 5% mais ricos detêm a mesma fatia de renda que os
demais 95% da população. A Oxfam lembra em seu relatório que, ao longo das últimas décadas, o Brasil conseguiu
elevar a base da pirâmide social, retirando milhões da pobreza, mas que os níveis de desigualdade ainda são
alarmantes. “Apesar de avanços, nosso país não conseguiu sair da lista dos países mais desiguais do mundo. O
ritmo tem sido muito lento e mais de 16 milhões de brasileiros ainda vivem abaixo da linha da pobreza”, explica
Katia Maia, diretora-executiva da ONG. Publicado em: https://www.cartacapital.com.br/economia/seis-brasileiros-
tem-a-mesma-riqueza-que-os-100-milhoes-mais-pobres.
101
79
A expulsão desse 2º grupo social (adolescentes negros e pobres, moradores de favela e periferia) das áreas nobres
da cidade do RJ iremos analisar no período compreendido entre 2014 a 2016, com a implantação da chamada
Operação Rio Verão.
80
Publicado em: http://www.brasil247.com/pt/247/favela247/194180/para-pez%c3%a3o-se%c2%a0%c3%a9-jovem-
preto-e-pobre-%c3%a9-ladr%c3%a3o.htm
102
práticas que, em sua emergência em dar respostas à sociedade, muitas vezes reproduzem o que a
história já comprovou que não traz resultado algum de promoção na vida dessas pessoas: o
recolhimento arbitrário e violento, de viés higienista, de crianças e adolescentes em situação de
rua.
Importante destacar as contradições e diferenças de concepção entre dois termos
antagônicos, empregados no desenvolvimento do trabalho de abordagem social junto às crianças
e adolescentes em situação de rua, quando realizado por segmentos distintos, Governo e
Sociedade Civil, porém, de acordo com o segmento a que se pertença, pretendem significar a
mesma ação: Acolhimento81 X Recolhimento82.
Designado como “acolhimento” pelo Governo, por entenderem que as ações de retirada
da população das ruas é uma forma de proteção e garantia de direitos dessas pessoas, mesmo que
em algumas dessas ações sejam necessárias o uso da força policial, para, segundo o Governo,
salvaguardá-las do perigo a que estão expostos nas ruas, encaminhando-as para as chamadas
Centrais de Recepção e posterior para abrigos. E, designado como “recolhimento” pela sociedade
civil, por entenderem que as ações de retirada forçada da população das ruas, são ações que tem
por objetivo tirar essas pessoas de circulação, limpar o espaço urbano, no sentido de ser uma ação
arbitrária e truculenta impetrada pelo Governo do RJ (Municipal e/ou Estadual), geralmente
acompanhada por forte aparato policial, junto à população que se encontra nas ruas.
Cecília Coimbra (2001) destaca a contradição existente na ação de “acolher” feita com a
presença da polícia:
(...) Entretanto o trabalho desses policiais, desde sua criação no século XIX, é o de
controlar as desordens, os tumultos urbanos e a criminalidade. Pesquisa realizada por
Bretas (1997), (...) no período de 1907 a 1930, constatou a preocupação com
vagabundos, alcoólatras, estrangeiros, mendigos e população pobre em geral,
considerados os principais problemas da cidade. A criminalidade ligada à miséria
também se manifesta nessa situação, pois as teorias racistas, eugênicas e higienistas
condicionam fortemente os estudos criminológicos da época, especialmente quando se
identifica com os “tipos de comportamento ameaçador” encontrados na cidade
(COIMBRA, 2001, p.103).
(...) Segundo ainda Bretas (1997), (...) as principais preocupações da polícia, na primeira
década dos novecentos, é marcada pelo controle sobre “a vadiagem e os menores
abandonados” (Idem, p.103-104).
81
Acolhimento: No Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa, o termo acolhimento está relacionado ao “ato ou
efeito de acolher; recepção, atenção, consideração, refúgio, abrigo, agasalho”.
82
Recolhimento: No Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa, o termo recolhimento está relacionado ao “ato ou
efeito de recolher, tirar de circulação, local onde se recolhe alguém ou algo.
103
Observa-se a permanência, até os dias de hoje, dessa lógica na atuação policial junto à
população em situação de rua, destacando crianças e adolescentes, por isso, avaliamos como
contraditório designar por “acolhimento” uma ação com a presença de policiais.
Nesse sentido, considero que o termo correto a ser utilizado seja o de “recolhimento”, que
defino como as ações do poder público de retirada compulsória, arbitrária e violenta da
população em situação de rua, em especial, crianças e adolescentes, com a participação da
polícia e/ou guarda municipal (GATTO, pág.64, 2011)83. Na verdade é uma resposta do Estado
aos anseios de uma sociedade que quer vê-los longe de sua vista, de suas praças, calçadas e
avenidas. É uma resposta que tem sido dada ao longo do tempo aos clamores da sociedade por
segurança, lei e ordem na cidade, porém sem resultados concretos de promoção na vida dessas
pessoas que são recolhidas.
(...) recolhimento pra mim virou uma rotina. A minha visão, vou falar como menina de
rua naquele momento, para mim era muito chato, era um incômodo, porque eles
pegavam e levavam a gente para o abrigo. Se eu quisesse um abrigo eu procurava, se
quisesse estar em casa, eu estaria em casa. E eram muito agressivos, batiam na gente na
Kombi. Então, polícia e recolhimento era o inimigo número 01. Da forma que eles
pegavam... (...) “Entram todos na Kombi e não me façam correr. Se me fizerem correr,
eu vou enfiar a porrada!”. Eu me sentia usada, abusada. Eu me sentia... era como se
84
fosse uma pessoa me estuprando... .
O panorama político partidário na gestão, seja municipal, estadual ou federal, tem relação
direta com os interesses, as escolhas políticas e ideológicas que se faz na priorização de políticas
públicas, planos e ações implementadas pelas instâncias de poder. Em relação à população em
situação de rua, há muita negligência e falta de interesse político por parte das 03 instâncias
quando da implementação de políticas públicas que realmente respondam às necessidades desse
público, que com certeza não é “porrada” e encarceramento!
Não existem dados quantitativos confiáveis, pois ao longo desse período, as metodologias
de pesquisa aplicadas foram inadequadas. Os levantamentos que foram feitos de 2001 a 2017,
segue abaixo:
83
GATTO, Márcia. Dissertação de Mestrado “O outro lado de uma política de governo na reprodução e
perpetuação de desumanidades; o recolhimento de crianças e adolescentes em situação de rua na cidade do RJ”,
Programa de Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH), UERJ, 2012.
84
Parte da entrevista transcrita de Aline Travassos, à época (2011) com 21 anos. Tem um histórico de 11 anos em
situação de rua (dos 07 aos 18 anos), passou por vários abrigos e Instituições. Em 2011 foi contratada pela
Associação Amar como Auxiliar de Educação, e conseguiu bolsa para estudar na Faculdade de Direito.
104
85
A primeira parte deste subcapítulo tem base em minha dissertação de Mestrado “O outro lado de uma política de
governo na reprodução e perpetuação de desumanidades; o recolhimento de crianças e adolescentes em situação
de rua na cidade do RJ”, Programa de Políticas Públicas e Formação Humana (PPFH), UERJ, 2012, atualizada no
período posterior à sua defesa.
86
A Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social – SMDS implementou em setembro de 2015 o “Plano Verão”,
como forma de acompanhar, ou dar retaguarda para a Operação Verão. O Plano verão contaria com o plantão de
profissionais da assistência social em tendas espalhadas nas praias do Rio de Janeiro. Em uma reunião convocada
pelo Conselho Regional de Serviço Social do Rio de Janeiro (realizada em outubro de 2015) para tratar sobre a
atuação dos assistentes sociais, houve o relato de que na primeira ação realizada no fim de semana houve o
recolhimento de 38 crianças e adolescentes, dos quais a maioria era adolescente. Dos 38, nenhum tinha motivo para
ser recolhido pela PM. Apenas quatro possuía cadastro de atendimento na rede socioassistencial.
87
Operações Verão, executadas pelo aparelho do Estado, principalmente Polícia Militar, em parceria com a Guarda
Municipal do Rio, adotadas a partir de 2014 (?), no período do verão (ou mesmo entre meados da primavera e
verão).
88
PDT – Partido Democrático Trabalhista.
106
do Rio no período de 1993 a 1996), quando já havia migrado para o PFL89, um partido que
substituiu o PDS90, anteriormente (até 1980) denominado Arena91, que foi, notoriamente, um
partido de direita que apoiou o Golpe Militar de 1964, responsável pela implantação da Ditadura
Militar no Brasil. O PFL foi um partido também reconhecido por abrigar os chamados “coronéis”
(derivação do coronelismo, que foi um sistema de poder político da velha República concentrado
nas mãos de um poderoso local). No meio do mandato, César Maia migrou para o PTB92 e, em
2005, foi para o DEM93, partido que substituiu o PFL, o qual permanece até hoje. Eduardo Paes
começou sua carreira política como subprefeito da Barra da Tijuca, na primeira gestão de César
Maia, permanecendo entre 1993 – 1996, quando foi eleito Vereador pelo PFL. Em 1998 foi eleito
Deputado Federal e, no ano seguinte, migrou para o PTB. Com a segunda eleição de César Maia,
em 2000, foi nomeado Secretário Municipal de Meio Ambiente e, em 2001, retorna ao PFL.
Reeleito Deputado Federal, ingressa no PSDB94 em 2002, e seu mandato tem destaque por uma
ferrenha campanha contra o então Presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Em 2007, migra para o
PMDB95, apoiado por Sérgio Cabral para concorrer à Prefeitura do Rio, passando então a apoiar o
Presidente Lula96. Prefeito eleito para gestão 2009 - 2012 concentrou sua atuação no chamado
“Choque de Ordem97”, sua principal bandeira, quando criou a Secretaria Municipal de Ordem
89
PFL – Partido da Frente Liberal.
90
PDS – Partido Democrático Social.
91
ARENA – Aliança Renovadora Nacional.
92
PTB – Partido Trabalhista Brasileiro.
93
DEM – Abreviação de Democratas, partido que substituiu o PFL.
94
PSDB – Partido da Social Democracia Brasileira.
95
PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro.
96
Importante ressaltar que o PMDB foi um partido organizado em fins de 1965 (àquela época denominado MDB),
que abrigou os opositores ao regime militar e foi base para a constituição de vários outros partidos políticos de
esquerda. Ainda é um partido hegemônico, no entanto, perdeu muitos de seus ideais partidários originais,
concentrando uma elite conservadora e de direita.
97
Choque de Ordem - Um fim a desordem urbana. A desordem urbana é o grande catalisador da sensação de
insegurança pública e a geradora das condições propiciadoras à prática de crimes, de forma geral. Como uma coisa
leva a outra, essas situações banem as pessoas e os bons princípios das ruas, contribuindo para a degeneração,
desocupação desses logradouros e a redução das atividades econômicas. Com o objetivo de pôr um fim à desordem
urbana, combater os pequenos delitos nos principais corredores, contribuir decisivamente para a melhoria da
qualidade de vida em nossa Cidade, foi criada a Operação Choque de Ordem. São operações realizadas pela recém
criada Secretaria de Ordem Pública, que em um ano de existência vem conseguindo devolver à ordem à cidade.
107
Pública. Reeleito em 1º turno nas eleições de 2012, também com apoio do PMDB, concentra sua
2ª gestão (2013 – 2016) na preparação da cidade do Rio de Janeiro para os Megaeventos (Copa
do Mundo, 2014, e Olimpíadas 2016), com o comprometimento de deixar um legado para a
cidade. Muitas obras e melhorias, sim, foram feitas, mas à custa de muita exclusão, remoção,
violência, encarceramento e morte, como serão abordados ao longo desse capítulo.
Que tipo de racionalidade está presente quando o Estado define, e a sociedade naturaliza,
quem pode e quem não pode ocupar espaços urbanos e circular em determinadas áreas da cidade?
Quem define quem serão os primeiros a serem parados em blitz nas ruas, nas comunidades, ou
em transportes coletivos? Por que um determinado estereótipo é considerado perigoso?
No início dos anos 1990, tínhamos um grupo de meninos/as de rua, chamado “Núcleo de
base” da Comissão Municipal do Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua. O Núcleo
era formado por 05 adolescentes: Jeovana, Ana Cláudia, Bilu, Baiano e Paulo César, esses dois
últimos moravam em um tipo de casa lar chamada “Casa e CIA”, em Copacabana, uma parceria
público-privada. Lembro-me que um dia organizamos um churrasco na casa da minha mãe, no
Meier. Divertimo-nos muito e, ao final, Eu e Futuro, demos para eles o dinheiro da passagem e os
levamos ao ponto do ônibus. Baiano e Paulo César pegariam o 455 (Meier – Copacabana) no
ponto final. Assim que os dois entraram no ônibus (vazio), não passaram na roleta, preferiram
ficar no último banco. Logo percebemos que aquela era uma estratégia do “calote”, ou seja,
sairiam fugidos pela porta de trás sem pagar a passagem. Educadores que somos, não poderíamos
deixar que corressem riscos ainda maiores, pois já bastava os seus “estereótipos”. Primeiro
mandamos que retirassem o boné e o cordão! Depois, que pagassem a passagem e sentassem na
frente. Era uma tentativa de ao menos preservá-los de uma possível blitz. A retirada / expulsão de
supostos criminosos de coletivos como forma de prevenção, ou seja, de adolescentes negros e
pobres, já era uma prática da polícia militar naquele tempo. Esse foi apenas um exemplo e, como
será apresentado nesse capítulo, veremos como essa mesma prática se recrudesceu com a
chamada Operação Verão, na cidade do Rio de Janeiro, a partir de 2014.
trabalho mais sistemático nas ruas com os meninos devido à falta de financiamento para essa área
de atendimento, muitas tendo que reduzir o número de profissionais, o que refletia na qualidade
de suas ações. Pelo distanciamento entre as ONGs e inexistência de um trabalho integrado e
complementar, havia uma sobreposição de ações entre elas.
A Rede Rio Criança (RRC) surgiu nesse cenário, em meados de 2001, com o apoio da
Fondation Terre dês hommes (Tdh – Lausane/Suiça), como uma possibilidade real de intervenção
nesse quadro, através da proposta de articulação de um grupo de instituições que, a partir do
fortalecimento da abordagem de rua, visava a realização de um trabalho integrado e
complementar entre seus membros, para otimizar o atendimento às crianças e adolescentes em
situação de rua na cidade do RJ. A luta e pressão política também eram e sempre foram
entendidas como um elemento fundamental no âmbito da RRC, pela formulação e implementação
de políticas públicas eficazes junto a esse público. Essa proposta de ação conjunta foi muito bem
recebida pelo grupo de instituições, inicialmente formado por 13102 (10 ONGs, 02 OGs e o
CMDCA), pois garantiria uma revitalização do trabalho nas ruas e força política.
4.1.2.1 2002
Benedita da Silva, Vice Governadora do RJ, do Partido dos Trabalhadores (PT), com a
renúncia de Anthony Garotinho (PSB) para concorrer à Presidência da República, assume o
governo do Estado do Rio de Janeiro em abril de 2002. Cesar Maia era o então Prefeito da cidade
do Rio. Observamos um crescimento considerável de crianças e adolescentes nas ruas, quando
era estimada a presença de cerca de 2.000 à 3.000 delas nas ruas da cidade do Rio de Janeiro,
àquela época. Enquanto prática de enfrentamento à população em situação de rua, o recolhimento
de crianças e adolescentes era feito pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social
(SMDS), em parceria com a Fundação da Infância e Adolescência (FIA) e o Juizado da Infância e
Juventude (JIJ). FIA e SMDS desenvolviam em parceria o Projeto Meninos Família, e o JIJ o
102
Das 13 Instituições que inicialmente integrava a Rede Rio Criança, 07 delas realizavam trabalho direto com
crianças e adolescentes em situação de rua - 05 ONGs: Associação Beneficente São Martinho, Associação
EXCOLA, Associação Childhope, Criança Rio, Se Essa Rua Fosse Minha; e 02 do Governo: Fundação da Infância
e Adolescência (FIA – Estado), e Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social (SMDS - Município).
110
Projeto Resgate. De acordo com o relatório daquele ano da Rede Rio Criança, esses projetos
representaram um entrave no atendimento à esse público, pois provocava retrocessos, ou mesmo
uma ruptura no trabalho desenvolvido pelas ONGs junto às crianças e adolescentes em situação
de rua.
As principais dificuldades enfrentadas pelos Educadores Sociais na abordagem social de
rua, além das operações de recolhimento, era o uso/abuso de drogas (especialmente o tinner), o
crescente envolvimento dos meninos/as com o tráfico de drogas e o permanente aliciamento
desse público por adultos.
No ano de 2002, tivemos notícia do início da chamada Operação “Cata-Tralha”, nome
como ficou conhecida a operação que recolhia os moradores de rua e jogava todos os seus
pertences (documentos, roupas, aparelhos, medicamentos, etc.) nos caminhões de lixo, sem dar
nenhuma solução ou alternativa à problemática da vida nas ruas. Oficialmente designada como
Operação de Controle Urbano, era desenvolvida pela Prefeitura do Rio em parceria com a
Comlurb (Companhia Municipal de Limpeza Urbana) e Guarda Municipal.
No segundo semestre daquele ano, foi instaurada a Comissão Parlamentar de Inquérito
(CPI) da População de Rua, na Câmara Municipal de Vereadores, devido às várias denúncias de
instituições de direitos humanos103. Segundo essas instituições, as pessoas que eram vítimas
dessas operações, eram instadas a ir para longe do Centro do Rio de Janeiro, principalmente para
a Baixada Fluminense ou para o município vizinho de Niterói. De acordo com a Organização de
Direitos Humanos Projeto Legal, “existem acusações formais de agressão a essa população. Além
disso, o principal agente agressor é a Prefeitura, que vem desrespeitando os direitos fundamentais
dessas pessoas.”
4.1.2.2 2003
Estado e, apesar de ter a participação da Prefeitura, nós, técnicos, somos contra o modelo adotado
porque todas as cláusulas participativas foram rompidas. Fazemos oposição ao recolhimento
truculento, executado sem vínculo técnico e educador. Estamos soterrados por esta operação,
clamando para que seja encerrada. O trabalho é totalmente desarticulado por isso, sem efeitos
positivos”.
As situações criadas pelos recolhimentos provocaram debates no âmbito interno da Rede
Rio Criança que levaram à construção de ações conjuntas em áreas críticas, como o Centro da
cidade e Zona Sul. É importante destacar que os sucessivos recolhimentos da população de rua
ocorridos no Município do Rio de Janeiro, ao longo do período, prejudicaram a intervenção dos
educadores sociais nas ruas, pois causaram não só a dispersão dos meninos/as, como também um
retrocesso no atendimento e nos vínculos adquiridos.
Um fato marcante naquele ano mobilizou as Instituições de defesa dos direitos humanos:
uma ação violenta de um policial militar na porta da Associação Beneficente São Martinho, na
Lapa, com disparos de arma de fogo, em perseguição a um grupo de meninos. Felizmente,
ninguém sofreu ferimento grave, mas foram encontrados projéteis na fachada do prédio da
Instituição. Diante do ocorrido, foi articulada, em regime de urgência, uma audiência com o Juiz
da I Vara da Infância e de representantes do Ministério Público, Executivo Estadual e Municipal,
Órgãos de Segurança Pública (Polícia Militar, Polícia Civil e Guarda Municipal) e várias
organizações da Sociedade Civil, como forma de denunciar o fato e cobrar providências.
Também foi produzido e distribuído material nas áreas de atuação das Instituições da Rede Rio
Criança (Centro, Zona Sul, Maracanã e Tijuca), objetivando esclarecer e sensibilizar a população
quanto aos malefícios das operações de recolhimento. No entanto, a maioria da população era
favorável ao Zona Sul Legal.
O ano de 2003 também foi marco dos 10 Anos da Chacina da Candelária 104, quando
foram realizados vários eventos, como Missa, passeata, manifestações de protestos e divulgação
de Carta Manifesto contra as ações de recolhimento promovidas pelo Poder Público com a
participação de policiais.
104
Na madrugada de 23 de julho de 1993, em frente à Igreja da Candelária, policiais abriram fogo contra mais de 70
pessoas que estavam dormindo nas proximidades da Igreja. Era a “Chacina da Candelária”, quando 08 jovens
foram barbaramente assassinados aos pés do centro comercial e religioso da cidade do Rio de Janeiro. Desde então,
o Movimento Candelária Nunca Mais!, formado por várias Instituições e segmentos da sociedade civil
organizada comprometidos com a defesa dos direitos humanos de crianças e adolescentes, realiza manifestações
contra a Chacina.
113
Num mundo globalizado, não apenas nas práticas, mas também nas ideias, as operações
de controle e repressão nos moldes do “made in USA”, foram disseminadas e sobrevivem. O
programa Tolerância Zero, originário dos EUA, foi implantado na cidade do RJ no início dos
anos 2.000. Rudolf Giuliani, prefeito da cidade de Nova Iorque à época de criação do programa
Tolerância Zero, seria então convidado pelo Prefeito do Rio de Janeiro, Eduardo Paes, em 2010,
para ser consultor de segurança pública, o que mais uma vez iria reforçar a lógica de utilização
das práticas de controle e repressão junto àqueles considerados “perigosos”.
As consequências deste modelo de intervenção em países como Estados Unidos e
Inglaterra fizeram com que crescesse vertiginosamente os índices de encarceramento da
população, especialmente de negros e imigrantes (Wacquant, 2001).
O Tolerância Zero encontrou apoio na sociedade mundial, apavorados com a escalada dos
crimes, mas também influenciados por ideias conservadoras e discriminatórias do tipo:
(...) a excessiva generosidade das políticas de ajuda aos mais pobres seria responsável
pela escalada da pobreza (...): ela recompensa a inatividade e induz à degenerescência
moral das classes populares, sobretudo essas uniões ilegítimas que são a causa última de
todos os males das sociedades modernas – entre os quais a violência urbana
(WACQUANT, 2001, p.22).
É interessante relembrar que argumentações como essas, de teor racista, também foram
observadas em períodos do nazifascismo, quando estudos científicos foram feitos em humanos
determinando padrões de normalidade e anormalidade, inteligência e ignorância, criminoso
potencial ou não, de acordo com formatos do rosto, nariz, queixo, cérebro, etc.
No Brasil, em 2008, pesquisadores da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, em
parceria com pesquisadores da PUC (RS), idealizaram um polêmico projeto de pesquisa que
propunha mapear o cérebro de adolescentes que cometeram atos infracionais violentos, para
observar possíveis diferenças no cérebro destes jovens em relação aos adolescentes considerados
“normais”, para determinar a propensão daqueles jovens ao crime. Segundo Renato Zamora
114
Flores, Doutor em genética e biologia molecular, um dos líderes desse projeto, comentou que “a
nossa hipótese, que já está na literatura, é a de que encontraremos uma diminuição do
funcionamento de algumas áreas do cérebro105”. Esse projeto foi muito criticado e nos remete às
mais arcaicas e retrógradas práticas eugenistas do início do século XX, lembrando a teoria de
Lombroso, que fez com que grande número de pessoas fossem mortas na segunda guerra mundial
por terem traços de sua feição, como tamanho dos maxilares e crânio, identificado por Lombroso
como o de pessoas criminosas.
4.1.2.3 2004
105
Entrevista publicada na edição do boletim Promenino (ANDI), de 11 de maio de 2008.
106
Saída ativa das ruas significa a realização de um trabalho processual que garanta a promoção destas crianças e
adolescentes para uma alternativa diferente às ruas (reintegração familiar, busca de autonomia, etc.)
115
107
IBISS – Instituto Brasileiro de Inovação em Saúde Social.
108
Publicado em: <http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2004/09/290287.shtml> . Acesso em Julho/2011.
116
das ruas. Na operação Turismo Seguro, realizada em toda a orla marítima da cidade, as crianças e
os adolescentes recolhidos eram primeiramente cadastrados na Delegacia de Proteção à Criança e
ao Adolescente (DPCA) e, posteriormente, encaminhada para abrigos da Prefeitura, denotando o
caráter arbitrário e criminalizador desta prática, pois eram levadas para a delegacia sem terem
praticado delito, o que por si só fere a constituição brasileira e o ECA. A maioria delas não
permanecia nos locais, voltando às ruas.
Diante desse quadro, agravado pelo fichamento da meninada na Delegacia, já como,
segundo os executores das operações, “medida de prevenção contra a criminalidade”, a
Organização de Direitos Humanos Projeto Legal entrou com pedido de habeas corpus para
suspensão das operações de recolhimento. A Operação Turismo Seguro foi interrompida assim
que o recém-empossado Desembargador Siro Darlan concedeu a liminar no habeas corpus
interposto pelo Projeto Legal. A liminar, concedida no dia 24 de novembro daquele ano, proibia o
recolhimento de crianças e adolescentes nas ruas do Rio de Janeiro, baseando-se no princípio
constitucional de que ninguém pode ser preso se não em flagrante delito ou por mandado judicial.
A liminar causou grande polêmica e foi criticada por empresários do setor de turismo.
No dia 02 de dezembro, a Desembargadora Nilza Bitar acabou cassando a liminar, sob a
justificativa de violação de direitos humanos ao deixar crianças expostas a toda sorte de abusos
vivendo nas ruas. A Desembargadora determinou que as autoridades deveriam “apreendê-los e
tratá-los com dignidade, sem violência, mas com disciplina” para evitar riscos a si próprios e à
população. Na verdade essa foi mais uma forma de retirá-los das ruas. A apreensão desses
adolescentes sem o cometimento de ato infracional fere o que prevê a constituição brasileira. Em
nome da proteção, o Estado viola direitos.
CFB - Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza,
garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do
direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos
seguintes:
& LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e
fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de
transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei.
Naquele ano, foram realizados 02 atos públicos, sendo um contra a operação Turismo
Seguro, com distribuição da Carta aos Turistas, informando as arbitrariedades cometidas contra a
população de rua. Também foram organizadas pelas Instituições da RRC abordagens de rua
117
coletivas e mobilizações locais na Zona Sul, Centro e Tijuca. No entanto, observou-se a postura
conservadora e reativa da sociedade em relação às crianças e adolescentes em situação de rua,
responsabilizando-as pelo aumento da violência na cidade, que se fortaleceu com a forma
preconceituosa e criminalizadora com que a mídia tratou a questão. Tudo isso, demandou uma
maior repressão e controle desse público pelo Estado.
4.1.2.4 2005
4.1.2.5 2006
O ano foi marcado pela continuidade das operações de recolhimento na cidade do Rio de
Janeiro, apesar das ações civis públicas que foram impetradas. O Projeto Legal, enquanto Centro
de Defesa da Criança e do Adolescente, fez uma nova tentativa para inibir as operações de
recolhimento, encaminhando ao Supremo Tribunal Federal (STF) pedido de habeas corpus das
operações. O Ministério Público mostrou-se indiferente em relação às denúncias, e o Supremo
Tribunal Federal não respondeu ao pedido.
Havia, já naquele ano, uma grande preocupação com o recrudescimento das operações de
recolhimento da população em situação de rua devido à realização dos XV Jogos Pan-
Americanos, no ano seguinte, na cidade do Rio de Janeiro. A exemplo da ECO 92, com a
realização de grandes eventos observamos um grande número de violações, sobretudo pela
presença ostensiva das forças armadas e policial nas ruas.
A interlocução com o Poder Executivo Municipal, especialmente com a Secretaria
Municipal de Assistência Social, agravou-se muito ao longo do ano de 2006, praticamente
esgotando-se as possibilidades de diálogo. As relações OGs – ONGs no âmbito do CMDCA
acirraram-se muito. Com a manobra naquele ano da SMAS em manter sua antiga representação
na presidência do CMDCA, o Secretário Municipal de Assistência, Marcelo Garcia, realizou um
saque de R$ 2 milhões do Fundo Municipal da Infância e Adolescência, sem a devida deliberação
da Assembleia do Conselho de Direitos109. Flagrante retrato de arbitrariedade e do não
reconhecimento do CMDCA pelo Executivo Municipal, o fato gerou grande revolta entre as
organizações da sociedade civil, tencionando ainda mais as relações com a Secretaria.
Fragilizada, a sociedade civil teve dificuldades de mobilização e de responder com agilidade a
estas questões, perdendo, mais uma vez, espaço para o Governo, dificultando ainda mais a
implementação de políticas garantidoras de direitos.
É também nessa época que o Governo Municipal do Rio promoveu, através da SMAS, um
verdadeiro desmantelamento na Rede de Abrigos (públicos e privados). Muitas Instituições
perderam financiamento público e foram obrigadas a fechar. Um exemplo foi a Associação
Beneficente São Martinho, que fechou 02 de seus abrigos, permanecendo apenas com um. Isso
109
Destaca-se que é a SMAS, na pessoa do Secretário, é quem, administrativamente movimenta a conta do Fundo
Municipal da Infância e da Adolescência. O CMDCA, politicamente, é quem delibera sobre o Fundo.
119
gerou ainda maiores dificuldades no atendimento junto a essa população, com muitos dos
atendidos voltando para a rua, refletindo diretamente no trabalho de atenção e promoção
desenvolvido pelas ONGs.
As falas na gestão, acompanhadas da desarticulação e desmonte da rede pública de
serviços caminham em consonância com o projeto neoliberal, de esvaziamento ou redução das
atribuições do Estado. Essas ações podem ser consideradas como um tipo de barbárie, na medida
em que contribui e potencializa a exclusão e opressão de muitos indivíduos. Menegat (2006)
comenta que:
(06 delas compunham a RRC). Esses dados demonstram o quanto tem sido restrito e específico,
no Rio de Janeiro (mas também em outros grandes centros urbanos), o trabalho das ONGs junto a
esse público, e podemos citar alguns motivos: não é fácil desenvolver este tipo de ação, pois não
basta boa vontade, depende de profissionais qualificados, disponibilidade, interesse pelo tema e
público, continuidade da ação, equipamentos, recursos; os resultados desse trabalho, quando
conseguidos, geralmente são num período de médio, longo prazo; quase não existe financiamento
(nacional ou internacional) para o desenvolvimento de ações com crianças e adolescentes em
situação de rua.
4.1.2.6 2007
O ano começa com uma forte mobilização da sociedade civil na Câmara dos Vereadores,
denunciando os desmandos da Secretaria Municipal de Assistência Social, e pressionando pela
instauração de uma Comissão Parlamentar de Inquérito (CPI) pelo que havia acontecido no
CMDCA no ano anterior, com a retirada de recursos do Fundo da Infância e Adolescência pela
SMAS, sem a consulta e deliberação do Conselho. Dessa forma, foi definida, em Audiência
Pública, a instauração de uma CPI nas contas do Fundo Municipal de Assistência e Fundo da
Infância e Adolescência, o que envolveria diretamente o Secretário Municipal de Assistência
Social, Marcelo Garcia, ordenador de despesas dos dois Fundos, bem como seus
coordenadores/assessores diretos.
Com a CPI instaurada, constatamos o quanto a área social não é prioridade para o Poder
Executivo Municipal, bem como se verificou que os recursos disponibilizados pelo Governo
Municipal para esta pasta sofreram quedas sucessivas (como prevê o projeto neoliberal –Estado
mínimo, diminuição de recursos em áreas sociais, etc.). De acordo com a CPI, a Prefeitura do RJ
disponibilizou apenas 1,5% do seu Orçamento para a área social, em 2007, representando uma
progressiva diminuição no orçamento da Secretaria Municipal de Assistência Social. Em
contrapartida, a SMAS aumentou seus gastos com pessoal (88% do orçamento da Secretaria eram
para pagamento de funcionários), e previu uma redução de aproximadamente 70% da verba para
121
Sempre que tem algum evento muito importante na cidade, como o Carnaval, que é um
evento grande, que vem muito estrangeiro, muito turista, para que eles querem pivetes na
rua roubando? Então eles pegam e levam sempre para o abrigo, mas depois acaba
111
soltando, como fizeram no PAN. Colocaram a gente no abrigo e depois soltou .
Nessa época, a Rede Rio Criança realizou o Seminário Pan Criança, no Tribunal de
Justiça, quando participaram adolescentes em situação de rua dividindo a mesa com Juristas,
Vereadores e Educadores. No evento, eles falaram sobre o contexto da rua e a violência da qual
estavam expostos cotidianamente, em especial nas operações de recolhimento feitas com a
participação da polícia. O Seminário teve grande importância para os meninos/as, pois apresentou
um canal de comunicação direta com o Legislativo e o Judiciário, que acolheram as denúncias
naquele momento. Mas, efetivamente, não alterou a prática das operações.
110
Conselho Tutelar é um órgão permanente e autônomo, não jurisdicional, eleito através do voto direto por região
administrativa, encarregado pela sociedade de zelar pelo cumprimento dos direitos da criança e do adolescente.
111
Parte da entrevista com Aline Travassos, ex menina de rua.
122
A veiculação insistente de notícias feitas pela grande mídia nesse período criminalizando
a pobreza, contribuíram ainda mais para acirrar o debate sobre a necessidade de mudanças no
ECA e da redução da idade penal. Este tema entrou em tramitação no Congresso Nacional, com a
apresentação de vários Projetos de Lei e permanece até hoje com forte pressão da mídia, de
grande parcela da população e de parlamentares favoráveis à redução.
Nessa ocasião, o Governador Sérgio Cabral (PMDB), em entrevista a jornal de grande
circulação, propõe a legalização do aborto como forma de conter a violência no Rio de
Janeiro. Cabral se valeu das teses dos autores de "Freakonomics", livro dos norte-americanos
Steven Levitt e Stephen J. Dubner, que estabelece relação entre a legalização do aborto e a
redução da violência nos EUA. "Tem tudo a ver com violência. Você pega o número de filhos
por mãe na Lagoa Rodrigo de Freitas, Tijuca, Méier e Copacabana, é padrão sueco. Agora, pega
na Rocinha. É padrão Zâmbia, Gabão. Isso é uma fábrica de produzir marginal", declarou112.
Ao menos o ano de 2007 terminou com uma boa notícia: a Rede Rio Criança foi
homenageada na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ), pelo mandato do
Deputado Marcelo Freixo (Presidente da Comissão de Direitos Humanos), no Dia Internacional
de Direitos Humanos, por sua atuação na luta em defesa dos direitos humanos das crianças e
adolescentes em situação de rua na cidade do RJ.
4.1.2.7 2008
Apesar das dificuldades, principalmente com a SMAS, que não se incorporou de forma
sistemática às reuniões do GT, apenas de forma pontual, faziam parte pelo Governo: Secretarias
de Educação, Saúde, Esporte e Lazer, Cultura e Coordenadoria Especial de Dependência
Química. Guarda Municipal e Comlurb também foram convidados estratégicos a se integrar ao
grupo e, como as outras, mesmo que de forma pontual, definiram diretrizes para a referida
Política. Pela Sociedade Civil, as representações que compunham o GT eram: Rede Rio Criança,
Associação Excola, Se Essa Rua Fosse Minha, Pastoral do Menor, Associação Beneficente São
Martinho, Associação Beneficente AMAR e o Centro Internacional de Estudos e Pesquisas sobre
a Infância (CIESPI), todas integrantes da RRC.
Foi também um ano de certo refluxo no trabalho de algumas Instituições devido às perdas
de financiamento para a ação direta com crianças e adolescentes em situação de rua, em especial
no âmbito da RRC, com o término do financiamento da Fondation Terre dês hommes (Tdh), que
apoiou a Rede por 06 anos consecutivos.
A questão da drogadição dos meninos/as foi tema de muita preocupação entre os
Educadores, principalmente com o uso do crack por alguns deles, e a falta de serviços /
retaguardas para atendê-los na área de saúde, o que já naquela época era sinalizador de um
problema grave que enfrentaríamos futuramente.
As operações Bacana se mantinham (Copabacana, Ipabacana) e a Cata-Tralha, com as
mesmas arbitrariedades e participação violenta da polícia. Luiz Carlos, Educador Social da São
Martinho, avaliou essas operações no período da gestão de César Maia na Prefeitura do Rio:
Outro tipo de intervenção importante na gestão César Maia junto à população em situação
de rua foi a chamada política antimendigos, na qual eram promovidas mudanças na arquitetura de
prédios e na urbanização da cidade, como a retirada de marquises que serviam de cobertura para
mendigos; tapar áreas abertas embaixo de viadutos; acabamentos pontiagudos no chão de
viadutos e em certas calçadas; jogar creolina nos locais em que dormiam mendigos, dentre outras.
Esse tipo de prática se reproduz em diferentes épocas e áreas na cidade do Rio de Janeiro, como
124
no início da década de 1960, quando Sandra Cavalcante esteve à frente da Secretaria de Serviços
Sociais do Estado da Guanabara113, nomeada pelo então governador Carlos Lacerda. Àquela
época, várias denúncias surgiram acusando o governo de remover favelas sem nenhum cuidado
para com os moradores atingidos, preocupando-se apenas em "higienizar" os morros da Zona Sul
e áreas nobres da cidade-estado. Logo surgiam denúncias de incêndios premeditados em barracos
e de mendigos afogados no Rio da Guarda, e a Secretária Sandra Cavalcante era a maior acusada.
Baseado nesses fatos, o longa-metragem "Topografia de um Desnudo114" retrata o que a imprensa
carioca chamou de "Operação Mata-Mendigos". O episódio, abafado no Brasil pelo então
governador Carlos Lacerda, chegou a ganhar destaque internacional depois que corpos de
mendigos foram encontrados nos rios Guandu e da Guarda nos meses que antecederam a visita da
Rainha da Inglaterra à capital carioca. Na época, funcionários do Serviço de Repressão à
Mendicância, órgão do governo criado para tratar o problema dos moradores de rua, chegaram a
ser investigados. No entanto, o caso perdeu força com o Golpe de 1964, ocorrido logo depois.
A autora Cecília Coimbra (2001), em seu livro Operação Rio, destaca a “arquitetura
antimendigo” dos anos de 1990 no Rio de Janeiro:
113
A partir de 1974, com a inauguração da ponte Rio-Niterói, o Estado da Guanabara é integrado ao Estado do Rio
de Janeiro, passando a ser denominado Município do Rio de Janeiro.
114
O filme Topografia de um desnudo, de Teresa Aguiar, baseia-se em fatos reais ocorridos na década de 1960 no
Rio de Janeiro: a chamada “operação mata-mendigos”, que culminou com a morte de vários moradores de rua,
antes presos, torturados e depois jogados nos rios Guandu e da Guarda: um processo de limpeza social
“aparentemente” em razão da visita da Rainha Elizabeth II da Inglaterra ao Brasil. O filme, que entrou em cartaz
em 2011, fala do sofrimento e da humilhação a que são submetidas pessoas em situação de rua, resultantes da
política higienista presente desde sempre no Brasil e nos dias atuais de forma intensa em várias cidades brasileiras.
Ver em: http://www.topografiadeumdesnudo.com.br/, acesso em 2011.
125
4.1.2.8 2009
Eduardo Paes toma posse e nomeia dentre seus Secretários Fernando Wiliam, ex-
Secretário Estadual de Ação Social, para o cargo de Secretário Municipal de Assistência Social.
Na gestão de Eduardo Paes (2009 a 2016), vamos observar progressiva e vertiginosamente o
aumento e o recrudescimento das operações de recolhimento, especialmente a partir de 2011,
com a implementação da Resolução 20/2011 – o Protocolo do Serviço Especializado em
Abordagem Social, que institucionalizou o recolhimento e a internação compulsórios da
população em situação de rua, principalmente crianças e adolescentes. Assim como, em nível de
estado, também observaremos o aumento dos índices de apreensões e encarceramento de
adolescentes negros e pobres. Já era a cidade maravilhosa se preparando para a organização dos
Megaeventos, Copa das Confederações (2013), Copa do Mundo (2014), e Olímpiadas (2016),
como veremos adiante.
126
O ano de 2009 marcou o início das operações “Choque de Ordem”, principal bandeira da
campanha de Paes. Na mesma linha de segregação e “limpeza social”, as operações Choque de
Ordem, feitas em parceria com o governo do Estado, entraram em vigor no dia 5 de janeiro de
2009, com o objetivo de realizar ações de reordenamento urbano contra vendedores ambulantes,
flanelinhas, pessoas em situação de rua, ocupações urbanas, dentre outras. Apesar do Choque de
Ordem visar uma abrangência de ação em todo o município do Rio, seu foco, majoritariamente,
eram territórios nobres da cidade do Rio de Janeiro, como Copacabana, Ipanema, Barra da Tijuca
/ Recreio e Centro, áreas de maiores concentrações de renda.
Para uma análise mais aprofundada das práticas higienistas, repressivas, de contenção e
encarceramento da população considerada “perigosa” - os sujeitos indesejáveis, importante
contextualizarmos politicamente o que, quando e de quem falamos, ou seja, que lugar é esse de
que falamos.
Prefeito da cidade do Rio de Janeiro, eleito em 2009, Eduardo Paes concentrou sua
atuação no “Choque de Ordem”, criando, inclusive, a Secretaria Especial de Ordem Pública,
sendo convidado para gerir esta pasta Rodrigo Bethlem que, como dito anteriormente, foi ex Sub
Secretário de Segurança Pública, do Governo do Estado, no qual foi o responsável pela
implantação das chamadas operações “Bacana” (2007). Desse período (2009) em diante,
importante darmos destaque aos diferentes fatos que integram essa realidade social, por
considerarmos fundamental enquanto elementos de sistemático endurecimento das práticas
abusivas de controle e repressão no enfrentamento da população em situação de rua,
especialmente crianças e adolescentes, bem como de um processo higienista de organização da
cidade para os Megaeventos. A criação da Secretaria Especial de Ordem Pública, para o
movimento social, foi interpretada como sendo a consolidação pública da criminalização da
pobreza através de medidas sistemáticas de repressão e de controle daqueles considerados
“perigosos”, “indesejáveis” e “desnecessários” ao modo de produção capitalista.
O novo Secretário Especial de Ordem Pública, já no dia 02 de janeiro de 2009, anunciou
sete medidas de impacto na cidade, nas quais seriam utilizados até dois mil servidores municipais
e estaduais (Guardas municipais, Polícia Militar, fiscais e operários) nas ações contra ao que
denominaram “desordem urbana”. Foram elas:
127
Foi um “deus nos acuda”. Todos os dias, nos principais jornais da cidade, eram
noticiados, como num espetáculo, as sucessivas operações de Choque de Ordem. O novo “xerife”
do Rio de Janeiro, como o batizou o Prefeito Eduardo Paes, jogou ainda mais holofotes nas
chamadas operações “Bacana”, que eram verdadeiro terror para parte significativa da população
carioca sujeita a essas operações.
Em março de 2009, o Prefeito retoma a política “antimendigo” de César Maia, tapando os
vãos embaixo de viadutos, cercando praças e colocando divisórias em bancos de praças públicas,
para impedir que mendigos pudessem usá-los como lugar de descanso. A iniciativa gerou muita
polêmica não só de organizações de direitos humanos, como também de parte da sociedade
contrários à medida. A utilização de tais práticas tem como principal objetivo não só a expulsão
desse grupo social dos espaços urbanos, mas também de nem ao menos permitir que essas
115
Publicado em 02/01/2009: <http://odia.terra.com.br/rio/htm/novo_secretario_de_ordem_publica_anuncia_sete_
medidas_de_impacto_221483.asp>.
128
pessoas possam ter um local para descanso e repouso, ou protegerem-se das intemperes, mesmo
que esse seja a rua. A lógica da higienização, segregação e controle dessa população permanece e
se sustenta através de velhas práticas. Como também observou Sebastião Andrade, Coordenador
do Centro Socioeducativo da Associação Amar, em sua entrevista:
(...) a gente percebe que essa lógica de higienização sempre aconteceu. Houve prefeito
como César Maia que mandou colocar creolina debaixo das marquises e debaixo dos
viadutos e colocar pedras embaixo dos viadutos, pedras pontiagudas pra que os pobres
não pudessem se abrigar nem em marquises na frente do comércio, nem embaixo de
viadutos. Veja, ao pobre e miserável não lhe dão o direito de pernoitar embaixo de uma
marquise, embaixo de um viaduto. Não se deixava o pobre deitar no chamado banco da
praça. As praças começaram a ser cercadas na cidade do Rio de Janeiro e a gente
entendia que não era por questão de segurança, nem embelezamento, era simplesmente
para, dado o momento, poder dizer ao pobre: Saia daqui porque aqui a praça passou a ser
o espaço só de alguns!
(...) Relatos de Educadores Sociais das Instituições da Rede Rio Criança, e das próprias
crianças e adolescentes vítimas dessas operações, confirmaram a presença constante de
policiais militares e que, na maioria das vezes, utilizam o uso da violência para recolhê-
los das ruas. Geralmente, esses meninos/as são levados para equipamentos públicos,
como a Casa da Carioca, onde só pernoitavam, e Central de Recepção (Praça da
Bandeira), onde é feita uma triagem para abrigos, para a DPCA (Delegacia de Proteção à
Criança e ao Adolescente), quando identificam autoria de ato infracional, enquanto
outros meninos/as que não são do Rio de Janeiro podem ser levados para os seus
municípios de origem. No entanto, diante do desmantelamento da Rede Pública de
proteção à criança e ao adolescente, e da falta de estrutura física e profissional para
recebê-los, esta população logo volta às ruas.
Quem é defensor dos direitos humanos e presencia o “Choque de Ordem” dificilmente se
esquecerá, tamanha é a agressão e o desrespeito àquelas pessoas que são alvo desta ação
que, além da ferirem sua integridade física e moral, também destroem seus parcos
116
Já naquele ano, a Rede Rio Criança, uma articulação de referência no trabalho e defesa dos direitos humanos de
crianças e adolescentes em situação de rua, era integrada por 15 ONGs: Associação Beneficente São Martinho;
Associação Beneficente AMAR; Associação Brasileira Terra dos Homens (ABTH); Banco da Providência; Centro
de Teatro do Oprimido (CTO-Rio); Childhope Brasil; Criança Rio; Excola; Fondation Terre des hommes (Tdh);
Fundação Bento Rubião; Movimento Nacional dos Meninos e Meninas de Rua; REMER; Organização de Direitos
Humanos Projeto Legal; Projeto Social Crescer e Viver e Se Essa Rua Fosse Minha.
129
O dossiê em sua íntegra foi entregue em uma Audiência Pública na OAB ao representante
da Anistia Internacional.
De positivo nesse período, foi a aprovação da Deliberação 763/09, de 22 de junho de
2009, do CMDCA Rio, a Política Municipal de Atendimento às Crianças e Adolescentes em
Situação de Rua na cidade do Rio de Janeiro, a primeira do país. Representou uma vitória para
toda a sociedade civil e representante de governo que participaram desse processo, que levou
mais de 06 anos, entre a fase de sua articulação, construção e deliberação. Porém, importante
destacar que das 64 diretrizes deliberadas na referida política, apenas uma (01) foi implantada até
hoje (2016): o Programa Saúde da Família Sem Domicílio (PSF Rua), posteriormente
130
4.1.2.9 2010
117
Esse número considerou e contabilizou crianças e adolescentes que viviam nas ruas, bem como as que estavam
abrigadas, de acordo com o conceito de “situação de rua”.
118
Situação de rua é uma complexa relação dinâmica que envolve “casa – rua – abrigo – rua – projetos sociais /
instituições – rua – família / comunidade – rua.”, em que a rua, em diferentes graus, ocupa um lugar de referência
predominante e um papel central em suas vidas.
131
Agora eles estão fazendo o seguinte: os meninos quando veem o cata-tralha ou o ônibus
do recolhimento, eles até se entregam. “Eu vou pra FIA”, dizem. O garoto não deve nada
mesmo, então é tranquilo. Ele vai pra FIA, toma banho, almoça, troca a roupa dele, fica
tranquilinho... Aí, 6ª feira ele sai, foge e vai pro baile. E outra coisa também, aprendeu a
sobreviver. Outro dia, no Catete, o ônibus estava parado ali, aí o garoto falou: “Ô tio,
vou pra FIA! Vou tomar banho, almoçar, 6ª feira eu tô aí”. Eu falei: Valeu, meu filho.
Aproveita, você tem direito. Isso aí é teu. (risos...) Eu pago imposto pra isso. Entendeu?
Eles já aprenderam também a lidar com isso, toda hora eles aprendem...
4.1.2.10 2011
§3º A criança e o adolescente que esteja nitidamente sob a influência do uso de drogas
afetando o seu desenvolvimento integral, será avaliado por uma equipe multidisciplinar
e, diagnosticada a necessidade de tratamento para recuperação, o mesmo deverá ser
mantido abrigado em serviço especializado de forma compulsória. A unidade de
acolhimento deverá comunicar ao Conselho Tutelar e à Vara da Infância, Juventude e
Idoso, todos os casos de crianças acolhidos.
121
Centros de Referência Especializados da Assistência Social.
122
Grifos meu.
135
Art. 5º - Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-
se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no país a inviolabilidade do direito à vida,
à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
LXI - ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e
fundamentada de autoridade judiciária competente, salvo nos casos de
transgressão militar ou crime propriamente militar, definidos em lei.
Proteção à Criança e ao Adolescente (DPCA) para ser feita pesquisa de mandatos de busca e
apreensão. Os adolescentes que estivessem em descumprimento de medida socioeducativa, ou
seja, os que estavam “devendo” à justiça, mesmo precisando de atendimento emergencial de
saúde, eram levados para uma unidade de internação provisória do DEGASE (na época para o
Instituto Padre Severino, atualmente Cense GCA123), o que, por si só, representava uma violação
de direitos, por não serem pegos em flagrante delito. Os que não tinham mandato de busca e
apreensão eram levados para acolhimento institucional da Rede de Proteção Especial do
município. Feita a triagem nas Centrais de Recepção124, as crianças e os adolescentes
identificados com comprometimento em dependência química eram conduzidos de forma
compulsória para uma das 04 unidades de “abrigamento especializado125” que existiam à época
no município do RJ para este público: Ser Criança e Ser Adolescente, na Zona Oeste, em
Guaratiba; Casa Viva, o carro chefe da SMAS, situada em Laranjeiras, Zona Sul do Rio, muito
destacada na mídia, em detrimento das outras duas, talvez pela sua localização territorial na zona
sul da cidade; e, uma 4ª, a Casa Reviva, em Barra Mansa. A título de informação, o custo
individual de cada internação na Casa Viva, com capacidade para 12 adolescentes do sexo
masculino, era de aproximadamente R$ 2.500,00/mês.
Naquele ano, a Comissão Municipal de Acompanhamento da Implementação da Política
Municipal de Atendimento às Crianças e Adolescentes em situação de rua foi constituída no
âmbito do CMDCA, formada por Conselheiros Municipais de Direitos da Cri/Adol e por
organizações da sociedade civil. Diante da Resolução 20/2011, convidamos o Secretário
Municipal de Assistência Social, Rodrigo Bethlem, para participar de uma reunião da Comissão,
que tinha como objetivo questionarmos sobre a Resolução 20 e o recolhimento e internação
compulsória de crianças e adolescentes em situação de rua, supostamente dependentes de crack,
afrontando direitos constituídos. Lembro-me bem do desconforto que sentimos. Ele sempre
repetia a seguinte frase, que já parecia um slogan: “E se fosse seu filho?!” Ao que respondi: “Se
123
Centro de Socioeducação Gelso de Carvalho Amaral.
124
Esse tipo de equipamento, apesar de não está previsto na Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais, é
considerada a porta de entrada das crianças e adolescentes que são recolhidos.
125
Abrigamento especializado é compreendido como um tipo de abrigo especializado, com quadro de equipe
multidisciplinar, para o atendimento de determinados casos que necessitem de atendimento diferenciado, como o
tratamento de saúde (neste caso dependência química de crianças e adolescentes em situação de rua). Esse tipo de
abrigo especializado, em saúde, não está previsto na Tipificação Nacional dos Serviços Socioassistenciais. O que
gerou muita controvérsia, bem como desentendimentos com a área da Saúde.
137
fosse meu filho, eu não o levaria para uma delegacia, mas para um tratamento de drogadição!”
Reunidos naquela sala muitos representantes da sociedade civil, que trabalhavam há vários anos
com esse público, através de uma metodologia pautada nos princípios da educação social de rua,
defensores de direitos humanos, se posicionaram contrários a essa forma de intervenção, que
violava direitos. No entanto, o recolhimento e a internação compulsória se mantiveram.
Em agosto de 2011, algumas entidades cariocas em parceria com a I Vara da Infância e a
Secretaria Municipal de Assistência Social (SMAS) promoveram, em conjunto, o “Fórum de
Debates sobre o Acolhimento Compulsório de ‘menores’ em situação de rua em risco”. Em
notícia a respeito do Fórum, comenta-se:
Em junho deste ano, reunidos na Vara da Infância da Capital, a juíza Ivone Caetano, o
secretário municipal de assistência social do Rio, Rodrigo Bethlem, e a promotora de
justiça Ana Cristina Ruth Macedo, titular da Promotoria de Tutela Coletiva de Políticas
Públicas do Ministério Público Estadual, defenderam o acolhimento e internação
compulsória, independentemente do consentimento, de crianças e adolescentes usuários
de crack. Na ocasião, eles consideraram que não existe direito ilimitado de ir e vir,
quando se trata de menores vivendo nas ruas, colocando em risco a própria vida 126.
4.1.2.11 2012
Ano de realização da Rio + 20, a Conferência das Nações Unidas sobre Desenvolvimento
Sustentável, de 13 a 22 de junho de 2012, na cidade do Rio de Janeiro. A Rio + 20 foi assim
conhecida porque marcou os vinte anos de realização da Conferência das Nações Unidas sobre
Meio Ambiente e Desenvolvimento (ECO 92) e teve o objetivo de definir a agenda do
desenvolvimento sustentável para as próximas décadas. A Conferência já era objeto de grande
preocupação, pois, por experiência, já sabíamos que haveria aumento da repressão e do processo
de higienização na cidade.
Na época, a Rede Rio Criança produziu um vídeo chamado “Recolher não é Acolher: É
Barbárie!127”, e fez sua inscrição para exibição do vídeo na Rio + 20. O vídeo denunciava o
recolhimento e a internação compulsória de crianças e adolescentes em situação de rua na cidade
do Rio de Janeiro.
Observamos que em 2012 a quantidade de meninos/as recolhidos aumentou
consideravelmente após a Resolução 20/2011. Foram 544 num período de 12 meses, desde a
implementação da dita Resolução, segundo informação no site da Prefeitura / SMDS. A iniciativa
da Prefeitura do Rio foi alvo de polêmica e sérias contestações. A eficácia do tratamento iniciado
com uma internação obrigatória foi questionada por muitos especialistas, defensores de uma
abordagem baseada no convencimento e no apoio familiar. “Lugar de criança não é na rua. Se
não quero isso para o meu filho não quero para nenhum menino ou menina”, repetia o Secretário
de Assistência Social, Rodrigo Bethlem. Apesar da convicção de Bethlem, o percentual de
sucesso não pode ser considerado alto (28,16%) e a veracidade dos dados foi contestada128.
A guerra às drogas, mais especificamente ao crack, estava declarada. Diariamente a mídia
acompanhava as intervenções da polícia e da SMDS nas cracolândias do Rio. Os “cracudos”,
nome como ficaram conhecidas as pessoas que faziam uso do crack, eram alvo mais de repressão
127
Veja o vídeo publicado no Link: https://www.youtube.com/watch?v=5s71PNsW2NQ.
128
Publicado em: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/a-truculencia-nao-resolve/, em 13/04/12.
139
129
Na verdade, os meninos/as em situação de rua não faziam uso de crack, ou muitos poucos deles. O crack era à
época uma droga mais utilizada por adultos.
130
Publicado em: http://oglobo.globo.com/rio/ministro-da-saude-promete-recursos-para-acoes-contra-crack-no-rio-
6525436 , acesso em 25/10/12.
131
Publicado em> http://odia.ig.com.br/portal/rio/dono-de-abrigos-do-crack-j%C3%A1-matou-42-1.506907 , em
25/10/12.
140
(...) o oficial viu tombar nos tiroteios que protagonizou ao menos 42 pessoas, entre 1999
e 2002. Em três anos, Sérgio Magalhães fincou o pé na Prefeitura do Rio e não saiu
mais. Mesmo sem qualificação, conseguiu angariar R$ 1,8 milhão em verbas para cuidar
dos menores abandonados e famílias desamparadas. Mas o pulo do gato veio mesmo em
2009. De lá para cá, o combate ao crack e o acolhimento de crianças e adolescentes
injetaram R$ 78 milhões na casa espírita e deram ao major o título de rei da internação
compulsória (Jornal O Dia, Coluna Rio, 25/10/12, por João Antônio Barros).
Três dias depois, no dia 28/10/12, outra notícia do Jornal O Dia: “Internos sofrem castigos
físicos e químicos em centro administrado pela Tesloo132”. Matéria que envolvia o mesmo caso
anterior, mais especificamente sobre uma das Casas, a Ser Adolescente, que abrigava 44
adolescentes. Os castigos físicos eram vários, como acordar os meninos com balde d’agua fria.
Quem desobedecia às ordens era jogado amarrado na piscina, além de receber “porrada”. De
acordo com a reportagem, os castigos químicos, para aqueles que davam problemas, era uma
mistura de medicamentos fortíssimos (tranquilizantes) utilizados no tratamento para psicóticos e
esquizofrênicos.
“Só há um psiquiatra para todos os abrigos. Ele passa uma vez por semana em cada um.
Na emergência, os enfermeiros ligam e ele passa o remédio”, informa a defensora
pública, Eufrásia Souza das Virgens. O chamado SOS — doses elevadas de
tranquilizantes — também é ministrado como castigo para os fujões.
A constatação aparece no relatório da inspeção feita pela comissão multidisciplinar, a
pedido da Comissão de Direitos Humanos da Assembleia Legislativa. Além de
administrar os mesmos remédios a todos os pacientes, eles detectaram que, nos casos de
fugas e ‘rebeldia’, os menores recebiam duas injeções de Haldol (antipsicótico) e
Fenergam (antialérgico). É o castigo químico (Jornal O Dia, Coluna Rio, 28/10/12, por
João Antônio Barros)
132
Publicado em: http://odia.ig.com.br/portal/rio/internos-sofrem-castigos-f%C3%ADsicos-e-qu%C3%ADmicos-
em-centro-administrado-pela-tesloo-1.508114, em 28/10/12.
141
haviam sido alvo de Audiência Pública no ano anterior, pela Câmara Municipal de Vereadores,
como já mencionado anteriormente.
Outra denuncia, era que o major reformado da PM fazia parte da milícia da zona oeste 133.
Com tudo o que foi publicado, a Prefeitura apenas declarou que não renovaria os contratos com a
Tesloo. Os contratos foram, posteriormente, encerrados pela Prefeitura. Não se teve maiores
informações sobre o caso.
Outro fato que gerou grande preocupação e polêmica foi o da utilização de armas de
choque elétrico pela Secretaria de Segurança nas abordagens junto a usuários de crack. A
Secretaria Nacional de Segurança (SENASP) fez a entrega de 250 dessas armas. A medida veio
embutida em pacote que incluiu a entrega de mais 750 sprays de pimenta, cinco bases de
monitoramento e 100 câmeras para vigiar as cracolândias134.
O tema da guerra às drogas, especialmente aos usuários de crack, explodiu na mídia com
inserções diárias, sistemáticas, de notícias das abordagens nas cracolândias, também em grandes
reportagens e documentários. Muitos devem ainda lembrar-se das imagens de usuários do crack
atravessando a Av. Brasil, no RJ, na frente dos carros em alta velocidade, correndo da polícia!
Era importante a construção desse inimigo, qual seja, o crack, os “cracudos”, o inimigo da
vez! A sociedade tinha medo, repelia os “cracudos”. Sob o título de “A epidemia do crack”, o
Observatório da Imprensa publicou que em uma passagem do livro A sociedade excludente135, o
autor Jock Young sintetiza a funcionalidade do processo de demonização do “outro”, que
recorrentemente se associa ao tema-tabu dos entorpecentes:
133
Consta da relatoria da Audiência Pública da Comissão de Orçamento da Câmara Municipal, realizada no ano
anterior, ao falar do Tenente Coronel e família, “que em Magalhães Bastos, nessa área em que eles estão, são
bastante respeitados e temidos. Conversamos com o pessoal do entorno, e todo mundo tem até medo de falar e de
dar referências”.
134
Publicado em: http://odia.ig.com.br/portal/rio/secretaria-recebe-armas-de-choque-para-usar-em-abordagens-a-
viciados-1.514291 , acesso em 13/11/12.
135
A Sociedade Excludente: exclusão social, criminalidade e diferença na sociedade recente, de Jock Young (Trad.
Renato Aguiar. Rio de Janeiro, Revan: Instituto Carioca de Criminologia, 2002).
142
Não queremos aqui minimizar a questão do crack e suas implicações e agravos à saúde
dos usuários, mas fortalecer esse inimigo era importante para o Poder Público do Rio de Janeiro
para justificar a necessidade de transferência de recursos do Governo Federal através do
Programa “Crack, é preciso vencer”, que girava em torno de R$ 240 milhões.
No dia internacional dos direitos humanos, 10 de dezembro, organizamos um Ato Público
em frente à Assembleia Legislativa (ALERJ), no qual exigíamos a prisão de Rodrigo Bethlem e
Eduardo Paes pela violação de direitos humanos através das operações de recolhimento e
internação compulsória. Como símbolo, prendemos numa gaiola de 2,5 m de altura bonecos de
Bethlem e Paes, que causou grande impacto à cena e mobilizou e sensibilizou muitas pessoas.
Naquela época, não imaginávamos que aquela figura de cena era praticamente uma premonição
do que ainda estaria por vir e levaria esse senhor (Bethlem), dois anos depois, às páginas
criminais dos jornais sob a acusação de desvio de dinheiro público e corrupção. O que veremos
mais adiante!
136
Publicado em: http://observatoriodaimprensa.com.br/news/view/_ed721_o_cultivo_cientifico_da_ignorancia,
acesso em 22/11/2-12.
143
4.1.2.12 2013
Eduardo Paes (PMDB) é reeleito enquanto Prefeito do Rio de Janeiro, e tem como Vice-
Prefeito Adilson Pires (PT). A internação compulsória, de acrianças, adolescentes e adultos
continuam sendo defendidas pelo prefeito Eduardo Paes, bem como a compra, pela Secretaria
Estadual de Segurança, de armas de choque elétrico e sprays de pimenta, para serem usadas nas
abordagens aos usuários de crack nas cracolândias.
No dia 09 de janeiro, Rafael Felipe Mota Ribeiro, de 10 anos, foi atropelado por um
caminhão na Avenida Brasil, na altura da Favela Nova Holanda, ao fugir de uma das constantes
operações de recolhimento de usuários de crack realizadas pela Prefeitura do Rio em conjunto
com policiais. Apavorados, os usuários se arriscavam na travessia da avenida de alta velocidade
para fugir dos agentes que participavam das operações de recolhimento137. Este fato gerou grande
indignação e revolta entre todos profissionais e defensores de direitos humanos, inclusive da
própria SMAS, contrários ao recolhimento e a internação compulsória de usuários de crack ou
qualquer outra droga. O Desembargador Siro Darlan, publicou sobre o fato em sua página no
Facebook:
Uma criança de 10 anos foi assassinada pela sina fascista da prefeitura do rio de janeiro,
que por total ausência de políticas públicas, persegue crianças e adolescentes doentes nas
ruas do Rio de Janeiro, não para tratá-las como alegam, mas para retirá-las das ruas e
escondê-las nos campos de concentração que chamam de abrigos, cujo aproveitamento
tem sido de menos de 10% dos "aprisionados" apesar do volumoso recurso que recebem.
A intenção final é esconder a pobreza e a miséria para sediar os grandes eventos
esportivos.
O Ministério Público, fiscal de uma lei em vigor há mais de 22 anos, (estatuto da criança
e do adolescente) acha que pode contemporizar com o que é legal, quando o infrator é o
administrador público, e é conivente com mais esse crime praticado contras as crianças
cariocas: a falta de vagas nas creches do Rio de Janeiro. Vale tudo para justificar essa
desídia contra a cidadania das crianças. Aliás o MP também apoia o "recolhimento
compulsório" que afronta a constituição e impede que os empresários destinem verbas
devidas ao imposto de renda ao fundo da criança para a efetivação dos direitos das
crianças e dos adolescentes. Quem tem um "protetor" como esse não precisa de
inimigos.
Siro Darlan, em 10/01/13 (Facebook).
137
Ver em: http://oglobo.globo.com/rio/sepultado-corpo-de-menino-atropelado-durante-acao-contra-crack-na-
avenida-brasil-7247080 , acesso em 10/01/13.
144
Desde a Resolução 20/2011, o crack tem sido visto como o grande mal da sociedade e que
existe uma suposta epidemia se espalhando pelo Brasil. Essa ideia foi progressivamente tomando
conta da imprensa e dos discursos políticos. Assim, um imaginário social, baseado mais no medo
que em informações científicas, foi construído para justificar uma série de políticas e práticas
polêmicas por parte do Estado de combate ao crack, amparadas, principalmente, por práticas
higienistas, de controle e repressão.
A Secretaria Municipal de Assistência Social do Rio de Janeiro colocou em prática o
sistema de internação compulsória para crianças e adolescentes em situação em rua,
supostamente usuários de crack, que são internados em abrigos onde são forçados a receber
tratamento psiquiátrico. Vários meninos e meninas foram recolhidos das ruas e internados
compulsoriamente superlotando os poucos abrigos existentes, o que foi contestado por diversos
segmentos ligados à saúde, diretos humanos, assistência social, direito, dentre outros, que veem
na suposta defesa da saúde pública um disfarce para interesses econômicos e políticos, bem como
pela higienização e segregação desse grupo social.
Não bastasse se medida que viola direitos humanos, a internação compulsória é ineficaz
no tratamento de quem sofre dependência química. De acordo com especialistas da área da saúde
mental, em 97% dos casos onde há internação compulsória, o dependente químico não se livra do
vício. O tratamento tem mais resposta quando o usuário expressa o desejo do tratamento, que não
precisa sair do convívio social. O usuário já é desprovido de liberdade e precisa ser reinserido na
sociedade, com tratamento adequado, moradia e emprego.
Diante de tanta controvérsia, o Ministério Público definiu à época que era contra a forma
como o caso estava sendo tratado pelo governo, e que era a favor da lei de Saúde Mental
existente, que prevê a internação compulsória apenas em última instância.
O Prefeito Eduardo Paes e o Secretário Rodrigo Bethlem foram denunciados pelo
Ministério Público (MP) em 02 ações civis públicas, sendo a primeira por improbidade
administrativa por terem descumprido um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), no qual
ficou firmado que a Prefeitura suspenderia as ações de recolhimento e internação compulsória da
população em situação de rua. Nesta primeira ação, o promotor Rogério Pacheco pede a
indenização de R$ 50 mil para cada morador de rua que teve seu direito violado. Como cerca de
seis mil moradores de rua teriam sido afetados pelo Choque de Ordem de Paes e Bethlem,
chegou-se ao valor de R$ 300 milhões. Já numa segunda ação, o MP pede outros R$ 300 milhões
145
de indenização por dano moral causado contra os moradores de rua. Na ação são listadas as
ilegalidades das ações de Choque de Ordem contra tal população: uso de armas de fogo e de
choque para intimidar os moradores, violência nas operações por parte da Guarda Municipal,
além de insalubridade e venda de drogas dentro dos abrigos para população adulta.
"Não dá para assistir de braços cruzados às ações da Seop 138 contra a população de rua.
É absurdo demais retirar as pessoas da rua à força. Pior ainda é empregar violência e
jogar fora roupas e documentos dos moradores de rua. A Comlurb era a responsável por
dar apoio às ações. É absurdo", explicou o autor da Ação Civil Pública139.
138
Secretaria Especial de Ordem Pública.
139
Publicado em: http://www.jb.com.br/rio/noticias/2013/04/12/processo-que-pode-cassar-paes-ja-esta-na-justica/ ,
acesso em 10/04/13.
140
Publicado em: http://oglobo.globo.com/rio/ex-secretario-municipal-tera-contratos-investigados-13390563
146
denunciado pelo desvio de verba pública e corrupção141, envio de dinheiro para o exterior142
(2015), e pela violação de direitos humanos que permeou todo o período. Homem forte do
Prefeito Eduardo Paes, que inclusive o nomeou Chefe da Casa Civil, em 2014, estranhamente,
passou ileso de todas as acusações.
O vídeo “Recolher não é Acolher: É Barbárie!143”, da RRC, foi lançado com ampla
divulgação no youtube, como forma de denuncia contra o recolhimento e a internação
compulsória.
Grande polêmica na época também foi a liberação de verbas federais para as
Comunidades Terapêuticas, entidades de cunho religioso (ligadas a grupos católicos e
evangélicos) que abrigam dependentes de drogas para o tratamento, instituições muito criticadas
pela área da saúde e especialistas em saúde mental, pelo tipo e filosofia do tratamento. Verba
disputada, a Secretaria Nacional de Políticas sobre Drogas (Senad) teria em caixa à época R$ 130
milhões para tratamento de dependentes. Segundo informação144, o repasse seria de R$ 1 mil por
mês para cada adulto internado e de R$ 1,5 mil para cada criança ou adolescente.
Outro projeto que gerou grande polêmica foi o do Deputado Osmar Terra (PMDB), que
previa a criação de um cadastro nacional das pessoas que eram dependentes de drogas. Os
profissionais incumbidos do atendimento e de internações estariam obrigados à pronta
informação, para o cadastro, sobre o dependente atendido ou, se internado, beneficiado por alta.
Conforme o artigo 16 do projeto de lei nº 7.663/2010, também caberia a instituições de ensino
preencher uma “ficha de notificação, suspeita ou confirmação de uso e dependência de drogas
dos alunos”145. Houve uma grande mobilização contrária ao projeto de lei, pois estigmatizaria e
criminalizaria ainda mais essas pessoas, trazendo consequências também para suas famílias.
141
Publicada em: http://epoca.globo.com/tempo/noticia/2014/07/nova-gravacao-sugere-bcaixa-dois-bancado-pelo-
rei-do-onibusb-na-campanha-do-deputado-bethlem.html
142
Publicado em: https://oglobo.globo.com/rio/mp-investiga-informacao-de-que-rodrigo-bethlem-teria-mais-us-35-
milhoes-no-exterior-16662657
143
Publicado em: https://www.youtube.com/watch?v=5s71PNsW2NQ , 2012.
144
Publicado em: http://oglobo.globo.com/pais/politica-de-drogas-planalto-manda-liberar-verba-para-grupos-
religiosos-8123253 , acesso em 16/04/13.
145
Publicado em: http://www1.folha.uol.com.br/fsp/poder/103781-um-projeto-drogado.shtml , 14/04/13
147
Interessante relembrar que, na Alemanha, anos 1930, uma das leis de exceção
discriminatórias contra os judeus no Terceiro Reich foi cadastrar a todos e marcar suas roupas
com uma estrela amarela. Nenhum judeu poderia sair em público sem essa estrela.
Em tempo, pesquisa realizada pela Fundação Oswaldo Cruz (FIOCRUZ) sobre o perfil
dos usuários de crack no Brasil, trouxe dados que comprova que as propostas constantes no
projeto de lei que tramita no Senado Federal (PLC 37/2013) e que modifica atual Lei de Drogas
(11.343), não têm embasamento científico e não correspondem à realidade brasileira.
O levantamento demonstrou, por exemplo, que a grande maioria (78,9%) dos usuários de
crack deseja receber tratamento – o maior problema seria o baixo acesso aos serviços disponíveis
– sendo desnecessária, portanto, a ênfase na internação involuntária, proposta no texto do PLC 37
como base para o atendimento de dependentes de drogas. Outro dado encontrado na pesquisa,
que entrevistou cerca de 25 mil pessoas nas capitais e regiões metropolitanas de todo o país, é
que o universo de usuários de crack é de 370 mil pessoas e não 1,2 milhão, número que serviu de
base para as ações do programa “Crack, é possível vencer”, do governo federal. Segundo o
levantamento, esse número se aproxima, na verdade, do número total de usuários de drogas
ilícitas em todo o país, com exceção da maconha, e não somente de crack.
O trabalho, “Perfil dos Usuários de Crack e/ou Similares no Brasil 146”, coordenado pelo
pesquisador Francisco Inácio Bastos, trouxe evidências que podem ajudar o Brasil a tratar a
questão do crack de forma mais objetiva e consistente e com respeito aos direitos humanos.
A pesquisa propõe um tratamento mais humanizado, e que as pessoas se apresentem de
forma voluntária ao tratamento, enfocado na redução de danos. O PLC 37 não menciona essas
estratégias e tem como única métrica de sucesso a abstinência, o que não condiz com a realidade
da dependência. Projetos como o do deputado Osmar Terra criminalizam ainda mais uma
população já excluída e desassistida pelo Estado.
Em outubro de 2013, pesquisa realizada pela Secretaria Municipal de Desenvolvimento
Social com o apoio do Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (Iets), revela que a cidade do
Rio de Janeiro tem mais 5.000 moradores de rua. O censo mostra que 64,8% dos entrevistados
disseram estar nessa situação há pelo menos um ano. No total, a pesquisa detectou 5.580
moradores de rua, sendo 81,8% homens. O levantamento foi feito através 650 entrevistadores que
percorreram 96 roteiros na cidade, em horários alternados, para fazer o mapeamento detalhado.
146
Ver em: https://www.icict.fiocruz.br/content/livro-digital-da-pesquisa-nacional-sobre-o-uso-de-crack-%C3%A9-
lan%C3%A7ado .
148
As regiões onde foram detectadas as maiores quantidades de população de rua foram o Centro
(33,8%) e a Zona Sul (15,3%), juntas apresenta quase a metade da dessa população. A maioria
dos considerados “moradores de rua” se concentra na faixa etária de 25 a 59 anos de idade:
69,6%. Em seguida, estão os jovens, de 18 a 24 anos (17,5%); pessoas com mais de 60 anos
(6,3%); adolescentes de 12 a 17 anos (5,6%); e crianças de até 11 anos (1,1%). A pesquisa foi
publicada (impressa) pela SMAS, e também saiu na mídia147.
Outro estudo, realizado pelo Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública do
Estado do Rio de Janeiro (NUDEDH), traçou um perfil das pessoas em situação de rua, na região
metropolitana da capital. A pesquisa derrubou mitos e trouxe à tona outra realidade sobre o perfil
dessa população. Somente 13% dos moradores de rua são analfabetos, 65% não bebem e 62%
não usam drogas. “A intenção do projeto era realizar um mapeamento dessa população. É muito
difícil realizar esse censo, nem o Censo do IBGE os afirma, pois parte da premissa do endereço,
ou seja, são pessoas invisíveis”, afirmou a coordenadora do estudo, Juliana Moreira148.
Nossa prática, ao longo desses anos de trabalho nas ruas, atesta que o álcool é a droga
mais utilizada pela população adulta em situação de rua, e não o crack. O álcool é, inclusive, a
droga que mais mata, e não o crack! E que uma pequena minoria das crianças e adolescentes em
situação de rua faz uso do crack. Fica a pergunta: por que não é feita uma campanha nacional:
“Álcool – é possível vencer!!”? A resposta é simples: o álcool é uma droga lícita, mercadoria que
traz muito lucro para o mercado.
A impressionante pulsão ofensiva e sistemática das operações de recolhimento e
internação compulsória de crianças e adolescentes em situação de rua marcaram o ano de 2013,
principalmente por duas razões: a realização da Copa das Confederações, de 15 a 30 de junho
daquele ano; e a realização da Copa do Mundo no ano posterior (2014). A cidade tinha que estar
limpa, revitalizada e ordenada. Para isso, projetos de lei e práticas mais duras e repressivas foram
se incorporando para o ordenamento da cidade. O Projeto de Lei 728/2011, de autoria dos
senadores Marcelo Crivella (PRB-RJ), Ana Amélia (PP-RS) e Walter Pinheiro (PT-BA),
que previa que manifestações durante a Copa das Confederações e Copa do Mundo fossem
147
Publicado em: http://oglobo.globo.com/rio/rio-tem-mais-de-5-mil-moradores-de-rua-10598998 .
148
Publicado em: http://revistaforum.com.br/blog/2013/05/estudo-no-rj-mostra-que-maioria-da-populacao-de-rua-
nao-bebe-nem-usa-drogas/ , 16/05/2013
149
tratadas como atos de terrorismo, limitando, inclusiva o direito dos trabalhadores à greve, foi
desengavetado, mas, felizmente, não foi adiante.
Uma declaração do Secretário Geral da FIFA, Jérôme Valcke, em abril daquele ano,
também causou perplexidade: “Menos democracia, às vezes, é melhor para organizar uma
Copa149”. Comparou Brasil e Rússia, quando disse que era melhor ter um chefe de estado
centralizador, como o russo Vladimir Puttin, para se organizar um Mundial, pois, para Valcke,
seria mais fácil organizar uma Copa do Mundo em países onde a democracia não tenha tanta
força.
Do Dossiê do Comitê Popular da Copa e Olimpíadas, lançado em maio de 2013,
importante destacarmos algumas denúncias:
O início das ações na direção desse projeto permite afirmar que a cidade avança em
sentido oposto ao da integração social e da promoção da dignidade humana. Os impactos
das intervenções urbanas são de grandes proporções, e envolvem diversos processos de
exclusão social, com destaque para as remoções. Para se ter uma ideia, as informações
disponíveis possibilitam estimar gastos da ordem de um bilhão de reais com
desapropriações (...).
A implantação dos BRT s – Bus Rapid Transit. Para além das remoções, estão em curso
transformações mais profundas na dinâmica urbana do Rio de Janeiro, envolvendo, de
um lado, novos processos de elitização e mercantilização da cidade, e de outro, novos
padrões de relação entre o Estado e os agentes econômicos e sociais, marcados pela
negação das esferas públicas democráticas de tomada de decisões e por intervenções
autoritárias, na perspectiva daquilo que tem sido chamado de cidade de exceção.
Decretos, medidas provisórias, leis votadas ao largo do ordenamento jurídico e longe do
olhar dos cidadãos, assim como um emaranhado de portarias e resoluções, constroem
uma institucionalidade de exceção. Nesta imposição da norma a cada caso particular,
violam-se abertamente os princípios da impessoalidade, universalidade e publicidade da
lei e dos atos da administração pública. De fato, as intervenções em curso envolvem
diversos processos nos quais os interesses privados têm sido beneficiados por isenções e
favores, feitos em detrimento do interesse público, legitimados em nome das parcerias
público-privadas.
Foi, principalmente, a partir de 2013 que a o terrorismo de estado e suas práticas abusivas
de exceção ultrapassam o território das favelas e periferias, e ganham visibilidade na sociedade,
149
Publicado em: http://www.espbr.com/noticias/excesso-democracia-afeta-organizacao-copa-diz-valcke , acesso em
25/04/13.
150
ou para parte dela, e ganham as ruas dos principais centros urbanos, eclodindo nas manifestações
públicas que se iniciaram em junho daquele ano.
A primeira grande manifestação daquele ano foi a luta do Movimento Passe Livre (MPL),
movimento a favor dos transportes públicos gratuitos e mobilizado contra o aumento da
passagem do ônibus, que desencadeou a ampla mobilização popular no Brasil em junho de 2013,
colocando centenas de milhares de pessoas nas ruas das principais cidades do país. O MPL foi
criado em janeiro de 2005, por ocasião do Fórum Social Mundial em Porto Alegre, como uma
rede federativa de coletivos locais. Esses coletivos já existiam havia alguns anos e haviam
travado lutas importantes, como a de Salvador, em 2003, contra o aumento da passagem de
ônibus. A carta de princípios do MPL define o movimento como “um movimento horizontal,
autônomo, independente, não partidário, mas não antipartidos”150.
Será que o Brasil havia acordado? Muitos pensaram. Tudo indicava que sim! Haviam
anos que não se via uma manifestação tão grande no Rio de Janeiro e em outras capitais. Tudo
parecia muito pacífico, repleta de pessoas de todas as idades: crianças, adolescentes, jovens,
adultos, idosos; todos aparentemente felizes por fazer parte daquela manifestação. Parecia que
todos só estavam esperando um chamamento, que veio, mas, não veio sozinho. Particularmente,
achei estranha a ideia da maioria das pessoas estar ali sem um objetivo específico, se mostrar
contrária a partidos políticos, dentre outras. Um exemplo foi a expulsão de manifestantes da CUT
(Central Única dos Trabalhadores), pressionados por uma multidão que gritava: “Sem partido”!
As "bandeiras" dos manifestantes eram direcionadas contra o uso de dinheiro público em obras
da Copa do Mundo, melhorias nas áreas de saúde, educação e segurança, combate à corrupção, e
contra a PEC 37 (mudança de lei que pode tirar o poder de investigação do MP)151.
Também me chamou atenção a presença de grupos carregando bandeiras favoráveis à
ditadura, contra o comunismo, e de alguns homens fortes, cabelo bem curto, com uma postura
estranha, mais parecida com P2152 ou X9153, além do policiamento ostensivo. Ali também vimos
150
https://blogdaboitempo.com.br/2014/01/23/o-movimento-passe-livre/
151
Veja mais em https://noticias.uol.com.br/cotidiano/ultimas-noticias/2013/06/20/em-dia-de-maior-mobilizacao-
protestos-levam-centenas-de-milhares-as-ruas-no-brasil.htm?cmpid=copiaecola
152
P2 - Polícia Militar sem farda, infiltrada em espaços diversos para fazer investigação sem ser notada.
153
X9 – Conhecido como delator, “dedo-duro”.
151
pessoas usando a máscara do teatro do anônimo, outras todas de preto, com o rosto coberto com
toucas ninjas, os quais, posteriormente, conhecidos como “black blocs154”.
Ao final se teve notícia de pancadaria e quebra-quebra, registro de violência em
confrontos entre manifestantes e policiais e atos de “vandalismo” em várias cidades. No RJ foi
noticiada ter mais de 60 feridos.
Rafael Braga, de 25 anos, morador de rua, foi detido após a manifestação do dia 20 de
junho, quando milhares de pessoas tomaram o centro do Rio de Janeiro no embalo dos protestos
contra o aumento das passagens de ônibus. Ele levava consigo duas garrafas de produtos de
limpeza – água sanitária e desinfetante Pinho Sol, que foram consideradas “artefato explosivo ou
incendiário” pela polícia e pelo juiz responsável pelo caso. É a única pessoa julgada e condenada
(05 anos) por crime relacionado a protestos no Brasil. Importante destacar que Rafael Braga é
negro, morava na rua e usava crack155.
Apesar de tudo, o resultado pareceu positivo para uma quase totalidade das pessoas que
participaram da manifestação, e campo para muito estudo, artigos e opiniões, em sua maioria
enaltecendo as manifestações. Essa foi a primeira, mas que desencadeou várias outras
manifestações pelo país. No RJ a maioria das manifestações que foram ocorrendo tinha o objetivo
de protestar contra o Governo do Estado, mas também outras contra o governo federal, o PT, a
corrupção, a realização da Copa e Jogos Olímpicos. Em todas as manifestações, a violência da
polícia contra grupos de manifestantes foi desmesurada. Os policiais não atuavam apenas entre os
que causavam danos ao patrimônio público, mas intimidavam ostensivamente qualquer um, sem
contar as bombas de gás, balas de borracha e spray de pimenta lançados contra quem protestava
pacificamente ou não. Nesses episódios, a violência do Estado, cotidiana nas favelas e periferias,
foi sentida por uma significativa parcela da população, residentes em áreas mais favorecidas. Ou
seja, a violência do Estado desceu a favela e foi pro asfalto.
Foi também nessa época que observamos o descortinar e o aumento de movimentos e
pessoas que defendiam, já sem reservas, ideologias totalitárias, a volta da ditadura, muita
intolerância, preconceito, ódio à diferença, etc... Mas, só alguns anos mais tarde que alguns
intelectuais iriam de fato confirmar que “os fascistas estavam passando...”.
154
“Black Blocs” é um grupo/movimento que surgiu na Europa contra a globalização e o capital financeiro.
155
Publicado em: http://www.diariodocentrodomundo.com.br/quem-e-rafael-braga-vieira-o-unico-preso-por-crime-
relacionado-a-protestos-no-brasil-ele-portava-pinho-sol/
152
4.1.2.13 2014
observamos também o deslocamento desse público para outras áreas, distantes do centro e zona
sul da cidade, assim como alguns deles se refugiaram nas chamadas “ocupações” no Centro da
cidade e arredores.
Nesse período, observamos o aumento das terceirizações feitas pelo Poder Público. Foram
contratadas Organizações Sociais (OSs156) para atuarem no Estado e Município em diversas
áreas: Saúde, Assistência, etc. Em consequência, vários problemas foram gerados, inclusive, no
caso da Assistência Social, na contratação de pessoal sem perfil qualificado e experiência, mal
gerenciamento de centros de atenção especializados, abrigos, etc..
Denúncias de corrupção, desvio de verba pública, recebimento de propina foram feitas
contra o ex Secretário Municipal de Assistência Social, e Deputado Federal, Rodrigo Bethlem.
Fatos graves, mas que permaneceram impunes perante a justiça, e também no Legislativo, apesar
de pedidos de instauração de CPI (Comissão Parlamentar de Inquérito).
No que tange à violação de direitos humanos, um fato ocorrido em início de fevereiro,
quando um adolescente havia sido espancado, ferido com uma faca e amarrado nu a um poste,
preso ao pescoço com uma tranca de bicicleta, no bairro do Flamengo, zona sul da cidade do RJ,
pela ação de “Justiceiros”, por suspeita de este ter cometido um furto157, causou grande
indignação, mas não para todos. Considerado um ato de grande violência e brutalidade, uma
parcela da sociedade, no entanto, concordou com o ato, expressando que dessa forma o país deixa
de ser “um país da impunidade”. Muitos dos comentários, em diversas notícias sobre esse fato,
expressaram apoio à ação dos justiceiros e contrários aos direitos humanos, especialmente depois
do comentário de uma jornalista de TV, de um jornal do SBT, que ao final disse: “Tá com dó?
Leva pra casa!”. O fato ainda serviu de exemplo para o cometimento de ações semelhantes em
outras áreas da cidade, como em Campo Grande158, zona oeste do Rio, e Belford Roxo, na
156
As organizações Sociais de Saúde (OSS) são instituições do setor privado, sem fins lucrativos, que atuam em
parceria formal com o Estado e Município, e colaboram de forma complementar.
157
http://noticias.r7.com/rio-de-janeiro/adolescente-suspeito-de-roubo-e-espancado-e-amarrado-nu-em-poste-na-
zona-sul-do-rio-03022014, acesso em 03/02/14.
158
Publicado em: http://extra.globo.com/casos-de-policia/menor-suspeito-de-arrombar-trailer-em-campo-grande-
espancado-amarrado-poste-11786587.html , em 05/03/14.
154
Fonte: Reprodução/Facebook
O menino, quando foi levado para um abrigo, disse aos funcionários, e depois também
confirmou à policia, que foi amarrado ao poste por um grupo de cerca de 15 homens em motos.
Um deles estaria com uma pistola. Ele teria sido agredido e chegou a ser levado para o Souza
Aguiar com lesões pelo corpo, mas acabou fugindo do hospital. O Grupo se autodenominou
“Justiceiros da Zona Sul”, formado por jovens de classe média.
Esta é a vida real. Mas, no discurso moralizante, céu e inferno estão em lugares
invertidos. Este discurso antes estava restrito ao ambiente familiar: o xucro falava
atrocidades, se enfurecia, ficava vermelho, ameaçava infarto mas, ao fim do jantar,
servia-se do café e se acalmava nos primeiros segundos da novela. Voltava a hibernar
em paz sobre o sofá com uma baba pastosa no canto da boca. Depois o xucro descobriu a
internet e se transformou em comentarista oficial de portais. É lá que ele transpõe tudo o
que sabe sobre leis, direitos de ir e vir, humanidade e segurança pública, sempre sob o
lema “bandido bom é bandido morto” e suas variações: “direitos humanos são direitos
dos manos”, “direitos humanos para humanos direitos”, “tá com pena do bandido, leva
pra casa”, “estatuto de criança e adolescente protege o jovem bandido”, etc.
A sofisticação de seu raciocínio denota uma deficiência lógica e cognitiva. Lógica
porque vê impunidade em presídios superlotados destinados a animais, não para
humanos. E cognitiva porque confessa a incapacidade de reconhecer a humanidade no
outro – o outro é sempre o “bandido”, mas também pode ser a “biscate”, o “drogado”, o
“mano”, o “playboy” e até o “que tem dó de bandido”. Para ele, não há nada, nem carne
nem osso nem sangue debaixo do rótulo: tudo é uma questão de senso de oportunidade.
Daí a paranoia, daí a patologia. O conselheiro Aires, célebre personagem de Machado de
Assis, é quem costumava dizer: “a ocasião faz o furto; o ladrão nasce feito 160”.
159
Publicado em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2014/02/policia-identifica-suspeito-de-matar-homem-
tiros-na-baixada.html , acesso em 06/02/14.
160
Parte do artigo de Matheus Pichonelli, Publicado em: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/ta-com-do-leva-
pra-casa-9077.html, acesso em 10/02/14.
155
Após esse episódio do menino preso a um poste, que teve grande repercussão, a
Prefeitura criou uma força-tarefa “para coibir a prática de pequenos delitos, principalmente
roubos e furtos a pedestre na Zona Sul e no Centro da cidade”. As operações foram desenvolvidas
de forma integrada das Secretarias Municipais de Desenvolvimento Social e de Ordem Pública,
da Comlurb, Guarda Municipal e Polícia Militar, trabalhando 24 horas, todos os dias da semana.
Segundo o coordenador do projeto, Rodrigo Bethlem, o objetivo é atuar com todos os órgãos para
enfrentar os problemas da cidade de forma simultânea. Logo no primeiro dia de atuação, 70
adultos, 20 adolescentes e uma criança foram recolhidos para abrigos161.
Em nível Estadual, o Governador Sérgio Cabral renuncia ao cargo, em 03/04/14, depois
de cumprir 02 mandatos, sendo o último eleito (em 2010) com a maior votação da histórica do
estado. Sua renúncia já era prevista, pois Cabral pretendia concorrer às próximas eleições de
outubro daquele mesmo ano. Assume Luiz Fernando Pezão, então Vice-Governador. Desgastado
politicamente, Sérgio Cabral nem chegou a candidatar-se pela avalanche de denúncias e
escândalos de corrupção, propina e desvio de dinheiro público que foram surgindo, até que foi
preso em novembro de 2016.
No início de 2014, com as sistemáticas operações de recolhimento e violação de direitos
humanos da população em situação de rua, as discussões envolvendo os direitos de crianças e
adolescentes tornaram-se mais frequentes, e no dia 10 de abril de 2014, foi realizada a audiência
pública Violência sistemática contra crianças e adolescentes em situação de rua, tendo como
objetivo abordar uma série de episódios alarmantes que denunciavam o contexto de violação de
direitos que vem ocorrendo no Rio de Janeiro. A audiência resultou de uma construção coletiva
de organizações, grupos e indivíduos atuantes no campo da defesa dos direitos infantojuvenis e
demonstrou a não implementação da Política Municipal de Atendimento à Criança e ao
Adolescente em Situação de Rua, deliberada pelo Conselho Municipal dos Direitos da Criança e
do Adolescente – CMDCA Rio - (Deliberação 763/2009).
A audiência pública foi promovida pela Comissão da População de Rua, da Câmara
Municipal de Vereadores, em articulação com instituições da sociedade civil e do Fórum de
População em situação de rua. Enquanto desdobramento da Audiência foi constituído o Grupo de
161
Publicada em: http://oglobo.globo.com/rio/forca-tarefa-para-coibir-roubos-furtos-acolhe-mais-de-90-pessoas-
11636677 , em 18/02/14.
156
Trabalho (GT) Criança e Adolescente da Comissão POP Rua162, para aprofundar as reflexões e o
debate, visando sistematizar propostas que possam cooperar com o aprimoramento das práticas
existentes no município, e elaborar a proposta de Adequação da Resolução 20/2011 à normativas
nacional e internacional de direitos humanos, através de abordagem humanizada junto à
população em situação de rua. Como veremos no capítulo 6, o resultado, passados 02 anos, desse
grupo de trabalho foi muito positivo, pois não só conseguiu a revogação da Resolução 20, como
foi ratificada e assinada pelo Secretário Municipal de Desenvolvimento Social uma nova
Resolução, que teve grande contribuição de nosso GT Cri/Adol da Comissão POP Rua.
Outra grave denúncia foi feita pelo Fórum da População de Rua, numa reunião no
Conselho Regional de Serviço Social (CRESS RJ), em meados de março/2014, na qual
participaram representantes da sociedade civil, de diversas maternidades e hospitais públicos,
assistentes sociais, dentre outros. Foi relatado que existia uma orientação / determinação do
Ministério Público (mas que a princípio nenhum órgão presente havia visto ou recebido por
escrito), de que toda adolescente grávida em situação de rua, que estivesse em acompanhamento
pré-natal ou que tivesse dado entrada na maternidade para ter o bebê, se fosse detectado essa ser
usuária de drogas (crack, dentre outras), que o Hospital ou Maternidade deveria notificar
imediatamente a I Vara da Infância e Juventude, que procederia a suspensão do poder familiar ou,
quando possível, a entrega do bebê à família extensa ou substituta. Aqui se iniciava um tema
grave, um dos que também traremos no capítulo 5 dessa tese: Adoção e/ou retirada compulsória
de bebês de jovens mães e mulheres em situação de rua, supostamente usuárias de drogas/crack.
No início do 2º semestre, já às vésperas da Copa, o Ministério Público constatou o
descumprimento de uma decisão judicial que proíbe a retirada compulsória de moradores de rua
em áreas de grande fluxo turístico durante a Copa do Mundo. Assim como, a superlotação no
principal Abrigo Municipal da cidade, o Rio Acolhedor, para população adulta de rua, que fica
em Antares, Santa Cruz, zona oeste do Rio, com péssimas condições de infraestrutura e higiene,
verdadeiro campo de concentração, e ainda com o tráfico de drogas atuando nas imediações e
dentro do abrigo. Várias denúncias estavam sendo feitas pela população em situação de rua de
que as equipes de abordagem da SMAS estavam levando-os para lugares distantes à noite, e
deixando-os ao relento, perdidos e com frio.
162
O GT Cri/Adol da Comissão POP Rua era formado por: Comissão Municipal da População de Rua da Câmara de
Vereadores, Ministério Público, Defensoria Pública, Rede Rio Criança, CIESPI, Se Essa Rua Fosse Minha.
157
Durante a Copa do Mundo de 2014, as quatro principais violações dos direitos da criança
e do adolescente encontradas foram: violência policial e do Exército (especialmente
durante as pacificações); remoções; exploração sexual de crianças e adolescentes; e
trabalho infantil. Embora não exista uma estatística sobre os números absolutos, a
maioria dos casos aconteceu nas primeiras duas áreas. O dossiê do Comitê Popular traz
muitos exemplos: para limpar os lugares turísticos, por exemplo, crianças e adolescentes
em situação de rua foram recolhidas. Além disso, muitas crianças e adolescentes em
situação de rua foram encaminhados para unidades de internação do Departamento Geral
de Ações Socioeducativas (DEGASE) ou desapareceram sem que os próprios colegas
saibam onde se encontram.
Ao retornarem para a rua após quase um mês depois da Copa, as crianças e adolescentes
começaram a revelar as violências sofridas nos abrigos e em centros de internação do
DEGASE. Nas favelas também foram relatados muitos casos de violência policial contra
crianças e adolescentes, incluindo homicídios mascarados pelos Auto de Resistência.
Durante a Copa 2014, o Disque Denuncia registrou 1.658 casos de violações dos
direitos da criança, o que representa 17% a mais do que no mês respectivo do ano
anterior, que alcançou 9.753 denúncias.
163
Publicada em: http://www.observatoriodasmetropoles.net/index.php?option=com_k2&view=item&
id=1416%3Alan%C3%A7ametno-dossi%C3%AA-megaeventos-e-viola%C3%A7%C3%B5es-dos-direitos-
humanos-no-rio&Itemid=164&lang=pt .
158
164
Publicado em: http://epoca.globo.com/tempo/noticia/2014/07/nova-gravacao-sugere-bcaixa-dois-bancado-pelo-
rei-do-onibusb-na-campanha-do-deputado-bethlem.html.
165
Publicada em: http://oglobo.globo.com/rio/ex-secretario-municipal-tera-contratos-investigados-13390563.
166
Publicada em: http://oglobo.globo.com/rio/procurador-geral-da-republica-pede-investigacao-contra-deputado-
rodrigo-bethlem-13517559#ixzz39uP4kEu8.
159
4.1.2.14 2015
Processonº: 0510162-67.2015.8.19.0001
Decisão
Descrição:
1 - DEFIRO, por ora, o pedido de fl. 06, item ´b´ para determinar a exibição do convênio
firmado entre os réus e a FECOMERCIO, bem como para que o segundo réu esclareça
qual o protocolo de atendimento e o projeto de intervenção relacionados às abordagens
de crianças e adolescentes em situação de risco, nos termos da obrigação que assumiu
com a assinatura do referido convênio. Intimem-se para ciência e cumprimento no prazo
de 48 horas. 2- Citem-se.
167
O Comitê congrega várias pessoas e instituições da sociedade civil.
168
Publicado em: http://www.observatoriodasmetropoles.net/index.php?option=com_k2&view=item&
id=1416%3Alan%C3%A7ametno-dossi%C3%AA-megaeventos-e-viola%C3%A7%C3%B5es-dos-direitos-
humanos-no-rio&Itemid=164&lang=pt acesso em dezembro/17.
169
O relatório mostra a falta de transparência nas licitações e no controle público do orçamento da Olimpíada, que
totaliza cerca de 39 bilhões, ressaltando a grave violação do direito à informação que dificulta o efetivo controle
social e debate público sobre a realização dos Jogos. Além disso, o Comitê demonstra que, ao contrario do que é
amplamente divulgado pelo poder público, a maior parte dos gastos da Olimpíada do Rio de Janeiro, cerca de 62%,
é de responsabilidade do poder público, enquanto o setor privado assume apenas os 38% restantes. O dossiê
nomeia as poucas empreiteiras que estão presentes em quase todos os grandes projetos que estão sendo
implementados.
170
Uma das situações mais grave de violação aos direitos humanos foi reportada pelo Ministério Público do Trabalho
do Rio de Janeiro (MPT-RJ) em uma das empreiteiras responsáveis pela construção da Vila Olímpica: a
empreiteira mantinha 11 trabalhadores em situação análoga à escravidão.
162
4.1.2.15 2016
medidas mais repressivas, especialmente sobre a classe empobrecida, dentre ela a população em
situação de rua e jovens das favelas e periferia. Não poderia ser diferente, especialmente por 2016
ser o tão esperado ano dos Jogos Olímpicos no Rio de Janeiro.
A Defensoria Pública do Estado do RJ, através da Coordenadoria de Defesa dos Direitos
da Criança e do Adolescente (CDEDICA), em fevereiro de 2016, denunciou ao Comitê dos
Direitos das Crianças da Organização das Nações Unidas (ONU), junto com outras 25
instituições, a prática de apreensão irregular de crianças e adolescentes por agentes do Estado.
Segundo o documento, a apreensão compulsória de meninos e meninas nas ruas da cidade ocorre
como uma forma de “higienização” preparatória para as Olimpíadas Rio 2016, o que viola o
direito de ir, vir e permanecer em áreas nobres do Rio. De acordo com o texto, “crianças e
adolescentes negros, pobres e moradores de periferia têm a sua liberdade de locomoção e
permanência, nos mais variados pontos da cidade, constantemente ameaçada por ações
desencadeadas no âmbito dos governos estadual e municipal” 171.
O subcoordenador da CDEDICA, o defensor público Rodrigo Azambuja, explicou que ele
e a coordenadora do setor, Eufrásia Souza, vinham recebendo denúncias dos Conselhos Tutelares
da zona sul e Centro há pouco mais de um ano. Os jovens suspeitos eram detidos nas abordagens
em ônibus em direção às praias e nas ruas e levados para a delegacia por equipes da Polícia
Militar, que chamavam os Conselhos Tutelares para acompanhar as crianças e adolescentes.
Mesmo sem encontrarem nada que se configurasse roubo ou furto, os meninos/as eram levados
para a delegacia para a averiguação da existência de mandato de busca e apreensão, o que é
contrário ao que versa a lei.
A CDEDICA entrou com pedido de habeas corpus coletivo para todas as crianças e
adolescentes, para evitar a repetição dessa prática. Porém, a medida não surtiu efeito. Em um
único fim de semana de agosto, foram cerca de160 levados ilegalmente para a delegacia.
Além da ilegalidade das apreensões, a rede de abrigos da cidade apresentava graves
problemas, as instalações são precárias e insuficientes para receber o número elevado de meninos
e meninas que são encaminhados. Em março de 2016, a Defensoria Pública ajuizou ação civil
pública e a 1ª Vara da Infância, da Juventude e do Idoso da Capital, determinou o fechamento e
paralisação das atividades do Abrigo Ayrton Senna, em Vila Isabel, por 30 dias, mas o mesmo
encontra-se fechado até os dias de hoje. De acordo com o juiz Pedro Henrique Alves, as
171
Esta notícia foi também publicada em: http://agenciabrasil.ebc.com.br/direitos-humanos/noticia/2016-
02/defensoria-denuncia-onu-apreensao-irregular-de-adolescentes-no-rio , acesso em 29/02/16.
164
172
Publicado em: http://www.jb.com.br/rio/noticias/2016/03/13/justica-do-rio-determina-fechamento-de-unidade-de-
acolhimento-para-menores/ , em 13/03/16.
173
O Ronda DH tem apoio da Comissão de Direitos Humanos da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), da
Câmara Municipal e do Movimento Nacional de População de Rua.
165
Ordem. A Guarda Municipal foi apontada em 17% dos dados e a Secretaria Municipal de
Desenvolvimento Social (SMDS), em 14%174-175.
Às vésperas da realização das Olimpíadas Rio 2016, o Governador do RJ, Luiz Fernando
Pezão, decretou estado de calamidade pública no Estado do RJ. A crise financeira nas contas
públicas do Estado teve impacto em várias áreas como saúde, educação, social, segurança e
outras, mas, a ajuda do governo federal, que autorizou à época um repasse de R$ 2,9 bilhões para
o Rio de Janeiro, seria destinado apenas para “auxiliar nas despesas com Segurança Pública em
decorrência dos Jogos Olímpicos e Paraolímpicos176”.
O esquema de segurança para os Jogos Olímpicos começou bem antes de sua realização,
que ocorreu no período de 05 a 21 de agosto. Diferente do período da Copa, praticamente não se
viu crianças e adolescentes em situação de rua nas áreas em que se realizaram os jogos, bem
como no Centro da cidade. Alguns ainda eram vistos na zona sul e norte. Além do controle
urbano, o direito à liberdade, de ir e vir e de expressão também sofreu suspensão. Manifestações
estavam proibidas, pessoas não podiam usar camisetas, levar faixas ou cartazes com slogans
negativos ao governo (ex: “F ORA TEMER!”) nos locais oficiais de realização dos jogos
olímpicos, bem como proibida a divulgação de informação ou publicidade negativa aos jogos
olímpicos.
O Ministério Público Federal entrou com Liminar contra essas práticas, consideradas
“abuso de autoridade”. Segue processo abaixo.
174
Publicado em: https://www.brasildefato.com.br/2016/08/13/rio-tem-aumento-de-60-em-denuncias-de-violencia-
contra-pessoas-em-situacao-de-rua/?referer=bdf_button_whatsapp , em 12/08/16.
175
Importante observar que após essa pesquisa, a população em situação de rua, principalmente a adulta, se
concentra à noite na calçada em frente ao prédio da Defensoria Pública e do Ministério Público, por terem câmeras
que ficam ligadas 24hs, o que os fazem sentir mais seguros. São mais de 100 pessoas ali concentradas.
176
Publicado em: http://brasil.elpais.com/brasil/2016/06/22/politica/1466550448_610963.html , julho/17.
166
Também como exemplo da imposição do estado de exceção, a Rede Rio Criança quando
da tentativa de lançamento de sua campanha “Jogos Olímpicos pra quem?”, criou 03 peças
publicitárias - Outdoor, Busdoor e Lambe-lambe, sobre a violação de direitos durante a
organização da cidade para / e nas Olimpíadas 2016. No entanto, segundo informação da firma
167
que faria a impressão e colocação de Outdoor, ao observar o conteúdo do material, disse que o
Comitê Olímpico Internacional (COI), com a concordância do Poder Executivo Municipal e
Estadual, estavam proibindo a publicização de mídias exteriores de teor negativo das Olimpíadas
em caminhos/áreas próximas aos jogos, bem como a realização de eventos nas áreas próximas
dos locais de realização dos jogos. Dessa forma, tivemos que optar pela divulgação virtual das
peças publicitárias177 (email e redes sociais: facebook e whatszapp).
O entorno das áreas onde se realizaram os jogos foram interditados, não só para o trânsito,
como para pessoas. Só poderia circular moradores e quem fosse assistir aos jogos. Independente
da proibição, o Comitê Popular da Copa e Jogos Olímpicos – Jogos da Exclusão organizou e
mobilizou vários segmentos para o ato público e manifestação que ocorreu no dia de abertura da
Olímpiada, 05 de agosto, na Tijuca, bairro próximo ao Maracanã. Os manifestantes se
concentraram na Pça Saenz Pena para irem, em passeata, até o Maracanã. A repressão já se fazia
presente desde o ato público na Praça e, posteriormente, durante a passeata, que foi impedida de
continuar seu percurso, pela polícia montada, no Largo da 2ª Feira, com muita violência, para que
os manifestantes não chegassem ao Estádio do Maracanã.
177
Publicadas em : https://www.facebook.com/RedeRioCrianca/.
168
Aprovada pelo Congresso Nacional classifica como atos de terror "incendiar, depredar,
saquear, destruir ou explodir meios de transporte ou qualquer bem público ou privado".
Também prevê as ações de "interferir, sabotar ou danificar sistemas de informática ou
bancos de dados".
Segundo a presidente, tais definições apresentadas são "excessivamente amplas e
imprecisas". Além disso, são atos com diferentes potenciais ofensivos com penas
idênticas, em violação ao princípio da proporcionalidade e da taxatividade. A chefe do
Executivo argumenta também haver outros incisos que já garantem a previsão das
condutas graves que devem ser consideradas ato de terrorismo.
Apologia
Foi vetado ainda o artigo 4º, que previa pena de quatro a oito anos de reclusão para a
prática de apologia ao terrorismo. Segundo o governo, trata-se de um artigo que "busca
penalizar ato a partir de um conceito muito amplo e com pena alta, ferindo o princípio da
proporcionalidade e gerando insegurança jurídica". Além disso, da forma como previsto,
169
178
Publicada em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/03/18/lei-antiterrorismo-e-sancionada-com-
vetos-pela-presidente-dilma , em 18/03/2016.
179
Publicado em: http://www.bbc.com/portuguese/brasil-38014852 , acesso em nov/17.
170
4.1.2.16 2017
180
Publicada em: https://oglobo.globo.com/rio/campanha-prega-fim-da-caridade-para-evitar-mendigos-em-ipanema-
21819967 , acesso em set/17.
171
181
Publicado em: https://www.facebook.com/justicanegra?pnref=story , acesso em set/15.
172
Vem chegando o verão... Rio de Janeiro, a cidade maravilhosa se prepara para o verão, a
principal estação do ano para a maioria dos cariocas, brasileiros e turistas que por aqui chegam,
em busca de sol, mar e diversão. Para administrar essa estação, uma das principais preocupações
do Estado é com a segurança pública, principalmente nos pontos turísticos e áreas nobres, como
as praias da zona sul da cidade.
Sou negro. Neste momento estou trajando bermuda de praia e camiseta. Estou em
Copacabana. Vou correr na areia da praia. Não levarei dinheiro, nem documentos.
Segundo a lógica carioca posso ser preso, levarei um tiro ao correr ou vou apanhar de
um justiceiro.
Para você que acha que me faço de vítima: essa é a minha realidade.
Enquanto você tem medo de ir à praia e perder seu Iphone, eu tenho receio de morrer.
Não é justo pra ninguém, correto?
Só que durante TODA a vida fui "confundido" com bandido apenas por ser negro. Meu
mundo é assim. A toda hora ter que provar que sou honesto.
Caso eu morra não terão protestos nas redes sociais, nas ruas, na mídia. Serei mais um
preto. Lamentarão a família e os amigos.
E você? Tem medo de que? 182
A chamada Operação Rio Verão foi assim formalmente batizada em 2014, mas na
realidade sempre houve um destacamento maior de policiais nas praias do Rio de Janeiro durante
o período de verão. Fazem parte da operação a Secretaria Municipal de Ordem Pública, de
Segurança Pública, Polícia Militar, Guarda Municipal, e, eventualmente, a Secretaria Municipal
de Assistência Social, através do Plano Verão, mencionado anteriormente. O objetivo é o
182
Texto de Ernesto Xavier, escrito no dia 24/09/15 e compartilhado pelo Movimento de Organização de Base.
Publicado em: https://www.facebook.com/events/1628582030745311/
173
ordenamento da cidade, dar segurança à população, evitar a prática de arrastões, roubos e furtos
na praia.
Notadamente, essa segurança está restrita a um grupo seleto de pessoas: moradores de
classe média e alta, assim como a turistas, considerados pessoas “de bem”, e que tenham a pele
clara. Para estes, o direito de ir e vir, o direito ao lazer estará assegurado. Porém, para aqueles que
vêm das favelas e periferias, ou mesmo das ruas, que tem a pele, digamos, mais escurinha, que
não sabem se comportar na praia, andam em galera, não são bem-vindos. Ao contrário, são
expulsos. Às vezes nem conseguem chegar ao seu destino, pois, a blitz da polícia os retiram dos
ônibus antes mesmo de chegarem à praia.
Em pesquisa feita em arquivos pessoais, podemos observar que são noticiados casos de
arrastão, pelo menos, desde a década de 1990, quando já se faziam operações nas praias da zona
sul da cidade, também refletindo preconceito e segregação.
A versão nazista de uma abordagem preventiva em relação ao crime previa que a polícia
identificasse prováveis criminosos e os prendesse antes que fizessem qualquer coisa
(GELLATELY, 2011, p. 150).
176
Uma segunda reunião do Comando Geral da PM foi marcada para acontecer uma
semana depois, no dia 24/09/14, para ampliar o debate e agregar possíveis parcerias. Uma grande
mobilização de instituições e defensores de direitos humanos foi feita pela Rede Rio Criança com
sucesso, quando garantimos a presença de um grupo amplo formado por representantes do
Ministério Público, Defensoria Pública, CEDCA, CMDCA, Conselho Tutelar, Comissão Direitos
Humanos ALERJ, Comissão Municipal POP RUA, Conselho Regional de Serviço Social
(CRESS), OAB, Rede Rio Criança, o que fortaleceu a discussão em torno dos direitos das
crianças e adolescentes, e não da repressão e controle dos mesmos.
O Coronel da PM, que presidiu a reunião, anunciou que seria colocado um efetivo de
710 policiais na orla (do Flamengo ao Recreio dos Bandeirantes). Dentre a proposta do Estado
Maior da PM de alinhar e traçar ações integradas junto aos órgãos públicos diante dos
acontecimentos nas praias do Rio (arrastões), os objetivos eram: adequar o planejamento da PM
de forma a enfrentar o problema; cooperação de diversos órgãos envolvidos; garantia de direitos
das cri/adol; identificação dos responsáveis dos adolescentes. Mesmo o Coronel do Comando
ressaltando que o principal objetivo era estabelecer parcerias dos diferentes órgãos e instituições
para que fossem feitas ações preventivas, sabemos que as práticas de “manutenção da ordem” são
repressivas, de controle e encarceramento. Nosso grupo fez os devidos esclarecimentos sobre os
direitos desses adolescentes (ir e vir, poder andar sem documentos e sem os responsáveis, de se
expressarem, participarem de atividades de lazer, etc..), e que estávamos ali para defender esses
direitos183. Destaco abaixo parte da fala de Margarida Prado, Conselheira pela OAB no CEDCA:
183
A transcrição de destaques das falas da 2ª reunião do Comando Maior da PMRJ estão no anexo 6.
177
e a presença do Estado nesse cinturão de pobreza, então, pra mim, esse é o marco
negativo. Agora, Sr, Coronel, me espanta que eu seja chamada para um encontro desse
em momento algum se sai da perspectiva do ato infracional e se fale, por exemplo, da
situação drástica da polícia que atuou nesses eventos. O que nós vimos e o que
escutamos é de uma atuação totalmente despreparada da presença que se colocou na
areia, numa atitude tão ou até mais violenta como alguns rapazes de fato se
comportaram. Uma polícia despreparada, não cuidadosa, inclusive com a repercussão em
massa do que significaria soltar bombas de efeito moral. Bombas de efeito moral numa
areia??!! Onde as famílias estão deitadas!! Isso é tão grave quanto o grupo de jovens
furtar ou deixar de furtar, porque a final de contas, são pessoas preparadas para atuar
nessas situações (...).
Além desta, outras falas em defesa e pela garantia de direitos das crianças e adolescentes
rebateram as declarações dos oficiais da PM e Bombeiros presentes à reunião, bem como
algumas que buscavam uma mediação. Saímos com o compromisso de se estabelecerem parcerias
com a SMDS, Conselho Tutelar, dentre outros, na busca de uma atuação conjunta para melhor
atender a população e os adolescentes. No entanto, a Operação Verão foi antecipada e trouxe com
ela uma série de violações. Denúncias foram feitas de arbitrariedade cometidas por policiais ao
reprimirem e/ou impedirem o direito de ir e vir de adolescentes, “supostamente” perigosos, de
entrarem em ônibus para a zona sul (praia), bem como sendo retirados do coletivo em blitz
montada pela PM em ruas de acesso à Copacabana e Arpoador, ou mesmo quando de sua entrada
no ponto final dos ônibus na zona norte e periferia com destino à zona sul e praias da cidade. Os
principais alvos das operações eram adolescentes negros e pobres, vindos das periferias e favelas
do Rio, como “medida de prevenção”, ou mesmo de “proteção”, segundo declaração de gestores
da cidade do Rio. Estes também declararam que os meninos retirados dos ônibus eram levados
para a delegacia ou abrigos, para averiguação de mandato de busca e apreensão, ou aguardavam
até a chegada dos responsáveis.
A Defensoria Pública entrou com pedido de Habeas Corpus para garantir o direito de
liberdade e o de ir e vir das crianças e adolescentes, também para impedir que policiais retirassem
esses adolescentes dos ônibus. O Juiz da 1ª Vara da Infância, Juventude e Idoso também se
manifestou no sentido de garantir o direito e a lei. A mídia contribuiu com a instalação do medo,
e na produção de subjetividades sobre os “jovens perigosos”, com a divulgação sistemática de
imagens de roubos, furtos e arrastão nas praias e outras áreas da cidade, gerando um clima muito
desfavorável aos jovens objetos das ações, bem como estimulando a ação de “justiceiros”,
especialmente após as declarações do Governador, Prefeito e Secretário de Segurança Pública
afirmando que iriam continuar retirando os meninos dos ônibus, pois consideraram que
178
Quem quer que não se encaixasse na nação “ariana” pura e branca estava sujeito não
apenas a uma crescente série de medidas discriminatórias, mas também sofria a ameaça
de ser enviado para os campos, trabalhar até a morte ou ser morto imediatamente
(GELLATELY, 2011, p. 150).
A ação questionada pela Defensoria Pública do Rio de Janeiro, que alegou ser ilegal deter
um adolescente que não está cometendo nenhuma infração, ganhou repercussão internacional. No
jornal espanhol El País, a notícia foi publicada com o título: “Rio de Janeiro veta menores pobres
e negros em praias mais famosas”. Publicações como o Huffington Post e o Latin American
Herald Tribune também noticiaram a ação185.
184
Publicada em: https://www.brasil247.com/pt/247/favela247/194180/para-pez%c3%a3o-se%c2%a0%c3%a9-
jovem-preto-e-pobre-%c3%a9-ladr%c3%a3o.htm , em 24/08/15.
185
Link curto: http://brasileiros.com.br/VINbj.
179
Ao impetrar o Habeas Corpus e declarar que a Operação Rio Verão desrespeitava a lei
ao impedir e retirar os adolescentes dos ônibus, a Defensora Pública Eufrásia Souza sofreu
agressões e foi ameaçada através das redes sociais, sendo considerada defensora de
“bandidinhos”. Com a dita preocupação do poder público com os roubos, furtos e arrastões, a
medida adotada foi a intensificação do número de policiais e seguranças na cidade. Devido a essa
forma de atuação, claramente adotando uma política higienista e de exceção, várias Instituições
de Direitos Humanos e Organismos Internacionais manifestaram seu repúdio!
Dando continuidade às práticas abusivas e segregacionistas, cerca de 70 linhas de ônibus
foram retiradas, ou tiveram percurso modificado, pelo Prefeito Eduardo Paes186. Com o somatório
de protestos de defensores de direitos humanos, a segurança pública passou a usar o termo
“vulnerabilidade” dos meninos/as para justificar a intervenção junto a este grupo social,
flagrantemente violadora de direitos.
Muitas notícias foram divulgadas sobre esses casos e muita polêmica foi gerada. Apesar
de existirem comentários favoráveis ao direito ao lazer e o de ir e vir desses adolescentes, de que
a praia é aberta para todos, a maioria dos comentários na mídia e redes sociais não só
concordavam com as práticas abusivas e expressavam preconceito, racismo e ódio de classe, e
outras ainda propunham coisas absurdas, como uma famosa socialite que propôs colocar cercas
nas praias para a entrada apenas de moradores do bairro.
5ª Lei - Lei de Circulação de PP: Pobre e Preto de menor não pode pegar ônibus para ir
às praias da Zona Sul!
Nessa aí nem botei um nome, porque os marginalzinhos são tantos que a lista ia ter
quilômetros. Quem gosta de lei comprida é intelectual. O ECA do B é simples, branco
no preto. Em cima do preto! Qualquer mané consegue entender. O cara entra num ônibus
com nenhum dinheiro no bolso, mal vestido ou até sem camisa, o que calor nenhum
justifica, lá na PQP onde ele mora, e quer ir pras praias da Zona Sul do Rio de Janeiro.
Vai fazer o que lá? Arrastão, obviamente. Aí vem aquele papinho de que é uma minoria
que faz arrastão, que o resto da pretaiada só quer se divertir na praia. Tenha dó. Mesmo
que seja, como vai saber? Não dizem sempre que tem de prevenir o crime? Então, taí. Se
não é a polícia, é pessoa de bem como eu que tem de fazer a justiça valer. Levo filho,
sobrinho, tudo uns meninos fortes, de academia, menino bom, e tiro essa molecada pelo
pescoço de dentro do coletivo. Jogamos tudo lá, de volta à cloaca de onde nunca
deveriam ter saído. Depois tomamos um banho de álcool zulu pra descontaminar. O que
é que preto tem pra fazer no Leblon, Ipanema, Copacabana, me diga? Nada! No máximo
vender um coco, um biscoito Globo, mas assim, controlado, número restrito. Vai querer
186
Publicado em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/10/confira-mudancas-em-linhas-de-onibus-da-
zona-sul-do-rio.html , acesso em out/15.
180
tomar banho de mar, jogar um vôlei, curtir? É muita falta de ferro no lombo. Desde
quando a senzala pega praia? Mesmo que os moleques não assaltem, vão estragar o
cartão-postal do Rio com aquelas caras achatadas. Gringo vem aqui gastar seus dólares
pra ver garota de Ipanema, loirinha, olho azul. E as mulatas lá naquele outro lugar que a
gente sabe bem onde é e pra que serve. Se cada um soubesse o seu lugar, aliás, tava tudo
resolvido. O problema do Brasil hoje é que as criaturas não sabem mais o seu lugar. Mas
a gente explica pra elas, bem direitinho, numa chave de pescoço, colaborando com o
trabalho da polícia, que já não dá mais conta de tanto pobre querendo pegar praia. Preto
sai, branco fica. Inverti o nome daquele filme! Pessoalmente, inclusive, eu faria um
parágrafo único aqui nesta lei número 5: ônibus pra pobre sair da favela só se for pra
trabalhar. O cara mostra a carteira de trabalho registrada pra um policial, na porta do
474, e pode embarcar, com carimbo pra sair e carimbo pra voltar, assinado pelo patrão.
Horário determinado, tudo ali certinho, na ponta do lápis, como se diz. Fora daí, se o
negão for pego zanzando na Zona Sul, cadeia nele. Nessa aí preciso tirar o chapéu pros
paulistas. Não gosto muito de paulista, mas eles sabem fazer as coisas direito quando
querem. Não teve lá aquele, como é o nome mesmo? Ah, sim, Rolezinho, só preto pra
inventar um nome tão idiota. Então. A ralé queria passear no shopping. E em bando,
como se fosse moda adolescente andar em grupo. Polícia neles! Mais de três moleques
pretos num shopping é assalto e pronto. Volta pra favela! Vai querer usar grife? Te
enxerga, mané! Não tem grife que limpe a tua cara preta, não tem tênis de marca que te
faça ficar igual a nós. Repressão neles e tudo resolvido. No Rio o povo de bem também
sabe resolver as coisas, esse final de semana foi uma beleza. Revista na pobraiada!
Desde quando a senzala pega praia? Mesmo que os moleques não assaltem, vão estragar
o cartão-postal do Rio com aquelas caras achatadas.
Uso: a mais recente aplicação da Lei de Circulação de PP foi nesse último final de
semana, mas pode estar sendo usada agora mesmo. Lei que brasileiro concorda é que
nem gripe, pega na hora e se espalha.
Tá com pena? Leva pra casa!
comunicação, foi criado um Grupo no Whatszap, do qual fazem parte: RRC, Defensoria Pública,
MP, CEDCA, Mecanismo de Prevenção e Combate à Tortura (MEPCT), Conselho Regional de
Serviço Social (CRESS), Justiça Global, OAB, Movimento Moleque, CEDECA RJ, Projeto
Legal, dentre outros. Esse grupo tem sido acionado sempre que tem acontecido uma situação de
violação nas praias ou no caminho, e realiza reuniões para discussão da situação e tirar
encaminhamentos e estratégias de ação em defesa dos direitos das crianças e adolescentes vítimas
das práticas abusivas do estado e município do Rio.
Em 2016, com a realização das Olimpíadas na cidade do Rio de Janeiro, a repressão
aumentou ainda mais não só pelo policiamento regular da cidade, mas também pela Operação
Verão. Já no 2º dia do ano foi realizada reunião extraordinária do grupo de militantes e
instituições que integram o GT Operação Verão. O Conselho Tutelar da Zona Sul fez denúncias
da apreensão de adolescentes (negros e pobres) nos ônibus que vão para a zona sul e são
encaminhados para a delegacia, por não portarem documentos e dinheiro.
Em setembro de 2016, foi postado um vídeo nas redes sociais, no qual um grupo de
adolescentes, em sua maioria negros e pobres, são expulsos da praia do Arpoador por policiais,
sem estes terem cometido crime algum, o que denunciava a violência e arbitrariedade da ação,
num ato flagrante de preconceito, higienismo e segregação.
A Defensoria Pública, mais uma vez, entrou com ação contra a retirada dos adolescentes
dos ônibus que saem do subúrbio e periferia da cidade em direção às praias da zona sul.
Questionados, a polícia informou à época que estava respeitando a ação e não tem feito a retirada
e encaminhamento dos adolescentes « suspeitos» para a delegacia. Mas, observamos que essa
atitude da polícia, que adotou na época uma postura de inércia frente a muitas situações que
envolvia adolescentes, seja em prática de ato infracional, arrastão, tumulto nos arredores da praia,
gerou nova controvérsia e apelos da sociedade por tomada de atitude pelo estado e município,
reforçados pela mídia, que exibia sistematicamente imagens de violência que envolvia
adolescentes.
Devemos destacar que, em alguns casos, especialmente na Linha 474, que faz o itinerário
Jacaré - Copacabana, grupos de adolescentes causaram muitos transtornos, não apenas para os
passageiros do ônibus e motorista, como para os transeuntes nas ruas, ao longo do percurso,
especialmente quando chegavam perto da praia. Cenas de quebra-quebra do ônibus, adolescentes
saindo pela janela, viajando em cima do ônibus, saindo do ônibus para assaltar uma pessoa na rua
182
e voltar para o ônibus, foram algumas cenas divulgadas pela mídia televisa e impressa, e pelas
redes sociais. Em um desses casos, em Copacabana, houve a ação de um grupo de “justiceiros”
que retirou à força um ou dois adolescentes do ônibus e os agrediu. A polícia nada fez. E a
sociedade aplaudiu. Discursos de ódio contra os adolescentes foram postados em comentários nos
jornais impressos e redes sociais.
Diante da questão, o Ministério Público recorreu da decisão que proibia a PM de retirar
“menores” dos ônibus que seguem para as praias na Zona Sul do Rio187. E, mais uma vez, em
todo final de semana de sol forte, os ônibus passaram por uma blitz e diversos jovens, negros e
pobres, passaram por situação vexatória, sendo alguns destes retirados do coletivo.
De 160 guardas municipais, em 2009, com o Choque de Ordem ocupando a orla,
chegamos em 2016, com o início oficial da Operação Verão, no dia 24/09/16, a 800 policiais e
guardas municipais ocupando a orla do Leme ao Recreio dos Bandeirantes.
(...) a essa altura a deportação de judeus alemães estava praticamente acabada, tendo
ocorrido sem causar a menor reação pública (GELLATELY, 2011, P. 232).
(...) em consequência da longa campanha antissemita, muitas pessoas se tornaram
antissemitas. (...) No final dos anos 1930, a propaganda incessante e as inúmeras
medidas adotadas contra os judeus convenceram cada vez mais alemães de que no
mínimo havia uma “questão judaica” e que talvez fosse melhor se eles simplesmente
deixassem o país (GELLATELY, 2011, p. 200).
187
Publicada em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2016/11/mp-ira-recorrer-de-decisao-que-proibe-pm-de-
retirar-menor-de-onibus-no-rio.html , em 11/11/16.
183
Meu filho, não deram água para ele beber todos esses dias! Eu dei um
beijo nele para dar um pouco de saliva pra ele188!
475! Que número será esse? Seria o de uma linha de ônibus? Seria uma centena do jogo
de bicho? Antes fosse!! Não, não é!! 475 é o número da concentração / superlotação no
Educandário Santo Expedito (ESE)! 475 é o número de adolescentes internados em condições
sub-humanas no ESE! Descaso, desrespeito, desumanidade? 475 é o número da Barbárie! 475 é o
número do Campo de Concentração! 475 é o número do Cárcere de Gastar Gente!
Ver o desespero daquela Mãe.... Seu corpo retido tremendo, e as lágrimas caindo.... Seu
filho está lá! É um dos 475 do Cárcere! Atônita, desesperada, por não mais ver o brilho nos olhos
do filho de 17 anos! E não acreditava que a Juíza havia dado mais 04 meses de internação a seu
filho sob a alegação de que não tinha visto nele vontade de crescer, de mudar, de futuro! Não, não
é piada! Para tudo! O Judiciário que “soca” cada vez mais adolescentes autores de ato infracional
em unidades de internação superlotadas, insalubres, fétidas, acreditam (?) que é possível
“ressocializar”, “socioeducar” naqueles espaços? Só pode ser um deboche! Ou coisa pior! Com
certeza a Juíza nunca pisou no ESE! Nunca sentiu aquele cheiro... Nunca sentiu os ratos passando
pelo seu corpo quando tenta dormir (e não consegue!)! Nunca teve perebas pelo corpo devido a
tanta umidade e insalubridade! Nunca ficou com a mesma roupa durante meses! Nunca dormiu
em “comarcas” quebradas, colchonetes (quando há), ou mesmo no chão189!
188
Fala desesperada de uma mãe, na Assembleia Extraordinária do CEDCA, em julho de 2017, quando foi visitar seu
filho numa delegacia de polícia depois deste ter estado 03 dias desaparecido.
189
Esta introdução de capítulo foi escrita por mim em meados de 2016. Até o final daquele mesmo ano e em 2017, a
superlotação no Educandário Santo Expedito (ESE) ultrapassará os 500 adolescentes encarcerados, chegando a
mais de 540!
184
Em abril de 2012, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ) traçou o perfil dos adolescentes
em conflito com a Lei190. Segundo a pesquisa, são adolescentes de 15 a 17 anos com famílias
desestruturadas, adolescentes em defasagem escolar e envolvidos com drogas que cometeram,
principalmente, infrações contra o patrimônio público como furto e roubo. Esse foi o quadro
revelado no estudo lançado, em 10/04/12, em Brasília (DF), pelo presidente do Conselho
Nacional de Justiça (CNJ) à época, ministro Cezar Peluso. A pesquisa Panorama Nacional - A
Execução das Medidas Socioeducativas de Internação191 foi feita com base nos dados do
programa Justiça ao Jovem, buscou traçar o perfil dos 17,5 mil jovens infratores que cumpriam
medidas socioeducativas no Brasil e analisar o atendimento prestado pelas 320 unidades de
internação existentes em território nacional.
O superencarceramento do sistema prisional brasileiro é uma realidade sem precedentes.
A população carcerária do Brasil chegou ao número de 622.202 presos, dos quais 61,6% são
negros (pretos e pardos). É o que aponta o Levantamento Nacional de Informações Penitenciárias
(Infopen), que traz dados de dezembro de 2014 e foi divulgado em abril de 2016 pelo
Departamento Penitenciário Nacional (DEPEN), do Ministério da Justiça. Os números do Infopen
mostram, ainda, que as penitenciárias brasileiras ganharam 40.695 presos no período de um ano.
Além disso, cerca de 40% dos detentos são presos provisórios (aguardam julgamento) e o tráfico
de drogas é o crime que mais leva à prisão192.
Com 622 mil pessoas privadas de liberdade (o que significa mais de 300 presos para cada
100 mil habitantes), o Brasil continua sendo o 4º país com maior número absoluto de detentos no
mundo, atrás apenas de Estados Unidos, China e Rússia. Porém, enquanto esses países têm
190
Publicado em: http://www.cnj.jus.br/noticias/cnj/58526-cnj-traca-perfil-dos-adolescentes-em-conflito-com-a-lei,
acesso em 10/04/12.
191
Publicada em: http://www.cnj.jus.br/images/pesquisas-judiciarias/Publicacoes/panorama_nacional_doj_web.pdf
192
Publicado em: https://www.cartacapital.com.br/sociedade/mais-de-60-dos-presos-no-brasil-sao-negros , acesso
em 30/04/16.
185
reduzido suas taxas de encarceramento nos últimos anos, o Brasil segue em trajetória oposta,
aumentando sua população prisional em 7% ao ano, em média.
A superlotação do sistema socioeducativo, para adolescentes autores de ato infracional,
também não é diferente. Em 2014, dos 24.628 adolescentes privados ou restritos de liberdade em
todo Brasil, 88% estavam internados, 66% cumprindo sentença e 22% cumprindo internação
provisória, segundo dados do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente do Ceará (CEDECA
Ceará).
Segundo dados do Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (SINASE), órgão
ligado à Secretaria Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente (SNPDCA),
em 2013, 95% dos adolescentes privados de liberdade eram do sexo masculino; seis (06) em cada
dez (10) jovens infratores tinham entre 16 e 18 anos. Não há dados recentes sobre as
características sociais desses jovens, mas uma pesquisa realizada em 2003 pelo Ministério da
Justiça mostra que 60% dos menores infratores eram negros. Metade deles não frequentava
escola nem trabalhava quando cometeu o delito e 66% deles eram de famílias consideradas
extremamente pobres.
193
Publicado em: http://www.global.org.br/blog/brasil-respondera-por-superencarceramento-homicidios-e-torturas-
na-corte-interamericana-nesta-sexta-feira/ , acesso em 23/06/17.
194
A população carcerária americana passa de 400.000 presos em 1975 para 750.000 em 1985, alçando dois milhões
ao final da década de 90. A média de encarceramento nos EUA é cinco vezes superior à Europeia. Se somarmos os
presos a todos aqueles que têm controle carcerário (liberados condicionais, pessoas em probation etc.) chega-se a
uma população controlada de 5 milhões de pessoas! (GIORGI, op. cit., p. 94).
195
Publicada em: https://oglobo.globo.com/rio/unidades-de-ressocializacao-de-menores-infratores-sao-precarias-
superlotadas-no-rio-21430866 , acesso em 26/06/17.
187
196
“A desregulamentação econômica e a hiper-regulamentação penal caminham, na realidade, lado a lado. O
desenvestimento social implica o super-investimento carcerário, que representa o único instrumento em condições
188
Por outro lado, são inúmeros os relatos de tortura e outros tratamentos cruéis e desumanos
praticados pelos agentes estatais contra os adolescentes no interior das unidades, onde a tortura é
praticada por “socioeducadores”, com cassetetes, tapas na cara, no uso de armamentos menos
letais, como spray de pimenta, denunciado por vários desses adolescentes no RJ.
Muitos são os perigos da expansão da ideologia punitiva e seletiva, que demanda por mais
segurança e o recrudescimento penal, baseada na disseminação do medo social. A defesa da
Segurança Pública como direito fundamental tem servido como justificativa para a exacerbação
do controle social e encarceramento, bem como na ação de justiceiros, sendo as maiores vítimas a
juventude negra e pobre, sejam as que estão em situação de rua, ou as que estão nas favelas e
periferias da cidade, esses que denominamos “sujeitos indesejáveis”.
Os discursos carregados de ódio nas redes sociais e nos comentários de notícias sobre
adolescentes infratores escancara um tipo de fascismo latente na sociedade. Vejam alguns
exemplos de comentários da notícia do G1 da Globo, intitulada “Menor infrator é espancado até
a morte em unidade do DEGASE no RJ197, de 14/12/16”:
Luiz: realmente uma tragédia, infelizmente nesses casos morreu um só, deveria ser no
mínimo uns 15, todos.
Márcio: Tem que deixar eles se pegarem mesmo. Se possível espalhem boatos lá dentro
Paulo César: -1
Souza: Fecha a porta e joga a chave fora. É a melhor solução não tem recuperação esses
menores infratores.
Vilela: extinção da maioridade penal. Cometeu crime, paga.
Alessandro: Tomara que se matem todos, em Bangu também, deixem eles se matarem.
baah um a menos pra incomoda , enterra de cabeça pra baixo a carniça.
Ekuka: O ser humano é irrecuperável, já nasce ruim e assim será sua vida toda. Muito
bom, deixem eles se matarem, e os que estão vivos deixem apodrecer lá, parasitas dos
infernos...
Daniel: Primeiro, não vai acontecer exatamente nada com os assassinos. Segundo, se
matem a vontade.
Júlio Cesar: Nossa ganhei meu dia. Que notícia maravilhosa.
de fazer frente às atribulações suscitadas pelo desmantelamento do Estado social e pela generalização da
insegurança material que, inevitavelmente, se difunde entre os grupos sociais colocados nas posições mais baixas
da escala social” (L. Wacquant, Parola d’ordine: tolleranza zero. La transformazione dello stato penale nella società
neoliberale. 2000, p. 101)
197
Publicada em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/menor-infrator-e-espancado-ate-a-morte-em-unidade-do-
degase-no-rj.ghtml , acessso em 14/12/16.
189
O problema com Eichmann era que muitos eram como ele, e muitos não eram nem
pervertidos, nem sádicos, mas eram e ainda são terrível e assustadoramente normais. (...)
esse era um tipo de criminoso, efetivamente hostis generis humanis, que comete seus
crimes em circunstâncias que tornam praticamente impossível para ele saber ou sentir
que está agindo de modo errado (ARENDT, 2013, p. 298).
espaços da classe dominante para fazerem “arruaças, arrastão”, etc... Contra eles toda a força da
lei. E ninguém se sente culpado por isso... É ou não é a “banalidade do mal”?
O problema da superlotação tem se agravado progressivamente, como será apresentado no
subcapítulo 4.2.1, a seguir. Mas, foi entre 2014 a 2017, época em que participei do Conselho
Estadual dos Direitos da Criança e do Adolescente (CEDCA) e do Comitê Estadual de Prevenção
e Combate à Tortura (CEPCT), que pude acompanhar mais de perto esta questão. Visitas às
unidades de internação do DEGASE, Assembleias Ordinárias e Extraordinárias do CEDCA e do
CEPCT, Audiências Públicas na ALERJ, reuniões com órgãos nacionais e internacionais de
direitos humanos, reuniões e relatos das Mães e Familiares, relatos dos próprios meninos que
cumprem medida de internação no DEGASE descortinaram a realidade perversa do
encarceramento de adolescentes no Estado do RJ, muito distante de uma solução!
Uma das principais Audiências Públicas sobre o tema foi a realizada em novembro de
2015, na ALERJ, pela Comissão de Educação em parceria com a Comissão de Direitos Humanos,
presidida pelo Deputado Marcelo Freixo, sobre violações de direitos humanos no sistema
socioeducativo198, com o objetivo de debater a superlotação do Departamento Geral de Ações
Socioeducativas (DEGASE) a partir da aplicação excessiva da medida socioeducativa de
internação no Estado do Rio de Janeiro. A audiência pública contou com a presença da
Subdiretoria Geral do DEGASE, a Promotoria de Tutela Coletiva do Sistema Socioeducativo da
Capital, Defensoria Pública, o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura, a
Diretoria Especial de Unidades Escolares Prisionais e Socioeducativas da Secretaria Estadual de
Educação (SEEDUC), representantes da sociedade civil, além dos deputados Marcelo Freixo,
Flavio Serafini, Tio Carlos, Waldeck Carneiro e Dr. Julianelli, que lamentaram a ausência de um
representante do Tribunal de Justiça.
Entre janeiro e setembro de 2015, quase 9.859 mil adolescentes foram apreendidos pela
polícia no Rio de Janeiro. Todo os dias, em média, 25 jovens são encaminhados ao Centro de
Socioeducação Gelso de Carvalho Amaral, (CENSE-GCA), porta de entrada do DEGASE,
unidade responsável pela internação dos jovens apreendidos pela polícia. Essa realidade já
representa um aumento de 400% do encarceramento de adolescentes. “Há uma superlotação
evidente. A capacidade de alocação na unidade é de 64 jovens, mas hoje temos 248. Daqui a
198
Ver em: http://www.marcelofreixo.com.br/2015/11/04/a-superlotacao-do-degase-nao-pode-ser-ignorada/
192
pouco eles vão virar morcego, vão ter que dormir em pé! A gente está no fio da navalha”,
afirmou o Diretor do Cense GCA, Miguel Ângelo de Souza. .
Segundo Sílvio Castro, Sub Diretor Geral do DEGASE, a porta de entrada está com sua
capacidade 04 vezes maior do que aquela que foi projetada. “Estamos com déficit de funcionários
e de vagas nas 10 unidades; em 03 anos triplicamos o número de apreensões, tínhamos 8.300 no
ano passado, e esse ano a previsão é chegarmos a 10.000!” “Estamos chegando num colapso!”
De acordo com os dados apresentados na audiência, a realidade da superlotação estava
presente em quase todas as 10 unidades de internação do DEGASE: em Campos, são 60 vagas
para 171 adolescentes internados, sendo 38 provisórios; na Escola João Luiz Alves (EJLA), na
Ilha do Governador, que tem capacidade para 112 adolescentes, tinham 276.
Para Eneida Ramos, Coordenadora das medidas Socioeducativas, “é um sistema que não
tem condições de ser apreendido. O socioeducativo há muito tempo tem sido medida de castigo,
principalmente dos que vêm de outro município”. A Coordenadora disse que existem problemas
graves e que é preciso revisitar o que prevê o Sistema Nacional Socioeducativo (SINASE), que
estabelece uma série de medidas, inclusive que cada unidade de internação não pode ultrapassar a
capacidade de 90 adolescentes. Eneida comenta que “a imputação de medidas já começa errada.
199
A audiência de custódia é o instrumento processual que determina que todo preso em flagrante deve ser levado à
presença da autoridade judicial, no prazo de 24 horas, para que esta avalie a legalidade e necessidade de
manutenção da prisão (ver em: http://www.cnj.jus.br/sistema-carcerario-e-execucao-penal/audiencia-de-custodia ).
193
O adolescente chegou lá, e numa situação de superlotação, já vai para internação provisória. É a
cultura do aprisionamento! Precisamos enfrentar e pensar alternativas outras não só do
aprisionamento”, disse.
A situação de baixa escolaridade dos adolescentes apreendidos foi uma questão que
também chamou a atenção na audiência. Dos adolescentes que estavam em cumprimento de
medida de internação em novembro de 2015, 95% não haviam completado sequer o ensino
fundamental. Dos 7.815 adolescentes cumprindo medida socioeducativa (regime fechado e em
meio aberto), naquele período em todo o Estado, segundo relatório do DEGASE, apenas 04
internos tinham concluído o ensino médio. “Mais de 95% dos jovens estão em defasagem
educacional. Ainda estão no ensino fundamental. Necessário implementar políticas de
acolhimento desses jovens, de acordo com o SINASE, política que acolhesse esse jovem, pois
muitos entram lá pela primeira vez e sentem-se perdidos. Política de acolher, incluir dentro do
sistema escolar”, argumentou Eneida Ramos.
Outros problemas também foram expostos como: a falta de agentes socioeducativos, má
infraestrutura de unidades com regime fechado e semiaberto e gargalos burocráticos de políticas
públicas voltadas aos adolescentes, dentre elas, o oferecimento do bilhete do Rio Card, que estava
em falta para os adolescentes que cumprem regime de semiliberdade e liberdade assistida que
frequentam escola formal.
O Promotor Marcos Fagundes, Coordenador, à época, do Centro de Apoio Operacional
das Promotorias da Infância e da Juventude (CAO Infância), do Ministério Público, comentou
que “da última audiência pra cá, pouco mudou no quadro da superlotação, e isso é muito grave! A
medida não é socioeducativa, é medida de encarceramento! A superlotação inviabiliza a
socioeducação! E isso é uma violação de direitos!”
O Deputado Flávio Serafim (PSOL), considera que a política é de encarceramento em
massa. Destacou que a Audiência estava sendo realizada pouco depois das ações da polícia do
estado de retirada dos adolescentes dos ônibus em direção às praias da zona sul (Operação
Verão):
Esse crescimento mais que o dobro dos adolescentes presos pela polícia não tem a ver
apenas pela prática de ato infracional! É também pela política de segurança pública
nessa cidade! É um sistema socioeducativo que não consegue funcionar por várias
razões. Temos que romper com a lógica de segregação, criminalização e encarceramento
em massa (Deputado Flávio Serafim).
194
Já faz tempo que o sistema está em colapso! Não seria aceitável se fosse para “outros”.
Só é aceitável porque é para esses que estão lá! Aquilo lá é cárcere! E dos piores! E o
discurso hegemônico que está aí, estamos perdendo. Até quando vamos manter esse
estado de coisas?
O de apreensões teve um aumento de 2.400 em 2011, para 8.300 em 2014!! O sistema
carcerário teve aumento de 317% em 04 anos! Em sua maioria é jovem que lá está. Isso
não acontece em nenhum país do mundo!
95% dos jovens não têm ensino fundamental! Isso é uma tragédia!
Um jovem negro tem três vezes mais chance de ser assassinado do que um branco!
A lei sempre foi um instrumento da ordem. Para impedir a revolução!
200
Nesse dia, a EJLA que tem cerca de 120 vagas, estava com 400 adolescentes encarcerados.
201
Publicado em: http://extra.globo.com/casos-de-policia/nove-jovens-sao-hospitalizados-apos-fogo-em-unidade-
para-infratores-no-rio-19859620.html#ixzz4IwB4jM7X, acesso em 06/05/16.
202
Publicado em: http://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2016-08-11/adolescentes-feridos-em-incendio-no-degase-estao-
algemados.html , acesso em 12/08/16.
195
Mateus, Estudante: Deve ser um estuprador esse velho! São apenas jovens não sabem
nada da vida, e ninguém e perfeito todos cometemos erros!, Como você pode se sentir
uma boa pessoa com um pensamento desses? Chega dar nojo!
A Rede Rio Criança em conjunto com o Movimento Moleque (que reúne grupo de mães e
familiares), exatamente um mês depois da morte de Ryan, e no dia da morte de Isaías, realizou o
Ato Público “Ryan e Isaías Presente! Familiares em luta por Justiça!”, em frente ao Tribunal de
Justiça do RJ. A performance “De quem é a culpa”, feita pelo Núcleo de Educadores e
Educadoras Insurgentes (NEEI)204, rememorou a tragédia do incêndio e mote de Ryan, causando
grande comoção à todos os presentes ao ato, despertando a atenção de transeuntes.
Em relação aos casos de tortura, a Defensoria Pública, em reunião do GT DEGASE, em
agosto de 2017, citou um caso exemplar que ficou conhecido como “Caso Powbel205”, ocorrido
em 2013, na Escola João Luiz Alves (EJLA), unidade de internação do DEGASE, quando um
grupo de adolescentes foi torturado durante 04 dias seguidos (de sábado à terça-feira), sofreram
violência física e psicológica, tapas na cara, não deixaram os adolescentes dormir, nem tomar
água. Foi a primeira vez que a Defensoria conseguiu registrar um caso de tortura. Conseguiram
que os adolescentes fossem transferidos para outra unidade, o Centro de Atendimento Intensivo
Belford Roxo (CAI Baixada). No entanto, os adolescentes foram coagidos pelo Diretor desta
unidade para mudarem o depoimento. Os adolescentes confirmaram a tortura, mas o torturador
203
Publicado em: http://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2016-08-11/adolescentes-feridos-em-incendio-no-degase-estao-
algemados.html , acesso em 12/08/16.
204
Para ver a performance acessar o link: https://youtu.be/KRL_tI_BChc .
205
Powbel era um Agente Socioeducativo da Escola João Luiz Alves.
196
não foi punido, pois o MP pediu absolvição do réu por não terem provas concretas, apenas a
declaração dos adolescentes. Esse foi apenas um exemplo, semelhante a outros casos de tortura e
maus tratos sofridos pelos adolescentes encarcerados, e os culpados raramente são punidos ou
afastados, no máximo são remanejados para outro lugar, como o Caso Andreu, citado adiante, em
nota de rodapé 210.
Nessa reunião do GT DEGASE, também foi citada a forma como trabalha a Coordenação
de Segurança Investigativa do DEGASE (CSINT), que sempre é chamada para conter algum
conflito nas unidades. Segundo alguns relatos, a CSINT, que tem um uniforme semelhante ao do
BOPE (preto), faz uso da força e violência, abuso de poder, muitas vezes para intimidar os
adolescentes: “Houve caso de tirarem um menino de cada alojamento e sentarem a “porrada”
neles! É a violência institucionalizada, estrutural. E muitos funcionários são milicianos”,
comentou um dos presentes à reunião.
Nossa sociedade está doente. E o resultado é isso que vemos no sistema. Essa catarse
tem que resultar numa ação conjunta. Por que há superlotação? Porque há Juízes e
Promotores que internam? Será que estamos trabalhando dentro dos direitos?
Certamente não estamos!
Existem adolescentes que entram no sistema sem a carta de execução de medida, o que é
um absurdo!
A sociedade empurra esses meninos a isso! É fascista! Estamos num sistema de
segurança pública fascista! (dá o exemplo de um menino de 06 anos que foi preso por
supostamente estar furtando e entregue numa delegacia).
Temos defeitos porque temos também os defeitos da sociedade, fazemos parte dela!
(Desembargador Siro Darlan)
A pesquisa de campo às unidades fechadas do DEGASE foi muito importante, para atestar
in loco a superlotação e as condições das unidades. Descrevo a seguir parte do relatório de uma
das visitas ao Educandário Santo Expedito (ESE), que realizei enquanto Conselheira Estadual dos
Direitos da Criança e do Adolescente, em conjunto com o MEPCT e o CRESS / Fórum DCA.
Data: 04/02/16.
Presentes: 02 representantes do CEDCA RJ; 02 representantes do MEPCT; 01 representante do
Fórum DCA RJ / CRESS.
197
A visita de fiscalização teve como principal objetivo verificar o caso de superlotação, bem como
as condições em que se encontravam os adolescentes. Ao chegarmos ao ESE, realizamos reunião
com a equipe: Diretor Operacional, Diretoria Técnica e Responsável do Plantão.
A informação foi a de que havia 415 adolescentes internados na unidade, apesar da capacidade do
ESE ser de 190. A Diretoria expressou sua preocupação, bem como de terem, frequentemente,
encaminhado ofícios sobre a superlotação e das dificuldades em decorrência desse fato para a I
Vara, Defensoria e MP, esclarecendo quanto ao não cumprimento do SINASE.
As Equipes são formadas por:
Plantonista 24h (25 X 72h) – 17
Contratados – 15
Plantão do dia – 30 agentes até as 19hs; à noite – 18 agentes no plantão.
Fomos informados de que até DEZ/2015 haviam 06 equipes formadas por Assistente
Social, Psicólogo, Pedagogo. Atualmente, segundo o diretor, só existe uma equipe incompleta.
O Diretor disse que cada um dos alojamentos tem capacidade para 08 adolescentes. No
entanto, havia cerca de 10 adolescentes a mais por alojamento, ou seja, cerca de 18 por
alojamento/cela. Os adolescentes são divididos por local de moradia, para evitar problema de
facção. Nos Módulos 01 e 02 se encontram os alojamentos chamados “Seguros”, para proteger os
adolescentes que são de facções diferentes, ou não pertencerem a facção.
Outra informação relevante e preocupante foi que toda 6ª feira chegam cerca de 15 a 20
adolescentes, do Cense GCA (unidade de entrada e triagem). E que haviam 139 adolescentes
maiores de 18 anos na casa.
Em relação ao lanche e a comida, a informação foi a de que a qualidade havia caído,
devido à superlotação. O serviço é terceirizado.
As aulas na Escola, com a superlotação, não tem tido frequência regular. A maioria dos
adolescentes está na 4ª e 5ª série. Apenas 14 frequentam o ensino médio. Em relação às
atividades de música e esportivas (ping-pong, totó), nesse cenário, eram feitas no período de 01h
com cada módulo, de 15 dias em 15 dias. O banho de sol era feito todos os dias, 01h para cada
alojamento. Doenças – 01 caso de doença respiratória. O caso de caxumba havia sido resolvido.
198
As visitas das famílias tiveram de ser reduzidas devido à superlotação. Estavam sendo
feitas apenas aos sábados e domingos, na parte da manhã. Anterior à superlotação, podiam ser até
04 familiares, mas agora só 02 visitantes por adolescente.
A revista vexatória ainda continuava sendo feita, pois, segundo informaram, ainda não tinham
recebido os scanners, e não haviam recebido nenhuma orientação em relação a isso. O MEPCT
informou que a SEAP – Secretaria de Estado de Administração Penitenciária, já tinha as
orientações e não realizam mais a revista vexatória, e que o DEGASE já havia recebido o
dinheiro para a compra do equipamento. A orientação que foi dada era que o DEGASE fosse
oficiado em relação a essa questão.
Aos adolescentes não é permitido a visita íntima, nem tão pouco recebem camisinha. Os
meninos tem um acordo entre eles em relação à prática de masturbação, que é a de não fazerem
na frente de visitas femininas.
Perguntados sobre como solucionar o problema da superlotação, responderam: a
construção das unidades em São Gonçalo e Niterói, pois muitos adolescentes vêm daquela região;
Juiz tem que internar menos adolescentes; e investir em outras medidas para crimes mais leves.
A maioria dos adolescentes internados é por tráfico. Latrocínio corresponde a cerca de
10%. Sobre o aumento das internações, para o Diretor as internações aumentaram muito de 2014
pra cá. De 120 adolescentes internados naquela época, aumentou para média de 420 em 2016.
Segundo ele, à época de sua entrada no DEGASE, em 2008, eram cerca de 70 adolescentes
internados no ESE. Esse aumento vem sendo progressivo, especialmente de 02 anos pra cá. Para
ele isso é decorrente da implantação das UPPs. Na rebelião, em 2015, tinham 330 adolescentes
no ESE.
A seguir, fomos fiscalizar os alojamentos e conversar com os adolescentes, que tinham
acabado de almoçar. Devido à superlotação, não comem no refeitório. As refeições são servidas
no próprio alojamento/cela. Como éramos em 04 pessoas, nos dividimos em grupo de 02 para
visitar as celas por ala. Ao entrarmos, o cheiro era bastante forte (“murrinha”), enjoativo, apesar
do local estar relativamente limpo. Fazia muito calor no RJ, verão de 40 graus! Imagine no
interior dos alojamentos... O ambiente, além de quente e mal cheiroso, era muito insalubre.
Algumas “celas” tinham ventilador, trazidos pelas famílias, e estoque de garrafas Pet, para
armazenarem água (que ficava quente, claro!).
199
O que me chamou muito a atenção logo na entrada dos alojamentos era que a maioria das
celas tinha um saco de lixo amarrado na grade, e uma espécie de cobertura / tampão na parte
inferior da grade, feita com papelão ou plástico, cerca de 3 a 4 palmos de altura. Perguntados para
que aquilo, os adolescentes responderam que era para os RATOS não entrarem! Mas, que não
adiantava, porque entravam mesmo assim!
Outra coisa que observamos foi a falta de colchonetes, sendo que os poucos que
encontramos estavam em péssimas condições. A maioria das roupas (uniformes) que vestiam
estavam velhos (camiseta branca e bermuda azul marinho). Praticamente todos os adolescentes
estava com doença de pele – sarna, coceira, também chamada de “quiquita”.
Naquele lugar fechado, sem a entrada de sol, agravavam-se os problemas de saúde, de
sono, e muitos perdem a noção do tempo.
Antes de pedirmos informação aos meninos, sempre nos apresentávamos, informando
nosso nome, instituição que representávamos e objetivo de nossa ida lá. Importante destacar que
fomos muito bem recebidas por eles, e que os mesmos comentaram muitas coisas e fizeram
muitas denúncias.
Ressalto que para falar sobre as diversas situações de convivência e violação no interior
do sistema socioeducativo, temos que ouvir, dar voz aos adolescentes que estão lá encarcerados,
200
bem como às Mães e familiares destes. São relatos e depoimentos muito fortes que trazem à tona
uma perversa política de Estado de punição e confinamento de adolescentes no Rio de Janeiro. A
seguir, destaco alguns desses relatos.
Eu sou sujeito homem! Pai de família! Não tenho que ficar levando tapa
na cara, chinelada na bunda! Spray de pimenta! Vai ter rebelião!!!
206
Os adolescentes que cometem ato infracional e estão próximos aos 18 anos, ou não cumpriram a medida na época
(fugiram), e hoje foram presos por mandato de busca e apreensão e estão com idade entre 18 e 21 anos, vão para o
Educandário Santo Expedito (ESE). Nessa unidade, geralmente, se encontram os adolescentes mais velhos.
201
- A faxineira não está fazendo a faxina dentro do alojamento, só no corredor. A gente que
faz.
- Só recebemos 02 sabonetes por alojamento. A gente corta no meio, e tem que dar para o
banho e para lavar a nossa roupa.
- A visita está sendo muito agilizada, rápida!
- Banho de sol não tem data específica. Kit higiênico não estamos recebendo.
- Não estão trocando a roupa, alguns estão com a mesma desde que entraram.
- Não tem um tratamento pra abstinência da droga, do cigarro. E os caras passam aqui na
nossa frente fumando, de propósito!
- Falta remédio!
- Ano passado teve rebelião por causa das condições. Agora a situação está ainda pior.
Somos tratados que nem bicho! Vai ter outra rebelião! Não temos nada a perder!
- A nossa família vem nos visitar e tratam mal, mexem com elas, humilhando.
Observei nessa cela um jovem com os olhos inchados, perguntei o que tinha acontecido.
Ele respondeu que levou “porrada”, chinelada na cara. Perguntei quando. Ele disse que logo que
entrou, em novembro, quando o agente perguntou por que ele estava ali. “Respondi que era por
tráfico. Aí ele deu a chinelada na minha cara!” E até hoje o olho do rapaz ainda se apresentava
inchado. Os meninos da cela falaram que “o rosto ficou todo inchado, horrível mesmo!”
- No Natal e no ano Novo, queríamos dormir, esquecer a data, mas os agentes não
deixaram. Jogavam torpedo no corredor pra acordar a gente.
- Os agentes fumam cigarro, cheiram na nossa frente, e ficamos na abstinência!
- Temos família! Não temos que ficar levando tapa na cara, chinelada na bunda, spray de
pimenta! A gente não tem que aguentar isso! Estamos cheios de ódio! Não vamos aliviar
ninguém aqui! Vamos fazer rebelião! Matar esses caras!
O depoimento deste adolescente, em particular, chamou muito a atenção. Era muito
articulado, seguro, com certeza tinha uma liderança ali dentro e lá fora. Estava num cela da
facção ADA (Amigos dos Amigos). Os outros adolescentes da mesma cela também se
mostravam mais seguros do que os de outras celas e facções. Diferentemente do senso comum,
ou dos que tem a ânsia da punição, esses adolescentes são, especialmente, aqueles que gostamos
de trabalhar.
202
Capacidade física para 216 adolescentes (na 1ª visita fomos informados que a capacidade
era 190). Nesse dia estavam internados 422.
Quando entrei naquele corredor cheio de celas, parei em frente a uma na qual estavam
adolescentes da facção “ADA”, e vi aqueles olhares, vivos olhares, olhares de
resistência, vivos de tão vivos, olhares que se entreolhavam, misto de medo, dúvida,
revolta.... Em meio a tantos olhares, eu o reencontrei...
Passados três meses desde a última visita, retornamos ao ESE pela mesma razão da
anterior, superlotação! Éramos praticamente as mesmas pessoas, incluindo Margarida Prado,
representante da OAB no CEDCA. Entramos nos alojamentos cela e constatamos, a superlotação,
tendo inclusive celas com mais de 22 adolescentes dentro! Não há como alguém se ressocializar
num ambiente desses. Não há como permanecer “normal” num ambiente desses! Muitos não
conseguem dormir, como? Olhando por essa ótica, compreendo a necessidade de se drogar com
drogas lícitas (medicamentos).... Defensores de direitos humanos falam do excesso de
medicalização nas unidades de internação, como um tipo de contenção dos internos, mas acredito
que em muitos casos não seja isso, pois vem de uma demanda do interno, do encarcerado. Sim,
natural, pois num ambiente como aquele, para se manter “sadio”, só mesmo se drogando, se
anestesiando daquela realidade medonha, que mais parece um suplício... São mesmo cárceres
para gastar gente...
203
Foto de Margarida Prado, tirada numa cela superlotada. Haviam 22 adolescentes na cela para uma
capacidade de 08.
De repente, olhando para uma das celas, meio que escondido ao meio de tantos, eu
reencontrei o jovem líder da visita anterior... Na verdade, eu o estava procurando... Mas, notei
uma diferença muito grande no seu comportamento, mas, principalmente, no seu olhar... Não
mais havia aquele brilho, estava ofuscado... Não mais havia aquela altivez, aquela garra, aquela
personalidade revolucionária, nada... O que teria acontecido... Olhei bem dentro do olho dele,
perguntei como estava, e que não ficasse daquele jeito... “Você é um cara bom!”, disse bom não
no sentido de bondade, mas bom no sentido de inteligência, sagacidade, liderança.... Mas, o
máximo que ele conseguiu fazer foi, de cabeça baixa, sorrir.... Aquilo me preocupou...
A seguir alguns depoimentos:
- Estou 06 meses na casa, não trocam minha roupa!
- Quase ninguém aqui está frequentando a escola!
- Todo dia apanhamos!
- Eu estou com uma bala alojada no tórax! Estou desde janeiro sem fazer revisão!
- Só temos 03 colchões na cela. Sabonete vem da visita, e só pode entrar 02 sabonetes.
Não tem troca de roupa, nós que lavamos. Ninguém frequenta a escola aqui nessa cela.
- Aqui convivemos com rato, barata e lacraia!
- Só apanha quem dá trabalho, quem vacila! Isso eu aprendi aqui! Ninguém gosta de levar
tapa na cara! Sou pai de família!
204
Não deram água para ele beber todos esses dias!!! Eu dei um beijo nele
para dar um pouco de saliva pra ele!!
1) Mãe 1 (Filho está no CRIAAD207 São Gonçalo, cumprindo medida há mais tempo
que nos outros CRIAADs, geralmente 03 meses, e ele está há 06 meses) - Não tem ventilador,
não tem atividade, não tem nada que ofereça a eles. Eles não têm direito a nada! Não tem
televisão; fora as torturas psicológicas. Se os adolescentes chegam com 15 minutos de atraso, não
podem entrar. Tem que ir no Judiciário.
2) Mãe 2 (Filho também está no CRIAAD São Gonçalo há 06 meses, enquanto a
Juíza da Capital dá 03 meses) - No ESE temos um adolescente no castigo há 02 meses, dormindo
numa pedra, sem roupa. Nossos adolescentes estão sendo massacrados e treinados para serem os
bandidos de amanhã.
3) Mãe 3 (Mãe de um adolescente que ficou um ano e meio no ESE) - Meu filho foi
espancado, levou tapa na cara! Não cumpriu o CRIAM208, voltou para o DEGASE. Foi
novamente espancado! Como eles vão se recuperar nesse sistema? Meu filho foi ameaçado dentro
do CRIAAD. Meu filho foi levado para a delegacia no sábado, e só ontem (3ª feira) soube onde
ele estava. Ele foi mais uma vez espancado, está com o ouvido estourado! Não deram água para
ele beber todos esses dias!!! Eu dei um beijo nele para dar um pouco de saliva pra ele!!
4) Pai 1 - Meu filho está cheio de ódio! E esse ódio está sendo criado lá dentro do
ESE. Como pode reeducar num espaço que eles dormem no chão, com ratos!! Fui lá e eles
jogaram spray de pimenta! Essa agressão é por debaixo dos panos, não é quando a Defensoria vai
lá! Tem muita coisa errada lá dentro, e nada acontece! Tomem uma providência para acabar com
o ESE! Ele é, inclusive, irregular. É um presídio! De lá só sai bandido! É o ódio que eles tomam
do sistema!
207
CRIAAD - Centro de Recursos Integrados de Atendimento ao Adolescente.
208
CRIAM - Centros de Recursos Integrados de Atendimento ao Menor.
205
5) Mãe 4 – Meu filho também está no ESE. Para eu entrar tudo é problema. Qualquer
problema na roupa; eu uso uma touca porque estou em tratamento de câncer, e eles me obrigam a
tirar a touca!
6) Mãe 5 – Pedi providências urgentes em relação ao ESE, por abuso de autoridade
dos funcionários. O ESE tem que fechar porque é um presídio! Lá tem muitos adolescentes
presos indevidos. É um lugar que está com mais que o dobro da capacidade! É desumano as
condições em que eles se encontram! Eles são seres humanos!
7) Mônica Cunha – Eu frequento o CEDCA e esses espaços há anos! Fico um tempo
sem participar e quando volto é a mesma coisa! Nada muda! Não fazem nada para mudar o
sistema! Não dá mais! Essas pessoas tem família! Elas tem que continuar bem, tem que continuar
vivas! E essas mulheres estão adoecendo! Temos que olhar para esses adolescentes como
olhamos para os nossos filhos! Quem está lá? Isso é racismo! Vamos mudar isso! Eu não quero
mais que meu povo, que essas mulheres venham aqui e tenham que continuar falando essas
barbáries!
Outra questão também trazida pelo grupo foi o tratamento vexatório que os familiares
ainda passam com a revista, e da humilhação das mães nas audiências com a Juíza da Vara
responsável.
Para encerrar este subcapítulo (4.2) que trata da Concentração / Encarceramento como a
2ª Prática abusiva, antes de entrar no 4.2.1 que traz os dados da superlotação no DEGASE, trago
o relato da reunião mais reveladora do ano de 2016, talvez a principal sobre essa temática ao
longo do período de estudo, que para essa pesquisadora não deixou dúvidas quanto à presença de
um tipo de ideologia muito próxima ao que foi a ideologia nazifascista que permeia nossos
tempos, especialmente junto aos sujeitos indesejáveis.
4.2.5 Relato Reunião do Ministério Público com Dr. Enriques Fontes, do Subcomitê de
Prevenção e Combate à Tortura da ONU
Data: 01/12/16
A RRC foi convidada a participar da reunião ampliada do Ministério Público (MP) com o
representante do Subcomitê de Prevenção e Combate à Tortura da ONU, Dr. Enriques Fontes, em
206
01/DEZ/16. A reunião não foi fechada, mas a proposta era reunir um grupo restrito de pessoas e
instituições comprometidas com a defesa de direitos humanos no sistema socioeducativo. Como
foi uma reunião fechada, preservarei o nome das pessoas que participaram, designando apenas a
instituição que representava: 04 representantes do MP (01 Procuradora, 02 Promotoras e 01
Promotor), 02 representantes do Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura
(MEPCT), 01 representante da RRC, 02 representantes do CEDECA RJ, 01 representante do
Projeto Legal; 01 representante da Associação de Mães AMAR.
O tema da reunião foi sobre o Sistema Socioeducativo (DEGASE), envolvendo a
superlotação, maus tratos, falta de materiais e, especialmente, uma consulta do MP ao Subcomitê
da ONU sobre quais caminhos percorrer para garantir um tratamento digno, visto que , segundo a
Procuradora, os meninos estão em verdadeiros « campos de concentração », e tudo que o MP fez
em termos de ações contra o Estado não surtiu efeito e não foram respeitadas, e que por isso
estariam recorrendo a um organismo internacional!
O objetivo do encontro foi para o Ministério Público buscar novas estratégias de
intervenção, como denúncia aos organismos internacionais sobre a situação do sistema
socioeducativo no RJ. Foi, como disse a Procuradora, como um pedido de socorro: “Os meninos
estão em verdadeiros campos de concentração!”, comentou emocionada a Procuradora.
Eu fui a primeira a falar. Primeiramente falei sobre a Operação Verão desde a sua
implementação, em 2014, e todo o processo de violação de direitos, desrespeito à CFB, e a
segregação imposta aos meninos quando de sua retirada dos ônibus em direção às praias da zona
sul da cidade.
Dr. Enriques (SPCT ONU), diz que uma pessoa não pode ser retirada de onde estiver, a
não ser por seus próprios meios. O Estado não é obrigado a implementar as recomendações do
Comitê da ONU, do Mecanismo, mas se há algo grave, concreto, alguma coisa tem que ser feita
de fato. Existem retrocessos não só no Brasil, mas em toda a América Latina, disse o
representante do Subcomitê da ONU.
Segundo Dr. Enriques, “a negação do fenômeno é uma impossibilidade para resolvê-lo”,
referindo-se à negação do Estado brasileiro que existe tortura no país. Aconselhou que o MP
utilizasse o Protocolo de Istambul209, que são regras mínimas de prevenção e atenção,
209
Protocolo de Istambul, ratificado pelo Brasil, trata-se de um manual para a investigação e documentação eficaz da
tortura e outras penas ou tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes, produzido no âmbito da Organização das
Nações Unidas – ONU. O Protocolo apresenta, em resumo: as normas internacionais aplicáveis no que tange ao
207
- Tortura e maus tratos são crimes que são cometidos com a conivência do próprio
Estado.
É um fenômeno estendido. É impossível resolver o fenômeno negando-o. Temos que
romper com esse ciclo de negação para que se possa desenvolver políticas públicas.
O fenômeno tem que ser reconhecido. No Brasil a negação do fenômeno é o principal
problema que encontramos, sobretudo na privação de liberdade de adolescentes.
- Como romper esse ciclo de negação?
tema; os códigos éticos aplicáveis; informações quanto a inquéritos legais sobre a prática da tortura; considerações
gerais para as entrevistas; e indícios físicos e psicológicos da tortura. Publicado em: https://canalcienciascriminais
com.br/protocolo-istambul/
210
El Protocolo de Minnesota es una guía de cómo llevar a cabo una autopsia para determinar si una persona
fallecida ha sido torturada. El Protocolo es norma oficial adoptada por las Naciones Unida. El Protocolo de
Minnesota contiene los hallazgos de autopsia para la detección dela tortura empleada en la víctima, tales como
golpes, colgamiento, descargaseléctricas, etcétera. Publicado em: https://pt.scribd.com/doc/133509494/Protocolo-
de-Minnesota
211
RIO - O Ministério Público denunciou seis agentes do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (Degase)
por crime de homicídio doloso. De acordo com o MP, o é acusado de envolvimento na morte de um interno,
ocorrida em janeiro de 2008, no Instituto Padre Severino, na llha do Governador. O Ministério Público propôs
também que a Justiça decrete prisão preventiva dos agentes e a imediata suspensão do exercício de suas funções
públicas. De acordo com a denúncia, usando pedaços de madeira, um saco repleto de cocos e uma lata de lixo, os
agentes (...) dominaram o adolescente Andreu Luiz Silva de Carvalho, à época com 17 anos, e o agrediram por
quase uma hora, causando traumatismo craniano e outras lesões. A denúncia relata ainda que os agentes Wallace
Crespo Rodrigues (Seu Gaspar), Dorival Correia Teles (Paredão) e Arthur Vicente Filho (Mais Velho ou Coroinha)
não só foram omissos em evitar as agressões que resultaram na morte do rapaz, como participaram da agressão,
dando socos e chutes. Andreu Luiz Silva de Carvalho, que havia sido detido por crime de roubo, morreu no
Hospital Municipal Paulino Werneck. Ele chegou à unidade com graves ferimentos provocados por pauladas, socos
e chutes desferidos pelos denunciados. Publicado em: https://oglobo.globo.com/rio/mp-denuncia-seis-agentes-do-
degase-por-agredir-jovem-ate-morte-no-padre-severino-2763560 .
208
1º - Audiência de custódia pode ser uma oportunidade de detectar tortura e maus tratos.
Quase nenhuma dessas vítimas está em condições de fazer a denúncia (está preso,
criminalizado, etc.);
2º - Instituto Médico Legal tem que ser autônomo, independente.
Estar no DEGASE já é uma tortura.
As Instituições tem que ter protocolos ativos. Um Estado que não detecta a existência de
tortura e maus tratos, não cumpre sua responsabilidade de proteção e defesa. Tem que se
romper esse ciclo de negação. Se não cumpre Protocolo de Istambul, se descumpre todos
os outros.
A Procuradora presente disse que “estamos aqui por esse motivo. Precisamos de ajuda,
pois nada do que fizemos surtiu efeito! Por isso estamos recorrendo a organismos
internacionais!” Após a fala embargada da Procuradora, todas as 03 representantes do MP se
emocionam e também choram... Nessa hora, percebi que a gravidade da questão era ainda muito
maior e pior...
Era necessário o envio de ofício solicitando os dados, o que, mesmo enviando para diferentes
Diretorias do DEGASE, o mesmo não foi conseguido. Outro caminho foi através do Conselho
Estadual de Direitos da Criança e do Adolescente (CEDCA RJ), órgão no qual eu tenho acento
enquanto Conselheira Estadual desde meados de 2015, no entanto, também não obtive sucesso,
mesmo tendo acento e solicitando para uma representante do DEGASE enquanto Conselheira no
CEDCA. A 3ª opção foi diretamente em âmbito federal, através do Sistema Nacional
Socioeducativo (SINASE), solicitando a um amigo, em 2015, à época Coordenador do SINASE,
em Brasília. Para mim seria mais fácil conseguir os dados com Ele ‘in loco’, pois mensal ou a
cada dois meses eu viajava para Brasília para participar de Grupo de Trabalho Criança e
Adolescente em situação de rua do CONANDA, na construção de uma Política Nacional de
Atendimento às Crianças e Adolescentes em situação de rua. Tive dois encontros com meu
amigo, em Brasília, o primeiro para explicar minha pesquisa / tese e encaminhar ofício. O
segundo foi para, finalmente, ter acesso aos dados das unidades do sistema socioeducativo do Rio
de Janeiro. Ele me mostrou as planilhas e disse que iria me enviar os links por email. Aguardei
por algumas semanas. Assim que recebi dei uma rápida confirmada nos arquivos recebidos,
salvei-os no laptop na pasta DEGASE e me tranquilizei...
No entanto, qual não foi minha surpresa quando, alguns meses depois, ao abrir as
planilhas (2011, 2012, 2013 e 2014) verifico com mais atenção que só foi feita a sistematização
de dados referentes ao mês de novembro de cada ano, ou seja, só existia um dado mensal por ano,
o que inviabilizava a minha proposta de uma pesquisa de acompanhamento e defesa da
progressão do superencarceramento ao longo do período de estudo!
A pesquisa de dados da Defensoria Pública foi outra tentativa. Mas, a informação que tive
com dois Defensores, referência para todos nós no atendimento ao sistema socioeducativo, foi
que tinham dados, mas que estes não eram sistematizados com a frequência requerida. Os dados
não eram sistematizados, eram solicitados ao DEGASE sem uma periodicidade prévia, ou seja,
existiam dados soltos. O Ministério Público foi o 5º caminho, numa perspectiva de que seria
acertada, pois o MP sempre teve acesso aos dados do DEGASE e, claro, pensava, haveria
sistematização sequencial. A coleta de dados começou pela Promotoria de Tutela Coletiva da
Infância e Juventude em Matéria Infracional da Capital. Porém, foi relatado que aquela
promotoria nunca havia feito um levantamento de dados sistemático do DEGASE. Não existia
essa informação arquivada do período pretendido (2011 a 2016). Os dados, a partir de uma
210
iniciativa individual da Promotora responsável por essa Promotoria, Dra. Janaína Pagan,
começaram a ser solicitados ao DEGASE, em meados de 2016, para que este enviasse dados de
meados de 2015 em diante. A princípio, não existiam dados mensais, mas foram considerados,
mesmo de forma alternada. Importante ressaltar que também tive acesso, através da Promotoria,
de alguns dados de alguns relatórios do Centro de Apoio Operacional da Infância e Juventude
(CAO Infância), do Ministério Público. Em reunião com a Promotora, sugeri que era importante
para nossa atuação uma sistematização mensal dos dados, não apenas numéricos, mas, se
possível, também relacionado à raça, o que foi considerado positivo, mas, este último quesito não
foi possível a elaboração.
O 6º campo de pesquisa foi o Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate à Tortura
(MEPCT/RJ), um órgão criado pela Lei Estadual n.º 5.778 de 30 de junho de 2010, vinculado à
Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (ALERJ), que tem como objetivo planejar,
realizar e conduzir visitas periódicas e regulares a espaços de privação de liberdade, qualquer que
seja a forma ou fundamento de detenção, aprisionamento, contenção ou colocação em
estabelecimento público ou privado de controle, vigilância, internação, abrigo ou tratamento, para
verificar as condições em que se encontram submetidas as pessoas privadas de liberdade, com
intuito de prevenir a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos e degradantes. Nas
visitas do MEPCT às unidades do DEGASE, algumas delas com a minha participação enquanto
Conselheira do CEDCA, os dados do número de adolescentes internados nas unidades sempre
eram solicitados à diretoria. No entanto, mais uma vez se configurou a falta de uma
sistematização regular, só apresentando dados eventuais, quando das visitas de fiscalização às
unidades que, por envolverem muitos espaços e instituições de internação de adultos, idosos,
crianças e adolescentes no RJ, as visitas à mesma unidade não são frequentes.
Em início de agosto de 2017 resolvi, novamente, entrar em contato com a Promotoria de
Tutela Coletiva da Infância e Juventude em Matéria Infracional para ver se já haviam conseguido
os dados que faltavam de 2015 ao período atual (junho de 2017). Felizmente, consegui os dados
mensais de parte de 2015, e da maior parte de 2016 até meados de 2017.
Todas as dificuldades encontradas, associadas à falta de uma sistematização dos dados das
unidades fechadas do Sistema Socioeducativo do Rio de Janeiro nos aponta uma questão muito
grave e preocupante, que interfere diretamente na execução de políticas públicas e no
enfrentamento à superlotação. Ao total, foram 06 fontes de dados para se conseguir um mínimo
211
de periodicidade para uma análise mais consistente, porém muito distante do inicialmente
desejado. A falta de uma sistematização regular, de transparência, de socialização das
informações e da não publicação desses dados também é um analisador. A omissão, ou recusa
dos órgãos e/ou instituições do poder público em não disponibilizar informações públicas,
deliberadamente, implica na falta de interesse em executar políticas públicas que respondam às
reais necessidades desse público e na garantia de direitos. É uma forma de ocultação da realidade
social, ou produção de uma realidade que interessa à classe dominante, pautada numa ideologia
punitiva e seletiva que contribui com a manutenção e no agravamento do quadro de superlotação,
direcionada a um grupo específico: adolescentes e jovens negros e pobres, os sujeitos
indesejáveis.
(...) levantamento do Ministério Público estadual revela que não há um único jovem
mantido por mais de dois anos no sistema, por mais bárbaro que seja o crime. (...) Dos
680 adolescentes que, no mês passado (março), cumpriam medidas socioeducativas nas
comarcas da capital, que também atendem o estado, apenas quatro, 1% do total, estavam
nas unidades fechadas por um período entre 18 meses e dois anos.
A sensação de impunidade encorajou um grupo de promotores e procuradores de Justiça
a defender mudanças na lei. Os alvos da emenda proposta são o artigo 112 do Estatuto
da Criança e do Adolescente (ECA) — que prevê a aplicação de medidas diferenciadas
de acordo com os crimes ou contravenções cometidos — e a lei 12.594/2012 — que
disciplina a execução das punições. Em vez de brigar pela polêmica redução da
maioridade penal, os membros do MP reivindicam que a Justiça passe a ter o direito de
impor de uma só vez, ao jovem infrator, os três anos máximos de internação, sem a
necessidade de renovar a medida periodicamente.
— Os adolescentes precisam de limites. Se o Estado não fizer aquilo que a família e a
escola deixaram de fazer, esses jovens vão acabar se tornando pessoas irrecuperáveis.
Vão escalando a gravidade dos atos que praticam — lamenta a procuradora de Justiça do
Rio Flávia Ferrer, uma das autoras da emenda212.
212
Publicado em: https://oglobo.globo.com/rio/hoje-nenhum-jovem-infrator-esta-internado-ha-mais-de-dois-anos-
19157224
213
Metodologia
Os dados serão apresentados a seguir, destacando que como a proposta era a de analisar a
superlotação nas 10 unidades de internação213 no período compreendido entre 2011 e JUN 2017,
optei, primeiro, por destacar em uma tabela os dados das 05 fontes214 utilizadas em cores
distintas. Analisados os dados, foi elaborada uma 2ª tabela com seleção dos dados que
representavam os maiores números de internação ao mês de cada unidade, visto que o número de
adolescentes em cumprimento de medida de privação de liberdade muda constantemente e, a
cada visita, mesmo feita na mesma semana, é recorrente existirem mudanças nesse número.
Como a proposta desse estudo é a de acompanhamento da superlotação, foram considerados os
maiores dados entre as 05 fontes.
A seguir, o exemplo da forma como foi construída a primeira tabela elaborada, na qual
destaco os dados informados pelas 05 fontes, que aparecem juntos num mesmo período, em cores
diferentes, quando são referentes ao mesmo mês do ano em questão (a tabela é a de 2016).
Observa-se que, por exemplo, no mês de fevereiro de 2016, no ESE (Educandário Santo
Expedito) temos 04 dados diferentes: 420, 409, 405 e 415, para uma capacidade de 220
adolescentes. Isso se dá porque as visitas nesta unidade, de 05 diferentes fontes215, se deram em
datas diferentes, e o número de adolescentes internados no DEGASE pode variar de um dia pro
outro. Na tabela final da superlotação considerei o maior dado, ou seja, 420 adolescentes
internados no ESE, em fevereiro/2016.
213
Centro de Socioeducação Gelso de Carvalho Amaral (Cense GCA), Centro de Socioeducação Dom Bosco (Cense
Dom Bosco), Educandário Santo Expedito (ESE), Escola João Luiz Alves (EJLA), Centro de Atendimento
Intensivo Belford Roxo (CAI Baixada); Centro de Socioeducação Professor Antonio Carlos Gomes da Costa
(Cense PACGC), Centro de Socioeducação Santos Dumont, Centro de Socioeducação Irmã Asunción de La
Gándara Ustara (Cense Volta Redonda), Centro de Socioeducação Professora Marlene Henrique Alves (Cense
Campos).
214
SINASE; Defensoria Pública, Ministério Público (Promotoria Tutela Coletiva Ato Infracional e Cao Infância);
Mecanismo Estadual de Proteção e Combate à Tortura.
215
Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva da Infância e Juventude Infracional da Capital; Relatório vistoria técnica
do MP - CAO Infância; Defensoria Pública; Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate a Tortura; CEDCA.
214
CENSE PAC 44 45 53 63 63 67 65 73 69 77 65 66 63
GC 54 52 55 74 71 66 66
CENSE 32 33 34 43 40 50 39 46 44 44 48
ILHA 40 39 38
S. DUMONT 64 48 64 68 67
C. V. 90 125 150 143 25 30 38 136 132
REDONDA 110 139 171 190
(Cense 171
IALGU)
CENSE 80 190 191 227 231 209
CAMPOS 201
(Cense
PMHA)
Fontes:
1) Promotoria de Justiça de Tutela Coletiva da Infância e Juventude Infracional da Capital
2) Relatório vistoria técnica do MP - CAO Infância
3) Defensoria Pública
4) Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate a Tortura
5) CEDCA
OBS: Os dados do SINASE não entraram na tabela acima porque estes são dados de 2012 a 2014.
215
CENSE ILHA 40
S. DUMONT 64
C. V. 100
REDONDA
(IALGU)
CENSE 50 69
CAMPOS
(C. PMHA)
TOTAL 1.040
TOTAL 39 987
2014
UNIDADES Capaci JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ
dade
CENSE GCA 64 72 119
DOM BOSCO 215 227 245 275
ESE 220 205 261
EJLA 112 175 193
CAI BAIXADA 124 171
CENSE 44 49
PAC GC
CENSE ILHA 40 42
S. DUMONT 64
C. V. 100 160*(dep 89
REDONDA ois da
rebelião.
(C. IALGU) Antes
haviam
200 na
unidade)
CENSE 50 135
CAMPOS
(C. PMHA)
TOTAL 1.040
TOTAL 402 72 245 365 1.334
2015
UNIDADES Capaci JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ
dade
CENSE GCA 64 120 177 210 185 248 179
DOM BOSCO 210 395 300 378 400 379 369 307
ESE 220 310 335 345 354
218
DOM BOSCO 210 322 402 490 377 445 343 324 345 323 303 356 355
(Obs: 27 (Obs: 34
EM) EM)
ESE 220 390 420 384 385 438 438 456 476 462 470 500 460
EJLA 112 289 268 323 319 406 372 413 370 368 311 320 302
CAI BAIXADA 124 235 - 297 298 356 356 392 380 372 367 348 323
CENSE 44 54 53 63 63 67 65 74 71 77 65 66 63
PAC GC
CENSE ILHA 32 40 39 43 40 50 39 - 46 44 44 48 -
S. DUMONT 64 48 - 64 68 67 - - - - - - -
C. V. 90 125 150 143 - - - 171 190 - - 136 132
REDONDA
(C. IALGU)
CENSE 80 201 191 227 - - - 231 - - - 209
219
CAMPOS (OBS: 07
EM)
(Cense PMHA)
TOTAL 1.040
TOTAL 1.924 1.758 2.289 1.774 2.015 1.777 2.229 2.065 1.784 1.720 2.204 1.809
2017
UNIDADES Capaci JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ
dade
CENSE GCA 64 188 201 213 191 168 168
CENSE PACGC 44 65 55 50 43 44 44
CENSE ILHA 40
S. DUMONT 64
C. V. 124
REDONDA
(C. IALGU)
CENSE 50 280 191
CAMPOS
(C. PMHA)
TOTAL 1.040
TOTAL 1640 1.624 1.696 1.756 1.629 1.840
Fontes:
1) Promotoria de Justiça de Tutela coletiva da Infância e Juventude Infracional da Capital
2) Relatório vistoria técnica do MP – CAO Infância
3) Defensoria Pública
4) Mecanismo Estadual de Prevenção e Combate a Tortura
5) SINASE (não existe uma periodicidade mensal dos dados sistematizados do SINASE. Os dados apresentados pelo DEGASE são referente apenas ao mês
de novembro de cada ano)
NOTA: Como os dados são referentes à superlotação no DEGASE, optei por considerar o maior quantitativo de cada período (ao longo do mês, de acordo
com as diferentes). A sigla EM quer dizer Ensino Médio, ou seja, número de adolescentes que estavam cursando o nível médio.
220
2016
UNIDADES Capaci JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ
dade
CENSE GCA 64 220 235 255 224 186 164 168 187 138 160 221 174
DOM BOSCO 210 322 402 490 377 445 343 324 345 323 303 356 355
(Obs: 27 (Obs: 34
EM) EM)
ESE 220 390 420 384 385 438 438 456 476 462 470 500 460
EJLA 112 289 268 323 319 406 372 413 370 368 311 320 302
CAI BAIXADA 124 235 - 297 298 356 356 392 380 372 367 348 323
TOTAL 774 1.456 1.325 1.749 1.603 1.831 1.673 1.753 1.758 1.663 1.611 1.745 1.610
2017
UNIDADES Capaci JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ
dade
CENSE GCA 64 188 201 213 191 168 168
2017
Capaci JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ
dade
ESE 220 474 479 488 519 534 487
224
Comentários
(Gleison)
Chega de passar a mão na cabeça destes vermes. Estes centros educativos deveria ser
para punir severiamente e ser um inferno para por medo nestes menores e evitar por
meio do medo que eles retornassem ao crime do jeito que o ECA impôs parece mais um
SPA em que eles entram tem mordomias e sai sem nenhuma punição e a tendência é
voltar ao mundo do crime já que não tem medo da punição.
216
Publicado em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/mp-do-rj-recorre-a-justica-para-impedir-colapso-do-
sistema-socioeducativo.ghtml
226
(Spfc Libertadores)
Deixa eles morrerem aí .... não vai fazer falta pra ninguém! Querem estuprar, matar,
roubar e depois serem encaminhamos pra um hotel?! Vamos deixar de hipocrisia! Se
morrerem vai ser melhor.
(Thiago)
Tadinhos, porque o MP não leva pra casa, pra eles cuidarem de suas filhas, esposas e
maridos, a final são apenas crianças...
adolescentes “suspeitos” dos ônibus em direção às praias da zona sul do Rio e estes sendo
levados para a delegacia e sendo atuados.
Esses números, no entanto, não revelam todo o esforço policial empenhado na repressão
ao cometimento de delitos. Um número expressivo de pessoas
levadas à delegacia policial não são encaminhadas ao sistema prisional ou ao sistema de
medidas socioeducativas. (...) Entre janeiro e setembro de 2015, 9.859 adolescentes em
conflito com a lei foram levados para delegacias de polícia na situação de apreendidos.
Destes, 8,7% assinaram Boletins de Ocorrência Circunstanciados (BOC), o que, via de
regra, não resultaria em apreensão do adolescente ao sistema socioeducativo; e 91,3%
assinaram Notas de Pleno e Formal Conhecimento. Ao final do procedimento na
delegacia, o que se observa é que a maioria dos adolescentes apreendidos e levados para
a DP (87,7%) é recolhida à unidade de entrada do DEGASE para aguardar decisão do
Ministério Público. Dos 7.894 adolescentes apreendidos e recolhidos ao sistema, 94,6%
foram levados em autos de apreensão de ato infracional em flagrante. Como dito
anteriormente, durante este processo, o adolescente apreendido fica sob a guarda do
DEGASE e recolhido em um centro de medidas socioeducativas, onde permanece por,
no máximo, 24 horas até ser apresentado à Vara da Infância, da Juventude e do Idoso
para audiência e decisão quanto à liberação ou à internação do adolescente. Assim, o
percentual de Guias de Apreensão de Adolescente não revela o total de adolescentes
recolhidos ao sistema socioeducativo, visto que a decisão de internação depende, ainda,
de decisão judicial da Vara da Infância, da Juventude e do Idoso (Prisões e apreensões
de Adolescentes no Estado do RJ, ISP, 2015, p.4).
Como se pode ver, o trabalho de segurança pública no Estado do RJ tem como principal
atribuição o controle e a repressão de delitos, tendo como desdobramentos a apreensão e o
encarceramento daquele que cometeu algum tipo de crime ou ato infracional, especialmente
adolescentes. Quanto ao período máximo de “24 horas” do adolescente à espera de uma decisão
da Vara da Infância, Juventude e do Idoso, na maioria das vezes, esse período é bem maior.
Assim como o período do adolescente numa unidade provisória, que não poderia ser maior do
que 45 dias, o adolescente pode esperar até 06 meses para ser encaminhado a uma unidade de
internação fechada.
A seguir veremos as tabelas e gráficos de apreensão de adolescentes e dos adolescentes
conduzidos ao sistema socioeducativo, com os dados do Instituto de Segurança Pública.
228
JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ TOTAL
250 221 268 356 296 281 276 283 289 276 334 336 3.466
2012
APREENSÃO DE ADOLESCENTES NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO (*Não foi encontrado registro mensal, só anual)
JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ TOTAL
5.042
2013
APREENSÃO DE ADOLESCENTES NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ TOTAL
402 617 711 593 548 685 591 577 699 690 681 528 7.222
2014
APREENSÃO DE ADOLESCENTES NO ESTADO DO RIO DE JANEIRO
JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ TOTAL
562 696 632 555 628 534 658 725 871 956 838 725 8.380
2015
APREENSÃO DE ADOLESCENTES CONDUZIDOS À DP
JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ TOTAL
980 945 1.025 918 818 775 775 1.192 1.197 1.190 807 968 11.590
2015
APREENSÃO DE ADOLESCENTES RECOLHIDOS AO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO
JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ TOTAL
956 921 990 894 791 760 846 876 860 880 790 698 10.262
2016
APREENSÃO DE ADOLESCENTES CONDUZIDOS À DP
JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ TOTAL
1.293 1.217 1.038 1.239 873 869 779 825 852 817 855 824 11.481
2016
APREENSÃO DE ADOLESCENTES RECOLHIDOS AO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO
JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ TOTAL
907 809 1.011 858 736 741 639 769 832 780 825 797 9.704
2017
APREENSÃO DE ADOLESCENTES CONDUZIDOS À DP
JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ TOTAL
824 594 845 740 3.003
2017
APREENSÃO DE ADOLESCENTES RECOLHIDOS AO SISTEMA SOCIOEDUCATIVO
JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ TOTAL
795 553 823 698 2.869
230
Fonte: Elaborado pelo Instituto de Segurança Pública (ISP) com base em informações da PCERJ
2002 3.956
2003 3.382
2004 2.206
2005 2.206
2006 1.890
2007 1.853
2008 1.806
2009 2.272
2010 2.806
2011 3.466
2012 5.042
2013 7.222
2014 8.380
2015 11.590 10.262
2016 11.481 9.704
Fonte Instituto de Segurança Pública (ISP) com base em informações da PCERJ
231
11.590 11.481
2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016
10.262
9.704
8.380
7.222
5.042
3.956
3.382 3.466
2.806
2.206 2.206 2.272
1.890 1.853 1.806
232
De acordo com o Dossiê Criança e Adolescente 2012, informa que de 2010 para 2011,
ocorreu aumento de 23,5%, ou seja, 660 apreensões a mais em todo o estado do Rio de Janeiro. O
maior aumento da série se deu de 2008 para 2009, com mais 25,8%. A maior redução aconteceu
de 2005 para 2006: foram menos 6,7% casos. De 2005, com cerca de 2.026 adolescentes autores
de ato infracional, até 2008, com 1.806 adolescentes, houve redução.
Depois desse ano, houve aumento ao longo de toda a série, até 2011, com 3.466
adolescentes envolvidos com atos infracionais. A diferença percentual de 2005 para 2011 foi de
mais 71,1% de jovens apreendidos, ou ainda, mais 1.440 jovens apreendidos em situação de ato
infracional em todo o estado nesse período.
A distribuição espacial dos adolescentes apreendidos teve maior concentração na Baixada
Fluminense, com cerca de 1.011 jovens, representando 29,2% do total. Na Capital ocorreram 955
casos, ou ainda, 27,6% do total. Na cidade do Rio de Janeiro foi onde mais ocorreram apreensões,
com 955 casos. (Dossiê Criança e Adolescente, 2012, p.54)
Quanto ao perfil de jovens envolvidos com atos infracionais, em 2011, constatou-se que a
maioria absoluta era do sexo masculino, atingindo, aproximadamente, 91,8%. As do sexo
feminino representaram 7,3% do total. A falta de informação sobre o sexo dos envolvidos foi de
0,9%. Com relação às idades, o maior percentual de acusados está entre os jovens de 16 a 17
anos, com 71,0% do total. A outra faixa etária, que vai dos 13 aos 15 anos de idade, significou
27,2% do total. Os jovens de cor parda foram os mais apreendidos, com 47,9% do total. Os
negros somaram 30,1% dos casos, e os brancos, 18,3% do total. Os não brancos chegaram a
78,0% do total de jovens apreendidos. Em 3,7% dos casos não havia informação sobre a cor dos
jovens (Dossiê Criança e Adolescente, 2012, p. 56)
Observando o tipo de envolvimento que levou à apreensão de adolescentes em 2011, nota-
se que são os mesmos envolvimentos de 2006, e na mesma ordem de grandeza, ou ainda, há
cinco anos, as apreensões se davam pelos mesmos atos infracionais de 2011. A maior parte dos
envolvimentos está ligada às drogas, com cerca de 39,9%, em 2011. Em 2006, quando da edição
do primeiro Dossiê, as drogas também eram responsáveis pela maior parte das apreensões, com
cerca de 29,8% do total, e isso revela um incremento de 10,1%, em cinco anos, sobre o total de
registros de atos infracionais. Os roubos representaram 18,6% do total. Em 2011, esse percentual
reduziu, se comparado ao ano de 2006, quando os roubos concentraram 23,4% do total. Os furtos
234
representaram 12,0% desse total para o ano de 2011, e em 2006, eles foram da ordem de 13,1%.
(Dossiê Criança e Adolescente, 2012, p.58)
O que se observa, além da repetição dos mesmos tipos de atos infracionais, é o aumento
relativo da participação das drogas no envolvimento de crianças e adolescentes em situações de
infração. Os outros tipos de atos infracionais reduziram sua participação no total, à medida que os
percentuais de envolvimento com drogas aumentaram entre os anos de 2006 e 2011. (Dossiê
Criança e Adolescente, 2012, p.59)
O Dossiê Criança e Adolescente 2015, que cobre os dados de 2010 a 2015, faz a análise
de que em 2010, crianças e adolescentes somavam 4.597.165 de pessoas no estado do Rio de
Janeiro e representavam 28% da população total do estado (Censo Demográfico, 2010). Quantos
dessas crianças foram vítimas de algum crime? Quantos desses adolescentes cometeram algum
delito? Os menores de idade sofreram mais delitos do que cometeram?
ano no estado (1.730) em comparação com o total do mesmo período de 2011 (739). O aumento
chegou a 134,1% no estado e a 237,61% na capital do Rio de Janeiro, onde passou de 210
apreensões para 709. No primeiro trimestre de 2012, 342 adolescentes foram apreendidos na
capital e 1.021 no estado. Em média, foram 22 novas detenções por dia. O DEGASE teve um
aumento de 100% no número de internos, passando de 500 para 1.000 em dois anos, estourando
em mais de 60% de aumento. Análises do próprio DEGASE, do Instituto de Segurança Pública
(ISP), da DPCA e do Ministério Público identificaram que, na capital, o crescimento de jovens
envolvidos com crimes está ligado às alterações na estrutura do tráfico de drogas, após as
pacificações de favelas. Estudo realizado pelo ISP mostra uma mudança no perfil do adolescente
apreendido no estado. Se antes os crimes contra o patrimônio estavam entre as principais causas,
hoje o tráfico é o crime mais comum.
— O que puxou esse aumento foi o tráfico. Vimos também uma certa mudança de função.
Antes, os adolescentes trabalhavam mais como fogueteiros ou como radiocomunicadores. Nas
comunidades pacificadas, essas funções não existem mais. Eles estão trabalhando na venda direta
de drogas. Aqui no Centro, a Providência ainda tem uma outra característica. Eles (jovens)
desceram a favela e ocuparam casarões e outras áreas abandonadas do Centro para vender drogas.
Assim, acabam mais expostos — explicou a titular da à época DPCA, Bárbara Lomba219.
Se formos fazer uma análise da relação do aumento das apreensões de adolescentes com o
surgimento das UPPs, podemos considerar que a explicação da titular da DPCA, em 2013, tem
algum fundamento, mas não é o único. O programa de segurança pública que deu origem às
UPPs começou a funcionar no RJ em 19 de dezembro de 2008, quando foi instalada a primeira
Unidade de Polícia Pacificadora, no Morro Santa Marta, no bairro de Botafogo, na Zona Sul do
Rio. Desde então, 38 UPPs foram implantadas no RJ, e a Polícia Pacificadora naquela época
contava com um efetivo de 9.543 policiais220. Porém, com o agravamento da violência no RJ, a
Secretaria de Segurança Pública anunciou, em agosto de 2017, que iria reduzir o efetivo em 30%,
219
Publicado em: https://oglobo.globo.com/rio/apreensoes-de-menores-infratores-aumentaram-2376-na-cidade-do-
rio-de-2011-para-2013-8448515, acesso em 30/06/13.
220
Publicado em: http://www.upprj.com/index.php/historico, acesso em 17/09/17.
237
e esses cerca de 3.000 policiais irão fazer policiamento ostensivo na Capital e Baixada
Fluminense221.
Não vamos nos estender em relação às UPPs, mas, importante ressaltar que houve um
grande investimento financeiro (mais de R$ 3,85 bilhões) e, praticamente, não observamos
melhoras na vida nas favelas222. Para 66% dos moradores as UPPs são um projeto falido223. Não
houve políticas públicas como saúde, saneamento, educação, cultura. A Segurança Pública foi a
única politica de investimento privilegiado, funcionando na lógica da perseguição e punição ao
inimigo, de que a favela precisa de ocupação policial e não de políticas necessárias às
necessidades desse público.
Há um aumento significativo de adolescentes e jovens que ingressaram no tráfico, e é a
maioria desses jovens que estão sendo encarcerados e também vítimas da violência letal. Mas,
aqui cabe uma pergunta: Por que eles ingressam no tráfico? Em primeiro lugar por ser um
mercado de trabalho que recebe esse grupo social (os indesejáveis), mas, não todos. Não é
qualquer garoto que resolve entrar para o tráfico que consegue, e muito menos faz carreira lá
dentro. Existe um processo seletivo, sim! Geralmente, são, dentre aqueles que buscam esse
caminho, os considerados melhores, os mais destemidos, os que têm liderança, ousadia,
inteligência, rapidez de raciocínio, dentre outras. Sabem que podem ser presos ou morrer a
qualquer momento, mas consideram que esse poder que passam a ter vale a pena o risco. O
consumo, o desejo de possuir determinadas mercadorias, também influencia muito.
No período compreendido entre 2011 e 2015, como já apontado, houve um aumento de
331% no número de apreensões de adolescentes no Estado do Rio de Janeiro: de 3.466 para
11.590. Consideramos que este aumento não se deu unicamente pela implantação das UPPs, que
expulsou um número desses jovens para o asfalto. Não existe um exército do tráfico formado por
tantos adolescentes e jovens assim. As apreensões aumentaram, principalmente, pela ofensiva
higienista, seletiva e punitiva que se instalou não só no Estado do RJ, mas em vários centros
urbanos. Para Margarida Prado, Professora de Direito na Universidade Cândido Mendes e
221
Publicado em: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/08/1912108-em-meio-a-crise-rio-retira-30-do-
efetivo-de-policiais-em-upps.shtml, acesso em 01/10/2017.
222
Publicado em: https://oglobo.globo.com/rio/gastos-de-mais-de-385-bilhoes-nao-melhoram-vida-nas-favelas-com-
upp-20387997 , acesso em 01/10/17.
223
Publicado em: https://exame.abril.com.br/brasil/5-dados-provam-falencia-das-upps-no-rio-segundo-moradores/ ,
acesso em 01/01,17.
238
Conselheira pela OAB no CEDCA, “o aumento do número de apreensões não é porque aumentou
a criminalidade, mas por causa da irresponsabilidade do Estado, da corrupção, dos grandes
eventos, da limpeza urbana. Tudo que é prioritário, o principal valor é a segurança pública. A
aplicação da lei está sendo feita fora dos parâmetros normativos”.
Uma medida para minimizar a superlotação foi uma determinação da Juíza da Vara de
Execução de Medidas Socioeducativas da Capital do RJ, Dra. Lúcia Glioche, do dia 25/01/16,
para que não fossem encaminhados mais adolescentes para unidades superlotadas. A
determinação obriga o Estado a limitar a capacidade máxima das unidades, principalmente as
unidades: ESE, EJLA, Cense GCA e Dom Bosco. Porém, os Juízes têm descumprido e
continuam enviando os adolescentes para as unidades do DEGASE. Veja a notícia abaixo
publicada no Jornal Extra, em 20/02/16224:
224
Publicada em: https://extra.globo.com/casos-de-policia/juiza-determina-que-degase-acabe-com-superlotacao-em-
quatro-unidades-para-menores-infratores-18761235.html, acesso em 03/09/17.
239
“O que estes ¨%$#@ vão fazer pelas ruas? Evidente que o governo vai liberar uma parte
desses ¨%$#@! e quem vai acalmar o ódio deles? as vítimas, o povo, as crianças, os
idosos...Isso é a DEMOCRACIA que eles implantaram no Brasil..povo tolo!”
“Porque essa anta não os leva pra casa dela já que está com tanta pena desses va ga bun
dos?!”
226
Publicado em: http://www.blogdosirodarlan.com/ , acesso em 05/09/16.
241
divulgando notícias equivocadas e alarmistas em relação ao tema, considerando que esta medida
iria afrouxar as penalidades, quando a necessidade era a de aplicação de penas mais duras para os
adolescentes autores de ato infracional, bem como aumentar o tempo de internação.
Os nazistas insistiram que penas mais rígidas e punições mais severas também
funcionavam para dissuadir os contraventores e apressaram-se em proclamar seus êxitos
antes do primeiro aniversário da ditadura de Hitler (GELLATELY, 2011, p. 153).
Dessa forma, o Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro adotou medida de “efeito
suspensivo na apelação do acordo da Central de Regulação de Vagas” para o Sistema
Socioeducativo227. Essa decisão causou grande indignação do coletivo de defensores de direitos,
considerando um retrocesso e uma contradição do Judiciário e Ministério Público, pois favorece
o não cumprimento dos preceitos da garantia de direitos de adolescentes autores de ato
infracional de acordo com os parâmetros normativos nacionais e internacionais, levando em
consideração principalmente a excepcionalidade na aplicação de medida socioeducativa de
internação, conforme art. 121 do Estatuto da Criança e do Adolescente, e o art. 122228 que versa
sobre a aplicabilidade da medida. Considera que não é o tempo da internação que vai mudar o
comportamento do jovem e sim o desenvolvimento de um processo socioeducativo de fato,
associado ao trabalho de psicologia e assistência social dirigido a ele e sua família. A Central de
227
Publicado em: http://justicaecidadania.odia.ig.com.br/2017-05-23/tj-derruba-criacao-de-central-de-vagas-de-
internacao-para-menores-infratores.html , acesso em maio/2017.
228
ECA - Seção VII - Da Internação
Art. 121. A internação constitui medida privativa da liberdade, sujeita aos princípios de brevidade,
excepcionalidade e respeito à condição peculiar de pessoa em desenvolvimento.
§ 1º Será permitida a realização de atividades externas, a critério da equipe técnica da entidade, salvo expressa
determinação judicial em contrário.
§ 2º A medida não comporta prazo determinado, devendo sua manutenção ser reavaliada, mediante decisão
fundamentada, no máximo a cada seis meses.
§ 3º Em nenhuma hipótese o período máximo de internação excederá a três anos.
§ 4º Atingido o limite estabelecido no parágrafo anterior, o adolescente deverá ser liberado, colocado em regime de
semi-liberdade ou de liberdade assistida.
§ 5º A liberação será compulsória aos vinte e um anos de idade.
§ 6º Em qualquer hipótese a desinternação será precedida de autorização judicial, ouvido o Ministério Público.
§ 7o A determinação judicial mencionada no § 1o poderá ser revista a qualquer tempo pela autoridade
judiciária.
Art. 122. A medida de internação só poderá ser aplicada quando:
I - tratar-se de ato infracional cometido mediante grave ameaça ou violência a pessoa;
II - por reiteração no cometimento de outras infrações graves;
III - por descumprimento reiterado e injustificável da medida anteriormente imposta.
§ 1o O prazo de internação na hipótese do inciso III deste artigo não poderá ser superior a 3 (três) meses, devendo
ser decretada judicialmente após o devido processo legal.
Publicado em: http://www.planalto.gov.br/Ccivil_03/leis/L8069.htm .
242
A maioria dos adolescentes está internada por roubo e não por homicídio e latrocínio
consumados ou atentados. A Central de Vagas apenas humaniza a internação. Hoje, com
a superlotação, o adolescente não é sequer ouvido por técnicos que permitam que a
reflexão sobre o ato praticado ocorra. A família não é acolhida. Ele não estuda. Não sai
do alojamento para refeições, beber água, nada. É um confinamento, no qual a atividade
praticada é a “troca de experiências”. Os agentes e profissionais que trabalham na
unidade estão apenas preocupados com a segurança e os riscos que o excesso de jovens
causa. A Central de Vagas visa a humanizar a internação. Há juízes que ainda internam
por fatos que não são roubo, homicídio e latrocínio. Na hora da execução, esses
adolescentes superlotam a unidade. Mesmo com a central de vagas, haverá mais
adolescentes internados do que vagas, pois a central de vagas não vai tirar da internação
quem praticou fato grave. Assim, o Estado ainda precisa se preocupar em construir
novas unidades.
A progressão da medida de internação para outra é um direito do jovem. Ele não pode
ser presumido perigoso, apenas pelo ato grave que praticou. Cabe ao Estado dar
segurança para a população e não manter os adolescentes internados pelo máximo da lei,
como meio encontrado para a população ter a sensação de que tem segurança, disse a
Juíza Lúcia Glioche229 .
229
Publicado em: https://oglobo.globo.com/rio/nao-o-tempo-de-internacao-que-mudara-comportamento-de-menores-
infratores-defende-juiza-21436757 .acesso em junho/17.
243
adolescentes, sendo 82,12% destes crimes (386) cometidos contra adolescentes com idade entre
13 e 18 anos, do sexo masculino, em sua maioria afrodescendente (pardos e negros), sendo que
em 78,99% destes casos (371) foram utilizadas armas de fogo. A capital do Rio destacou-se
nesse levantamento com 54,68% dos assassinatos (257), seguida pela Baixada Fluminense com
28,72% (135 casos), e com 16,59% (78 assassinatos) ocorridos em outras regiões do Estado.
Naquele tempo, não havia internet, nem sistematização desses dados, tivemos que pesquisa-los
em jornais impressos diários, especialmente dois deles: O Dia e O Povo. Eu, enquanto assessora
de imprensa do MNMMR – RJ, era a responsável pela pesquisa, análise e divulgação dos dados.
A repercussão internacional do dossiê foi muito grande. Jornalistas de vários países vieram ao
país entrevistar o MNMMR. Nessa época, o Brasil ficou internacionalmente conhecido como um
país que exterminava “meninos e meninas de rua”.
Pouco mais de um ano depois de ocorridas das denúncias de extermínio, em 23 de julho
de 1993, aconteceu a “Chacina da Candelária”, quando 08 jovens, de um grupo de cerca de 70
crianças, jovens e adultos, foram executados, com o dia ainda amanhecendo, aos pés do centro
comercial e religioso da cidade do Rio de Janeiro, na Praça Pio X, em frente à Igreja da
Candelária. Mais uma vez, manchetes foram estampadas nas primeiras páginas dos jornais e
televisões do mundo inteiro. Pela primeira vez os autores de uma chacina ousaram executá-la
numa região central, na capital do Rio de Janeiro, o que antes era feito na Baixada Fluminense. E
a cidade Maravilhosa se desnudou, mostrou o seu avesso e todos viram que ela não era tão
maravilhosa assim.
Lembro-me que na década de 1990 os grupos de extermínio da Baixada Fluminense,
especialmente de Duque de Caxias e Belford Roxo, colavam cartazes em postes com uma lista
dos nomes daqueles considerados indignos de viver, daqueles marcados para morrer. Passados
mais de 25 anos, a história se repete quando ouvi da empregada de minha mãe, moradora de
Nova Iguaçu, que os milicianos (ou traficantes) haviam também colado um cartaz num poste com
uma lista daqueles que seriam mortos. É muita ousadia, pensei... A vida, para alguns, de fato vale
muito pouco, ou não vale nada, para aqueles que têm a vida considerada indigna de ser vivida.
Segundo o autor Giorgio Agamben (2012) a vida nua se encontra no paradoxo específico
da própria inclusão e depois exclusão do sujeito de direito. A vida se torna matável através da
ordem jurídica do poder soberano. É a ordem jurídica que torna o sujeito passível de morte,
excluído do direito. Toda sociedade estabelece quem serão considerados os homens sacros e essa
244
determinação parte de um ato soberano do Estado, que define os seus cidadãos e os que serão
tratados como “vida sem valor”, aqueles sujeitos indesejáveis.
Para o historiador Salloma Jovino, existe vários processos genocidas acontecendo, sendo
um deles nas periferias dos grandes centros, como em Pernambuco, Alagoas, Fortaleza, São
Paulo, Rio de Janeiro, dentre outros.
Tem um resquício disso que poderíamos chamar de cultura da violência. Ou seja, desde
o início da colonização, uma das marcas é a violência, seja essa violência para limpar os
campos e tirar os nativos para implementar uma fazenda, seja essa violência
racionalizada da produção. Quando eu capturo outras pessoas, em um outro lugar, e
trago pra trabalhar nessa terra, pra transformar aquele ser humano capturado em um ser
humano produtivo pra um engenho, pra uma fazenda, eu tenho que racionalizar a
violência. Isso vai gerar no longo do tempo longo, um conjunto de práticas, de normas,
de procedimentos, de aprendizagens e tradições que vão chegar até nós. Essa cultura,
essa racionalização, esse aprendizado transformado em pedagogia pelos fazendeiros, ele
vai entrar nas relações cotidianas230.
Pesquisa do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) indica que o Brasil tem
207.660.926 habitantes e uma taxa de crescimento populacional de 0,77% entre 2016 e 2017, um
pouco menor do que a de 2015/2016 (0,80%). Nesse período, 25% dos municípios tiveram suas
populações reduzidas. Os dados foram publicados, no dia 30/08/17, no Diário Oficial da
União231.
A taxa de crescimento da população brasileira vem caindo ao longo dos anos. Diversos
processos, ligados à urbanização e à modernização da sociedade brasileira, originaram quedas
progressivas nas taxas de fertilidade, o que derivou no estreitamento da base da pirâmide
populacional do país. Mas esse ritmo de crescimento no número absoluto de jovens – de 25,1
milhões, em 1980, para 34,6 milhões, em 2008 – começou a declinar progressivamente já em
meados da década atual, em função das mudanças nas curvas demográficas do país.
A taxa global de mortalidade da população brasileira caiu de 633 por 100 mil habitantes,
em 1980, para 568, em 2004, fato bem evidente no aumento da expectativa de vida da população,
um dos índices cuja progressiva melhora possibilitou significativos avanços no Índice de
Desenvolvimento Humano – IDH dos últimos anos. Apesar desses ganhos gerais, a taxa de
230
Publicado em: https://www.youtube.com/watch?v=enZISbyxgGU&feature=share, acesso em 04/10/17.
231
Publicado em: http://pesquisa.in.gov.br/imprensa/jsp/visualiza/index.jsp?jornal=1&pagina=58&data=30/08/2017 ,
acesso em 02/09/17.
245
perturbador coloca o Brasil em segundo lugar no ranking dos países com maior número de
assassinatos de meninos e meninas de até 19 anos, atrás apenas da Nigéria (Hidden in Plain Sight,
UNICEF, 2014).
Dessa forma, consideramos que os homicídios da juventude negra e pobre brasileira se
somam ao declínio das taxas de natalidade da população, pois se o Brasil conseguiu reduzir as
taxas de mortalidade infantil, não conseguiu superar as mortes provocadas pela violência letal
quando essas crianças chegam na adolescência e juventude.
Estudos históricos realizados em São Paulo e no Rio de Janeiro mostram que as epidemias
e doenças infecciosas – as principais causas de morte entre os jovens há pelo menos seis décadas,
foram progressivamente substituídas pelas denominadas “causas externas” de mortalidade,
principalmente homicídios e acidentes de trânsito. As causas externas de mortalidade vêm
crescendo de forma assustadora nas últimas décadas: se, em 1980, representavam 6,7% do total
de óbitos nessa faixa etária, em 2010, a participação elevou-se de forma preocupante: atingiu o
patamar de 26,5%. Tal é o peso das causas externas que em 2010 foram responsáveis por 53,2% -
acima da metade – do total de mortes na faixa de 1 a 19 anos de idade. Para se ter uma ideia da
dimensão, a segunda causa individual: neoplasias – tumores – representam 7,8%; e a terceira,
doenças do aparelho respiratório: 6,6%. Isoladamente, homicídios de crianças e adolescentes, que
fazem parte das causas externas, foram responsáveis por 22,5% de total de óbitos nessa faixa
(Mapa da Violência 2012).
Segundo dados do IBGE – 2016, o Brasil possui aproximadamente 61,4 milhões de
crianças e adolescentes entre 0 e 19 anos, e mais de um terço deles se concentra no Sudeste233.
No ano de 2014, mais de 59 mil mortes por homicídios foram notificadas ao Sistema de
Informações sobre Mortalidade (SIM) do Brasil, sendo 18,8% das mortes por homicídios, ou seja,
cerca de 11.092, foram cometidas contra pessoas menores de 19 anos. Mais de 80% dos
homicídios contra crianças e jovens entre 0 e 19 anos foram cometidos por armas de fogo. E a
Região Nordeste concentra a maior proporção de homicídios de crianças e adolescentes por
armas de fogo e supera a proporção nacional em 6,5 pontos percentuais.
Avolumam-se os corpos nas favelas e periferias, com cerca de 03 mortos por dia pela
polícia do Rio de Janeiro, totalizando 642 civis assassinados entre janeiro e julho de 2017.
Exacerbam-se operações policiais violentas, que deixam milhares de crianças e jovens sem aulas
233
Publicado em: http://www.crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/publi/abrinq/cenario_brasil_abrinq_mar2016.pdf
247
234
“Águia da Morte” é o nome popular ao helicóptero da CORE.
248
Nossa polícia não é “volkisch”, mas tem coisas em comum com a polícia nazista. Suas
práticas abusivas são seletivas, direcionadas a um determinado grupo social (étnico) e territórios
específicos. Esse cotidiano de violência nas favelas e periferia da cidade do Rio de Janeiro tem
deixado duras consequências em seus moradores (crianças, adolescentes, jovens, adultos, idosos),
que variam do medo e o trauma à revolta. São milhares de alunos que não podem ir à escola por
causa dos tiroteios; adoção do toque de recolher; proibição de eventos nas comunidades (bailes
funks, festival do passinho, etc.); comércio que fecha; pessoas que perdem seus entes queridos,
muitos são crianças e jovens... Certa vez ouvi de um presidente de uma associação de moradores
um discurso contundente, que ao final destacou: “Estão matando meu povo! Mas, nós não vamos
nos ajoelhar! Se eu tiver que tombar, tombarei de pé!”
O cenário da violência no Rio de Janeiro, no ano de 2017, fez com que o Governo do
Estado, mais uma vez, solicitasse apoio das Forças Armadas. Tanques de guerra e jovens
recrutas armados com fuzis passaram a fazer parte da paisagem da cidade, mas foi especialmente
nos territórios das favelas que se sentiu o peso do estado de exceção. Rocinha, Jacarezinho e
Manguinhos, foram, principalmente, os territórios que mais sofreram com essa intervenção, entre
agosto e outubro de 2017. Intensos tiroteios marcaram e marcam o cotidiano das favelas,
interferindo diretamente na vida dos moradores. Muitas pessoas assustadas com os tiros se jogam
no chão para não ser mais uma vítima de balas perdidas... São inúmeros militares que chegam
com seus blindados e até tanques de guerra (só na Rocinha, em 22/09/17, chegaram com 950
homens das forças armadas), armados com fuzil e pistolas, com o objetivo de combater a
violência do tráfico. Mas, o combate não está apenas restrito aos ditos traficantes... Entrando no
território do inimigo, o conflito não poupa ninguém, seja bandido, morador ou criança.
Qual será o custo financeiro e ético de tudo isso, como o de uma operação que só em um
dia mobilizou 500 homens das forças armadas do Exército invadindo a favela do Muquiço, em
Guadalupe (RJ), para apenas a apreensão de uma pistola roubada de um militar235?
De 2015 a 2017, o grande número de Audiências Públicas realizadas no RJ no período
nos aponta uma dura e sombria realidade, na qual a violência, a repressão, o encarceramento e o
extermínio, principalmente da juventude negra e pobre tem tido proporções altíssimas.
235
Publicado em: https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/exercito-faz-operacao-com-500-homens-para-
recuperar-pistola-roubada-de-militar-no-rio.ghtml , acesso em 20/09/17.
249
236
Publicação: http://brasil.elpais.com/brasil/2015/09/28/opinion/1443448187_784466.html, acesso em 28/09/15.
237
Publicado em: https://www12.senado.leg.br/noticias/materias/2016/06/06/cpi-do-assassinato-de-jovens-
apresenta-relatorio-final-na-quarta-feira, em 06/06/16.
250
No Brasil, os homicídios dolosos são uma triste realidade: 56.000 pessoas são
assassinadas todos os anos no País, o que equivale a 29 vítimas por 100.000 habitantes,
índice considerado epidêmico pela SF/16203.78871-55 5 Organização das Nações
Unidas (ONU). Este patamar vergonhoso e preocupante tem se mantido inalterado ao
longo de três décadas, com pequenas variações.
Importante salientar que a vitimização apresenta padrões particulares: 53% das vítimas
são jovens; destes, 77% são negros e 93% do sexo masculino. Os homicídios dolosos são
a primeira causa de morte entre os jovens. Ademais, o risco não se distribui aleatória e
equitativamente por todos os segmentos sociais e raças, ao contrário, concentra-se na
camada mais pobre e na população negra, reproduzindo e aprofundando as
desigualdades sociais e o racismo estrutural238 (Relatório da CPI Assassinato de Jovens
no Brasil, 2016, p. 26).
238
Publicado em: https://www12.senado.leg.br/noticias/arquivos/2016/06/08/veja-a-integra-do-relatorio-da-cpi-do-
assassinato-de-jovens , acesso em julho 2016.
251
cercada de muita emoção, mas também de revolta pelo número alarmante dos homicídios no
Brasil e no RJ, mas revolta pela política de segurança pública do Estado que tem sido a principal
responsável por esses assassinatos. A apresentação do representante da Secretaria de Segurança
Pública, logo na primeira fala, arrancou muitos protestos dos presentes, por querer
responsabilizar os jovens que fazem parte do tráfico pela violência letal no Estado.
Segue abaixo alguns destaques das principais falas:
Pehkx Jones Silveira (Representante da Secretaria Segurança Pública do Estado do RJ):
- A polícia hoje no RJ apreende em média 01 fuzil por dia. O público que está usando esse
armamento são jovens. E também foram apreendidas 461 granadas de janeiro a junho deste ano.
(O público se revolta nesse momento, muitas vaias e protestos!)
Segundo dados da SSP, os mortos em 2011 foram:
Brancos – 1033; Pardos – 2063; Negros – 1.107; Relação: 3 X 1
(Mais contestação do público, dizendo que pardo é negro também!)
Os policiais disseram que mataram meu filho porque é isso que eles fazem porque filho de
bandido é bandido também! Quiseram colocar arma na mão do meu filho morto pra livrar a cara
deles! Não foi legítima defesa! Meu filho só tinha 10 anos! O Estado está devendo uma
investigação pela morte de meu filho! Eu paguei ao Estado a bala que matou meu filho!
Senador Lindberg Farias (PT) – Vamos fazer de tudo para reabrir esse inquérito.
Ana Paula (Mãe de Jonathan, 19 anos, morto em Manguinhos, em 2014, com um tiro nas
costas):
– Temos que nos unir! Juntas somos fortes! A vida de nossos filhos era importante.
Manguinhos já teve 05 vítimas pela UPP. O caso do meu filho, como de muitos outros, não teve
repercussão na mídia. (...) A vida numa favela, apesar de todos pensarem que não vale nada, eu tô
aqui para dizer que essa vida vale muito! Nós não temos o direito de viver nosso luto! Eles
mataram os nossos filhos e temos que provar que os nossos filhos não eram bandidos! Temos que
provar?! Não tem pena de morte no Brasil? Esse extermínio tem que parar! Tantos criminosos
nesses condomínios de luxo e não fazem nada! Ele falou que esses armamentos estão nas mãos
dos jovens, mas como chegam esses armamentos na favela?! Eles deixam chegar pra depois
matarem nossos filhos! Eu exijo justiça!
3ª) - Lei Jesus: criança pobre não pode ficar sentada na frente de casa!
O que é que um moleque de 10 anos tem na cabeça pra se sentar no batente da porta de
casa se mora numa das favelas do Complexo do Alemão? Não, sério, me diz. Nada, não
tem nada na cabeça. Ou melhor, não tinha. Agora tem uma bala. Os policiais lá, fazendo
o seu trabalho, que é matar bandido, e o moleque lá, atrapalhando a operação. Aí a mãe,
mais uma tipinha daquelas, começa a berrar com o policial. Se a mulher fica fazendo
arruaça, o agente da lei tem mesmo é de apontar a arma pra ela. Vai aguentar calado, que
nem mulherzinha? Aí a vagabunda grita: “Pode me matar! Pode me matar que você já
acabou com a minha vida!”. Mulher é um bicho histérico mesmo, né? E essas aí, de
254
favela, então, bem mostram que nasceram no esgoto. Sou eu, que tenho cabeça quente, já
dou logo um tiro e aproveito pra enterrar mãe e filho na mesma cova, que o cemitério já
não tá dando mais conta daquela plantação de pretos a meio palmo do chão. Se aquela
uma não estivesse aboletada no sofá vendo televisão, tinha reparado que o filho tava
sentado onde não devia. Ou porta de casa é lugar de uma criança se sentar pra brincar?
Mas não, tá lá, distraída com novela ou alguma outra bobagem, e depois faz aquela
choradeira. “Quando eu vi, uma parte do crânio do meu filho tava na sala”. Se tivesse
cuidado, não estaria, simples assim. Disse que trabalha como doméstica.... Tava fazendo
o que em casa num final de tarde, então? E mais pobre interrompendo o trânsito pra
fazer protesto. Mais direitos humanos enchendo o saco. Esse país tá ficando inviável. Se
eu não fosse tão patriota, ia logo pra Miami e até votava no Donald Trump, um homem
que vai botar as coisas no lugar depois de desinfetar a Casa Branca daquela negrada.
Mas, não, sou do Brasil, com muito orgulho, e vou fazer a minha parte pra varrer essa
pretaiada daqui. Sem contar que, e eu não tenho medo de dizer, eu falo a verdade
mesmo, na cara de quem precisar: se esse moleque não tivesse levado um tiro, mais dois
anos e já era bandido. A mãe falou que queria ser bombeiro. Aham. Dois anos no
máximo e já era aviãozinho. Se ia morrer de qualquer jeito, pelo menos morreu sem ter
feito mal pra nenhum cidadão de bem. Nesse caso não é bala perdida nem achada: é bala
preventiva.
Se esse moleque não tivesse levado um tiro na cabeça, mais dois anos e já era bandido.
Não é bala perdida nem achada: é preventiva.
Passados quase dois anos da CPI, a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (ALERJ)
realizou a Audiência Pública sobre o Genocídio da população negra e periférica, no dia 13 de
setembro de 2017, época que várias comunidades do Rio de Janeiro viviam uma situação de
muita violência e conflitos entre a polícia e traficantes, convivendo com a suspensão de direitos e
segregação (Manguinhos240, Jacarezinho241, Rocinha242, São Gonçalo243). Por outro lado, tivemos
denúncias do envolvimento de policiais na morte de moradores, corrupção244, favorecimento de
240
Publicado em: https://extra.globo.com/casos-de-policia/guerra-do-rio/mae-nao-aguento-mais-essa-guerra-diz-
menina-de-dez-anos-em-meio-tiroteio-21715038.html , acesso em 17/08/17
241
Publicado em: http://justificando.cartacapital.com.br/2017/08/22/em-manifesto-juristas-denunciam-apartheid-
social-no-jacarezinho/ , acesso em 22/08/17..
242
http://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2017-10-17/um-mes-apos-invasao-da-rocinha-incerteza-quanto-a-paz-na-
favela-ainda-preocupa.html, acesso em 09/17.
243
http://odia.ig.com.br/rio-de-janeiro/2017-06-29/policia-realiza-megaoperacao-para-prender-96-pms.html , acesso
em 02/09/17.
244
Publicado em: https://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/pm-manda-traficante-roubar-e-assim-ter-dinheiro-para-
a-propina-da-policia.ghtml , acesso em 02/09/17.
255
245
Publicado em: https://extra.globo.com/casos-de-policia/pm-investiga-se-policiais-colocaram-bandidos-em-
caveirao-para-retomar-cidade-alta-21308066.html , acesso em 02/09/17.
246
Publicado em: http://www1.folha.uol.com.br/cotidiano/2017/09/1916618-policial-morre-ao-reagir-a-roubo-no-rj-
ja-sao-102-pms-assassinados-neste-ano.shtml , acesso em 20/09/17.
247
Publicado em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/12/mais-de-100-tiros-foram-disparados-por-pms-
envolvidos-em-mortes-no-rio.html , acesso em 29/11/16.
256
ALERJ 13/09/17
Realização: Comissões de Segurança Pública, Direitos Humanos, Combate à
Discriminação, Política Urbana.
Deputado Marcelo Freixo (PSOL) – Audiência Pública é para o Estado ouvir. Essa
audiência foi convocada e organizada pelos moradores das favelas. O RJ tem como ponto agudo
a Segurança Pública. A resposta à morte de um policial é a morte de vários moradores? Qual o
protocolo? Temos que criar um protocolo. Não queremos continuar contando corpos! Não é essa
a segurança pública que queremos! Temos que ter escuta a esses moradores, pelos diversos
segmentos.
Deputado Carlos Minc (atualmente sem partido) – Audiência Pública é para se ouvir as
pessoas, mas também para assumir compromissos. No tempo do Marcelo Alencar (1995) havia a
chamada “gratificação faroeste”, que era dada ao policial que matasse mais pessoas (bandidos).
Vimos que o número de mortes pela polícia não eram em confrontos, mas sim em execuções! A
nossa polícia é a que mais mata no mundo, a que mais morre, e aumentam os crimes! Todo o dia
tem um massacre novo: é índio, sem-terra, negros, jovens!
Deputado Zaqueu (PDT) - É uma política de segurança que privilegia o confronto. Tudo
que foi investido em segurança não teve resultado!
Rumba (Movimento das Favelas) - 102 policiais mortos; 57 agentes comunitários mortos;
2.900 pessoas assassinadas no RJ entre Jan e Maio deste ano, segundo o Instituto de Segurança
Pública (ISP). Ainda somos tratados como coisas! Vítimas desse extermínio! Nós não temos
culpa das drogas, das armas que entram em nossas favelas! Cadê os serviços de inteligência?
Existe uma armadilha histórica: Na Ditadura criaram o AI5 para aqueles que eram contra o
regime, a ditadura! Hoje criaram a “associação ao tráfico” para prender e matar os moradores de
favela! Fora UPP! Favela unida jamais será vencida! Existe uma política no Estado de
extermínio! Será que a gente tem que dizer pra eles que dentro da favela não existe violência? A
violência existe quando o braço do Estado entra! Violento é o Estado que não cumpre o ser papel!
257
99% dos moradores da favela são pessoas de bem! R$ 300 mil por semana era pra dar pro
Batalhão de São Gonçalo!
Dra. Lívia Cásseres (Defensoria Pública) – A favela tem sido colocada pelo Estado como
inimigo público! Eles dizem que não vão cumprir a lei porque estamos em estado de guerra!
Ana Paula (Mães do Mov. Manguinhos) – Tivemos nossos filhos arrancados da forma
mais covarde, mais injusta! Nós não precisamos de mais CPIs, mais audiências! Precisamos que
o que foi resultado dessas seja cumprido! Acabaram com nossa família, com nossos filhos! Nós
não vamos mais admitir esses autos de resistência que eles usam para legitimar essas mortes! Nós
queremos que se faça Justiça! Queremos o afastamento desses policiais! Colocar a público quem
são esses policiais envolvidos nos autos de resistência. Não é só a arma que mata nossos filhos! É
também essa mídia corporativista, o Judiciário, o MP! Todas essas instituições também tem que
ser responsabilizadas pelas mortes nas favelas!
Sr. Jorge (emocionado, pai do um dos 05 adolescentes mortos com 111 tiros, em Costa
Barros, em 2015) – Cinco jovens foram executados! Meu filho, 16 anos, foi executado com mais
de 111 tiros! Essa dor não passa nunca! A gente não consegue esquecer! Todos são iguais perante
a lei... Mas, que lei é essa?! Perdi um filho de forma covarde! 16 anos, no primeiro emprego....
Eu não desejo isso a ninguém. Inverteram o valor da vida.... Eu com 50 anos perdi meu filho com
16 anos... É uma dor que não desejo a ninguém!
Cel PM Anderson – A cada 03 mortes de policiais no Brasil, 01 é no RJ. Por que estamos
vivendo esse recrudescimento? As intervenções policiais nas comunidades até que ponto estão
valendo a pena? Acho que o caminho é observar para onde estamos indo realmente com esse
derramamento de sangue? Como mudar esse quadro? Podemos construir um novo caminho, novo
processo. Temos que apresentar soluções. A corporação está preocupada com esse derramamento
de sangue. Temos que servir e proteger! (Missão PM)
Paulo Roberto (MP) – É difícil falar como órgão de um Estado que até hoje não
reconheceu sua dívida com o povo negro! Um Estado que ainda vê o negro e a negra como
elementos indesejáveis! Que só são desejáveis enquanto úteis com sua mão de obra, e mantendo
seus corpos dóceis. O MP, através do GAEP, denunciou 64 policiais, destes, 39 estão afastados e
09 presos. Vivemos um problema que é estrutural e generalizado.
O filho do Sr. Jorge foi um dos 05 adolescentes e jovens executados com 111 tiros (!) na
chacina de Costa Barros, ocorrida no dia 28 de novembro de 2015, zona norte, periférica, da
cidade do Rio de Janeiro. Foram 81 tiros de fuzil e 30 de pistolas! Os 05 jovens, todos negros e
pobres, tinham saído de carro para fazer um lanche, e, quando abordados por uma blitz, foram
fuzilados pelos policiais.
Átila Roque, diretor da Anistia Internacional, no artigo “Segurança pública, racismo e a
construção dos sujeitos ‘matáveis’”248, comenta a execução dos cinco adolescentes em Costa
Barros, e demonstra que a discussão vai além de ser um perfil, mas da “vida descartável”:
248
Disponível em http://bit.ly/28VBsob Acesso Jan/2016.
259
Bandido bom é bandido morto! E enterrado em pé pra ocupar pouco espaço! (Deputado
Policial Sivuca)
O relatório “Você matou meu filho” – Homicídios cometidos pela polícia do Rio de
Janeiro- foi lançado pela Anistia Internacional em agosto de 2015250. De acordo com o estudo, a
imagem negativa associada à juventude, em especial dos jovens negros que vivem em favelas,
leva para "a banalização e a naturalização da violência". O documento aponta que as políticas de
segurança pública no Brasil são marcadas por operações policiais repressivas em áreas pobres e,
com frequência, com o uso de força letal, como em casos de pessoas suspeitas de envolvimento
com grupos criminosos. "É uma prática recorrente, nestes casos, o desmonte da cena. Raramente
tem perícia feita no momento em que as mortes ocorrem. O que temos com mais frequência é que
rapidamente a polícia isola a área, retira o corpo e pronto", disse o diretor-executivo da Anistia
249
Sabe-se que essa dominação “confronto”, não se aplica em todos os casos de mortes vítimas da violência policial.
250
Ver: https://anistia.org.br/direitos-humanos/publicacoes/voce-matou-meu-filho/. Acessado em agosto de 2015.
260
Internacional Brasil, Átila Roque, em entrevista à Agência Brasil251. O referido relatório se baseia
em uma série de homicídios praticados por policiais militares nos anos de 2014-2015 na cidade
do Rio de Janeiro, em especial na favela de Acari. De acordo com o os dados, das 1.275 vítimas
de homicídios decorrentes de intervenções policiais em 2010 a 2013 na cidade do Rio de Janeiro,
95,5% eram homens, 79% eram negros e 75% tinha entre 15 e 29 anos de idade. E, no RJ, apenas
7,8 dos homicídios são investigados. Para a Anistia Internacional, o Brasil tem a polícia que mais
mata no mundo.
De acordo com o relatório, em 2014, 15,6% dos homicídios tinham um policial envolvido.
O relatório apresenta um levantamento que se concentrou na Zona Norte do Rio de Janeiro, que
inclui a Favela de Acari. Entre as vítimas da violência policial no Rio, entre 2010 e 2013, 99,5%
eram homens. Quase 80% das vítimas eram negras e três em cada quatro, 75%, tinham idades
entre 15 e 29 anos.
Diante de gravidade da situação, a Anistia Internacional lançou a campanha “Queremos
nossos Jovens Vivos252”, em novembro de 2015, na qual inclui as taxas de homicídio de jovens
no Brasil, e a produção e divulgação de vídeos, que foram veiculados no site da Anistia e
compartilhados nas redes sociais. Dados da Campanha: veja as taxas de homicídios de jovens no
Brasil.
251
Publicado em: http://www.ebc.com.br/cidadania/2015/08/anistia-internacional-aponta-violencia-policial-no-rio-
de-janeiro.
252
Publicado em: https://anistia.org.br/noticias/dados-da-campanha-veja-taxas-de-homicidio-de-jovens-brasil/
261
A letalidade policial cresceu 78% no RJ nos meses que antecederam as Olimpíadas Rio
2016. Os dados são do Instituto de Segurança Pública. Entre os meses de fevereiro e maio, o
número de mortes por ação policial no Rio de Janeiro cresceu de 47 para 84 mortes. Em maio, a
polícia matou uma pessoa a cada 9 horas253. Veja abaixo o gráfico 4:
Mortes por ação policial no período de fevereiro a maio de 2016, em preparação para as
olimpíadas. Dados: Instituto de Segurança Pública
253
Publicado em: http://midiacoletiva.org/letalidade-policial-cresce-78-no-rio-antes-das-olimpiadas/ , acesso em
julho/17.
265
O Rio de Janeiro teve quase 4 mil homicídios decorrentes de intervenção policial entre
2010 e 2016. A disparada dos indicadores de violência no Estado do Rio em 2016 tem nos
homicídios decorrentes de intervenção policial alguns de seus números alarmantes. Em 2016,
entre janeiro e agosto, foram mais de 544. O número é 18% maior do que a quantidade de casos
no mesmo período de 2015, quando foram computados 459 casos254. Veja gráfico 5 abaixo.
O Jornal Globo publicou uma série de reportagens sobre a violência no RJ, no período
entre a o final da década de 1980 até 2017. Destaco 02 delas por retratarem casos exemplares de
mortes por intervenção policial e balas perdidas que tiveram destaque na mídia e que acompanhei
ao longo da elaboração dessa tese, especialmente os casos de homicídios compreendidos entre
2015, 2016 e 2017. A primeira delas foi publicada no dia 28/11/16, intitulada “Mortes
provocadas por policiais, e 10 casos de violência que chocaram o Rio255”, devido à grande
incidência de mortes provocadas pela intervenção policial, chegando ao número alarmante de 9
mil pessoas mortas por policiais entre 2005 e 2015 no RJ. A reportagem destaca as Chacinas da
Candelária, Vigário Geral e Baixada, o caso Amarildo, bem como homicídios, especialmente de
254
Publicado em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2016/10/rio-soma-quase-4-mil-homicidios-por-
intervencao-policial-entre-2010-e-2016.html , acesso em
255
Publicado em: http://acervo.oglobo.globo.com/em-destaque/mortes-provocadas-por-policiais-10-casos-de-
violencia-que-chocaram-rio-19654901 , acesso em 28/09/17.
266
de simular um confronto. No último dia 30, foram revogadas as prisões preventivas dos
cinco PMs sob a alegação de que não representariam perigo à população.
8) INFÂNCIA PERDIDA – Herinaldo Vinícius de Santana, de 11 anos, morreu após ser
baleado na comunidade Parque Alegria, no Complexo do Caju em 24 de setembro de
2015. Segundo uma testemunha, um grupo de policiais da UPP da comunidade fazia
uma ronda quando um deles disparou ao se assustar com a criança, que vinha correndo
comprar uma bola de pingue-pongue. Cinco PMs foram afastados e um inquérito para
apurar as circunstâncias da morte de Herinaldo foi instaurado. Em junho de 2011, o
menino Juan Moraes, de 11 anos, desapareceu após um suposto confronto entre policiais
do 20º BPM (Mesquita) e traficantes da Favela Danon, em Nova Iguaçu. Seu corpo só
apareceu dez dias depois, em um rio da região. O inquérito policial concluiu que Juan foi
morto por PMs durante uma operação policial e que não houve troca de tiros com
bandidos, como afirmavam os agentes. Quatro policiais foram condenados pelo crime
em 2013.
9) CONFUNDIDOS COM BANDIDOS – Jorge Lucas Paes, de 17 anos, e Thiago
Guimarães, de 24, foram mortos na Pavuna, no dia 29 de outubro de 2015, após um
sargento da Polícia Militar confundir o macaco hidráulico que um deles carregava com
uma arma. O tiro atingiu os dois amigos, que vinham em uma moto. Eles perderam o
controle do veículo e bateram em um muro. O comandante do 41º BPM (Irajá), onde o
sargento servia, admitiu que o agente errou ao atirar.
10) CHACINA EM COSTA BARROS - Na noite de 28 de novembro de 2015, cinco
jovens morreram quando o carro em que se encontravam foi alvo de inúmeros disparos
em Costa Barros, subúrbio do Rio. Os cinco amigos voltavam para casa após uma
comemoração no Parque Madureira, Zona Norte da cidade, quando foram abordados por
quatro policiais militares do 41º BPM (Irajá). Rendidos e desarmados, foram executados
com 81 tiros de fuzil. Após a ação, os PMs adulteraram a cena do crime, plantando uma
arma dentro do automóvel com o objetivo de simular um confronto. Foram presos em
flagrante e denunciados por homicídio doloso e fraude processual. O secretário de
Segurança do Rio, José Mariano Beltrame, classificou a ação como indefensável. Em 21
de junho de 2016, o STJ concedeu habeas corpus aos PMs. No dia 1 de dezembro de
2015, O GLOBO noticiava que o batalhão responsável pela execução dos jovens totaliza
13% das mortes em operação no Estado do Rio.
A segunda reportagem, intitulada “Mortes de crianças por balas perdidas no Rio: casos
que chocaram os cariocas256”, foi publicada em 01/09/17, na qual destaca que a faixa etária de 0
a 19 anos representa 30% das vítimas de balas perdidas no estado do RJ, e que entre 2015 e 2017,
18 crianças morreram tragicamente. Segue a 2ª reportagem:
256
Publicada em: http://acervo.oglobo.globo.com/em-destaque/mortes-de-criancas-por-balas-perdidas-no-rio-casos-
que-chocaram-os-cariocas-20819049#ixzz4wk5DjvwG , acesso em 02/09/17
269
da piscina do Sesi de Honório Gurgel, clube localizado em área vizinha aos Complexos
do Chapadão e da Pedreira, dominados por facções rivais.
9) RYAN - Na noite de 27 de março de 2016, domingo de Páscoa, foi a vez do menino
Ryan, também de 4 anos, ser atingido e morto quando brincava na porta da casa dos avós
numa rua próxima à favela do Cajueiro, em Madureira. Na época, foi levantada a
hipótese de homicídio por vingança, uma vez que o menino era filho de um dos chefes
do tráfico da comunidade. No entanto, a polícia concluiu que Ryan foi vítima de tiroteio
ocorrido durante um ataque de traficantes da Serrinha ao local.
10) SOFIA – Em janeiro de 2017, Sofia Lara Braga, de 2 anos, morreu vítima de bala
perdida, dentro de uma lanchonete, em Irajá. A menina brincava no parquinho do
estabelecimento, ao lado pai, quando policiais militares e um bandido passaram pelo
local trocando tiros. Um dos disparos atingiu o rosto de Sofia, que chegou a ser levada
pelos PMs ao Hospital estadual Getúlio Vargas, na Penha, mas não resistiu aos
ferimentos.
11) FERNANDA ADRIANA - Na noite de 15 de junho de 2017, a menina Fernanda
Adriana Caparica Pinheiro, de 7 anos, morreu após ser atingida por uma bala perdida no
Parque União, Complexo da Maré, Zona Norte do Rio. Ferida em um dos ombros, ela
foi socorrida por moradores e levada para o Hospital Geral de Bonsucesso, mas não
resistiu aos ferimentos. De acordo com a Polícia Militar, o tiroteio no local teria sido
protagonizado por criminosos de facções rivais.
12) MARIA EDUARDA - Em 30 de março de 2017, a adolescente Maria Eduarda Alves
da Conceição, de 13 anos, foi morta após ser atingida por um tiro de fuzil dentro da
Escola Municipal Daniel Piza, em Acari, durante confronto entre policiais e traficantes.
Manifestantes fizeram um protesto violento na Avenida Brasil, incendiando caçambas de
lixo e interditando a via nos dois sentidos. No mesmo dia, um vídeo gravado por um
morador da área mostrou o momento em que dois policiais teriam executado dois
bandidos que estavam baleados em frente à escola. Identificados, o sargento David
Gomes Centeno e o cabo Fábio de Barros Dias, foram indiciados por homicídio
qualificado, presos, e também investigados pela morte da estudante.
13) VANESSA - Na tarde de 5 de julho de 2017, a menina Vanessa Vitória dos Santos,
de 10 anos, aluna do 6º ano, que havia acabado de chegar da escola, foi atingida por um
tiro dentro de casa, na comunidade Camarista Méier, no Complexo do Lins, na Zona
Norte do Rio. Baleada na cabeça, ela morreu antes mesmo de chegar ao Hospital
Salgado Filho. Segundo a PM, o tiroteio que vitimou a menina teve início quando uma
equipe da UPP do local foi atacada por criminosos.
14) ARTHUR - Em 30 de junho de 2017, na Favela do Lixão, em Duque de Caxias, a
gestante Claudineia dos Santos, grávida de 9 meses, foi baleada quando deixava um
mercado. Os dois tiros que a atingiram vieram de confronto traficantes e PMs e também
deixaram ferido, dentro de sua barriga, o bebê Arthur. O menino nasceu numa cesariana
de emergência e ficou internado no Hospital Adão Pereira Nunes em estado gravíssimo,
com lesão no tórax, fratura de clavícula e traumatismo craniano. Exatamente um mês
depois, ele não resistiu e morreu.
no tráfico; sem estudar desde agosto de 2014, de acordo com a Secretaria Municipal de
Educação, após solicitação da CDEDICA, sem notícia de encaminhamento da evasão escolar ao
Conselho Tutelar da área para aplicação de medidas protetivas).
21/02/15 – ALAN DE SOUZA LIMA, 15 anos, morador da Palmeirinha, em Duque de
Caxias, estava com outros 02 amigos e foram alvejados pela polícia. O celular gravou a sua
própria morte e impediu que a polícia descaracterizasse a cena do crime e fizesse a alegação de
que o adolescente estaria portando arma. Os amigos sobreviveram.
02/04/15 – EDUARDO DE JESUS, 10 anos de idade, vítima de disparo feito por policial
no Complexo do Alemão, tendo o Ministério Público do Estado denunciado o PM, a despeito da
conclusão do inquérito policial, que alegou que o menino portava arma. O caso foi acompanhado
pelo Núcleo de Direitos Humanos da Defensoria Pública, que atendeu a família e fez tratativas
com o estado do Rio de Janeiro para pagamento de indenização aos pais.
08/09/15 – CHRISTIAN SOARES DE ANDRADE, 13 anos, morto quando estava
jogando futebol no momento da troca de tiros entre policiais da Core e traficantes, em
Manguinhos, Zona Norte do Rio.
23/09/15 – HERINALDO VINICIUS SANTANA, 11 anos, morto com um tiro no peito,
por um policial da UPP que se assustou com a criança correndo, na comunidade Parque Alegria,
no Complexo do Caju, zona portuária do Rio de Janeiro.
28/11 – JEFERSON ASSIS DO NASCIMENTO, 16 anos, morto no Morro da
Providência, conforme notícia do jornal O Dia de 29 de novembro com o título “Menor morre
após ser baleado durante troca de tiros no Morro da Providência257”.
28/11/15 – Cinco adolescentes e jovens foram mortos a tiros de fuzil e pistola disparados
por policiais militares em Costa Barros, noite de sábado: BETO, CARLOS, CLEITON,
WESLEY e WILTON, moradores do Morro da Lagartixa, no Complexo da Pedreira, subúrbio do
Rio de Janeiro, foram ao Parque de Madureira, Zona Norte, comemorar o primeiro salário de
Beto, contratado como jovem aprendiz pelo Atacadão da Avenida Brasil. Perto das 23h, já de
volta, no carro Fiat Pálio branco, dirigido por Wilton, os meninos decidiram parar numa
lanchonete da Estrada João Paulo, que cruza a Avenida Brasil, perto do Morro da Lagartixa. Sem
qualquer chance de defesa foram fuzilados por 04 policiais militares, que dispararam contra o
257
http://odia.ig.com.br/noticia/rio-de-janeiro/2015-11-28/menor-e-baleado-durante-troca-de-tiros-no-morro-da-
providencia.html , acesso em novembro 2015.
272
veículo 81 tiros de fuzil e 30 de pistola. O triste episódio ficou conhecido como “execução de 05
jovens com 111 tiros”.
29/12/15 - WESLEY DANIEL SANTOS OLIVEIRA, 17 anos foi atingido por três tiros
— na cabeça, no rosto e no peito, quando saia da igreja na comunidade do Jacarezinho, na zona
norte do Rio de Janeiro, de 17 anos, O rapaz foi surpreendido em tiroteio que acontecia entre
policiais militares da UPP e traficantes de drogas.
4ª) Lei Alan: adolescente pobre não pode brincar com celular
Esse aí é outro caso de óbvio ululante. Mas como a gente precisa explicar tudo, vamos
lá. Três moleques brincando com um celular numa favela, em cima de bicicletas. O que
um policial pensa? Tão fazendo coisa errada, claro. Com certeza as bicicletas são
roubadas e o celular também. Aí um deles corre. O que um policial bom faz? Atira,
claro. E não vai atirar pra aleijar, que não é um homem cruel, atira logo pra matar, que o
Estado não tá podendo arcar com tanto benefício por invalidez assim. Aliás, é o sonho
dessa gente. Ter um filho aleijado pela polícia pra ficar mamando nas tetas do Estado
sem precisar trabalhar. Aí o moleque cai. O policial, bem educado, pergunta pro amigo
que ficou vivo: “Por que vocês estavam correndo?”. O moleque, um desses vendedores
de chá mate que ficam assediando os turistas na praia, diz: “A gente tava brincando,
senhor”. Pronto, os direitos humanos fazem um escarcéu com essa frase, vai até parar em
jornal estrangeiro. Por isso que não pode ter celular na mão de preto. Começam a se
achar gente e ficam gravando tudo. Tou aqui, pensando se não é melhor fazer logo um
parágrafo extra pra essa lei, proibindo preto e pobre de usar celular. A ver.
Não pode ter celular na mão de preto. Começam a se achar gente e ficam gravando tudo,
até a própria morte.
Uso: A última aplicação conhecida da lei número 4 do ECA do B ocorreu em 20 de
fevereiro de 2015. Alan de Souza Lima, 15 anos, foi morto pela polícia na favela da
Palmeirinha, em Honório Gurgel, subúrbio do Rio de Janeiro.
Tá com pena? Leva pra casa!
brasileira diante da brutalidade do fato. No entanto, enquanto era decretada a prisão preventiva
dos policiais que executaram os dois homens, um abaixo assinado foi criado em apoio aos dois
PMs. Em 24 horas, a petição online já havia coletado mais de 50 mil assinaturas259.
Sem menção à ilegalidade na conduta, o texto da petição considera os policiais presos
"heróis do 41° BPM" e diz que eles estão sendo "massacrados por uma mídia tendenciosa e
covarde". Boa parte dos comentários dos apoiadores considera condená-los uma inversão de
valores e reproduz a frase: “bandido bom é bandido morto”. É, por exemplo, a opinião de Carina,
que justificou sua assinatura: "Bandido que atira para matar tem que tomar tiro para morrer.
Parabéns, guerreiros", escreveu ela, que teve 381 curtidas. O segundo comentário mais curtido foi
o de Gustavo: "Apoio operações policiais, e se os marginais resistirem, devem ser aniquilados".
O novo regime não hesitava em empregar muitas formas de repressão contra seus
inimigos declarados, mas também buscava o consentimento e o apoio do povo a toda
hora. (...). O consentimento e a coerção estiveram inextricavelmente entrelaçados
durante o Terceiro Reich, até certo ponto porque a maior parte da repressão e do terror
foi usada contra indivíduos específicos, minorias e grupos sociais pelos quais o povo
tinha pouca simpatia (GELLATELY, 2013, p. 22).
259
Publicado em: http://oglobo.globo.com/rio/em-24-horas-50-mil-assinam-peticao-em-apoio-policiais-flagrados-
em-execucoes-21147127.
274
As notícias da violência letal de crianças e adolescentes, por si só, já são muito duras,
mas os comentários da maioria delas, especialmente, quando a vítima é adolescente ou jovem
negro, pobre e morador de favela, são bem piores! Expressam um tipo de ódio de classe, de cor,
de intolerância que desnuda, sem nenhum pudor um tipo de ideologia nazifascista que atravessa a
sociedade. Isso fica também muito claro no comentário abaixo, publicado no jornal O Globo, na
notícia intitulada “Criança e subcomandante de UPP são baleados durante tiroteio no Camarista
Meier260”, a respeito da morte da menina Vanessa, de 10 anos, citada acima, morta por bala
perdida em um tiroteio na comunidade do Camarista Meier, zona norte do RJ, em 04/07/17:
Pela milésima vez. Enquanto não derrubarem todas as favelas que são fábricas de
bandidos e dizimar essa SUB RAÇA HUMANA de favelados escutadores de Funk a
situação só vai piorar. Essa gentalha se reproduzem mais que peixes e não tem condições
nem de se auto sustentarem mais o lema é E VAMU BUTA FILHU NU MUNDO.
Agem pior que bichos irracionais, não tem modos e já nascem com a decadência e anti
socialidade correndo nas veias. São um atraso a sociedade de bem e a evolução da
humanidade. Exterminem todos em fila indiana indo direto para uma Câmara de Gás. Só
assim! (Comentários, Jornal O Globo, 05/07/17).
A primeira câmara de gás foi construída em 1939, para implementar o decreto de Hitler
datado de 1º de setembro daquele ano, que dizia que “pessoas incuráveis devem receber
uma morte misericordiosa. (...) O decreto foi cumprido imediatamente no que dizia
respeito aos doentes mentais, e entre dezembro de 1939 e agosto de 1941, cerca de 40
mil alemães foram mortos com monóxido de carbono em instituições cujas salas de
execuções eram disfarçadas como seriam depois em Auschwitz – como salas de duchas e
banhos (ARENDT, 2013, p. 124).
260
Publicada em: http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/crianca-e-subcomandante-de-upp-sao-baleados-durante-
tiroteio-no-camarista-meier.ghtml?utm_source=whatsapp&utm_medium=share-bar-smart&utm_campaign=share-
bar
275
se defender de traficantes, e nenhum deles foi indiciado261. Legítima defesa? Era um menino de
10 anos!
O Brasil tem a polícia que mais mata no mundo, mas ela não mata sozinha. A sociedade
aplaude quando a violência é dirigida aos ‘matáveis’. Quando essa ação transborda e atinge
outros inocentes (leia-se brancos de classe média e/ou alta), sem ser aqueles considerados
‘indesejáveis’, essa mesma sociedade não tolera e exige a punição do assassino. Ou seja, está
tudo bem, desde que os mortos sejam jovens negros da favela e periferia.
Pesquisa divulgada pelo Ipea262, em junho de 2017, indica que os assassinatos causados
por policiais superaram os crimes de latrocínio. Segundo o Ipea, o número de latrocínios (roubo
seguido de morte) foi de 2.314, e as mortes causadas por intervenção policial foram 3.320.
Em números absolutos, os estados onde a polícia mais mata são: São Paulo (848
mortes), Rio de Janeiro (645 mortes) e Bahia (299). Dos 3.320 assassinatos causados por policiais
em 2015 no país inteiro, 53,5% foram em serviço (um total de 1.778 mortes); cerca de 13,7% fora
do serviço (455 mortes); e as outras 1.087 não foram especificadas no relatório do Ipea, já que
alguns estados não divulgam os dados detalhados.
Quando se considera a diferença entre mortes por policiais e latrocínios, o Rio de Janeiro
é o estado que lidera: a polícia matou quase cinco vezes mais do que os ladrões. Foram 645
mortes por policiais, contra 133 mortes por latrocínio, uma diferença de 512 mortes. Em todos
esses eventos o que você vê é uma violência absurda, desproporcional, perversa das forças
policiais locais (violência do Estado) e das forças da guarda nacional (exército e marinha).
Diante de um cenário tão grave, de tanta violação e redução de direitos humanos, do
avanço sistemático de práticas repressivas, arbitrárias e violentas, explicitadas com o aumento do
número de encarceramentos, dos casos de extermínio de adolescentes e jovens, em sua maioria
negros e pobres, demonstra a face oculta (?) do racismo e da barbárie de nossos tempos, bem
como as contradições e incapacidade do Estado brasileiro enquanto garantidor de direitos
igualitários para todos.
261
Publicado em : http://g1.globo.com/rio-de-janeiro/noticia/2015/11/conclusao-de-inquerito-da-morte-de-eduardo-
e-aberracao-diz-anisitia.html , em 03/11/2015.
262
Ver relatório publicado em: http://www.forumseguranca.org.br/wp-
content/uploads/2017/06/FBSP_atlas_da_violencia_2017_relatorio_de_pesquisa.pdf , acesso em Julho/17.
276
1.195 pessoas foram assassinadas em uma semana no Brasil. São todos os casos de morte
que se teve notícia e foram registrados no período de 21 a 27 de agosto de 2017. Uma média de
uma a cada oito minutos no país. A notícia, do projeto “Monitor da Violência”, foi publicada no
G1 da Globo, no dia 28/09/17, e é uma parceria do G1 com o Núcleo de Estudos da Violência
(NEV) da USP e com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública263. Vítimas da violência letal, são
crimes que, na maioria das vezes, ficam esquecidos – casos de homicídios, latrocínios,
feminicídios, mortes por intervenção policial e suicídios espalhados pelo Brasil. Ao que eles
chamam de “epidemia da violência”, a sociedade civil organizada, especialmente o movimento
263
Publicado em: https://g1.globo.com/monitor-da-violencia/noticia/uma-semana-de-mortes-o-retrato-da-violencia-
no-brasil.ghtml?utm_source=whatsapp&utm_medium=share-bar-smart&utm_campaign=share-bar, acesso em
27/09/17.
277
negro, chama de “genocídio” da juventude negra e pobre, por ser este o perfil da maioria das
vítimas da violência letal e intervenção policial como temos observado.
De acordo com o monitor da violência, os recortes que se destacam no levantamento
feito são:
Do total de vítimas, 89% são homens;
Os jovens – especialmente os de 18 a 25 anos – são a faixa etária mais vulnerável
à violência (33% do total);
Negros correspondem a 2/3 das vítimas em que a etnia é informada;
A maior parte dos crimes ocorre à noite (35%);
O fim de semana concentra um grande percentual dos casos (36%);
81% morrem vítimas de arma de fogo (quando a arma é informada);
Em 15% dos casos, o autor do crime conhece a vítima.
Por outro lado, mais de 45 cidades registraram índice superior a 10 mortes a cada 100 mil
habitantes – índice considerado extremamente alto se for levado em conta o período de apenas
sete dias analisados (já que a taxa é usada como parâmetro anual). O Ceará foi o recordista de
casos em números absolutos: 128 mortes – quase uma por hora.
A questão da transparência dos dados foi uma dificuldade apontada pelo pela pesquisa,
pois as Secretarias de Estado demoram em liberar, bem como as mortes por intervenção policial,
geralmente adotam outra nomenclatura como “autos de resistência”, confronto com policiais, etc.,
o que torna mais lenta a verificação dos homicídios.
A tabela a seguir foi elaborada a partir de pesquisa de dados para esta tese e descreve uma
série histórica dos homicídios de crianças e adolescentes, de 0 a 18 anos incompletos, no Estado
do Rio de Janeiro, no período de 2002 a 2016, tendo como fonte os dados do Instituto de
Segurança Pública (ISP). Importante observar que de 2002 a 2011 as mortes violentas
(assassinatos) de crianças e adolescentes eram identificados como “homicídios dolosos”. Entre os
anos de 2012 e 2013, em todo o material pesquisado não foram encontrados dados. Foi só a partir
de 2014 que a identificação das mortes violentas, ou seja, os homicídios dolosos, foram
“tipificados”, divididos nas seguintes categorias: homicídio provocado por projétil de arma de
fogo, homicídio provocado por intervenção policial, homicídio provocado por arma branca,
homicídio outros (autoria desconhecida). Nos anos de 2015 e 2016, a categoria “homicídio
doloso” já não aparece mais.
Para esse estudo resolvi também considerar outras duas categorias do ISP, a partir de
2014: encontro de cadáver e encontro de desaparecido morto, por termos constatado alguns casos
desse tipo de homicídio envolvendo crianças e adolescentes. Segue planilhas e gráficos abaixo.
279
TIPO JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ TOTAL
Homicídio 09 12 15 17 15 10 17 24 18 16 13 23 189
Doloso
2012
TIPO JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ TOTAL
Homicídio Sem
Doloso informação
2013
TIPO JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ TOTAL
Homicídio Sem
Doloso informação
2014
TIPO JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ TOTAL
Homicídio 33 27 32 34 45 24 22 23 30 23 21 38 352
Doloso
Encontro de 2 2 3 0 1 1 0 2 2 1 0 2 16
Cadáver
Homicídio 6 5 5 3 5 7 6 8 5 10 5 5 75
Intervenção
policial
TOTAL 443
2015
TIPO JAN FEV MAR ABR MAIO JUN JUL AGO SET OUT NOV DEZ TOTAL
Encontro de 10
Cadáver
Homicídio 73
oposição
Intervenção
policial
Homicídio 202
provocado
projétil arma
de fogo
Homicídio 4
arma branca
Encontro 4
desaparecido
morto
Homicídio 69
281
outros
(autoria
desconhecida)
TOTAL 362
2016
Encontro de 16
Cadáver
Homicídio 108
oposição
Intervenção
policial
Homicídio 291
provocado por
projétil arma
de fogo
Homicídio 4
arma branca
Encontro 5
desaparecido
morto
Homicídio 67
outros
(autoria
desconhecida)
TOTAL 491
Fonte: Instituto de Segurança Pública (ISP)
282
2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015 2016
Já o Dossiê Criança e Adolescente 2015, apenas diz que no estado do Rio de Janeiro,
entre 2010 e 2014, o número anual de vítimas264 menores de 18 anos passou de 33.599 para
49.276, um aumento de 46,7% (contra um aumento de 24,4% de vítimas maiores de idade). Ao
longo dos cinco anos, foram 213.290 vítimas menores de idade, das quais 26,2% eram crianças
(de zero a 11 anos) e 73,8% eram adolescentes (de 12 a 17 anos).
264
As infrações sofridas pelas vítimas foram classificadas nos seguintes grupos: “crimes contra a dignidade sexual”
(inclui os crimes de estupro2, ato obsceno, sedução, exploração sexual e corrupção de menores); “periclitação da
vida e da saúde” (são os crimes de maus tratos, omissão de socorro, abandono e exposição a contágio); “lesão
corporal” (lesão corporal e tentativa de lesão corporal); “rixa e vias de fato” (rixa e vias de fato); “crimes contra a
vida” (homicídio doloso, homicídio culposo, tentativa de homicídio, aborto e auxílio a suicídio); “crimes contra a
honra e ameaça” (difamação, injúria, calúnia e ameaça); “crimes contra o patrimônio” (roubo e furto) e “outros”
(todos os demais crimes).
265
Ver em: http://www.ipea.gov.br/portal/images/stories/PDFs/nota_tecnica/160322_nt_17_atlas_da_
violencia_2016_finalizado.pdf , acesso em março/17.
285
maior parcela das vítimas era de indivíduos de baixa escolaridade, com no máximo sete anos de
estudo.
O levantamento também ressalta o número de negros vítimas de homicídio no Brasil, com
um crescimento de 18,2% entre 2004 e 2014 – no último ano analisado, morreram 37,5 negros a
cada 100.000 habitantes. Já o mesmo indicador associado a não negros diminuiu 14,6% no país.
O estudo mostra que, aos 21 anos de idade – o pico da probabilidade de uma pessoa ser
vítima de homicídio no Brasil -, negros e pardos têm risco 147% mais elevado de ser mortos, do
que brancos, amarelos e indígenas.
O Atlas da Violência 2017266, lançado em 05/05/17, não difere muito do ano anterior.
Revela que homens, jovens, negros e de baixa escolaridade são as principais vítimas de mortes
violentas no País. A população negra corresponde à maioria (78,9%) dos 10% dos indivíduos
com mais chances de serem vítimas de homicídios. De acordo com o estudo, de cada 100 pessoas
assassinadas no Brasil, 71 são negras. Os negros possuem chances 2,6 vezes maiores de serem
assassinados do que brasileiros de outras raças, já descontado o efeito da idade, escolaridade, do
sexo, estado civil e bairro de residência.
266
Ver em: http://ipea.gov.br/portal/index.php?option=com_content&view=article&id=30253 , acesso em 06/07/17.
286
O Atlas da Violência 2017, que analisou a evolução dos homicídios no Brasil entre 2005 e
2015, também a partir de dados do Sistema de Informação sobre Mortalidade (SIM) do
Ministério da Saúde, mostra ainda que aconteceram 59.080 homicídios no país, em 2015. Quase
uma década atrás, em 2007, a taxa foi cerca de 48 mil.
Ainda segundo o Atlas, este aumento de 48 mil para quase 60 mil mostra uma
naturalização do fenômeno por parte do Estado brasileiro. Daniel Cerqueira, coordenador de
pesquisa do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, explica que a naturalização dos
homicídios se dá por processos históricos e econômicos de desigualdade no país, “que fazem com
que a sociedade não se identifique com a parcela que mais sofre com esses assassinatos”, afirma.
No Atlas da Violência, compilado pelo Ipea com dados do IBGE e do Ministério da
Saúde, os pesquisadores também alertam para a conivência da sociedade com um uso abusivo do
poder da polícia e com execuções sumárias. Além disso, também podemos citar a naturalização
desses homicídios por esta mesma sociedade.
O dado acima foi apontado pelo Índice de Homicídios na Adolescência (IHA), outra fonte
que utilizamos na tese, e que é elaborado pelo Unicef, Observatório de Favelas e a Secretaria
Nacional de Promoção dos Direitos da Criança e do Adolescente, do governo federal. Segundo o
UNICEF, o futuro do Brasil, representado por esses jovens, está em risco, e alertam: “Essa alta
incidência de violência letal significa que, se as circunstâncias que prevaleciam em 2014 não
287
mudarem, aproximadamente 43 mil adolescentes serão vítimas de homicídio no Brasil entre 2015
e 2021, apenas nos municípios com mais de 100 mil habitantes”.
Os adolescentes e jovens são as maiores vítimas da violência letal, como temos
constatado. O IHA de 2017 é o maior desde 2005, quando começou o estudo. É o índice mais alto
da história no Brasil. Segundo a pesquisa, um jovem negro tem 2,88 vezes mais chances de ser
assassinado do que um jovem branco267.
No outono de 1939, eles já tinham tirado muitos judeus do país, realizado um amplo
programa de esterilização e começado a matar indivíduos “defeituosos” sob cuidados
crônicos, que tinham “vidas que não valiam ser vividas” (GELLATELY, 2011, p. 235).
267
Ver em: https://www.unicef.org/brazil/pt/media_37221.html , acesso em 11/10/17.
288
O Mapa da Violência compõe uma série de estudos desenvolvidos pelo pesquisador Julio
Jacobo Waiselfisz, desde 1998, que tem como temática as muitas formas de violência que
acontecem no país, especialmente os homicídios que acometem crianças, adolescentes e jovens
no Brasil. Esses homicídios têm grande incidência nos setores considerados vulneráveis da
população, especialmente crianças, adolescentes, jovens, mulheres e negros. Essa grande
vulnerabilidade se verifica, no caso das crianças e adolescentes, não só pelo preocupante 4º lugar
que o país ostenta no contexto de 99 países do mundo, mas também pelo vertiginoso crescimento
desses índices nas últimas décadas. As taxas cresceram 346% entre 1980 e 2010, vitimando
176.044 crianças e adolescentes nos trinta anos entre 1981 e 2010. Só em 2010 foram 8.686
crianças assassinadas: 24 a cada dia daquele ano.
268
Fonte: Sistema de Informações sobre Mortalidade (SIM) - Ministério da Saúde, referentes a mortes por causas
violentas, como homicídios, acidentes de transporte e suicídios. Consideraremos para fins desta tese apenas os
dados referentes aos homicídios.
289
O homicídio é a principal causa de mortes não naturais e violentas entre os jovens (14 a
25 anos,), a maioria pertencentes à classe empobrecida e são não brancos. A cada 100 mil jovens,
53,4 foram assassinados, em 2011, cerca de 90% são do sexo masculino. Segundo algumas
comparações do Mapa Violência com Chacinas de alta repercussão, o Brasil de 2011 registrou
52.198 vítimas de homicídio. Isso representa 143 homicídios a cada dia daquele ano. Bem mais
que um Carandiru diário. Naquele período, foram registrados 18.436 jovens assassinados, o que
equivale a 51 assassinatos da juventude a cada dia do ano. Esse dado corresponde a 6,37
Chacinas da Candelária diárias.
Nos estudos publicados sobre o tema, a partir de 2004 já era indicado uma mudança nos
padrões de evolução dos homicídios no país. Mais recentemente, no Mapa da Violência
divulgado em dezembro de 2015, já se destacava a existência de dois processos concomitantes
nessa mudança. Por um lado um fenômeno de interiorização da violência letal. Se até 1996 o
crescimento dos homicídios centrava-se nas capitais e nos grandes conglomerados
metropolitanos, entre 1996 e 2003 esse crescimento praticamente estagna e o dinamismo se
transfere aos municípios do interior dos estados. A partir de 2003, as taxas médias nacionais das
capitais e regiões metropolitanas começam a encolher, enquanto as do interior continuam a
crescer, mas com um ritmo mais lento.
A seguir, apresentamos os levantamentos do Mapa da Violência de 2015 e 2016.
Tabela 12 - Evolução do número, das taxas (por 100 mil) e da participação (%) na
mortalidade de adolescentes de 16 e 17 anos segundo causa. Brasil, 1980/2013
Número de óbitos Taxas (por 100 mil) Participação %
Homi-
Homi-
Homi-
Trans-
Trans-
Trans-
porte
porte
porte
cídio
cídio
cídio
cídio
cídio
cídio
Ano
Sui-
Sui-
Sui-
1980 661 156 506 11,9 2,8 9,1 12,7 3,0 9,7
1985 800 121 901 13,8 2,1 15,5 14,5 2,2 16,3
1990 860 139 1583 14,3 2,3 26,2 14,0 2,3 25,8
1995 1053 194 1898 15,8 2,9 28,4 15,4 2,8 27,8
2000 955 195 2719 13,3 2,7 37,9 13,3 2,7 37,8
2005 1040 222 2870 13,4 2,9 36,8 14,6 3,1 40,3
2010 1101 205 3033 16,2 3,0 44,7 15,5 2,9 42,8
2013 1136 282 3749 16,4 4,1 54,1 13,9 3,5 46,0
∆% 80/13 71,9 80,8 640,9 38,3 45,5 496,4 9,7 15,4 372,9
Fonte: Mapa da Violência 2015. Adolescentes de 16 e 17 anos do Brasil.
Tabela 14: Participação (%) dos meios nos homicídios por idade simples. 2013
tant
etra
nto/
Cor
Obj
Cor
Out
Mei
Fog
Pen
For
den
ran
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Tot
ção
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tun
Ida
Suf
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ça
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a-
al
al
te
e-
o
O Mapa da Violência também destaca que a evolução da letalidade das armas de fogo não
foi homogênea ao longo do tempo. Entre 1980 e 2003, o crescimento dos homicídios por armas
de fogo foi sistemático e constante, com um ritmo acelerado: 8,1% ao ano. A partir do pico de
36,1 mil mortes, em 2003, os números, num primeiro momento, caíram para aproximadamente
269
Publicado em: http://www.mapadaviolencia.org.br/ , acesso em 25/08/16.
296
34 mil e, depois de 2008, ficam oscilando em torno das 36 mil mortes anuais, para acelerar
novamente a partir de 2012. Assim, no último ano com dados disponíveis (2014), temos um
volume de 42,3 mil homicídios por arma de fogo. O Estatuto e a Campanha do Desarmamento,
iniciados em 2004, constituem-se em um dos fatores determinantes na explicação dessa quebra de
ritmo, segundo avaliação do estudo do Mapa da Violência.
As 44.861 mortes ocorridas em 2014, representam 123 vítimas de arma de fogo a cada dia
do ano, cinco óbitos a cada hora. Número bem maior do que temos notícia de grandes chacinas e
atentados pelo mundo, como os acontecidos na Palestina, ou no Iraque, ou na Bélgica em março
do ano de 2016, quando morrem, nos atentados, 31 vítimas. Ainda pior: praticamente, temos, a
cada dia, o equivalente aos massacres de Paris de novembro de 2015, quando morreram 137
pessoas, incluindo sete dos agressores. Nosso número diário de mortes por arma de fogo é maior
que o resultado do massacre do Carandiru, ocorrido em outubro de 1992, quando foram
executados 111 detentos, fato de grande repercussão nacional e internacional. Embora esse nosso
número de mortes diárias por armas de fogo represente mais do que um massacre do Carandiru
por dia, não provoca o mesmo forte impacto emocional, seja nacional, seja internacional, pelo
contrário: discute-se hoje ampliar ainda mais a circulação de armas de fogo no país, de
endurecimento das penas, de redução da maioridade penal. É um tipo de solidariedade seletiva,
da qual determinados grupos sociais não são merecedores, dentre eles estes que chamamos
indesejáveis.
De acordo com o Mapa da Violência 2016, 94,4% das vítimas são do sexo masculino,
sendo a juventude a principal vítima da violência letal no Brasil. A faixa de 15 a 29 anos de idade
apresentou o crescimento da letalidade bem mais intenso do que no resto da população, no qual
os homicídios por arma de fogo passaram de 6.104, em 1980, para 42.291, em 2014: crescimento
de 592,8%. Na faixa jovem, o estudo apontou que este crescimento foi bem maior: pula de 3.159
homicídios por arma de fogo, em 1980, para 25.255, em 2014, representando um crescimento de
699,5%.
297
Mais uma vez foi destacada a preocupação com a queda na taxa de crescimento
populacional: segundo estimativas do IBGE, os jovens de 15 a 29 anos de idade representavam,
aproximadamente, 26% da população total do país no período analisado. Mas a participação
juvenil no total de homicídios por arma de fogo mais que duplica o peso demográfico dos jovens:
58%. Pode ser vista a enorme concentração de mortalidade nas idades jovens, com pico nos 20
anos de idade, quando os homicídios por armas de fogo atingem a impressionante marca de 67,4
mortes por 100 mil jovens. De acordo com o Mapa, a escalada de violência começa nos 13 anos
de idade, quando as taxas iniciam uma pesada espiral, passando de 1,1 homicídios por arma de
fogo, aos 12 anos, para 4,0, aos 13 anos, quadruplicando a incidência da letalidade e crescendo de
forma contínua até os 20 anos de idade.
A região Nordeste foi a que apresentou as maiores taxas de homicídios por armas de fogo
em quase todos os anos da década 2004/2014 analisada. Sua taxa média em 2014, de 32,8
homicídios por arma de fogo por 100 mil habitantes, fica bem acima da taxa da região que vem
imediatamente a seguir, Centro-Oeste, com 26,0.
Em situação diametralmente oposta, na região Sudeste a violência armada mostra fortes
sinais de regressão. A taxa de homicídios por arma de fogo, que em 2004 foi de 23,9, em 2014
retrocede para 14,0 por 100 mil, impressionante queda regional de 41,4%. Como já mencionado,
foram os estados de São Paulo e Rio de Janeiro que alavancaram essas quedas, com crescimento
negativo de 57,7% e 47,8%, respectivamente. As causas dessa redução são controversas, mas, no
RJ, alguns dizem que essa redução se deu com a implantação das UPPs nas comunidades. E, já
em SP, a justificativa mais controversa foi a de que a redução dos homicídios se deu em função
de uma determinação do PCC (Primeiro Comando da Capital), organização criminosa do Estado
de São Paulo.
A evolução da mortalidade por armas de fogo nas capitais acompanhou bem de perto a
registrada nas UFs, mas com índices ainda mais elevados de vitimização de sua população: se a
taxa nacional de homicídios por arma de fogo foi, em 2014, de 21,2 por 100 mil, a das capitais foi
de 30,3. As seis capitais com maiores taxas são do nordeste: Fortaleza, Maceió, São Luís, João
Pessoa, Natal e Aracaju, região que teve o maior crescimento médio no período: 89,2%.
298
Informações internacionais sobre o tema permitem obter uma visão comparativa sobre
níveis de violência existentes no país. Observamos que, com uma taxa de 27,4 homicídios por
100 mil habitantes e 54,8 por 100 mil jovens, o Brasil ocupa a sétima posição no conjunto dos 95
países do mundo com dados homogêneos, fornecidos pela Organização Mundial da Saúde (OMS)
sobre o tema, dados compreendidos entre 2007 e 2011.
O quadro comparativo internacional já foi bem pior para o Brasil. No ano de 1999, com
taxas menores que as atuais – 26,3 homicídios por 100mil habitantes – o Brasil ocupava o
segundo lugar, imediatamente atrás da Colômbia. E com 48,5 homicídios por 100mil jovens de
15 a 24 anos de idade, o terceiro lugar, depois da Colômbia e de Puerto Rico. Segundo o Mapa,
“não podemos interpretar essa sétima posição como uma melhoria dos índices nacionais, pois foi
mais devido ao crescimento explosivo da violência em vários outros países do mundo que
originou esse recuo relativo”. Nesse caso, se incluem vários países centro americanos, como El
Salvador e Guatemala, onde eclode a violência das gangues ou marras juvenis, ou o da
Venezuela, com problemas político-estruturais.
O Mapa da Violência 2012 também fez uma comparação dos índices de homicídios do
Brasil com os de outros países tidos como “civilizados”. Comparando nossos níveis de
homicídios na população total, a taxa de 27,4 homicídios por 100mil habitantes é:
274 vezes maior que a de Hong Kong.
137 vezes maior que as do Japão, Inglaterra e Gales ou Marrocos.
91 vezes maior que as do Egito ou Sérvia.
Já a taxa de 54,8 homicídios por 100mil jovens resulta:
547 vezes superior às taxas de Hong Kong.
273 vezes superior às taxas da Inglaterra ou Japão.
137 vezes superior às taxas da Alemanha ou Áustria.
Os 12 maiores conflitos — que ocasionaram 81,4% do total de mortes diretas no total dos
62 conflitos — vitimaram 169.574 pessoas nos quatro anos computados. No Brasil, considerado
um país sem disputas territoriais, movimentos emancipatórios, guerras civis, enfrentamentos
religiosos, raciais ou étnicos, conflitos de fronteira ou atos terroristas, foram contabilizados, nos
últimos quatro anos disponíveis – 2008 a 2011 – um total de 206.005 vítimas de homicídios,
número bem superior aos 12 maiores conflitos armados acontecidos no mundo entre 2004 e 2007.
Mais ainda, esse número de homicídios resulta quase idêntico ao total de mortes diretas nos 62
conflitos armados desse período, que foi de 208.349. E essas magnitudes não podem ser
atribuídas, como muitas vezes se faz, ao gigantismo, às dimensões continentais do Brasil. Países
com número de habitantes semelhante ao do Brasil, como o Paquistão, com 185 milhões de
habitantes, têm números e taxas bem menores que os nossos. E sem falar da Índia, que possui
1.214 milhões de habitantes e taxas de homicídio muito inferiores às do Brasil. O Brasil, com sua
taxa de 27,4 homicídios por 100mil habitantes, supera largamente os índices dos 12 países mais
populosos do mundo. Só o México se aproxima: sua taxa foi de 22.1270.
270
Fonte: Mapa da Violência 2016. Publicado em:
http://www.mapadaviolencia.org.br/pdf2016/Mapa2016_armas_web.pdf .
300
Tabela 16 - Número e taxas de homicídios (por 100 mil) nos países mais populosos do
mundo
País Ano População Homicídios Homicídios Fonte
(milhões) Número Taxa /100mil
China 2010 1.339,20 13.410 1.0 Unodc
Índia 2010 1.184,60 41.726 3.4 Unodc
USA 2010 301,6 16.129 5.3 Whosis
Indonésia 2008 234,2 18.963 8.1 Unodc
Brasil 2010 190,8 52.260 27.4 SIM/MS
Paquistão 2010 170,3 13.208 7.6 Unodoc
Nigéria 2008 164,4 18.422 12.2 Unodc
Bangladesh 2010 158,3 3.988 2.7 Unodc
Rússia 2010 142,5 18.951 13.3 Whosis
Japão 2011 125,8 415 0,3 Whosis
México 2011 112,5 24.829 22.1 Whosis
Filipinas 2008 96.1 12.523 13.0 Whosis
Fontes: SIM/MS: Sistema de Informações de Mortalidade/MS; Unodc: United Nations Office on Drugs and Crime; e
Whosis: Sistema de Estatísticas da OMS
Os dados são extremamente altos no Brasil e, mesmo assim, continuamos afirmando que
o país não vive uma guerra. Não é o que parece para, por exemplo, os moradores de favelas no
Rio de Janeiro, como Jacarezinho e Rocinha, que viveram nos últimos meses (setembro, outubro
de 2017) verdadeiro terror.
O conceito de guerra também pode ter uma outra interpretação para alguns autores na
atualidade. Para o autor e professor Marildo Menegat (2012),
A conjuntura histórica recente tem apontado, não apenas no Brasil, mas como uma
tendência mundial, a efetivação da guerra como um acontecimento cotidiano. Ela tem
invadido a vida de milhões e indivíduos em tempos de paz aparente, destruindo não
apenas seus bens materiais como também invalidando os laços sociais, a partir de uma
descontinuidade na esfera pública onde as classes estabeleciam pactos de regulação de
distribuição de riqueza produzida. As formas de violência, que vão irrompendo o estado
civil, apontam para diferentes elos que não podem ser isolados. Desde a ação da polícia
nos bairros populares da cidade, que invariavelmente resultam em mortes de jovens
negros desempregados – sempre acusados de envolvimento com essa entidade mítica
chamada “tráfico” -, até os casos de crime financeiro de grandes empresas, passando
pelo desmonte do Estado, todos esses elementos estão presentes na efetivação da guerra
que inviabiliza a democracia e sua radicalização (MANEGAT, 200, p.15).
Century, instituição que reúne especialistas de diferentes áreas de atuação dedicados ao estudo de
temas de relevância global, incluindo conflitos internacionais271.
De janeiro de 2011 a dezembro de 2015, foram mortas 278.839 pessoas no Brasil, número
maior do que o de mortos na guerra da Síria, onde 256.124 morreram no mesmo período,
segundo o Fórum. Os números do país do Oriente Médio são do Observatório de Direitos
Humanos na Síria e da ONU.
Segue tabela com os dados dos 20 conflitos armados no mundo, onde se verifica que
apenas a Síria, país que tem vivido um verdadeiro massacre, é o único que supera as mortes no
Brasil, no período de 2013 e 2014.
271
Publicado em: http://exame.abril.com.br/mundo/as-20-guerras-mais-mortais-acontecendo-hoje-no-planeta/ ,
acesso em 11/06/2015.
302
O perfil dos adolescentes e jovens que estão sendo assassinados no país os dados não
deixam dúvidas: são em sua grande maioria adolescentes e jovens, do sexo masculino, negros,
faixa etária entre 15 e 25 anos; um jovem negro tem cerca de três (3) vezes mais chances de ser
assassinado que um jovem branco; os homens têm um risco 12 vezes maior de serem
assassinados do que as mulheres. Ou seja, essa violência é seletiva, racista, e tem demonstrado a
vulnerabilidade em que estão os adolescentes e jovens, especialmente os jovens negros e pobres.
303
A sociedade brasileira tem naturalizado essas mortes e muitos poucos têm se mobilizado para
enfrentar esse extermínio / genocídio de um segmento considerável da população. Uma das
razões que mantém a indiferença de grande parte da sociedade e das autoridades em enfrentar
esse problema é o perfil da maioria dos jovens que estão sendo mortos: negros e pobres. São
esses que estão em situação de rua, que estão nas favelas e periferias, que estão encarcerados;
esses a que chamamos “os indesejáveis”!
A ideologia que permeia esta visão da sociedade, a qual a consideramos como muito
próxima da que foi a ideologia nazifascista, está presente quando temos o dado de que metade da
sociedade brasileira considera que ‘bandido bom é bandido morto’. Esse foi o resultado da
pesquisa Datafolha, divulgada em outubro/15. Dos 1.307 entrevistados em 84 cidades com mais
de 100 mil habitantes, 50% concordam com a expressão, 45% discordam e 5% não concordam
nem discordam ou não sabem272. Acreditamos que esse dado tenha aumentado no período atual
(2017).
Uma das dimensões do racismo entranhado em nossas instituições e representações ou
subjetividades é acreditar que a vida desses adolescentes e jovens vale menos, ou não vale a pena
ser vivida. São negros, pobres, favelados, muitos dos quais vivem à margem do Estado de
Direito, submetidos às práticas cotidianas do estado de exceção. São constantemente vítimas de
preconceito, perseguidos e criminalizados pela única política pública permanente, que se fez
presente ao longo de suas vidas, a política de segurança pública. As políticas sociais, quando os
alcançam, são políticas compensatórias, pontuais, e que não promovem a vida desses sujeitos. Há
esgotamento das políticas de acolhimento para adolescentes, por exemplo, várias instituições
estão fechando por falta de recursos, e esse grupo social é jogado nas ruas. E não se prioriza uma
política de redução e/ou prevenção de homicídios junto a esse segmento da população brasileira.
É importante sempre destacar que é a população negra que mais sofre com a violência letal no
país. Isso explica o porquê muito pouco tem sido feito nos últimos anos para transformar essa
triste realidade. A falta ou o desinteresse em desenvolver políticas que, de fato, respondam às
reais necessidades dessas pessoas é também uma forma de, invariavelmente, matá-las, deixar
morrer... É como fortalecer uma política de extermínio.
272
Publicada em: http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2015/10/para-metade-do-pais-bandido-bom-e-bandido-
morto-diz-datafolha.html , acesso em 05/10/15.
304
A banalidade do extermínio
É difícil entender como os alemães conviviam com a violência nos anos 30.
Mas estamos indo pelo mesmo caminho...
(Átila Roque / Pedro Abramovay)
Seis jovens. Dois com 12 anos, um com 14, um com 15 e dois com 18. Foram vítimas de
uma chacina em Duque de Caxias. Um dos meninos de 12 sobreviveu. Esta notícia não
estampou a capa de nenhum jornal nacional. E também não mereceu a manifestação de
nenhuma autoridade pública. É razoável que lidemos com normalidade com a execução
de adolescentes? Não se trata de apontar o dedo para a imprensa. Apontemos para nós
todos. Convivemos com normalidade com esses fatos.
Convivemos com normalidade com a morte de 1 milhão de brasileiros em pouco mais de
duas décadas. É a maior tragédia da nossa história desde a escravidão. Alguns pensam:
“O mundo é mesmo um lugar violento.” Não. Violento mesmo é o Brasil. São 56 mil
homicídios por ano. Somos responsáveis por mais de 10% dos homicídios do mundo.
Desse total, 30 mil eram jovens com idade entre 15 e 29 anos. O homicídio foi também a
principal causa da morte de adolescentes entre 12 e 18 anos (45,2%), em cidades com
mais de cem mil habitantes. Conhecemos esses dados, mas naturalizamos o horror.
Como se essas mortes fossem destino. Não eram. É uma escolha, resultado de escolhas
que fizemos ou deixamos de fazer.
Um dos desafios de grandes pensadores do século XX foi tentar entender como tantos
alemães lidaram com normalidade com a brutalidade da tragédia que ocorria por lá
durante o holocausto. Como as pessoas podiam ir trabalhar, comprar seu pão, pensar em
coisas triviais, enquanto corpos se acumulavam?
Uma dessas pensadoras, Hannah Arendt, descreveu esse fenômeno como a banalização
do mal. As pessoas perdiam a capacidade de perceber a monstruosidade dos fatos. A
ideia contemporânea de direitos humanos surge daí. A sociedade, o Estado, todos
devemos nos indignar, nos sensibilizar, nos chocar, quando se violam direitos, quando se
produzem tragédias. Achar isso normal não é humano.
273
Antônio Futuro, Pedagogo, Mestre em Educação, Educador Social e militante do movimento social em defesa da
criança e do adolescente desde meados da década de 1980.
274
Publicado em: https://oglobo.globo.com/opiniao/a-banalidade-do-exterminio-14402323 , acesso em 30/10/14
305
É muito difícil, para nós, no século XXI, olhar para a Alemanha dos anos 1930 e
compreender como eles conviviam com isso. Olhar para os nossos antepassados e
compreender como se convivia com a escravidão. Mas nós estamos indo pelo mesmo
caminho. Convivemos com uma tragédia de proporções indescritíveis com uma
normalidade que não será perdoada pela História. E por quê? Não nos enganemos. Os
que morrem são em sua maioria negros, são pobres, são invisíveis.
Não pensamos que, por trás do número de um milhão de mortos, há um milhão de mães,
de familiares, de vidas roubadas, histórias interrompidas. Tornamos tudo isso invisível.
Não se resolve o problema dos homicídios com um passe de mágica. Políticas públicas
complexas são necessárias. Mas o primeiro passo é perceber que a tragédia não é banal,
não é apenas um notícia de jornal, é chamar a atenção de que não queremos passar para a
História como outra geração que tolerou a morte em massa de jovens. Não queremos que
nossos netos tenham vergonha de nós.
Atila Roque é diretor executivo da Anistia
306
Este capítulo destaca o modelo que vem sendo implantado ao longo do tempo pelo Poder
Público, do Estado e Município do Rio de Janeiro, especialmente pela Secretaria de Assistência
Social e de Segurança Pública, no atendimento ao grupo social que denomino “sujeitos
indesejáveis”. As consequências desse modelo junto a este público, através de práticas que
historicamente violam direitos de crianças e adolescentes, sejam das que estão em situação de rua
(no sentido amplo do conceito), das provenientes de favelas e periferias, das que estão
encarceradas, ou mesmo, das que são vítimas da violência letal, são extremamente cruéis e
desumanas, comprometendo o bom desenvolvimento físico, psíquico, social.
A apresentação será feita a partir de casos exemplares que foram objeto de práticas e
posturas abusivas direcionadas a esse grupo social, e ressaltar que essa forma de atuação não
passa impune, pois tem consequências na vida e no comportamento dos meninos e meninas.
Desde o período de constituição da Rede Rio Criança (2001), foram produzidos 03
Manifestos das Crianças e Adolescentes em situação de rua que participaram do Fórum de
Meninos/as276 (2004, 2011 e 2014). Esses manifestos contêm várias denúncias de violências
sofridas pelos meninos/as nas ruas, nas favelas, nos abrigos, nas unidades do DEGASE, dentre
outras que, independente do tempo e do espaço, são práticas sistemáticas de atuação de atores do
poder público (servidores, contratados e terceirizados) junto a esse grupo social.
Para melhor análise e compreensão dessas denúncias, transcrevo abaixo os manifestos:
275
Fala de um Agente da Central de Recepção Taiguara, um equipamento da Secretaria Municipal de Assistência
Social (RJ), em 2015, para os meninos/as em situação de rua que lá estavam abrigados.
276
O Fórum de Crianças e Adolescentes em situação de rua da Rede Rio Criança (Fórum de Meninos/as) é um
espaço político-lúdico-pedagógico, de formação e organização, mas também de muita criatividade. É um espaço
privilegiado para esses grupos, quando se reúnem crianças, adolescentes e jovens das Instituições que integram a
Rede Rio Criança. São realizados uma média de 04 Fóruns ao ano.
307
2004
Manifesto das Crianças e Adolescentes em situação de rua na cidade do Rio de
Janeiro
2011
Manifesto das Crianças e Adolescentes em Situação de Rua na cidade do Rio de
Janeiro contra as operações de recolhimento
277
Adolescentes em Situação de Rua, realizado pela Rede Rio Criança , no dia 15 de
junho de 2011, denunciam e reivindicam:
- Nós, crianças e adolescentes em situação de rua denunciamos as operações de
recolhimento, feitas na cidade do Rio de Janeiro pela Prefeitura do Rio, todas feitas de
forma violenta pela polícia, que chegam batendo, agredindo, e nos levam para a
delegacia como se fôssemos bandidos, e para abrigos que não adiantam de nada. O que
adianta tirar as pessoas da rua e não oferecer nada melhor? Antes de recolher tem que ter
um plano que ofereça melhores condições de vida para as pessoas.
- Denunciamos os policiais que levam nosso dinheiro, levam tudo o que a gente tem.
- Denunciamos a forma como os policiais entram nas comunidades, dando tiro, achando
que todo mundo é bandido. Eles não respeitam as pessoas.
- Denunciamos a forma como tratam as pessoas que fazem uso de droga, pois em vez de
tratarem, reprimem e dopam a gente. Eles ficam só em cima dos “cracudos” e têm muita
gente morrendo de overdose por outras drogas.
- Denunciamos a clínica de Barra Mansa, Casa Reviva, que dopam a gente o dia todo e
ainda nos amarram na cama.
- Denunciamos o tipo de tratamento nas clínicas para tratamento de drogadição, que dão
remédios e não nos oferecem outras atividades. O tratamento é importante, mas é tudo
fogo de palha, é tudo por causa da Copa; estão apenas maquiando a cidade.
- Denunciamos o DEGASE (Instituto Padre Severino), pois eles batem, esculacham os
adolescentes lá dentro, oprimem o menor. E muitas vezes pegam o dinheiro das famílias
quando vão visitar. Os adolescentes saem pior do que quando entraram.
- Nós reivindicamos que tem sim que acabar com a cracolândia, mas tem que dar um
tratamento digno. Tem que levar as pessoas para um local que oferecesse alguma coisa
melhor, escolas, estágio, profissionalização. As pessoas que estão na rua têm que ser
respeitadas, tem que dar outra alternativa, e não cadeia. Tem que ouvir as pessoas, e não
ficar agindo por elas. Tem que saber o que elas querem, o que precisam. Tem que ter
escuta, afeto, cuidado, e não repressão. A polícia e a prefeitura devem selecionar melhor
as pessoas que abordam, não pode colocar pessoas despreparadas.
- Queremos, enfim, que nos tratem como pessoas que somos, e que respeitem nossos
direitos.
Fórum das Crianças e Adolescentes em Situação de Rua da Rede Rio Criança,
15/06/2011.
2014
Manifesto das Crianças e Adolescentes em Situação de Rua contra a violação de
direitos humanos na cidade do Rio de Janeiro
277
A Rede Rio Criança é uma articulação de referência no atendimento às crianças e adolescentes em situação de rua
na cidade do Rio de Janeiro, formada por 16 ONGs, que atuam de forma articulada e complementar. E-mail:
rederiocrianca2001@gmail.com
278
Instituições filiadas à Rede Rio Criança: Associação Beneficente Amar, Associação Beneficente São Martinho,
Associação Brasileira Terra dos Homens, Associação Excola, Banco da Providência, CEDECA RJ, Centro de
Teatro do Oprimido, Movimento Moleque, REMER, Pastoral do Menor e Se Essa Rua Fosse Minha.
309
Diante das denúncias diárias de agressão, violência e tortura trazidas pelos meninos/as, e
muitas delas também presenciadas pelos Educadores Sociais das Instituições da sociedade civil
que tem atuação direta com esses meninos/as nas ruas, buscávamos apoio no Sistema de Garantia
de Direitos da Criança e do Adolescente279, e também através de denúncias aos organismos
internacionais, mas, as respostas foram muito poucas. A higienização das ruas era muito mais
importante do que garantir direitos.
Muitos são os casos exemplares que retratam o abuso de violência sofrida por esses
meninos/as. Alguns desses foram noticiados na mídia, especialmente pela atuação da Defensoria
Pública do Rio de Janeiro e dos Centros de Defesa da Criança e do Adolescente (CEDECAs).
Temas como operações de recolhimento, operação verão, superlotação no DEGASE, já
trouxemos no capítulo anterior. Mas, existem outros casos também graves de intervenções
279
O Sistema de Garantia de Direitos da Criança e do Adolescente constitui-se na articulação e integração das
instâncias públicas governamentais e da sociedade civil na aplicação de instrumentos normativos e no
funcionamento dos mecanismos de promoção, defesa e controle para a efetivação dos direitos da criança e do
adolescente, nos níveis Federal, Estadual, Distrital e Municipal. (Ver em: http://www.sdh.gov.br/assuntos/criancas-
e-adolescentes/programas/fortalecimento-de-conselhos/garantia-de-direitos-da-crianca-e-do-adolescente )
310
públicas que aqui merecem serem destacados, como casos de maus tratos e tortura em Abrigos
públicos, e a retirada e adoção compulsória de bebês de adolescentes e mulheres em situação de
rua supostamente usuárias de crack, e de como esse somatório de modelos e práticas tiveram
consequências diretas no comportamento desses meninos/as ao longo do tempo.
Para contextualizar e ilustrar melhor essas questões, serão apresentados alguns desses
casos, relatos e notícias sobre casos /fatos notórios e seus desdobramentos, sem esquecer que
estes são apenas parte de uma realidade social muito mais ampla e complexa.
280
, Abrigo especializado é um tipo de equipamento criado pela Secretaria Municipal de Assistência Social (RJ), em
2011, com quadro de equipe multidisciplinar, para o atendimento de determinados casos que necessitem de
atendimento diferenciado, como o tratamento de saúde (neste caso dependência química de crianças e adolescentes
em situação de rua). Esse equipamento não é tipificado, ou seja, não existe no documento Tipificação dos Serviços
Socioassistenciais. Além de sofrer críticas por isto, outras ainda maiores surgiram por parte da área da Saúde, que
considerou que não cabe à Assistência Social tratar questões que são da área de saúde.
311
Caros,
Eu estava fora do Rio passando uma semana de férias e por isso assisti a este programa
de que Sandra fala. No Rio, nunca vejo TV, mas lá eu vi.
Fiquei MUITO IMPRESSIONADO com o programa. Mostram crianças sendo
violentamente aprisionadas, à força e levadas desta forma para dentro das casas
chamadas "vivas" (???!!!). Diante do quadro brutal, Caco Barcellos, que entrevistava
pessoas, entre eles médicos nesta ação, repetia um dito de um dos médicos: "Isso é
abstinência, olha como eles ficam. Tiramos eles do crack e ficam assim! Depois vai
passar..." E essas coisas eram repetidas, sem que ninguém, nem mesmo o inteligente
jornalista-repórter, fizesse uma simples pergunta: "Mas como assim, abstinência, se eles
acabaram de ser arrancados da droga, do crack? Não estão portanto ainda sob seu efeito?
Não estão se debatendo desta forma PORQUE ESTÃO SENDO PEGOS À FORÇA E
PRESOS?" O Caco Barcellos só repetia: "É abstinência, é abstinência!" E seguia
312
Essa reportagem da qual relata Luciano, foi motivo de várias críticas de profissionais de
saúde e de defensores de direitos humanos quanto ao tratamento que era dado àqueles que eram
internados compulsoriamente. As informações corriam e circulavam entre as crianças e
adolescentes em situação de rua, que também faziam suas denúncias e fugiam de tal internação e
tratamento. Outros “abrigos especializados” foram abertos, 03 deles na zona oeste do Rio, que
também foram denunciados por maus tratos, abuso no uso de medicalização, desvio e má gestão
de verba pública, já mencionados em capítulo anterior.
A Casa Viva de Laranjeiras tentou se adequar depois das denúncias, mas não conseguiu
alcançar o modelo ideal, nem o possível, especialmente pela sua estrutura física e metodologia de
ação. Outras três Casas Vivas foram abertas para esse tipo de atendimento, mas sempre foram
criticadas por especialistas e, muitas vezes, por profissionais que trabalharam no equipamento,
por não desenvolverem uma metodologia adequada.
313
5.2 2º Caso: Recolhimento, “Pingo de mel", abuso e Tortura nas Centrais de Recepção281
281
As Centrais de Recepção são a porta de entrada das crianças e adolescentes que são recolhidas das ruas, ou
encaminhadas pelo Conselho Tutelar, dentre outros. De lá, é feita a triagem para outros equipamentos.
282
Publicada em: http://www.ciespi.org.br/eventos-e-noticias/635-nota-sobre-o-debate-publico-violencia-
sistematica-contra-criancas-e-adolescentes-desdobramentos-do-debate-publico-do-dia-10-de-abril ,
e em: https://www.youtube.com/watch?v=9exSyaKoBC0 .
314
Outra grave denúncia feita pelo Educador Jô Ventura foi um tipo de violência conhecida
com “pingo de mel”. Geralmente praticada por policiais, que podemos identificar como prática de
tortura, com requinte de crueldade, era derreter o plástico e deixar pingar o líquido fervente
(“pingo de mel”) na pele, preferencialmente nos pés, de adolescentes pegos na operação de
recolhimento. O plástico derretido provocava, imediatamente, queimaduras de 3º grau.
315
Foto: Jô Ventura
5.3 3º Caso: Retirada e adoção compulsória de bebês de jovens mães que estão em situação
de rua, supostamente usuárias de drogas
Denúncia feita pelo Fórum da População de Rua, numa reunião no Conselho Regional de
Serviço Social (CRESS RJ), em meados de março/2014, na qual participaram representantes da
sociedade civil, profissionais de maternidades e hospitais públicos, assistentes sociais, dentre
outros. Foi relatado que existia uma orientação / determinação do Ministério Público (mas que a
princípio nenhuma instituição presente havia visto ou recebido por escrito), de que toda
adolescente grávida em situação de rua, que estivesse em acompanhamento pré-natal ou que
tivesse dado entrada na maternidade para ter o bebê, se fosse detectado essa ser usuária de drogas
(crack, dentre outras), que o Hospital ou Maternidade deveria notificar imediatamente a I Vara da
Infância e Juventude, que procederia a suspensão do poder familiar ou, quando possível, a
entrega do bebê à família extensa ou substituta. Das maternidades presentes à reunião, a Carmela
Dutra foi a única que relatou que recebeu uma orientação por escrito da 9ª Promotoria da Infância
e Juventude (Meier / RJ) na qual versava sobre a questão. Com isso, muitos têm sido os casos de
retirada compulsória dos bebês de suas mães, sem nem o direito de amamentá-los. Com medo de
perderem seus filhos, muitas dessas jovens grávidas não fazem exames e/ou pré-natal.
De acordo com informação do Conselho Regional de Serviço Social, das 53 mães
atendidas em maternidades municipais do RJ, identificadas como usuárias de crack e em situação
de rua, apenas 14 saíram do hospital com seus filhos. As demais 39 foram afastadas de seus
bebês, que tiveram os seguintes encaminhamentos: encaminhados para abrigos (19), outros
familiares (10), adoção (4), dentre outros. Os dados foram levantados em três maternidades –
Carmela Dutra, Leila Diniz e Herculano Pinheiro -, entre janeiro e junho de 2013. Uma jovem em
situação de rua presente à reunião e que não quis se identificar, contou que uma amiga foi
agredida pela polícia quando estava grávida de oito meses. E acrescentou: “Ela não fez o pré-
natal com medo de perder a criança. Nós somos muito discriminados, no hospital somos os
últimos a ser atendidos.” E, sobre os abrigos, disse que “a rua continua sendo melhor que os
abrigos do Rio283.”
283
Informações dadas durante reunião ocorrida em março de 2014, no Conselho Regional de Serviço Social
(CRESS), no RJ, e publicada na Revista Praxis, nº 76, março/abril de 2014, pág. 16.
317
Como forma a dar continuidade a essa discussão, o Ministério Público resolveu criar uma
Oficina sobre retirada e adoção compulsória de bebês, com a realização de reuniões quinzenais
sobre essa temática, com o objetivo de articular diferentes grupos e segmentos envolvidos nesse
tema. As reuniões foram muito expressivas, envolvendo profissionais de saúde, de assistência,
movimento social, legislativo, sociedade civil, ministério público, defensoria pública, com muitos
debates, denúncias, troca de experiências na busca da garantia de direitos para as mulheres,
adolescentes e seus bebês.
Esse tema foi por mim levado para o Grupo de Trabalho no CONANDA284, do qual
participava o Ministério da Saúde, dentre outros, bem como por representante do Movimento
Nacional da População de Rua, que também trouxe denúncias dessa ocorrência em outros
Estados, especialmente na cidade de Belo Horizonte (MG) e Espírito Santo. O Ministério da
Saúde elaborou Nota Técnica com orientações para os profissionais de saúde sobre o tema, como
forma de prevenção e cuidado dessas mulheres (apresentada no capítulo 6).
É interessante observar que propostas e práticas de restrição da maternidade de mulheres e
jovens em situação de rua é um fato que tem sido acompanhado e, de fato implantado, em alguns
períodos de nossa história recente. Na década de 1990, por exemplo, quando de minha atuação no
Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua, lembro-me de notícias e debate sobre a
“esterilização de mulheres no Brasil”. A esterilização forçada de mulheres, especialmente negras,
das camadas de baixa renda, já foi objeto de grande polêmica no Brasil nos anos 1990285. Àquela
época, foi formada uma Comissão Parlamentar Mista de Inquérito, em 1993, presidida pela então
Deputada Benedita da Silva (PT RJ), para examinar a "incidência de esterilização em massa de
mulheres no Brasil286", que produziu um relatório de 141 páginas que concluiu pela confirmação
da esterilização em massa de mulheres no Brasil na década de 80, pela existência de
financiamento externo para essa campanha, e pela maior incidência de esterilizações em mulheres
da raça negra, entre outras conclusões.
284
Grupo formado pelo CONANDA por representantes de governo (Ministérios) e sociedade civil constituído para
formular propostas de diretrizes nacionais pata o atendimento às crianças e adolescentes em situação de rua.
285
Ver em "A Esterilização Feminina no Brasil: Diferenciais por Escolaridade e Renda" (Ignez Helena Oliva
Perpétuo e Simone Wajnman, Revista Brasileira de Estudos da População, v. 10, n. 1/2, p. 25-39, 1993).
286
Relatório n. 2, de 1993 - CN : Relatório final da Comissão Parlamentar Mista de Inquérito destinada a examinar a
incidência de esterilização em massa de mulheres no Brasil. Para acessar o relatório, ver em:
http://www2.senado.leg.br/bdsf/bitstream/handle/id/85082/CPMIEsterilizacao.pdf?sequence=7 .
318
De acordo com as informações, o financiamento externo viria dos Estados Unidos, através
de um plano secreto de esterilização de mulheres em países subdesenvolvidos, entre eles o Brasil,
o “Memorando 200”, elaborado em 1974 por Henry Kissinger, conselheiro para a segurança
nacional dos EUA. Em 1989, o plano deixou de ser secreto. O seu tema era o crescimento da
população no mundo e as suas consequências para a segurança dos EUA e dos seus interesses no
estrangeiro. Ao propor medidas para a redução significativa de população, Kissinger escreveu:
“O mundo depende cada vez mais dos fornecimentos de minérios dos países em
desenvolvimento, e se o crescimento rápido da população violar as suas perspectivas do
desenvolvimento econômico e do progresso social, a instabilidade que surge poderá minar as
condições para a produção alargada e para o apoio da corrente constante desses recursos287”.
A esterilização tornou-se o meio contraceptivo mais popular na América Latina nos anos
de 1980-1990. No início dos 1990, o Ministério da Saúde do Brasil começou a investigar a
esterilização em massa de mulheres brasileiras. Constatou-se que cerca de 44% de todas as
mulheres brasileiras em idades entre 14 e 55 anos foram regularmente esterilizadas. A
esterilização era realizada por várias organizações e agências, sendo muito poucas delas
brasileiras. A Federação Internacional de Planejamento Familiar, a Fundação Pathfinder norte-
americana, a Associação pela Contracepção Cirúrgica Voluntária, a Saúde Familiar Internacional
agiam todas sob a égide da Agência de Desenvolvimento Internacional do Departamento de
Estado dos EUA (USAID). Em 1989, o governo brasileiro, que inicialmente era um adepto
convicto desse programa, motivado pela luta contra a pobreza, informou a USAID de que os
programas de esterilização se tornaram “excessivos e inúteis”288.
Os nazistas aceitavam como fato as conexões “auto evidentes” entre defeitos raciais ou
biológicos e crime, e essa teoria começou a ser usada como parte da justificativa para os
campos, assim como para outras medidas, como a esterilização daqueles considerados
criminosos inveterados ou como casos de assistência social (GELLATELY, p. 111).
forma de conter a violência no Rio de Janeiro: "Tem tudo a ver com violência”, disse Cabral.
“Você pega o número de filhos por mãe na Lagoa Rodrigo de Freitas, Tijuca, Méier e
Copacabana, é padrão sueco”. “Agora, pega na Rocinha, é padrão Zâmbia, Gabão”. “Isso é uma
fábrica de produzir marginal", declarou289. O Vereador Carlos Bolsonaro, filho do Deputado Jair
Bolsonaro, defende um projeto para facilitar a esterilização de moradores de rua. Em 2013,
quando realizamos o Seminário Regional da Rede Nacional de Atenção às Crianças e
Adolescentes em situação de rua, em Salvador (BA), o Secretário Municipal de Promoção Social
e Combate a Pobreza, Maurício Trindade, disse na mesa de abertura que a população de rua “só
bebia cachaça, não tomava banho e que as mulheres deveriam ser esterilizadas e homens fazerem
vasectomia”!
289
Publicado em: http://g1.globo.com/Noticias/Politica/0,,MUL155710-5601,00-CABRAL+DEFENDE+
ABORTO+CONTRA+VIOLENCIA+NO+RIO+DE+JANEIRO.html , acesso em outubro/2007.
320
estávamos conseguindo ter respostas ao trabalho realizado, e que a cada dia mais dificuldades
apareciam.
É... tanta “porrada” tem consequências!! Eu repetia isso em todas as reuniões que
participava, nos diferentes espaços e coletivos, por cerca de 02 anos.
Para ilustrar, relato dois casos que nos deixou impressionados e muito preocupados. O
primeiro ocorreu no Fórum de Crianças e Adolescentes em situação de rua da Rede Rio Criança
(Fórum de Meninos/as), realizado em 2014, na ONG Se Essa Rua Fosse Minha, em
Laranjeiras/RJ. Um grupo aproximado de 12 adolescentes participou através de uma das
Instituições (São Martinho). Eram jovens com idade entre 15 e 18 anos, todos bem vestidos, e nos
chamou a atenção que alguns, ou a maioria, ostentavam celulares e cordão de ouro. Não quiseram
participar das atividades, observavam tudo, mostravam-se desafiadores, e diziam que queriam
almoçar logo.
Certa hora, vimos que alguns deles tinham conseguido entrar na parte de cima da
Instituição, que estava fechada, pois vários equipamentos e bolsas dos profissionais presentes
estavam numa das salas. Os Educadores interviram e os jovens desceram, mas isso gerou um
clima muito ruim, de desconfiança e agitação. Havia sido quebrado um elo importante, o de
confiança! Luiz, um dos educadores responsáveis pelo grupo, aconselhou a darmos logo o
almoço, para acalmar um pouco os ânimos e para eles irem embora, pois já estavam impacientes.
E foi o que fizemos! Almoço servido, o grupo todo foi embora dizendo que estavam já atrasados
para uma ação em Copacabana!
Refletimos sobre o ocorrido, pois envolvia muita coisa sobre a atualidade do contexto da
rua, do atendimento e relações. O perfil dos adolescentes apresentava mudanças significativas
envolvendo um comportamento mais agressivo, indiferente às atividades, preocupação com a
aparência, ostentação e consumo. É fato que a necessidade de consumir, ou obter o objeto de
consumo, a mercadoria, é o grande fetiche do capitalismo, que cria um suposto sistema de
necessidades que impõe a “necessidade” do consumo, e não seria diferente entre esse grupo
social por estar nas ruas, ao contrário, pois a posse do objeto de consumo é também uma forma
de aceitação, de inclusão na sociedade ou no grupo o qual se faz parte. Em Grundrisse, Marx
(2011) já destacava:
321
290
O trabalho dito de abordagem de rua é feito por Educadores Sociais, e consiste numa aproximação das crianças e
adolescentes de modo processual, objetivando o estabelecimento de uma relação de confiança que permita o
levantamento das necessidades e potencialidades dos meninos/as, com o acompanhamento de cada caso e o
desenvolvimento de atividades sócio-educativas-culturais, realizando também os encaminhamentos necessários aos
serviços e retaguardas existentes.
322
remetia a uma grande reflexão sobre os desafios impostos pelo atual contexto da rua e as
consequências em nosso trabalho, especialmente por esse fato ter acontecido numa instituição
que desenvolve um trabalho pautado em metodologia da educação social de rua, no acolhimento,
na garantia de direitos. Se fosse ocorrido em um abrigo da prefeitura, não nos causaria esse
espanto...
Desde 2013, reiteradas vezes, as Instituições que realizam ação direta nas ruas relatam as
dificuldades do trabalho com as crianças e adolescentes em situação de rua (CASR), no
atendimento, na questão dos vínculos, de adesão às atividades, da mudança de comportamento,
etc.. Destacamos abaixo alguns relatos sobre a questão numa das Assembleias da RRC, em 2015:
(Márcia Gatto, RRC) - O tempo da adolescência / juventude está mesmo diferente, não é
uma particularidade das CASR, eles fazem parte dessa mesma humanidade. O uso de drogas
também contribui para essa aceleração, dispersão, agitação. Esses meninos são muito ativos.
Vocês não consideraram o uso de cocaína, mas é bom vermos isso, pois atualmente está mais
fácil conseguir este tipo de droga. Tanta violência na rua sofrida pelos meninos tem
consequências no comportamento deles. E essa agitação toda, etc... Chega uma hora do dia que
eles querem sair da instituição para ganhar as ruas, fazerem o seu ganho.
(Tião, AMAR) – Intensificação do recolhimento em São Cristóvão (Coreto e Praça),
assim como no Museu de Arte Moderna (MAM), no Centro. A Instituição concluiu o Projeto
Petrobrás e consideram que a renovação do financiamento será difícil dentro dos moldes atuais,
na qual a área social tem sido prejudicada. Mesmo com as dificuldades, há um compromisso
institucional de não fechar, mesmo sem a verba da Petrobrás. Estamos utilizando recursos
próprios.
(Valdinei, São Martinho) – Contexto difícil. Nos meses de junho/julho aumentou o
número de CASR no Centro. Média de 30 a 50 meninos têm frequentado diariamente a
Instituição. Em Julho observamos uma crescente agressividade; confronto direto às regras,
passando inclusive, a momento de uma quase rebelião. Com isso, optamos por terminar as
atividades mais cedo. Analisamos que com a parada da AMAR, aumentou o quantitativo na casa.
Voltaram os furtos no Centro da cidade (ouro, celular, dinheiro), e eles levando inclusive para
dentro da instituição. Estamos pegando eles com muita maconha. Eles estão usando muito o
“desfazedor” de maconha. As CASR têm sido uma prioridade para a São Martinho. Porém, os
323
Muitos dos agentes promotores dessas práticas (policiais, guarda municipal, ou mesmo
funcionários da SMDS), não questionam ordens ou essa forma de atuação arbitrária e violenta
junto às crianças e adolescentes em situação de rua e as provenientes das favelas, nem tão pouco
se preocupam com as consequências que essas práticas podem causar na vida dessas pessoas
objeto das práticas. Para aqueles que questionam (Educadores, Assistentes Sociais, Psicólogos)
muitas vezes são obrigados a se adaptarem às regras, ou são transferidos como represália. Já os
que agem desprovidos de senso crítico, em sua maioria estão convictos de executarem o que é
certo. Arendt (2013) utiliza o conceito “banalidade do mal” para descrever a atitude de
funcionários de Hitler, no caso Heichman, o responsável pela condução dos judeus aos campos
de concentração, que executavam as ordens sem questionar, banalizando os danos e malefícios
que causaram a um segmento inteiro da população.
Perguntado sobre as consequências psicológicas acarretadas nos meninos/as que passam
pelas operações de recolhimento, Sebastião Andrade (Tião) comentou:
O Prof. Antônio Futuro, também Educador de referência, considera que todo o processo
de violência sofrido por essas crianças e adolescentes na família, na comunidade e,
principalmente, nas ruas, isso pode acarretar consequências prejudiciais em sua vida:
291
Parte da entrevista feita com Sebastião Andrade (Tião), da Assoc. AMAR, em 2011.
325
Desde 2015 não conseguimos realizar o Fórum de Meninos/as de forma ampla, com a
participação integrada de adolescentes das diferentes instituições da Rede Rio Criança. Os fóruns
têm acontecido de forma institucional, ou seja, localizada, isolada, com os adolescentes atendidos
em cada instituição. Além das dificuldades relatadas acima, outra questão alertada pelos
Educadores foi a divisão por facções292 na rua, que acarreta a intensificação das rivalidades entre
eles. Facções sempre existiram, até mesmo como uma forma de identidade, pertencimento,
inclusão para alguém que a sociedade exclui. Mas, isso não era impedimento para a realização de
encontros e atividades conjuntas, como o Fórum, que era uma atividade realizada no mínimo 03 a
04 vezes ao ano pela RRC, com participação de até 70 crianças e adolescentes em situação de rua
de diferentes localidades da cidade. No entanto, com a intensificação da violência nas ruas, e a
questão da divisão por facção dificultou a realização de ações e atividades. Porém, acredito que a
principal consequência tenha sido nas relações interpessoais, especialmente na relação Educador
– Menino/a, na construção e fortalecimento de vínculos de amizade e confiança, que são
fundamentais para o desenvolvimento de um trabalho político-pedagógico com o menino/a,
dentro dos princípios da Educação Social de Rua293, pautada nos ensinamentos de Paulo Freire,
uma metodologia utilizada pela sociedade civil desde a década de 1980, desprezada pelo poder
público, que fez a opção de “educar” através da “porrada”!
Lembro-me que num Fórum de Meninos, em 2015, falamos sobre a Operação Verão.
Alertamos aos meninos/as presentes o que estava acontecendo, que a polícia estava tirando
adolescentes “suspeitos” dos ônibus que saíam da zona norte e periferia para as praias da zona sul
da cidade! Que era para tomarem cuidado, se prevenirem, não andarem sem documentos, sem
camisa, descalços, sem dinheiro (ah... como assim?). Um adolescente me perguntou com grande
susto e pesar: “Tia, nós estamos proibidos de ir à praia??” “Não”, respondi. “Mas, vocês têm que
tomar cuidado... Não facilita, não faz besteira, porque eles (a polícia) estão de olho”!
292
O termo facção aqui designando facção criminosa, grupo do crime organizado. No RJ as facções se diferem por
territórios, regiões, favelas. São 03 principais: Comando Vermelho, Terceiro Comando e Amigos dos Amigos.
293
Sobre a Educação Social de Rua (ESR) falaremos no próximo capítulo (6).
326
Será que os policiais e guarda municipal que executam essas práticas acham que estão
certos? Têm noção do que estão fazendo? Ou o fazem como a banalidade do mal em Arendt?
Difícil responder .... Depois não sabem por que aumentou o número de arrastões nas praias, de
furto e roubo a pedestres...
Às vezes nos perguntamos onde foi parar este ou aquele adolescente, “você tem visto o/a
fulano/a”? Isso acontece muitas vezes, pois, simplesmente, não temos mais notícias. Supomos
que estão presos, ou que foram forçados a irem para outras áreas, ou mesmo, em última hipótese,
que morreram. É, vida breve... O que fazer se à maioria deles não lhes é dada uma oportunidade...
Digo uma boa oportunidade! Não essas de cursinhos profissionalizantes e/ou empregos
medíocres, que simplesmente os manterão como cidadãos de 2ª, 3ª classe, eternamente na
subalternidade! Muitos desses jovens querem mais da vida! São ambiciosos, são inteligentes!
Não é à toa que buscaram o tráfico! Não é qualquer um que chega lá! Costumo dizer que são os
melhores! Sim, você vê o brilho nos olhos, o sorriso esperto, a fala e o raciocínio rápido! Você
olha e reconhece nele aquele jovem que você gosta de trabalhar! Infelizmente, a porta da
oportunidade que se abriu foi essa que muitos consideram uma vida torta, a do crime. Mas, para
quem tem outro olhar que não o da criminalização, você vê a potência desses adolescentes! Vi
isso, claramente, numa visita que fiz ao Educandário Santo Expedito (ESE), uma unidade de
internação de adolescentes autores de ato infracional (DEGASE). Dividido por alas e facções, lá
conheci o jovem W, de 18 anos, na ala da facção ADA (Amigos dos Amigos). Estava, como
todos os outros, numa cela superlotada com 18 adolescentes, para uma capacidade de 10. Era em
pleno verão carioca, em fevereiro, em Bangu, zona oeste do Rio de Janeiro, local onde a
temperatura chega fácil a 40º ou mais. Local quente, fechado, insalubre, úmido, com um cheiro
de “murrinha” que te penetra, propício a proliferação de doenças de pele e da presença de bichos
(ratos, baratas, lacraias). Conversando com o grupo da cela, W se destacou e logo percebi que
deveria ser uma liderança ali. Muito bem articulado e inteligente, de fala dura e direta, olho no
olho, nos contou o que estava se passando ali, como eram tratados, e da raiva que sentiam por
estarem naquele lugar e com esse tipo de tratamento:
- Temos família! Não temos que ficar levando tapa na cara, chinelada na bunda, spray de
pimenta! A gente não tem que aguentar isso! Estamos cheios de ódio! Vamos fazer rebelião!
Saí dali impressionada com W, pensando que era uma vida que estava sendo desperdiçada
naquele lugar, como tantas outras vidas de jovens em cumprimento de medidas no DEGASE. Em
327
uma outra oportunidade, três meses depois (maio/16), voltamos ao ESE, numa visita de inspeção
do CEDCA, pois os números da superlotação só aumentavam. Voltei ao alojamento da facção
ADA e procurei por W. O encontrei, só que desta vez estava abatido, sem aquele brilho nos
olhos, de cabeça baixa, quase sem falar... O que teria acontecido? Fiz questão de dizer que me
lembrava dele e do quanto ele era bom (bom no sentido de ser esperto, sagaz, inteligente)! Ele só
esboçou um leve sorriso... Sim, é o que acontece com muitos ali, se deprimem...
Procurei saber mais informações sobre ele, que tipo de crime tinha cometido e por quanto
tempo ficaria preso, visto que já tinha 18 anos294. Queria fazer alguma coisa por ele, tirá-lo de lá!
Um defensor público, amigo, pesquisou e me informou que W havia cometido latrocínio e que
ainda ficaria preso por um tempo! Senti muito por ele, e por estarmos perdendo tantos Ws para
um sistema perverso! São vidas que estão se perdendo nesses cárceres de gastar gente, nova
gente!
Nesse mesmo dia de hoje, que escrevo esta parte da tese, li o artigo do El País intitulado
“Marcos morreu”, um ano após de ter sido escrito, não sei por que estava perdido entre tantos
outros que pesquisei. Marcos, então com 17 anos, era um rapaz que a escritora conheceu em uma
unidade para adolescentes infratores reincidentes, em São Paulo, em 2015, e já era sua terceira
passagem pela Fundação por crime análogo ao tráfico. Ele morreu com um tiro no peito numa
tentativa de assalto, em meados de 2016. E é com esse último parágrafo do artigo de Maria
Martin que encerro este capítulo da tese.
Meu sonho era escrever para o jornal um diário sobre os desafios do jovem para se
reintegrar na sociedade, nunca sobre sua morte. Meu chefe me consola com uma frase do
jornalista e ex-presidente da República italiano Sandro Pertini: "Às vezes na vida temos
de saber lutar não só sem medo, mas também sem esperança 295".
294
No ESE são levados os adolescentes com mais idade, geralmente entre 16 e 17 anos, podendo ficar até os 21 anos,
dependendo da gravidade do ato / crime.
295
Publicado em: http://brasil.elpais.com/brasil/2016/06/29/politica/1467231637_117091.html , acesso em 13/06/17.
328
299
Ambas resoluções e diretriz foram fruto da construção coletiva no âmbito do GT Criança e Adolescente em
situação de rua do CONANDA.
300
As siglas correspondem a: SAS - Secretaria de Atenção à Saude; e SGEP - Secretaria de Gestão Estratégica e
Participativa.
330
O dia 22 de junho de 2009 foi um marco histórico na luta pela promoção, defesa e
garantia de direitos das crianças e adolescentes, em especial dos que se encontram em situação de
rua na cidade do Rio de Janeiro. O Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente
331
(CMDCA Rio) foi o primeiro Conselho de Direitos no Brasil a elaborar e aprovar uma Política
Pública para crianças e adolescentes em situação de rua.
A deliberação 763/2009 - Política Municipal de Atendimento às Crianças e Adolescentes
em Situação de Rua da cidade do Rio de Janeiro foi o resultado de um longo trabalho coletivo,
que envolveu sociedade civil e poder público desde o início de sua formulação em 2008, quando
foi formado um Grupo de Trabalho paritário, constituído por 05 representações governamentais e
05 não governamentais, no âmbito do CMDCA Rio. Além das diversas perspectivas
representadas por estas instituições implicadas na elaboração da política, essa também privilegiou
demandas das crianças e dos adolescentes em situação de rua, através da participação dessas no
Fórum de Meninos e Meninas da Rede Rio Criança, quando debateram e elegeram suas propostas
para a referida política.
Histórico
O início dos debates sobre a importância da formulação e implementação de uma política
pública que respondesse, concretamente, às necessidades das crianças e adolescentes em situação
de rua iniciou-se em 2003, no âmbito da Rede Rio Criança (RRC), já quando de sua constituição,
em 2001, nasce com essa missão. Ao longo de 05 anos (2003 a 2008), a RRC desenvolveu todo
um trabalho interno, implicando as instituições e pessoas, nas leituras, reflexão, discussão e
debate sobre a temática, bem como na articulação necessária para que alcançássemos esse
objetivo.
Dessa forma, a Rede Rio Criança foi um ator fundamental na articulação e na defesa do
tema das crianças e adolescentes em situação de rua nos espaços de organização política da área
da infância e adolescência. As Instituições que compõem a RRC, em sua maioria, sempre
estiveram representadas no Fórum Municipal dos Direitos da Criança e do Adolescente - Fórum
DCA Rio (espaço de articulação de instituições da sociedade civil) e nas Assembleias do
CMDCA, contribuindo com os debates na perspectiva de formulação de políticas públicas e
programas que garantissem direitos, fortalecendo também a participação das crianças e
adolescentes nesses espaços.
Durante o período de aproximadamente 05 anos, a RRC garantiu a representação de
algumas de suas Instituições enquanto Conselheiras em várias gestões nos Conselhos de Direitos
Municipal e Estadual da Criança e Adolescente (CMDCA e CEDCA), por considerar importante
a representação nesses espaços, mas também enquanto estratégia para garantir a abordagem do
332
tema e da formulação de uma política pública específica para crianças e adolescentes em situação
de rua. As instituições da RRC se fizeram presentes nesses espaços, defendendo a realização de
diagnósticos que norteassem a elaboração de políticas que beneficiassem aqueles que
prioritariamente necessitam de ações emergenciais e contínuas. Vários percalços surgiram no
caminho, inclusive divergências de concepção com o poder executivo municipal quanto aos
princípios norteadores da política e na conceituação desse grupo social. Ao longo do processo,
tivemos também outras conquistas como a Política de Abrigos, o Plano Municipal de
Enfrentamento à Violência Sexual e, finalmente, a Política Municipal de Atendimento a Crianças
e Adolescentes em Situação de Rua no Rio de Janeiro.
Objetivos
Os dois objetivos centrais da Política Municipal de Atendimento às Crianças e
Adolescentes em Situação de Rua consistem em “Garantir os Direitos Humanos de crianças e
adolescentes em situação de rua”; e “Promover e assegurar a interlocução e a integração das
diversas Secretarias de Governo e Sociedade Civil Organizada. Importante a articulação entre os
Poderes Executivo, Legislativo e Judiciário na garantia de direitos de crianças e adolescentes do
Município do Rio de Janeiro, especialmente das que se encontram em situação de rua”.
O conceito de “situação de rua” adotado na referida Política (Deliberação 763/2009 do
CMDCA Rio) foi o seguinte:
Situação de rua é uma complexa relação dinâmica que envolve “casa – rua – abrigo –
rua – projetos sociais / instituições – rua – família / comunidade – rua”, em que a rua, em
diferentes graus, ocupa um lugar de referência predominante e um papel central em suas
vidas.
Visando monitorar e avaliar o cumprimento das diretrizes (em anexo), coube ao CMDCA
Rio instituir uma comissão paritária, composta por conselheiros, instituições da sociedade civil e
secretarias de governo conselheiras (ou não), com a finalidade de elaboração de diagnóstico,
plano de aplicação, avaliação e monitoramento. A comissão foi instituída no ano seguinte, em
2010, mas funcionou por apenas 02 anos.
As 64 diretrizes que constam na política de rua, foram fruto de intensos e calorosos
debates no interior do grupo de trabalho, e que à época foram consideradas inovadoras e que
respondiam às principais necessidades desse público. Passados 08 anos desde a deliberação da
Política Municipal de Atendimento às Crianças e Adolescentes em situação de rua pelo CMDCA
333
Rio, das 64 diretrizes, apenas uma (01) foi de fato implantada: o Programa Saúde da Família Sem
Domicílio, atualmente denominado Consultórios na Rua. Não obstante, mesmo sabendo da
necessidade de revisão e readequação de algumas dessas diretrizes, e da urgência em garantir
direitos junto a esse público, continuamos na luta por sua implementação e efetivação pelo
Governo Municipal do Rio de Janeiro. A Deliberação 763/2009 do CMDCA encontra-se no
anexo A.
6.2 Nova resolução quebra paradigma na aborgagem social no Rio de Janeiro: a Resolução
64/2016 – Protocolo do Serviço Especializado em Abordagem Social301
301
Produção elaborada pelo GT Criança e Adolescente da Comissão da População de Rua da Câmara Municipal de
Vereadores)
302
Na Prefeitura Municipal do Rio de Janeiro – PMRJ, a secretaria responsável pela política de assistência social está
atualmente nomeada como Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social – SMDS. Manteremos nesse
documento a menção ao nome antigo da Secretaria responsável pela política de Assistência Social.
334
É preciso lembrar que a Resolução nº 20/2011 da SMAS ficou conhecida como uma
política de recolhimento compulsório e internação forçada para a população em situação de rua
que impactou especialmente crianças e adolescentes na cidade do Rio de Janeiro, que por meio de
seu caráter de higienização social contribuiu para a confusão entre assistência social e segurança
pública. Os representantes que integram o grupo de trabalho citado entendem que a questão da
população, sobretudo crianças e adolescentes em situação de rua, é complexa e desafiadora, e não
está de acordo com as formas com que o poder público vem lidando, historicamente, com o
problema. Nesse sentido, o grupo optou por incluir a proposta de adequação da Resolução nº 20
como uma das prioridades de sua agenda política para 2015, visto que essa normativa se impôs
sobre o processo de monitoramento da implementação da Política Municipal de Atendimento às
Crianças e Adolescentes em Situação de Rua, devidamente deliberada pelo Conselho Municipal
de Direitos da Criança e do Adolescente (CMDCA Rio), em 2009, e que tem sido ignorada pelo
governo municipal.
A questão da população em situação de rua é pauta na Câmara Municipal do Rio de
Janeiro desde 2010, quando se constituiu a Comissão Especial da População Adulta em Situação
de Rua. Desde então, a Comissão tem se renovado anualmente, sendo que, no encerramento dos
trabalhos do ano de 2013, deliberou-se pela retirada da palavra “adulta” do nome da Comissão
Pop Rua, a fim de incluir as questões relacionadas às especificidades da população infanto-
juvenil. Em 2015, ela foi instituída na Câmara Municipal pela Resolução 1310, sendo presidida
pelo Vereador Reimont (PT).
No início do ano de 2014, as discussões envolvendo a violação de direitos de crianças e
adolescentes tornaram-se mais frequentes, e, no dia 10 de abril de 2014, foi realizada a audiência
pública na Câmara Municipal de Vereadores “Violência sistemática contra crianças e
adolescentes em situação de rua”, tendo como objetivo abordar uma série de episódios
alarmantes que denunciavam o contexto de violação de direitos que vinham ocorrendo no Rio de
Janeiro. A audiência resultou de uma construção coletiva de organizações, grupos e militantes
atuantes no campo da defesa dos direitos humanos das crianças e dos adolescentes, e mobilizou
diversos segmentos da área. Várias denúncias de violação de direitos da população em situação
de rua foram feitas, especialmente a violência e repressão policial, bem como os maus-tratos em
equipamentos públicos (abrigos).
335
Como desdobramento da audiência pública, foi constituído este Grupo de Trabalho, para
aprofundar as reflexões e o debate no eixo da criança e adolescente da Comissão Pop Rua,
visando sistematizar propostas que visassem cooperar com o aprimoramento das práticas
existentes no município. Com efeito, tais práticas muitas vezes tornam-se vetores de violação de
direitos, pela forma como atingem crianças e adolescentes em situação de rua.
O GT, ao longo desse período (2014 a primeiro trimestre de 2016), se reuniu de forma
sistemática (2 vezes ao mês) para discutir essas questões, em especial os serviços de abordagem
social e de acolhimento institucional no Município do Rio de Janeiro, com a participação social
de diferentes atores.
Cabe salientar que durante o processo de discussão do GT Criança e Adolescente em
situação de rua foi identificada a importância da participação de representantes do órgão gestor
da política de assistência social, do Conselho Municipal de Assistência Social (CMAS) e do
CMDCA Rio. Entretanto, optou-se, num primeiro momento, pela realização de reuniões com a
finalidade de aprofundar o conhecimento sobre abordagem social, recepção, triagem e
acolhimento de crianças e adolescentes, tendo em vista a necessidade de apropriação do conteúdo
das normativas atuais sobre esses temas pelos integrantes do grupo.
Nesse ensejo, o grupo decidiu por iniciar essa apropriação pelos documentos municipais,
a saber: Deliberação CMDCA Rio n° 763/2009 e Resolução SMAS n° 20/2011. Em seguida, o
grupo realizou reuniões para discutir o conteúdo normativo nacional sobre o tema em foco, tendo
sido identificada a aprovação de uma série de dispositivos após a publicação das normativas
municipais mencionadas, em especial as Resoluções do Conselho Nacional de Assistência Social
– CNAS e do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente – CONANDA, que
instituiu o Grupo de Trabalho Criança e Adolescente em situação de rua para discutir e formular
propostas para uma Política Nacional. O conjunto de referências legais traz alterações
significativas para o trabalho voltado para crianças e adolescentes em situação de rua, tanto no
contexto da política de assistência social, quanto ao nível da política de atendimento ao público
da infância e adolescência que é de caráter transversal.
Identificamos a necessidade de atualização da Deliberação CMDCA Rio n° 763/2009, e
da adequação da Resolução n° 20/2011 pelos órgãos competentes, de modo que estas normativas
possam incorporar os avanços significativos operados nos últimos anos.
336
303
Reunião realizada em 28 de maio de 2015, na 1ª Vara da Infância, Juventude e do Idoso, na Comarca da Capital
do RJ.
304
Elaborado ofício da Comissão Pop Rua, datado de 09 de junho de 2015 e entregue à Mesa Diretora do CMDCA.
337
- A abordagem social não deve ser utilizada para promover a condução de adolescentes
para delegacias ou centrais de recepção para fins de sarqueamento, fora em casos de flagrante de
ato infracional e cumprimento de mandato de busca e apreensão;
- É necessário e urgente investir na qualificação profissional daqueles que atuam na linha
de frente das abordagens sociais.
O processo de diálogo iniciado junto à SMDS deu-se a partir do dia 15 de outubro de
2015, data da apresentação pública da Proposta de Adequação da Resolução nº 20. Foram
realizadas 04 reuniões do GT com a Subsecretaria de Proteção Social Especial da SMDS, a fim
de fazer avançar as negociações das propostas apresentadas, na busca de concordância entre
pontos que mereciam uma maior discussão, especialmente no que se referia à compulsoriedade.
Dentre as diretrizes em debate que mereceram ser destacadas por seu aspecto controverso
registra-se no artigo 5º, inciso XXXIII, o caso em que a abordagem social só deve solicitar o
apoio policial quando da tentativa de agressão ou risco eminente à equipe ou demais pessoas.
Consideramos que este tipo de abordagem junto à população em situação de rua deve ser
processual e continuada e que, portanto, a intervenção não precisa se dar a qualquer custo,
descaracterizando a ação de proteção social, e fazendo prevalecer ações de caráter
coercitivo/repressivo. Também apresenta uma grande complexidade, ainda no artigo 5º, o §3°,
que prevê os procedimentos para os casos em que a criança e/ou adolescente esteja nitidamente
sob a influência do uso de drogas. Entendemos que esses casos devem ser encaminhados para
atendimento em unidade ou serviço de saúde para avaliação, sendo providenciados os cuidados
mais adequados para cada caso e a notificação dos órgãos competentes. Dessa forma, foi
sustentado que o texto para adequação da normativa não deveria citar o abrigo especializado
como cuidado em detrimento a outros não citados, visto que essa modalidade tem sido
amplamente questionada por razões diversas.
Por fim, com o acolhimento das propostas apresentadas de adequação da Resolução
20/2011 pelo então Subsecretário de Proteção Social Especial, Rodrigo Abel, exaltando que havia
interesse por parte da SMDS nessa questão, após as reuniões travadas pelo GT com esta
Subsecretaria, a nova Resolução (64/2016) foi aprovada e assinada pelo então Secretário
Municipal de Desenvolvimento Social, Adilson Pires (PT), em Cerimônia realizada na Câmara
Municipal de Vereadores, no dia 13 de abril de 2016, e publicada no Diário Oficial no dia 16 de
abril de 2016, revogando a Resolução anterior (20/2011), o que representou uma grande vitória
338
para todos os defensores de direitos humanos, mas, especialmente, para população em situação de
rua, principalmente as crianças e adolescentes. Não obstante, seguimos atentos e firmes para
enfrentar os desafios quanto da implementação e efetivação da Resolução 64/2016, um marco no
atendimento e na abordagem social junto às crianças e adolescentes em situação de rua na cidade
do Rio de Janeiro. Segue, no anexo B, a Resolução SMDS 64/2016 em sua íntegra.
6.3 Nota técnica 001/SAS e SGEP do Ministério da Saúde: diretrizes e fluxograma para a
atenção integral à saúde das mulheres e das adolescentes em situação de rua e/ou
usuárias de crack/outras drogas e seus filhos recém-nascidos
As Diretrizes e Fluxograma da referida nota técnica, por serem muito extensas, não foram
anexadas nessa tese. Estas estão publicadas no site do Ministério de Desenvolvimento Social
(MDS)305.
6.4 O processo de construção das diretrizes para uma Política Nacional de Atendimento às
Crianças e Adolescentes em Situação de Rua306
305
Publicado em: http://www.mds.gov.br/webarquivos/legislacao/bolsa_familia/nota_tecnica/nt_conjunta_
01_MDS_msaude.pdf .
306
Produção elaborada pelo Comitê Nacional de Atenção às Crianças e Adolescentes em situação de rua
341
aos Fóruns, Comitês, Associações e Redes de Promoção e Defesa dos Direitos da Criança e do
Adolescente”, uma diretriz inédita:
Serão apoiadas iniciativas de mobilização de fóruns e redes, em âmbito nacional e
regional, que fazem parte do Sistema de Garantia de Direitos, com foco na estruturação e
fortalecimento da rede de atenção às crianças e adolescentes em situação de rua, através da
formação de um Comitê Nacional.
Reunidos em Fortaleza, em setembro do mesmo ano, a coordenação da CNER e
representantes do MNMMR, da RRC, do Fórum Nacional da População de Rua, Fórum Nacional
de Prevenção e Erradicação do Trabalho Infantil, Comitê Nacional de Enfrentamento à Violência
Sexual Contra Crianças e Adolescentes e Fórum Nacional dos Direitos da Criança e do
Adolescente debateram e aprovaram as linhas gerais de um projeto coletivo para construir
subsídios para a formulação de uma política nacional de atendimento à criança e ao adolescente
em situação de rua. A proposta foi submetida ao Edital e aprovada no final de outubro do mesmo
ano. Em dezembro, o Convênio foi celebrado entre a Associação Beneficente O Pequeno
Nazareno e a SDH/PR, tendo como objeto:
Contribuir com a formulação de uma política pública para crianças e adolescentes em
situação de rua no Brasil a fim de garantir a efetivação dos seus direitos fundamentais,
especialmente a convivência familiar e comunitária a partir da estruturação de uma rede
nacional de atenção à criança e ao adolescente em situação de rua e da composição de um
Comitê Nacional.
Em 20 de fevereiro de 2013, os primeiros passos foram dados para concretização das
metas e etapas estabelecidas no projeto. A primeira delas, mobilizar a sociedade civil através das
redes locais e nacional, cujo foco era a criança e o adolescente em situação de rua, com o objetivo
de estruturar uma rede e iniciar um processo de escuta da sociedade no levantamento de subsídios
para uma política nacional.
Entre 14 a 16 de agosto de 2013, 60 especialistas participaram do Seminário Nacional de
Estruturação da Rede de Atenção à Criança e Adolescente em Situação de Rua, realizado em
Brasília. Estavam presentes militantes, estudiosos, educadores e técnicos que atuam
especificamente com crianças e adolescentes em situação de rua, além de adolescentes de vários
estados com vivência em situação de rua.
342
O seminário debateu e aprovou 50 propostas nas mais diversas áreas temáticas com
destaque para assistência, saúde, educação, desporto e lazer, cultura, segurança pública,
planejamento, entre outros. Também elegeu 11 representantes da sociedade civil para compor um
comitê cuja missão era conduzir o processo de estruturação da Rede Nacional de Atenção às
Crianças e Adolescentes em situação de rua, incluindo a participação de quatro (04) adolescentes,
sendo dois (02) titulares e dois (02) suplentes. Além dos representantes da sociedade civil e dos
adolescentes, o Comitê contou com a participação de uma técnica da Coordenação Geral da
Política do Direito à Convivência Familiar e Comunitária da SDH/PR.
O Comitê Nacional de Atenção às Crianças e Adolescentes em situação de rua foi
formado por redes nacionais e locais de referência na área das 05 regiões do país: Campanha
Nacional Criança Não é de Rua (CNER), Movimento Nacional de Meninos e Meninos de Rua
(MNMMR), Rede Rio Criança (RJ), Rede Inter Rua (RS), Rede Amiga da Criança (MA), Equipe
Interinstitucional de Abordagem de Rua (CE), Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da
República (SDH PR) e 02 adolescentes em situação de rua. Teve o objetivo de contribuir com a
formulação de uma política pública para crianças e adolescentes em situação de rua do Brasil, e
garantir a efetivação dos seus direitos fundamentais. O Comitê Nacional reuniu-se oito (08)
vezes, em dez (10) meses, entre setembro de 2013 e maio de 2014, cinco (05) dessas reuniões
aconteceram de maneira regionalizada e aberta à participação pública, em formato de seminários
regionais: Brasília, Manaus (região norte), Salvador (região nordeste), Goiânia (região centro-
oeste), Porto Alegre (região sul) e Rio de Janeiro (região sudeste). A primeira reunião, em
Brasília, serviu para formulação de um planejamento estratégico para o Comitê. Os seminários
regionais tiveram participação ampla da sociedade civil e Poder Público. A estratégia era
apresentar o conjunto de propostas colhidas no Seminário Nacional e permitir aos participantes se
manifestarem com críticas, vetos, acréscimos ou novas propostas. Grupos de trabalho temáticos
foram formados para garantir a o grande número dos participantes (cerca de 150 pessoas em cada
seminário), entre representantes da sociedade civil e do governo.
Ao final do processo, o Comitê Nacional tinha 141 propostas, sendo 59 sugestões dos
próprios adolescentes, construídas coletivamente por 786 participantes, destes 301 eram
representantes de organizações governamentais, de todas as regiões do Brasil, da agora
consolidada Rede de Atenção à Criança e Adolescente em Situação de Rua.
343
Rio Criança (RJ), Rede Amiga da Criança (MA), Rede Inter Rua (RS), Projeto Meninos de Rua
(SP), e 01 adolescente com vivência de rua).
Ao todo, participaram do GT Criança e Adolescente em situação de rua do CONANDA
41 representantes, sendo 08 da sociedade civil, e os demais do poder público (que se revezavam
e/ou eram substituídos), que se reuniram 08 vezes entre agosto de 2015 e novembro de 2016. A
partir de forte mobilização da Sociedade Civil, as reuniões começaram a acontecer a partir do
mês de agosto/15, de forma bimestral. No 1º encontro do grupo: apresentação de todos os
integrantes do grupo e sua atuação na área, definição de cronograma, construção do plano de ação
e metodologia de trabalho. Na 2ª reunião: alinhamento da produção acumulada pelos Ministérios
e pela Sociedade Civil – Marcos, serviços, estudos, subsídios. Apresentaram-se o Ministério de
Desenvolvimento Social, o Ministério da Saúde e o Ministério da Educação, cada qual
apresentando os referidos programas / política setorial de governo junto a esse público. Ressalta-
se que o Ministério da Educação, por ainda não ter um programa que atenda à essa população,
informou à época que havia criado um Grupo de Trabalho específico para tratar a temática das
crianças e adolescentes em situação de rua. Na 3ª reunião, foram propostas diretrizes ao Plano
Decenal do CONANDA, considerando as especificidades do público em questão. A partir desta
reunião, ao observarmos que o tempo seria curto diante da necessidade de discussão e análise de
várias questões no âmbito das políticas públicas para crianças e adolescentes em situação de rua,
deliberou-se pela realização das reuniões do GT em dois dias consecutivos.
A 4ª reunião do GT, que aconteceu em fevereiro de 2016, contou com uma ampla
participação dos representantes dos Ministérios e da Sociedade Civil (28 pessoas), na qual se
discutiu o Conceito de “crianças e adolescentes em situação de rua”, que foi rediscutido e
atualizado307, além de conter as tipificações para “situação de rua308”. Outro ponto discutido foi a
307
De acordo com o documento, Crianças e Adolescentes em situação de rua, são crianças e adolescentes com
direitos violados, caracterizados por sua heterogeneidade (diversidade de gênero, orientação sexual, étnico-racial,
religiosa, geracional, territorial, de nacionalidade, de opção política, entre outros), pela interrupção ou fragilidade
dos vínculos familiares, em situação de pobreza ou pobreza extrema, com dificuldade de acesso às políticas
públicas, utilizando logradouros públicos e/ou áreas degradadas de forma permanente ou intermitente.
308
Tipificação das situações de rua: Situação de trabalho nas ruas; Situação de pedir nas ruas; Situação de abuso e
exploração sexual nas ruas; Situação de uso e abuso de drogas nas ruas; Situação de ameaça de morte nas ruas;
Situação de pernoite ou moradia nas ruas; Situação de pernoite ou moradia nas ruas de criança e adolescente
acompanhado da família. Utiliza-se o termo “situação” exatamente para enfatizar a possível transitoriedade e
efemeridade dos perfis desta população. Ou seja, as crianças e adolescentes que estão em situação de rua podem
mudar por completo o perfil repentina ou gradativamente, em razão de um fato novo. Ocorre também uma forte
interseção das várias situações de rua.
345
309
Publicado em: http://www.mds.gov.br/webarquivos/legislacao/bolsa_familia/nota_tecnica/nt_conjunta_
01_MDS_msaude.pdf , acesso em maio 2016.
310
Resolução n.º 01/2009 CONANDA/CNAS publicada em: http://www.crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/
legis/cnas/res_conj_cnas_conanda_2009_01.pdf
311
O Caderno “Orientações Técnicas: Serviço de Acolhimento Institucional”, lançado pelo CNAS e CONANDA em
18 de junho de 2009, dispõe de uma série de princípios, orientações metodológicas e parâmetros de funcionamento
para o serviço de acolhimento institucional, mas não previu as especificidades para crianças e os adolescentes em
situação de rua no acolhimento. É forçoso reconhecer os limites impostos à permanência de crianças e adolescentes
em situação de rua nas unidades de acolhimento institucional, sendo relato comum entre profissionais e técnicos
deste serviço a desistência do atendimento de sujeitos com este perfil, culminando, na maioria dos casos, no
imediato retorno destes às ruas. Todavia, a não adesão das crianças e adolescentes ao equipamento requer
mudanças de concepção, sejam elas de ordem metodológicas, equipe profissional e de infraestrura. Para acessar na
íntegra o documento, ver em: http://www.crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/publi/conanda/orientacoes_tecnicas_
crianca_adolescente_2009.pdf
347
adolescente em situação de rua e inclui o subitem 4.6. no item 4, do capítulo III do documento
Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento para Crianças e Adolescentes”.
Um dos traços característicos de parte das crianças e adolescentes que estão em situação
de rua é o rompimento ou a fragilidade do cuidado e dos vínculos familiares, o que demanda um
esforço dos diversos órgãos que compõem o Sistema de Garantia de Direitos para fortalecer a
convivência familiar e comunitária, como meio de assegurar à criança e/ou o adolescente seus
direitos fundamentais.
Nesse sentido, o GT considerou que o serviço de acolhimento institucional pressupõe o
estabelecimento de rotinas, horários, regras de convivência, manutenção da higiene, regramento
sobre uso de espaços coletivos e individuais. São fatores que impactam diretamente na dinâmica
com que esses indivíduos se acostumaram ao viver nas ruas, sobretudo para crianças e
adolescentes em situação de longa permanência, cujos referenciais de convivência e relações
sociais foram abalados.
Assim, junto com a definição e conceito de criança e adolescente em situação de rua, foi
proposto, no âmbito da Resolução Conjunta 01/2016, a inclusão de um capítulo no documento de
orientações técnicas, trazendo subitem para contemplar a atenção especializada à CASR em
medida de acolhimento institucional, sem que haja, todavia, segregação, isolamento e
discriminação, como enfatiza o próprio documento. O texto inclui dois parágrafos introdutórios,
um tópico sobre metodologias e formas de oferta, e finaliza com 13 pressupostos para o trabalho
com CASR no acolhimento institucional. A referida resolução está disponível, na íntegra, no
Anexo C.
Dois outros documentos (produtos) foram apresentados na Oficina promovida pelo MDS,
nos dias 10 e 11 de novembro, que teve o objetivo de discutir novas ofertas de atendimento
socioassistencial às crianças e adolescentes em situação de rua, a qual foi a última atividade de
participação coletiva do GT Cri/Adol Rua do CONANDA. A oficina contou com a participação
de cerca de 50 representantes de instituições e especialistas no tema de todo o país, e integrantes
do Sistema Único de Assistência Social, na qual o GT apresentou e discutiu suas propostas
elaboradas nesse período para crianças e adolescentes em situação de rua (CASR), quais sejam: a
Conceituação, o Acolhimento Institucional, o Centro de Referência Especializado, e as
Orientações Técnicas para Educadores Sociais em Programas, Projetos e Serviços com CASR.
348
312
Após o golpe que destituiu a Presidenta Dilma Rousseff, o Ministério de Desenvolvimento Social e Combate à
Fome (MDS) passa a ser nomeado com Ministério do Desenvolvimento Social e Agrário.
313
Publicada em: http://www.mdh.gov.br/sobre/participacao-social/conselho-nacional-dos-direitos-da-crianca-e-do-
adolescente-conanda/resolucoes/resolucoes-1
349
A Educação Social de Rua (ESR) se constitui em uma ponte entre a exclusão social em
que vivem as crianças e os adolescentes em situação de rua e a realização dos
seus direitos humanos, sociais, políticos, culturais, econômicos. Tem enquanto
pressuposto os ensinamentos de Paulo Freire (1967), que pode ser considerado um
grande inspirador da Pedagogia Social. Para ele, a pedagogia social caracteriza-se como
um projeto de transformação política e social visando ao fim da exclusão e da
desigualdade, voltada, portanto, para as classes populares. A Educação Social tem papel
fundamental no processo de mudança. Não é um papel abstrato, é um papel construído
socialmente que implica na análise da mudança e da estabilidade como expressões da
forma de ser da estrutura social, que se lhe oferece como campo de seu fazer, estrutura
social que é obra dos homens e que, se assim for, a sua transformação será também obra
dos homens (Freire, 1979:47-48). Ela é orientada por uma proposta político-pedagógica
de trabalho que, por sua vez, se caracteriza no espaço de uma atividade educativa, mas
também política, junto às crianças e adolescentes em situação de rua, propondo que estes
desenvolvam coletivamente suas próprias formas de aprender, explicar e se posicionar
diante das relações da vida social, para que elas exerçam seu poder de decisão que
conduzam ações de transformação social.
A ESR busca eliminar a cultura da indiferença e instaurar uma nova cultura, a cultura da
solidariedade que possa neutralizar a banalização da vida à qual as elites brasileiras se
acostumaram. É uma pedagogia que se arrisca na aventura de construir o novo, o
inusitado, o saber militante, invadindo e desinstalando o saber burocrático, intolerante e
arrogante. Determina, dessa forma, tanto o seu papel como seus métodos e técnicas de
ação para a conscientização dos indivíduos com quem se trabalha, enquanto com eles
também se conscientiza.
A Educação Social de Rua se dá através do encontro dos Educadores Sociais com os
meninos e meninas em situação de rua, através do estabelecimento de vínculos, da
criação de laços de amizade e confiança, buscando a construção coletiva de um projeto
de vida com eles e para eles315.
rua, pois essa conquista teve entre seus principais defensores e articuladores a liderança do
MNMMR.
Passados 27 anos desde que a lei foi sancionada, o ECA para muitos ainda é um estranho,
para outros precisa ser revisto ou é o grande vilão da história, pois é considerado o defensor de
“bandidinhos”, dos “menores”. Os inúmeros projetos de lei prevendo a redução da maioridade
penal e o aumento do tempo de internação dos adolescentes autores de ato infracional exigem
alterações no ECA e, apesar de muita polêmica em torno do tema, a maior parte da sociedade é
favorável à redução. Acreditamos que neste cenário de tantos retrocessos e redução de direitos
esta matéria tem grande chance de ser aprovada na Câmara e no Senado Federal. No entanto,
apesar das margens que o oprimirem, o Estatuto da Criança e do Adolescente é uma lei
reconhecida internacionalmente de respeito aos direitos de crianças e adolescentes, sem distinção.
As flores apresentadas neste último capítulo da tese são para exemplificar que mesmo
diante de uma realidade dura e sombria, o movimento de resistência tem que abrir brechas, tem
que ser como uma minhoca que faz o seu caminho por dentro da terra e a oxigena. A militância
precisa disso pra não sucumbir... E continuamos sabedores de que ainda teremos um longo
caminho a percorrer para se conseguir vislumbrar um mundo melhor, mais florido e possível para
todos...
CONSIDERAÇÕES
Conclusão? Considerações finais? Sinceramente, tenho dúvidas se esta tese deveria ter
conclusão ou considerações finais, visto que temos sido atropelados, a cada dia, por fatos sociais
que desnudam uma realidade cheia de retrocessos e violações. O mais apropriado é fazer apenas
considerações em relação ao que foi apresentado e defendido nesta tese, mas que não são finais...
Muita coisa foi por mim vivenciada ao longo de mais de 25 anos de atuação direta e na
defesa de direitos humanos de crianças e adolescentes, sejam das que estão em situação de rua ou
daquelas que estão nas favelas, periferias e encarceradas, majoritariamente negras e pobres, essas
que são, sistematicamente, as maiores vítimas das práticas e posturas abusivas e violentas de um
poder dominante que os quer fora dessa sociedade, essas que são denominados “os sujeitos
indesejáveis”. E como fazem ao longo de um longo tempo? Recolhendo-as, expulsando-as dos
espaços públicos, dos territórios considerados “nobres”, dos restaurantes e bares, de debaixo das
marquises (que têm sido retiradas dos prédios), das praças, dos ônibus em direção às praias da
zona sul da cidade maravilhosa; prendendo-as, encarcerando-as em verdadeiros campos de
concentração e mesmo eliminando-as fisicamente, pois estas fazem parte daquele grupo
considerado ‘indignos de viver’! O que dizer de tantos horrores?
Foi muito difícil e doloroso escrever esta tese, pois fui colocada frente a frente, inúmeras
vezes, com uma realidade que combatemos o tempo todo. Pesquisar e rememorar
acontecimentos, fatos que integram essa realidade dura, sombria, perversa, desumana, nos causa
náuseas, indignação, raiva, e também desilusão e desesperança...
Muitos foram os caminhos e descaminhos, as dificuldades e desafios que se apresentaram,
e as contradições, intrínsecas nesse processo de pesquisa, sobressaltado por uma conjuntura
política de graves e perigosos retrocessos que atropelou e golpeou a democracia e o estado de
direito no país. O que para mim no início dos estudos, em 2010, época da qualificação de
mestrado, já indicava a possibilidade da presença de um tipo de fascismo, que abordei, muito
ainda de forma incipiente, através do conceito de “fascismo societal”, de Boaventura Santos, ao
decidir entrar para o doutorado, em meados de 2013, não mais existiam dúvidas. Sim, estávamos
diante de algo muito próximo ao fascismo, apesar da universidade acadêmica ainda resistir.
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Com o avançar do tempo, talvez um ano depois, percebi que existia alguma coisa ainda
além, mas que talvez tivesse medo de reconhecer... Foi quando uma velha amiga, companheira de
luta do Movimento Candelária Nunca Mais! e de outros coletivos, me disse: “Não é Fascismo
Márcia! É Nazismo!” Ao ouvir essa afirmação, senti um arrepio que me estremeceu! Sim, era o
que eu não tive a coragem de dizer, mas ela estava certa! Esse era o caminho que eu tinha que
percorrer, caminho esse que tinha, nas práticas abusivas, a presença de algo semelhante ao que
também se manifestou no nazifascismo. Como afirmar isso? Qual a base de sustentação teórica?
Inicialmente pensei que fosse possível através da criação de um novo conceito que
conseguisse expressar o que na teoria não havia referência até então. No entanto, mais
resistências surgiram, só encontrando alguma concordância em raríssimas exceções. A negação
acadêmica fez com que eu perdesse o rumo, o que me paralisou por um ano. Só me reencontrei
quando o que de maior existe em mim, a minha “essência”, falou mais alto e me confirmou o que
sou: Defensora de direitos humanos! E, enquanto tal, não poderia abandonar minhas convicções.
A partir de então retomei as bases da tese, com a certeza que estava no caminho certo. Não mais
em defesa de um conceito, mas buscando as respostas através das práticas e da ideologia que as
atravessa.
Construir as bases da defesa de que na atualidade existe um tipo de ideologia muito
próxima à que esteve presente na Alemanha nazista de Hitler, não foi fácil. Por desconhecer
estudo ou conceito que tenha uma linha de pensamento semelhante ao que defendo nesta tese,
optei por considerar a existência de um tipo de ideologia que apresenta semelhanças com a
ideologia nazifascista que perpassa a sociedade, ora oculta, ora manifestada, principalmente nas
práticas abusivas e posturas do poder dominante direcionadas aos “sujeitos indesejáveis”.
Importante destacar que não me refiro a um tipo de regime político como o instalado na Itália, o
Fascismo de Mussolini, ou na Alemanha, o Nazismo de Hitler. Não é um regime formal, mas traz
em si algumas permanências e semelhanças, especialmente através da ideologia dominante.
Destaco que, como muitos autores, considero o nazismo um tipo de fascismo, pois várias são as
características e categorias que os constituem de forma semelhante, porém, o nazismo incorpora
outra, a raça, a supremacia da raça ariana sobre as demais, o que não encontramos no fascismo,
bem como o direcionamento de práticas abusivas junto a grupos sociais específicos. Por isso, uso
o termo nazifascismo.
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A ampliação do objeto foi necessária, pois incialmente a tese trataria apenas de crianças e
adolescentes em situação de rua, no entanto, as práticas abusivas são também direcionadas a
outros grupos: adolescentes das favelas e periferias e os que estão em cumprimento de medidas
socioeducativas. Dessa forma, defino “sujeitos indesejáveis” como o grupo social composto pelas
crianças e adolescentes em situação de rua, pelas provenientes das favelas e periferias, pelos
adolescentes autores de ato infracional que são apreendidos e encarcerados, e também aqueles
que são alvos da violência letal do Estado, todos, em sua maioria, negros e pobres.
A indicação do referencial teórico de Arendt (2013) foi fundamental para o
desenvolvimento da tese, base para uma melhor compreensão das práticas abusivas. No livro
Heichmann em Jerusalém, que introduz o conceito “banalidade do mal”, a autora Hanna Arendt
aponta e descreve três fases/soluções do Nazismo para a questão dos judeus e outros grupos
indesejáveis: (1ª) Expulsão, (2ª) Concentração e (3ª) Assassinato / Eliminação. A partir dessas
três soluções/fases faço uma analogia com as práticas abusivas do poder dominante que são
direcionadas aos nossos “sujeitos indesejáveis”, quais sejam: (1ª) Recolhimento / Expulsão, (2ª)
Encarceramento / Concentração, e (3ª) Homicídio / Assassinato / Eliminação. Importante explicar
que enquanto na Alemanha nazista as soluções eram dadas como fases em ordem cronológica,
nossas práticas não seguem a mesma lógica, ou ordenamento, podendo ocorrer de forma isolada
ou mesmo simultânea.
Compreender que tipo de ideologia atravessa essas práticas, os referenciais teóricos de
Marx, Chauí (1991) e Lukács (2012) foram importantes, assim como Agamben (2012) e
Gellately (2011). A partir da teoria, as fontes primárias e base de dados pesquisada, associada às
notícias e comentários veiculados na mídia, e toda a pesquisa empírica, foram os principais
elementos de comprovação desta realidade que dá sustentação à hipótese de que um tipo de
ideologia dominante bem próxima ao que foi a ideologia nazifascista está oculta na racionalidade
que sustenta as práticas do recolhimento, do encarceramento e do homicídio, bem como na visão
e nas posturas da sociedade e da mídia em relação às crianças e adolescentes em situação de rua,
das provenientes das favelas e periferias da cidade, dos adolescentes autores de ato infracional e
daqueles que são vítimas da violência letal do Estado, quais sejam: apresentação do contexto
político e das operações de recolhimento de crianças e adolescentes em situação de rua, entre
2001 e 2016; de dados da superlotação nas unidades de internação para adolescentes autores de
ato infracional, do Departamento Geral de Ações Socioeducativas (DEGASE), no período de
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racial entre brancos e negros, acarretou tanto a chaga do racismo, quanto do preconceito e da
discriminação racial. Até os dias de hoje as desigualdades sociais - notadamente as de renda e,
principalmente, a de oportunidades, têm na diferenciação racial sua principal causa.
Uma das dimensões do racismo entranhado em nossas instituições e representações ou
subjetividades é acreditar que a vida desses adolescentes e jovens vale menos, ou não vale a pena
ser vivida. São negros, pobres, favelados, muitos dos quais vivem à margem do Estado de
Direitos, submetidos às práticas cotidianas do Estado de Exceção. São constantemente vítimas de
preconceito, perseguidos e criminalizados pela única política pública que se faz presente ao longo
de suas vidas, a política de segurança. As políticas sociais, quando os alcançam, são políticas
compensatórias, pontuais, e que não promovem a vida desses sujeitos. É importante sempre
destacar que é a população negra que mais sofre com a violência letal no país. Isso explica o
porquê muito pouco tem sido feito nos últimos anos para transformar essa triste realidade. A falta
ou o desinteresse em desenvolver políticas que, de fato, respondam às reais necessidades dessas
pessoas é também uma forma de, invariavelmente, matá-las, deixá-las morrer... É como fortalecer
uma política de extermínio.
Desde o golpe que destituiu a Presidenta Dilma Rousseff, em abril de 2016, o país
vivencia grandes retrocessos e redução de direitos conquistados ao longo dos últimos anos, nas
áreas da saúde, assistência social, educação, cultura, trabalho, previdência social. Assistimos
diariamente a uma avalanche de denúncias envolvendo o pessoal do 1º escalão do atual governo,
bem como a imposição de medidas prejudiciais ao país e à classe trabalhadora em benefício do
mercado, do capital financeiro, de interesses internacionais. A conjuntura brasileira, de grave
crise multidimensional (econômica, social, política, ética), reiteradas vezes alarmada pelo
governo e reforçadas pela mídia, abre um perigoso campo para a instalação de forças
reacionárias, de recorte ideologicamente nazifascista. A exaltação do fascismo, de grupos de
extrema direita, encontrou lugar num cenário propício para a violência, o arbítrio e o retrocesso.
Nesse cenário que dividiu a sociedade brasileira, observamos por atos e palavras, sejam nas ruas
ou redes sociais, o descortinar e a incitação do ódio à diferença, da intolerância, da violência.
As políticas públicas adotadas pelo governo municipal do RJ, bem como em outras
grandes metrópoles do mundo, de atendimento à população em situação de rua (mendigos,
desempregados, sem-teto, “menores de rua”, adolescentes negros e pobres provenientes das
favelas, etc.), pouco avançaram em sua filosofia e prática. Em pleno século XXI, observamos
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DIRETRIZES
Esta política implica na adoção das seguintes diretrizes e responsabilidades institucionais:
Secretaria Municipal de Assistência Social
Garantir a permanência de ações de acolhimento sistemáticas, em todas as áreas de concentração de
crianças e adolescentes em situação de rua no Município do Rio de Janeiro, visando a sua saída ativa da
rua. Entende-se por acolhimento, ações sistemáticas com processo pedagógico que incluam respeito à
história de vida de crianças e adolescentes em situação de rua e suas famílias, levando em conta seus
desejos e direitos sociais;
Garantir junto às famílias e/ou referências socioafetivas das crianças e adolescentes em situação de rua,
ações e programas intersetoriais;
Garantir vagas em condições excepcionais e provisórias, em todas as modalidades de acolhimento
institucional para crianças e adolescentes em situação de rua, em consonância com o Art. 92 do ECA, a
Política de Abrigo para Crianças e Adolescentes do Município do Rio de Janeiro - Deliberação nº 201/01,
do CMDCA-Rio, e as Orientações Técnicas: Serviços de Acolhimento para Crianças e
Adolescentes/Secretaria Nacional de Assistência Social/CONANDA, fevereiro de 2008;
Garantir vagas em serviços de acolhimento institucional específicos para famílias em situação de rua, em
consonância com a demanda;
Garantir a existência de Centros de Convivência para crianças e adolescentes em situação de rua,
preservando seu caráter pedagógico e de articulação de serviços e redes sociais, em parceria com a
sociedade civil e/ou com outras secretarias, contemplando as demandas de cada área programática;
Garantir a inclusão das famílias em situação de rua no Programa Bolsa Família e outros benefícios
socioassistenciais;
Garantir a inclusão das crianças e adolescentes que trabalham nas ruas, com ou sem referência domiciliar,
no Programa de Erradicação do Trabalho Infantil – PETI e/ou correlatos;
Garantir na política permanente de formação de todos os servidores desta secretaria, as temáticas sobre os
Direitos Humanos e o Sistema de Garantia de Direitos para Crianças e Adolescentes, bem como
informações sobre acesso à rede de serviços, em consonância com as deliberações do CMDCA-Rio,
visando desenvolver ações/relações baseadas no respeito à cidadania e aos direitos humanos da população
que utiliza as ruas como referência;
Incluir adolescentes, jovens e famílias em situação de rua em programas de capacitação para o mundo do
trabalho e geração de renda, em parceria com a Secretaria Municipal de Trabalho e Emprego;
Possibilitar à população que se encontra em situação de rua ou inserida nos diversos serviços de
acolhimento institucional, o retorno aos seus Municípios ou Estados de origem;
Buscar junto à Secretaria Municipal de Trabalho e Emprego prioridade para as famílias de crianças e
adolescentes que estejam em situação de rua nos programas de habitação do município.
Ampliar os espaços de Saúde onde o adolescente é o centro das atenções (como o Adolescentro, atual
programa da SMSDC), envolvendo a criança e o adolescente em situação de rua;
Utilizar diversos instrumentos de coleta de informações já existentes para identificação de situações de
violência contra as crianças e adolescentes em situação de rua;
Promover estudos na área de Saúde Pública que possibilitem a análise da situação de saúde desta
população;
Criar equipes de Saúde da Família para atendimento da população sem domicílio.
Guarda Municipal
Garantir, na política permanente de formação de todos os funcionários da Guarda Municipal, as temáticas
sobre os Direitos Humanos e o Sistema de Garantia de Direitos para Crianças e Adolescentes, em
consonância com as deliberações do CMDCA-Rio;
Estabelecer um programa de capacitação para todos os profissionais da Guarda Municipal, para as ações
de proteção a crianças e adolescentes em situação de rua;
Priorizar o acesso de crianças e adolescentes em situação de rua aos programas culturais e esportivos da
Guarda Municipal, tais como Projeto Judô e Conhecendo os Corredores da Quinta, entre outros.
Articular com os demais operadores do Sistema de Garantia de Direitos ações e serviços, de modo
integrado e complementar, com o objetivo de promover e garantir os direitos das crianças e adolescentes,
notadamente das que se encontram em situação de rua, e ampliando seu acesso à cidade (equipamentos
culturais, educacionais, de lazer e de expressão autônoma), de maneira a contribuir com uma melhoria na
qualidade vida;
Pautar a questão da criança e do adolescente em situação de rua, na sua complexidade, nos diversos
espaços de fomento de políticas voltadas a crianças e adolescentes;
Propor, acompanhar e monitorar recursos que contemplem ações voltadas para a garantia de direitos de
crianças e adolescentes em situação de rua no Orçamento Criança;
Fomentar e garantir a participação de crianças e adolescentes na implementação desta política pública;
Promover espaços permanentes de diálogos entre profissionais que desenvolvem ações com crianças e
adolescentes em situação de rua, suas famílias e comunidades, de modo a fortalecer a troca de
experiências, metodologias e o trabalho articulado em redes sociais;
Garantir uma política permanente de sensibilização, formação e capacitação dos diversos atores sociais
nas temáticas sobre os Direitos Humanos e o Sistema de Garantia de Direitos para Crianças e
Adolescentes, bem como informações sobre acesso à rede de serviços, em consonância com as
deliberações do CMDCA-Rio, contemplando uma abordagem temática que vise desenvolver
ações/relações baseadas no respeito à cidadania e aos direitos humanos da população que utiliza as ruas
como referência;
Fomentar e incentivar espaços permanentes de organização, debate e articulação de crianças e
adolescentes em situação de rua e suas famílias, voltados a garantir o seu protagonismo, em parceria com
o poder público municipal, tendo recursos atrelados à implementação desta política.
Monitoramento e Avaliação
O CMDCA-Rio deverá instituir uma comissão paritária, composta por conselheiros, instituições da
sociedade civil e secretarias de governo não conselheiras, no prazo de até 120 dias a partir da publicação
da presente política, com a finalidade de elaboração de diagnóstico e planos de implementação, avaliação
e monitoramento.
RECOMENDAÇÕES
Destacamos as seguintes recomendações:
Recomenda-se a utilização do conceito “em situação de rua” como definido nesta política, nas ações e
diagnósticos relativos ao referido público.
A supressão de todo e qualquer ato violento e ação vexatória, inclusive os estigmas negativos e
preconceitos sociais em relação à população em situação de rua.
A Política de Atendimento à Criança e ao Adolescente em Situação de Rua orienta ao CMDCA-Rio que
encaminhe propostas de peça orçamentária à Chefia do Poder Executivo para incorporação no processo
legislativo de elaboração da Lei Orçamentária (Plano Plurianual e Lei Orçamentária Anual).
368
ATO DO SECRETÁRIO
RESOLUÇÃO SMDS Nº 64 e 12 DE ABRIL DE 2016316.
O Secretário Municipal de Desenvolvimento Social, no uso das atribuições que lhe são conferidas pela
legislação e,
CONSIDERANDO a Lei Orgânica da Assistência Social nº 8.472, de 7 de Dezembro de 1993, e suas
alterações;
CONSIDERANDO a Resolução nº 145 do Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS, de 15 de
outubro de 2004, que aprova a Política Nacional de Assistência Social;
CONSIDERANDO a Resolução nº 130 do Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS, de 15 de
julho de 2005, que aprova a Norma Operacional Básica do Sistema único de Assistência Social;
CONSIDERANDO a Resolução nº 269 do Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS, de 13 de
Dezembro de 2006, que aprova a Norma Operacional Básica de Recursos Humanos do Sistema Único de
Assistência Social;
CONSIDERANDO a Resolução nº 109 do Conselho Nacional de Assistência Social – CNAS, de 11 de
Novembro de 2009, que aprova a Tipificação Nacional de Serviços Socioassistenciais;
CONSIDERANDO o Decreto Federal nº 7.053, de 23 de Dezembro de 2009, que institui a Política
Nacional para População em Situação de Rua;
CONSIDERANDO a Deliberação nº 763/09 do Conselho Municipal dos Direitos da Criança e do
Adolescente, que institui a Política de Atendimento às Crianças e aos Adolescentes em Situação de Rua;
CONSIDERANDO a cartilha elaborada em agosto de 2014 pelo Comitê Nacional de Atenção à Criança e
ao Adolescente em situação de Rua- “Subsídios para elaboração de uma política nacional de atenção à
criança e ao adolescente em situação de rua”;
RESOLVE:
Art. 1º. Fica criado o Protocolo do Serviço Especializado em Abordagem Social no âmbito das ações de
Proteção Social Especial de Média Complexidade vinculada a Secretaria Municipal de Desenvolvimento
Social, cabendo a todos os profissionais envolvidos nessas ações o cumprimento do disposto nesta
Resolução.
316
Publicada em: http://doweb.rio.rj.gov.br/ler_pdf.php?edi_id=3078&page=28 , Diário Oficial do Município do
Rio de Janeiro.
369
Parágrafo Único. Para efeitos desta resolução são consideradas pessoas em situação de rua as crianças,
adolescentes, jovens, adultos, idosos e famílias que possuam em comum a pobreza extrema, os vínculos
familiares interrompidos ou fragilizados, a inexistência de moradia convencional regular, e que utiliza os
logradouros públicos e as áreas degradadas como espaço de moradia e sustento, de forma temporária ou
permanente, bem como as unidades de acolhimento para pernoite ou como moradia provisória,
observando-se as considerações estabelecidas pelo Comitê Nacional de Atenção à Criança e ao
Adolescente em Situação de Rua, para esse público em específico.
Art. 2º. O Serviço Especializado em Abordagem Social é uma ação da Proteção Social Especial de Média
Complexidade, localizado nos Centros de Referência Especializados de Assistência Social - CREAS, em
serviços referenciados aos CREAS e no Centro de Referência Especializado para População em Situação
de Rua - CENTRO POP, possuindo como locus de atuação os logradouros da cidade do Rio de Janeiro.
I – Construir o processo de saída das ruas e possibilitar condições de acesso à rede de serviços e
benefícios assistenciais;
II - Identificar crianças, adolescentes, adultos, famílias e idosos com direitos violados, a natureza das
violações, as condições em que vivem, estratégias de sobrevivência, procedências, aspirações, desejos e
relações estabelecidas com a rua e com as instituições considerando a história de vida destes usuários.
III – Promover ações de sensibilização para divulgação do trabalho realizado, direitos e necessidades de
inclusão social e estabelecimento de parcerias;
IV - Atender a população em situação de rua através do Serviço Especializado de Abordagem Social da
Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social, objetivando o resgate da cidadania, autonomia,
emancipação e reinserção familiar e/ou comunitária;
V - Identificar as áreas de concentração de situações de exploração sexual e de trabalho infanto-juvenil no
âmbito do município do Rio de Janeiro;
VI - Promover a proteção integral através da escuta qualificada e inserção em programas sociais da
Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social e demais políticas intersetoriais;
Art. 4º. São consideradas Diretrizes e Princípios do Protocolo do Serviço Especializado em Abordagem
Social:
I - Promoção da cidadania dos indivíduos e respeito à dignidade do ser humano;
II – Promoção da convivência e reinserção familiar e comunitária;
III – Não pactuação com qualquer forma de discriminação por motivo de gênero, religião, faixa etária,
orientação sexual, origem étnica ou social dentre outras;
IV – Igualdade de direitos no acesso ao atendimento;
V – Garantia da participação da população, por meio de organizações representativas, na formulação das
políticas e no controle das ações;
VI – Sensibilização da população quanto à mudança de paradigmas culturais concernentes aos direitos
humanos, econômicos, sociais e culturais da população em situação de rua;
370
VII – Incentivo à capacitação de profissionais para atuação na rede de proteção às pessoas em situação de
rua, além da promoção de ações educativas permanentes para a sociedade.
Art. 5º. São considerados procedimentos do Serviço Especializado de Abordagem Social, devendo ser
realizados pelas equipes do CREAS (Equipe Técnica e Equipe de Educadores) e pelos demais serviços
referenciados aos CREAS e CENTROS POP:
I - Mapear mensalmente o território com vistas à elaboração de diagnóstico sócio territorial sinalizando
sobre a identificação de cenas de uso de drogas, exploração sexual infanto-juvenil, trabalho infantil dentre
outras violações de direitos;
II - Acionar os órgãos do Sistema de Garantia de Direitos, em caso de identificação de situações graves
que demandem ações em conjunto, visando discutir a melhor forma de atuação, previamente à realização
da ação de abordagem;
III – Realizar abordagem continuada, programada e permanente, visando estabelecer uma escuta ativa,
que favoreça o fortalecimento de vínculos para conhecer a pessoa em suas peculiaridades e história de
vida, priorizando os casos envolvendo crianças, adolescentes, idosos e pessoas com deficiência;
IV - Sensibilizar a população em situação de rua para a adesão às ofertas dos serviços socioassistenciais,
orientando-a sobre os riscos de permanência nas ruas, e realizar os devidos encaminhamentos para a Rede
Socioassistencial, a partir do aceite do usuário;
V - Ofertar acolhimento como medida protetiva excepcional e provisória, em consonância com as normas
vigentes;
VI - As equipes deverão proceder aos encaminhamentos monitorados a partir da consolidação da
referência e contra referência dos usuários junto ao território;
VII - Nos casos de emergência a equipe deverá solicitar o Serviço de Atendimento Móvel de Urgência –
SAMU;
VIII - Os casos de necessidade de atendimento de urgência de saúde deverão ser direcionados às unidades
de atendimento de saúde no território da abordagem, de acordo com a demanda do usuário;
IX – Verificando-se a necessidade da aplicação de medidas protetivas, acionar o Conselho Tutelar,
facultando-se o acolhimento emergencial quando inviabilizada a atuação desse órgão, hipótese em que
deverá ser observado o art. 93 do Estatuto da Criança e do Adolescente;
X – Em Caso de ausência de documento que comprove o vínculo familiar entre a criança ou o adolescente
e o terceiro que o acompanha, e havendo possível situação de violação de direitos, encaminhar a todos
obrigatoriamente ao Conselho Tutelar do território para as providências cabíveis;
XI - Realizar o Cadastro Único do Governo Federal e/ou o encaminhamento as demais políticas públicas a
esta população e considerar que se trata de ferramenta fundamental ao acompanhamento da população,
buscando qualificar o acompanhamento socioassistencial;
XII – Participar de reunião periódica com equipe dos CREAS, Centros POP e CDS's para supervisão do
trabalho realizado e discussão das especificidades da ação de abordagem e avaliação, segundo as diretrizes
do SUAS e da SMDS;
371
XIII – Participar de reuniões periódicas a serem organizadas pelos CREAS, Centros POP, CDS's e os
integrantes da rede dos serviços socioassistenciais de proteção social básica e proteção social especial;
serviços de políticas públicas setoriais; sociedade civil organizada, órgãos do Sistema de Garantia de
Direitos; instituições de Ensino e Pesquisa; serviços, programas e projetos de instituições não
governamentais e comunitárias para mobilização, articulação e definição de fluxos locais, sem prejuízo da
discussão dos casos de crianças e adolescentes em situação de rua pelos atores competentes;
XIV - Registrar diariamente em banco de dados todas as informações contidas na ficha de abordagem,
sistematizando mensalmente as informações, conforme instrumento específico da SMDS;
XV - Participar de reuniões com a rede local e fóruns intersetoriais para fortalecimento do trabalho
realizado, estudo de caso, sensibilização para ressignificação da situação de rua e discussão de
metodologias de enfrentamento para essa questão;
XVI – Articular e acionar os recursos necessários ao atendimento da população em situação de rua,
através da interlocução com a rede socioassistencial;
XVII – Promover e implementar as articulações intersetoriais, governamentais e não governamentais, para
discussão da temática da população em situação de rua;
XVIII – Elaborar relatórios de diagnóstico do território e respostas às solicitações do Sistema de Garantia
de Direitos, dentre outros;
XIX – Acionar os órgãos do Sistema de Garantia de Direitos, sempre que necessário;
XX - Atender as demandas oriundas da ouvidoria da SMDS e outros órgãos, com envio de relatório
informando os encaminhamentos dados aos casos, utilizando a ouvidoria como ferramenta de acesso às
demais políticas intersetoriais, desde que sejam competentes da Proteção Social Especial de Média
Complexidade;
XXI – Elaborar projetos voltados para as pessoas em situação de rua, conforme diretrizes da Proteção
Social Especial de Média Complexidade da SMDS e normas pertinentes;
XXII – Organizar e participar de fóruns, seminários e eventos sobre o tema e participar de capacitação em
temas afins;
XXIII – Solicitar aos CREAS, Centros POP e CDS's da área de abrangência os recursos materiais e
humanos necessários ao desenvolvimento das ações planejadas;
XXIV – Compartilhar as informações, por meio eletrônico ou físico, dos casos atendidos com a equipe do
CREAS do local da referência familiar da criança ou adolescente, realizando estudos de casos de forma
conjunta, de modo a assegurar a referência e contrarreferência do atendimento prestado;
XXV – Nos casos de ausência de documentação dos usuários a equipe deverá encaminhá-los para os
órgãos competentes, com vistas à retirada de documentos ou 2ª via;
XXVI - Na abordagem às famílias em situação de violação de direitos, informar sobre as consequências
legais da situação e encaminhar relatório ao conselho tutelar da área de abrangência para providências
cabíveis;
XXVII – Àqueles que aderirem a proposta ao acolhimento institucional, deverão ser encaminhados às
Centrais de Recepção de Acolhimento, de acordo com o perfil;
372
Art. 6º. São atribuições dos Técnicos do Serviço Especializado em Abordagem Social e também daqueles
que atuam em unidades referenciadas aos CREAS:
I – Planejar as atividades a serem realizadas, observando o mapeamento e pré-diagnóstico realizado para
execução das ações de Abordagem de rua;
II – Participar das ações de abordagem;
III – Assessorar e subsidiar teórico-metodologicamente o trabalho realizado pela equipe de educadores
sociais;
IV – Realizar visitas domiciliares, quando necessário;
V – Prestar atendimento socioassistencial individual ou grupal dos usuários;
VI – Participar de reuniões periódicas relativas ao serviço de abordagem;
VII – Elaborar plano de intervenção junto aos usuários atendidos, bem como acompanhar as intervenções
realizadas;
VIII – Elaborar relatórios circunstanciados acerca da denúncia de violação de direitos recebida, e
encaminhá-los para a rede de proteção social e ao sistema de defesa e garantia de direitos;
IX – Realizar articulações com outras instituições objetivando viabilizar o atendimento dos usuários;
X – Realizar estudos de casos e elaborar relatórios técnicos;
Art. 7º. São atribuições da equipe de educadores sociais do Serviço Especializado em Abordagem Social:
I – Mapear as áreas de concentração de população em situação de rua;
II – Abordar o usuário conforme metodologia estabelecida pelo Serviço de Abordagem;
III – Identificar as áreas de concentração de situações de exploração sexual comercial e trabalho infantil
de crianças e adolescentes no âmbito do Município do Rio de Janeiro;
IV – Participar do planejamento das ações junto com a equipe técnica;
XIV – Elaborar, em conjunto com a equipe técnica, o plano de trabalho, bem como executá-lo sob
supervisão do CREAS e Centro POP;
XV – Respeitar o sigilo profissional a fim de proteger, por meio da confidencialidade, a intimidade das
pessoas, grupos ou organizações, a que tenha acesso no exercício profissional;
XVI - Garantir o preenchimento das fichas de coleta e sistematização de dados para a elaboração do perfil
dos usuários para a construção de indicadores sociais que subsidiem a formulação de políticas públicas.
Art. 8º. A Subsecretaria de Proteção Especial será a responsável pela divulgação e acompanhamento da
implantação deste protocolo.
Art. 9º. A elaboração deste protocolo teve a participação dos profissionais das dez Coordenadorias de
Desenvolvimento Social, da Subsecretaria de Proteção Social Especial e da Comissão Especial de
População em situação de rua da Câmara Municipal do Rio de Janeiro.
Art.10. Os atos infracionais e atos ilícitos praticados por adolescentes, adultos e idosos, respectivamente,
serão considerados como esfera de atuação da segurança pública.
Art. 11. Todas as intercorrências alheias a este procedimento operacional padrão deverão ser
encaminhados à chefia imediata.
Art. 12. Integra este Protocolo o Anexo contendo a Ficha de Abordagem-2016 – CREAS-CENTRO POP.
374
Art. 13. Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação, revogadas as Resoluções SMAS nº 20,
de 27 de maio de 2011, a Resolução SMAS nº 33, de 13 de janeiro de 2012, e as demais disposições em
contrário.
ADILSON PIRES
SECRETÁRIO MUNICIPAL DE DESENVOLVIMENTO SOCIAL
375
Capitulo III
4 PARÂMETROS DE FUNCIONAMENTO
..........................................................................................................................
serviços de acolhimento, desde que estas não sejam demasiado estreitas e as condições descritas
anteriormente sejam respeitadas. Ainda, deverá ser garantido o acolhimento da criança ou adolescente em
situação de rua que se encontra nessa condição junto com seus familiares ou responsáveis em Serviço de
Acolhimento para Adultos e Famílias, salvo nos casos em que houver impedimento judicial, quando esta
oferta fizer parte da composição da rede socioassistencial. Concomitante ao período de acolhimento, o
órgão competente deve garantir o acesso a programas habitacionais e socioassistenciais, que promovam a
inclusão social dessa família.
Ressalta-se que o ente federado deverá considerar as especificidades do atendimento a crianças e
adolescentes em situação de rua nos processos de formação continuada e permanente das equipes de
referência dos serviços de acolhimento existentes na redesocioassistencial, independente da oferta de
atenção especializada, de forma a assegurar de igual modo o cuidado integral e humanizado de crianças e
adolescentes em situação de rua naqueles serviços.
A decisão do ente federado quanto à oferta da atenção especializada para crianças e adolescentes
em situação de rua deverá envolver a rede socioassistencial, outras políticas públicas, com ênfase na rede
de educação e saúde; e demais órgãos do Sistema de Garantia de Direitos, em especial os conselhos de
direitos, os Conselhos Tutelares e o Sistema de Justiça.
4.6.2 Pressupostos do trabalho social
Além das orientações específicas previstas neste capítulo, são pressupostos do trabalho
desenvolvido por esses serviços:
a) Desenvolvimento de práticas e intervenções profissionais alinhadas com processos de
construção e reafirmação da identidade, pertencimento, integração e de rompimento com preconceitos e
estigmas das crianças e adolescentes em situação de rua;
b) Registro e manutenção de prontuário atualizado para cada criança ou adolescente atendido no
serviço, contribuindo para a preservação de sua história de vida;
c) Organização da documentação básica da criança e do adolescente para garantir seu acesso a
serviços, programas, projetos e benefícios ofertados pela rede socioassistencial ou demais políticas
públicas;
d) Participação da criança ou do adolescente nos processos e nas atividades do serviço, em
especial no que tange à elaboração do Plano Individual de Atendimento (PIA);
e) Participação das famílias na elaboração do Plano Individual de Atendimento (PIA), assim como
em outros processos e atividades em que seu envolvimento seja possível;
f) Realização de atividades individuais e coletivas com as crianças ou adolescentes e suas famílias,
sempre que o envolvimento destas for possível, fomentando espaços de discussão, planejamento e
avaliação das práticas e rotinas do serviço;
g) Promoção de atividades com as crianças ou adolescentes integradas à comunidade, envolvendo
as famílias, quando isto for possível;
h) Inclusão das crianças e adolescentes na rede de ensino e em cursos, observados seus interesses,
habilidades e aptidões, criando estratégias para o aprendizado escolar e a qualificação profissional, com
vistas ao acesso, permanência e à superação de sucesso escolar e profissionalizante, superando eventuais
dificuldades;
i) Articulação com a rede socioassistencial, em especial com as equipes do Serviço Especializado
em Abordagem Social da Proteção Social Especial de Média Complexidade, na perspectiva do serviço de
acolhimento, facilitando seu ingresso, acolhida e permanência no serviço;
j) Articulação com as diversas políticas públicas, como saúde, educação, profissionalização,
habitação, cultura, lazer e esporte, dentre outras, buscando a inclusão da criança ou adolescente e suas
famílias nos serviços, programas, projetos e benefícios existentes no território, para além do mero
encaminhamento, definindo fluxos e procedimentos com a rede intersetorial, com vistas à garantia de
direitos e a proteção integral;
k) Articulação e integração com os demais órgãos do Sistema de Garantia de Direitos da Criança e
do Adolescente, em especial com o Sistema de Justiça, os Conselhos Tutelares e os Conselhos de Direitos
378
da Criança e do Adolescente, com vistas ao atendimento das demandas das crianças ou adolescentes e suas
famílias, definindo fluxos e procedimentos e realizando discussão e intervenções conjuntas, se for o caso;
l) Garantir que crianças e adolescentes com deficiência recebam atendimento qualificado e
adequado de acordo com suas necessidades de recursos humanos e tecnológicos que garantam igualdade
de condições com as demais crianças e adolescentes; e,
m) Garantir o respeito à orientação sexual e a identidade de gênero de crianças e adolescentes em
todos os espaços e ações dos serviços.
Art. 3º Esta Resolução entra em vigor na data de sua publicação.
Apresentação
o Brasil. Assim, nossa expectativa é que essas 21 Diretrizes fundamentem a gestão da Política de
Assistência Social em todo o país em ofertas que afiancem as seguranças socioassistenciais para todas as
crianças e adolescentes em situação de rua, acompanhadas ou não de suas famílias, que apoiem o
exercício do controle social pelos seus vários olhares, estimulem o exercício correto dos órgãos de
fiscalização e justiça, e, ainda que indiretamente, contribuam para uma mudança gradativa de uma cultura
excludente e discriminatória na sociedade brasileira.
Rodrigo Fuly (Defensoria Pública) - A medida em meio aberto é eficaz, no entanto a medida de
privação de liberdade (internação) é a que prevalece. A Defensoria ajuizou várias Ações Civis Públicas ao
longo do período; juntou o Habeas Corpus. DEGASE tem hoje 03 vezes a sua capacidade.
Sílvio Castro (Sub Diretor Geral do DEGASE) - A porta de entrada está com sua capacidade 04
vezes maior do que aquela que foi projetada.
- Estamos com déficit de funcionários, de vagas que chegam à monta de 10 unidades. Em 03 anos
triplicamos o número de apreensões. Tínhamos 8.300 no ano passado, e esse ano a previsão é chegarmos a
10.000. Estamos chegando num colapso!
Eneida Ramos (Coordenadora das medidas socioeducativas) – É um sistema que não tem
condições de ser apreendido. O Socioeducativo há muito tempo tem sido medida de castigo,
principalmente dos que vêm de outro município. Temos também que falar da questão da facção. Muitos
adolescentes vêm do sistema penal e vão para o socioeducativo. Grande quantidade de meninos de 12 e 13
anos estão em unidade de privação de liberdade.
- A capacidade do JLA é de 64 internos (?), e atualmente tem 248 adolescentes. Só no sábado
chegaram 15 adolescentes de Niterói vindos da DPCA.
Mirthes Bandeira (Pedagoga) – A superlotação está sendo um caos, tudo se torna mais difícil
garantir esse direito ao jovem. Isso angustia o profissional que está lá. É no caos que buscamos sápidas.
Infelizmente, nós temos que receber esses adolescentes. Tem o parecer técnico que pode rever a medida.
O pedagogo que tem que atender a 20, está atendendo a 50, e é claro que este atendimento estará
comprometido!
Miguel Angelo de Souza (Diretor da Unidade de entrada do DEGASE - CENSE GCA) - Em 2010
a média de entrada eram 10 adolescentes diários. Hoje são pelo menos 25 adolescentes diariamente!! Isso
se estabelecendo esse ano. Essa é a unidade que acolhe jovens da rua. Desde aquele jovem que foi pego
com uma peteca de maconha, até aquele que foi preso por estupro, tráfico, etc.
- Abrimos a casa hoje com 248! Daqui a pouco estarão virando morcegos, pois vão ter que dormir
de cabeça pra baixo! Isso é preocupante!
383
- A média atual é recebermos 48% da capital e 46% do interior. Os outros 6% é situação atípicas.
(ele considera interior a região metropolitana, Baixada Fluminense)
- Precisamos da construção de novas unidades. Estamos trabalhando num esgotamento. É uma
tensão constante! Eles não conseguem se relacionar e criar muitos vínculos. Por isso conseguimos resolver
questões de maneira rápida.
(Representante da UBES) – Fazem investimentos após os arrastões, e não investem na prevenção.
Deputado Marcelo Freixo (PSOL) – Tem mais de 01 ano que os adolescentes saem do DEGASE
sem o documento para inseri-los no sistema da Rede Educacional. Documento da série em que se encontra
geralmente ensino fundamental.
Eneida Ramos (Coordenadora das medidas socioeducativas) - Temos problemas graves e
precisamos rever o SINASE, revisitar. A imputação de medidas já começa errado. O adolescente chegou
lá, e numa situação de superlotação, já vai para internação provisória.
- Cultura do aprisionamento! Precisamos enfrentar, pensar alternativas outras não só do
aprisionamento.
- Muita coisa que estava visibilizada até os arrastões.
- Mais de 400 adolescentes em situação de internação provisória.
- Mais de 90% dos jovens estão em defasagem educacional. Ainda estão no ensino fundamental.
Necessário implementar políticas de acolhimento desses jovens. Implementamos de acordo com o
SINASE, política que acolhesse esse jovem, pois muitos entram lá pela primeira vez e sentem-se perdidos.
Política de acolher, incluir dentro do sistema escolar.
- Não podemos ficar só no emergencial apagando incêndios.
Deputado Marcelo Freixo – É inaceitável que os meninos do DEGASE estejam sem o RIOCARD
por causa da empresa de ônibus, que está preocupada com fraudes!! (o jovem para ter o riocard tem que
ter um email)
Dra. Janaína Vaz Candela (Promotora Justiça de Tutela Coletiva do SSE) – Na internação
provisória, na capital do RJ, não temos adolescentes passando do período máximo de 45 dias. Esse é um
problema mais do interior.
- Quanto ao gargalo da porta de entrada do CENSE GCA, pensamos na implementação do Plantão
Judicial. O DEGASE assumi esse encaminhamento dos jovens que vem da DPCA.
- Devemos fortalecer o cumprimento de medidas em meio aberto. Existe dificuldade de
infraestrutura e material humano. Não temos a presença do tutor nos CREAS.
- Fechamos um levantamento mensal, e no último temos:
- Unidades de internação no RJ observamos que do número total 38% são da capital, 30% da
Região Metropolitana, que inclui São Gonçalo; 10% Região dos Lagos; 4% Vale do Paraíba.
384
- Temos que construir novas unidades, e para além, avançar na questão das unidades em meio
aberto. Tem que se ter unidades perto dos municípios dos adolescentes, pois a família fica muito afastada.
- 86% dos internados tem cumprido internação de 04 meses na Capital.
Marcos Fagundes (MP - Coordenador da CAO Infância) – Da última audiência pra cá, pouco
mudou no quadro da superlotação. É muito grave! A medida não é socioeducativa, é medida de
encarceramento! A superlotação inviabiliza a socioeducação; e isso é uma violação de direitos! A
superlotação esbarra com a questão da descentralização / municipalização das medidas. Mas, aquele
município, muitas vezes, não quer a construção de unidades de internação. Esse adolescente é de todos
nós! Eles não têm que ser excluídos, têm que ser incluídos! Descentralização, fiel cumprimento da
medida, maior investimento nas medidas em meio aberto.
DEGASE Educação - O quadro só piora! Só 04 alunos, dos 7.815 alunos internos no DEGASE,
tem o ensino médio concluído! (Relatório DEGASE Educação)
- 05 adolescentes morreram no sistema esse ano. Todos eles eram a 1ª passagem!
Deputado .....- Essa situação se inicia no modelo de segurança pública implementado no RJ, e vem
à reboque. A superlotação traz o que? A facção, por que? Porque ele tem que se proteger. Ele busca a sua
segurança pessoal quando se associa a uma facção.
- Se vc tem superlotação mais facção, o que teremos? Mais áreas de atrito, consequentemente as
05 mortes esse ano!
- Existe uma falha do Estado em garantir segurança desses jovens. Eles estão sob tutela do Estado.
- As medidas em meio aberto são a solução. Se temos a metade dos adolescentes presos por
crimes leves, eles não têm que estar internados. Construção de mais unidades pode ser necessária, mas não
é a solução. Quando falamos em descentralização, estamos estimulando mais construção.
Deputado Waldeck Carneiro (PT) – Quando o jovem vai para o sistema é porque ele já viveu um
processo de violação de direitos. O fenômeno é estrutural.
- Ausência de políticas públicas que garantam direitos, de promoção. Ausência de direitos.
- Banalização das medidas de privação de liberdade. Cultura do aprisionamento. O que é isso se
não contribuir com a Redução da idade Penal!
Deputado Flávio Serafim (PSOL) – Política de encarceramento em massa, E esse debate pouco
depois dos adolescentes retirados dos ônibus é importante.
- *Esse crescimento mais que o dobro dos adolescentes presos pela polícia não tem a ver apenas
pela prática de ato infracional! É também pela política de segurança pública nessa cidade!
- Um SSE que não consegue funcionar por várias razões.
- temos que romper com a lógica de segregação e criminalização / encarceramento em massa.
Deputado Marcelo Freixo – Proposta ao TJ para que possamos fazer uma audiência lá.
385
- Já faz tempo que o sistema está em colapso! Não seria aceitável se fosse para “outros”; só é
aceitável porque é para esses que estão lá! Aquilo lá é cárcere! E dos piores! E o discurso hegemônico que
está aí, estamos perdendo. Até quando vamos manter ....
- De 2.400 internos em 2011 – para 8.300 em 2014!!
- O sistema carcerário teve aumento de 317% em 04 anos; e em sua maioria é jovem que lá está.
Isso não acontece em nenhum país do mundo!
- 95% dos jovens não têm ensino fundamental! É uma tragédia!
- Um jovem negro tem 3 x mais chance de ser assassinado do que um branco.
- A lei sempre foi um instrumento da ordem. Para impedir a revolução.
- Metade desses garotos está sendo preso por tráfico de drogas. Temos que fazer um debate sobre
isso! É a criminalização da pobreza!
386
Data: 25/SET/14
Mais uma vez a reunião começa com o Comando da PM exibindo um vídeo do ultimo final de
semana na praia de Ipanema/Arpoador, que foi amplamente divulgado na mídia, mostrando um suposto
arrastão e a policia reprimindo a ação, inclusive com bombas de efeito moral na praia, o que causou
grande pânico, confusão e correria na praia.
- Essas ações poderiam até para prevenir a prática de atos infracionais. Acho que isso seria
fundamental, até porque muitos adolescentes, simplesmente, eles pegam esses ônibus sem pagar
passagem, ficam ali naquela parte de trás, eles vão à praia não para curtir a praia, mas vão pra praticar atos
infracionais.
(PM) - Pessoas de comunidades têm por costume transportar sua bebida em isopor, bolsas
térmicas..., então se aquele volume se excede, aquele volume não embarca. Essa é uma medida positiva
para que adolescente não se embriague na praia e não pratique ilicitude. Menor de 12 anos, a criança tem
que ir só com o responsável! E por vezes, isso é mal interpretado pela sociedade, que vê aquele jovem ali
e diz que “eu não sou o responsável dele, e eu não tenho poder legal para impedir”.
(Margarida Prado, OAB, CEDCA) – Sou advogada, sou membro do Conselho Estadual de Defesa
da Criança e do Adolescente, (...) é muito bom ter uma reunião que segmentos diferentes se coloquem
conjuntamente, e que as posições fiquem bem claras qual é a perspectiva de cada um (...). Então,
começando esclarecendo qual é a minha perspectiva, é a da defesa da criança e do adolescente. Eu
represento o Conselho de Defesa da Criança, então a minha presença aqui só se justifica se for,
exatamente, para lembrar e pontuar a perspectiva do interesse maior da criança. Quer dizer, meu olhar não
é o do interessa da sociedade, não é o da segurança pública, não é das medidas a serem tomadas para a
tranquilidade da sociedade, e contra o comportamento indesejável que o jovem possa ter. Mas,
exatamente, a da garantia dos direitos da criança e do adolescente. Dado isso, eu gostaria de pontuar que
essa reunião começa dizendo: “o fato é o ato infracional”. A perspectiva desse encontro é prever a
segurança do cidadão; o que pretendemos: “evitar a reincidência e o comportamento indesejável!” Então,
a meu ver o viés dessa reunião já é um viés bastante comprometido com um dos olhares possíveis, que é o
olhar da perspectiva do Estado, ou da perspectiva da segurança pública. Esse não é o meu olhar. (...) Então
chamar uma situação dessa, essa Operação Verão sem considerar os inúmeros fatores que estão
condicionando nessa situação, que é o desvio de jovens adolescentes que obviamente se dirigem pra parte
mais bonita da cidade em busca de lazer, em busca de zoar, fazer bagunça sim. Muito poucos são aqueles
que realmente roubam, porque não tem por parte do Estado nenhum atendimento, nenhum direito
atendido, a ausência total e a presença do estado nesse cinturão de pobreza, então, pra mim, esse é o marco
negativo. Agora, Sr, Coronel, me espanta que eu seja chamada para um encontro desse em momento
nenhum se sai da perspectiva do ato infracional e se fale, por exemplo, da situação drástica da polícia que
atuou nesses eventos. O que nós vimos e o que escutamos é de uma atuação totalmente despreparada, da
presença que se colocou na areia, numa atitude tão ou até mais violenta do que como alguns rapazes de
fato se comportaram. Uma polícia despreparada, não cuidadosa, inclusive com a repercussão em massa do
que significaria soltar bombas de efeito moral. Bombas de efeito moral numa areia?!! Onde as famílias
estão deitadas... Isso é tão grave quanto o grupo de jovens furtar ou deixar de furtar, porque afinal de
contas, são pessoas supostamente preparadas para atuar nessas situações. (...) a minha perspectiva aqui é
de que crianças e jovens são sujeitos de direitos, e por isso eu ocupo o lugar que eu ocupo. Eu não
confundo a minha perspectiva. Que cada um faça a sua parte e a minha aqui é a de estar extremamente
atenta para toda e qualquer medida ou procedimento da parte do Estado que ultrapasse ou que extrapole
em cima do seu estrito direito de atuar!
387
- (PM) Acho que eu estou sendo claro, pelo amor de Deus! Garantir o acesso a todos à praia e o
seu retorno em paz e segurança. Com a contribuição caso alguém aqui queira dar. Fui bem claro agora?
(Reimont) – (...) Nós temos que estender essa discussão, mas temos que compreender que essa
discussão tem na sua gênese, por mais que não tenha a intenção do senhor e do comando da polícia
militar, ela tem sim um tom muito forte de segregação!
- (PM) Não, eu discordo completamente do senhor!
(Marcos Fagundes, Ministério Público) – (...) Pelo que entendi essa reunião aqui se presta para
compatibilizar o direito das pessoas que querem ir à praia, com o direito desses adolescentes também. Na
verdade até que ponto esses adolescentes tem o direito de estar na praia fazendo alguma atividade que
venha a incomodar aquelas pessoas. Quer dizer, todos tem o direito de ir à praia. Então, a posição da
polícia é justamente a de garantir a segurança e a tranquilidade de todos. O que eu imagino que seja a sua
dúvida, a da polícia, seja até que ponto a polícia pode atingir para garantir a tranquilidade das pessoas na
praia sem violar o direito daquelas crianças e adolescentes? Eu concordo com a Margarida, realmente a
gente tem que assegurar e garantir os direitos das crianças e adolescentes, as nossas promotorias da
infância e juventude também tem esse dever, mas, o papel da polícia é o de garantir o direito de todos. A
partir do que foi mostrado ali naquelas imagens, poderia avaliar o que foi feito de certo, de errado? É o
caso de jogar bomba? O que a polícia pode fazer pra preparar melhor os seus policiais para que possa
garantir a segurança da melhor forma possível. É pra isso que estamos aqui.
- (PM) Seria mais que isso! Não chegarmos naquele ponto!
(Marcos Fagundes) – Então, traçar ações preventivas e garantir dentro da legalidade, ou seja, não
fazendo essa segregação, não impedindo esse adolescente de pegar o ônibus..., isso seria uma ação ilegal!
Então a gente quer discutir medidas legais.
- (PM) O foco daquela minha colocação foi o seguinte: poderia um grupo daqui do Conselho
tutelar, ou do juizado da infância e Juventude junto com o policial militar abordar, por exemplo, vem um
ônibus com 05 pessoas no teto, 20 com cabeça pra fora, parou o ônibus e o que poderia ser feito? Aqui a
gente quer uma ação em conjunto. Eu não vou segregar ninguém, eu não vou impedir ninguém de chegar,
eu não vou levar ninguém sem ter cometido... Não vou! A minha colocação achei que fosse clara, é o que
cada um dentro do seu quadrado, pode fazer ou sugerir para que a gente não chegue ao ponto do policial
ter de soltar bomba de feito moral... Está sendo feita a apuração e ele vai ter que responder por isso se
tiver que ser. O que a gente quer é que não cheguemos a esse ponto. Temos que sair daqui com algo
concreto, garantindo o direito de todos.
- (Márcia Gatto- RRC) - Estive aqui na primeira reunião, estou aqui representando a Rede Rio
Criança, eu acho que é um momento muito importante de estar aqui, e agente tem que saber usufruir disso.
Mas, com certeza um tema tão difícil e grave, nós não vamos conseguir resolver de imediato. Sei que a
policia militar vive sob tensão, ela tem que dar resposta não só ao Estado, mas também à sociedade, mas
só que tem certas coisas, e eu aqui enquanto também defensora dos direitos da criança e do adolescente,
tenho aqui que assumir o meu quadrado. (...) não podemos assumir uma posição de violador de direitos.
Pois, em muitas vezes, violamos em nome da proteção. E a polícia, o MP, CT, Defensoria, governo,
sociedade civil, eles fazem parte desse sistema de garantia de direitos que existe para que os direitos sejam
cumpridos. E a gente tem que ter muito cuidado, porque muitas vezes, em nosso discurso, agente pode
extrapolar e confundir coisas, pq eu ouvi algumas falas aqui que eu fiquei muito temerosa, e a gente não
pode perder a mão. A gente não pode assumir um estado que tem a mão de um estado de exceção.
- (Comandante PM) – eu queria que a senhora falasse qual foi a fala que lhe causou essa
percepção.
- (Márcia Gatto) – Do adolescente não poder ir à praia.... Primeiro eu vou dizer que o adolescente
é irreverente. Ele chega fazendo festa, ainda mais quem está longe da praia ele vai chegar fazendo festa
sim. Sinto muito! (...) Claro que temos que prevenir e é papel da polícia, mas a única coisa que temos que
ter atenção é pra não errar na dose. Porque se vc começar... e eu não estou falando que isso não é papel da
PM, não. Mas, vamos com calma, porque se vc começar a reprimir lá de onde eles vêm, do Jacaré, do
Meier, etc..
- (Comandante) - Ninguém falou em repressão.
389
- (Márcia Gatto) Sim, me desculpe, eu usei o termo errado, a prevenção. Mas, cuidado porque às
vezes erram na mão. Então esses mesmos turistas, essa sociedade quer sim mantê-los longe! “Essa praia é
minha. O que vc está fazendo aqui!” E eles geralmente falam isso, porque é do negro e do pobre! Porque
nenhum garotinho da zona sul, que também está lá zoando na praia, e ele só tem 13 anos e já é surfista,
ninguém vai pedir pra ele sair da praia ou que esteja lá com o responsável! Acho que temos que chegar
num denominador comum, e saber que a gente não pode errar na dose, mas também o que temos que fazer
para também garantir a praia, a tranquilidade pra todos!
Márcia (DP) – (...) primeiro eu gostaria de deixar claro que o adolescente pode ir à praia, pode ir à
praia sozinho, pode vir se é de outro município vizinho, e sem portar identidade! O adolescente não
precisa estar portando identidade. Tem as apreensões e muitas vezes esses adolescentes são encaminhados
para a delegacia. Num primeiro momento, não há a necessidade de todo o adolescente que é apreendido
ser encaminhado para a delegacia. Então, poderia se estreitar, eu acredito que aí na divisão de vocês, tenha
um coordenador, um gestor dessa operação para ficar no plantão. É essencial que a equipe saiba o telefone
e endereço do Conselho Tutelar da área. Essas distritais não é o atendimento apropriado para o
adolescente, não é constitucional, não está no ECA! Ninguém pode ficar muito tempo com o adolescente.
Se for no CT, em situações que realmente precisa do Conselho, ele não precisa ir a uma delegacia para
pegar o telefone da mãe do adolescente.
390
PREÂMBULO
Os Estados-Partes do presente Protocolo,
Reafirmando que a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes são
proibidos e constituem grave violação dos direitos humanos,
Convencidos de que medidas adicionais são necessárias para atingir os objetivos da Convenção
contra a Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou Degradantes (doravante
denominada a Convenção) e para reforçar a proteção de pessoas privadas de liberdade contra a tortura e
outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes,
Recordando que os Artigos 2 e 16 da Convenção obrigam cada Estado-Parte a tomar medidas
efetivas para prevenir atos de tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes em
qualquer território sob a sua jurisdição,
Reconhecendo que os Estados têm a responsabilidade primária pela implementação destes Artigos,
que reforçam a proteção das pessoas privadas de liberdade, que o respeito completo por seus direitos
humanos é responsabilidade comum compartilhada entre todos e que órgãos de implementação
internacional complementam e reforçam medidas nacionais,
Recordando que a efetiva prevenção da tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou
degradantes requer educação e uma combinação de medidas legislativas, administrativas, judiciais e
outras,
Recordando também que a Conferência Mundial de Direitos Humanos declarou firmemente que os
esforços para erradicar a tortura deveriam primeira e principalmente concentrar-se na prevenção e
convocou a adoção de um protocolo opcional à Convenção, designado para estabelecer um sistema
preventivo de visitas regulares a centros de detenção,
Convencidos de que a proteção de pessoas privadas de liberdade contra a tortura e outros tratamentos
ou penas cruéis desumanos ou degradantes pode ser reforçada por meios não-judiciais de natureza
preventiva, baseados em visitas regulares a centros de detenção,
Acordaram o seguinte:
Parte I
Princípios Gerais
Artigo 1
O objetivo do presente Protocolo é estabelecer um sistema de visitas regulares efetuadas por órgãos
nacionais e internacionais independentes a lugares onde pessoas são privadas de sua liberdade, com a
intenção de prevenir a tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes.
Artigo 2
1. Um Subcomitê de Prevenção da Tortura e outros Tratamentos ou Penas Cruéis, Desumanos ou
Degradantes do Comitê contra a Tortura (doravante denominado Subcomitê de Prevenção) deverá ser
estabelecido e desempenhar as funções definidas no presente Protocolo.
2. O Subcomitê de Prevenção deve desempenhar suas funções no marco da Carta das Nações Unidas
e deve ser guiado por seus princípios e propósitos, bem como pelas normas das Nações Unidas relativas
ao tratamento das pessoas privadas de sua liberdade.
3. Igualmente, o Subcomitê de Prevenção deve ser guiado pelos princípios da confidencialidade,
imparcialidade, não seletividade, universalidade e objetividade.
4. O Subcomitê de Prevenção e os Estados-Partes devem cooperar na implementação do presente
Protocolo.
392
Artigo 3
Cada Estado-Parte deverá designar ou manter em nível doméstico um ou mais órgãos de visita
encarregados da prevenção da tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes
(doravante denominados mecanismos preventivos nacionais).
393
MINISTÉRIO DA DEFESA
GABINETE DO MINISTRO
PORTARIA NORMATIVA Nº 3.461 /MD, DE 19 DE DEZEMBRO DE 2013.
Dispõe sobre a publicação “Garantia da Lei e da Ordem317”.
O MINISTRO DE ESTADO DA DEFESA, no uso das atribuições que lhe conferem o inciso II do
parágrafo único do art. 87 da Constituição, e observado o disposto nos incisos III, VI e IX do art. 1o do
Anexo I do Decreto nº 7.974, de 1º de abril de 2013, resolve:
Art. 1o Aprovar a publicação “Garantia da Lei e da Ordem - MD33-M-10 (1ª Edição/2013)”, na forma do
anexo a esta Portaria Normativa.
Parágrafo único. O Anexo de que trata o caput deste artigo estará disponível na Assessoria de Doutrina e
Legislação do Estado-Maior Conjunto das Forças Armadas.
Art. 2o Esta Portaria Normativa entra em vigor na data de sua publicação.
CELSO AMORIM
(Publicado no D.O.U. nº 247 de 20 de dezembro de 2013.)
CAPÍTULO I
INTRODUÇÃO
1.1 Finalidade
Esta publicação tem por finalidade estabelecer orientações para o planejamento e o emprego das Forças
Armadas (FA) em Operações de Garantia da Lei e da Ordem (Op GLO).
1.2 Antecedentes
Embora a referência ao emprego das Forças Armadas em atividades de segurança pública já se fizesse
presente em Constituições anteriores, a atuação das Forças Armadas na garantia da lei e da ordem prevista
no art. 142 da Constituição Federal de 1988 somente veio a ser disciplinada, em âmbito
infraconstitucional, com o advento da Lei Complementar nº 97/99. A regulamentação desta forma de
emprego veio a ocorrer somente com a aprovação do Decreto nº 3.897/2001.
Conceituações
A fim de facilitar o entendimento desde a parte inicial, destacam-se as seguintes conceituações: -
Operação de Garantia da Lei e da Ordem (Op GLO) é uma operação militar conduzida pelas Forças
Armadas, de forma episódica, em área previamente estabelecida e por tempo limitado, que tem por
objetivo a preservação da ordem pública e da incolumidade das pessoas e do patrimônio em situações de
esgotamento dos instrumentos para isso previstos no art. 144 da Constituição ou em outras em que se
presuma ser possível a perturbação da ordem.
1 - Forças Oponentes (F Opn) são pessoas, grupos de pessoas ou organizações cuja atuação comprometa a
preservação da ordem pública ou a incolumidade das pessoas e do patrimônio.
- Ameaça são atos ou tentativas potencialmente capazes de comprometer a preservação da ordem pública
ou a incolumidade das pessoas e do patrimônio, praticados por F Opn previamente identificadas ou pela
população em geral.
Esta publicação tem por finalidade estabelecer orientações para o planejamento e o emprego das Forças
Armadas (FA) em Operações de Garantia da Lei e da Ordem (Op GLO).
317
Publicada em:
http://www.defesa.gov.br/arquivos/File/doutrinamilitar/listadepublicacoesEMD/md33_m_10_glo_1_ed2013.pdf