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Orientador
Professor Doutor Ericson Saint Clair
BANCA EXAMINADORA
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Orientador: Prof. Doutor Ericson Saint Clair - UFF
________________________________________
Prof. Doutora Rôssi Alves Gonçalves - UFF
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Prof. Denis Moura dos Santos - USP
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À minha irmã, Camila, que aos 29 anos conseguiu tirar a própria vida,
um mês antes da conclusão deste trabalho. Prometo honrar sua passagem por aqui e
encontrar a luz que você não vislumbrou no planeta Terra.
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AGRADECIMENTOS
Agradeço, primeiramente, pela minha vida, tal como ela se desdobrou, possibilitando
não apenas o trabalho desenvolvido até agora, mas todos que irei realizar nesse sentido.
Expresso minha gratidão por ser uma mulher de ascendência mista, filha de uma mulher negra
e um homem branco, brasileira, nascida na Zona Leste da multicultural São Paulo, em 1997.
Agradeço por ter sido uma criança artística, curiosa, teimosa e que os outros julgavam de
personalidade forte.
Agradeço por ter escolhido a área de Produção Cultural, mesmo sem compreender
plenamente do que se tratava, em Rio das Ostras, uma cidade completamente desconhecida na
época e que hoje é tão familiar. Reconheço e agradeço a todas as pessoas que cruzaram o meu
caminho ao longo desses anos. Honro e agradeço tanto às mãos estendidas que muito me
ajudaram, quanto aos punhos cerrados que, de alguma forma, também contribuíram para a
minha jornada. Cada uma dessas experiências foi fundamental para que eu chegasse onde me
encontro hoje.
Expresso minha gratidão a todos os professores que fizeram parte da minha jornada
acadêmica. Dedico um agradecimento especial aos professores universitários que acreditaram
em mim, especialmente meu orientador, Ericson, cujos ensinamentos transcenderam
totalmente a sala de aula, um grande mestre para a vida. Agradeço igualmente aos professores
que não acreditaram, pois, de certa forma, eles destacaram os desafios que eu enfrentaria no
caminho "lá fora". Hoje, trilho essa jornada com alegria e determinação, mantendo a cabeça
sempre erguida.
Expresso minha profunda gratidão aos meus pais, Valquíria e José Carlos, por me
darem a vida, por proporcionarem minha educação fundamental e, acima de tudo, por
priorizarem a minha liberdade. Foi a partir dessa liberdade que pude desenvolver todas as
minhas capacidades e cultivar uma autenticidade inigualável.
Agradeço às minhas tias, Vera Lúcia e Terezinha, que foram e são as verdadeiras
guardiãs dos meus objetivos, continuam a oferecer apoio incondicional e proporcionar as
condições necessárias para a concretização dos meus sonhos.
Minha irmã, Laura Bueno, por ser minha aliada nessa vida. Tantas amigas, amigos,
familiares, os seguidores do @parditude, meus colegas de trabalho e líderes que tive no
iFood, empresa em que estagiei e onde hoje sou efetiva. São tantas pessoas que merecem
agradecimentos e que tornaram esse sonho possível.
E claro, por último, mas a mais importante, sou grata a mim mesma. Agradeço por ser
a pessoa mais resiliente, dedicada e extraordinária que já conheci nesta vida. Meu privilégio é
existir neste próprio corpo.
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RESUMO
ABSTRACT
This work criticizes the attempt to force people in Brazil into strict categories of identity—
white, black, or indigenous—without recognizing mixed-race identities and the real problems
this causes for brown individuals. The research originally aimed to see if it's possible to fight
racism by embracing mixed-race identity. However, after studying various cases and looking
at literature from the 1950s to 2023, it became clear that we couldn't answer this question
without talking about the challenges faced by brown people now a day's Brazil. I am
addressing this theme within the context of my culture course, choosing to analyze it through
cultural objects such as various forms of media expression, including series, films, and social
media. Additionally, I am observing how renowned artists in the cultural field are dealing
with this theme and influencing it. To enrich the racial debate, I am also introducing
fundamental cultural concepts, such as cultural anthropophagy. So, this study helps us
understand better the racial complexities in Brazil, including the influence of the United
States on these discussions and the origin of the idea of "hypodescendance." It looks at the
history of mixed-race identity in both countries, debunking wrong ideas about colorism and
arguing against classifying mixed-race individuals only based on experiences of racism. The
research talks about how brown brazilian people are symbolically and institutionally
excluded, including difficulties in getting spots through university rights, and explores new
stories about brown identity. It concludes by stressing how important it is to recognize and
embrace mixed-race identity to promote real diversity, not only in historical reparations
politics but also in society overall. In answering the initial question, the study shows that, in
reality, trying to fight racism in Brazil by ignoring mixed-race identity isn't working.
Lista de Ilustrações
SUMÁRIO
1 INTRODUÇÃO 11
2 DESENVOLVIMENTO 15
2.1.1 Hipodescendência 16
2.1.2 Colorismo 20
2.1.3 Desmistificando um Privilégio Inexistente 22
2.1.4 A Potência da Antropofagia Cultural 23
3 CONSIDERAÇÕES FINAIS 58
4 REFERÊNCIAS 62
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1. INTRODUÇÃO
Inicio esta introdução reforçando que o presente trabalho de pesquisa não se restringe
a um exercício de conclusão do curso de Produção Cultural, mas também se trata de um
propósito de vida que venho cultivando e nutrindo, não apenas no âmbito acadêmico, mas
também em outras esferas, incluindo minha forte atuação nas redes sociais. No mês de
novembro de 2023, quando escrevo esta introdução, a página do Instagram por mim intitulada
@parditude, da qual sou a administradora, dedicada a abordar questões relacionadas aos
pardos, atingiu a significativa marca de 48 mil seguidores. Cabe ressaltar que o engajamento
dessa comunidade desempenhou um papel crucial não só no grande incentivo e apoio para
que este trabalho acontecesse, mas também na formação das conclusões apresentadas, que
foram elaboradas considerando as contribuições provenientes desse grupo.
O estudo da parditude começou dentro de minha casa, onde investiguei e identifiquei
as contradições existentes em crescer em uma família inter-racial que, infelizmente, foi
profundamente afetada pelo racismo. A jornada em direção ao entendimento da parditude
começa, para mim, pelo meu próprio corpo, marcado por cicatrizes e feridas causadas pela
presença constante do racismo ao longo da minha vida. Essas feridas foram cutucadas e
voltaram a sangrar quando fui desqualificada e rotulada como branca por grupos que nunca
ouviram minha história, não sabem quem sou e insistem em impor modelos binários de
classificação racial ao Brasil. Essa é a minha experiência, mas é também a de muitas pessoas
mestiças com características ambíguas, como testemunho diariamente nas redes sociais, onde
leio relatos tão semelhantes, de pessoas contando suas histórias e agradecendo pelo trabalho
que realizo. Desvendar a complexidade da parditude, para mim, é crucial no processo de cura
para essas feridas pessoais e coletivas. Todas as dores que eu e minha comunidade
enfrentamos se transformam hoje em uma investigação conduzida com dedicação,
determinação, honestidade, responsabilidade e profundo amor.
Este estudo é uma continuidade do projeto intitulado Identidade Cinzas, no qual tive a
honra de desempenhar o papel de bolsista no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação
em Desenvolvimento Tecnológico e Inovação – PIBITI/PIBINOVA da Agência de Inovação
da Universidade Federal Fluminense (AGIR). Essa pesquisa desempenhou um papel
fundamental na etapa mais empírica deste trabalho. Fiz uma coleta de 280 respostas
provenientes de pessoas de diversas regiões do país. Os relatos coletados atestam os desafios
enfrentados pelas pessoas que se autodeclaram pardas ao se depararem com a complexidade
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da identificação racial, uma vez que sua aparência frequentemente não se ajusta às
categorizações rígidas de negros ou brancos.
No que se refere às experiências de racismo, constatamos que 57,5% dos participantes
relataram terem sido vítimas de atos racistas. Outros 30% afirmaram não ter certeza se já
passaram por situações de racismo, enquanto 12,5% declararam não ter vivenciado episódios
de racismo. Além disso, 84,3% dos respondentes afirmaram ter experimentado medo ou
inibições ao declararem sua identidade racial. Também coletamos uma variedade de dados
qualitativos que descrevem experiências de humilhação, questionamentos, exposição e
constrangimentos relacionados às suas identidades raciais. Essas informações são valiosas
para entender a percepção e vivência das pessoas pardas em relação à sua identidade racial, as
barreiras que enfrentam nesse contexto e como tudo isso poder influenciar suas decisões na
autodeclaração e na forma como contribuem para a luta antirracista.
Tendo em vista os resultados coletados, torna-se essencial que aqueles que como eu
usufruem da vantagem de estar inseridos na academia se propondo a ser pensadores e
produtores da cultura brasileira, se empenhem de maneira proativa na superação dos desafios
que surgem em decorrência das teorias amplamente disseminadas que negam a existência dos
pardos ou os categorizam estritamente como negros. Não devemos resistir à transformação
das narrativas, especialmente quando essas mudanças estão a serviço da sociedade e do bem
comum.
No início, o objetivo deste trabalho era responder à questão: É possível uma atuação
antirracista a partir da ideia de mestiçagem?. No entanto, por meio de uma abordagem que
combina o estudo de diversos casos semelhantes e uma revisão bibliográfica abrangente,
abordando autores desde a década de 1950 até o ano de 2023, tornou-se evidente que
responder a essa pergunta sem denunciar as injustiças enfrentadas pelas pessoas pardas no
Brasil contemporâneo seria impossível. Portanto, a trajetória da argumentação deste estudo
faz o caminho inverso, expondo que, na verdade, o que não está sendo viável é uma atuação
antirracista no Brasil que rejeite a mestiçagem. Conforme avançamos na argumentação,
percebemos que reconhecer a mestiçagem no Brasil não é uma escolha a defender ou repulsar,
mas sim uma realidade a ser encarada e investigada sem negações. Reduzir toda a diversidade
mestiça que caracteriza nosso país ao rótulo "negro" constitui uma invisibilização de
proporções imensas.
Para uma compreensão mais aprofundada deste estudo, é fundamental reconhecer que
adoto um recorte quando uso os termos "pardos" e “mestiços”. Baseado na conclusão de
Oracy Nogueira de que o racismo no Brasil é de marca (NOGUEIRA, 1955), não abranjo sob
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No programa Saia Justa da GNT, em maio deste ano (2023), a cantora Vanessa da
Mata se expressou de forma impactante: “Não me tire a única coisa que eu sei sobre mim, que
eu sou preta.”. Essa breve declaração reverberou nas redes sociais, desencadeando uma série
de reações e debates. Algumas pessoas apoiaram Vanessa da Mata, concordando que ela é
preta, enquanto outros argumentaram, de forma debochada, violenta e/ou acusativa, afirmando
que ela é, na verdade, uma mulher branca tentando se aproveitar da visibilidade das pautas
raciais. Houve também aqueles que afirmaram que ela não é preta, mas sim negra, argumento
conflituoso, tendo em vista o significado semelhante que ambas as palavras carregam
historicamente no Brasil. E, por fim, algumas vozes corajosas tentaram evocar o
reconhecimento de uma identidade mestiça que a contemplasse, como a identidade parda,
mulata e outras.
Uma pergunta fundamental que surge diante da afirmação da cantora é: por que
alguém tentaria retirar de Vanessa da Mata “a única coisa que ela sabe sobre si mesma”?
Observamos figuras famosas negras, como o ator Lázaro Ramos, a cantora Ludmilla e a
jornalista Maju Coutinho, fazendo afirmações semelhantes? Defendendo sua identidade racial
com tal força, como se estivesse em risco ou posta à prova? Não. Essa declaração, juntamente
com o contexto, ascendência e fenótipo da cantora, ressaltam as complexas tensões raciais que
permeiam o cenário brasileiro em relação às definições de identidade de pessoas mestiças,
aquelas com ascendência europeia e africana, mas também incluindo indivíduos descendentes
de indígenas.
O exemplo do acontecido com Vanessa da Mata serve como uma ilustração
introdutória do problema de pesquisa que explorarei neste trabalho. Hoje em dia, mestiços que
desejam compreender com maior profundidade sua identidade racial e adotar uma postura
consciente e antirracista, se veem pressionados a abandonar suas identidades híbridas e aderir
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a um sistema de identidade binário, onde são incentivados a se enquadrar como apenas negros
ou brancos, deixando pouco ou nenhum espaço para a expressão de sua mestiçagem e
contribuindo com apagamento indígena. Quando Vanessa da Mata se autodeclara preta, está,
de certa forma, aderindo ao que lhe foi proposto. É notável que os movimentos raciais no
Brasil estejam atualmente tentando promover a eliminação das identidades mestiças,
incentivando que pessoas com características entre branco e negro, como a Vanessa, se
identifiquem como negras. No entanto, ao seguir essa direção, o próprio fato de repercutir,
mas também a negatividade e os discursos de ódio resultantes, destacam a urgente
necessidade de aprofundar e investigar esse tema, a fim de desenvolver soluções autênticas
para a realidade brasileira. Essas soluções devem não apenas rejeitar o fato de que a
mestiçagem tenha sido historicamente incentivada como um meio de embranquecimento, mas
também assegurar o devido reconhecimento e espaço para as identidades dos corpos mestiços,
também vitimados por esse sistema racista e pernicioso.
Hipodescendência
diferentes, mas longe, se possível para outro além-mar, Pacífico adentro. Cá, o
barroco das gentes ibéricas, mestiçadas, que se mesclavam com os índios, não lhes
reconhecendo direitos que não fosse o de se multiplicarem em mais braços, postos a
seu serviço. Ao apartheid dos nórdicos, opunham o assimilacionismo dos
caldeadores (RIBEIRO, 1995, p 33).
nos Estados Unidos durante o período de apartheid. Segundo ele, "o cruzamento entre um
branco e um índio é um índio; o cruzamento entre um branco e um negro é um negro; o
cruzamento entre um branco e um hindu é um hindu; e o cruzamento entre alguém de raça
europeia e um judeu é um judeu." (GRANT, 1916). Porém, o termo só foi inventado mais
tarde por Marvin Harris.
Segundo a hipodescendência, basta ser um pouco negro para sê-lo totalmente, mas
para ser branco é necessário sê-lo totalmente. Ou seja, movimentos eugenistas e autores
envolvidos em pseudociência racial foram os precursores nessa noção de vincular as pessoas
mestiças exclusivamente à identidade do grupo que eles próprios designaram como inferior e
subjugaram. Diante desse cenário histórico, surge a reflexão sobre qual grupo
verdadeiramente se beneficia com a manutenção desse sistema, que perpetua uma noção de
"pureza racial" entre os brancos. Além disso, podemos questionar de forma crítica a
necessidade de sua aplicação em países que não vivenciaram a segregação racial, como é o
caso do Brasil.
Durante o período de apartheid nos Estados Unidos, foram criadas diversas leis
pautadas na hipodescendência. Por exemplo, havia uma lei que definia que qualquer pessoa
que tivesse pelo menos um ancestral negro seria considerada negra e segregada - a Lei de uma
Gota de Sangue. E as leis anti-miscigenação proibiam casamentos e relações inter-raciais de
brancos com pretos, asiáticos, filipinos e indígenas. Enquanto no Brasil, as ideologias de
embranquecimento envenenaram os cérebros de negros e mestiços, que não poupavam
esforços para se embranquecer e embranquecerem sua família, negando ao máximo as
conexões com a africanidade. Acreditava-se que nosso país já estava perdido por ser mestiço,
mas que mestiços mais claros seriam menos piores que mestiços mais escuros e que um dia a
população se tornaria branca através da diluição da raça. (SANTOS, 2021, p.24). No livro
Rediscutindo a Mestiçagem no Brasil, Kabengele Munanga apresenta uma carta de um
membro pra Elite Brasileira para o ex-presidente dos EUA, Theodore Roosevelt, que ilustra
esse momento histórico:
a nossa solução, mas julgo-a melhor que a sua. (...) Penso que a nossa, a longo prazo
e do ponto de vista nacional, é menos prejudicial e perigosa que a outra, que vocês
nos Estados Unidos, escolheram. (Membro da elite brasileira, apud. MUNANGA,
1999, p. 112)
Esses fatos configuram questões complexas para muito além da birracialidade. Temos
no Brasil um cenário totalmente multirracial. Tais elementos começam a nos trazer uma
compreensão maior porque muitos mestiços, incluídos hoje no grupo “pardos” pelo IBGE,
passam pelos constrangimentos que Vanessa da Mata passou ao tentar aplicar a
hipodescendência em sua afirmação de identidade.
Colorismo
O colorismo* ou a pigmentocracia é a discriminação pela cor da pele e é muito
comum em países que sofreram a colonização europeia e em países
pós-escravocratas. De uma maneira simplificada, o termo quer dizer que, quanto
mais pigmentada uma pessoa, mais exclusão e discriminação essa pessoa irá sofrer.
(...) Apesar de se orientar na cor da pele, o colorismo no Brasil, apresenta uma
peculiaridade; aspectos fenotípicos como cabelo crespo, nariz arredondado ou largo,
dentre outros aspectos físicos, que a nossa cultura associa à descendência africana,
também influenciam no processo de discriminação. (GELEDÉS, 2015).
estadunidenses. Afinal, quando encontramos alguém, não enxergamos seu DNA, mas sim sua
aparência física.
No contexto brasileiro, a teoria do colorismo oferece valiosas perspectivas, devido às
diversas variações fenotípicas presentes no nosso país. Colorismo no Brasil pode ser ilustrado
por aquela pessoa racista que diz que o cabelo de uma menina parda, por ser cacheado, não é
tão 'ruim' quanto o cabelo de sua mãe negra, que é crespo. Essa manifestação de racismo
assume diversas nuances, variando de acordo com a região, classe social e outros aspectos da
sociedade. Em síntese, o colorismo é uma teoria que aponta a existência de uma espécie de
hierarquia social baseada na cor da pele e nos traços físicos das pessoas pertencentes a grupos
racializados. Segundo o que a teoria propõe, essa hierarquia prejudicaria aqueles com
características mais próximas das associadas aos negros, enquanto privilegiaria aqueles com
características mais próximas das associadas aos brancos. No entanto, é importante notar que
a interpretação dessa teoria muitas vezes se distorce entre os brasileiros.
Nos Estados Unidos, onde o colorismo se refere às diferenças de tratamento entre
pessoas negras, todas as pessoas com ascendência africana são consideradas negras, devido a
questões culturais e históricas específicas abordadas anteriormente. No entanto, no Brasil,
historicamente reconhecemos uma variedade de identidades mestiças com diferentes
nomenclaturas, como pardos, morenos, caboclos, mulatos, cafuzos, mamelucos, entre outros.
Isso levou alguns movimentos a empregarem a teoria do colorismo como uma base para
justificar a aplicação do conceito de hipodescendência. Argumenta-se, por exemplo, que
aqueles que defendem a autonomia da identidade parda deveriam aprofundar seu
entendimento sobre o colorismo brasileiro. No entanto, é importante compreender que a teoria
do colorismo não fornece fatos ou evidências que comprovem ou justifiquem a
implementação de um sistema binário de classificação racial.
Em termos mais simples, a teoria do colorismo não afirma que mestiços pardos devem
ser categorizados como negros de pele clara, como muitas vezes é erroneamente argumentado.
Em vez disso, essa teoria contribui com a informação de que os mestiços também enfrentam
os impactos do racismo estrutural e que, a maneira como o racismo afeta suas experiências,
varia de acordo com seus traços fenotípicos. Devido à falta de conscientização racial, muitas
pessoas não percebem que o racismo não se limita apenas àqueles com um fenótipo
predominantemente africano. O racismo brasileiro afeta indivíduos mestiços com diversas
aparências. Isso ressalta a importância que este conceito teve ao auxiliar nós brasileiros a
compreendermos as diferentes manifestações do racismo através da pigmentocracia. Também
reforçou a razão pela qual devemos nos unir como um movimento racial unificado, com os
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negros, os indígenas e os mestiços. No entanto, é crucial entender que essa consciência não
deve nem precisa ditar que esses mestiços devam definir sua identidade com base na
hipodescendência.
de traços fenotípicos negros e que, por vezes, endossa a noção equivocada de que os mestiços
seriam “menos piores” por serem “menos negros” - como exemplificado anteriormente no
contexto dos cabelos cacheados/crespos - as estatísticas indicam que essas nuances
relacionadas ao aspecto físico não conferem nenhum privilégio estrutural significativo aos
mestiços. Estes, em grande parte, permanecem em situações de vulnerabilidade social e
econômica. Essas diferenças superficiais de tratamento baseadas em estética constituem o que
foi brilhantemente nomeado por Gabriela em seu trabalho como um "privilégio que ninguém
te deu".
Para ilustrar de forma imaginativa as questões que elaboro neste trabalho, iniciei este
capítulo com a fala da importante cantora Vanessa da Mata. Agora, para adentrar o tema
Antropofagia Cultural, recorro a Caetano Veloso, outro nome importantíssimo da música e da
cultura brasileira. Porém, ao contrário de Vanessa da Mata, Caetano é resistente a incorporar
identidade hipodescendente e se afirma um homem pardo. No programa Roda Viva, em 2021,
expressou sua opinião:
Sou pardo. Tem uma música no meu disco que fala isso. Agora a primeira palavra
que aparece no Meu Coco a esse respeito é mulato. "Somos mulatos, híbridos e
mamelucos. E muito mais cafuzos do que tudo mais." (...) Muito por outro lado, a
miscigenação virou um mito de beleza brasileira que atrapalha certas coisas que
precisam ser feitas, certas estatísticas que precisam ser enfrentadas e também atos do
cotidiano, né? Coisas que precisam mudar. Então tem muita gente que decide definir
que terminologia a gente pode ou não pode usar a respeito de raça e tal. Eu não sou
obrigado a concordar com todas as coisas. Eu acho que essa movimentação, em
grande parte americanizada, é muito útil ao Brasil, se o Brasil souber aproveitar.
Porque eu sou antropófago, então o Brasil tem que saber comer e metabolizar isso,
não se deixar dominar por isso. (VELOSO, 2021)
Por mais que a miscigenação seja um tema repetido em diversos trabalhos sobre raça
no Brasil, a identidade do mestiço ainda é nebulosa. Lia Vainer, em Famílias Interraciais,
ressalta o quanto é incomum encontrar estudos que abordem os processos de construção de
identidade racial dos filhos de casais inter-raciais, ou seja, dos mestiços brasileiros. Segundo
ela, é ainda mais paradoxal considerar que, apesar da exaltação da ideologia da mestiçagem
no Brasil, há escassez de trabalhos contemporâneos que discutam a identidade "mestiça" em
relação à construção e experiência cotidiana desses indivíduos em relação aos processos de
racialização. (VAINER, 2018,p.40). A autora complementa seu argumento trazendo a
contribuição de Joyce Lopes:
A carência de definições e representações sociais para os mestiços pode ser vista como
um dos fatores que contribui para os conflitos que estamos observando neste trabalho. Isso
leva muitos mestiços a aceitarem anular sua identidade na tentativa de se encaixar em
movimentos identitários, para depois se sentirem perdidos ao não serem reconhecidos
plenamente e constantemente serem lembrados de sua condição mestiça, gerando uma
sensação de deslocamento. Neste contexto as pessoas mestiças ficam em uma fronteira que
tem sido chamada popularmente de “limbo racial”. Neste capítulo, vamos explorar mais
causas e consequências dessa exclusão. De fato, ao refletirmos sobre a questão da disputa
identitária em relação aos pardos, vemos emergir diversas facetas do racismo que se revelam a
partir da tentativa de impor um modelo binário ao nosso país. Torna-se cada vez mais
evidente e exposto o ressentimento, a negação da condição mestiça e uma aversão e um ódio à
história que os corpos mestiços contam sobre o Brasil.
Na prática, o discurso de que "pardo é negro", juntamente com as narrativas que a
sustentam, frequentemente se transformou em afirmações que promovem ideologias
anti-miscigenação e discriminação contra os mestiços. Isso, infelizmente, tem se tornado, sob
uma roupagem benevolente, uma ferramenta para perpetuar violências e manter um racismo
que não apenas se volta contra os mestiços por terem uma parte descendente de grupos
27
Para introduzir este tema, vamos destacar outros desafios relacionados à interpretação
de teorias. Vamos passar por alguns exemplos de argumentações que afirmam que indivíduos
classificados como "pardos" devem ser considerados "negros" devido às experiências de
racismo que enfrentam. Uma afirmação comum nas discussões sobre o tema é o bordão 'A
polícia sabe quem é negro.'. Essa fala sugere que, devido à exposição à violência policial, uma
pessoa parda se torna automaticamente negra. Essa interpretação da realidade é ilógica e pode
ser limitadora, pois reforça a ideia equivocada de que apenas indivíduos de identidade negra
enfrentam o racismo. No entanto, é importante lembrar que, historicamente, o racismo
promove a ideia da superioridade branca sobre todas as diversidades raciais.
Outro exemplo disso é o abordado no primeiro capítulo com Sueli Carneiro. A
justificativa para que "pardos" e "pretos" sejam agrupados como "negros" pelo IBGE, reside
na semelhança das estatísticas que apontam para a vulnerabilidade socioeconômica
compartilhada entre esses grupos. Contudo, considerar que "pardos" são sociológica e
politicamente equivalentes aos "negros", devido ao impacto negativo advindo do racismo que
compartilham, pode nos fazer perder a oportunidade de explorar as vivências singulares que
cada um desses grupos possui. Embora existam muitos pontos em comum, suas experiências
também têm aspectos próprios, que poderiam ser compreendidos em toda a sua complexidade
através de uma abordagem interseccional.
Kabengele Munanga, em seu livro Rediscutindo a Mestiçagem no Brasil, nos envolve
em uma trajetória histórica do conceito de mestiçagem ao longo dos séculos, até chegar na
situação racial brasileira. O autor nos apresenta informações que revelam como os mestiços
28
A questão indígena apresenta uma complexidade ainda maior, pois transcende a mera
identidade racial no contexto de convivência urbana e globalizada. Ela abrange uma ampla
variedade de grupos étnicos e comunidades, com perspectivas divergentes em todo o território
brasileiro quanto à autodeclaração dos pardos descendentes de indígenas como pertencentes
ou não às comunidades indígenas. No entanto, na palestra, observamos o mesmo padrão
encontrado nos autores negros: Krenak aborda momentos de sofrimento que pessoas de
mestiçagem indígena enfrentaram, alguns que eram específicos para os mestiços e que não se
aplicavam aos indígenas. Por exemplo, durante o período em que a escravização dos
indígenas foi abolida pelo Marquês de Pombal, em 1758 (ROCHA, 2020), neste momento, os
mestiços poderiam ser caçados por bandeirantes devido à ambiguidade de sua identidade, uma
vez que não eram considerados estritamente indígenas.
Por fim, Ailton Krenak conclui sua palestra convidando os mestiços a se autoafirmar
como indígenas e questionando: "Vamos perguntar aos nossos irmãos que são chamados de
pardos: Vocês ainda se lembram de quem são? Porque sabemos que essas categorias foram
usadas para ocultar nossa identidade e apagar nossa memória." (KRENAK, 2021). Este
convite é muito interessante, pois mesmo que carregado dos vieses do autor e da sugestão do
que ele, a partir do lócus social de pessoa não-mestiça, conclui como a melhor forma de os
mestiços se autodeclararem, instiga as pessoas mestiças a refletirem sobre sua própria
30
Com base nos diagnósticos pretensamente científicos, o mestiço, como impasse a ser
resolvido, passou a ser visto de diferentes formas, que podem ser sintetizadas em
dois tipos de posicionamento: o primeiro compreendia o mestiço como etapa rumo
ao alcance do ideal branco; o segundo via o mestiço como a caricatura da destruição,
como elemento degenerado cuja descendência deveria ser evitada” (BASTOS, p.39,
2023)
Com essa percepção, é possível notar que embora o Brasil seja historicamente reconhecido
como país da miscigenação, esse elogio à miscigenação não se refletiu necessariamente na
valorização dos corpos mestiços e pardos em si. O que era enaltecida era a possibilidade de que
esses corpos eventualmente embranquecessem a população ao longo do tempo. Os corpos que
ficaram “no meio do caminho” desse processo de embranquecimento são ainda um problema para
a sociedade racista, pois viram seu projeto de embranquecimento falhar e a população continuar
com seus vários tons de marrom.
Os corpos pardos também não têm sido vistos de forma positiva por negros e
indígenas, o que pode ser constatado por esse grande levante para anulação de identidades
mestiças. Somos vistos como um obstáculo, vide o artigo O mulato, um obstáculo
epistemológico, de Eduardo de Oliveira, que em 1974 ganhou destaque nas discussões sobre
miscigenação, desmistificando a ideia de democracia racial com argumentações muito
relevantes. No entanto, no artigo, o autor aponta o mulato como um obstáculo na
compreensão do racismo no Brasil e, por extensão, em seu combate. Porém, o verdadeiro
obstáculo que enfrentamos não é o mulato, mas sim o próprio racismo. Outro obstáculo é a
dificuldade de abordar a complexidade das questões raciais no Brasil sem tentar simplesmente
replicar os modelos norte-americanos, pois o artigo cita muito os Estados Unidos como
inspiração, como é frequente. Por outro lado, temos indígenas nos categorizando como
produtos de um “truque colonial” e se referindo a nós como uma categoria de pobreza.
É evidente que muitos autores ultrapassam os limites ao criticar como a miscigenação
serviu ao sistema racista. Em alguns casos, a maneira inadequada como essas críticas são
31
formuladas acaba por desempenhar uma crítica à condição mestiça e não ao racismo. Tais
vieses sugerem que não há absolutamente nada de positivo em ser o que somos, pardos
oriundos de relações inter-raciais. Isso leva a uma visão equivocada de que a única solução
para enfrentar a narrativa estabelecida pelas Teorias de Embranquecimento é negar nossa
realidade multirracial. Toda essa ênfase na modificação dos sistemas de identidade acontece
em detrimento da investigação dos impactos e danos causados pelo racismo na comunidade
mestiça, que deveria ser o principal foco para a melhoria das relações raciais em nossa
sociedade.
Muitas pessoas pardas, devido à falta de autoconhecimento e à carência de definições,
conforme observado por Lia Vainer e Joyce Lopes, frequentemente não reconhecem o quão
problemáticas e nocivas essas ideologias e declarações podem ser. A percepção da real
necessidade de se defender desses discursos pode surgir tardiamente, muitas vezes somente
após enfrentarem o sofrimento das exclusões simbólicas e institucionais que abordaremos
agora neste capítulo.
Como já citei anteriormente, desde 2010 o IBGE define que pardos somados a pretos
representam a totalidade de pessoas negras no Brasil. Essa é a definição usada para determinar
quem tem direito às cotas raciais em concursos e vestibulares, por exemplo. Porém, é
necessário observar que este sistema está apresentando problemáticas na prática: uma delas é
defendida pelo autor Reginald Daniel. Ele diz que as categorias raciais no Brasil
historicamente se baseiam em aparências físicas, por isso, se uma pessoa se olha no espelho e
se vê numa categoria intermediária, fazer com que ela passe a se ver como negra não é tão
simples.
Daniel entende que o movimento negro está tentando transmitir uma mensagem de
unidade na luta antirracista e acredita que a estratégia faz todo o sentido, mas diz achar
problemático o discurso de que, para entrar na luta antirracista, uma pessoa não possa
reconhecer uma identidade que a conecte também à brancura (DANIEL,2016). Outra
problemática é que, quando se trata de pessoas mestiças no fenótipo, a “leitura racial” pode
ser diferente de acordo com contexto social, como nos aponta Nogueira:
Onde o preconceito é de marca, como no Brasil, o limiar entre o tipo que se atribui
ao grupo discriminador e o que se atribui ao grupo discriminado é indefinido,
variando subjetivamente, tanto em função dos característicos de quem observa,
como dos de quem está sendo julgado, bem como, ainda, em função da atitude
(relações de amizade, deferência etc.) de quem observa em relação a quem está
sendo identificado, estando, porém, a amplitude de variação dos julgamentos, em
qualquer caso, limitada pela impressão de ridículo ou de absurdo que implicará uma
insofismável discrepância entre a aparência de um indivíduo e a identificação que
ele próprio faz de si ou que outros lhe atribuem. Assim, a concepção de branco e
não-branco varia, no Brasil, em função do grau de mestiçagem, de indivíduo para
indivíduo, de classe para classe, de região para região. (NOGUEIRA, 1955, p. 293).
Outro caso muito intrigante, em que podemos ver como o racismo no Brasil é
sofisticado e vai se disfarçando e se readaptando às nossas tentativas de combatê-lo, foi o de
Letícia Lacerda, uma mulher parda de 43 anos, ex-operadora de telemarketing, mãe e avó que
foi expulsa do curso de medicina da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), faltando 6
meses para se formar. Em 2021, ela deu uma entrevista para o The Intercept Brasil contando
sua história. Nessa entrevista, ela conta que não era apenas uma mulher parda e periférica que
conseguiu seu acesso à universidade pública com o custo alto de noites sem dormir, pouco
tempo com as filhas e muito sacrifício para conciliar estudo e trabalho.
Letícia era também uma aluna ativista que sofria ataques e violências por suas
atuações. Contou em sua entrevista que desde o início do curso lutou pelas políticas de ações
afirmativas com o objetivo de proporcionar acesso ao ensino superior público para outras
mulheres semelhantes a ela e outros segmentos sociais vulneráveis também. Ela conta que
essa postura e atuação geraram desafetos, pois como o curso era majoritariamente composto
por pessoas brancas, sua luta pela ampliação das cotas gerava grande insatisfação. Era
evidente que, quanto maior fosse a reserva de vagas no curso de medicina para pessoas
sub-representadas, menores seriam as chances desses colegas de perfil hegemônico
35
ingressarem nesse curso. Ela começou a sofrer ameaças de que seria denunciada e perderia
sua vaga, conta que não acreditou que sua expulsão realmente pudesse acontecer. Mas
aconteceu.
O fato de Letícia ter criado inimizades e desafetos devido a sua atuação política na
universidade e também de ter crescido em São Paulo e entrado na universidade do Sul da
Bahia, expõem dois pontos importantes que Oracy Nogueira detectou em sua análise: o de que
onde o racismo é de marca a afirmação de determinada pessoa está a depender também de
afetos e interesses, quando ele cita as “(relações de amizade, deferência etc.) de quem observa
em relação a quem está sendo identificado, estando, porém, a amplitude de variação dos
julgamentos,” (NOGUEIRA, 1955, p. 293) e também a questão regional, quando diz que
“Assim, a concepção de branco e não-branco varia, no Brasil, em função do grau de
mestiçagem, de indivíduo para indivíduo, de classe para classe, de região para região”
(NOGUEIRA, 1955, p. 293). O Pró-reitor de Ações Afirmativas da UFSB, Sandro Augusto
Ferreira, fez um comentário sobre isso:
Aqui, a questão é que Letícia cresceu em São Paulo, onde pode ser percebida como
negra, mas o mesmo não acontece em um lugar predominantemente negro como o
Sul da Bahia. A literatura sobre cotas ainda não deu conta disso devidamente. Mas
nos firmamos na realidade baiana. (MORAES,2021)
Esses dois elementos também são percebidos pelas pessoas que fazem referências a
Wakanda nas mídias sociais, como podemos ver nessas postagens:
36
Aqui vimos apenas dois de diversos casos de negativas questionáveis que são
noticiados frequentemente em nosso país nos dias de hoje. É relevante destacar o
documentário intitulado Dear Brown People: Autodeclarado, lançado em 2021, que aborda
histórias e registros relacionados a esse fenômeno de exclusão de pardos nas cotas. Esta
produção audiovisual constitui um valioso recurso para a compreensão e exploração mais
aprofundada do tema, evidenciando que a afirmação de que "pardo é negro" é válida apenas
até o momento em que a pessoa parda busca seus direitos de reparação histórica. A partir
desse ponto, pode-se tornar branco, ou simplesmente se tornar nada e não ser definido, como
foi o caso de Letícia, que não obteve resposta quando questionou se a consideravam branca
em seu recurso.
É claro que, por vezes, as recusas e denúncias são legítimas e visam a desmascarar
atividades fraudulentas. Afinal, em iniciativas que visam trazer oportunidade para grupos
vulnerabilizados por questões históricas, não é incomum encontrar indivíduos que buscam
vantagens de maneira desonesta. Entretanto, é crucial não reduzir ou suprimir o debate sobre
os direitos das pessoas pardas apenas invocando a existência de casos de fraude.
Comportamentos desonestos permeiam todas as camadas e instituições da sociedade. Por isso,
é urgente desenvolver mecanismos de combate à fraude que não prejudiquem ainda mais um
grupo que, ao longo de séculos de história, já tem sido suficientemente prejudicado.
Uma notável contradição pode ser percebida nestes acontecimentos. O próprio
surgimento das políticas de cotas e o avanço de diversas pautas voltadas aos direitos de
pessoas racializadas foram impulsionados pela unificação dos grupos pretos e pardos. No
Censo de 2010, cerca de 43% da população se autodeclarou como parda, enquanto somente
37
7,6% se reconheceram como pretos. Isso significa que a massiva presença de mestiços na
população contribuiu para o progresso das agendas e direitos raciais, direitos os quais agora
essas mesmas pessoas mestiças enfrentam obstáculos para usufruir.
Existem dados e estatísticas que confirmam a posição socioeconômica desfavorável
dos pardos e pretos no Brasil. Entretanto, somente um dos grupos precisa expor e reviver
constantemente experiências racistas para "comprovar” a validação de sua identidade. E,
mesmo assim, existe o risco de que suas experiências sejam desacreditadas. Como podemos
ver no recurso de Letícia Lacerda, que menciona que ela não possui características físicas
típicas de uma pessoa parda, como cabelo, boca ou nariz. A cor da pele teve pouca
importância no caso. A Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) não considerou sua
identificação como parda.
Em seu recurso, Letícia também mencionou argumentos sobre ter sofrido preconceito,
descrevendo três situações detalhadamente, mas a resposta foi que ela se confundiu e que o
preconceito era devido à sua condição de pobreza, mesmo ela alegando que se esforçava para
estar sempre “bem-vestida”. Ela também mencionou ter enfrentado preconceito no hospital
durante seus estágios, onde não era reconhecida como médica, sendo muitas vezes associada a
outras profissões, como cozinheira. Letícia sentiu que sua própria história foi reinterpretada e
comparou sua experiência a uma mulher que sofre violência e é minimizada quando alguém
diz: "Ah, você está exagerando, não é bem assim", algo que ela já vivenciou no passado ao
enfrentar violência doméstica.
Vale salientar que há uma questão muito relevante atacada por ativistas negros, a de
que no grupo “pardos” existem pessoas negras, ou seja, com fenótipo predominantemente
negróide e que se afirmam pardas devido às feridas do racismo brasileiro, tradicionalmente
embranquecedor. Ainda estamos no processo de conscientizar estes brasileiros negros que
negam suas origens. Mas o vasto grupo “pardos” não se resume a esses indivíduos. Existem
muitas pessoas ambíguas, assim como a Williane e como Letícia. Pessoas diversas, com
características mistas, que não gozam de privilégio social branco e que não estão tendo seus
direitos garantidos.
38
Começamos este último tópico do capítulo com a exibição deste tweet, que ainda
permanece em circulação, mesmo após várias denúncias de pessoas que discordam da
ideologia nele compartilhada. Isso exemplifica uma manifestação extrema de violência,
consequência do que discutimos ao longo deste trabalho. Atualmente, vemos movimentos que
sugerem que a "miscigenação é genocídio" para a população negra, que acabam por perpetuar
uma mentalidade semelhante aos eugenistas, no que condiz em denotar uma superioridade na
“pureza racial”, promovendo o racismo anti-mestiços. É lamentável que uma família e uma
criança estejam sendo expostas ao público com discursos racistas, e que grupos estejam
interpretando essa situação como uma forma de combate ao racismo, com 1835 curtidas.
Onde viemos parar e para onde desejamos ir?
As Teorias de Embranquecimento tiveram alguns pressupostos: favorecer a imigração
de europeus, incentivar ideologias que marginalizam os traços físicos negros e indígenas,
privilegiando os traços brancos como mais bonitos, propagando a crença de que a raça
caucasiana seria superior, por isso a população se tornaria branca, pois o gene superior branco
prevaleceria. Esses discursos pseudocientistas, ou seja, mentirosos, compactuou com a
crença equivocada de que a miscigenação embranqueceria, tendo em vista que, da perspectiva
39
das famílias brancas, a família estaria sendo escurecida, caso houvesse a mistura de raças.
Como Denis dos Santos afirma em seu livro intitulado Pardos:
O segundo aspecto relevante, que também está relacionado com o respeito, ou mais
precisamente, com a sua ausência, é a percepção de que muitas pessoas negras envolvidas
nesses discursos acreditam que podem proferir qualquer tipo de ofensa contra mestiços, sem
que isso seja considerado discriminação, preconceito ou racismo. Isso é justificado pela
posição racialmente vulnerável que negros se encontram na sociedade. Neste ponto, é
importante atentar ao fato de que racismo de negros contra brancos não existe, pois “A
população negra sofre um histórico de opressão e violência que a exclui. Para haver racismo
reverso, precisaria ter existido navios branqueiros, escravidão por mais de trezentos anos da
população branca, negação de direitos a elas.” (RIBEIRO, 2018, p.41). Porém, a população
mestiça também faz parte de um grupo que sofre um histórico de opressão e violência que a
exclui, assim como o grupo negro e indígena.
Também é colocado em pauta o argumento de que negros não podem ser racistas
contra outros negros, assim como mulheres não podem ser rotuladas como machistas. Nas
discussões políticas, isso é comumente referido como 'reprodução de racismo' ou 'reprodução
de machismo', pois se refere ao fenômeno em que uma pessoa utiliza discursos prejudiciais
que afetam tanto a ela própria quanto o grupo ao qual pertence. No entanto, é importante
considerar que, neste caso, existem pessoas negras e indígenas que não vivenciam o dia a dia
na condição de mestiçagem e do racismo específico direcionado aos mestiços, que foi
apresentado anteriormente. Portanto, não podemos equiparar esse cenário à 'reprodução de
racismo'. Diante dessas constatações, surge a seguinte indagação: por que algumas pessoas se
sentem tão à vontade para proferir ofensas contra mestiços? E, mais importante ainda, onde
estão as medidas legais e as ferramentas jurídicas disponíveis para nossa defesa?
Ainda no tweet da imagem 8, a pessoa afirma que “a cor está sumindo”, referindo-se à
tonalidade mais escura da mãe, apresentando uma interpretação preconceituosa da
mestiçagem como se esta resultasse no apagamento da raça da mãe. No entanto, com uma
consciência empoderada da identidade mestiça, podemos compreender que uma criança
mestiça não representa necessariamente uma anulação das raças negra, branca, indígena ou
qualquer outra. Em vez disso, representa o nascimento de uma nova racialidade que incorpora
diversos elementos, é rica e abundante, não é uma perda, não é uma metade, não é um
fragmento. Essa identidade é completa em sua multiplicidade. No próximo capítulo, falarei
sobre a cultura parda e também sobre a tão importante e crucial para o Brasil, Consciência
Mestiça.
41
Intelectuais e ativistas negros agora defendem que a designação "pardo" é válida, mas
somente dentro de sua própria jurisdição, considerando-a como um subgrupo do negro. Esse
fenômeno pode ser explicado por uma expansão de perspectivas, à medida que esses grupos
passaram a se sentir desconfortáveis com uma sensação de estarem sendo usurpados, devido à
dificuldade em se identificarem e se reconhecerem com igualdade em relação às pessoas
pardas que passaram a optar por se autodeclarar como pretas. Isso ocorre devido às notórias
diferenças em suas aparências e por historicamente não estarmos adaptados a ver uma pessoa
que se encontra no que Reginald Daniel chamou de “meio-termo racial”, como negra.
A própria Carla Akotirene faz um esforço notável para distinguir as experiências,
apesar de sua defesa da ideia de que 'pardo é negro'. Em suas publicações, ela frequentemente
aborda a diferença entre as vivências de pessoas retintas e pessoas mestiças, ocasionalmente
compartilhando mitos fundamentados no 'Colorismo', que já discutimos anteriormente. Um
exemplo marcante disso é uma postagem que inclui uma imagem impactante de muitos
homens pardos em uma cela de penitenciária, acompanhada da legenda: “(...)Vivemos numa
dinâmica racial aonde os pretos são mortos e os pardos estão na cadeia, num cenário
necropolítico contra o povo negro(...)” (AKOTIRENE, 2020). No entanto, é importante notar
43
A noção de que "pardo" é meramente uma categoria de cor e não uma raça legítima,
sendo que a raça legitimada é a negra, é apoiada com base na perspectiva discutida no
primeiro capítulo, a hipodescendência. Chama a atenção a escolha de palavras da autora Carla
Akotirene ao sugerir que se devolvam os pardos ao Movimento Negro. No entanto, os
mestiços não são propriedade do Movimento Negro, uma vez que muitos dentro do grupo
pardo nem têm ascendência africana, mas sim indígenas. Dada a diversidade racial do Brasil,
poderia ser mais apropriado que o movimento antirracista se denominasse "Movimento
Racial" em vez de "Movimento Negro", a fim de acolher de forma mais abrangente os
indígenas e os mestiços.
Nessas discussões, a hipodescendência é muitas vezes considerada como uma verdade
incontestável em relação à questão racial, ao invés de ser encarada como uma perspectiva
ideológica. Assim como as pessoas costumavam afirmar de forma simplista que "pardo não
existe," em vez de dizer que ativistas pela reparação histórica estão buscando terminologias
mais precisas, devido encontrar limitações em relação ao termo "pardo," atualmente, as
pessoas frequentemente afirmam que "pardo é negro", em vez de dizer que indivíduos
mestiços estão sendo categorizados como negros por razões específicas e escolhas políticas.
Isso gera uma distorção significativa nas crenças da população, ao disseminar a ideia de que
mestiços simplesmente não existem, o que constitui uma forma de negacionismo. Além disso,
as gerações mais jovens, altamente envolvidas nas redes sociais, tendem a reproduzir essas
ideias de forma acrítica, sem aprofundar-se nas discussões teóricas, resultando em
disseminação constante desses discursos em comentários e postagens nas mídias como robôs.
Ademais, essas teorias frequentemente negligenciam o significado que as palavras
"negro" e "preto" têm para a população brasileira em geral, historicamente, no imaginário
coletivo dos brasileiros, esses termos carregam significados semelhantes, se não idênticos.
Tornando o debate uma discussão elitizada, de difícil acesso para a maioria, uma vez que para
adquirir essa compreensão de que "negro" e "preto" carregam conotações distintas requer um
amplo estudo. Isso desconsidera a riqueza do conhecimento popular e a construção de sentido
e definições que ocorrem no âmago da sociedade.
É um exercício pertinente perceber se, ao ouvir as expressões "mulher negra" ou
"homem negro", você, leitor, de qualquer raça, mentalmente imagina uma pessoa parda. Essa
reflexão, quando feita com honestidade, nos convida a repensar como a substituição injusta de
"pardos e negros" ou “pardos e pretos” por apenas "negros" pode resultar na significativa
45
progressistas devido a um viés ideológico que tem favorecido a visibilidade de pessoas com
fenótipo não-ambíguo, mesmo quando isso está em desacordo com a realidade dos fatos.
Outros dois exemplos contemporâneos, mas internacionais, são as representações das
Rainhas Cleópatra e Charlotte nas séries recentes produzidas pela Netflix, que provocaram
considerável polêmica devido à escolha de atrizes negras para interpretar essas duas figuras
históricas. É importante perceber que as críticas geradas, em sua maioria, apresentam a
influência do racismo nas sociedades, expondo a resistência de grupos que se sentem
desconfortáveis com negros em papéis de destaque. Isso também foi evidente na escolha de
Seu Jorge para o papel da Marighella. Essa discriminação existe e precisa ser combatida. No
entanto, é importante observar essas seleções de atores sob uma perspectiva do grupo mestiço,
uma vez que as informações históricas sobre a ancestralidade racial tanto de Marighella
quanto das rainhas indicam a presença da miscigenação.
A BBC Brasil, publicou um artigo em 2009 intitulado Cleópatra era descendente de
africanos, que argumentava que as evidências obtidas do estudo das dimensões do crânio de
sua irmã Arsinoe, apresentavam características de diversos grupos étnicos, incluindo brancos
europeus, antigos egípcios e africanos negros, sugerindo que Cleópatra provavelmente tinha
uma origem étnica mista. Em 2019, a BBC publicou um artigo intitulado Charlotte, a primeira
rainha da Inglaterra descendente de africanos, que apontava que Charlotte era filha de uma
norte-africana moura, chamada Madragana Ben Aloandro e do rei português, Afonso III,
como relatado pelo historiador Mario de Valdes y Cocom, especialista em diáspora africana.
Imagem 12. Rainha Charlotte pintura/Capa da série Fonte: Reprodução BBC e Netflix
47
Além disso, é preocupante notar que muitos veículos de imprensa negligenciam o fato
de que Meghan se autodeclara birracial, anunciando-a como negra. Desrespeitando sua
autoafirmação de identidade, que é fundamental para identificação de nossa comunidade. Este
caso exemplifica as complexidades em torno da identidade multirracial e como essas questões
transcendem fronteiras nacionais, demonstrando que mesmo em uma sociedade com uma
história de hipodescendência como a norte-americana, as pessoas miscigenadas não estão
isentas de debates, desafios e sujeitas às mais diversas violências relacionadas a sua condição
mestiça.
antepassados africanos (...) Essa junção foi feita com relativa facilidade, e ela nunca
foi negociada com as pessoas pardas, pelo fato de não existirem, na época, grupos
organizados relacionados com as suas questões, um “movimento pardo”, que tivesse
condições de rebater esse conceito perante órgãos governamentais.(SANTOS, 2021,
p. 33)
É interessante que, no livro Pardos, o autor Denis dos Santos dedica um capítulo
inteiro a observar o quanto a disputa sobre o termo pardo tem sido fortemente enviesada na
imprensa brasileira e algumas vezes não democrática, por promover uma extinção da
terminologia parda e não convidar ninguém que discorde dessa afirmação para
contra-argumentar que “pardos são mencionados como ‘negros de pele clara’ ou focam nas
pessoas pardas que se declaram ‘negras’ sem considerar suas condições de pessoas pardas e
sem a consulta aos pardos que se declaram pardos”. (SANTOS, p. 62, 2021). Isso pode ser
interpretado como uma desvalidação de nossas próprias conclusões sobre nosso grupo,
quando discordamos das conclusões dos movimentos negros.
Seria prudente incorporar também a perspectiva de aliados brancos e amarelos a fim
de contribuir para a discussão em torno desta questão. Inúmeros indivíduos dessas
racialidades podem desempenhar um papel crucial na validação das identidades pardas,
auxiliando a desmantelar acusações, quando infundadas, de que algumas pessoas estariam
fingindo serem pardas por conveniência, que são “lidas como brancas” como é comumente
dito. Estes outros grupos podem, também, contribuir ao destacar as distinções que percebem
entre os grupos negros e pardos. Para além do conceito importante de "lugar de fala", é
essencial, em um contexto democrático, dar voz a uma diversidade de perspectivas válidas em
nossa sociedade diversificada, desde que sejam éticas. Reconhecer também que, em última
análise, os brancos detêm a capacidade de identificar seus iguais é um ponto de vista que
merece consideração.
Afirmar que pardos são negros contribui com etnocídio indígena. No Pará, em 2010,
cerca de 69,5% da população se autodeclarou como parda. Enquanto, 7,2% se declararam
pretos segundo o IBGE. Portanto, quando consideramos esses números em conjunto,
chegamos a uma proporção de 76,7% da população que está sendo atualmente classificada
como negra. Ao analisar esse mapeamento distorcido, percebe-se que o Pará está, segundo as
estatísticas oficiais, com uma população negra maior do que a Bahia, que é de 76,3%. A
Bahia é popularmente conhecida como o estado mais negro do Brasil, uma vez que abriga a
maior comunidade de afrodescendentes do mundo fora da África. É importante ressaltar que
muitas das pessoas que se autodeclaram pardas no Pará, na região amazônica e centro-oeste
tem ascendência indígena e exibem características fenotípicas que, com frequência, não são
reconhecidas pelas comissões de heteroidentificação em todo o país como pertencentes ao
grupo pardo. Isso ocorre devido à atual associação do termo 'pardo' exclusivamente à ideia de
negritude.
Como destacou o psicólogo e estudioso de raça, autodeclarado pardo, de ascendência
euro-indígena, Leonardo Rocha, em seu texto intitulado O que é apagamento indígena?:
frequência do tráfico de africanos para estes locais, estudos genéticos apontam para
a predominância da contribuição européia e ameríndia sobre o genótipo das
populações do Norte do Brasil, variando de 32% a 54% de contribuição ameríndia, a
depender do estudo – mas em todos eles o Norte aparece como a única grande região
brasileira em que a contribuição genética indígena é maior que a africana. (ROCHA,
2020)
Uma crítica adicional e pertinente, que também está relacionada à questão geográfica,
é que as conclusões desses movimentos que unem pardos e pretos é, em maioria, moldada
predominantemente por debates que ocorrem na região sudeste do Brasil, como podemos ver
essa reivindicação de uma seguidora Fabiana Leite Ribeiro, da página @parditude no
comentário abaixo:
Com figuras históricas mestiças sendo representadas hora como brancas, hora como
negras, conforme vimos mais acima, é evidente que a sociedade vai questionar e dizer que,
além dos pardos não existirem, a cultura parda também não existe. Porém, no Brasil existem
muitos exemplos de expressão cultural mestiça que podemos observar, como é a religião
umbanda. A Umbanda entrelaça elementos das culturas iorubana, bantu, espiritismo,
catolicismo e até mesmo incorpora influências das tradições xamânicas indígenas. Em
contraste, o Candomblé é uma religião afro-brasileira que busca preservar de forma mais
destacada as raízes africanas, fazendo um esforço consciente para minimizar a incorporação
de elementos de outras tradições. Em um evento de espiritualidade, me lembro de uma
palestra feita por um Babalorixá de Candomblé, quando alguém na plateia perguntou algo
sobre a Umbanda. Sua resposta foi: “A Umbanda mescla tantos elementos que, de certa
forma, é tudo e nada ao mesmo tempo, isso é péssimo!”, uma visão semelhante aos
estereótipos que costumam ser associados à população parda.
Outro exemplo muito interessante é o samba. Lira Neto é um escritor que se dedicou a
criar uma obra de três volumes sobre a história desse gênero musical brasileiro. Em sua
pesquisa, o autor desconstrói o mito que foi criado durante o Estado Novo, o qual tentou
retratar o samba como um símbolo da harmoniosa união das "três raças" no Brasil. Essa
narrativa visava diminuir a influência afro-descendente no samba, promovendo uma
mentalidade racista de embranquecimento e reforçando o controverso Mito da Democracia
Racial. No entanto, Lira Neto também reconhece que o samba possui raízes mestiças, uma
complexa fusão de influências culturais, o que enriquece ainda mais sua história. Ele diz:
O samba possui um lastro ancestral, uma base rítmica marcadamente negra, africana,
mas sua consolidação como gênero musical envolveu uma série de trânsitos e
percursos culturais. O lundu, por exemplo, que podemos definir como uma espécie
de avô do samba, surgiu do diálogo dos chamados “batuques” com danças de salão e
estilos musicais de origem europeia, promovendo fusões e assimilações posteriores.
Isso, em nenhum momento retira o protagonismo fundamental dos afrodescendentes
no processo de formação do samba urbano. É preciso não confundir, é claro, o
conceito de mestiçagem com a mitologia anacrônica da “democracia racial”. A
história de formação do povo brasileiro é uma história de violência, de exclusão, de
arraigado racismo. Isso também se deu no campo da cultura, que é
fundamentalmente conflitivo. O interessante é perceber como o samba, exposto ao
53
O trabalho de Lira Neto é muito importante, pois, por meio de extensa pesquisa, ele
aborda a história de forma holística, evitando validar apenas as narrativas que se encaixem na
ideologia dele como locutor. Ele reconhece o protagonismo negro, enfatiza a influência da
mestiçagem, enquanto salienta a necessidade de distinguir mestiçagem do mito da democracia
racial. Lira Neto também enfatiza a brutalidade do racismo na produção cultural brasileira,
com grande responsabilidade. Além disso, ele ressalta a presença da antropofagia,
estabelecendo um diálogo com um tema previamente abordado no primeiro capítulo.
É evidente notar que, assim como a população parda é mestiça, diversa e heterogênea,
assim também será a cultura, porém é possível notar uma tendência em desqualificar o que é
misto e ambíguo em prol do que é considerado supostamente preciso e objetivo, reflexo da
valoração da “pureza” racial e étnica. Como, por exemplo, a definição de "cultura negra",
"cultura indígena" e "cultura branca", carregam uma aparente objetividade de significado,
pelo menos na construção de sentido, diferente de “cultura parda”. Entretanto, é essencial
reconhecer que, mesmo dentro dessas categorias, há uma grande diversidade. Portanto, essa
abordagem não sustenta a ideia de que a cultura parda é inexistente por sua natureza imprecisa
e miscigenada, visto que a diversidade cultural também permeia as culturas africanas,
indígenas, europeias e todas as outras. Essa perspectiva revela uma aversão à condição
híbrida, a qual historicamente gerou discriminação contra indivíduos mestiços, não apenas
após o surgimento do conceito de raça, mas ao longo de toda a história, sempre que pessoas
de diferentes origens étnicas, culturais ou castas sociais geraram descendentes que foram
considerados bastardos e ilegítimos.
54
“Só os ignorantes que não aceitam o fato de que o mundo é uma mistura.”
Juanito Davi Parbey
Seu primeiro passo é fazer o inventário. Decapar, descascar, remover a palha. O que
ela herdou de seus ancestrais? Esse peso nas costas — qual é a bagagem da mãe
indígena, qual é a bagagem do pai espanhol, qual é a bagagem do anglo? Mas é
difícil diferenciar o que é herdado, o que é adquirido e o que é imposto. Ela coloca a
história em uma peneira, vence as mentiras, olha para as forças das quais nós, como
raça, como mulheres, fazemos parte. Depois jogue fora o que não vale a pena, as
negações, as divergências, a brutalização. Aguarda o julgamento, profundo e
enraizado, dos povos antigos. Este passo é uma ruptura consciente com todas as
tradições opressivas de todas as culturas e religiões. Ela comunica essa ruptura,
documenta a luta. Ela reinterpreta a história e, usando novos símbolos, molda novos
mitos. Ela adota novas perspectivas em relação aos negros, mulheres e LGBTs. Ela
fortalece sua tolerância (e intolerância) pela ambigüidade. Ela está disposta a
compartilhar, a tornar-se vulnerável a formas estrangeiras de ver e pensar. Ela abre
mão de todas as noções de segurança, do familiar. Desconstruir, construir. Ela se
torna uma nahual, capaz de se transformar em árvore, em coiote, em outra pessoa.
Ela aprende a transformar o pequeno “eu” no Eu total. Torna-se uma moldadora de
sua alma. Conforme a concepção que tem de si, assim será. (ANZALDÚA, 1987,
p,114, tradução minha)
Não devemos perder de vista essa oportunidade, afinal, dado o alto grau de
miscigenação em nossas populações, é a única abordagem viável. Separar as pessoas mestiças
em "brancos e negros" tem se mostrado uma tarefa impossível.
Outro autor também já citado brevemente anteriormente, que trata de forma muito
interessante a questão da miscigenação é G. Reginald Daniel, cuja contribuição foi crucial
para compreensão do fenômeno da multirracialidade em diversos contextos, incluindo o
Brasil. Suas obras significativas, como More than Black (Mais que Negro, em tradução livre)
e Race and Multiraciality in Brazil and the United States: Converging Paths? (Raça e
Multirracialidade no Brasil e nos Estados Unidos: Caminhos Convergentes?, em tradução
livre), explorando em detalhes a questão. Na segunda obra mencionada, Daniel investiga o
contraste entre os Estados Unidos e o Brasil no reconhecimento das identidades multirraciais.
Ele aponta que enquanto os EUA caminham para reconhecer tais identidades, o Brasil, por
outro lado, está tendendo a adotar sistemas binários.
A trajetória de Daniel foi dedicada a defender a mestiçagem como uma experiência
complexa e única que desafia as noções tradicionais de raça e identidade. Ele salienta a
importância da auto-identificação na compreensão da multirracialidade. O autor reforça que
permitir que pessoas multirraciais expressem e afirmem suas identidades de forma autêntica é
fundamental, sem restringi-las às categorias raciais binárias (branco-preto). Ele critica o
sistema binário nos Estados Unidos e em qualquer outro lugar, evidenciando sua origem
problemática, que foi na chamada Lei de uma Gota de Sangue. Em concordância com
Anzaldúa, Daniel argumenta que reconhecer a diversidade multirracial é vital para a
construção de sociedades inclusivas e justas. Também em concordância com Anzaldúa,
Daniel faz um prognóstico de que as sociedades norte-americanas tendem a se autodeclarar
cada vez mais como multirraciais(DANIEL, 2016), afinal de contas, a Consciência Mestiça é
a consciência do futuro (ANZALDÚA,1987).
Em relação a ambos os autores, até o momento, suas obras não foram traduzidas para
o português, o que ressalta a persistência de vieses que contribuem para a invisibilidade
mestiça e para a predominância de discursos hegemônicos norte-americanos como estruturas
dominantes. É relevante mencionar que, apesar de Glória ser considerada latina, chicana e
outras definições nos Estados Unidos, ambos os autores nasceram no próprio território
58
norte-americano. Nesse contexto, é evidente que algumas ideologias são boicotadas enquanto
outras são promovidas e exportadas, muitas vezes impulsionadas por disputas de poder,
embora nem sempre esses interesses sejam imediatamente perceptíveis.
Por último, é relevante considerar a sugestão de Amanda Kissua, uma migrante
africana, mulher negra nascida em Angola e residente em Curitiba. Com especialização em
comunicação, com ênfase em Comunicação Cultural e Interculturalidade, Amanda, de uma
perspectiva africana, identifica uma certa confusão no Brasil quando se tenta impor que os
mestiços sejam categorizados como negros. Ela destaca a importância de aplicar o conceito
africano Sankofa para nós, que simboliza o resgate do passado. Sankofa é ilustrado pelo
desenho de um pássaro olhando para trás, representando a necessidade de recordar os erros do
passado para evitar que se repitam no futuro (KISSUA, 2023). Em solo brasileiro, o termo
Sankofa ganhou alguma visibilidade após a criação da série SANKOFA: A África que te
habita, na qual o fotógrafo César Fraga e o professor Maurício Barros viajaram por países
africanos para conhecer os locais de memória do tráfico de africanos escravizados para o
Brasil.
A sugestão de Amanda Kissua oferece uma nova perspectiva, destacando que, embora
Sankofa seja um termo africano, ele não se limita apenas a resgatar a trajetória dos africanos
no Brasil. Ele abrange aceitar a história completa, o que, para nós mestiços, significa também
olhar para o passado, compreender e nos responsabilizar pelas ações de nossos ancestrais
europeus, incluindo seus erros. Lembrando que aceitar o passado não significa concordar com
o que aconteceu nele (STAPFF, p. 49, 2023), mas apenas através da aceitação é possível
transformar a realidade atual e construir um futuro melhor.
Considerações Finais
Com toda essa argumentação, podemos concluir que o fato de as categorias mestiças
terem sido historicamente utilizadas por uma cultura racista para apagar a memória dos
grupos africanos e indígenas não implica necessariamente que elas devam ser abolidas e que
os mestiços devem ser obrigados a "escolherem um lado". Isso se torna ainda menos possível
na prática, quando consideramos que existe uma parcela significativa de pessoas pardas que
são descendentes de negros, indígenas, brancos e/ou mais. Pessoas que expressam essa
mistura em seu fenótipo e cuja ascendência múltipla teve impactos relevantes em sua vida.
Tentar enquadrá-las em um sistema sem possibilidade mestiça só seria possível através de
esquartejamento. Essa pode parecer uma hipérbole um tanto agressiva, mas a disputa por
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nossa identidade pode ser interpretada como grupos tentando nos fragmentar, de acordo com
seus próprios interesses: os brancos planejando o embranquecimento da população às nossas
custas, e os negros e indígenas nos pressionando a negar nossa ascendência branca. No
entanto, não somos recortáveis.
Ao se tratar da implementação da parditude em políticas públicas, surgem
questionamentos. Uma outra falácia em torno da união de "pardos e pretos" como negros é a
suposição de que apenas por meio dessa união seria viável implementar tais políticas.
Contudo, é essencial considerar que pardos e negros podem ser agrupados como grupos
vulneráveis racialmente, sem necessariamente obterem a imposição da terminologia “negros”.
Como discutido, há pardos de ascendência indígena que não possuem negros em sua origem
racial.
Existem fenótipos que se situam em na fronteira entre negritude e parditude, como por
exemplo o da talentosa atriz Taís Araújo. Pessoas com essas características podem se
identificar com a parditude, a negritude ou um pouco de cada. Essa identificação será
moldada pela regionalidade e pelas experiências de contrastes raciais vivenciadas ao longo da
vida e na socialização. Compreender essas nuances é uma tarefa sensível, e é comum que
muitas pessoas nesse fenótipo questionem a melhor maneira de se autodeclarar racialmente.
No entanto, ao abordar a questão da multirracialidade, é importante aceitar que não existe
uma definição exata, ao se tratar de experiências e fazer parte das ciências humanas, essas
identidades são variáveis e relativas a uma série de fatores culturais.
Porém, para disputa de vagas em políticas públicas, fenótipos semelhantes ao de Taís
Araújo são qualificados, independentemente de como a pessoa escolhe se identificar, seja
como parte da negritude ou parditude. A maior complexidade surge quando lidamos com
pessoas que se encontram na fronteira entre as categorias de pardo e branco, pois é nesse
ponto que a discussão se intensifica. Essa definição desempenha um papel importante na
determinação de quem possui privilégios e quem necessita de ações reparatórias devido à
discriminação histórica.
Entretanto, essa fronteira entre branco e pardo se manifesta tanto no contexto de
reconhecer a parditude como uma experiência independente e separada da negritude, quanto
no contexto atualmente aplicado, onde a categoria de pardos é associada à negritude. A
diferença reside no fato de que, ao considerar a parditude, a fronteira das discussões torna-se
menor. A conversa deixa de se concentrar em rotular alguém como branco ou negro, que são
dois extremos e se torna uma questão de compreender se as pessoas em questão são brancas
ou pardas. Dessa forma, asseguramos o espaço dos negros com fenótipo predominantemente
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africano, que são "indiscutivelmente" negros, sem abrir margem para sensação de estarem
sendo usurpados e que suas vagas estão sendo ocupadas por pessoas com fenótipo próximo ao
dos brancos.
Essa separação garantiria os direitos dessas pessoas de maneira justa e inequívoca. Ao
mesmo tempo, evitaria que os pardos mais claros descendentes de negros e os pardos
descendentes de indígenas enfrentassem humilhações questionando sua identidade, e ainda
sim poderiam concorrer aos seus direitos institucionais, pois pelas estatísticas, todas as
pessoas que se identificam como pardas, independentemente se consideradas por uns e outros
mais próximas da brancura ou negrura, estão em vulnerabilidade socioeconômica assim como
os pretos. Essa diferenciação nos permitiria reconhecer a questão da ambiguidade na
aparência física como parte de uma agenda multirracial, reconhecendo como uma pauta
política da parditude e não da negritude. Essa seria a criação de um espaço propício para um
diálogo mais interseccional sobre raça no Brasil.
Em vez de abolir as categorias mestiças, temos a necessidade e a responsabilidade que
são de todos os brasileiros, de ressignificá-las a partir de uma perspectiva de Consciência
Mestiça e do reconhecimento do racismo, destruindo o Mito da Democracia Racial ao
abandonar de vez a negação de nossa herança indígena e africana. Também não podemos ser
reduzidos a uma massa manipulada para negar a condição de mestiçagem intrínseca em
nossos corpos e histórias, para nos encaixarmos aos grupos indígenas ou negros. Se não
somos aceitos integralmente, isso não é verdadeira inclusão e diversidade. Nossa história, seja
ela rotulada como feliz ou infeliz, certa ou errada, é a nossa história. A integração completa de
todos os aspectos de nossa identidade é a única maneira de nos “lembrarmos de quem somos”
e responder à pergunta de Krenak em sua palestra citada no segundo capítulo.
A partir desses diversos estudos de casos e revisão bibliográfica, torna-se evidente que
existe uma ideia distorcida de que uma pessoa mestiça, devido à sua múltipla origem,
supostamente teria a possibilidade de ignorar a realidade corpórea - em um país em que o
racismo predominantemente se baseia na aparência física - e pressupõe que essa pessoa pode
escolher livremente se deve ou não incorporar todos os elementos de aparência física e
herança em sua identidade, de acordo com as ideologias com as quais ela se identifica e com
quais partes da história de seus ancestrais ela concorda ou quais rejeita.
Esses discursos se manifestam como se estivessem dizendo aos mestiços: "Observe
como os brancos te trataram mal, junte-se a nós e escolha apenas a sua parte negra ou
indígena." No entanto, essa não é uma opção real, é um discurso de negação e alienação da
história e da materialidade. A condição de mestiçagem é intrínseca para quem é mestiço, ela
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faz parte de sua subjetividade, condição social e muito mais. Principalmente no Brasil, país
fortemente marcado pela miscigenação, induzir as pessoas mestiças a escolherem apenas um
lado é ter aversão ao hibridismo, uma forma de racismo presente em muitas culturas
intolerantes e ao combater o racismo não podemos compactuar ou promover teorias que
indireta ou diretamente reforçam esses preconceitos.
Ao reconhecer a diversidade racial representada pelo cinza no espectro, a conversa
pode ser mais equilibrada e respeitosa, já que a distância entre o branco e o preto é muito
grande e tem gerado muito atrito. Dessa forma, criamos um espaço cinzento, multirracial,
onde as nuances e complexidades da identidade podem ser tanto apreciadas, quanto discutidas
de maneira mais inclusiva, empática e compreensiva. Dessa forma, encerro aqui a minha
primeira contribuição mais robusta e formal para as questões raciais no Brasil. Agradeço por
ter lido até aqui.
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