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UNIVERSIDADE FEDERAL FLUMINENSE

INSTITUTO DE HUMANIDADES E SAÚDE


PRODUÇÃO CULTURAL

BEATRIZ BUENO AVELINO

PARDITUDE, MESTIÇAGEM E IDENTIDADE NO BRASIL


Uma Crítica à Rigidez Binária e a suas Implicações para a População Parda

RIO DAS OSTRAS


2023
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BEATRIZ BUENO AVELINO

PARDITUDE, MESTIÇAGEM E IDENTIDADE NO BRASIL


Uma Crítica à Rigidez Binária e a suas Implicações para a População Parda

Trabalho apresentado ao Curso de Produção


Cultural da Universidade Federal Fluminense,
como requisito parcial à obtenção do título de
Bacharel em Produção Cultural.

Orientador
Professor Doutor Ericson Saint Clair

Rio das Ostras, RJ


2023
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BEATRIZ BUENO AVELINO

PARDITUDE, MESTIÇAGEM E IDENTIDADE NO BRASIL


Uma Crítica à Rigidez Binária e a suas Implicações para a População Parda

Trabalho de Conclusão de Curso apresentado


ao Instituto de Humanidades e Saúde,
Produção Cultural da Universidade Federal
Fluminense, como requisito parcial à obtenção
do título de Bacharel em Produção Cultural.

Aprovada em 24 de Novembro de 2023.

BANCA EXAMINADORA

________________________________________
Orientador: Prof. Doutor Ericson Saint Clair - UFF

________________________________________
Prof. Doutora Rôssi Alves Gonçalves - UFF

________________________________________
Prof. Denis Moura dos Santos - USP
4

À minha irmã, Camila, que aos 29 anos conseguiu tirar a própria vida,
um mês antes da conclusão deste trabalho. Prometo honrar sua passagem por aqui e
encontrar a luz que você não vislumbrou no planeta Terra.
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AGRADECIMENTOS

Agradeço, primeiramente, pela minha vida, tal como ela se desdobrou, possibilitando
não apenas o trabalho desenvolvido até agora, mas todos que irei realizar nesse sentido.
Expresso minha gratidão por ser uma mulher de ascendência mista, filha de uma mulher negra
e um homem branco, brasileira, nascida na Zona Leste da multicultural São Paulo, em 1997.
Agradeço por ter sido uma criança artística, curiosa, teimosa e que os outros julgavam de
personalidade forte.
Agradeço por ter escolhido a área de Produção Cultural, mesmo sem compreender
plenamente do que se tratava, em Rio das Ostras, uma cidade completamente desconhecida na
época e que hoje é tão familiar. Reconheço e agradeço a todas as pessoas que cruzaram o meu
caminho ao longo desses anos. Honro e agradeço tanto às mãos estendidas que muito me
ajudaram, quanto aos punhos cerrados que, de alguma forma, também contribuíram para a
minha jornada. Cada uma dessas experiências foi fundamental para que eu chegasse onde me
encontro hoje.
Expresso minha gratidão a todos os professores que fizeram parte da minha jornada
acadêmica. Dedico um agradecimento especial aos professores universitários que acreditaram
em mim, especialmente meu orientador, Ericson, cujos ensinamentos transcenderam
totalmente a sala de aula, um grande mestre para a vida. Agradeço igualmente aos professores
que não acreditaram, pois, de certa forma, eles destacaram os desafios que eu enfrentaria no
caminho "lá fora". Hoje, trilho essa jornada com alegria e determinação, mantendo a cabeça
sempre erguida.
Expresso minha profunda gratidão aos meus pais, Valquíria e José Carlos, por me
darem a vida, por proporcionarem minha educação fundamental e, acima de tudo, por
priorizarem a minha liberdade. Foi a partir dessa liberdade que pude desenvolver todas as
minhas capacidades e cultivar uma autenticidade inigualável.
Agradeço às minhas tias, Vera Lúcia e Terezinha, que foram e são as verdadeiras
guardiãs dos meus objetivos, continuam a oferecer apoio incondicional e proporcionar as
condições necessárias para a concretização dos meus sonhos.
Minha irmã, Laura Bueno, por ser minha aliada nessa vida. Tantas amigas, amigos,
familiares, os seguidores do @parditude, meus colegas de trabalho e líderes que tive no
iFood, empresa em que estagiei e onde hoje sou efetiva. São tantas pessoas que merecem
agradecimentos e que tornaram esse sonho possível.
E claro, por último, mas a mais importante, sou grata a mim mesma. Agradeço por ser
a pessoa mais resiliente, dedicada e extraordinária que já conheci nesta vida. Meu privilégio é
existir neste próprio corpo.
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Só os ignorantes não aceitam o fato de que o mundo é uma mistura.


Juanito Davi Parbey
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RESUMO

O presente trabalho constitui uma crítica à tentativa de implementação de sistemas binários de


identidade no Brasil - em que se é branco ou negro sem possibilidades de identidade mestiça -
e as consequências práticas que este movimento tem gerado para a população parda. A
pesquisa teve como objetivo inicial investigar a viabilidade de uma atuação antirracista a
partir da ideia de mestiçagem. Porém, através de uma abordagem mista de estudos de casos e
uma revisão bibliográfica que abrange autores desde a década de 1950 até 2023, tornou-se
evidente que responder a essa pergunta sem abordar as injustiças enfrentadas pelas pessoas
pardas no Brasil contemporâneo não seria possível. Estou abordando esse tema no contexto
do meu curso de cultura, escolhendo analisá-lo através de objetos culturais, como diversas
formas de expressão midiática, incluindo séries, filmes e mídias sociais. Além disso, estou
observando como artistas renomados no campo cultural lidam com esse tema e exercem
influência. Para enriquecer o debate racial, também estou introduzindo conceitos
fundamentais da cultura, como a antropofagia cultural. Desta forma, este estudo contribui para
uma compreensão mais ampla e sensível das complexidades raciais no contexto brasileiro,
abordando a influência dos Estados Unidos nos debates raciais e destacando a origem do
conceito de hipodescendência. Explora a história da mestiçagem nos dois países,
desmitificando noções de colorismo e refutando a ideia de classificar mestiços apenas com
base nas experiências de racismo. Discute a exclusão simbólica e institucional dos pardos,
incluindo desafios nas cotas universitárias, e explora novas narrativas sobre a identidade
parda. Conclui ressaltando a importância do reconhecimento da parditude e da consciência
mestiça para promover genuína diversidade e inclusão, contribuindo para uma maior justiça
nas políticas públicas de reparação histórica e na sociedade como um todo. Respondendo à
pergunta inicial da pesquisa, o percurso argumentativo do estudo revelou que, na realidade,
uma atuação antirracista no Brasil, rejeitando a mestiçagem, não tem se apresentado viável.

Palavras-chave: Parditude. Colorismo. Pardos. Mestiços. Miscigenação.


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ABSTRACT

This work criticizes the attempt to force people in Brazil into strict categories of identity—
white, black, or indigenous—without recognizing mixed-race identities and the real problems
this causes for brown individuals. The research originally aimed to see if it's possible to fight
racism by embracing mixed-race identity. However, after studying various cases and looking
at literature from the 1950s to 2023, it became clear that we couldn't answer this question
without talking about the challenges faced by brown people now a day's Brazil. I am
addressing this theme within the context of my culture course, choosing to analyze it through
cultural objects such as various forms of media expression, including series, films, and social
media. Additionally, I am observing how renowned artists in the cultural field are dealing
with this theme and influencing it. To enrich the racial debate, I am also introducing
fundamental cultural concepts, such as cultural anthropophagy. So, this study helps us
understand better the racial complexities in Brazil, including the influence of the United
States on these discussions and the origin of the idea of "hypodescendance." It looks at the
history of mixed-race identity in both countries, debunking wrong ideas about colorism and
arguing against classifying mixed-race individuals only based on experiences of racism. The
research talks about how brown brazilian people are symbolically and institutionally
excluded, including difficulties in getting spots through university rights, and explores new
stories about brown identity. It concludes by stressing how important it is to recognize and
embrace mixed-race identity to promote real diversity, not only in historical reparations
politics but also in society overall. In answering the initial question, the study shows that, in
reality, trying to fight racism in Brazil by ignoring mixed-race identity isn't working.

Palavras-chave: Mixed-Race. Multiracial. Brown. Brazil. Colorism.


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Lista de Ilustrações

Imagem 01. Publicação nanda @baianatriste. Fonte: Reprodução Twitter 15

Imagem 02 .Publicação de bratty22k. Fonte: Reprodução Twitter 32

Imagem 03. Publicação anônima. Fonte: Reprodução Instagram 32

Imagem 04. Chamado de notícia Williane Muniz. Fonte: Reprodução G1 34

Imagem 05. Letícia Lacerda Fonte: Reprodução The Intercept Brasil 35

Imagem 06. Postagem YÉ Fonte: Reprodução Twitter 36

Imagem 07. Postagem Ijimú Fonte: Reprodução Twitter 36

Imagem 08. Postagem Lorena Fonte: Reprodução Twitter 38

Imagem 09. Postagem Carla Akotirene Fonte: Reprodução Instagram 42

Imagem 10. Comentários postagem @eumaria Fonte: Reprodução Instagram 43

Imagem 11. Comentários postagem @eumaria Fonte: Reprodução Instagram 43

Imagem 12. Rainha Charlotte pintura/Capa da série Fonte: BBC e Netflix 46

Imagem 13. Comentário na postagem Carla Akotirene Fonte: Instagram 50

Imagem 14. Comentário em uma postagem do @parditude Fonte: Instagram 51

Imagem 15. Comentário na postagem de @parditude Fonte: Instagram 52


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SUMÁRIO

1 INTRODUÇÃO 11

2 DESENVOLVIMENTO 15

2.1. A INFLUÊNCIA DOS EUA NOS DEBATES RACIAIS NO BRASIL: 15


ASPECTOS CRÍTICOS

2.1.1 Hipodescendência 16
2.1.2 Colorismo 20
2.1.3 Desmistificando um Privilégio Inexistente 22
2.1.4 A Potência da Antropofagia Cultural 23

2.2 A ENCRUZILHADA: O RACISMO DIRECIONADO À PARDITUDE 26


2.2.1 O Corpo Mestiço: Cabo de Guerra Ideológico 27
2.2.2 Barrados em Wakanda e na Universidade: Exclusão Simbólica e Institucional 31
2.2.3 Ideologias de Pureza: Nova Porém Antiga Tendência 38

2.3 O CAMINHAR PARA O RECONHECIMENTO DA PARDITUDE: 41


CULTURA E CONSCIÊNCIA MESTIÇA

2.3.1 Desafios na Busca pela Representatividade Mestiça 45


2.3.2 Alteridade e Democratização dos Debates Sobre a Parditude 48
2.3.3 E os Pardos Mestiços de Indígenas? 49
2.3.4 A Cultura Parda: Mestiçagem é a Riqueza da Diversidade 51
2.3.5 A Consciência Mestiça é o Futuro : Novas Perspectivas 54

3 CONSIDERAÇÕES FINAIS 58
4 REFERÊNCIAS 62
11

1. INTRODUÇÃO

Inicio esta introdução reforçando que o presente trabalho de pesquisa não se restringe
a um exercício de conclusão do curso de Produção Cultural, mas também se trata de um
propósito de vida que venho cultivando e nutrindo, não apenas no âmbito acadêmico, mas
também em outras esferas, incluindo minha forte atuação nas redes sociais. No mês de
novembro de 2023, quando escrevo esta introdução, a página do Instagram por mim intitulada
@parditude, da qual sou a administradora, dedicada a abordar questões relacionadas aos
pardos, atingiu a significativa marca de 48 mil seguidores. Cabe ressaltar que o engajamento
dessa comunidade desempenhou um papel crucial não só no grande incentivo e apoio para
que este trabalho acontecesse, mas também na formação das conclusões apresentadas, que
foram elaboradas considerando as contribuições provenientes desse grupo.
O estudo da parditude começou dentro de minha casa, onde investiguei e identifiquei
as contradições existentes em crescer em uma família inter-racial que, infelizmente, foi
profundamente afetada pelo racismo. A jornada em direção ao entendimento da parditude
começa, para mim, pelo meu próprio corpo, marcado por cicatrizes e feridas causadas pela
presença constante do racismo ao longo da minha vida. Essas feridas foram cutucadas e
voltaram a sangrar quando fui desqualificada e rotulada como branca por grupos que nunca
ouviram minha história, não sabem quem sou e insistem em impor modelos binários de
classificação racial ao Brasil. Essa é a minha experiência, mas é também a de muitas pessoas
mestiças com características ambíguas, como testemunho diariamente nas redes sociais, onde
leio relatos tão semelhantes, de pessoas contando suas histórias e agradecendo pelo trabalho
que realizo. Desvendar a complexidade da parditude, para mim, é crucial no processo de cura
para essas feridas pessoais e coletivas. Todas as dores que eu e minha comunidade
enfrentamos se transformam hoje em uma investigação conduzida com dedicação,
determinação, honestidade, responsabilidade e profundo amor.
Este estudo é uma continuidade do projeto intitulado Identidade Cinzas, no qual tive a
honra de desempenhar o papel de bolsista no Programa Institucional de Bolsas de Iniciação
em Desenvolvimento Tecnológico e Inovação – PIBITI/PIBINOVA da Agência de Inovação
da Universidade Federal Fluminense (AGIR). Essa pesquisa desempenhou um papel
fundamental na etapa mais empírica deste trabalho. Fiz uma coleta de 280 respostas
provenientes de pessoas de diversas regiões do país. Os relatos coletados atestam os desafios
enfrentados pelas pessoas que se autodeclaram pardas ao se depararem com a complexidade
12

da identificação racial, uma vez que sua aparência frequentemente não se ajusta às
categorizações rígidas de negros ou brancos.
No que se refere às experiências de racismo, constatamos que 57,5% dos participantes
relataram terem sido vítimas de atos racistas. Outros 30% afirmaram não ter certeza se já
passaram por situações de racismo, enquanto 12,5% declararam não ter vivenciado episódios
de racismo. Além disso, 84,3% dos respondentes afirmaram ter experimentado medo ou
inibições ao declararem sua identidade racial. Também coletamos uma variedade de dados
qualitativos que descrevem experiências de humilhação, questionamentos, exposição e
constrangimentos relacionados às suas identidades raciais. Essas informações são valiosas
para entender a percepção e vivência das pessoas pardas em relação à sua identidade racial, as
barreiras que enfrentam nesse contexto e como tudo isso poder influenciar suas decisões na
autodeclaração e na forma como contribuem para a luta antirracista.
Tendo em vista os resultados coletados, torna-se essencial que aqueles que como eu
usufruem da vantagem de estar inseridos na academia se propondo a ser pensadores e
produtores da cultura brasileira, se empenhem de maneira proativa na superação dos desafios
que surgem em decorrência das teorias amplamente disseminadas que negam a existência dos
pardos ou os categorizam estritamente como negros. Não devemos resistir à transformação
das narrativas, especialmente quando essas mudanças estão a serviço da sociedade e do bem
comum.
No início, o objetivo deste trabalho era responder à questão: É possível uma atuação
antirracista a partir da ideia de mestiçagem?. No entanto, por meio de uma abordagem que
combina o estudo de diversos casos semelhantes e uma revisão bibliográfica abrangente,
abordando autores desde a década de 1950 até o ano de 2023, tornou-se evidente que
responder a essa pergunta sem denunciar as injustiças enfrentadas pelas pessoas pardas no
Brasil contemporâneo seria impossível. Portanto, a trajetória da argumentação deste estudo
faz o caminho inverso, expondo que, na verdade, o que não está sendo viável é uma atuação
antirracista no Brasil que rejeite a mestiçagem. Conforme avançamos na argumentação,
percebemos que reconhecer a mestiçagem no Brasil não é uma escolha a defender ou repulsar,
mas sim uma realidade a ser encarada e investigada sem negações. Reduzir toda a diversidade
mestiça que caracteriza nosso país ao rótulo "negro" constitui uma invisibilização de
proporções imensas.
Para uma compreensão mais aprofundada deste estudo, é fundamental reconhecer que
adoto um recorte quando uso os termos "pardos" e “mestiços”. Baseado na conclusão de
Oracy Nogueira de que o racismo no Brasil é de marca (NOGUEIRA, 1955), não abranjo sob
13

a categoria de "pardos" todas as pessoas de ascendência étnica mestiça, pois muitos


indivíduos que são considerados "brancos" no Brasil têm ancestrais de outras raças em sua
linhagem. No contexto deste trabalho, estamos considerando que os pardos se referem a
pessoas de ascendência mista, em grande maioria, filhas da combinação de ascendência negra
e/ou indígena com ascendência branca, que apresentam características ambíguas em sua
aparência. Estas se encontram em uma situação em que, após a tentativa de enquadrá-los em
modelos binários, populares atualmente no Brasil, que reconhecem apenas a categorização de
"branco" e "negro", enfrentam dificuldades em classificar a si mesmos e são categorizados de
maneira diferente por observadores externos.
No contexto do estudo sobre a "parditude", os termos "preto" e "negro" são
semelhantes e tratam de um mesmo grupo, de acordo com as definições populares no Brasil.
Embora existam outras teorias em circulação, opto por adotar essa abordagem na pesquisa. A
diferença entre pessoas identificadas como pretas/negras para as pessoas pardas é que não há
controvérsias significativas sobre a identidade desses indivíduos, como surgem atualmente
diversas discussões e desafios para muitas pessoas pardas. É importante notar que as pessoas
negras/pretas podem ter ancestrais de diferentes raças em sua linhagem, não apenas africanos,
assim como acontece com o grupo categorizado como "brancos" que citei anteriormente. E
podem, sim, existir variações de cor e características dentro desse grupo, porém não a ponto
de, por exemplo, enfrentarem o temor de solicitar cotas raciais e serem rejeitados, além de não
serem alvo de comentários na internet como "essa pessoa é negra ou branca?", juntamente
com outras formas contemporâneas de exposição e humilhação que acontecem em âmbito
público e privado.
No primeiro capítulo, abordo a influência dos Estados Unidos nos debates raciais no
Brasil, com foco em questões críticas relacionadas à identidade e ao conceito de
"hipodescendência". Começo com um exemplo recente envolvendo a cantora Vanessa da
Mata, que declarou sua identidade racial como preta, desencadeando uma série de debates
sobre a classificação racial no Brasil. Além disso, exploro a história das diversas abordagens à
mestiçagem nos Estados Unidos e no Brasil, destacando como o assimilacionismo foi mais
prevalente no Brasil, promovendo a mestiçagem. Também abordo o "colorismo", que se refere
à pigmentocracia, destacando que no Brasil, devido à diversidade de traços físicos, o
colorismo assume formas complexas. Desmistifico a afirmação de que o colorismo representa
privilégios para os pardos. E por fim, exponho como o conceito de Antropofagia Cultural
pode ser aplicado às questões raciais no Brasil.
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No segundo capítulo, inicio abordando a carência de estudos sobre a racialização dos


mestiços. Em seguida, dedico uma parte a refutar o argumento de que os mestiços, devido à
experiência de racismo, devem ser classificados como negros ou indígenas, argumentando que
a identidade racial não deve ser tratada como um cabo-de-guerra, nem direcionada apenas
pelas experiências de racismo. Posteriormente, exploro a exclusão simbólica e institucional
que afeta os pardos atualmente, analisando como a alusão a "Wakanda" tem sido usada para
excluir os mestiços, bem como o desafio enfrentado na obtenção de vagas de cotas em
universidades federais. O capítulo encerra denunciando como os discursos que negam a
existência dos pardos têm contribuído para uma ideologia antimiscigenação, que é purista e
perpetua ideologias eugenistas.
No terceiro e último capítulo, inicio apresentando as novas narrativas que substituíram
a afirmação "pardo não existe" pela alegação de que "pardo é negro". Em seguida, exploro os
desafios de representatividade decorrentes dessas definições, com destaque para a importância
da alteridade e da democratização dos debates sobre raça no Brasil. O capítulo também aborda
a problemática de atualmente existirem pardos de origem euro-indígena sendo classificados
como negros pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística - IBGE. Por fim, exponho
importantes perspectivas inovadoras, sobre o caminho a ser trilhado para o reconhecimento da
cultura parda e da Consciência Mestiça no Brasil.
Na conclusão reforço que os mestiços não devem ser pressionados a negar sua
condição de mestiçagem para se encaixar em grupos étnicos específicos, pois isso não é
genuínadiversidade e inclusão. Por fim, trago exemplos práticos, mencionando como o
reconhecimento da parditude pode contribuir com uma maior justiça dentro do âmbito das
políticas públicas.
Estou muito feliz de concluir este trabalho e espero que você tenha uma excelente
imersão na parditude.
15

1. A INFLUÊNCIA DOS EUA NOS DEBATES RACIAIS NO BRASIL: ASPECTOS


CRÍTICOS

No programa Saia Justa da GNT, em maio deste ano (2023), a cantora Vanessa da
Mata se expressou de forma impactante: “Não me tire a única coisa que eu sei sobre mim, que
eu sou preta.”. Essa breve declaração reverberou nas redes sociais, desencadeando uma série
de reações e debates. Algumas pessoas apoiaram Vanessa da Mata, concordando que ela é
preta, enquanto outros argumentaram, de forma debochada, violenta e/ou acusativa, afirmando
que ela é, na verdade, uma mulher branca tentando se aproveitar da visibilidade das pautas
raciais. Houve também aqueles que afirmaram que ela não é preta, mas sim negra, argumento
conflituoso, tendo em vista o significado semelhante que ambas as palavras carregam
historicamente no Brasil. E, por fim, algumas vozes corajosas tentaram evocar o
reconhecimento de uma identidade mestiça que a contemplasse, como a identidade parda,
mulata e outras.

Imagem 01 - Publicação nanda @baianatriste. Fonte: Reprodução Twitter

Uma pergunta fundamental que surge diante da afirmação da cantora é: por que
alguém tentaria retirar de Vanessa da Mata “a única coisa que ela sabe sobre si mesma”?
Observamos figuras famosas negras, como o ator Lázaro Ramos, a cantora Ludmilla e a
jornalista Maju Coutinho, fazendo afirmações semelhantes? Defendendo sua identidade racial
com tal força, como se estivesse em risco ou posta à prova? Não. Essa declaração, juntamente
com o contexto, ascendência e fenótipo da cantora, ressaltam as complexas tensões raciais que
permeiam o cenário brasileiro em relação às definições de identidade de pessoas mestiças,
aquelas com ascendência europeia e africana, mas também incluindo indivíduos descendentes
de indígenas.
O exemplo do acontecido com Vanessa da Mata serve como uma ilustração
introdutória do problema de pesquisa que explorarei neste trabalho. Hoje em dia, mestiços que
desejam compreender com maior profundidade sua identidade racial e adotar uma postura
consciente e antirracista, se veem pressionados a abandonar suas identidades híbridas e aderir
16

a um sistema de identidade binário, onde são incentivados a se enquadrar como apenas negros
ou brancos, deixando pouco ou nenhum espaço para a expressão de sua mestiçagem e
contribuindo com apagamento indígena. Quando Vanessa da Mata se autodeclara preta, está,
de certa forma, aderindo ao que lhe foi proposto. É notável que os movimentos raciais no
Brasil estejam atualmente tentando promover a eliminação das identidades mestiças,
incentivando que pessoas com características entre branco e negro, como a Vanessa, se
identifiquem como negras. No entanto, ao seguir essa direção, o próprio fato de repercutir,
mas também a negatividade e os discursos de ódio resultantes, destacam a urgente
necessidade de aprofundar e investigar esse tema, a fim de desenvolver soluções autênticas
para a realidade brasileira. Essas soluções devem não apenas rejeitar o fato de que a
mestiçagem tenha sido historicamente incentivada como um meio de embranquecimento, mas
também assegurar o devido reconhecimento e espaço para as identidades dos corpos mestiços,
também vitimados por esse sistema racista e pernicioso.

Hipodescendência

Os movimentos negros brasileiros contemporâneos, nascidos na década de 70 (...)


Sob a influência dos movimentos negros americanos, tentam dar uma redefinição
do negro e do conteúdo da negritude no sentido de incluir neles não apenas as
pessoas fenotipicamente negras, mas também e sobretudo os mestiços descendentes
de negros (...) Esta definição do ponto de vista do movimento negro corresponde à
classificação dualista ou bi-racialnegro/branco (...) (MUNANGA, 1999, p. 124, grifo
meu).

Apesar de testemunharmos atualmente, nos nichos de discussões raciais, afirmações


frequentes de que os pardos não existem ou devem ser categorizados como negros de forma
incontestável, é crucial reconhecer que essas interpretações sobre a identidade racial têm uma
inspiração específica, conforme evidenciado na citação acima. Esses sistemas de classificação
racial têm origens particulares e foram desenvolvidos em um contexto histórico distinto do
nosso, o dos Estados Unidos. Para perceber os efeitos de aplicação de identidades binárias em
nossa sociedade nos dias de hoje, é necessário olhar para trás e lembrar que Estados Unidos e
Brasil tiveram um passado racial e colonial completamente distinto. Darcy Ribeiro investigou
essas diferenças e nomeou os estilos de colonização no norte e no sul da América como
Gótico e Barroco:
Dois estilos de colonização se inauguram no norte e no sul do Novo Mundo. Lá, o
gótico altivo de frias gentes nórdicas, transladado em famílias inteiras para compor a
paisagem de que vinham sendo excluídos pela nova agricultura, como excedentes de
mão-de-obra. Para eles, o índio era um detalhe, sujando a paisagem que, para se
europeizar, devia ser livrada deles. Que fossem viver onde quisessem, livres de ser
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diferentes, mas longe, se possível para outro além-mar, Pacífico adentro. Cá, o
barroco das gentes ibéricas, mestiçadas, que se mesclavam com os índios, não lhes
reconhecendo direitos que não fosse o de se multiplicarem em mais braços, postos a
seu serviço. Ao apartheid dos nórdicos, opunham o assimilacionismo dos
caldeadores (RIBEIRO, 1995, p 33).

Por meio dessa passagem constatamos mentalidades primordiais, em relação a


miscigenação, completamente opostas. A intenção e abordagem dos colonizadores nórdicos
era pautada pela separação e afastamento dos nativos, ao passo que os colonizadores ibéricos
recorriam à mestiçagem para promover seus próprios interesses na exploração do território.
Essa informação, assim como toda a obra de Ribeiro em relação ao povo brasileiro, fornece a
percepção de que os mestiços fazem parte da história da América do Sul desde o século XVI.
Embora o cruzamento de povos e culturas resulte naturalmente em mestiçagem ao longo da
história humana, nesse contexto específico havia uma intenção deliberada de aumentar a
população de trabalhadores por meio da multiplicação dos corpos, enquanto na América do
Norte os colonizadores levaram suas famílias inteiras da Inglaterra e não manifestaram
qualquer interesse em se misturar com o povo originário.
As mentalidades identificadas por Ribeiro como o "apartheid dos nórdicos" e o
"assimilacionismo dos caldeadores" acabaram por se enraizar nas respectivas culturas de
forma praticamente intrínseca. Essas dinâmicas se manifestaram durante a diáspora africana,
em que a lógica de interação foi a mesma com os africanos tanto no Norte quanto no Sul.
Além disso, persistiram no século XIX, período marcado pelo neocolonialismo, o qual as
teorias de darwinismo social e racismo científico ganharam proeminência na Europa e
exerceram influência global. Nesse momento, teorias eugenistas sustentavam o regime de
apartheid nos Estados Unidos e, no Brasil, justificaram políticas de miscigenação para
embranquecimento da população. Mais uma vez, a segregação em contraste com a
hibridização, expondo sistemas opostos, mas igualmente violentos, alimentados por
motivações supremacistas, racistas e discriminatórias.
Hipodescendência é o termo usado para descrever a tendência de classificar uma
pessoa de ascendência mestiça em um grupo racial ou étnico historicamente considerado
como tendo status social inferior pela sociedade. Por exemplo, quando alguém possui
ascendência tanto africana quanto europeia, a aplicação do conceito de hipodescendência
resultará na classificação dessa pessoa como negra, em vez de branca ou mestiça. O eugenista
Madison Grant foi um dos primeiros teóricos a afirmar a ideologia da hipodescendência.
Autor de uma das mais famosas obras de racismo científico (The Passing of the Great Race),
teve um papel ativo na elaboração de políticas de restrição à imigração e anti-miscigenação
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nos Estados Unidos durante o período de apartheid. Segundo ele, "o cruzamento entre um
branco e um índio é um índio; o cruzamento entre um branco e um negro é um negro; o
cruzamento entre um branco e um hindu é um hindu; e o cruzamento entre alguém de raça
europeia e um judeu é um judeu." (GRANT, 1916). Porém, o termo só foi inventado mais
tarde por Marvin Harris.
Segundo a hipodescendência, basta ser um pouco negro para sê-lo totalmente, mas
para ser branco é necessário sê-lo totalmente. Ou seja, movimentos eugenistas e autores
envolvidos em pseudociência racial foram os precursores nessa noção de vincular as pessoas
mestiças exclusivamente à identidade do grupo que eles próprios designaram como inferior e
subjugaram. Diante desse cenário histórico, surge a reflexão sobre qual grupo
verdadeiramente se beneficia com a manutenção desse sistema, que perpetua uma noção de
"pureza racial" entre os brancos. Além disso, podemos questionar de forma crítica a
necessidade de sua aplicação em países que não vivenciaram a segregação racial, como é o
caso do Brasil.
Durante o período de apartheid nos Estados Unidos, foram criadas diversas leis
pautadas na hipodescendência. Por exemplo, havia uma lei que definia que qualquer pessoa
que tivesse pelo menos um ancestral negro seria considerada negra e segregada - a Lei de uma
Gota de Sangue. E as leis anti-miscigenação proibiam casamentos e relações inter-raciais de
brancos com pretos, asiáticos, filipinos e indígenas. Enquanto no Brasil, as ideologias de
embranquecimento envenenaram os cérebros de negros e mestiços, que não poupavam
esforços para se embranquecer e embranquecerem sua família, negando ao máximo as
conexões com a africanidade. Acreditava-se que nosso país já estava perdido por ser mestiço,
mas que mestiços mais claros seriam menos piores que mestiços mais escuros e que um dia a
população se tornaria branca através da diluição da raça. (SANTOS, 2021, p.24). No livro
Rediscutindo a Mestiçagem no Brasil, Kabengele Munanga apresenta uma carta de um
membro pra Elite Brasileira para o ex-presidente dos EUA, Theodore Roosevelt, que ilustra
esse momento histórico:

Vocês nos Estados Unidos conservam os negros como um elemento inteiramente


separado, e tratam-nos de maneira a influir neles o respeito de si mesmos.
Permanecerão como ameaça à sua civilização, ameaça permanente e talvez, depois
de mais algum tempo, crescente. Entre nós, a questão tende a desaparecer porque os
próprios negros tendem a desaparecer e ser absorvidos... O negro puro diminui de
número constantemente. Poderá desaparecer em duas ou três gerações, no que se
refere aos traços físicos, morais e mentais. (...) No seu país foi toda a população
branca que guardou a força racial de origem, mas o negro ficou, e aumenta de
número, com o sentimento cada vez mais amargo e mais vivo do seu isolamento, de
modo que a ameaça que representa será mais grave no futuro. Não tenho por perfeita
19

a nossa solução, mas julgo-a melhor que a sua. (...) Penso que a nossa, a longo prazo
e do ponto de vista nacional, é menos prejudicial e perigosa que a outra, que vocês
nos Estados Unidos, escolheram. (Membro da elite brasileira, apud. MUNANGA,
1999, p. 112)

Esses diferentes contextos geraram maneiras singulares de compreender e nomear os


mestiços em cada sociedade. Além do fato de nos relembrarem cronologicamente o porquê da
presença da mestiçagem na América Latina ser muito mais notável do que na América do
Norte. Este passado, fundamental nas discussões raciais, faz com que, no presente, nós, aqui
no Brasil, tenhamos pessoas mestiças, que são filhas de mestiças, que são filhas de mestiças e
os corpos e características fenotípicas se tornam muito diversos.
Outro ponto importante observado na obra de Darcy Ribeiro é que, no Brasil, as
pessoas mestiças, que podem se identificar como pardas, não são apenas descendentes de
brancos e negros; elas também carregam forte influência da ascendência indígena. Ribeiro
apontou as matrizes do Brasil como africana, portuguesa e indígena. Também existe a
contribuição adicional de grupos imigrantes que chegaram em massa ao Brasil nos séculos
XIX e XX, trazendo consigo características raciais distintas, como os árabes e japoneses.
Essas populações, influenciadas pelos hábitos brasileiros, tendem a aderir ao
assimilacionismo ao se estabelecerem no Brasil, tornando-se parte da mistura racial e cultural.
Ao contrário dos imigrantes que se dirigem aos Estados Unidos, onde, adotando os hábitos
estadunidenses mais ligados à separação do que integração, permanecem em núcleos
culturais.
Oracy Nogueira também fala do assimilacionismo brasileiro nos estudos em que
aprofundou as diferenças entre o racismo que opera no Brasil e nos Estados Unidos. O autor
descreve a ideologia brasileira em relação às relações inter-raciais e interétnicas como sendo,
ao mesmo tempo, miscigenacionista em relação aos corpos, mas também assimilacionista em
relação aos traços culturais. Segundo ele, a expectativa geral é que os indivíduos de origens
não luso-brasileiras gradualmente abandonem sua herança cultural em favor do que seria a
nossa "cultura nacional", incluindo língua, religião e costumes. Ele acrescenta que nos
Estados Unidos, a expectativa predominante em relação às minorias que enfrentam
discriminação é que elas permaneçam endogâmicas e mantenham uma identidade social
separada, a fim de minimizar sua interação com a maioria, descendentes de ingleses, que
busca preservar o que é considerado sua "pureza" racial e características distintas.
(NOGUEIRA, 1955, p. 298).
20

Esses fatos configuram questões complexas para muito além da birracialidade. Temos
no Brasil um cenário totalmente multirracial. Tais elementos começam a nos trazer uma
compreensão maior porque muitos mestiços, incluídos hoje no grupo “pardos” pelo IBGE,
passam pelos constrangimentos que Vanessa da Mata passou ao tentar aplicar a
hipodescendência em sua afirmação de identidade.

Colorismo
O colorismo* ou a pigmentocracia é a discriminação pela cor da pele e é muito
comum em países que sofreram a colonização europeia e em países
pós-escravocratas. De uma maneira simplificada, o termo quer dizer que, quanto
mais pigmentada uma pessoa, mais exclusão e discriminação essa pessoa irá sofrer.
(...) Apesar de se orientar na cor da pele, o colorismo no Brasil, apresenta uma
peculiaridade; aspectos fenotípicos como cabelo crespo, nariz arredondado ou largo,
dentre outros aspectos físicos, que a nossa cultura associa à descendência africana,
também influenciam no processo de discriminação. (GELEDÉS, 2015).

O termo Colorismo se tornou popular nas conversas sobre raça no Brasil,


principalmente ao falar dos pardos. A autora Alice Walker foi quem usou a palavra colorismo
pela primeira vez em seu ensaio If the Present Looks Like the Past, What Does the Future
Look Like?, em 1982. Ou seja, a apropriação dessa terminologia no Brasil é mais uma forma
de interpretar a nossa realidade racial que foi importada do contexto estadunidense. E como
neste capítulo estamos explorando os problemas dessas importações, não poderíamos deixar
de passar por esse conceito. Alessandra Devulsky, em seu livro intitulado Colorismo,
argumenta que o colorismo pode ser considerado um subproduto insidioso do racismo.
(DEVULSKY, 2021, p.8). Ela cita Pap Ndiaye, que afirma que o colorismo tem a capacidade
de criar divisões entre pessoas da mesma comunidade, levando pessoas negras a se distanciar
umas das outras devido às suas diferenças (NDIAYE apud DEVULSKY, 2021, p.8).
A teoria do colorismo teve origem nos Estados Unidos como uma ferramenta de
reconhecimento e análise das diversas maneiras pelas quais os afro-americanos são tratados e
se tratam, baseadas em suas variações físicas resultantes de misturas raciais. Como exemplo,
mulheres negras com tons de pele mais escuros frequentemente destacam e criticam a
preferência de homens negros por mulheres de pele mais clara (mestiças) como uma
expressão de viés racista inconsciente. Embora a hipodescendência seja o modelo cultural
predominante para a identidade racial e o racismo nos EUA seja baseado na ascendência e não
na aparência física (NOGUEIRA, 1955), o colorismo detecta que a aparência física, que se
diversifica com a mestiçagem, desempenha sim algum papel no processo de racialização dos
21

estadunidenses. Afinal, quando encontramos alguém, não enxergamos seu DNA, mas sim sua
aparência física.
No contexto brasileiro, a teoria do colorismo oferece valiosas perspectivas, devido às
diversas variações fenotípicas presentes no nosso país. Colorismo no Brasil pode ser ilustrado
por aquela pessoa racista que diz que o cabelo de uma menina parda, por ser cacheado, não é
tão 'ruim' quanto o cabelo de sua mãe negra, que é crespo. Essa manifestação de racismo
assume diversas nuances, variando de acordo com a região, classe social e outros aspectos da
sociedade. Em síntese, o colorismo é uma teoria que aponta a existência de uma espécie de
hierarquia social baseada na cor da pele e nos traços físicos das pessoas pertencentes a grupos
racializados. Segundo o que a teoria propõe, essa hierarquia prejudicaria aqueles com
características mais próximas das associadas aos negros, enquanto privilegiaria aqueles com
características mais próximas das associadas aos brancos. No entanto, é importante notar que
a interpretação dessa teoria muitas vezes se distorce entre os brasileiros.
Nos Estados Unidos, onde o colorismo se refere às diferenças de tratamento entre
pessoas negras, todas as pessoas com ascendência africana são consideradas negras, devido a
questões culturais e históricas específicas abordadas anteriormente. No entanto, no Brasil,
historicamente reconhecemos uma variedade de identidades mestiças com diferentes
nomenclaturas, como pardos, morenos, caboclos, mulatos, cafuzos, mamelucos, entre outros.
Isso levou alguns movimentos a empregarem a teoria do colorismo como uma base para
justificar a aplicação do conceito de hipodescendência. Argumenta-se, por exemplo, que
aqueles que defendem a autonomia da identidade parda deveriam aprofundar seu
entendimento sobre o colorismo brasileiro. No entanto, é importante compreender que a teoria
do colorismo não fornece fatos ou evidências que comprovem ou justifiquem a
implementação de um sistema binário de classificação racial.
Em termos mais simples, a teoria do colorismo não afirma que mestiços pardos devem
ser categorizados como negros de pele clara, como muitas vezes é erroneamente argumentado.
Em vez disso, essa teoria contribui com a informação de que os mestiços também enfrentam
os impactos do racismo estrutural e que, a maneira como o racismo afeta suas experiências,
varia de acordo com seus traços fenotípicos. Devido à falta de conscientização racial, muitas
pessoas não percebem que o racismo não se limita apenas àqueles com um fenótipo
predominantemente africano. O racismo brasileiro afeta indivíduos mestiços com diversas
aparências. Isso ressalta a importância que este conceito teve ao auxiliar nós brasileiros a
compreendermos as diferentes manifestações do racismo através da pigmentocracia. Também
reforçou a razão pela qual devemos nos unir como um movimento racial unificado, com os
22

negros, os indígenas e os mestiços. No entanto, é crucial entender que essa consciência não
deve nem precisa ditar que esses mestiços devam definir sua identidade com base na
hipodescendência.

Desmistificando um Privilégio Inexistente

Ao abordar o tema colorismo é essencial reconhecer a contribuição significativa de


Sueli Carneiro. A autora levanta questionamentos pertinentes sobre a aplicação da teoria do
colorismo em nossa realidade, pois, com base em análises estatísticas, observa que as pessoas
pardas e pretas compartilham situações econômicas semelhantes. Argumentar que existe uma
hierarquia com base no grau de miscigenação pode, segundo ela, ser uma estratégia
equivocada de fragmentar nossa unidade de luta política. A autora afirma em diversos
momentos que “não é colorista”, alegando que pretos e pardos formam um grupo que, com
base nos indicadores sociais, possui condições de vida semelhantes e igualmente inferiores em
comparação ao grupo branco. (CARNEIRO, 2000, p. 67).
Tendo a obra de Sueli Carneiro em vista, é importante ressaltar que por mais que esteja
“na boca do povo” usar a teoria do colorismo para dizer que pardos enfrentam menos
adversidades ou desfrutam de privilégios, não existem indicadores ou dados sociológicos que
comprovem essa afirmação. Gabriela Bacelar discorreu sobre esse tema em sua pesquisa, em
um artigo chamado Colorismo e o Privilégio que Ninguém te Deu, essa autora também
recorreu aos dados estatísticos para defender sua argumentação. Bacelar observou que, de
acordo com dados do IBGE de 2010, a taxa de desemprego no Brasil apresentava
semelhanças significativas entre pardos e negros, sendo de 8,85% para a população parda,
8,93% para a população preta e 6% para a população branca. No mesmo período, o instituto
registrou que 45,47% dos pardos compunham a população de baixa renda, definida como
aquela que possui uma renda menor que a metade de um salário mínimo, enquanto os pretos
representavam 41,10% dessa população e os brancos 23,53%. Bacelar também mencionou
que as taxas de analfabetismo foram de 14% para pretos, 12,6% para pardos e 5,7% para
brancos. E por fim destacou o triste fato de que, no período de 2007 a 2017, o Sistema de
Informações sobre Mortalidade registrou que 64,6% dos homicídios envolvendo homens
tinham vítimas pardas. (BACELAR, 2020).
Através desses números, podemos avançar em nossa compreensão de como a
discussão sobre o colorismo pode ter se tornado rasa ao ser importada para o Brasil sem a
devida análise crítica. Apesar de termos uma história de racismo que inclui a desvalorização
23

de traços fenotípicos negros e que, por vezes, endossa a noção equivocada de que os mestiços
seriam “menos piores” por serem “menos negros” - como exemplificado anteriormente no
contexto dos cabelos cacheados/crespos - as estatísticas indicam que essas nuances
relacionadas ao aspecto físico não conferem nenhum privilégio estrutural significativo aos
mestiços. Estes, em grande parte, permanecem em situações de vulnerabilidade social e
econômica. Essas diferenças superficiais de tratamento baseadas em estética constituem o que
foi brilhantemente nomeado por Gabriela em seu trabalho como um "privilégio que ninguém
te deu".

A Potência da Antropofagia Cultural

Para ilustrar de forma imaginativa as questões que elaboro neste trabalho, iniciei este
capítulo com a fala da importante cantora Vanessa da Mata. Agora, para adentrar o tema
Antropofagia Cultural, recorro a Caetano Veloso, outro nome importantíssimo da música e da
cultura brasileira. Porém, ao contrário de Vanessa da Mata, Caetano é resistente a incorporar
identidade hipodescendente e se afirma um homem pardo. No programa Roda Viva, em 2021,
expressou sua opinião:

Sou pardo. Tem uma música no meu disco que fala isso. Agora a primeira palavra
que aparece no Meu Coco a esse respeito é mulato. "Somos mulatos, híbridos e
mamelucos. E muito mais cafuzos do que tudo mais." (...) Muito por outro lado, a
miscigenação virou um mito de beleza brasileira que atrapalha certas coisas que
precisam ser feitas, certas estatísticas que precisam ser enfrentadas e também atos do
cotidiano, né? Coisas que precisam mudar. Então tem muita gente que decide definir
que terminologia a gente pode ou não pode usar a respeito de raça e tal. Eu não sou
obrigado a concordar com todas as coisas. Eu acho que essa movimentação, em
grande parte americanizada, é muito útil ao Brasil, se o Brasil souber aproveitar.
Porque eu sou antropófago, então o Brasil tem que saber comer e metabolizar isso,
não se deixar dominar por isso. (VELOSO, 2021)

A proposta central do conceito de antropofagia é que os países que foram colônias


saiam da sombra de suas metrópoles ao criar seus produtos artísticos. Ou seja, a colônia deve
“mastigar”, “engolir” e “digerir” os conteúdos que vêm das potências para, então, criar algo
novo que conte genuinamente sua própria história. Associada ao movimento modernista
brasileiro do início do século XX, protagonizado por artistas como Oswald de Andrade, a
antropofagia cultural é uma forma de resistência à dominação cultural estrangeira e uma
afirmação da identidade cultural brasileira:

O segundo manifesto, o Antropófago, desenvolve e explicita a metáfora da devoração.


Nós, brasileiros, não deveríamos imitar e sim devorar a informação nova, viesse de
onde viesse, ou, nas palavras de Haroldo de Campos, assimilar sob espécie brasileira
24

a experiência estrangeira e reinventá-la em termos nossos, com qualidades locais


iniludíveis que dariam ao produto resultante um caráter autônomo e lhe confeririam,
em princípio, a possibilidade de passar a funcionar por sua vez, num confronto
internacional, como produto de exportação. (VELOSO, 1997, p.172)

Silviano Santiago, em seu trabalho, explorou como o conceito de entre-lugar no


discurso latino-americano deve estar amparado pela antropofagia cultural. Para ele, a
América, diante da colonização, performa um lugar negativo de cópia da metrópole que a
subjugou: “A América transforma-se em cópia, simulacro que se quer mais e mais semelhante
ao original, quando sua originalidade não se encontraria na cópia do modelo original, mas em
sua origem apagada completamente pelos conquistadores.” (SANTIAGO, 2020, p.15). Nesse
contexto, Santiago destaca que as Américas eram imitadoras da Europa e sua cultura original
era apagada.
Hoje, considerando os Estados Unidos como a principal potência ideológica e
econômica global, podemos extrair lições relevantes sobre como os movimentos raciais no
Brasil têm olhado muito para o norte e pouco para os lados, se inspirando nas teorias
estadunidenses, ao invés de buscar compreender realidades latino-americanas. É importante
notar que existem autores latino-americanos e seus descendentes, amplamente reconhecidos
por explorar e investigar perspectivas sobre a mestiçagem a partir de uma base centrada na
latinidade. Um exemplo notável é Gloria Anzaldúa, a quem nos dedicaremos em maior
profundidade posteriormente neste trabalho. Isso tem dado origem a conflitos e disputas de
poder em relação à identidade dos mestiços que podem ser amenizadas com a contribuição
dos pontos de vista dos nossos “hermanos”.
Para Santiago, essa busca por uma autenticidade no entre-lugar latino-americano
sempre será um caminho intenso:

O escritor latino-americano nos ensina que é preciso liberar a imagem de uma


América Latina sorridente feliz, o carnaval e a fiesta, colônia de férias para turismo
cultural. Entre o sacrifício e o jogo, entre a prisão e a transgressão, entre a submissão
ao código e a agressão, entre a obediência e a rebelião, entre a assimilação e a
expressão — ali, nesse lugar aparentemente vazio, seu templo e seu lugar de
clandestinidade, ali, se realiza o ritual antropófago da literatura latino-americana.
(SANTIAGO, 2020, p.26)

Unindo esses aprendizados e conceitos, podemos concluir que a implementação do


conceito de hipodescendência nos Estados Unidos, por mais que tenha origem nas teorias
eugenistas, foi bem-sucedida ao promover a união e a organização na luta contra o racismo e
aquisição dos Direitos Civis. Olhar para essa história fornece valiosas lições ao Brasil. No
25

entanto, é fundamental considerar as distinções culturais e históricas entre os dois países,


praticando, no contexto social, essa chamada antropofagia. Adaptar esse conceito à realidade
brasileira, levando em consideração a diversidade étnica e cultural que caracteriza o país é
extremamente importante e nos tira desse espaço de colônia que apenas reproduz os discursos
que vêm das potências. A identidade parda abriga múltiplas origens e é parte intrínseca da
história racial brasileira. Portanto, ao buscar inspiração em conceitos estrangeiros, é
necessário que o Brasil também abrace suas próprias narrativas e formas de identidade,
promovendo estratégias antirracistas mais inclusivas e eficazes.
26

2. A Encruzilhada: O Racismo Direcionado à Parditude

Por mais que a miscigenação seja um tema repetido em diversos trabalhos sobre raça
no Brasil, a identidade do mestiço ainda é nebulosa. Lia Vainer, em Famílias Interraciais,
ressalta o quanto é incomum encontrar estudos que abordem os processos de construção de
identidade racial dos filhos de casais inter-raciais, ou seja, dos mestiços brasileiros. Segundo
ela, é ainda mais paradoxal considerar que, apesar da exaltação da ideologia da mestiçagem
no Brasil, há escassez de trabalhos contemporâneos que discutam a identidade "mestiça" em
relação à construção e experiência cotidiana desses indivíduos em relação aos processos de
racialização. (VAINER, 2018,p.40). A autora complementa seu argumento trazendo a
contribuição de Joyce Lopes:

Tem sido mais recorrente discutir sobre os elementos contrários ou favoráveis à


mestiçagem, os seus sentidos e rumos para as relações raciais no país, que pautar a
identidade, o fenótipo e/ou as representações sociais do/a mestiço/a de modo
eminente empírico. Uma problemática tão presente e concreta quanto sustentação do
discurso da mestiçagem é a do lugar geopolítico do mestiço e a sua constituição de
pertencimento racial. (LOPES apud VAINER, 2018, p. 41).

A carência de definições e representações sociais para os mestiços pode ser vista como
um dos fatores que contribui para os conflitos que estamos observando neste trabalho. Isso
leva muitos mestiços a aceitarem anular sua identidade na tentativa de se encaixar em
movimentos identitários, para depois se sentirem perdidos ao não serem reconhecidos
plenamente e constantemente serem lembrados de sua condição mestiça, gerando uma
sensação de deslocamento. Neste contexto as pessoas mestiças ficam em uma fronteira que
tem sido chamada popularmente de “limbo racial”. Neste capítulo, vamos explorar mais
causas e consequências dessa exclusão. De fato, ao refletirmos sobre a questão da disputa
identitária em relação aos pardos, vemos emergir diversas facetas do racismo que se revelam a
partir da tentativa de impor um modelo binário ao nosso país. Torna-se cada vez mais
evidente e exposto o ressentimento, a negação da condição mestiça e uma aversão e um ódio à
história que os corpos mestiços contam sobre o Brasil.
Na prática, o discurso de que "pardo é negro", juntamente com as narrativas que a
sustentam, frequentemente se transformou em afirmações que promovem ideologias
anti-miscigenação e discriminação contra os mestiços. Isso, infelizmente, tem se tornado, sob
uma roupagem benevolente, uma ferramenta para perpetuar violências e manter um racismo
que não apenas se volta contra os mestiços por terem uma parte descendente de grupos
27

historicamente oprimidos, como negros ou indígenas, mas discrimina especificamente a


condição de mestiçagem em si. É urgente desenvolver investigações que abordem essa forma
específica de violência enfrentada pelos mestiços, indo além da simples descrição da
experiência dos pardos como uma “negritude incompleta”, com menos melanina e supostos
"privilégios" que já desmistificamos anteriormente.

O Corpo Mestiço: Cabo de Guerra Ideológico

O mestiço, traço de união entre raças, é quase sempre um desequilibrado, um


decaído, sem a energia física dos ascendentes selvagens e sem a atitude intelectual
dos ancestrais superiores.(...)Na luta sem trégua pela vida que envolve todos os
povos e na qual a seleção natural conserva os mais aptos hereditariamente, o mestiço
é um intruso. Surgiu de repente, sem caracteres próprios, oscilando entre influxos
opostos de legados discordes. (...) Sua instabilidade vem de sua tendência em
regredir às matrizes originais. (CUNHA apud; MUNANGA, 1999, p.58)

Para introduzir este tema, vamos destacar outros desafios relacionados à interpretação
de teorias. Vamos passar por alguns exemplos de argumentações que afirmam que indivíduos
classificados como "pardos" devem ser considerados "negros" devido às experiências de
racismo que enfrentam. Uma afirmação comum nas discussões sobre o tema é o bordão 'A
polícia sabe quem é negro.'. Essa fala sugere que, devido à exposição à violência policial, uma
pessoa parda se torna automaticamente negra. Essa interpretação da realidade é ilógica e pode
ser limitadora, pois reforça a ideia equivocada de que apenas indivíduos de identidade negra
enfrentam o racismo. No entanto, é importante lembrar que, historicamente, o racismo
promove a ideia da superioridade branca sobre todas as diversidades raciais.
Outro exemplo disso é o abordado no primeiro capítulo com Sueli Carneiro. A
justificativa para que "pardos" e "pretos" sejam agrupados como "negros" pelo IBGE, reside
na semelhança das estatísticas que apontam para a vulnerabilidade socioeconômica
compartilhada entre esses grupos. Contudo, considerar que "pardos" são sociológica e
politicamente equivalentes aos "negros", devido ao impacto negativo advindo do racismo que
compartilham, pode nos fazer perder a oportunidade de explorar as vivências singulares que
cada um desses grupos possui. Embora existam muitos pontos em comum, suas experiências
também têm aspectos próprios, que poderiam ser compreendidos em toda a sua complexidade
através de uma abordagem interseccional.
Kabengele Munanga, em seu livro Rediscutindo a Mestiçagem no Brasil, nos envolve
em uma trajetória histórica do conceito de mestiçagem ao longo dos séculos, até chegar na
situação racial brasileira. O autor nos apresenta informações que revelam como os mestiços
28

eram frequentemente estigmatizados devido a sua condição de mestiçagem, como evidenciado


pela citação que inicia este tópico, e por muitas outras ao longo do livro. Uma delas é que, “Se
o negro resulta de um sangue puro enquanto o mulato tem sangue misturado, é evidente
também que o negro está acima do mulato como o ouro puro está acima do ouro misturado.”
(LESEALLIER apud; MUNANGA, 1999, p.28). Essas afirmações, originadas de discursos de
pseudocientistas racistas, refletem ideologias violentas direcionadas especialmente contra os
mestiços. Isso, por sua vez, põe em questão a noção de que os pardos são iguais aos negros do
ponto de vista político-social.
A violência racial compartilhada nos leva a reconhecer a necessidade de nos unirmos
para combater o racismo. Embora tenhamos o compromisso de combater as várias formas
dessa injustiça, é fundamental compreender que não somos homogêneos. Portanto, é essencial
que continuemos a rediscutir a mestiçagem no Brasil quantas vezes for necessário, pois esse
diálogo tem sido escasso sob a perspectiva das pessoas mestiças. Isso é particularmente
importante, visto que, ao chegar ao último capítulo do livro de Munanga, após uma exposição
extensa sobre a histórica marginalização dos mestiços devido a sua condição multirracial, o
autor sutilmente propõe que pardos com ascendência africana considerem a autodeclaração
como negros. E faz isso mencionando a experiência bem-sucedida na conquista dos direitos
civis nos Estados Unidos como um exemplo a ser seguido. Vimos no capítulo anterior que
esse argumento é recorrente e quais as problemáticas dessa sugestão.
Mais um exemplo, envolvendo agora a perspectiva indígena, que compartilha a mesma
abordagem de considerar que indivíduos pardos descendentes de indígenas devem ser
classificados como indígenas devido às experiências de racismo ao longo da história, é
apresentado na palestra intitulada O Truque Colonial que Produz o Pardo, o Mestiço e outras
categorias de Pobreza, por Ailton Krenak, disponível no YouTube. O título da palestra já
coloca em evidência uma percepção extremamente pejorativa sobre categorias mestiças.
Rotular-nos como uma categoria de pobreza negligencia o fato de que, embora tenhamos
raízes em uma história de embranquecimento e racismo, nós, os mestiços, somos, acima de
tudo, um grupo de seres humanos e não apenas produto do colonialismo.
Declarações com este teor são extremamente degradantes e desrespeitosas, embora a
palestra apresente argumentações e aspectos enriquecedores, considerando que estamos
falando de uma das maiores referências indígenas do Brasil na atualidade. É importante
destacar que, mesmo sendo uma figura de grande relevância, isso não nos impede de
questionar e refletir criticamente sobre suas afirmações. Conforme reforçado em sua palestra,
devemos reconhecer que muitos de nós, mestiços, em momentos de inconsciência racial,
29

tentamos nos embranquecer. A afirmação da nossa mestiçagem historicamente esteve ligada à


negação de nossa ascendência negra ou indígena. Tudo isso como um mecanismo de defesa
para tentar nos proteger das violências da sociedade racista.
No entanto, é importante destacar que ser mestiço e escolher se autodeclarar como tal
não implica ser associado a uma categoria de pobreza ou algo que deva ser motivo de
vergonha, que é o sentimento que esse tipo de discurso acaba produzindo na comunidade
mestiça. A solução não deve consistir em simplesmente voltar a nos rotular como "indígena,
branco e negro", pois isso equivaleria a ignorar a complexidade da nossa história e nossas
particularidades de forma integral. Como mencionado pelo autor Reginald Daniel, um
defensor das identidades multirraciais nos Estados Unidos, em sua palestra More Than Black?
Multiracial Identity (Mais que Negro? Identidade Multirracial, em tradução livre):

Quando me afirmo como multirracial, estou assumindo uma posição intermediária,


mas não estou dizendo 'Eu quero ser branco para ter todas as vantagens que isso traz,
por favor, não quero ser negro.' Não! Isso faz parte de quem sou, essa é a minha
herança, isso é o que meu pai ou minha mãe são, e tenho o direito de abraçar ambas
as partes. (DANIEL, 2008, tradução minha)

A questão indígena apresenta uma complexidade ainda maior, pois transcende a mera
identidade racial no contexto de convivência urbana e globalizada. Ela abrange uma ampla
variedade de grupos étnicos e comunidades, com perspectivas divergentes em todo o território
brasileiro quanto à autodeclaração dos pardos descendentes de indígenas como pertencentes
ou não às comunidades indígenas. No entanto, na palestra, observamos o mesmo padrão
encontrado nos autores negros: Krenak aborda momentos de sofrimento que pessoas de
mestiçagem indígena enfrentaram, alguns que eram específicos para os mestiços e que não se
aplicavam aos indígenas. Por exemplo, durante o período em que a escravização dos
indígenas foi abolida pelo Marquês de Pombal, em 1758 (ROCHA, 2020), neste momento, os
mestiços poderiam ser caçados por bandeirantes devido à ambiguidade de sua identidade, uma
vez que não eram considerados estritamente indígenas.
Por fim, Ailton Krenak conclui sua palestra convidando os mestiços a se autoafirmar
como indígenas e questionando: "Vamos perguntar aos nossos irmãos que são chamados de
pardos: Vocês ainda se lembram de quem são? Porque sabemos que essas categorias foram
usadas para ocultar nossa identidade e apagar nossa memória." (KRENAK, 2021). Este
convite é muito interessante, pois mesmo que carregado dos vieses do autor e da sugestão do
que ele, a partir do lócus social de pessoa não-mestiça, conclui como a melhor forma de os
mestiços se autodeclararem, instiga as pessoas mestiças a refletirem sobre sua própria
30

identidade em relação ao contexto social e cultural em que se encontram. A responsabilidade


de fazer essa pergunta a nós mesmos e respondê-la de maneira completa recai sobre nós,
mestiços. Não é responsabilidade do Ailton Krenak, não é responsabilidade da Sueli Carneiro,
não é responsabilidade do Kabengele Munanga. É responsabilidade dos mestiços e não deve
ser delegada.
A partir do século XIX, se fortaleceram dois pontos de vista principais sobre os
mestiços, como explica Janaína Bastos:

Com base nos diagnósticos pretensamente científicos, o mestiço, como impasse a ser
resolvido, passou a ser visto de diferentes formas, que podem ser sintetizadas em
dois tipos de posicionamento: o primeiro compreendia o mestiço como etapa rumo
ao alcance do ideal branco; o segundo via o mestiço como a caricatura da destruição,
como elemento degenerado cuja descendência deveria ser evitada” (BASTOS, p.39,
2023)
Com essa percepção, é possível notar que embora o Brasil seja historicamente reconhecido
como país da miscigenação, esse elogio à miscigenação não se refletiu necessariamente na
valorização dos corpos mestiços e pardos em si. O que era enaltecida era a possibilidade de que
esses corpos eventualmente embranquecessem a população ao longo do tempo. Os corpos que
ficaram “no meio do caminho” desse processo de embranquecimento são ainda um problema para
a sociedade racista, pois viram seu projeto de embranquecimento falhar e a população continuar
com seus vários tons de marrom.
Os corpos pardos também não têm sido vistos de forma positiva por negros e
indígenas, o que pode ser constatado por esse grande levante para anulação de identidades
mestiças. Somos vistos como um obstáculo, vide o artigo O mulato, um obstáculo
epistemológico, de Eduardo de Oliveira, que em 1974 ganhou destaque nas discussões sobre
miscigenação, desmistificando a ideia de democracia racial com argumentações muito
relevantes. No entanto, no artigo, o autor aponta o mulato como um obstáculo na
compreensão do racismo no Brasil e, por extensão, em seu combate. Porém, o verdadeiro
obstáculo que enfrentamos não é o mulato, mas sim o próprio racismo. Outro obstáculo é a
dificuldade de abordar a complexidade das questões raciais no Brasil sem tentar simplesmente
replicar os modelos norte-americanos, pois o artigo cita muito os Estados Unidos como
inspiração, como é frequente. Por outro lado, temos indígenas nos categorizando como
produtos de um “truque colonial” e se referindo a nós como uma categoria de pobreza.
É evidente que muitos autores ultrapassam os limites ao criticar como a miscigenação
serviu ao sistema racista. Em alguns casos, a maneira inadequada como essas críticas são
31

formuladas acaba por desempenhar uma crítica à condição mestiça e não ao racismo. Tais
vieses sugerem que não há absolutamente nada de positivo em ser o que somos, pardos
oriundos de relações inter-raciais. Isso leva a uma visão equivocada de que a única solução
para enfrentar a narrativa estabelecida pelas Teorias de Embranquecimento é negar nossa
realidade multirracial. Toda essa ênfase na modificação dos sistemas de identidade acontece
em detrimento da investigação dos impactos e danos causados pelo racismo na comunidade
mestiça, que deveria ser o principal foco para a melhoria das relações raciais em nossa
sociedade.
Muitas pessoas pardas, devido à falta de autoconhecimento e à carência de definições,
conforme observado por Lia Vainer e Joyce Lopes, frequentemente não reconhecem o quão
problemáticas e nocivas essas ideologias e declarações podem ser. A percepção da real
necessidade de se defender desses discursos pode surgir tardiamente, muitas vezes somente
após enfrentarem o sofrimento das exclusões simbólicas e institucionais que abordaremos
agora neste capítulo.

Barrados em Wakanda e na Universidade: Exclusão Simbólica e Institucional

Apesar deste convite, aparentemente bem-intencionado, para que os mestiços se


autodeclarem negros, ou indígenas, temos evidências de que essa ideia não se mostra eficaz
para aqueles que a adotam. O caso de Vanessa da Mata que abriu o trabalho é apenas um
exemplo entre muitos. Um fenômeno que pode ser observado atualmente é como a simbologia
de Wakanda, cidade fictícia do filme Pantera Negra, se tornou um símbolo de resistência e
união negra muito forte e importante, porém existe no Brasil um movimento que utiliza dessa
alegoria não apenas como um instrumento de inclusão, mas como um mecanismo de exclusão
de pessoas pardas.
32

Imagem 2: Publicação de bratty22k. Fonte: Reprodução Twitter

A apropriação, por parte de indivíduos brasileiros, da simbologia de uma cidade


fictícia africana, cujos personagens possuem fenótipos negróides em totalidade, tem o efeito
de trazer à tona e evidenciar quem são os negros brasileiros socialmente aceitos ao se conectar
e ter orgulho em relação a suas raízes africanas. E quem são estes outros indivíduos que não
são "suficientemente negros" para desfrutarem deste mesmo direito. Nas plataformas de mídia
sociais, especialmente no Twitter, ao acompanhar o segmento de assuntos raciais, é comum
encontrar postagens que mencionam mestiços famosos ou desconhecidos, seguidas de
questionamentos como "fulano entra em Wakanda?” ou afirmações de que não entra, como no
exemplo abaixo:

Imagem 03. Publicação anônima. Fonte: Reprodução Instagram

Essas interações frequentemente envolvem exposição de fotografias, informações


pessoais, discursos de ódio, ofensas e acusações de "afro conveniência. Os constrangimentos
causados pelo questionamento e violências relacionadas à identidade de pessoas pardas têm
consequências práticas destrutivas não só para estas pessoas, mas também para organização
de um movimento racial bem articulado como um todo. Pardos, em meio a tantas disputas e
com medo de ataques e acusações, se sentem receosos de participarem ativamente de
movimentos pelo fim da opressão racial no Brasil como indivíduos também vitimados por
esse sistema.
33

Como já citei anteriormente, desde 2010 o IBGE define que pardos somados a pretos
representam a totalidade de pessoas negras no Brasil. Essa é a definição usada para determinar
quem tem direito às cotas raciais em concursos e vestibulares, por exemplo. Porém, é
necessário observar que este sistema está apresentando problemáticas na prática: uma delas é
defendida pelo autor Reginald Daniel. Ele diz que as categorias raciais no Brasil
historicamente se baseiam em aparências físicas, por isso, se uma pessoa se olha no espelho e
se vê numa categoria intermediária, fazer com que ela passe a se ver como negra não é tão
simples.
Daniel entende que o movimento negro está tentando transmitir uma mensagem de
unidade na luta antirracista e acredita que a estratégia faz todo o sentido, mas diz achar
problemático o discurso de que, para entrar na luta antirracista, uma pessoa não possa
reconhecer uma identidade que a conecte também à brancura (DANIEL,2016). Outra
problemática é que, quando se trata de pessoas mestiças no fenótipo, a “leitura racial” pode
ser diferente de acordo com contexto social, como nos aponta Nogueira:

Onde o preconceito é de marca, como no Brasil, o limiar entre o tipo que se atribui
ao grupo discriminador e o que se atribui ao grupo discriminado é indefinido,
variando subjetivamente, tanto em função dos característicos de quem observa,
como dos de quem está sendo julgado, bem como, ainda, em função da atitude
(relações de amizade, deferência etc.) de quem observa em relação a quem está
sendo identificado, estando, porém, a amplitude de variação dos julgamentos, em
qualquer caso, limitada pela impressão de ridículo ou de absurdo que implicará uma
insofismável discrepância entre a aparência de um indivíduo e a identificação que
ele próprio faz de si ou que outros lhe atribuem. Assim, a concepção de branco e
não-branco varia, no Brasil, em função do grau de mestiçagem, de indivíduo para
indivíduo, de classe para classe, de região para região. (NOGUEIRA, 1955, p. 293).

É comum nos debates raciais atuais encontrar pessoas defendendo a exclusão de


pardos mais claros de concursos e vestibulares, alegando que essas pessoas são brancas.
baseando-se em uma interpretação pessoal, em vez de uma análise sociológica. Esses
discursos frequentemente se apoiam na obra de Oracy Nogueira, uma vez que o autor
concluiu que o racismo no Brasil é de 'marca', ou seja, baseado na aparência física. No
entanto, essa observação crucial de seu trabalho - que ressalta que essa aparência física é
interpretada de maneira diferente de acordo com diversos fatores socioculturais - é
frequentemente ignorada nessas discussões, infelizmente.
No Brasil, um indivíduo miscigenado, além de fazer parte comprovadamente da
população mais vulnerável nas estatísticas, também está vulnerável a sofrer todo tipo de
exclusão, afinal, as bancas de heteroidentificação para cotas raciais, que iniciaram seus
34

trabalhos em 2017, com a importantíssima função de barrar possíveis fraudadores, vêm


também barrando muitas pessoas pardas que são mestiças no fenótipo. Além das denúncias de
supostas fraudes que muitos alunos pardos cotistas vêm sofrendo. Esse é o caso de Williane
Muniz, estudante de 21 anos autodeclarada parda que foi desclassificada durante a avaliação
prévia de cotistas na Universidade Federal de Pernambuco (UFPE). A estudante tentava
passar em medicina há cinco anos, conseguiu pela primeira vez em 2022 e foi frustrada pela
negativa da Comissão de Heteroidentificação da UFPE.

Imagem 04. Chamado de notícia Williane Muniz. Fonte: Reprodução G1

Outro caso muito intrigante, em que podemos ver como o racismo no Brasil é
sofisticado e vai se disfarçando e se readaptando às nossas tentativas de combatê-lo, foi o de
Letícia Lacerda, uma mulher parda de 43 anos, ex-operadora de telemarketing, mãe e avó que
foi expulsa do curso de medicina da Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB), faltando 6
meses para se formar. Em 2021, ela deu uma entrevista para o The Intercept Brasil contando
sua história. Nessa entrevista, ela conta que não era apenas uma mulher parda e periférica que
conseguiu seu acesso à universidade pública com o custo alto de noites sem dormir, pouco
tempo com as filhas e muito sacrifício para conciliar estudo e trabalho.
Letícia era também uma aluna ativista que sofria ataques e violências por suas
atuações. Contou em sua entrevista que desde o início do curso lutou pelas políticas de ações
afirmativas com o objetivo de proporcionar acesso ao ensino superior público para outras
mulheres semelhantes a ela e outros segmentos sociais vulneráveis também. Ela conta que
essa postura e atuação geraram desafetos, pois como o curso era majoritariamente composto
por pessoas brancas, sua luta pela ampliação das cotas gerava grande insatisfação. Era
evidente que, quanto maior fosse a reserva de vagas no curso de medicina para pessoas
sub-representadas, menores seriam as chances desses colegas de perfil hegemônico
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ingressarem nesse curso. Ela começou a sofrer ameaças de que seria denunciada e perderia
sua vaga, conta que não acreditou que sua expulsão realmente pudesse acontecer. Mas
aconteceu.

Imagem 05. Letícia Lacerda Fonte: Reprodução The Intercept Brasil

O fato de Letícia ter criado inimizades e desafetos devido a sua atuação política na
universidade e também de ter crescido em São Paulo e entrado na universidade do Sul da
Bahia, expõem dois pontos importantes que Oracy Nogueira detectou em sua análise: o de que
onde o racismo é de marca a afirmação de determinada pessoa está a depender também de
afetos e interesses, quando ele cita as “(relações de amizade, deferência etc.) de quem observa
em relação a quem está sendo identificado, estando, porém, a amplitude de variação dos
julgamentos,” (NOGUEIRA, 1955, p. 293) e também a questão regional, quando diz que
“Assim, a concepção de branco e não-branco varia, no Brasil, em função do grau de
mestiçagem, de indivíduo para indivíduo, de classe para classe, de região para região”
(NOGUEIRA, 1955, p. 293). O Pró-reitor de Ações Afirmativas da UFSB, Sandro Augusto
Ferreira, fez um comentário sobre isso:

Aqui, a questão é que Letícia cresceu em São Paulo, onde pode ser percebida como
negra, mas o mesmo não acontece em um lugar predominantemente negro como o
Sul da Bahia. A literatura sobre cotas ainda não deu conta disso devidamente. Mas
nos firmamos na realidade baiana. (MORAES,2021)

Esses dois elementos também são percebidos pelas pessoas que fazem referências a
Wakanda nas mídias sociais, como podemos ver nessas postagens:
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Imagem 06. Postagem YÉ Fonte: Reprodução Twitter

Imagem 07. Postagem Ijimú Fonte: Reprodução Twitter

Aqui vimos apenas dois de diversos casos de negativas questionáveis que são
noticiados frequentemente em nosso país nos dias de hoje. É relevante destacar o
documentário intitulado Dear Brown People: Autodeclarado, lançado em 2021, que aborda
histórias e registros relacionados a esse fenômeno de exclusão de pardos nas cotas. Esta
produção audiovisual constitui um valioso recurso para a compreensão e exploração mais
aprofundada do tema, evidenciando que a afirmação de que "pardo é negro" é válida apenas
até o momento em que a pessoa parda busca seus direitos de reparação histórica. A partir
desse ponto, pode-se tornar branco, ou simplesmente se tornar nada e não ser definido, como
foi o caso de Letícia, que não obteve resposta quando questionou se a consideravam branca
em seu recurso.
É claro que, por vezes, as recusas e denúncias são legítimas e visam a desmascarar
atividades fraudulentas. Afinal, em iniciativas que visam trazer oportunidade para grupos
vulnerabilizados por questões históricas, não é incomum encontrar indivíduos que buscam
vantagens de maneira desonesta. Entretanto, é crucial não reduzir ou suprimir o debate sobre
os direitos das pessoas pardas apenas invocando a existência de casos de fraude.
Comportamentos desonestos permeiam todas as camadas e instituições da sociedade. Por isso,
é urgente desenvolver mecanismos de combate à fraude que não prejudiquem ainda mais um
grupo que, ao longo de séculos de história, já tem sido suficientemente prejudicado.
Uma notável contradição pode ser percebida nestes acontecimentos. O próprio
surgimento das políticas de cotas e o avanço de diversas pautas voltadas aos direitos de
pessoas racializadas foram impulsionados pela unificação dos grupos pretos e pardos. No
Censo de 2010, cerca de 43% da população se autodeclarou como parda, enquanto somente
37

7,6% se reconheceram como pretos. Isso significa que a massiva presença de mestiços na
população contribuiu para o progresso das agendas e direitos raciais, direitos os quais agora
essas mesmas pessoas mestiças enfrentam obstáculos para usufruir.
Existem dados e estatísticas que confirmam a posição socioeconômica desfavorável
dos pardos e pretos no Brasil. Entretanto, somente um dos grupos precisa expor e reviver
constantemente experiências racistas para "comprovar” a validação de sua identidade. E,
mesmo assim, existe o risco de que suas experiências sejam desacreditadas. Como podemos
ver no recurso de Letícia Lacerda, que menciona que ela não possui características físicas
típicas de uma pessoa parda, como cabelo, boca ou nariz. A cor da pele teve pouca
importância no caso. A Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) não considerou sua
identificação como parda.
Em seu recurso, Letícia também mencionou argumentos sobre ter sofrido preconceito,
descrevendo três situações detalhadamente, mas a resposta foi que ela se confundiu e que o
preconceito era devido à sua condição de pobreza, mesmo ela alegando que se esforçava para
estar sempre “bem-vestida”. Ela também mencionou ter enfrentado preconceito no hospital
durante seus estágios, onde não era reconhecida como médica, sendo muitas vezes associada a
outras profissões, como cozinheira. Letícia sentiu que sua própria história foi reinterpretada e
comparou sua experiência a uma mulher que sofre violência e é minimizada quando alguém
diz: "Ah, você está exagerando, não é bem assim", algo que ela já vivenciou no passado ao
enfrentar violência doméstica.
Vale salientar que há uma questão muito relevante atacada por ativistas negros, a de
que no grupo “pardos” existem pessoas negras, ou seja, com fenótipo predominantemente
negróide e que se afirmam pardas devido às feridas do racismo brasileiro, tradicionalmente
embranquecedor. Ainda estamos no processo de conscientizar estes brasileiros negros que
negam suas origens. Mas o vasto grupo “pardos” não se resume a esses indivíduos. Existem
muitas pessoas ambíguas, assim como a Williane e como Letícia. Pessoas diversas, com
características mistas, que não gozam de privilégio social branco e que não estão tendo seus
direitos garantidos.
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Ideologias de Pureza: Nova Porém Antiga Tendência

Imagem 08. Postagem Lorena Fonte: Reprodução Twitter

Começamos este último tópico do capítulo com a exibição deste tweet, que ainda
permanece em circulação, mesmo após várias denúncias de pessoas que discordam da
ideologia nele compartilhada. Isso exemplifica uma manifestação extrema de violência,
consequência do que discutimos ao longo deste trabalho. Atualmente, vemos movimentos que
sugerem que a "miscigenação é genocídio" para a população negra, que acabam por perpetuar
uma mentalidade semelhante aos eugenistas, no que condiz em denotar uma superioridade na
“pureza racial”, promovendo o racismo anti-mestiços. É lamentável que uma família e uma
criança estejam sendo expostas ao público com discursos racistas, e que grupos estejam
interpretando essa situação como uma forma de combate ao racismo, com 1835 curtidas.
Onde viemos parar e para onde desejamos ir?
As Teorias de Embranquecimento tiveram alguns pressupostos: favorecer a imigração
de europeus, incentivar ideologias que marginalizam os traços físicos negros e indígenas,
privilegiando os traços brancos como mais bonitos, propagando a crença de que a raça
caucasiana seria superior, por isso a população se tornaria branca, pois o gene superior branco
prevaleceria. Esses discursos pseudocientistas, ou seja, mentirosos, compactuou com a
crença equivocada de que a miscigenação embranqueceria, tendo em vista que, da perspectiva
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das famílias brancas, a família estaria sendo escurecida, caso houvesse a mistura de raças.
Como Denis dos Santos afirma em seu livro intitulado Pardos:

Algumas pessoas, nos tempos atuais,(...) entendem a miscigenação como um


“branqueamento” ou “escurecimento”, quando ela deveria ser vista como uma fusão,
sem ter a conotação de que uma pessoa de determinado grupo racial tem qualidades
e/ou defeitos por pertencer a esse grupo. (SANTOS, 2021, p. 90)

Nenhuma pessoa comprometida em combater o racismo deve tolerar discursos que


rotulam a miscigenação como "genocídio". É inaceitável que as pessoas pardas, além de terem
que suportar insultos como "metiçona vagabunda", que vimos no tweet referente à parceira do
cantor Djonga, ainda enfrentem a ideia de que a miscigenação equivale a um genocídio. Se
aceitássemos essa afirmação, estaríamos efetivamente considerando a maioria da população
deste país como uma população de "zumbis". A autora do post afirma, como se fosse algo não
óbvio: “Até um branco é capaz de olhar isso aqui e falar que não é maneiro hahaha” (imagem
8). É um triste fato que, em nossa sociedade ainda marcada pelo racismo, pessoas brancas são
capazes de rejeitar a miscigenação. Infelizmente, essa perspectiva não é novidade e,
historicamente, figuras como Adolf Hitler compartilhavam opiniões semelhantes. Não por
coincidência, aproximadamente 400 crianças mestiças, nascidas da união entre brancos
alemães e negros de diferentes países africanos, foram submetidas à esterilização durante o
regime nazista na Alemanha. (BELA, 1996).
Há outros dois aspectos bem interessantes a serem considerados ao analisar essa
postagem: primeiro, o termo "palmitagem", que é constantemente usado para se referir a
pessoas negras que se relacionam com brancos. Este recurso, parece ser uma ferramenta de
ativismo que muitas vezes carece de maturidade e profundidade. A luta contra a mentalidade
de embranquecimento e contra priorização de pessoas brancas em relacionamentos não deve
necessariamente se traduzir em retaliação daqueles envolvidos em vínculos inter-raciais. Em
vez de adotar uma postura punitiva, o foco mais saudável pode ser o estímulo e o apoio
entusiasmado a relacionamentos entre pessoas racializadas, celebrando as diferentes belezas
negras, indígenas e mestiças, promovendo e apoiando essas conexões sempre que possível.
Quando não for viável, é fundamental respeitar as escolhas individuais e as relações que as
pessoas decidiram seguir. Nesse sentido, devemos compreender que a luta contra o racismo é
guiada por uma ética que busca construir uma sociedade mais saudável, segura e respeitosa
como um todo. Para alcançar esse objetivo, é necessário que qualquer forma de hostilidade
seja erradicada.
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O segundo aspecto relevante, que também está relacionado com o respeito, ou mais
precisamente, com a sua ausência, é a percepção de que muitas pessoas negras envolvidas
nesses discursos acreditam que podem proferir qualquer tipo de ofensa contra mestiços, sem
que isso seja considerado discriminação, preconceito ou racismo. Isso é justificado pela
posição racialmente vulnerável que negros se encontram na sociedade. Neste ponto, é
importante atentar ao fato de que racismo de negros contra brancos não existe, pois “A
população negra sofre um histórico de opressão e violência que a exclui. Para haver racismo
reverso, precisaria ter existido navios branqueiros, escravidão por mais de trezentos anos da
população branca, negação de direitos a elas.” (RIBEIRO, 2018, p.41). Porém, a população
mestiça também faz parte de um grupo que sofre um histórico de opressão e violência que a
exclui, assim como o grupo negro e indígena.
Também é colocado em pauta o argumento de que negros não podem ser racistas
contra outros negros, assim como mulheres não podem ser rotuladas como machistas. Nas
discussões políticas, isso é comumente referido como 'reprodução de racismo' ou 'reprodução
de machismo', pois se refere ao fenômeno em que uma pessoa utiliza discursos prejudiciais
que afetam tanto a ela própria quanto o grupo ao qual pertence. No entanto, é importante
considerar que, neste caso, existem pessoas negras e indígenas que não vivenciam o dia a dia
na condição de mestiçagem e do racismo específico direcionado aos mestiços, que foi
apresentado anteriormente. Portanto, não podemos equiparar esse cenário à 'reprodução de
racismo'. Diante dessas constatações, surge a seguinte indagação: por que algumas pessoas se
sentem tão à vontade para proferir ofensas contra mestiços? E, mais importante ainda, onde
estão as medidas legais e as ferramentas jurídicas disponíveis para nossa defesa?
Ainda no tweet da imagem 8, a pessoa afirma que “a cor está sumindo”, referindo-se à
tonalidade mais escura da mãe, apresentando uma interpretação preconceituosa da
mestiçagem como se esta resultasse no apagamento da raça da mãe. No entanto, com uma
consciência empoderada da identidade mestiça, podemos compreender que uma criança
mestiça não representa necessariamente uma anulação das raças negra, branca, indígena ou
qualquer outra. Em vez disso, representa o nascimento de uma nova racialidade que incorpora
diversos elementos, é rica e abundante, não é uma perda, não é uma metade, não é um
fragmento. Essa identidade é completa em sua multiplicidade. No próximo capítulo, falarei
sobre a cultura parda e também sobre a tão importante e crucial para o Brasil, Consciência
Mestiça.
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3. O caminhar para o Reconhecimento da Parditude: Cultura e Consciência Mestiça

Meu corpo mestiço euro-afrobrasileiro não será mais


aquele a ser embranquecido por colonizadores, nem
tampouco um corpo preto com menos negritude, minha
identidade é mista e inteira por si só.

Antes de adentrarmos a Consciência Mestiça mais precisamente, vamos observar que


os discursos que buscam anular a identidade parda tem sofrido adaptações para melhor se
adequar à forma como tem sido recebido na realidade. Conforme Verônica Daflon afirma em
seu livro Tão Longe, Tão Perto escrito em 2017, os ativistas dos movimentos negros
frequentemente interpretavam o uso de categorias como "pardo" como manifestações de uma
falsa consciência. Ao adotar uma dessas categorias como identidade, a pessoa estaria, segundo
Daflon, negando sua verdadeira herança étnica ou racial (DAFLON, 2017, p.30). Esse
discurso ganhou destaque na última década, impulsionado pelo advento da internet e pela
capacidade de disseminação de discussões políticas por meio das mídias sociais. Entretanto, é
importante notar que o cenário vem passando por mudanças.
A Dra. Carla Akotirene, uma renomada pesquisadora em estudos raciais, além de ser
uma produtora de conteúdo em mídias sociais, tem ganhado destaque por difundir a ideia:
"Devolvam o Pardo ao Movimento Negro" (AKOTIRENE, 2023). De acordo com a autora, é
um equívoco promover o que ela chama de “epistemicídio” do termo pardo; em vez disso,
argumenta que devemos reconhecê-lo da mesma forma que o Instituto Brasileiro de Geografia
e Estatística (IBGE) faz atualmente, como um subgrupo dos negros. A Dra. Akotirene sugere
que a autodeclaração como "preto" deve ser reservada apenas para pessoas descendentes de
africanos sem miscigenação com outros grupos, algo que ela mesma é. Em relação à
autodeclaração de Vanessa da Mata como "preta", que abriu o trabalho, por exemplo, a autora
se pronunciou nas redes sociais e concedeu entrevistas à imprensa, enfatizando que o erro de
Vanessa da Mata foi ter se autodeclarado "preta" em vez de "negra".
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Imagem 09. Postagem Carla Akotirene Fonte: Reprodução Instagram

Anteriormente a discussão estava centrada na afirmação de que a categoria "pardo"


não deveria existir mais, conforme podemos ver no trecho abaixo do livro “Pardos” de Denis
dos Santos:

A última entrevistada, a psicóloga Marleide Soares, defende, no momento, a


manutenção do termo “pardo” por admitir que a junção dos pardos com os pretos é
uma forma de fazer com que “metade do Brasil seja negra”, mas defende a retirada
do termo no futuro, em um momento de “maior maturidade” na sociedade brasileira.
(GERALDO apud SANTOS, p. 31, 2021)

Intelectuais e ativistas negros agora defendem que a designação "pardo" é válida, mas
somente dentro de sua própria jurisdição, considerando-a como um subgrupo do negro. Esse
fenômeno pode ser explicado por uma expansão de perspectivas, à medida que esses grupos
passaram a se sentir desconfortáveis com uma sensação de estarem sendo usurpados, devido à
dificuldade em se identificarem e se reconhecerem com igualdade em relação às pessoas
pardas que passaram a optar por se autodeclarar como pretas. Isso ocorre devido às notórias
diferenças em suas aparências e por historicamente não estarmos adaptados a ver uma pessoa
que se encontra no que Reginald Daniel chamou de “meio-termo racial”, como negra.
A própria Carla Akotirene faz um esforço notável para distinguir as experiências,
apesar de sua defesa da ideia de que 'pardo é negro'. Em suas publicações, ela frequentemente
aborda a diferença entre as vivências de pessoas retintas e pessoas mestiças, ocasionalmente
compartilhando mitos fundamentados no 'Colorismo', que já discutimos anteriormente. Um
exemplo marcante disso é uma postagem que inclui uma imagem impactante de muitos
homens pardos em uma cela de penitenciária, acompanhada da legenda: “(...)Vivemos numa
dinâmica racial aonde os pretos são mortos e os pardos estão na cadeia, num cenário
necropolítico contra o povo negro(...)” (AKOTIRENE, 2020). No entanto, é importante notar
43

que, como também mencionamos no primeiro capítulo, dados do Sistema de Informações


sobre Mortalidade entre 2007 e 2017 revelam que 64,6% dos homicídios envolvendo homens
tiveram vítimas pardas (BACELAR, 2020). Isso indica uma urgência da autora em estabelecer
distinções entre os pardos e pretos, mesmo quando essa distinção se baseia em informações
imprecisas e carentes de dados comprobatórios.
Aparentemente, agora reconhecem a inviabilidade de eliminar a categoria "pardo",
pois esta é muito utilizada no contexto brasileiro. Anteriormente, a discussão girava em torno
de se as pessoas pardas deveriam ser categorizadas como negras ou pretas (com "negro" e
"preto" tendo significados similares), brancas ou pardas. Como ilustrado nos comentários de
uma postagem de Vitória Nascimento Câmara, mais conhecida como Maria, uma cantora e
atriz brasileira que exibe um fenótipo ambíguo entre negro e branco:

Imagem 10. Comentários postagem @eumaria Fonte: Reprodução Instagram

Agora, as discussões ganham uma nova camada de confusão:

Imagem 11. Comentários postagem @eumaria Fonte: Reprodução Instagram


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A noção de que "pardo" é meramente uma categoria de cor e não uma raça legítima,
sendo que a raça legitimada é a negra, é apoiada com base na perspectiva discutida no
primeiro capítulo, a hipodescendência. Chama a atenção a escolha de palavras da autora Carla
Akotirene ao sugerir que se devolvam os pardos ao Movimento Negro. No entanto, os
mestiços não são propriedade do Movimento Negro, uma vez que muitos dentro do grupo
pardo nem têm ascendência africana, mas sim indígenas. Dada a diversidade racial do Brasil,
poderia ser mais apropriado que o movimento antirracista se denominasse "Movimento
Racial" em vez de "Movimento Negro", a fim de acolher de forma mais abrangente os
indígenas e os mestiços.
Nessas discussões, a hipodescendência é muitas vezes considerada como uma verdade
incontestável em relação à questão racial, ao invés de ser encarada como uma perspectiva
ideológica. Assim como as pessoas costumavam afirmar de forma simplista que "pardo não
existe," em vez de dizer que ativistas pela reparação histórica estão buscando terminologias
mais precisas, devido encontrar limitações em relação ao termo "pardo," atualmente, as
pessoas frequentemente afirmam que "pardo é negro", em vez de dizer que indivíduos
mestiços estão sendo categorizados como negros por razões específicas e escolhas políticas.
Isso gera uma distorção significativa nas crenças da população, ao disseminar a ideia de que
mestiços simplesmente não existem, o que constitui uma forma de negacionismo. Além disso,
as gerações mais jovens, altamente envolvidas nas redes sociais, tendem a reproduzir essas
ideias de forma acrítica, sem aprofundar-se nas discussões teóricas, resultando em
disseminação constante desses discursos em comentários e postagens nas mídias como robôs.
Ademais, essas teorias frequentemente negligenciam o significado que as palavras
"negro" e "preto" têm para a população brasileira em geral, historicamente, no imaginário
coletivo dos brasileiros, esses termos carregam significados semelhantes, se não idênticos.
Tornando o debate uma discussão elitizada, de difícil acesso para a maioria, uma vez que para
adquirir essa compreensão de que "negro" e "preto" carregam conotações distintas requer um
amplo estudo. Isso desconsidera a riqueza do conhecimento popular e a construção de sentido
e definições que ocorrem no âmago da sociedade.
É um exercício pertinente perceber se, ao ouvir as expressões "mulher negra" ou
"homem negro", você, leitor, de qualquer raça, mentalmente imagina uma pessoa parda. Essa
reflexão, quando feita com honestidade, nos convida a repensar como a substituição injusta de
"pardos e negros" ou “pardos e pretos” por apenas "negros" pode resultar na significativa
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invisibilidade de um estrato social vulnerável e, também, carente de representação. Conforme


Janaina Bastos observou em seu livro 50 Tons de Racismo:

(...) a produção acadêmica dos teóricos raciais, ao usar os termos “branco” e


“negro”, tende a reduzir à dualidade a multiplicidade das diferentes identidades e
seus possíveis conflitos, de forma que uma das consequências desse modo de pensar
no Brasil tem sido a invisibilização de outras identidades raciais. (CARDOSO apud
BASTOS, p. 13, 2023)

A abolição ou a apropriação pelos negros do termo “pardo” é uma estratégia política


de mobilização da camada social parda, que é abundante, em prol dos interesses da
comunidade negra. No entanto, é crucial ressaltar que, em muitas situações, essa estratégia
pode resultar em prejuízo aos direitos das pessoas pardas. Conforme vimos anteriormente,
denúncias de indivíduos que enfrentam recusa por parte das comissões de heteroidentificação
em todo o país, pois, mesmo se identificando como pardos, não são vistos como negros,
devido fatores culturais, regionais e outros aspectos, além dos desafios de representatividade
que vamos ver agora.

Desafios na Busca pela Representatividade Mestiça

É importante pontuar também que existem inúmeros desafios relacionados à


representatividade que se apresentam a partir das conclusões de que o pardo não existe, ou
que o pardo é negro. Um exemplo é o filme Marighella, que poderia ter sido uma
oportunidade para representar pessoas pardas no cinema, afinal a figura histórica Marighella
era um homem mestiço, filho de uma mulher negra e um homem branco de origem italiana.
No entanto, a escolha do ator de pele mais escura, Seu Jorge, para interpretar Marighella,
reflete uma atual distorção na percepção de que a raça do ator não faria diferença, contanto
que ele não fosse representado por um ator mais claro.
Essa foi a perspectiva defendida pelo diretor Wagner Moura quando questionado em
entrevistas, baseado em teorias contemporâneas que negam e ignoram a identidade parda e as
histórias reais que nossos corpos carregam. Wagner Moura também revelou que a primeira
escolha para o papel teria sido Mano Brown, o que seria mais apropriado, pois Brown também
é filho de uma mulher negra e um homem branco de origem italiana. Porém ele não pôde
continuar as gravações devido a seus compromissos com o rap. Independentemente disso, a
segunda escolha não deveria ser um ator preto, apesar de Seu Jorge ser um ótimo ator, com
uma atuação implacável de Marighella, essa escolha só ocorreu e foi aprovada por grupos
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progressistas devido a um viés ideológico que tem favorecido a visibilidade de pessoas com
fenótipo não-ambíguo, mesmo quando isso está em desacordo com a realidade dos fatos.
Outros dois exemplos contemporâneos, mas internacionais, são as representações das
Rainhas Cleópatra e Charlotte nas séries recentes produzidas pela Netflix, que provocaram
considerável polêmica devido à escolha de atrizes negras para interpretar essas duas figuras
históricas. É importante perceber que as críticas geradas, em sua maioria, apresentam a
influência do racismo nas sociedades, expondo a resistência de grupos que se sentem
desconfortáveis com negros em papéis de destaque. Isso também foi evidente na escolha de
Seu Jorge para o papel da Marighella. Essa discriminação existe e precisa ser combatida. No
entanto, é importante observar essas seleções de atores sob uma perspectiva do grupo mestiço,
uma vez que as informações históricas sobre a ancestralidade racial tanto de Marighella
quanto das rainhas indicam a presença da miscigenação.
A BBC Brasil, publicou um artigo em 2009 intitulado Cleópatra era descendente de
africanos, que argumentava que as evidências obtidas do estudo das dimensões do crânio de
sua irmã Arsinoe, apresentavam características de diversos grupos étnicos, incluindo brancos
europeus, antigos egípcios e africanos negros, sugerindo que Cleópatra provavelmente tinha
uma origem étnica mista. Em 2019, a BBC publicou um artigo intitulado Charlotte, a primeira
rainha da Inglaterra descendente de africanos, que apontava que Charlotte era filha de uma
norte-africana moura, chamada Madragana Ben Aloandro e do rei português, Afonso III,
como relatado pelo historiador Mario de Valdes y Cocom, especialista em diáspora africana.

Imagem 12. Rainha Charlotte pintura/Capa da série Fonte: Reprodução BBC e Netflix
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Esses exemplos destacam como as representações ao longo dos séculos


embranqueceram figuras históricas, como Cleópatra, que já foi representada por atrizes
caucasianas. No entanto, hoje, pela influência de movimentos identitários em ascensão, vemos
uma mudança na representação dessas figuras com a escolha de pessoas negras. Isso ilustra
como a história dos mestiços muitas vezes é moldada de acordo com os interesses e objetivos
do locutor e seu público-alvo. A recusa em reconhecer a completude da experiência mestiça,
seja por meio de embranquecimento ou escurecimento, não apenas apaga as histórias, mas
também restringe as oportunidades de representação para uma vasta parcela da população.
Também é importante destacar uma situação contrária às mencionadas até aqui, mas
que também revela um prejuízo para os pardos, mesmo quando ocupam posições de destaque.
O caso da ministra Edilene Lôbo, a primeira-ministra parda do Tribunal Superior Eleitoral
(TSE), que foi amplamente divulgada pela mídia como a primeira ministra negra do TSE.
Essa divulgação desencadeou uma enxurrada de críticas, ofensas e debates sobre sua
identidade, de forma semelhante ao que ocorreu com Vanessa da Mata. Comentários como
"Quando teremos uma negra de verdade no TSE?" exemplificam as situações que contribuem
para a humilhação de pessoas pardas, rotulando-as como "negras falsas". Essa apropriação
inadequada de nossa representatividade gera confusão e deslocamento.
Meghan, Duquesa de Sussex, a ex-atriz americana e esposa do príncipe Harry, agora é
um membro da família real britânica. Ela se identifica como birracial, um termo que respeita
sua origem mista e seu fenótipo ambíguo. No entanto, ao denunciar publicamente o racismo
que sofreu por parte da família real, esteve sujeita a críticas que ecoaram ao redor do mundo,
com discussões que reforçam a ideia que tratamos no segundo capítulo, o equívoco de
interpretar que quando uma pessoa mestiça enfrenta o racismo, ela se torna automaticamente
negra.
Ao realizar uma pesquisa no YouTube usando o termo "Meghan Markle black,"
encontramos títulos provocativos, como "MEGHAN MARKLE ISN'T BLACK" (Meghan
Markle não é negra), "Meghan Markle realizes she's BLACK" (Meghan Markle percebeu que
é negra), "Is Meghan Markle Black or White | The One Drop Rule" (Meghan Markle preta ou
branca? | A Regra da Única Gota de Sangue), "She Is Only Black When It Is Convenient
(Meghan Markle)" (Ela só é negra quando convém), e "Meghan Had To Learn To Be Black!"
(Meghan teve que aprender a ser negra) (YOUTUBE, 2023, grifos dos autores). Estes títulos
ilustram a complexidade das discussões em torno da identidade racial de Meghan e como as
interpretações errôneas persistem.
48

Além disso, é preocupante notar que muitos veículos de imprensa negligenciam o fato
de que Meghan se autodeclara birracial, anunciando-a como negra. Desrespeitando sua
autoafirmação de identidade, que é fundamental para identificação de nossa comunidade. Este
caso exemplifica as complexidades em torno da identidade multirracial e como essas questões
transcendem fronteiras nacionais, demonstrando que mesmo em uma sociedade com uma
história de hipodescendência como a norte-americana, as pessoas miscigenadas não estão
isentas de debates, desafios e sujeitas às mais diversas violências relacionadas a sua condição
mestiça.

Alteridade e Democratização dos Debates Sobre a Parditude

É comum observar que muitos intelectuais e ativistas negros, ao abordarem a questão


dos pardos, não aplicam a noção de alteridade. Enxergam a nós, as pessoas mestiças, não
como indivíduos ou grupo próprio, mas sim através de uma lente narcísica, projetando em
nossos corpos extensões de suas próprias vivências, como se fossemos versões incompletas
deles mesmos. Com frequência, somos retratados como variantes menos negras dos negros,
enquanto estes são considerados a referência original.
Ao contrário de outras causas sociais em que se promove consistentemente o respeito
por lugares de fala legítimos, muitas pessoas, incluindo as pardas, frequentemente buscam
indivíduos pretos para esclarecer suas dúvidas sobre os pardos, ou sobre suas próprias
identidades, e as consideram autoridades no assunto, sem sequer questionar o quanto isso é
problemático, já que acredita-se que ‘o pardo é negro’ ou o pardo sequer existe. Com isso, a
comunidade negra se apropria da comunidade parda, assumindo que a discussão gira em torno
deles, quando, na realidade, não é o caso. Muitos não percebem o desconforto gerado quando
decidem, unilateralmente, quem são os pardos e onde deveriam ser categorizados, em vez de
convidar pessoas pardas (que se vêem como pardas autônomas, multirraciais e não querem
abrir mão disso) a participarem também desse processo.
É essencial promover o respeito e a integração de diferentes perspectivas e vozes, da
mesma forma como atualmente é feito com diversos recortes sociais. Denis dos Santos aborda
e critica essas dinâmicas:

(...)fortaleceu-se o discurso do movimento negro de que os pardos e pretos deveriam


ser considerados negros, posteriormente adotado nas ciências sociais, mas que não
possui conceitos analísticos e nativos, pois ele carece de sustentação sociologica
e/ou biológica (...) aqueles que usam esse conceito não levaram em consideração a
existência dos mestiços de ascendência indígena e europeia, que não possuem
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antepassados africanos (...) Essa junção foi feita com relativa facilidade, e ela nunca
foi negociada com as pessoas pardas, pelo fato de não existirem, na época, grupos
organizados relacionados com as suas questões, um “movimento pardo”, que tivesse
condições de rebater esse conceito perante órgãos governamentais.(SANTOS, 2021,
p. 33)

É interessante que, no livro Pardos, o autor Denis dos Santos dedica um capítulo
inteiro a observar o quanto a disputa sobre o termo pardo tem sido fortemente enviesada na
imprensa brasileira e algumas vezes não democrática, por promover uma extinção da
terminologia parda e não convidar ninguém que discorde dessa afirmação para
contra-argumentar que “pardos são mencionados como ‘negros de pele clara’ ou focam nas
pessoas pardas que se declaram ‘negras’ sem considerar suas condições de pessoas pardas e
sem a consulta aos pardos que se declaram pardos”. (SANTOS, p. 62, 2021). Isso pode ser
interpretado como uma desvalidação de nossas próprias conclusões sobre nosso grupo,
quando discordamos das conclusões dos movimentos negros.
Seria prudente incorporar também a perspectiva de aliados brancos e amarelos a fim
de contribuir para a discussão em torno desta questão. Inúmeros indivíduos dessas
racialidades podem desempenhar um papel crucial na validação das identidades pardas,
auxiliando a desmantelar acusações, quando infundadas, de que algumas pessoas estariam
fingindo serem pardas por conveniência, que são “lidas como brancas” como é comumente
dito. Estes outros grupos podem, também, contribuir ao destacar as distinções que percebem
entre os grupos negros e pardos. Para além do conceito importante de "lugar de fala", é
essencial, em um contexto democrático, dar voz a uma diversidade de perspectivas válidas em
nossa sociedade diversificada, desde que sejam éticas. Reconhecer também que, em última
análise, os brancos detêm a capacidade de identificar seus iguais é um ponto de vista que
merece consideração.

E os Pardos Mestiços de Indígenas?

Outro tema importante mencionado por Santos, é a omissão da mestiçagem indígena,


que também é notada nas mídias sociais. Por exemplo, na postagem em que Carla Akotiene
solicita a 'devolução' do pardo ao movimento negro, há um comentário sobre o tema que
permaneceu sem resposta da autora.
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Imagem 13. Comentário na postagem Carla Akotirene Fonte: Reprodução Instagram

Afirmar que pardos são negros contribui com etnocídio indígena. No Pará, em 2010,
cerca de 69,5% da população se autodeclarou como parda. Enquanto, 7,2% se declararam
pretos segundo o IBGE. Portanto, quando consideramos esses números em conjunto,
chegamos a uma proporção de 76,7% da população que está sendo atualmente classificada
como negra. Ao analisar esse mapeamento distorcido, percebe-se que o Pará está, segundo as
estatísticas oficiais, com uma população negra maior do que a Bahia, que é de 76,3%. A
Bahia é popularmente conhecida como o estado mais negro do Brasil, uma vez que abriga a
maior comunidade de afrodescendentes do mundo fora da África. É importante ressaltar que
muitas das pessoas que se autodeclaram pardas no Pará, na região amazônica e centro-oeste
tem ascendência indígena e exibem características fenotípicas que, com frequência, não são
reconhecidas pelas comissões de heteroidentificação em todo o país como pertencentes ao
grupo pardo. Isso ocorre devido à atual associação do termo 'pardo' exclusivamente à ideia de
negritude.
Como destacou o psicólogo e estudioso de raça, autodeclarado pardo, de ascendência
euro-indígena, Leonardo Rocha, em seu texto intitulado O que é apagamento indígena?:

Em regiões como a Amazônia, o Centro-Oeste e o Semiárido nordestino, o processo


colonizatório foi distinto e marcado pela catequese das populações locais, que além
de assimilados à cultura portuguesa, também passaram a compor a principal força de
trabalho das pequenas vilas destas regiões. Mesmo após a abolição da escravidão
indígena pelo Marquês de Pombal em 1758, estas regiões continuaram importando
menos africanos escravizados do que o restante da colônia, sendo mais comum o
regime de servidão de brancos pobres, indígenas e caboclos – a Amazônia inteira,
por exemplo, recebeu apenas 4% de todo o tráfico negreiro brasileiro. Daí decorre
que as três regiões mencionadas têm hoje uma configuração étnico-racial distinta do
restante do país. Se os brancos são o maior grupo populacional do Sul e parte do
Sudeste e os negros predominam na Bahia e outras partes do litoral brasileiro e suas
adjacências, nestas regiões interioranas predominam os indígenas e/ou seus
descendentes mestiços. Para além dos dados históricos que apontam para a baixa
51

frequência do tráfico de africanos para estes locais, estudos genéticos apontam para
a predominância da contribuição européia e ameríndia sobre o genótipo das
populações do Norte do Brasil, variando de 32% a 54% de contribuição ameríndia, a
depender do estudo – mas em todos eles o Norte aparece como a única grande região
brasileira em que a contribuição genética indígena é maior que a africana. (ROCHA,
2020)

Uma crítica adicional e pertinente, que também está relacionada à questão geográfica,
é que as conclusões desses movimentos que unem pardos e pretos é, em maioria, moldada
predominantemente por debates que ocorrem na região sudeste do Brasil, como podemos ver
essa reivindicação de uma seguidora Fabiana Leite Ribeiro, da página @parditude no
comentário abaixo:

Imagem 14. Comentário em uma postagem do @parditude Fonte: Reprodução Instagram

A Cultura Parda: Mestiçagem é a Riqueza da Diversidade

A abordagem atualmente defendida por Carla Akotiene e outros ativistas negros,


embora represente uma mudança ao reconhecer o termo “pardo” novamente, ainda reluta em
conceder independência à categoria "pardo". Esta é tida por estes movimentos como inválida
quando vista de forma autônoma, argumentando que a ambiguidade da multirracialidade torna
a construção da identidade uma tarefa problemática e até impossível. Perguntas frequentes
que emerge ao se defender esse argumento estão relacionadas à questão cultural.: Qual a
cultura parda? Pardo não tem cultura? É importante observar que a cultura parda é
intrinsecamente mestiça e está a depender da regionalidade, assim como a maioria das
expressões culturais brasileiras, profundamente influenciadas pela rica e variada diversidade
étnica do país onde vivemos, que tem uma história assimilacionista.
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Imagem 15. Comentário na postagem de @parditude Fonte: Reprodução Instagram

Com figuras históricas mestiças sendo representadas hora como brancas, hora como
negras, conforme vimos mais acima, é evidente que a sociedade vai questionar e dizer que,
além dos pardos não existirem, a cultura parda também não existe. Porém, no Brasil existem
muitos exemplos de expressão cultural mestiça que podemos observar, como é a religião
umbanda. A Umbanda entrelaça elementos das culturas iorubana, bantu, espiritismo,
catolicismo e até mesmo incorpora influências das tradições xamânicas indígenas. Em
contraste, o Candomblé é uma religião afro-brasileira que busca preservar de forma mais
destacada as raízes africanas, fazendo um esforço consciente para minimizar a incorporação
de elementos de outras tradições. Em um evento de espiritualidade, me lembro de uma
palestra feita por um Babalorixá de Candomblé, quando alguém na plateia perguntou algo
sobre a Umbanda. Sua resposta foi: “A Umbanda mescla tantos elementos que, de certa
forma, é tudo e nada ao mesmo tempo, isso é péssimo!”, uma visão semelhante aos
estereótipos que costumam ser associados à população parda.
Outro exemplo muito interessante é o samba. Lira Neto é um escritor que se dedicou a
criar uma obra de três volumes sobre a história desse gênero musical brasileiro. Em sua
pesquisa, o autor desconstrói o mito que foi criado durante o Estado Novo, o qual tentou
retratar o samba como um símbolo da harmoniosa união das "três raças" no Brasil. Essa
narrativa visava diminuir a influência afro-descendente no samba, promovendo uma
mentalidade racista de embranquecimento e reforçando o controverso Mito da Democracia
Racial. No entanto, Lira Neto também reconhece que o samba possui raízes mestiças, uma
complexa fusão de influências culturais, o que enriquece ainda mais sua história. Ele diz:

O samba possui um lastro ancestral, uma base rítmica marcadamente negra, africana,
mas sua consolidação como gênero musical envolveu uma série de trânsitos e
percursos culturais. O lundu, por exemplo, que podemos definir como uma espécie
de avô do samba, surgiu do diálogo dos chamados “batuques” com danças de salão e
estilos musicais de origem europeia, promovendo fusões e assimilações posteriores.
Isso, em nenhum momento retira o protagonismo fundamental dos afrodescendentes
no processo de formação do samba urbano. É preciso não confundir, é claro, o
conceito de mestiçagem com a mitologia anacrônica da “democracia racial”. A
história de formação do povo brasileiro é uma história de violência, de exclusão, de
arraigado racismo. Isso também se deu no campo da cultura, que é
fundamentalmente conflitivo. O interessante é perceber como o samba, exposto ao
53

processo geral de domesticação e controle posto em ação pelas políticas urbanas,


pelo aparato repressivo e pela indústria do entretenimento, soube se reinventar, atuar
pelas bordas, negociar espaços, sempre de maneira antropofágica. (NETO, 2017)

O trabalho de Lira Neto é muito importante, pois, por meio de extensa pesquisa, ele
aborda a história de forma holística, evitando validar apenas as narrativas que se encaixem na
ideologia dele como locutor. Ele reconhece o protagonismo negro, enfatiza a influência da
mestiçagem, enquanto salienta a necessidade de distinguir mestiçagem do mito da democracia
racial. Lira Neto também enfatiza a brutalidade do racismo na produção cultural brasileira,
com grande responsabilidade. Além disso, ele ressalta a presença da antropofagia,
estabelecendo um diálogo com um tema previamente abordado no primeiro capítulo.
É evidente notar que, assim como a população parda é mestiça, diversa e heterogênea,
assim também será a cultura, porém é possível notar uma tendência em desqualificar o que é
misto e ambíguo em prol do que é considerado supostamente preciso e objetivo, reflexo da
valoração da “pureza” racial e étnica. Como, por exemplo, a definição de "cultura negra",
"cultura indígena" e "cultura branca", carregam uma aparente objetividade de significado,
pelo menos na construção de sentido, diferente de “cultura parda”. Entretanto, é essencial
reconhecer que, mesmo dentro dessas categorias, há uma grande diversidade. Portanto, essa
abordagem não sustenta a ideia de que a cultura parda é inexistente por sua natureza imprecisa
e miscigenada, visto que a diversidade cultural também permeia as culturas africanas,
indígenas, europeias e todas as outras. Essa perspectiva revela uma aversão à condição
híbrida, a qual historicamente gerou discriminação contra indivíduos mestiços, não apenas
após o surgimento do conceito de raça, mas ao longo de toda a história, sempre que pessoas
de diferentes origens étnicas, culturais ou castas sociais geraram descendentes que foram
considerados bastardos e ilegítimos.
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A Consciência Mestiça é o Futuro: Novas Perspectivas

“Só os ignorantes que não aceitam o fato de que o mundo é uma mistura.”
Juanito Davi Parbey

Conforme apresentado no início da reflexão, o contexto de combate ao racismo


brasileiro é profundamente moldado pelas teorias originadas nos Estados Unidos. Entretanto,
para desvelar narrativas mais afins à realidade brasileira acerca de questões étnico-raciais,
descobrimos um alento na figura de uma autora referência na discussão do que ela chama de
Consciência Mestiça. Gloria Anzaldúa é uma intelectual e mulher de origem mestiça, oriunda
de uma linhagem que combina raízes indígenas e hispânicas. Nasceu na área de fronteira
situada entre o Texas e o México e tem muito a contribuir para os dilemas de identidade
enfrentados atualmente pelos pardos brasileiros.
Em um trecho de seu livro Borderlands - La Frontera que, ao explorar a identidade
fronteiriça, é escrito mesclando inglês e espanhol em toda a obra, Glória Anzaldúa expressa
suas frustrações em relação à inadequação e à ambiguidade na experiência dos chicanos, que
são pessoas de ascendência mexicana mas que nasceram e vivem nos Estados Unidos. Essa
experiência ressoa profundamente com as narrativas previamente discutidas. A autora
argumenta que em contexto "gringo", isto é, na cultura norte-americana, os chicanos lidam
com uma excessiva humildade, auto-anulação, vergonha e autodepreciação. Em relação aos
latinos, há uma sensação de inaptidão linguística e desconforto, pois embora tenham raízes
latinas, não nasceram na América Latina. Com os povos indígenas nativos americanos,
Anzaldúa observa que os chicanos sofrem de uma "amnésia racial", ignorando os laços
sanguíneos compartilhados e carregando uma culpa associada à parte espanhola de sua
ascendência, que tomou terras e oprimiu os indígenas. Essas experiências se entrelaçam com
um profundo sentimento de vergonha racial (ANZALDÚA, 1987). As pessoas pardas em
meio a esse contexto de exclusão apresentado anteriormente acabam por experienciar um
deslocamento muito semelhante, principalmente a culpa associada à parte branca de nossa
ascendência europeia
Em oposição às teorias amplamente disseminadas na atualidade, que tentam introduzir
na cultura brasileira um sistema de identificação binário, em que os indivíduos são
categorizados como negros ou brancos, e pessoas mestiças são compelidas a escolher um
lado, Glória Anzaldúa argumenta que a consciência mestiça cultiva uma capacidade de lidar
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com contradições e ambiguidades. Para ela, a consciência mestiça dá às pessoas mistas a


habilidade de equilibrar diferentes culturas. Isso resulta em uma personalidade plural, ela diz:
A nova mestiza lida desenvolvendo uma tolerância para as contradições, uma
tolerância para a ambigüidade. Ela aprende a ser índigena na cultura mexicana, a ser
mexicana do ponto de vista anglo. Ela aprende a fazer malabarismos com culturas.
Ela tem uma personalidade plural, opera de modo pluralista - nada é descartado, o
bom, o mau e o feio, nada é rejeitado, nada é abandonado. Ela não apenas
sustenta as contradições, como transforma a ambivalência em outra coisa.
(ANZALDÚA, 1987, p.110, tradução minha)

O trabalho de Glória Anzaldúa pode gerar muitas percepções ao Brasil, um ponto


importante que a autora destaca é que o futuro necessita da Consciência Mestiça, pois mesmo
com essas abordagens promovendo anulação de identidades mestiças, a mestiçagem continua
acontecendo no Brasil, se intensificando cada vez mais também em outros países, com o fim
de regimes de Apartheid que ocorreram no último século e, também, devido aos processos de
imigração e globalização. A autora argumenta que:

Em alguns séculos, o futuro pertencerá à mestiza. Porque o futuro depende da quebra


de paradigmas, depende do cruzamento de duas ou mais culturas. Ao criar um novo
mythos – isto é, uma mudança na forma como percebemos a realidade, na forma
como nos vemos e nas formas como nos comportamos – la mestiza cria uma nova
consciência (ANZALDÚA, 1987, p.110, tradução minha)

Ela crítica oposições de forma geral, não só em contextos étnico-raciais e enxerga na


Consciência Mestiça uma oportunidade de quebra dessas divisões por uma sociedade mais
equalitária:

O trabalho da consciência mestiça é quebrar a dualidade sujeito-objeto que a


mantém prisioneira e mostrar na carne e através das imagens em seu trabalho como a
dualidade é transcendida. A resposta para o problema entre a raça branca e a negra,
entre machos e fêmeas, reside na cura da divisão que se origina no próprio
fundamento de nossas vidas, nossa cultura, nossas línguas, nossos pensamentos. Um
desenraizamento maciço do pensamento dualista na consciência individual e coletiva
é o começo de uma longa luta, mas que pode, em nossas melhores esperanças, nos
levar ao fim do estupro, da violência, da guerra. (ANZALDÚA, 1987, p,111,
tradução minha)

Quando examinamos o Brasil, percebemos que nossa miscigenação é uma


manifestação de inconsciência mestiça. Ao longo da história, uma mentalidade racista
promoveu uma miscigenação que supervalorizou os brancos e marginalizou os demais grupos
étnicos. Hoje em dia, muitas pessoas envolvidas nos debates raciais, questionam se é possível
uma atuação antirracista a partir da ideia de mestiçagem. No entanto, devido à história de
miscigenação baseada em processos de embranquecimento, muitos chegam à conclusão de
56

que não é possível e aderem a perspectivas que negam e criticam vigorosamente a


miscigenação.
É fundamental reconhecer que a mestiçagem no Brasil não é meramente uma
abstração a ser defendida, rejeitada ou criticada, mas sim uma realidade a ser encarada. O
problema racial central do Brasil reside, não na própria mestiçagem, mas no racismo que se
utilizou dela ao longo dos séculos. Devemos manter em mente quem é o inimigo real, sendo o
racismo a força a ser combatida. É frequente e equivocado associar uma pessoa parda que se
orgulha de sua mestiçagem a discursos falaciosos de que no Brasil não há racismo, somos
todos mestiços e outras afirmações inconscientes. Assim como no passado não existia uma
consciência negra, em um período no Brasil em que os negros estavam em grande parte
anestesiados e viviam na ignorância em relação à violência que sofreram e ainda sofrem, é
crucial desenvolver uma consciência mestiça. Isso implica desenvolver uma compreensão
profunda da construção dos pardos, os complexos processos raciais envolvidos, bem como as
influências coloniais que essa posição social carrega. E é fundamental que os pardos sejam
protagonistas nessa movimentação. Glória Anzaldúa descreve poeticamente seu processo em
seu livro, fornecendo pistas que nos orientam:

Seu primeiro passo é fazer o inventário. Decapar, descascar, remover a palha. O que
ela herdou de seus ancestrais? Esse peso nas costas — qual é a bagagem da mãe
indígena, qual é a bagagem do pai espanhol, qual é a bagagem do anglo? Mas é
difícil diferenciar o que é herdado, o que é adquirido e o que é imposto. Ela coloca a
história em uma peneira, vence as mentiras, olha para as forças das quais nós, como
raça, como mulheres, fazemos parte. Depois jogue fora o que não vale a pena, as
negações, as divergências, a brutalização. Aguarda o julgamento, profundo e
enraizado, dos povos antigos. Este passo é uma ruptura consciente com todas as
tradições opressivas de todas as culturas e religiões. Ela comunica essa ruptura,
documenta a luta. Ela reinterpreta a história e, usando novos símbolos, molda novos
mitos. Ela adota novas perspectivas em relação aos negros, mulheres e LGBTs. Ela
fortalece sua tolerância (e intolerância) pela ambigüidade. Ela está disposta a
compartilhar, a tornar-se vulnerável a formas estrangeiras de ver e pensar. Ela abre
mão de todas as noções de segurança, do familiar. Desconstruir, construir. Ela se
torna uma nahual, capaz de se transformar em árvore, em coiote, em outra pessoa.
Ela aprende a transformar o pequeno “eu” no Eu total. Torna-se uma moldadora de
sua alma. Conforme a concepção que tem de si, assim será. (ANZALDÚA, 1987,
p,114, tradução minha)

É interessante observar que, apesar da miscigenação brasileira ter uma história


violenta, muitos países que passaram por regimes de Apartheid veêm na mestiçagem um
símbolo de integração entre as raças e superação de preconceito. Não à toa, afinal, como
afirma Muniz Sodré:
(...)o principal modo de combater o racismo é o pensamento da aproximação, que é
mais completo. É o morar junto, a vizinhança na escola, no trabalho, nas relações
amorosas. A aproximação está em qualquer unidade que se possa construir, e o
57

racismo se exacerba quando os diferentes estão próximos. O Brasil já é um país que


tem as oportunidades de aproximação pela própria heterogeneidade da população.
Temos que pensar as diferentes formas de existir no Brasil e aprender com elas.
(SODRÉ, 2023)

Não devemos perder de vista essa oportunidade, afinal, dado o alto grau de
miscigenação em nossas populações, é a única abordagem viável. Separar as pessoas mestiças
em "brancos e negros" tem se mostrado uma tarefa impossível.
Outro autor também já citado brevemente anteriormente, que trata de forma muito
interessante a questão da miscigenação é G. Reginald Daniel, cuja contribuição foi crucial
para compreensão do fenômeno da multirracialidade em diversos contextos, incluindo o
Brasil. Suas obras significativas, como More than Black (Mais que Negro, em tradução livre)
e Race and Multiraciality in Brazil and the United States: Converging Paths? (Raça e
Multirracialidade no Brasil e nos Estados Unidos: Caminhos Convergentes?, em tradução
livre), explorando em detalhes a questão. Na segunda obra mencionada, Daniel investiga o
contraste entre os Estados Unidos e o Brasil no reconhecimento das identidades multirraciais.
Ele aponta que enquanto os EUA caminham para reconhecer tais identidades, o Brasil, por
outro lado, está tendendo a adotar sistemas binários.
A trajetória de Daniel foi dedicada a defender a mestiçagem como uma experiência
complexa e única que desafia as noções tradicionais de raça e identidade. Ele salienta a
importância da auto-identificação na compreensão da multirracialidade. O autor reforça que
permitir que pessoas multirraciais expressem e afirmem suas identidades de forma autêntica é
fundamental, sem restringi-las às categorias raciais binárias (branco-preto). Ele critica o
sistema binário nos Estados Unidos e em qualquer outro lugar, evidenciando sua origem
problemática, que foi na chamada Lei de uma Gota de Sangue. Em concordância com
Anzaldúa, Daniel argumenta que reconhecer a diversidade multirracial é vital para a
construção de sociedades inclusivas e justas. Também em concordância com Anzaldúa,
Daniel faz um prognóstico de que as sociedades norte-americanas tendem a se autodeclarar
cada vez mais como multirraciais(DANIEL, 2016), afinal de contas, a Consciência Mestiça é
a consciência do futuro (ANZALDÚA,1987).
Em relação a ambos os autores, até o momento, suas obras não foram traduzidas para
o português, o que ressalta a persistência de vieses que contribuem para a invisibilidade
mestiça e para a predominância de discursos hegemônicos norte-americanos como estruturas
dominantes. É relevante mencionar que, apesar de Glória ser considerada latina, chicana e
outras definições nos Estados Unidos, ambos os autores nasceram no próprio território
58

norte-americano. Nesse contexto, é evidente que algumas ideologias são boicotadas enquanto
outras são promovidas e exportadas, muitas vezes impulsionadas por disputas de poder,
embora nem sempre esses interesses sejam imediatamente perceptíveis.
Por último, é relevante considerar a sugestão de Amanda Kissua, uma migrante
africana, mulher negra nascida em Angola e residente em Curitiba. Com especialização em
comunicação, com ênfase em Comunicação Cultural e Interculturalidade, Amanda, de uma
perspectiva africana, identifica uma certa confusão no Brasil quando se tenta impor que os
mestiços sejam categorizados como negros. Ela destaca a importância de aplicar o conceito
africano Sankofa para nós, que simboliza o resgate do passado. Sankofa é ilustrado pelo
desenho de um pássaro olhando para trás, representando a necessidade de recordar os erros do
passado para evitar que se repitam no futuro (KISSUA, 2023). Em solo brasileiro, o termo
Sankofa ganhou alguma visibilidade após a criação da série SANKOFA: A África que te
habita, na qual o fotógrafo César Fraga e o professor Maurício Barros viajaram por países
africanos para conhecer os locais de memória do tráfico de africanos escravizados para o
Brasil.
A sugestão de Amanda Kissua oferece uma nova perspectiva, destacando que, embora
Sankofa seja um termo africano, ele não se limita apenas a resgatar a trajetória dos africanos
no Brasil. Ele abrange aceitar a história completa, o que, para nós mestiços, significa também
olhar para o passado, compreender e nos responsabilizar pelas ações de nossos ancestrais
europeus, incluindo seus erros. Lembrando que aceitar o passado não significa concordar com
o que aconteceu nele (STAPFF, p. 49, 2023), mas apenas através da aceitação é possível
transformar a realidade atual e construir um futuro melhor.

Considerações Finais

Com toda essa argumentação, podemos concluir que o fato de as categorias mestiças
terem sido historicamente utilizadas por uma cultura racista para apagar a memória dos
grupos africanos e indígenas não implica necessariamente que elas devam ser abolidas e que
os mestiços devem ser obrigados a "escolherem um lado". Isso se torna ainda menos possível
na prática, quando consideramos que existe uma parcela significativa de pessoas pardas que
são descendentes de negros, indígenas, brancos e/ou mais. Pessoas que expressam essa
mistura em seu fenótipo e cuja ascendência múltipla teve impactos relevantes em sua vida.
Tentar enquadrá-las em um sistema sem possibilidade mestiça só seria possível através de
esquartejamento. Essa pode parecer uma hipérbole um tanto agressiva, mas a disputa por
59

nossa identidade pode ser interpretada como grupos tentando nos fragmentar, de acordo com
seus próprios interesses: os brancos planejando o embranquecimento da população às nossas
custas, e os negros e indígenas nos pressionando a negar nossa ascendência branca. No
entanto, não somos recortáveis.
Ao se tratar da implementação da parditude em políticas públicas, surgem
questionamentos. Uma outra falácia em torno da união de "pardos e pretos" como negros é a
suposição de que apenas por meio dessa união seria viável implementar tais políticas.
Contudo, é essencial considerar que pardos e negros podem ser agrupados como grupos
vulneráveis racialmente, sem necessariamente obterem a imposição da terminologia “negros”.
Como discutido, há pardos de ascendência indígena que não possuem negros em sua origem
racial.
Existem fenótipos que se situam em na fronteira entre negritude e parditude, como por
exemplo o da talentosa atriz Taís Araújo. Pessoas com essas características podem se
identificar com a parditude, a negritude ou um pouco de cada. Essa identificação será
moldada pela regionalidade e pelas experiências de contrastes raciais vivenciadas ao longo da
vida e na socialização. Compreender essas nuances é uma tarefa sensível, e é comum que
muitas pessoas nesse fenótipo questionem a melhor maneira de se autodeclarar racialmente.
No entanto, ao abordar a questão da multirracialidade, é importante aceitar que não existe
uma definição exata, ao se tratar de experiências e fazer parte das ciências humanas, essas
identidades são variáveis e relativas a uma série de fatores culturais.
Porém, para disputa de vagas em políticas públicas, fenótipos semelhantes ao de Taís
Araújo são qualificados, independentemente de como a pessoa escolhe se identificar, seja
como parte da negritude ou parditude. A maior complexidade surge quando lidamos com
pessoas que se encontram na fronteira entre as categorias de pardo e branco, pois é nesse
ponto que a discussão se intensifica. Essa definição desempenha um papel importante na
determinação de quem possui privilégios e quem necessita de ações reparatórias devido à
discriminação histórica.
Entretanto, essa fronteira entre branco e pardo se manifesta tanto no contexto de
reconhecer a parditude como uma experiência independente e separada da negritude, quanto
no contexto atualmente aplicado, onde a categoria de pardos é associada à negritude. A
diferença reside no fato de que, ao considerar a parditude, a fronteira das discussões torna-se
menor. A conversa deixa de se concentrar em rotular alguém como branco ou negro, que são
dois extremos e se torna uma questão de compreender se as pessoas em questão são brancas
ou pardas. Dessa forma, asseguramos o espaço dos negros com fenótipo predominantemente
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africano, que são "indiscutivelmente" negros, sem abrir margem para sensação de estarem
sendo usurpados e que suas vagas estão sendo ocupadas por pessoas com fenótipo próximo ao
dos brancos.
Essa separação garantiria os direitos dessas pessoas de maneira justa e inequívoca. Ao
mesmo tempo, evitaria que os pardos mais claros descendentes de negros e os pardos
descendentes de indígenas enfrentassem humilhações questionando sua identidade, e ainda
sim poderiam concorrer aos seus direitos institucionais, pois pelas estatísticas, todas as
pessoas que se identificam como pardas, independentemente se consideradas por uns e outros
mais próximas da brancura ou negrura, estão em vulnerabilidade socioeconômica assim como
os pretos. Essa diferenciação nos permitiria reconhecer a questão da ambiguidade na
aparência física como parte de uma agenda multirracial, reconhecendo como uma pauta
política da parditude e não da negritude. Essa seria a criação de um espaço propício para um
diálogo mais interseccional sobre raça no Brasil.
Em vez de abolir as categorias mestiças, temos a necessidade e a responsabilidade que
são de todos os brasileiros, de ressignificá-las a partir de uma perspectiva de Consciência
Mestiça e do reconhecimento do racismo, destruindo o Mito da Democracia Racial ao
abandonar de vez a negação de nossa herança indígena e africana. Também não podemos ser
reduzidos a uma massa manipulada para negar a condição de mestiçagem intrínseca em
nossos corpos e histórias, para nos encaixarmos aos grupos indígenas ou negros. Se não
somos aceitos integralmente, isso não é verdadeira inclusão e diversidade. Nossa história, seja
ela rotulada como feliz ou infeliz, certa ou errada, é a nossa história. A integração completa de
todos os aspectos de nossa identidade é a única maneira de nos “lembrarmos de quem somos”
e responder à pergunta de Krenak em sua palestra citada no segundo capítulo.
A partir desses diversos estudos de casos e revisão bibliográfica, torna-se evidente que
existe uma ideia distorcida de que uma pessoa mestiça, devido à sua múltipla origem,
supostamente teria a possibilidade de ignorar a realidade corpórea - em um país em que o
racismo predominantemente se baseia na aparência física - e pressupõe que essa pessoa pode
escolher livremente se deve ou não incorporar todos os elementos de aparência física e
herança em sua identidade, de acordo com as ideologias com as quais ela se identifica e com
quais partes da história de seus ancestrais ela concorda ou quais rejeita.
Esses discursos se manifestam como se estivessem dizendo aos mestiços: "Observe
como os brancos te trataram mal, junte-se a nós e escolha apenas a sua parte negra ou
indígena." No entanto, essa não é uma opção real, é um discurso de negação e alienação da
história e da materialidade. A condição de mestiçagem é intrínseca para quem é mestiço, ela
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faz parte de sua subjetividade, condição social e muito mais. Principalmente no Brasil, país
fortemente marcado pela miscigenação, induzir as pessoas mestiças a escolherem apenas um
lado é ter aversão ao hibridismo, uma forma de racismo presente em muitas culturas
intolerantes e ao combater o racismo não podemos compactuar ou promover teorias que
indireta ou diretamente reforçam esses preconceitos.
Ao reconhecer a diversidade racial representada pelo cinza no espectro, a conversa
pode ser mais equilibrada e respeitosa, já que a distância entre o branco e o preto é muito
grande e tem gerado muito atrito. Dessa forma, criamos um espaço cinzento, multirracial,
onde as nuances e complexidades da identidade podem ser tanto apreciadas, quanto discutidas
de maneira mais inclusiva, empática e compreensiva. Dessa forma, encerro aqui a minha
primeira contribuição mais robusta e formal para as questões raciais no Brasil. Agradeço por
ter lido até aqui.
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