COMO O TRADICIONALISMO GAÚCHO
tinha assumido a gestão do CTG, um
EXCLUIU AS MULHERES, REFORÇANDO O
MACHISMO E A VIOLÊNCIA, E COMO ELAS
ESTÃO COMBATENDO ESSA CULTURA
E
AGORA,
TCHÊ?
“Quando fazia uma semana que eu
senhor da outra chapa, que perdeu para
a minha nas eleições, me disse que se eu
não entregasse a patronagem, eles iam
me apagar.”
Foram essas as boas-vindas recebi-
das por Márcia Borges, 43 anos, depois
de assumir o cargo de patrão – assim,
no masculino mesmo – do 35 Centro
de Tradições Gaúchas (CTG), de Porto
Alegre. Os CTGs são entidades civis que
têm como objetivo divulgar as tradi-
ções da cultura gaúcha. Com regras e
organização próprias, servem de espaço
de integração de seus participantes, que
se reúnem para resgatar os costumes
gaúchos, como a dança e o churrasco.
De acordo com o Movimento Tradicio-
nalista Gaúcho (MTG), no Rio Grande
do Sul existem 1.660 CTGs. O patrão é o
cargo máximo dentro de um CTG.
Em 70 anos, a policial militar
Márcia, que também é professora de
história, foi a primeira mulher a ocupar
o cargo dentro da instituição, em 2011.
O problema era justamente esse: ser
mulher. Nas eleições que fizeram de
Márcia a comandante do 35, havia
só uma chapa adversária, de homens
que há muito estavam no CTG e que
a viram crescer, já que ela entrou na
entidade com apenas cinco anos. É tão
incomum uma mulher estar no coman-

do de um CTG que o termo patroa é
utilizado para denominar a mulher do
patrão e nem existe uma palavra que
represente o marido “da patrão”.
Depois da ameaça de morte, Márcia
fez um registro na polícia e, ao con-
trário do que esperavam dela, não se
acovardou. Por isso os adversários
resolveram prejudicá-la de outras
maneiras. “Eles começaram a instigar
os funcionários a colocar o CTG na
justiça e prejudicar financeiramente
a entidade.” A manobra também não
funcionou e, além de completar os dois
anos de gestão à frente do 35, ela ainda
foi reeleita por outros dois anos, com a
maioria dos votos dos associados. “Não
me arrependo de nada”, diz, orgulhosa
do legado que construiu.
A quebra de paradigmas proporcio-
nada pela “prenda” – nome que se dá, no
tradicionalismo gaúcho, à mulher – foi
mesmo significativa. A patronagem, tra-
dicionalmente, é uma atividade masculi-
na. Baseada na hierarquia das estâncias,
que vai do patrão até o peão, os cargos
excluem as mulheres, que, normalmente,
têm como tarefa cuidar da casa e dos
filhos.
Foi por isso que o MTG, ao longo
de sua construção, também não contou
com a mulher como parte pensante do
movimento. Quando um grupo de tradi-
cionalistas, do qual faziam parte Paixão
Cortes e Luiz Carlos Barbosa Lessa,
criou os centros de tradições gaúchas,
na década de 1940, as mulheres nem
faziam parte do projeto. Foi só a partir
dos grupos de dança e da necessidade
de se ter uma prenda para fazer par
com o dançarino homem que a inserção
da mulher começou a ser feita. Assim,
a participação da figura feminina foi
acontecendo de forma gradual ao longo
da história, embora sempre limitada.
CULTURA
RESISTENTE
ÀS MUDANÇAS
Embora a sociedade tenha se de-
senvolvido e a mulher ocupe hoje um
papel social significativo – sob todos
os aspectos –, a cultura tradicionalista
gaúcha se mostra resistente a adaptações.
Isto porque, como explica o professor de
história da Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (UFRGS) Cezar Guazelli, a
tradição fixa os papeis sociais e considera
perigosa qualquer coisa que possa subver-
ter essa ordem.
A doutora em comunicação social
Angela Felippi analisa como esse aspecto
também é reverberado na mídia: “A gente
vai ver sempre aquela cobertura positiva
do gaúcho desbravador, corajoso, trabalha-
dor, o que a gente chama de os elementos
da identidade gaúcha mais tradicional.”
E é justamente sob o véu da tradição
— e a preocupação em manter as coisas
“como sempre foram” — que se escondem
preconceitos velados, seja em relação às
mulheres, aos negros, aos homossexuais,
ou a todos que destoam do modelo do
macho forte, provedor e onipotente.
Para Clarissa Ferreira, doutoranda
em etnomusicologia e autora do blog
“Gauchismo Líquido”, a dificuldade está
em toda a construção do gauchismo.
“Porque o alicerce dele está no conserva-
dorismo e na macheza.” Ela explica que
a mídia construiu e reforçou a ideia do
gaúcho como um “cara grosso, machão,
semibárbaro, anti-intelectual”. “Parece
que as bases da cultura gaúcha são isso e
que, para algumas pessoas, se tirar isso,
não sobra nada.”
Gaúchos e gaúchas, em sua maioria,
não veem problema em músicas que
cantam “ajoelha e chora, quanto mais
eu passo o laço, mais ela me adora”. Esse
trecho da música “Ajoelha e chora”, do
grupo Tchê Garotos, é entoado sem
críticas da maioria. Segundo pesquisa ela-
borada pela reportagem e aplicada pelo
instituto de pesquisa Index, 96,07% de 305
entrevistados em Porto Alegre, em setem-
bro deste ano, acreditam que nenhuma
música gaúcha é machista. Outros 86,23%
não consideram machista nem mesmo a
cultura tradicionalista gaúcha.
De acordo com Elenir Winck, vice-
presidente administrativa do Movimento
Tradicionalista Gaúcho (MTG), a parti-
cipação da mulher dentro do movimento
vem crescendo. “Nós já tivemos várias
mulheres como presidentes de Congresso
Tradicionalista, mulheres conselheiras,
coordenadoras, patroas de entidade, na
própria diretoria do MTG”, justifica.
A vice-presidente é enfática ao convi-
dar as mulheres a participar do tradiciona-
lismo: “Não adianta reclamar que a mulher
não é valorizada. Nós, mulheres, temos que
participar, colocar as nossas ideias, porque
até agora nós fomos sempre bem recebidas
e acatadas com as nossas posições.”
Entretanto, não foi isso que aconteceu
com a jornalista Janine Appel, 34 anos,
que chegou a ser Primeira Prenda do
Rio Grande do Sul, em 2007, e acabou
abandonando o movimento. Por conta
de ter vencido o concurso, que elege todo
ano uma menina para representar o
tradicionalismo no estado, Janine rodou
o Rio Grande do Sul conhecendo a fundo
o tradicionalismo a ponto de perceber
um problema que precisava ser discutido
dentro do movimento.
Foi então que, em 2015, em um con-
gresso que reuniu os membros do MTG, a
jornalista propôs o título “Prenda Minha:
MTG no Combate à Violência contra
a Mulher” como tema a ser trabalhado
durante o ano. Ela conta que a apresen-
tação estava marcada para às 16h, mas a
diretoria a boicotou tanto que ela só foi
iniciar às 23h. “Fui rechaçada de todos
os lados. Eles disseram: ‘esse problema
não nos tange, primeiro a gente tem que
resolver nossos problemas internos do
movimento, para depois querer fazer algo
pra sociedade’”. Sua proposta, portanto,
foi deixada de lado. No início deste ano,
depois de 18 anos de participação, Janine
saiu do movimento.
O MOVIMENTO
TRADICIONALISTA
GAÚCHO, AO
LONGO DE SUA
CONSTRUÇÃO,
NÃO CONTOU COM
A MULHER COMO
PARTE PENSANTE
DO MOVIMENTO.
FOI SÓ A PARTIR
DOS GRUPOS
DE DANÇA E DA
NECESSIDADE
DE SE TER UMA
PRENDA PARA
FAZER PAR COM
O DANÇARINO
HOMEM QUE
A INSERÇÃO
DA MULHER
COMEÇOU
A SER FEITA.

Geralmente cantada por homens,
a música gauchesca trata de temas do
campo, do chimarrão, da lida com os
O
animais, muitas vezes mostrando o
homem como valente e conquistador.
As duas principais gravadores dedicadas
MACHISMO
a esse tipo de canção, Acit e Vertical,
listam 161 artistas ou grupos com CDs
lançados. Apenas cinco são mulheres.
Uma das canções consideradas
NA MÚSICA mais populares e polêmicas da história
dos festivais de música nativista foi
“Morocha”. Apresentada em 1984 na
Coxilha Nativista de Cruz Alta, com
interpretação de David Menezes Junior
e Os incompreendidos, sua letra dizia
“mulher pra mim é como redomão,
maneador nas ‘pata’, pelego na cara”.
Redomão é como os gaúchos chama um
cavalo recém-domado. A apresentação
foi vaiada pelas mulheres, mas, mesmo
assim, a música continuou sendo inter-
pretada até o fim e ainda foi premiada
com os troféus de segundo lugar, melhor
intérprete, mais popular, melhor indu-
mentária e campeã da imprensa.
Para Kelvyn Krug, presidente do
Departamento Jovem do MTG, o
machismo não existe mais dentro da
cultura gaúcha. “Acho que, nos últimos
10 anos, mudou bastante coisa dentro
do movimento. A entrada da mulher
modificou muitas coisas, e eu creio que
o fim do machismo tenha sido uma das
maiores mudanças.”
Segundo ele, músicas que tratam a
mulher como objeto são de “60, 80 anos
atrás”. Krug diz que, nas músicas atuais,
isso não acontece mais. Mas não foram
só músicos antigos que fizeram a can-
tora Shana Muller, 37 anos, apresenta-
dora do programa Galpão Crioulo, da
RBSTV – afiliada da Rede Globo no Rio
Grande do Sul –, repensar o universo
musical da cultura gaúcha.
“A minha preocupação surgiu na gra-
vação do Galpão, vendo jovens gravarem
composições em que a mulher seguia o
ser feminino do conceito antigo, que fica
em casa, varre o chão, cuida dos filhos.”
Ainda que algumas das composições
sejam, de fato, de músicos mais velhos,
essas e outras novas canções misóginas
são reproduzidas por homens de todas
as idades, incluindo a nova geração de
músicos, com cantores na faixa dos 20
anos. É o caso da música “Bonitão do
Baile”, por exemplo, da banda Tchê
Guri, que diz: “Quando chego no bailão/
Enlouqueço a mulherada/ Elas caem em
cima “d’eu”/ Enlouquecem e dão risada/
Eu não sei se é o meu jeitinho/ Ou elas
são muito atirada”.
Na semana em que Shana percebeu
a problemática diante do retrato da
mulher nas músicas regionais, outros
acontecimentos haviam ganhado des-
taque na mídia: o primeiro, um caso de
assédio envolvendo o ator José Mayer
e uma figurinista da Rede Globo. O
segundo, a violência psicológica e física
a qual a ex-participante do Big Brother
Brasil Emilly Araújo estava sofrendo no
relacionamento amoroso que manteve
com o médico Marcos Harter enquanto
estavam no reality show.
“Eu estava com aquilo tudo na
cabeça e, daqui a pouco, eu estava ali
gravando o programa e me chama
atenção a música. Uma gurizada de 20 e
poucos anos ainda compõe isso, mulher
comparada ao animal, por exemplo, que
ainda é muito comum.”
Nas músicas gauchescas, a figura
feminina é geralmente tratada ora
como um ser doce e sensível, que deve
ser protegido, ora como tendo a única
tarefa de ser mãe – a mulher que cuida
da casa, dos filhos e do marido. Ainda
há casos em que a mulher é desvaloriza-
da e objetificada: comparada a animais,
objetos e comida.
Com a experiência no Galpão Criou-
lo e o entendimento de que músicas
gaúchas com teor sexista não deveriam
mais ser aceitas, Shana fez um texto
manifesto no blog do programa inti-
tulado “Não sou china, nem égua, nem
quero que o velho goste” e compartilhou
a publicação em suas redes sociais. A
resposta foi quase instantânea.
“1.300 pessoas me xingando, 10
mil compartilhamentos, grande parte
deles vindo das próprias mulheres”, ela
relembra. “O machismo também está
intrínseco nas mulheres, e a gente não
se dá conta.” Tanto que, na pesquisa
elaborada pela reportagem, entre as
128 mulheres entrevistadas, apenas 19
consideram a cultura tradicionalista
machista.
A cantora explica que o título do
texto foi para chamar a atenção das
pessoas para a música “É disso que o
velho gosta”, muito popular entre os
gaúchos, que com o refrão “churrasco
e bom chimarrão, fandango, trago e
mulher/ É disso que o velho gosta, é isso
que o velho quer”, coloca a mulher no
mesmo nível de “coisas” que o “velho”
gosta. “Quer dizer, a mulher é um ob-
jeto naquele momento”, conclui Shana.
Curiosamente, a música é de autoria
de uma mulher, Berenice Azambuja, em
parceria com Gildo Campos.
Shana diz que, mesmo que ela
própria já tenha cantado músicas com
letras como “não quero trago de graça,
se bobear eu quebro a tasca e faço o
chinedo chorar”, é preciso fazer uma
autoavaliação daquilo que não cabe mais
e que pode servir de incentivo a casos
de preconceito e violência. “Com essas
músicas, a gente alimenta, incentiva,
encoraja as situações de violência, de
preconceito, de maus-tratos contra as
mulheres. Isso está presente em todos os
dias na nossa vida e a gente não perce-
be”, escreve em seu texto.
O silêncio que seguiu a sua tomada
de atitude foi o que mais desanimou a
apresentadora. Segundo ela, ninguém
“quis comprar a polêmica” – nem os
órgãos oficiais, como o MTG, nem os
 O QUE PENSAM músicos gaúchos e nem os tradiciona-
listas. “Nenhum colega músico falou
GAÚCHOS E GAÚCHAS nada. ‘Daí o patrão do CTG não vai me
contratar para tocar’, eles dizem”.
Em setembro deste ano, foi realizada uma pesquisa com 305 pessoas Mas Shana não segue a mesma lógi-
sobre questões que envolvem o tradicionalismo gaúcho. As entrevistas ca e, segundo ela, não tem medo diante
foram feitas em três diferentes locais de Porto Alegre: o Acampamento da possibilidade de retaliação. “Eu sou
Farroupilha, o Parque Farroupilha – conhecido como Redenção – e de comprar briga. Eu não vim ao mundo
o Parque Moinhos de Vento – chamado de Parcão. A maioria das para ser mais uma, eu vim para trans-
pessoas não considera a cultura tradicionalista gaúcha machista, nem formar. Eu não sou uma pessoa que
acredita que ela estimule a violência contra a mulher. Também poucos silencia com aquilo que acha errado e eu
enxergam nas letras das músicas gauchescas conteúdos machistas. pago o preço, seja o preço que for. Se um
contratante não quer me contratar para
LEMBRAM DE UMA MÚSICA GAUCHESCA MACHISTA, um show, azar é o dele.” Pelo menos no
por sexo e idade Galpão Crioulo músicas com conteúdos
misóginos e machistas não entram mais.
Feminino Shana só ficou sabendo pela boca de
Masculino
terceiros que alguns músicos estavam
18 10,7% falando mal dela. Além dos olhares que
2,6%
24 foram direcionados de forma diferente,
3,7%
25
35
2,1% outros conhecidos faziam comentários
36
0% maldosos, entre eles, de que ela estaria
4,6%
45
3,5%
querendo “aparecer” com a atitude.
46 0% O cantor Elton Saldanha, 54 anos, é
55
5,2% autor da música “Não chora minha china
55+ 7,6%
véia”, que em um trecho diz: “Não chora
4,6%
Total 3,3% minha china véia, não chora, me desculpa
se eu te esfolei com as minhas esporas”.
Formado em jornalismo, ele foi vencedor
CONSIDERAM QUE O PROTAGONISTA É O HOMEM, de diversos festivais de música, além de minha música amanhã. Eu não tenho maior desejo de vingança eram os que três mulheres do país sofreram algum tipo
por sexo e escolaridade apresentador de programas de televisão. esse poder, se tivesse, eu ia dizer assim: estavam ouvindo músicas machistas en- de violência em 2016. A cada hora, 503
Saldanha é tão conhecido no meio que um gaúcho lá no Sul queimou a mú- quanto respondiam as perguntas. Além brasileiras são vítimas de agressão física, e
36,3%
Até fundamental
29,6% chegou a atuar na minissérie da Rede sica dele em praça pública e acabou a disso, os estudiosos também indicaram o agressor, na maior parte das vezes, é um
Fundamental 29,6% Globo “A casa das sete mulheres”. discriminação contra a mulher. Mas que pode haver um “efeito acumulado” conhecido — 61% dos casos. Para a maio-
36,6%
De acordo com ele, a canção não é verdade, isso é uma parte muito nesta tendência agressiva de homens ria (73%) dos brasileiros entrevistados pelo
35,2%
Ensino Médio
29,3% “Não chora minha china véia” afirma insignificante, é um fio de cabelo.” acostumados a ouvir músicas que natu- DataFolha, a sensação é de que a violência
14,2% exatamente o contrário do que diria Uma pesquisa realizada por Tobias ralizem, em seu conteúdo, a violência contra a mulher aumentou ainda mais na
Superior 32,2%
o machismo, já que pede “desculpas à Greitemeyer, professor da Universidade com a figura feminina. última década.
29,9% mulher”. Além disso, ele afirma que o de Innsbruck, na Áustria, e doutor em A banda Tchê Garotos, autora da Já a pesquisa do DataSenado, em
Total 31,6%
conteúdo da música não passa de figura Psicologia Social, mostrou, contudo, música “Ajoelha e Chora”, que tem na parceria com o Observatório da Mulher
de linguagem. “Tu já viste alguém meter que músicas misóginas fazem aumentar letra a frase “ajoelha e chora, quanto Contra a Violência, mostrou que houve
CONSIDERAM O TRADICIONALISMO MACHISTA, a espora em uma mulher? Se a pessoa reações agressivas dos homens contra as mais eu passo o laço, mais ela me adora”, um aumento significativo no percentual
por sexo e escolaridade interpretar ao pé da orelha, todas as mulheres. Os estudos, publicados entre declarou que não gostaria de se posicio- de mulheres que declararam já ter so-
letras ficarão hoje comprometidas.” 2006 e 2015, foram feitos com base em nar sobre o que chamou de “polêmica”. frido violência doméstica. O índice, que
Até fundamental 18,1%
22,2% Para Saldanha, vivemos em um um experimento em que voluntários Um representante da banda, que não sempre apontou resultados entre 15% e
Fundamental 14,8% mundo politicamente correto “que é ouviam músicas com letras consideradas quis se identificar, se limitou a dizer que 19%, saltou para 29% em 2017.
6,6%
11,7%
horroroso”: “Nós estamos enjaulados, machistas e, ao mesmo tempo, respon- todas as mulheres sabem que é uma sáti- No estado, segundo dados da Se-
Ensino Médio
15,5% não podemos mais nos expressar.” O diam questões e realizavam tarefas, sem ra, mesmo porque, segundo ele, são elas cretaria da Segurança Pública do Rio
Superior 9,6%
17,8% cantor ainda afirma que, enquanto saber que se tratava de uma pesquisa que mais gostam e cantam a música. Grande do Sul, mais de 167 mulheres
objeto transformador da sociedade, a sobre violência contra a mulher. Os índices conseguem ilustrar o estado são agredidas por dia de alguma forma.
Total
14,8%
12,9%
música não tem tanta importância. Por O artigo publicado por Greitemeyer de naturalização a qual chegou a violência De janeiro a junho de 2017, foram
isso, na opinião dele, as pessoas gastam e por Peter Fischer, da Universidade de contra a mulher no Brasil e no Rio Gran- registrados 660 estupros. Em relação aos
tempo problematizando coisas que não Munique, mostrou que os homens que de do Sul. Segundo pesquisa realizada feminicídios, foram 40 casos. Já o nú-
Pesquisa elaborada pela reportagem e aplicada pelo instituto de influenciam a sociedade. marcaram mais atributos negativos em pelo Datafolha, encomendada pelo Fórum mero de tentativas de feminicídio ficou
pesquisa Index. Margem de erro: 5% para mais e para menos. “Se fosse assim, eu mandava rasgar relação às mulheres e demonstraram Brasileiro de Segurança, uma em cada em 152 ocorrências.
TODOS OS ANOS, O PARQUE
HARMONIA, EM PORTO ALEGRE,
SE TRANSFORMA: SÃO ERGUIDAS
CENTENAS DE PIQUETES –
PEQUENOS GALPÕES DE MADEIRA
– E CRIA-SE UM COMUNIDADE
PARA CELEBRAR AS TRADIÇÕES
GAÚCHAS DURANTE DUAS
SEMANAS. O EVENTO, QUE SEMPRE
ACONTECE DO DIA 7 AO DIA
20 DE SETEMBRO, SE CHAMA
ACAMPAMENTO FARROUPILHA.
ALI, SÃO VISTOS COMO NORMAIS
COMPORTAMENTOS QUE SERIAM
INACEITÁVEIS NO AMBIENTE
URBANO, A UM QUILÔMETRO DO
ACAMPAMENTO. UM EXEMPLO
DISSO É O PORTE DE FACAS:
DIVERSOS GAÚCHOS ANDAM,
NESSE PERÍODO, COM A ARMA
PENDURADA NA GUAIACA. NO
MESMO LOCAL, É PERMITIDA A
VENDA E CONSUMO DE BEBIDA
ALCÓOLICA. OS CURIOSOS E
VISITANTES, QUE NÃO PARTICIPAM
DE NENHUM PIQUETE – MUITOS
NÃO GAÚCHOS QUE QUEREM
CONHECER O ACAMPAMENTO
– PODEM IR COM A CERTEZA
DE SAIR CHEIRANDO À FUMAÇA
DOS ASSADOS DO CHURRASCO.
SE FOR MULHER, É CERTO QUE
IRÁ RECEBER MUITAS CANTADAS
DESAVERGONHADAS. APÓS
EXAGERAR NA BEBIDA, PARTE DOS
HOMENS TECE COMENTÁRIOS EM
ALTO E BOM SOM ÀS MOÇAS QUE
LHES AGRADAM, AFINAL, ELES
ESTÃO EM TERRITÓRIO PROTEGIDO
PARA FAZER O QUE BEM ENTENDEM.
ESSE COMPORTAMENTO NÃO
É MUITO DIFERENTE DO QUE
ACONTECE FORA DESSE AMBIENTE,
EM OUTROS LUGARES ONDE AS
PESSOAS SE REÚNEM NA CIDADE.
A DIFERENÇA É QUE, ALI, PARECE
UMA PRÁTICA MAIS NATURALIZADA
E ATÉ VALORIZADA. NA PESQUISA
ELABORADA PELA REPORTAGEM,
101 ENTREVISTAS FORAM
REALIZADAS NO ACAMPAMENTO.
NO LOCAL, APENAS 3,96%
RESPONDERAM QUE A CULTURA
TRADICIONALISTA AJUDA A
POTENCIALIZAR A VIOLÊNCIA
CONTRA A MULHER. O CURIOSO
É QUE MAIS HOMENS (4,29%)
DO QUE MULHERES (3,23%)
RESPONDERAM AFIRMATIVAMENTE
A ESSA QUESTÃO. EM RELAÇÃO
AO PROTAGONISMO DENTRO DO
TRADICIONALISMO, 45% DAS
MULHERES RESPONDERAM QUE
ELE É DO HOMEM, E 31,43% DOS
HOMENS DISSERAM QUE ELES SÃO
OS PROTAGONISTAS NA CULTURA
GAUCHESCA. AS. CELEBRAÇÕES
NO ACAMPAMENTO SE ENCERRAM
NO PRÓPRIO 20 DE SETEMBRO,
FERIADO NO RIO GRANDE DO
SUL, QUANDO, EM DIVERSAS
CIDADES, INCLUSIVE NA CAPITAL,
SÃO REALIZADOS DESFILES COM A
PRESENÇA DE MUITAS ENTIDADES
TRADICIONALISTAS.
Alana, 16 anos,
desde criança pratica
cavalgada. Há dois
anos, começou
a participar de
competições de
laço, evento onde a
presença feminina é
rara. Como sabia andar
a cavalo, decidiu:
“Eu posso fazer isso”

EMBORA OS
CENTROS DE
TRADIÇÕES
GAÚCHAS TENHAM
SIDO CRIADOS
SEM A PRESENÇA
FEMININA E
REFORÇANDO
ESTEREÓTIPOS
MASCULINOS,
AS INEVITÁVEIS
MUDANÇAS
SOCIAIS FIZERAM
COM QUE MUITAS
MULHERES
GAÚCHAS
PASSASSEM A
REIVINDICAR SEU
ESPAÇO NESSAS
ENTIDADES.
MESMO
SOFRENDO
RESISTÊNCIA, ELAS

A FORÇA
NÃO ABREM MÃO
DE VIVENCIAR
A CULTURA DO
ESTADO IMPONDO
NOVAS REGRAS

DAS PRENDAS
DE CONVIVÊNCIA
TANTO NOS CTGS
QUANTO FORA
DELES.
BIANCA, 50 ANOS, É VETERINÁRIA
E UMA DAS COORDENADORAS
DA CAVALGADA DO CTG RODEIO
SERRANO. ELA DIZ QUE O
MACHISMO SE MOSTRA EM FORMA
DE BOICOTE, QUANDO OS HOMENS
IGNORAM AS MULHERES. “NÓS
PRECISAMOS NOS SUPERAR A CADA
SITUAÇÃO, NÃO QUE EU TENHA QUE
FAZER MELHOR, MAS EU TENHO
QUE ME SUPERAR, SENÃO NÃO VOU
TER CREDIBILIDADE”, AFIRMA
O CTG DAS
30 MULHERES
A apenas 115 quilômetros de Porto
Alegre, a cidade de São Francisco de
Paula, na serra gaúcha, essencialmente
turística e conhecida por suas baixas
temperaturas no inverno, ainda preser-
va hábitos do interior. Os moradores de
“São Chico” – como é carinhosamente
chamada – vivem em comunidade. Lá, o
CTG faz as vezes de clube e reúne gente
de todas as tribos: tradicionalistas, turis-
tas, gente que quer só “arrastar um pé” e
curtir a noite com os amigos, mulheres
de calça jeans ou bombachas, homens de
tênis esporte.
Essa versão democrática de um
centro de tradições gaúchas, contudo,
poderia nem ter acontecido. No início
deste ano, o CTG Rodeio Serrano estava
com os dias contados. O lugar não tinha
patronagem, já que a antiga diretoria
não queria assumir a responsabilidade
de mais uma gestão e não havia nenhu-
ma outra pessoa interessada a ocupar
o cargo. A história, então, começou a
ser reescrita: Neusa dos Reis, 70 anos,
frequentadora do CTG e esposa de tra-
dicionalista, resolveu dar um jeito.
“Fizemos uma reunião de todas as
mulheres, só mulheres, que participa-
vam do CTG para alguém continuar
e fazer funcionar. Os homens não
queriam mais, e nós sempre estivemos
na ativa na instituição, participando,
ajudando.”
No plano traçado, ficou decidido que
ela seria a nova patroa – como prefe-
rem chamar, no feminino – do CTG,
mas se agora estava mudando tudo, por
que não uma patronagem toda compos-
ta por mulheres? E Neusa conseguiu: 30
mulheres – amigas, conhecidas, parentes
– se uniram para, juntas, tocar a história
do Rodeio Serrano adiante.
De início, os maridos sentiram-se
diminuídos. “Mas aí, antes de assumir,
eu disse: se vocês continuarem ajudan-
do, trabalhando, fazendo o que faziam,
podem continuar participando”, conta
Neusa.
A história das três dezenas de mulhe-
res que assumiram o CTG sem a ajuda
de homem algum gerou burburinho
na comunidade. “As pessoas começa-
ram a vir ao CTG, curiosas para saber
como íamos agir. ‘Elas vão dar conta?’
Acho que tem essa coisa do ‘dar conta’,
porque a gente vive numa sociedade
machista, muitas vezes declarada, outras
vezes não”, explica Bianca Pereira, 50
anos, veterinária e coordenadora de
cavalgada da entidade.
A partir de maio, quando teve início
a nova gestão de “prendas”, se estabe-
leceu que os encontros iriam acontecer
às quintas-feiras à noite, a cada 15 dias.
Nessas ocasiões, a mesa de madeira
comprida da cozinha do CTG serve
como o balcão de reunião das mulheres.
NEUSA, 70 ANOS, FOI QUEM
CONSEGUIU REUNIR 30
MULHERES PARA ASSUMIR A
PATRONAGEM DO CTG QUE
ESTAVA SEM LIDERANÇA. NO
INÍCIO, OS MARIDOS SENTIRAM-
SE DIMINUÍDOS, MAS DEPOIS
TIVERAM QUE ACEITAR O
COMANDO FEMININO. NEUSA
É MAIS VELHA E ALANA, 16
ANOS, A MAIS MOÇA DENTRO
DO GRUPO DA PATRONAGEM
Enquanto elas discutem os negócios da
entidade, os homens, mais tímidos, ao
canto, sentam-se, em roda, para tomar
o chimarrão e prosear. Por vezes, eles
também são os responsáveis por provi-
denciar a janta.
“Aqui quem cozinha são os homens
e cozinham muito bem”, brinca Car-
la Marques, 51 anos, professora de
Educação Física e segunda vice do CTG.
Apesar de ser uma situação atípica na
cultura gaúcha, a história dessas mu-
lheres continua sendo desconhecida da
maioria dos gaúchos. Novamente, assim
como no caso da cantora Shana, foi o si-
lêncio das entidades oficiais e dos CTGs
do estado que elas receberam como
resposta. “O machismo não vai permitir
que se eleve essa situação, ponha-se lá
no alto, talvez não nesse primeiro mo-
mento”, opina Bianca.
Apesar da decepção, elas se mantêm
firmes na administração do estabeleci-
mento. Essa é a forma encontrada por
elas de combater a misoginia: a presen-
ça delas, pura e simples, em uma patro-
nagem inteira, para tentar, aos poucos,
vencer o preconceito. “Como o ma-
chismo se mostra? Boicote, te ignoram,
ignoram um trabalho que tu faz. Nós
precisamos nos superar a cada situação,
não que eu tenha que fazer melhor, mas
eu tenho que me superar, senão não vou
ter credibilidade”, afirma Bianca.
 A CAVALGADA
DELAS
É Bianca Pereira que cuida dos ani-
mais que competem nos rodeios de São
Francisco de Paula e regiões próximas,
como Cambará do Sul. Além disso, a
veterinária também é a encarregada de
fazer o checkup dos cavalos no dia da
Cavalgada da Prendas. Há 26 anos, as
mulheres de São Chico já faziam questio-
namentos. Na época, só os homens an-
davam a cavalo em cavalgadas de festejos
farroupilhas. Foi aí que um grupo de
não mais que quatro mulheres, segundo
Neusa, resolveu participar da procissão
masculina: “A gente sabia andar a cavalo
e gostava de andar a cavalo.”
No ano seguinte, o grupo criou a
cavalgada de prendas. Anualmente, as
prendas desfilam com seus cavalos pela
cidade de São Francisco de Paula e
seus arredores. A cavalgada começa no
CTG Rodeio Serrano, atravessa a via
de asfalto da cidade e, geralmente, segue
por alguma estrada de chão, para passar
pelos pampas desabitados. Ao final da
ida, há um almoço para a hora do des-
canso e das brincadeiras – com o sorteio
de prêmios e a confraternização com as
famílias e com o resto da comunidade – e
também para que elas possam ganhar
fôlego para a volta. Nos cerca de 12 qui-
lômetros de trajeto, os homens são apenas
coadjuvantes: o máximo que fazem é se-
guir a procissão dentro dos carros, sendo
o que as mulheres chamam de “apoio”,
caso surja alguma adversidade.
Neste ano, o percurso foi ainda mais
emocionante. Para o fim de semana,
a previsão era de muita chuva em São
Francisco de Paula. Na sexta-feira
anterior, Neusa, ao passar informações
sobre a atividade, que estava prevista
para domingo, foi enfática: “A cavalgada
sai com qualquer tempo.”
E assim foi. Embora o número
de mulheres tenha sido menor que o
esperado, 52 gurias estavam à frente do
Rodeio Serrano às 9h de uma nublada
e gélida manhã dominical. Com longas
capas, que as abrigavam da chuva, além
de proteger o corpo dos cavalos, e um
chapéu, que fazia as vezes de guarda-
chuva, elas rumaram à estrada e à lama
para reafirmar, a quem ainda não
entendeu, que o Rio Grande também
pertence a elas.
O grupo, diversificado, comporta
mulheres de todas as idades e todas
as profissões: a mais nova entre as 30
mulheres que compõem a patronagem,
Alana Krindges, 16 anos, é estudante,
trabalha em uma pecuária e participa de
competições de laço. Desde pequena, Ala-
na pratica cavalgada e acompanha o pai
em rodeios. Apesar disso, ela conta que
nunca havia se dado conta de que podia
laçar. “Não era comum uma mulher
laçar, aí uns dois anos atrás pensei assim:
pera, eu sei andar a cavalo, eu posso fazer
isso, sei que tem mulheres que laçam, por
que eu não posso fazer isso?”
Ainda assim, as coisas não ficaram
fáceis. Alana conta que está sempre
tentando se superar para conseguir reco-
nhecimento, ao que Bianca completa: “Se
não acertar laçada nenhuma, a mulher
não existe naquele contexto, às vezes é
conhecida só como a ‘filha do fulano’”.
A mais velha do grupo, a própria
Neusa, além de comandar o CTG, é
dona de uma loja de pilchas – vesti-
menta gaúcha – no centro da cidade.
De manhã cedo, a patroa acorda e,
sempre acompanhada do mate, espera
os clientes na loja com seu uniforme de
todo dia: a bombacha - roupa masculi-
na, típica do homem gaúcho. “No mês
farroupilha [setembro], não coloco outra
roupa nem depois do banho, é só bom-
bacha”, brinca.
Maria Cândida Moraes, a Candinha,
43 anos, também é uma das 30 mulheres.
Ela é uma das coordenadoras de cavalga-
da do CTG e trabalha como pecuarista,
junto do marido na fazenda do casal.
Lá, eles criam gado de corte da raça
hereford. Candinha explica que eles não
têm capataz e, por isso, faz toda a lida
de gado com o esposo. O serviço consiste
em desatolar os animais que caem no
banhado e alimentá-los diariamente. As
tarefas são todas divididas de forma igual
entre ela e o companheiro. Contudo, o
tratamento no “mundo dos negócios”, se-
gundo ela, se dá de maneira desigual: aos
olhos dos outros homens, a pecuarista
não tem a mesma autoridade do marido.
“Eu percebo que, quando estou com
meu esposo, as pessoas respeitam. Eu
já vi que, conforme a pessoa, estamos
negociando gado e aí ela vem e fala com
meu esposo que está do meu lado e não
fala comigo, sendo que eu sei igual ou
mais que meu esposo, porque participo
de tudo.”
“EU PERCEBO
QUE, QUANDO
ESTOU COM
MEU ESPOSO,
AS PESSOAS
RESPEITAM.
EU JÁ VI QUE,
CONFORME
A PESSOA,
ESTAMOS
NEGOCIANDO
GADO E AÍ
ELA VEM E
FALA COM
MEU ESPOSO
QUE ESTÁ DO
MEU LADO
E NÃO FALA
COMIGO,
SENDO QUE
EU SEI IGUAL
OU MAIS QUE
MEU ESPOSO,
PORQUE
PARTICIPO
DE TUDO.”
CANDINHA
SHANA MÜLLER:
PRECISAMOS FALAR
SOBRE O MACHISMO
DA CULTURA GAÚCHA
Com uma rotina repleta de ativi-
dades, Shana Müller se divide entre
ser jornalista, apresentadora, cantora,
empresária e mãe. Todas as tarefas,
contudo, estão ligadas à cultura gaúcha.
Até mesmo a maternidade: o filho,
Gonçalo, veio ao mundo em 20 de
setembro do ano passado, data que se
comemora a Revolução Farroupilha.
À época, teve gente que disse que a
apresentadora havia feito de propósito,
como forma de chamar atenção. Ela
brinca com a situação: “Se eu pudesse,
não teria escolhido que ele nascesse em
20 de setembro, porque é o dia em que
eu tenho mais trabalho”.
Desde pequena, Shana se viu
envolvida com a cultura nativista. No
início, foi pela dança que se encantou.
Mais tarde, ganhou o concurso de
Prenda Regional do Estado e viajou
a todas as querências do Rio Grande
ao lado dos tradicionalistas Paixão
Cortes e Nico Fagundes. Aos 13 anos,
gravou a primeira música e, a partir de
então, começou a construir sua história
profissional em cima dessa vivência,
segundo ela, de forma muito natural.
Em Porto Alegre, Shana começou
a cursar Jornalismo na PUCRS, mas o
gauchismo esteve sempre à espreita.
Além de se manter no meio musical, ela
também demonstrava, em seus traba-
lhos jornalísticos, mais afinidade com
o tema do nativismo. As gravações em
festivais de música e o lançamento do
primeiro disco fizeram com que ela
abrisse o mercado e também a cabeça
dos gaúchos mais conservadores.
“Uma guria cantando música
campeira não era algo comum. Mas eu
sempre pensei: eu vejo o mesmo campo
que tu, sou mulher e tu é homem, mas o
conteúdo é o mesmo. Eu ando a cavalo,
sei identificar gado. Esse Rio Grande do
Sul é meu também.”
Com a aposentadoria de Nico
Fagundes, que apresentava o Galpão
Crioulo, da RBSTV, ao lado do sobri-
nho, Neto Fagundes, Shana foi convi-
dada a assumir o seu lugar e carregar a
responsabilidade de levar ao programa
a representação feminina, que esteve
ausente durante 30 anos. “Sempre tive-
ram mulheres convidadas para cantar,
mas, no momento em que eu entro, a
minha visão enquanto mulher está pre-
sente todos os domingos: no texto que
eu escrevo, na pergunta que eu faço. “
E foi a sua trajetória dentro do mo-
vimento que a levou a ocupar espaço na
tradição gaúcha e que a permitiu chegar
ao polêmico texto “Não sou china, nem
égua, nem quero que o velho goste”.
“Eu tenho propriedade do que eu estou
falando”, ela defende.
Apesar dos ruídos negativos em
torno do seu manifesto, a jornalista
é otimista. Na construção cultural do
gaúcho, em que muitos veem a raiz
do preconceito e da misoginia, Shana
vê a solução. A apresentadora diz que
o gaúcho não é um ser estanque, pelo
contrário, é um ser livre.
“Talvez essa seja a característica
mais profunda do gaúcho, um cara a
cavalo, livre. Então a gente não pode in-
centivar uma cultura estanque, que não
se atualiza nem dialoga com os tempos
de hoje, porque, talvez, a gente também
esteja colocando um ponto final nela. “
Ainda que o posicionamento da
apresentadora não tenha repercutido
da maneira desejada entre os colegas
músicos, o Galpão Crioulo implantou
mudanças na sua concepção. Se, antes
do manifesto de Shana, não havia con-
trole sobre as letras e tipos de músicas
que seriam veiculadas no programa,
hoje, todas passam por inspeção para
ver se não estão alinhadas a nenhuma
prática preconceituosa ou misógina.
“UMA GURIA
CANTANDO
MÚSICA
CAMPEIRA
NÃO ERA
ALGO
COMUM. MAS
EU SEMPRE
PENSEI:
EU VEJO
O MESMO
CAMPO QUE
TU, SOU
MULHER E TU
É HOMEM,
MAS O
CONTEÚDO
É O MESMO.
EU ANDO A
CAVALO, SEI
IDENTIFICAR
GADO. ESSE
RIO GRANDE
DO SUL É MEU
TAMBÉM.”
SHANA MÜLLER
MÁRCIA BORGES:
ENTRE O PERIGO DAS RUAS
E O PERIGO DE DENTRO DAS
INSTITUIÇÕES GAÚCHAS
Em seu trabalho como policial
militar, era difícil imaginar que um
cargo do CTG fosse demandar tanta
força e coragem como a profissão do
dia a dia já exige. Márcia Borges, a
primeira ‘‘patrão mulher’’ do 35 CTG
em 70 anos de entidade, soube lidar
com os dois: os perigos da rua e os
perigos da instituição. E não é exage-
ro: quando assumiu a patronagem do
35, Márcia sofreu ameaça de morte.
Já havia um tempo que ela queria
mudar as coisas na instituição, princi-
palmente o perfil do lugar e, de certa
forma, das pessoas que o frequenta-
vam. Mesmo com o decorrer dos anos,
o 35 CTG ainda permanecia elitista e
excludente. A patronagem era a mes-
ma havia 12 anos e nada se fazia de
novo. Então ela montou uma chapa,
em que era “patrão”, concorreu e venceu
com a maioria dos votos dos sócios.
Depois de ter enfrentado a ameaça
de morte com uma denúncia, Márcia
encarou outros obstáculos, princi-
palmente em forma de boicote a sua
gestão. Apesar disso, gradualmente
as dificuldades foram diminuindo e
a policial da Brigada Militar iniciou
uma mudança significativa no CTG,
a começar pela inclusão social, com
a criação de um grupo de dança de
surdos e mudos e a arrecadação de
materiais e alimentos para institui-
ções carentes. “Nós temos bem forte o
trabalho da questão social, de igualdade
de gênero, de respeito. A gente tem
trabalhado muito dentro da entidade e
com os associados.”
“Não me arrependo de nada”, diz,
relembrando os obstáculos que já en-
frentou em seus dois papeis. Enquanto
policial, por ser mulher, ela conta que o
preconceito não veio dos colegas, mas
dos próprios cidadãos, que, algumas
vezes, não a levam a sério e não a
respeitam enquanto autoridade. Como
“patrão”, além de todas as dificulda-
des que teve de enfrentar, geradas
por membros da instituição, Márcia
também teve de lidar com os frequen-
tadores do CTG, que acreditavam que
ela, por ser mulher, não iria conseguir
administrar o local.
Formada em História, Márcia é
professora da Brigada Militar no curso
de alunos soldados, além de lecionar
no colégio Tiradentes as disciplinas de
história, sociologia e filosofia. A “patrão”
uniu os conhecimentos em história e a
paixão pelo tradicionalismo para lançar,
em setembro deste ano, em parceria com
Paulo Roberto de Fraga Cirne, o livro “A
evolução histórica da mulher gaúcha”. O
projeto foi feito com base no seu Traba-
lho de Conclusão de Curso de graduação,
de 2016, e fala sobre as mulheres na
formação étnica do Rio Grande do Sul.
Os quatro anos de gestão de Márcia
no CTG já se encerraram, mas ela
deixou de legado, além das melhorias,
o sopro de encorajamento no resto das
mulheres. Para continuar tocando seus
projetos, quem está no comando do 35
CTG hoje é sua irmã, Gleicimary Bor-
ges, 35 anos. Assim como a historiado-
ra, Gleicimary também montou uma
chapa e foi eleita com a maioria dos
votos. Já é a terceira gestão consecutiva
comandada por uma mulheres.
“QUANDO
FAZIA UMA
SEMANA QUE
EU TINHA
ASSUMIDO
A GESTÃO
DO CTG, UM
SENHOR DA
OUTRA CHAPA,
QUE PERDEU
PARA A MINHA
NAS ELEIÇÕES,
ME DISSE QUE
SE EU NÃO
ENTREGASSE A
PATRONAGEM,
ELES IAM ME
APAGAR.”
MÁRCIA BORGES
EXPEDIENTE:

REPORTAGEM:
ALUNAS GABRIELA GARCIA
E ISADORA AIRES
FOTOS:
CAMILA HERMES
DIAGRAMAÇÃO:
THAIS LONGARAY
PROFESSORA ORIENTADORA:
THAÍS FURTADO
JORNALISTA MENTOR:
MARCELO SOARES