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O Medicamento como Mercadoria ao mesmo tempo que cura e previne (função

Simbólica. Fernando Lefèvre. Editora Cortez: quimioterápica), o medicamento representa e


São Paulo, Brasil, 1991. 159 p., ilustrações e simboliza (função simbólica) e, simultaneamen-
bibliografia. (Brochura) te, aliena e domina (função social e psicosso-
ISBN 85-249-0293-0 cial).
Cr$ 45.000,00 Lefèvre trabalha com as três dimensões apon-
tadas numa perspectiva dialética, onde o real
Segundo Lefèvre, análises superficiais da não é dado a priori, mas constitui-se pelo
questão do consumo de medicamentos tendem esforço analítico de seu trabalho de pesquisa. A
a focalizar a atenção em críticas ao consumo sólida base empírica para tal análise é obtida
"leigo", "exagerado", "desviante". Tais análises no material de entrevistas com um grupo
dão ensejo ao nascimento de estratégia para a particular de usuários de medicamentos e em
retomada de um suposto "consumo adequado", textos publicitários (propagandas de medica-
o que termina por encerrar o medicamento em mentos em revistas médicas, rádio, televisão,
sua dimensão quimioterápica, onde reina a folhetos; artigos de jornais e bulas de medica-
autoridade médica. Numa ótica mais abrangen- mentos, entre outros).
te, este autor analisa o consumo de medica- Em conformidade com os princípios da dialé-
mentos como um problema de saúde pública tica, as análises realizadas são sempre posicio-
per si e não enquanto uma "disfunção social", nadas, ou seja, ao invés de postularem essên-
mas, ao contrário, como uma função mesmo, cias, as afirmações sobre "o que é saúde" ou "o
ou seja, como uma expressão social da hege- que é o medicamento" são sempre enunciadas
monia da mercadoria nas sociedades industriais de um determinado "ponto de vista". Tratam-se
contemporâneas. de pontos de vista gerados no funcionamento
Trabalhando com a questão do consumo de social corrente do medicamento. O autor anali-
medicamentos, o autor descortina a mecânica sa, reflete, ou mesmo reconstrói tais pontos de
do funcionamento destes como "símbolos de vista, sendo capaz de representar suas vincu-
saúde e, através deles, a mecânica dos proces- lações recíprocas e contraditórias, interrogando-
sos plurais e conflituosos de produção do os e decifrando-os como partes de um todo, de
próprio sentido de saúde. Assim, ao longo da um conjunto sintético, que é a própria estrutura
leitura, acompanhamos o autor através de uma da sociedade de onde eles emergem. Os pontos
análise das maneiras pelas quais a saúde vem de vista a partir dos quais Lefèvre analisa o
sendo historicamente expropriada de sua con- sentido do medicamento são três; o da socieda-
dição de "premissa existencial", para ser apenas de, o do médico e o do indivíduo, trabalhados,
recuperada, e recuperável, em um mercado de respectivamente, nos capítulos l, 2 e 3. Para
bens de consumo. Vinculada a mecanismos aprofundar verticalmente o sentido que os
estruturais de ampliação e generalização do agentes sociais emprestam ao medicamento, o
"mercado", a saúde se transforma em algo a ser trabalho se apoia também na perspectiva se-
obtido pelo consumo de substâncias e ações miótica. Esta associação entre dialética e se-
"saudáveis", deixando de ser uma característica miótica confere ao conjunto da obra uma
e um direito, para tornar-se "objeto de consu- característica muito desejada, mas nem sempre
mo". É neste quadro que o medicamento se atingida, por outras análises dialéticas. Ao
apresenta como uma das materializações ou longo da leitura, nossa sociedade apresenta-se
símbolos (poderosos) da saúde "biologizada" a para o leitor não como uma estrutura cristaliza-
ser consumida. da, mas como produto da atividade social
Para o autor, o entendimento da problemática concreta, como um processo, algo que se está
ligada ao consumo de medicamentos teria criando, atualizando, dinamizando, graças às
muito a ganhar se pudéssemos manter clareza tensões, contradições e à atividade humana em
quanto ao fato do medicamento perfazer não seu interior.
uma, mas pelo menos três funções articuladas: O Capítulo l, "o medicamento do ponto de
vista do social", apresenta dois temas. No riamente resultar em textos de difícil compre-
primeiro, "a saúde como mercadoria", o autor, ensão para um público leigo.
através da análise de peças publicitárias, con- No Capítulo 2, "relações simbólicas mantidas
textualiza uma visão corrente da saúde como com o medicamento pelo prescritor médico", o
um ente exterior do tipo mercadoria, analisando autor traz à tona alguns indicadores de que o
o processo de alienação decorrente desta visão, médico entretem com o medicamento não
a hipertrofia da dimensão orgânica da saúde, e apenas relações instrumentais, mas também
o conceito de necessidade de saúde. simbólicas. Entretanto, a discussão central do
No segundo tema, "o medicamento como capítulo relaciona-se com o processo histórico
mercadoria simbólica", a reflexão semiológica de deslocamento do poder do médico para a
permite aprofundar a análise, já que a mercado- mercadoria, reificada "medicamento".
ria vista enquanto um símbolo contém, como No Capítulo 3, "O sentido do medicamento
todo símbolo, uma face material (no caso dos do ponto de vista do indivíduo", Lefèvre tem
medicamentos, grãos, comprimidos, xaropes nos depoimentos de um grupo de hipertensos
etc.) cujo consumo permite a materialização de mais uma via de acesso ao sentido do medica-
sua outra face, a abstrata (no caso, a saúde), ou mento. Conforme demonstra o autor, o hiper-
seja, o simbolizante, ao ser consumido, realiza tenso, em sua vivência particular, exemplifica
o simbolizado. Assim, difundir a venda da e ilustra características gerais sobre o sentido
abstrata idéia de saúde torna-se fácil "embalan- do medicamento do ponto de vista dos indiví-
do-a em pequenos e práticos recipientes". O duos. Elegendo como prioritárias a profundida-
autor aprofunda a discussão segundo uma rede de e a literalidade dos depoimentos dos sujei-
de subtemas como, por exemplo, o desejo do tos, o autor, que assim define essencialmente o
"valor" saúde, as relações do homem com a que entende por pesquisas qualitativa, trabalha
ciência e seus produtos, e a questão da eficiên- num contexto de lógica de descoberta. A
cia e eficácia simbólicas. análise dos depoimentos foi feita com base em
A disposição do texto em subtemas curtos temas sugeridos pela leitura dos próprios depoi-
facilita a assimilação das idéias desenvolvidas. mentos. A lógica de descoberta é, portanto,
Além disso, o próprio estilo de redação do lógica de geração de hipóteses, por oposição a
autor, pautado por parágrados e frases também um contexto de lógica de demonstração de
curtas, torna a leitura sempre muito agradável hipóteses. Uma vez agrupados, interpretados e
e acessível. A grande clareza com que Lefèvre contextualizados, os depoimentos são apresen-
expõe seu raciocínio faz com que o leitor, sem tados segundo uma ampla rede de temas origi-
se dar conta, o acompanhe a um nível de nada de sua própria análise.
reflexão bastante aprofundado. Nesta obra, a Na última seção do livro, "Conclusões", o
arte de ensinar se reúne à escrever, fazendo autor procura organizar esta temática variada
com que a reflexão do autor sobre uma temáti- soba a forma de seis eixos temáticos agregado-
ca complexa não se torne, em nenhum momen- res: 1) o medicamento e a oposição artificial x
to, complicada ou enfadonha. Pelo contrário, a natural; 2) o medicamento no contexto de uma
análise de Lefèvre sobre a problemática ligada relação de comunicação; 3) o medicamento
ao medicamento torna esta importante dis- como símbolo ambíguo de saúde e doença; 4)
cussão da saúde pública acessível a um público o medicamento e a moral: obediência e trans-
bem mais abrangente que o da grande maioria gressão; 5) o medicamento e o desejo; eficiên-
dos textos acadêmicos. Com isso, o autor faz cia e eficácia simbólicas; 6) o medicamento e
mais que divulgar esta discussão, que é em si a relação de consumo. Cada um dos eixos
mesma fundamental; ele divulga também o temáticos é então resumidamente descrito pelo
método dialético e a semiótica como instru- autor, tornando seu conteúdo mais explícito e,
mentos de pesquisa em saúde pública, demons- em seguida, expresso na forma de uma hipótese
trando que sua utilização não precisa necessa- de pesquisa. Lefèvre atinge, assim, seu objetivo
de criar com este trabalho uma matéria de definir melhor este campo dinâmico de sentido
conteúdo" inicial, como fonte de temas para ligado ao medicamento e, por extensão, à saúde
confecção de hipóteses sobre o sentido do nas sociedades de consumo contemporâneas.
medicamento. Segundo ele, em trabalhos
futuros que testem tais hipóteses, se poderá Brani Rosemberg
obter "matéria de conteúdo" mais refinada, Departamento de Ciências Biológicas
ou seja, temática mais específica que permitirá Escola Nacional de Saúde Pública/Fiocruz

Saúde e Sociedade. Augusta Thereza da mesmo sentido adotado pela Comissão Edito-
Alvarenga & José da Rocha Carvalheiro, rial: o de inovar.
(eds.). Publicação da Faculdade de Saúde Aliás, assim se expressa a Comissão Editorial,
Pública da Universidade de São Paulo e da representada por Aracy Witt de Pinho Spínola
Associação Paulista de Saúde Pública: São (Diretora da Faculdade de Saúde Pública da
Paulo, Brasil, 7992, semestral. Universidade de São Paulo) e Álvaro Escrivão
Assinaturas: Saúde e Sociedade. Avenida Dr. Júnior (Presidente da Associação Paulista de
Arnaldo, 715, São Paulo, SP, 01246-904, Saúde Pública): Saúde e Sociedade nasce com
Brasil. o propósito de inovar no campo da saúde
pública. Inovar significa, para nós, propiciar
Queremos saudar e dar boas-vindas a um espaço para que aflore um novo tipo de re-
novo veículo destinado à divulgação e discussão flexão sobre os problemas de saúde pública/co-
de temas e idéias vinculadas à saúde pública/co- letiva que afetam nosso país e todo o continente
letiva. latino-americano. Os problemas, é certo, nem
Foi lançada, em São Paulo, a Revista Saúde sempre são novos, como é o caso do ressurgir
e Sociedade, sob a responsabilidade da Asso- do cólera em nosso continente e em nosso país,
ciação Paulista de Saúde Pública e Faculdade mas o modo de pensá-los é necessariamente
de Saúde Pública da Universidade de São novo; nisto consiste nosso desafio.
Paulo. Talvez em função dessa duplicidade, E em que consiste este modo de pensar que
conta com a dupla de editores Augusta Thereza é necessariamente novo? Ainda segundo o
de Alvarenga e José da Rocha Carvalheiro. ponto de vista da Comissão Editorial, esta
A finalidade deste novo periódico, que se inovação está na importância que a mesma
propõe a ser bianual, está expressa na contraca- confere a uma maior interação entre universida-
pa do primeiro número: Saúde e Sociedade é de e serviços de saúde, com vistas à produção
uma revista que tem por finalidade divulgar a de conhecimento, incentivando a divulgação da
produção das diferentes áreas do saber sobre reflexão sobre as práticas de saúde e estimulan-
as práticas de saúde, visando o desenvolvimen- do a participação mais ativa dos profissionais
to interdisciplinar do campo da saúde pública. de saúde na criação de um espaço para o debate
Destina-se à comunidade de profissionais do das mesmas. É, pois, pretensão do novo perió-
campo da saúde, docentes, pesquisadores, dico favorecer a criação de um novo vínculo
especialistas da área da saúde pública/coletiva forte, orgânico e de caráter permanente dos
e de áreas afins. profissionais de saúde pública que trabalham
Pela qualidade e competência dos nomes que nas universidades com aqueles que atuam nos
compõem a Comissão Editorial e pela amostra serviços de saúde, permitindo caracterizar
de autores e conteúdos dos artigos que apare- Saúde e Sociedade como uma revista realmente
cem neste primeiro número, estamos pressa- nova.
giando o nascimento não de mais uma revista, A proposta fundamental de Saúde e Socieda-
mas sim de uma nova revista em saúde públi- de consiste em: (1) divulgar um tipo de reflexão
ca/coletiva. E, aqui, adotamos para "nova" o científica rigorosa, mas de caráter ensaístico;

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