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2 Foucault, sem mencionar o termo “incomensurabilidade”, mostra os sentidos extremamente diversos entre as duas epistèmes
– assim como seu virtuosismo argumentativo – no capítulo “Cuvier” (ver: Michel Foucault, As palavras e as coisas, São Paulo,
Martins Fontes, 2007, pp. 362-386 – publicado originalmente em 1966).
3 Uso a edição: Jean Fernel, Universa medicina, Paris, j. Stoer, 1578; acessada por meio da Bibliothèque interuniversitaire de
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Uma discussão usual é até que ponto a lues venerea do século XVI se refere à sífilis ou a
um conjunto de doenças venéreas reunindo, entre elas, principalmente a sífilis e a go-
norreia. Por sua vez, a apresentação da haemorrhois, ao que tudo indica, corresponde,
aos olhos dos médicos de hoje, a hemorróidas. Incomensurabilidade, comensurabili-
dade e sobreposições parciais estão presentes a cada página de Universa medicina, de
modo que lê-la nos põe em um constante e complexo processo de negociação semân-
tica4.
Assim, o termo melancolia, quanto a sua fisiologia, difere frente ao que se en-
tende hoje por depressão; no entanto, do ponto de vista clínico o termo depressão –
apesar de ser um conceito em mudança acelerada nas últimas décadas – ainda pode ser
parcialmente relacionado a alguns sintomas do SMD-5. O que se passa é que, de fato,
quando se lê um livro de “medicina” do século XVI, o que, logo de início, se busca fazer
é um balanço do, por assim dizer, grau de incomensurabilidade que deve ser atribuído
aos termos de outrora. Esse modo de proceder buscando “traduzir” ou mesmo medir
o passado em vista ao presente talvez seja inevitável, e, por vezes, o melhor parece ser
apresentar logo a comparação e seu resultado, de modo a que se possa prosseguir com
a discussão mais aprofundadamente. Na verdade, o problema dessa comparação é que
ela, em geral, é parcial demais, não passando de uma negociação semântica preliminar
que, após um limitado ganho em compreensão, é posta de lado. Ao contrario, é neces-
sário explorá-la mais amplamente.
Atualmente a aceitabilidade da medicina se deve em muito a ela ser compreen-
dida como eficaz. A ela é atribuída uma eficácia múltipla. Não se trata somente do que
o paciente considere como benéfico para ele, mas, primordialmente, de uma eficácia
contábil: a medicina é economicamente viável, tanto em termos individuais quanto
4 Não é o objetivo deste texto expor o que entendo por “negociações semânticas”. Sendo breve, posso remeter aos “jogos
de linguagem” de Wittgenstein. No entanto, minha escolha do termo “negociação” visa incluir a perspectiva de que, tal como
num mercado com oferta e procura, chega-se a um preço, que pode, logo a seguir, mudar, ou seja, a negociação não é só
um jogo, mas um ato performático (com efeitos múltiplos) que estabelece um preço (ainda que instável), de modo a efetuar
um ato, que pode ser jurídico, de transferência de propriedade. De fato, as negociações semânticas levam em consideração
não somente o sentido das palavras, mas a forma como elas se articulam e as figuras de retórica das quais elas participam,
no caso, cabe explicitar que, ao usar essa expressão, estou me referindo também a toda a discussão das últimas décadas
sobre a importância das metáforas na filosofia (elevando, portanto, esse debate em conta na leitura de um texto “médico”
que é eivado por termos e metáforas filosóficas). A discussão sobre o uso de metáforas em filosofia ganhou posição de
cada vez mais destaque a partir da publicação de “Licht als Metapher der Wahrheit”, de Hans Blumenberg, em 1959 (sobre a
importância de H. Blumenberg, ver: Anselm Haverkamp & Dirk Mende, Metaphorologie. Zur Praxis und Theorie, Frankfurt a.
M., Suhrkamp, 2009). Relevantes para mim são ainda as publicações: Ralf Konersmann (Org.), Wörterbuch der philosophischen
Metaphern, Darmstadt, WBG, 2011; Bernard H. F. Taureck, Metaphern und Gleichnisse in der Philosophie: Versuch einer kritischen
Ikonologie der Philosophie, Frankfurt a. M., Suhrkamp, 2004; Lutz-Henning Pietsch, Topik der Kritik. Die Auseinandersetzung
um die Kantische Philosophie (1781–1788) und ihre Metaphern, Berlin, de Gruyter, 2010. Além disso, posso recomendar o
Historisches Wörterbuch der Philosophie, que, embora seu primeiro editor, Joachim Ritter, tivesse como proposta evitar incluir
nele metáforas, passou a apresentá-las quando assumido pelos editores subsequentes (sobre essa questão, ver: Haverkamp
& Mende, p. 9 e sgs.). Neste meu breve texto, porém, referindo-me somente a termos “médicos”, eu esteja talvez – apesar do
debate de fundo que busco atualmente desenvolver sobre a questão da metáfora – apenas fazendo uso, de um modo menos
sofisticado e mais discreto, do que Koselleck apresenta em seu trabalho (por exemplo, ver: Reinhart Koselleck, Begriffsgeschi-
chten, Frankfurt a. M., Suhrkamp, 2006, mais especificamente ver : “Sozialgeschichte und Begriffsgeschichte”, pp. 9-31).
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honorários significativos? Talvez forçando um pouco o significado das palavras, pode-
ria perguntar: qual a “eficácia” da medicina erudita no XVI? Qual a sua articulação com
os demais saberes que a levava a ter credibilidade, apesar da concorrência com diversos
outros saberes também tidos como terapêuticos? Ainda que, desde já, possa indicar
que, havendo grande difusão de práticas curativas na sociedade do século XVI, ou seja,
vários indivíduos confiavam e praticavam procedimentos que faziam parte da cultura
da época (sendo, muitas vezes, disseminados por todas as classes sociais) ou que eram
oferecidos por “charlatães”, os médicos de formação erudita, como que num processo
de negociação com sua clientela, também recorriam, por vezes, a essas mesmas práti-
cas. Enfim, trata-se de um processo de legitimação com múltiplas estratégias, que, de-
vido à requerida brevidade, não poderei expor aqui. Me limitarei a comentar, em linhas
gerais, o entendimento do corpo, seu funcionamento e, especificamente, da fisiologia
da bile negra na primeira parte da Universa medicina: na Physiologia. Somente quan-
do, em um outro texto mais extenso, eu vier a abordar todos os aspectos da melancolia
na Universa medicina será possível discutir em mais detalhe por que a melancolia, tal
como descrita por Fernel, era aceita na época e por que um livro como Universa me-
dicina veio a adquirir grande prestígio por décadas. A fisiologia de Descartes, apesar
do atomismo e à parte algumas idiossincrasias (como sua compreensão da glândula
pineal)5, se baseia em grande extensão em argumentos e “observações” iguais ou si-
milares às de Fernel; sendo que, se, seguindo Harvey, Descartes argumentou a favor
da circulação do sangue, mantém-se, porém, com a doutrina de Fernel e de outros em
uma obstinada defesa do calor inato (em Fernel: calidum innatum) próprio ao coração,
que, segundo Descartes, vaporizaria o sangue, causando a diástole6.
O livro Universa medicina7 está dividido em duas partes: Physiologia e Patholo-
gia (Fernel é frequentemente citado como tendo sido o primeiro autor a usar, em um
livro relevante, o termo pathologia e como havendo contribuído para divulgar a palavra
physiologia), contendo ainda dois apêndices: um sobre os prognósticos e outro sobre
a terapêutica (que, por sua vez, inclui um tratado sobre a sangria). Além de haver dois
anexos importantes: um tratado sobre a lues venerea e um outro sobre as causas ocul-
tas. Ao longo desse volume de quase 800 páginas, o tema melancolia ocorre em diversas
ocasiões; no entanto, me restringirei a apresentar, em linhas gerais, a fisiologia da bile
negra tal como é discutida na Physiologia. Assim, me restringirei também a comentar,
na Physiologia de Fernel, alguns deslocamentos da semântica de termos médicos do
século XVI. Mostrarei, portanto, na Physiologia, um pouco de como Fernel argumenta
e, consequentemente, incrementa sua credibilidade, que, sem dúvida, se deve a muito
mais: tanto à extensão de sua obra quanto a sua prática clínica e de ensino.
5 René Descartes, As paixões da alma, in: Os Pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1973, p. 238: Art. 31 e 32. Neste texto
não me proponho a comentar Descartes; as alusões a ele, um autor mais conhecido, visam apenas facilitar a leitura (sobre a
medicina em Descartes, ver: Vincent Aucante, La philosophie médicale de Descartes, Paris, PUF, 2006).
6 René Descartes, Discurso do Método, Quinta Parte.
7 Um resumo e breve discussão da vida de Fernel e do seu Universa medicina podem ser encontrados em Charles Sherrington,
The Endeavour of Jean Fernel, London, Dawson of Pall Mall, 1974 (reprinted).
8 Descartes segue Aristóteles na doutrina sobre o calor próprio ao coração, diferindo nisso de Galeno, como, aliás, como
muita propriedade, indica Plemplius, em: Descartes, Oeuvres (AT), vol. 1, p. 497.
9 William Harvey, Opera omnia, medicorum londinensi edita, 1766 (De motu cordis, publicado originalmente em 1628), ver:
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em alguma medida, o resultado de uma combinação, ainda que, em cada um deles,
haja a predominância de algum deles. Os elementos são, portanto, princípios metafí-
sicos, apreendidos especulativamente. No entanto, apesar desses esclarecimentos ini-
ciais, Fernel discutirá os elementos tal como se eles fossem aqueles que percebemos.
De fato, ele, por exemplo, no capítulo 3, reafirma que os elementos “não são corpos”
(corpora non sunt) e que suas formas nós “as separamos a partir da noção de elemento”
(eas ab elementi notione abducimus).
Uma breve recapitulação histórica, nesse momento, pode ser proveitosa. A teo-
ria dos quatro humores começa no corpus hipocrático. A princípio, são mencionados
apenas três humores: o sangue, a pituíta e a bile amarela; a bile negra seria uma dege-
neração da bile amarela. Somente no Sobre a natureza do homem (De hominis natura)
é que a bile negra é considerada um humor tal como os outros três. E é exatamente o
Sobre a natureza do homem que Galeno veio a considerar como o tratado que exporia
os conceitos essenciais de Hipócrates, baseando nele sua interpretação e hierarquiza-
ção quanto à autenticidade e validade do conteúdo das demais obras a ele atribuídas.
Foi também apenas durante a época do império romano que os quatro elementos –
ar, terra, água e fogo – passaram a ser associados aos quatro humores, o que permite
compor um quadro das oposições e correlações entre os elementos, os humores e as
estações do ano e as quatro qualidades primárias (quente, seco, úmido e frio), tal como
apresenta Vivian Nutton10:
Verão
Bile
Primavera Outono
Ar Terra
Sangue Bile negra
Inverno
Fleuma
10 Vivian Nutton, Capítulo 1 “Medicine in the Greek World”, in: Lawrence I. Conrad; Michael Neve; Vivian Nutton; Roy Porter,
The Western Medical Tradition 800 BC to AD 1800, Cambridge, Cambridge University Press, 1995, p. 25.
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semânticas (o que, além do deslocamento do significado das palavras ou da ordem de
exposição do conteúdo, inclui metáforas e símiles, bem como recurso, ou não, à auto-
ridade de “homens célebres”) ocorrem na estruturação argumentativa da Universa me-
dicina. Fernel, nesse capítulo sobre os elementos, está negociando semanticamente ao
manter os termos fundamentais de sua fisiologia (terra, água, ar e fogo) em oscilação
entre o transcendental e o cotidiano: as argumentações e explicações, como veremos,
tanto vão na direção de deslocar quanto de estabilizar o sentido das palavras. Aceitar
participar desse processo de negociação, que persistirá ao longo de todo o livro, assim
como da prática médica, é essencial para sua compreensão. Do mesmo modo que os
quatro elementos oscilam entre transcendência e cotidianidade, os quatro humores
também o farão. Os quatro humores também estariam sujeitos à mesma oscilação, pois
seriam constituídos a partir desses quatro elementos fundamentais; no entanto, essa
discussão não ocorre no Universa medicina: o que é dito é, por exemplo, que a pituíta
é formada a partir de uma porção fria e crua do quilo (chylus) e o humor melancólico a
partir de uma porção fria e terrosa do quilo (chylus), ou seja, os humores são tratados
muitas vezes (embora, como veremos, nem sempre) como se fossem apenas substân-
cias físicas – ou, no caso, sucos –, cujas qualidades poderiam ser conhecidas empiri-
camente e que seriam formadas a partir de outras substâncias físicas. Assim, a mesma
oscilação entre transcendental e empírico também estará presente na discussão sobre
os humores, havendo os humores puros e naturais, os putrefeitos e os antinaturais.
Do mesmo modo, o livro 4, sobre os espíritos e o calor inato, é uma longa prática
de negociação entre o sentido transcendental e o empírico de suas palavras-chave. No
entanto, é importante acrescentar, a “negociação” é também um treino de compreen-
são e argumentação; pode-se dizer que é parte de um exercício de formação identitária
do médico, que, ao habilitar-se no jogo semântico do jargão profissional, saberá se
apresentar e agir como é esperado dele.
Vida, espírito e calor inato se equivalem. O mais comum é que espírito e calor
inato ocorram conjuntamente (por exemplo: innato calido et proprio spirito – lib. 4, c.
7). Além disso, o calor inato muitas vezes coincide com o calor empírico; afinal, quem
está vivo, em geral, é, em alguma medida, quente. No entanto, o calor varia de órgão
para órgão, sem que se o possa relacionar isso com a importância de sua atividade para
a vida humana. É o que vemos se considerarmos o processo de assimilação dos alimen-
tos, que passa por três concocções: 1. a mastigação, deglutição e formação do conteúdo
estomacal (o chymus) que é passado ao duodeno quando se torna o quilo (o chylus); 2.
A transformação no fígado do chylus nos humores (uma fase complexa de transforma-
ção, mas que não requer muito calor); 3. a absorção dos humores na alimentação e for-
mação dos órgãos, ossos e músculos; de fato, o calor, a cada concocção, não correspon-
de ao valor da atividade do órgão, porque, sobretudo, o fígado não é percebido como
particularmente quente, apesar de sua função essencial. De toda a forma, o calor está
presente em todas essas fases. Mas o calor se deve à alma, com a qual os espíritos pare-
13 Lib.3, c. 6: dissecto animantis pectore, digitisque in sinistrum cordis sinum immissis, sentiatur hic locus omnium quem in
animal sunt calidissimus. À objeção de Plemplius de que o coração não seria quente a ponto de ferver o sangue e de que nos
peixes, que são frios, o coração também pulsa, Descartes responde propondo que haveria, no coração, uma substância seme-
lhante a um fermento: in recessibus cordis nonnihl humoris instar fermenti residere (AT, vol. 1, p. 523).
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Descartes). Nos humores essa questão é discutida detidamente. A posição de Fernel é
a de que o fígado produz e expele o humor sangue puro, mas que ele logo se mistura: “o
sangue que sai do fígado e chega às veias maiores não pode ser extremamente uniforme
e puro” (lib. 6, c. 7). No entanto, a discussão, à qual ele acaba por dedicar um capítulo
inteiro, é a de se não haveria nas veias apenas três humores, ou seja, se o conteúdo das
veias não seria mais do que uma mistura dos demais três humores, de modo que essa
mistura, e somente ela, seria o sangue, não havendo necessidade de que, além desses
três humores, ainda houvesse um quarto: o sangue seria, portanto, apenas a mistura
não precisando ser mais um humor. Fernel para defender que os humores são quatro
descreve as propriedades de cada um. O que mais nos interessa é que, na continuação
dessa discussão, no capítulo 9, ele discute a diferença entre a pituíta e as duas biles.
Particularmente relevante é que ele argumenta que há diferentes biles negras.
Segundo Fernel (no lib. 6, c. 9), cada humor se apresenta em três tipos: 1. ali-
mentar, 2. supervacâneo (ou seja, enquanto moderadamente excessivo) e 3. antina-
tural. No caso da melancolia, 1. há um suco com qualidades brandas que circula no
sangue e serve como alimento, sendo benéfico e vindo a ser chamado de suco melancó-
lico (melancholicum succum), ou mesmo sangue melancólico (melancholicum sangui-
nem), mas não de bile negra (atra bilis). Além dele, 2. haveria a bile excessiva (super-
vacanea), que é a que, atraída do fígado que a produz, é retirada do sangue pelo baço e
nele guardada. A princípio, esse humor é natural, não sendo, portanto, maléfico; por
isso também, pode ser chamado de humor negro (ater humor) – e não bile negra (atra
bilis); termo que, nessa passagem, é usado com sentido negativo (sentido negativo
que nem sempre ocorre ao longo do livro). No entanto, esse ater humor pode se tornar
maléfico, na medida em que, pela sua combustão ou pela ação do calor natural, ele se
putrefizer, adquirindo uma qualidade ácida e azeda, enfim, um amargor, convertendo-
se, por assim dizer, em cinzas; nesse caso, sim, é conveniente falar em bile negra (atrem
bilem). E essa atra bilis se constitui a partir de três processos diferentes.
Antes de apresentar os três tipos de “bile negra”, é importante ressaltar que essa
passagem é um bom exemplo da instabilidade semântica das palavras, ao mesmo tem-
po que é por meio dessa instabilidade que a doutrina, com as nuances necessárias tanto
para que as diversas partes do livro se articulem quanto para que as argumentações
adquiram a devida credibilidade e legitimidade quer por assimilar, embora várias vezes
com deslocamentos e ambiguidades, os conceitos e textos de autores de renome quer
por permitir que as doutrinas que são apresentadas realmente se mantenham como
sendo plausíveis no ensino e na prática médica. O que me parece mais interessante
aqui é que a negociação semântica sobre a bile negra limita e desloca o uso comum do
termo para que ele exatamente signifique o que não é propriamente a bile negra, en-
quanto, nessa passagem, a bile negra vai receber como designação preferencial os ter-
mos: melancholicum succum e ater humor. O que se vê também nessa passagem é que
melancholia, por ser um termo associado ao humor natural e alimentício adquire um
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minimamente quais as negociações que estão em curso e quais as regras que elas bus-
cam seguir ou mudar. Sem dúvida, se nos ativermos por demais à estrutura semântica
quaternária e buscarmos reduzir tudo o que é dito a ela, não conseguiremos ver o que
está em negociação e poderemos somente, de um modo condescendente, descartar o
texto como incoerente. Se, no entanto, compreendermos que a estrutura quaternária é
apenas a matriz semântica básica a partir da qual as palavras, várias delas com sentidos
ou valências semânticas diversas, podem ser negociadas, adquirindo e perdendo novas
nuances, de modo a se tornarem compatíveis ou repelentes umas frente às outras, vin-
do, desse modo, a possibilitar que o texto seja composto com maior ou menor coesão,
sendo visto como mais ou menos relevante frente a seus concorrentes, termos novas
questões a discutir, enfim, novas negociações a entabular com a Universa medicina e
com a textualidade e prática médicas do século XVI.
Sobre o autor
André Rangel Rios é médico (FCM-RJ), doutor em Filosofia (Freie Universität Berlin)
e professor associado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro
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