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Anamorfose - Revista de Estudos Modernos, 1 (2013), pp.

86-98

Negociações semânticas acerca da fisiologia da


melancolia na Universa medicina, de Jean Fernel
(1497?-1558)
André Rangel Rios

Nos anos 1960, era frequente o uso do termo incomensurabilidade1. Em 1966,


Michel Foucault comentou a palavra “vida” na epistème da, segundo sua nomencla-
tura, Era Clássica como sendo incomensurável com seu uso na Era Moderna, ou seja,
em cerca de uma década, a palavra teria mudado de significado2. À parte os exageros
próprios à retórica filosófica daquela época, de fato, a questão da incomensurabilida-
de de conceitos científicos é um tema que segue demandando atenção; sobretudo se
estivermos lidando, o que é o nosso caso, com palavras e conceitos de quatro ou cinco
séculos atrás. Na verdade, a própria classificação e composição dos saberes, no pré-mo-
derno, não se sobrepõe facilmente ao significado que lhes damos hoje. Por exemplo,
o que se entendia por “história” no século XVI, embora os livros de história de então
possam servir de material de análise ou de informação para que se escreva história
hoje, diferiam em sua função e modo de escrita do que se pratica atualmente como his-
tória. Da mesma forma, a medicina – ainda que, por exemplo, no século XVI o estudo
da anatomia tenha descrito estruturas no corpo humano que seguem sendo ensinadas
até hoje (por vezes sob o nome de anatomistas daquela época) – era uma atividade com
funções sociais e, portanto, com mecanismos de validação de seu saber, bem como de
atribuição de prestígio a seus praticantes, extremamente diversos do que temos hoje.
No entanto, dizer que Fernel era um médico não causa dúvida ou desconforto; do mes-
mo modo, entende-se que seu livro Universa medicina, de 15533 (mas, em parte, uma
reunião de textos anteriores retrabalhados), seja um livro de medicina, ainda que o
que nele é apresentado como medicina, incluindo a própria descrição do corpo hu-
mano e sua relação com seu meio ambiente, ou até mesmo com o cosmo (a astrologia,
por exemplo, era um saber relacionado à prática médica), assim como a maioria dos
procedimentos terapêuticos, pouco têm a ver com que entendemos atualmente como
medicina.
No entanto, não é necessário ser historiador para se ter claro que as doenças
descritas não necessariamente correspondem a seus homônimos atuais, ainda que,
muitas vezes, possam ser correlacionadas com o que vemos na prática médica de hoje.
1 O termo “incommensurability” foi usado incialmente por Kuhn e Feyerabend.

2 Foucault, sem mencionar o termo “incomensurabilidade”, mostra os sentidos extremamente diversos entre as duas epistèmes

– assim como seu virtuosismo argumentativo – no capítulo “Cuvier” (ver: Michel Foucault, As palavras e as coisas, São Paulo,
Martins Fontes, 2007, pp. 362-386 – publicado originalmente em 1966).
3 Uso a edição: Jean Fernel, Universa medicina, Paris, j. Stoer, 1578; acessada por meio da Bibliothèque interuniversitaire de

medicine: http://www.bium.uni-paris5.fr/hsitmed/medica/cote?00391a. Citarei apenas passagens da Physiologia, indicando o


livro e o capítulo.

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Uma discussão usual é até que ponto a lues venerea do século XVI se refere à sífilis ou a
um conjunto de doenças venéreas reunindo, entre elas, principalmente a sífilis e a go-
norreia. Por sua vez, a apresentação da haemorrhois, ao que tudo indica, corresponde,
aos olhos dos médicos de hoje, a hemorróidas. Incomensurabilidade, comensurabili-
dade e sobreposições parciais estão presentes a cada página de Universa medicina, de
modo que lê-la nos põe em um constante e complexo processo de negociação semân-
tica4.
Assim, o termo melancolia, quanto a sua fisiologia, difere frente ao que se en-
tende hoje por depressão; no entanto, do ponto de vista clínico o termo depressão –
apesar de ser um conceito em mudança acelerada nas últimas décadas – ainda pode ser
parcialmente relacionado a alguns sintomas do SMD-5. O que se passa é que, de fato,
quando se lê um livro de “medicina” do século XVI, o que, logo de início, se busca fazer
é um balanço do, por assim dizer, grau de incomensurabilidade que deve ser atribuído
aos termos de outrora. Esse modo de proceder buscando “traduzir” ou mesmo medir
o passado em vista ao presente talvez seja inevitável, e, por vezes, o melhor parece ser
apresentar logo a comparação e seu resultado, de modo a que se possa prosseguir com
a discussão mais aprofundadamente. Na verdade, o problema dessa comparação é que
ela, em geral, é parcial demais, não passando de uma negociação semântica preliminar
que, após um limitado ganho em compreensão, é posta de lado. Ao contrario, é neces-
sário explorá-la mais amplamente.
Atualmente a aceitabilidade da medicina se deve em muito a ela ser compreen-
dida como eficaz. A ela é atribuída uma eficácia múltipla. Não se trata somente do que
o paciente considere como benéfico para ele, mas, primordialmente, de uma eficácia
contábil: a medicina é economicamente viável, tanto em termos individuais quanto
4 Não é o objetivo deste texto expor o que entendo por “negociações semânticas”. Sendo breve, posso remeter aos “jogos

de linguagem” de Wittgenstein. No entanto, minha escolha do termo “negociação” visa incluir a perspectiva de que, tal como
num mercado com oferta e procura, chega-se a um preço, que pode, logo a seguir, mudar, ou seja, a negociação não é só
um jogo, mas um ato performático (com efeitos múltiplos) que estabelece um preço (ainda que instável), de modo a efetuar
um ato, que pode ser jurídico, de transferência de propriedade. De fato, as negociações semânticas levam em consideração
não somente o sentido das palavras, mas a forma como elas se articulam e as figuras de retórica das quais elas participam,
no caso, cabe explicitar que, ao usar essa expressão, estou me referindo também a toda a discussão das últimas décadas
sobre a importância das metáforas na filosofia (elevando, portanto, esse debate em conta na leitura de um texto “médico”
que é eivado por termos e metáforas filosóficas). A discussão sobre o uso de metáforas em filosofia ganhou posição de
cada vez mais destaque a partir da publicação de “Licht als Metapher der Wahrheit”, de Hans Blumenberg, em 1959 (sobre a
importância de H. Blumenberg, ver: Anselm Haverkamp & Dirk Mende, Metaphorologie. Zur Praxis und Theorie, Frankfurt a.
M., Suhrkamp, 2009). Relevantes para mim são ainda as publicações: Ralf Konersmann (Org.), Wörterbuch der philosophischen
Metaphern, Darmstadt, WBG, 2011; Bernard H. F. Taureck, Metaphern und Gleichnisse in der Philosophie: Versuch einer kritischen
Ikonologie der Philosophie, Frankfurt a. M., Suhrkamp, 2004; Lutz-Henning Pietsch, Topik der Kritik. Die Auseinandersetzung
um die Kantische Philosophie (1781–1788) und ihre Metaphern, Berlin, de Gruyter, 2010. Além disso, posso recomendar o
Historisches Wörterbuch der Philosophie, que, embora seu primeiro editor, Joachim Ritter, tivesse como proposta evitar incluir
nele metáforas, passou a apresentá-las quando assumido pelos editores subsequentes (sobre essa questão, ver: Haverkamp
& Mende, p. 9 e sgs.). Neste meu breve texto, porém, referindo-me somente a termos “médicos”, eu esteja talvez – apesar do
debate de fundo que busco atualmente desenvolver sobre a questão da metáfora – apenas fazendo uso, de um modo menos
sofisticado e mais discreto, do que Koselleck apresenta em seu trabalho (por exemplo, ver: Reinhart Koselleck, Begriffsgeschi-
chten, Frankfurt a. M., Suhrkamp, 2006, mais especificamente ver : “Sozialgeschichte und Begriffsgeschichte”, pp. 9-31).

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populacionais. A medicina se insere em um complexo sistema de bem-estar social (sis-
tema que, dependendo do país, é mais ou menos eficiente): o saber médico não cura
apenas sinusite, mas participa da prevenção, da promoção de saúde, da admissão de
trabalhadores, da segurança laboral, da vigilância sanitária, da concessão de licenças
médicas e de aposentadorias, assim como do financiamento dessas atividades, ou seja,
da arrecadação para o pagamento dos benefícios, da compra de medicamentos, do su-
porte à pesquisa e assim por diante. Os gastos com a saúde atingem cerca de 16% do
PIB norte americano e 12% do francês. Trata-se, portanto, de uma atividade cuja eficá-
cia se relaciona à sua viabilidade econômica, o que leva a que, por um lado, se recorra
a procedimentos testados e controlados, enfim, a que os recursos sejam bem geridos,
e, por outro, a que sempre se busque, ainda que isso aconteça por meios eticamente
questionáveis, o aumento do lucro, seja a nível da consulta médica seja na produção
industrial de medicamentos. Foi já em vista a esse contexto de eficácia econômica que
mencionei acima, a título de exemplo, o DSM-5, ou seja, um sistema de classificação de
transtornos psiquiátricos que é um dispositivo em um maquinário sócio-assistencial
que vai desde o atendimento e acompanhamento de um paciente por um profissional
médico, passando pela indústria farmacêutica e pela assistência hospitalar, podendo
resultar em licenças e aposentadorias. O diagnóstico tem de funcionar em consonância
com o financiamento à assistência. No entanto, tratando-se de um sistema complexo, o
que seja sua eficácia e sua viabilidade econômica (o quanto, por exemplo, deve ser ônus
individual ou governamental) são questões sempre em debate: por vezes, questões
científicas pesarão mais nas conclusões, por vezes, o resultado pode ser um conjunto
de decisões assumidamente políticas. De toda a forma, os valores orçamentários em
torno dos quais o debate é travado dependem de uma medicina normatizada inserida
em um sistema econômico com legislação trabalhista e proteção social. Digamos que,
se, no século XVI, a astronomia – dependendo da formação do médico – poderia ser
importante na decisão terapêutica, na França de hoje é a securité sociale a moldura
mais abrangente. Enfim, a credibilidade da medicina se deve hoje a essa inserção em
instituições vitais para o funcionamento e reprodução sociais. Decidimos ir a um mé-
dico porque sabemos que nossa dor de ouvido poderá ser curada, mas, ainda que não
tenhamos mais esperança que nossa dor crônica possa ser sequer aliviada, também
vamos ao serviço médico para obtermos licença no trabalho ou aposentadoria, que será
concedida porque o governo ou a seguradora têm – ou deveriam ter – seus meios de
controle sobre os critérios para concessão de benefícios.
Minha questão mais ampla é a de quais inter-relações o saber médico contido
em um livro como Universa medicina, de Jean Fernel, usufruía que o levavam a ter
uma posição de credibilidade. Em outras palavras, como a medicina referida a textos
eruditos, escritos em latim, levava a que médicos formados com base em sua leitura –
ou, como é o caso de Fernel, vindo a redigir e rever esses mesmos textos – alcançavam
prestígio social e, até mesmo, o que parece também ter ocorrido com Fernel, a auferir

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honorários significativos? Talvez forçando um pouco o significado das palavras, pode-
ria perguntar: qual a “eficácia” da medicina erudita no XVI? Qual a sua articulação com
os demais saberes que a levava a ter credibilidade, apesar da concorrência com diversos
outros saberes também tidos como terapêuticos? Ainda que, desde já, possa indicar
que, havendo grande difusão de práticas curativas na sociedade do século XVI, ou seja,
vários indivíduos confiavam e praticavam procedimentos que faziam parte da cultura
da época (sendo, muitas vezes, disseminados por todas as classes sociais) ou que eram
oferecidos por “charlatães”, os médicos de formação erudita, como que num processo
de negociação com sua clientela, também recorriam, por vezes, a essas mesmas práti-
cas. Enfim, trata-se de um processo de legitimação com múltiplas estratégias, que, de-
vido à requerida brevidade, não poderei expor aqui. Me limitarei a comentar, em linhas
gerais, o entendimento do corpo, seu funcionamento e, especificamente, da fisiologia
da bile negra na primeira parte da Universa medicina: na Physiologia. Somente quan-
do, em um outro texto mais extenso, eu vier a abordar todos os aspectos da melancolia
na Universa medicina será possível discutir em mais detalhe por que a melancolia, tal
como descrita por Fernel, era aceita na época e por que um livro como Universa me-
dicina veio a adquirir grande prestígio por décadas. A fisiologia de Descartes, apesar
do atomismo e à parte algumas idiossincrasias (como sua compreensão da glândula
pineal)5, se baseia em grande extensão em argumentos e “observações” iguais ou si-
milares às de Fernel; sendo que, se, seguindo Harvey, Descartes argumentou a favor
da circulação do sangue, mantém-se, porém, com a doutrina de Fernel e de outros em
uma obstinada defesa do calor inato (em Fernel: calidum innatum) próprio ao coração,
que, segundo Descartes, vaporizaria o sangue, causando a diástole6.
O livro Universa medicina7 está dividido em duas partes: Physiologia e Patholo-
gia (Fernel é frequentemente citado como tendo sido o primeiro autor a usar, em um
livro relevante, o termo pathologia e como havendo contribuído para divulgar a palavra
physiologia), contendo ainda dois apêndices: um sobre os prognósticos e outro sobre
a terapêutica (que, por sua vez, inclui um tratado sobre a sangria). Além de haver dois
anexos importantes: um tratado sobre a lues venerea e um outro sobre as causas ocul-
tas. Ao longo desse volume de quase 800 páginas, o tema melancolia ocorre em diversas
ocasiões; no entanto, me restringirei a apresentar, em linhas gerais, a fisiologia da bile
negra tal como é discutida na Physiologia. Assim, me restringirei também a comentar,
na Physiologia de Fernel, alguns deslocamentos da semântica de termos médicos do
século XVI. Mostrarei, portanto, na Physiologia, um pouco de como Fernel argumenta
e, consequentemente, incrementa sua credibilidade, que, sem dúvida, se deve a muito
mais: tanto à extensão de sua obra quanto a sua prática clínica e de ensino.
5 René Descartes, As paixões da alma, in: Os Pensadores, São Paulo, Abril Cultural, 1973, p. 238: Art. 31 e 32. Neste texto

não me proponho a comentar Descartes; as alusões a ele, um autor mais conhecido, visam apenas facilitar a leitura (sobre a
medicina em Descartes, ver: Vincent Aucante, La philosophie médicale de Descartes, Paris, PUF, 2006).
6 René Descartes, Discurso do Método, Quinta Parte.

7 Um resumo e breve discussão da vida de Fernel e do seu Universa medicina podem ser encontrados em Charles Sherrington,

The Endeavour of Jean Fernel, London, Dawson of Pall Mall, 1974 (reprinted).

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A Physiologia é constituída por sete livros. O primeiro deles descreve as partes
do corpo humano, ou seja, é um tratado de anatomia; Fernel o publicou originaria-
mente dois anos antes do livro de Vesalius, em 1543, ou seja, apesar de, em sua reda-
ção, ter se beneficiado da intensificação dos estudos em anatomia que levaram a De
humani corporis fabrica, o texto de Fernel, porém, é, com apenas 50 páginas, breve e
sem ilustrações; no entanto, o que é mais importante destacar é que Fernel está escre-
vendo 80 anos antes de Harvey, ou seja, para ele é evidente que o sangue não circula, de
modo que, sendo a circulação do sangue algo que faz parte não só de nossa percepção
do corpo, mas que também usamos a metáfora da circulação disseminadamente para
entendermos as cidades, a economia ou a ecologia, assim como outras eventos cor-
porais (como os hormônios e as metástases), enfim, já que somos familiarizados com
ela, temos de estar atentos para entendermos o que, segundo os médicos do tempo
de Fernel, faz o sangue se difundir pelo corpo e quais são especificamente as funções
das artérias, das veias e do coração. O segundo livro versa sobre os “elementos”: terra,
água, ar e fogo. O terceiro discute os “temperamentos”, ou seja, o equilíbrio, ou dese-
quilíbrio, na combinação dos elementos. O quarto trata dos espíritos e do calor inato:
dois temas que, aliás, estão fortemente presentes na fisiologia de Descartes. O quinto
comenta as “faculdades”, que são as atividades que se originariam da alma enquanto
princípio da vida, ou seja, uma faculdade é uma vis: se Descartes explicou, quase um
século depois, a diástole argumentando que o coração seria uma fornalha vaporizando
o sangue8, pouco antes Harvey manteve-se fiel à explicação de que a sístole se devia a
uma facultas pulsifica9, enfim, é essa facultas ou vis que Molière usou como pilheria em
O doente imaginário. O sexto livro apresenta a fisiologia dos humores: sangue, pituíta,
bile amarela e bile negra; assim como as três concoctiones, que são essenciais para a
compreensão de sua fisiologia. O sétimo livro é dedicado à procriação humana. Desses
sete livros, são o segundo, o terceiro e o sexto os que mais têm a contribuir para uma
exposição preliminar, baseada na Physiologia, sobre a fisiologia da bile negra segundo
Fernel.
No entanto, particularmente importante é o livro sobre os “elementos”, onde
Fernel deixa claro que não está se referindo aos elementos que percebemos pelo tato,
mas aos que são apreendidos especulativamente. O prefácio do livro 2 começa, de fato,
com uma critica às limitações do conhecimento e com elogios a quando pela “dedica-
ção à filosofia” (philosophandi studio) e atentos às “marcas das pegadas dos homens
célebres” (celebrium virorum impressa... vestigia) se vai das partes visíveis para aquelas
“que são aprendidas apenas pelo pensamento” (quae cogitatione sola discuntur). Ou
seja, os “elementos” de Fernel não são a terra, a água, o ar e o fogo que podemos perce-
ber pelos cinco sentidos, mas elementos puros, porque os que percebemos já seriam,

8 Descartes segue Aristóteles na doutrina sobre o calor próprio ao coração, diferindo nisso de Galeno, como, aliás, como

muita propriedade, indica Plemplius, em: Descartes, Oeuvres (AT), vol. 1, p. 497.
9 William Harvey, Opera omnia, medicorum londinensi edita, 1766 (De motu cordis, publicado originalmente em 1628), ver:

Prooemium – acessado pelo Google.

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em alguma medida, o resultado de uma combinação, ainda que, em cada um deles,
haja a predominância de algum deles. Os elementos são, portanto, princípios metafí-
sicos, apreendidos especulativamente. No entanto, apesar desses esclarecimentos ini-
ciais, Fernel discutirá os elementos tal como se eles fossem aqueles que percebemos.
De fato, ele, por exemplo, no capítulo 3, reafirma que os elementos “não são corpos”
(corpora non sunt) e que suas formas nós “as separamos a partir da noção de elemento”
(eas ab elementi notione abducimus).
Uma breve recapitulação histórica, nesse momento, pode ser proveitosa. A teo-
ria dos quatro humores começa no corpus hipocrático. A princípio, são mencionados
apenas três humores: o sangue, a pituíta e a bile amarela; a bile negra seria uma dege-
neração da bile amarela. Somente no Sobre a natureza do homem (De hominis natura)
é que a bile negra é considerada um humor tal como os outros três. E é exatamente o
Sobre a natureza do homem que Galeno veio a considerar como o tratado que exporia
os conceitos essenciais de Hipócrates, baseando nele sua interpretação e hierarquiza-
ção quanto à autenticidade e validade do conteúdo das demais obras a ele atribuídas.
Foi também apenas durante a época do império romano que os quatro elementos –
ar, terra, água e fogo – passaram a ser associados aos quatro humores, o que permite
compor um quadro das oposições e correlações entre os elementos, os humores e as
estações do ano e as quatro qualidades primárias (quente, seco, úmido e frio), tal como
apresenta Vivian Nutton10:

Verão
Bile

Quente Fogo Seco

Primavera Outono
Ar Terra
Sangue Bile negra

Úmido Água Frio

Inverno
Fleuma

Resumo esquemático do sistema humoral de Hipócrates em


Sobre a natureza do homem segundo Vivian Nutton

10 Vivian Nutton, Capítulo 1 “Medicine in the Greek World”, in: Lawrence I. Conrad; Michael Neve; Vivian Nutton; Roy Porter,

The Western Medical Tradition 800 BC to AD 1800, Cambridge, Cambridge University Press, 1995, p. 25.

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Nutton indica ainda que, durante a Idade Média, ainda foram acrescentados
os quatro temperamentos e, até mesmo, os quatro evangelistas11. Ou seja, trata-se de
um esquema que se manteve em mudança. No entanto, o que me parece importan-
te destacar é que o quadro acima, ainda que nos seja esclarecedor, permitindo que
apreendamos a estrutura das oposições e similaridades, exclui o que, a meu ver, é par-
ticularmente relevante: as negociações semânticas e interpretativas que permitiram a
acomodação dos termos não somente em uma estrutura plausível, mas também per-
mitiram tornarem plausível uma estrutura que lhes conferia lugares contrapostos. O
quadro acima é uma compreensão estrutural básica da semântica dos termos frequen-
temente usados na medicina por séculos. Trata-se, portanto, de um quaternário se-
mântico efetivo, ainda que sempre questionado. Ele é estável, mas sua estabilidade é,
como veremos ao discutirmos o texto de Fernel, relativamente precária. O que se passa
é que a estrutura quaternária não faz cessar as negociações, ainda que as limite, já que,
desde de seu estabelecimento, os termos passam a depender dela para terem sua sig-
nificação melhor compreendida. De fato, Fernel inova a compreensão dessa estrutura:
para ele, as faculdades não se originam dos humores, mas, ao reduzir a importância
dos humores, são os espíritos e o calor inato que ganham preponderância; por isso,
sua fisiologia pospõe a exposição dos humores, antecipando-a pela apresentação dos
elementos, funcionando como um preâmbulo para a explicação sobre os espíritos e o
calor vital. No entanto, esse deslocamento na hierarquia fisiológica não faz com que ele
deixe de ser um galenista; afinal, os humores seguem sendo amplamente importantes
em sua fisiologia e, do mesmo modo, em sua patologia, assim como em seus procedi-
mentos terapêuticos.
A estrutura quaternária, envolvendo elementos, qualidades primárias e humo-
res, permanece em Fernel, mas nele, tal como em outros autores, seus termos e contra-
posições, bem como inter-relações, seguem em um processo de negociação semântica;
processo que tanto a questiona quanto a revalida. Que o raciocínio médico humoral
será posto de lado, nós o sabemos; vários fatores – que também foram, sem dúvida,
negociações interpretativas – contribuirão para isso, entre eles, as discussões sobre o
método em medicina, a anatomia renascentista, o atomismo, a circulação do sangue e
as transformações na química; no entanto, não é esse o nosso tema.
De fato, discutir a fundo a questão da negociação semântica não é a proposta
deste texto. Ainda assim, é necessário esclarecer que ela não se dá apenas no que toca o
trabalho do historiador ou o do pesquisador que busca mudar uma estrutura de com-
preensão de termos inter-relacionados: a negociação semântica é prática comum na
linguagem, ou seja, apesar do texto de Fernel ser em latim e, portanto, de acesso relati-
vamente limitado, ele busca torná-lo claro o suficiente para que seus colegas médicos
o entendam – e possam explicar em francês para seus pacientes os processos fisiopato-
lógicos –, porque, como se sabe, a cultura médica, na época, não se restringia apenas
aos médicos formados. Em vista disso, indicarei alguns momentos em que negociações
11 Nutton, 1995, p. 25.

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semânticas (o que, além do deslocamento do significado das palavras ou da ordem de
exposição do conteúdo, inclui metáforas e símiles, bem como recurso, ou não, à auto-
ridade de “homens célebres”) ocorrem na estruturação argumentativa da Universa me-
dicina. Fernel, nesse capítulo sobre os elementos, está negociando semanticamente ao
manter os termos fundamentais de sua fisiologia (terra, água, ar e fogo) em oscilação
entre o transcendental e o cotidiano: as argumentações e explicações, como veremos,
tanto vão na direção de deslocar quanto de estabilizar o sentido das palavras. Aceitar
participar desse processo de negociação, que persistirá ao longo de todo o livro, assim
como da prática médica, é essencial para sua compreensão. Do mesmo modo que os
quatro elementos oscilam entre transcendência e cotidianidade, os quatro humores
também o farão. Os quatro humores também estariam sujeitos à mesma oscilação, pois
seriam constituídos a partir desses quatro elementos fundamentais; no entanto, essa
discussão não ocorre no Universa medicina: o que é dito é, por exemplo, que a pituíta
é formada a partir de uma porção fria e crua do quilo (chylus) e o humor melancólico a
partir de uma porção fria e terrosa do quilo (chylus), ou seja, os humores são tratados
muitas vezes (embora, como veremos, nem sempre) como se fossem apenas substân-
cias físicas – ou, no caso, sucos –, cujas qualidades poderiam ser conhecidas empiri-
camente e que seriam formadas a partir de outras substâncias físicas. Assim, a mesma
oscilação entre transcendental e empírico também estará presente na discussão sobre
os humores, havendo os humores puros e naturais, os putrefeitos e os antinaturais.
Do mesmo modo, o livro 4, sobre os espíritos e o calor inato, é uma longa prática
de negociação entre o sentido transcendental e o empírico de suas palavras-chave. No
entanto, é importante acrescentar, a “negociação” é também um treino de compreen-
são e argumentação; pode-se dizer que é parte de um exercício de formação identitária
do médico, que, ao habilitar-se no jogo semântico do jargão profissional, saberá se
apresentar e agir como é esperado dele.
Vida, espírito e calor inato se equivalem. O mais comum é que espírito e calor
inato ocorram conjuntamente (por exemplo: innato calido et proprio spirito – lib. 4, c.
7). Além disso, o calor inato muitas vezes coincide com o calor empírico; afinal, quem
está vivo, em geral, é, em alguma medida, quente. No entanto, o calor varia de órgão
para órgão, sem que se o possa relacionar isso com a importância de sua atividade para
a vida humana. É o que vemos se considerarmos o processo de assimilação dos alimen-
tos, que passa por três concocções: 1. a mastigação, deglutição e formação do conteúdo
estomacal (o chymus) que é passado ao duodeno quando se torna o quilo (o chylus); 2.
A transformação no fígado do chylus nos humores (uma fase complexa de transforma-
ção, mas que não requer muito calor); 3. a absorção dos humores na alimentação e for-
mação dos órgãos, ossos e músculos; de fato, o calor, a cada concocção, não correspon-
de ao valor da atividade do órgão, porque, sobretudo, o fígado não é percebido como
particularmente quente, apesar de sua função essencial. De toda a forma, o calor está
presente em todas essas fases. Mas o calor se deve à alma, com a qual os espíritos pare-

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cem se relacionar sem dificuldade, côo que em continuidade, não havendo, portanto,
em Fernel, tal como há em Descartes, qualquer problematização da relação, ou seja, da
transição ou comunicação, entre os espíritos e a alma. De toda a forma, é interessante
que o espírito seja considerado como tendo uma origem fisiologicamente explicável,
além de ser fisiologicamente, no caso, pelas artérias difundido pelo corpo; no entanto,
ao se difundir por todo o corpo ele passa a se assemelhar à alma, que Fernel considera
imortal e criada por Deus. O espírito seria formado a partir do ar inspirado que, junta-
mente com o sangue, seria fervido no ventrículo esquerdo, quando ocorreria a diástole.
Na sístole, o conteúdo do ventrículo seria atraído para as artérias, o que ocorreria a
um só tempo, ou seja, Fernel não entende que o pulso, a partir da abertura da válvula
aórtica, se propague ao longo das artérias12. Assim, o coração é um órgão realmente
quente, ou seja, onde o calor inato é particularmente intenso e que, além disso, o calor
tátil também: “o coração somente pelo tato é caracteristicamente quentíssimo” (Cor
solo tato definitum est calidissimum – lib. 3, c. 6). Sobre isso, Fernel argumenta com
toda a segurança que “aberto o peito de um animal, e colocando os dedos no ventrículo
esquerdo, sente-se que esse lugar, comparado com todos os outros que há no animal
é o mais quente”13. No entanto, a semente de uma planta, que contém a planta que é
viva, não é quente: o calor inato estaria presente nela, mas não se manifestaria como
calor sensível. O calor inato é, portanto, tanto algo manifesto quanto transcendental,
tanto uma qualidade que se manifesta de um modo sensível nos corpos vivos quanto
um componente transcendental, vivificante do corpo.
Sem dúvida, o espírito, essa substância tênue formada pelo ar aquecido no co-
ração, media o corpo e os humores com a alma, que é a causa primária das faculdades.
E são muitas as faculdades. Há faculdades nutritivas, procriativas e aumentativas (as
que fazem o corpo crescer). Há faculdades atrativas, que, por exemplo, atraem o san-
gue para as artérias, a bile negra para o baço ou a amarela para a vesícula biliar. Enfim,
são mais do que pode ser exposto aqui. De uma forma geral, Fernel não está inovando
sobre esse tema. O que lhe é característico é valorizar mais a alma, ou seja, valorizar
mais essa instância transcendental que é a alma. No entanto, apesar disso, sua fisio-
logia segue, como as de outros autores, desenvolvendo, com pequenas modificações,
a negociação dos elementos, dos humores e dos espíritos entre o córporo-sensível e a
instância transcendental.
O que se pode dizer é que uma das contraposições que está em negociação é
a do puro e do impuro, onde o puro, evidentemente, está mais próximo do transcen-
dental e o impuro do sensível (onde, é claro, a própria fronteira entre puro e impuro,
assim como sua permeabilidade, podem estar em questão – e o estão, em especial, em
12 Lib. 4, c. 12: spiritum profert vitalem per arteria toto corpore diffusum atque consertum...

13 Lib.3, c. 6: dissecto animantis pectore, digitisque in sinistrum cordis sinum immissis, sentiatur hic locus omnium quem in

animal sunt calidissimus. À objeção de Plemplius de que o coração não seria quente a ponto de ferver o sangue e de que nos
peixes, que são frios, o coração também pulsa, Descartes responde propondo que haveria, no coração, uma substância seme-
lhante a um fermento: in recessibus cordis nonnihl humoris instar fermenti residere (AT, vol. 1, p. 523).

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Descartes). Nos humores essa questão é discutida detidamente. A posição de Fernel é
a de que o fígado produz e expele o humor sangue puro, mas que ele logo se mistura: “o
sangue que sai do fígado e chega às veias maiores não pode ser extremamente uniforme
e puro” (lib. 6, c. 7). No entanto, a discussão, à qual ele acaba por dedicar um capítulo
inteiro, é a de se não haveria nas veias apenas três humores, ou seja, se o conteúdo das
veias não seria mais do que uma mistura dos demais três humores, de modo que essa
mistura, e somente ela, seria o sangue, não havendo necessidade de que, além desses
três humores, ainda houvesse um quarto: o sangue seria, portanto, apenas a mistura
não precisando ser mais um humor. Fernel para defender que os humores são quatro
descreve as propriedades de cada um. O que mais nos interessa é que, na continuação
dessa discussão, no capítulo 9, ele discute a diferença entre a pituíta e as duas biles.
Particularmente relevante é que ele argumenta que há diferentes biles negras.
Segundo Fernel (no lib. 6, c. 9), cada humor se apresenta em três tipos: 1. ali-
mentar, 2. supervacâneo (ou seja, enquanto moderadamente excessivo) e 3. antina-
tural. No caso da melancolia, 1. há um suco com qualidades brandas que circula no
sangue e serve como alimento, sendo benéfico e vindo a ser chamado de suco melancó-
lico (melancholicum succum), ou mesmo sangue melancólico (melancholicum sangui-
nem), mas não de bile negra (atra bilis). Além dele, 2. haveria a bile excessiva (super-
vacanea), que é a que, atraída do fígado que a produz, é retirada do sangue pelo baço e
nele guardada. A princípio, esse humor é natural, não sendo, portanto, maléfico; por
isso também, pode ser chamado de humor negro (ater humor) – e não bile negra (atra
bilis); termo que, nessa passagem, é usado com sentido negativo (sentido negativo
que nem sempre ocorre ao longo do livro). No entanto, esse ater humor pode se tornar
maléfico, na medida em que, pela sua combustão ou pela ação do calor natural, ele se
putrefizer, adquirindo uma qualidade ácida e azeda, enfim, um amargor, convertendo-
se, por assim dizer, em cinzas; nesse caso, sim, é conveniente falar em bile negra (atrem
bilem). E essa atra bilis se constitui a partir de três processos diferentes.
Antes de apresentar os três tipos de “bile negra”, é importante ressaltar que essa
passagem é um bom exemplo da instabilidade semântica das palavras, ao mesmo tem-
po que é por meio dessa instabilidade que a doutrina, com as nuances necessárias tanto
para que as diversas partes do livro se articulem quanto para que as argumentações
adquiram a devida credibilidade e legitimidade quer por assimilar, embora várias vezes
com deslocamentos e ambiguidades, os conceitos e textos de autores de renome quer
por permitir que as doutrinas que são apresentadas realmente se mantenham como
sendo plausíveis no ensino e na prática médica. O que me parece mais interessante
aqui é que a negociação semântica sobre a bile negra limita e desloca o uso comum do
termo para que ele exatamente signifique o que não é propriamente a bile negra, en-
quanto, nessa passagem, a bile negra vai receber como designação preferencial os ter-
mos: melancholicum succum e ater humor. O que se vê também nessa passagem é que
melancholia, por ser um termo associado ao humor natural e alimentício adquire um

Negociações semânticas acerca da fisiologia da mel ancolia na Universa medicina 95


sentido positivo frente a atra bilis, que seria uma degenerescência antinatural e perni-
ciosa, seria, até mesmo, como é afirmado nesse mesmo capítulo: o pior dos humores
(atra bilis ea, quae omnium est humorum deterrima). No caso, o que deveria ser dito
é que a atra bilis não é um humor; no entanto, segue sendo considerado um humor,
sem pôr em dúvida a estrutura quaternária básica, que, na verdade, mantém-se funda-
mental para que esses deslocamentos (ou negociações) semânticos sejam praticados,
ou seja, a estrutura quaternária é, de certo modo, revigorada com essas alterações se-
mânticas, embora, é claro, se possa pensar que, a mais longo, foram exatamente essas
mudanças e reacomodações semânticas que levaram ao abandono da teoria humoral,
isto é, da estrutura semântica quaternária.
O primeiro dos três tipos de bile negra é o que se origina da putrefação do suco
melancólico, tornando-se como que cinzas. O segundo tipo é o que se origina da bile
“vitelina”, ou seja, de um tipo degenerado de bile amarela (vitellum quer dizer gema de
ovo, ou seja, trata-se de uma bile que é amarela demais e que provoca doença).
De resto, em meio a discussão dos processos de degeneração que levam à bile
negra, Fernel assinala que nem o sangue nem a pituíta doce (a que é o verdadeiro hu-
mor pituíta) se transformam na deletéria bile negra. No entanto, é interessante com-
plementar: a pituíta doce pode se transformar em sangue. O terceiro tipo de bile negra
se origina da pituita falsa, que, embora discutida a partir da explicação sobre as dife-
rentes espécies do humor pituíta, que também se divide em três tipos: 1. o alimentício,
2, o supervacâneo e 3. o antinatural, por ser uma pituíta do terceiro tipo, ou seja, por ser
antinatural, não é pituíta. É essa pituíta falsa, que, portanto, não é pituíta e que pode
se transformar na terrível bile negra, que, por sua vez, não seria um humor e, portanto,
seria um outro falso humor. Ambos são falsos e, portanto, não são propriamente hu-
mores, mas são classificados e entendidos a partir dos humores e, assim, participam
semanticamente do quaternário, embora, em certa medida, também contribuam para
indicar que o quaternário é insuficiente para compreender a fisiologia, ainda que, no li-
vro de Fernel, essa insuficiência pareça ser aproveitada como virtude, porque assegura
a agilidade e adaptabilidade do quadro semântico explicativo geral.
Enfim, o que vemos é que os humores, ora são discutidos tal como se fossem
resultado de transformações de corpos sensíveis, ora a partir de seu significado mais
abstrato, tal como se pode os apreender na estrutura quaternária.
É possível dizer que essa passagem de Fernel sobre a melancholia é apenas
confusa e contraditória. Hoje em dia existem textos que são não mais que confusos e
contraditórios. Do mesmo modo, ao longo da história sempre tais textos existiram e,
sem dúvida, continuarão a existir. Em alguma medida, eles fazem parte do processo
de negociação semântica, ainda que talvez não sejam a melhor escolha para analisar
o que está em debate. No entanto, essa passagem de Fernel é parte de um importante
capítulo em seu livro e é redigido com cuidado e atenção. Não há por que taxá-lo de
confuso. Antes, se o julgarmos confuso é porque não estamos conseguindo apreender

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minimamente quais as negociações que estão em curso e quais as regras que elas bus-
cam seguir ou mudar. Sem dúvida, se nos ativermos por demais à estrutura semântica
quaternária e buscarmos reduzir tudo o que é dito a ela, não conseguiremos ver o que
está em negociação e poderemos somente, de um modo condescendente, descartar o
texto como incoerente. Se, no entanto, compreendermos que a estrutura quaternária é
apenas a matriz semântica básica a partir da qual as palavras, várias delas com sentidos
ou valências semânticas diversas, podem ser negociadas, adquirindo e perdendo novas
nuances, de modo a se tornarem compatíveis ou repelentes umas frente às outras, vin-
do, desse modo, a possibilitar que o texto seja composto com maior ou menor coesão,
sendo visto como mais ou menos relevante frente a seus concorrentes, termos novas
questões a discutir, enfim, novas negociações a entabular com a Universa medicina e
com a textualidade e prática médicas do século XVI.

Negociações semânticas acerca da fisiologia da mel ancolia na Universa medicina 97


Resumo Abstract
Baseando-se somente na Physiologia, de Jean Resorting only to the Physiologia, of Jean
Fernel, o artigo descreve a fisiologia da bile Fernel, this study describes the physiology
negra, discutindo como termos-chave dos of the black bile, discussing how key terms
textos médicos do século XVI apresentam of the medical language of the 17th Century
sentidos instáveis. É mostrado, em especial, show instable meanings. The author high-
que, quando Fernel comenta a bile negra, ele lights that, when Fernel comments on the
indica que esse conceito tradicional se des- black bile, he points out that this tradition-
dobra em três diferentes com inter-relações al concept is actually to be unraveled in
diversas entre si e com os demais humores. three different concepts, which have divers
No entanto, esses sentidos instáveis são en- interrelations among them and the other
tendidos de um modo basicamente positivo, humors. However, these instable meanings
no caso, como um espaço de manobra para are understood positively, that is to say, as
negociações semânticas que permitem ex- a room for maneuver to semantic negotia-
plicações fisiológicas que tanto se mantêm tions that allow physiological explanations
referidos à tradição médico-textual erudita that, on one hand, remain referred to the
quanto acrescentam nuances e postulam no- erudite medical books and, on the other
vas interações. hand, add nuances and postulate new inter-
actions.
Palavras-chave: história da medicina, histó-
ria intelectual, Jean Fernel, bile negra, me- Keywords: history of medicine, intellectual
lancolia history, Jean Fernel, black bile, melancholy

Sobre o autor
André Rangel Rios é médico (FCM-RJ), doutor em Filosofia (Freie Universität Berlin)
e professor associado na Universidade do Estado do Rio de Janeiro

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