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"O objeto a e o intervalo: uma clínica mais além do pai"

a. Clínica
b. Estrutura
c. Clínica das estruturas ou clínica do objeto a?
d. S(Ⱥ)
e. A clínica do "mais além do pai"
f. Extração do objeto a: Intervalo e holófrase
g. A tabela das estruturas clínicas

Neste capítulo, começamos propondo a ideia principal que será o eixo de todos os
argumentos a seguir: as estruturas clínicas estão estruturadas entre si. Partimos do
pressuposto de que há uma lógica que articula as estruturas clínicas entre si. Assim,
uma abordagem lógica das estruturas clínicas é possível porque há uma estrutura
que as organiza. Todas as outras elaborações girarão em torno dessa afirmação.
Cada termo, como "fobia" ou "perversão", será apresentado em função do sistema de
oposições da estrutura em que está incluído, e não como a descrição de entidades
que existem como tal por capricho da natureza (o nome moderno de Deus). Se no
capítulo anterior enfatizamos tanto a lógica, é porque argumentamos que uma lógica
governa a ordem das estruturas clínicas.

a. Clínica

Ao postular o fundamento lógico em que se basearão os desenvolvimentos sobre as


estruturas clínicas, a proposta é começar pela elaboração das noções de "estrutura"
e "clínica", a fim de dar um sentido preciso às expressões "estrutura da clínica" e
"estrutura clínica". Começaremos pela elaboração da noção de "clínica".

"Klínicos" em grego designava aquele que visitava o doente que estava na cama; é
derivado de "kline": cama ou leito. Na história da medicina, o surgimento da "clínica"
no sentido moderno implica uma mudança muito forte na posição do médico. Durante
longos períodos da história, o médico teve como função principal, além de ser o
receptor das demandas causadas pelo sofrimento, ajudar (às vezes apenas a morrer)
os doentes de acordo com os ritos de cada cultura.

Enquanto isso, com o surgimento da clínica moderna, a intervenção médica começou


a ser deduzida a partir do que o sofrimento estabelecido indicava sobre o que estava
acontecendo "na cama", o que hoje é conhecido como o "dado clínico", interpretado
de maneira científica.

Na clínica psicanalítica, o paciente não está deitado na cama, mas sim deitado no
divã. O uso do divã no dispositivo analítico não é uma questão de "ritos" ou costumes,
mas sim de estrutura da clínica psicanalítica. O divã é usado por questões estruturais,
embora geralmente obscuras. A clínica psicanalítica não é uma clínica da visão, mas
sim da escuta e de uma leitura construída a partir dela.

Além disso, é claro que o divã, a cama, introduz na experiência analítica as


conotações sexuais que o deitar e a cama têm para os sujeitos adultos, o divã
incorpora na cena psicanalítica o lugar da sexualidade, mas como um lugar vazio.

Finalmente, o uso do divã na prática analítica testemunha que não só se opera com
a noção de estrutura como significante, mas também que a experiência se localiza na
interseção da estrutura do significante e do corpo; daí sua relação com o leito e a
prática médica. Os analistas operam na articulação da estrutura do significante e do
corpo, e por isso é necessário o divã: é o lugar onde o corpo e seu sofrimento são
abrigados, quando isso vale algo além de sua imagem ou do puro significante.

Considerando a articulação da estrutura do significante com o corpo e seu sofrimento,


é possível fazer uma boa distinção entre o uso das noções de significante e estrutura
na psicanálise em comparação com, por exemplo, a linguística, a lógica simbólica e
a matemática.

Essas disciplinas diferem da psicanálise em suas formas de conceber e operar com


a estrutura do significante, que são essencialmente diferentes das manobras do
psicanalista. Em que elas diferem? Para a psicanálise, o uso da estrutura é clínico e
envolve o corpo e a relação que o sujeito mantém com ele. Postula-se assim, como
uma das diferenças fundamentais entre a psicanálise, a linguística, a lógica simbólica
e a matemática, o fato de que, para os psicanalistas, a estrutura é sempre concebida
"com" o corpo, sempre associada à presença do corpo e da dor.

Dada a inclusão do corpo e do sofrimento, é apropriado estabelecer, neste ponto da


argumentação, a relação entre a prática analítica e a medicina. A clínica médica e a
clínica psicanalítica devem ser articuladas entre si. A aparição do psicanalista indica
a necessidade, em certo momento do desenvolvimento do mal-estar na cultura
ocidental, de uma determinada mudança na função desempenhada até então pelo
médico. Qual função? Ser receptor das demandas de sofrimento ou dor. O médico
moderno, ao se considerar "científico" em vez de "praticante" (aquele que exerce uma
prática real e simbólica sobre o real), ao sustentar cada vez mais sua prática nos
diagnósticos feitos por dispositivos impessoais desenvolvidos pela tecnologia e ao ser
cada vez mais distribuidor de medicamentos, deixou de ser aquele que se torna o
receptor ou destinatário das queixas do padecimento. Freud já denunciava em 1919
que os médicos, há décadas, não recebiam na sua formação acadêmica o
treinamento necessário para o correto exercício de sua prática (a ação terapêutica),
pois ela estava quase inteiramente circunscrita à química, física e anatomia, ou seja,
a certos ramos da ciência.
Em medicina moderna, o terapêutico se confunde com o estritamente curativo, no
sentido de recuperar a saúde perdida. Mas, estudando sua origem, pode-se
estabelecer uma dimensão hoje quase totalmente esquecida do terapêutico.
"Terapon" designava na antiguidade o companheiro do guerreiro, aquele que
conduzia seu carro, o ajudava a colocar sua armadura. Era o servidor das musas ou
de um deus. Significava também escravo. Depois passou a significar aquele que
acompanha e oferece serviços, cuidados, a uma pessoa importante, e finalmente
terminou significando: aquele que oferece cuidados a um doente. Como se vê, "o
terapêutico" era mais a posição de alguém disposto a acompanhar, ajudar e oferecer
cuidados ao personagem importante ou ao doente. "Terapêuticos" significava aquele
que amava prestar serviços, e em sentido médico, a pessoa apta para cuidar de
outras pessoas que sofrem.

Muitos estudiosos, do campo da medicina, afirmam que atualmente é possível falar


de uma "epidemia" de dor no Ocidente. Apesar do desenvolvimento da bioquímica ter
produzido nos últimos anos uma enorme gama de medicamentos, desde analgésicos
("sem dor") até anestésicos ("sem sentir"), há um grande aumento da dor e até uma
generalização de um tipo muito específico: a dor crônica. Cada vez mais, o sujeito da
sociedade científica sofre de dores que tendem a se cronificar. Fala-se da "cultura da
dor", talvez seja conveniente também postular a dor na cultura, cujo aumento talvez
esteja relacionado ao fato de que quanto mais medicamentos, menos médicos e
quanto mais ciência, menos terapêutica, o que finalmente produz mais dor.

M. Foucault, em "O nascimento da clínica", destaca que no final do século XVII os


médicos que perguntavam regularmente "o que você tem?", passaram a perguntar no
século XVIII "onde dói?". Hoje em dia, tantas vezes repetida pelos médicos "você não
tem nada", implica o esquecimento de que, apesar disso, muitas vezes "é verdade
que dói". Devido a essa mudança do médico, como resultado do cada vez mais amplo
apoio aos meios impessoais de diagnóstico e tratamento fornecidos pela ciência e
tecnologia e exigidos pelos pacientes, a verdade subjetiva da dor ou sofrimento teve
que ser recebida por uma nova figura social: o psicanalista.

Assim, é o psicanalista quem surge como figura social devido a que ele atua como
substituto de uma função que o médico deixou de cumprir. O psicanalista é a única
oferta moderna, racional e personalizada para receber o sofrimento subjetivo com
estrutura de verdade, para além de um distúrbio dos tecidos ou células.

b. Estrutura

O outro termo a definir na expressão "estrutura clínica" é o de estrutura. "Estrutura


clínica" implica a utilização da noção de estrutura, cuja definição segundo Lacan é:
conjunto co-variante de elementos significantes; trata-se, então, das noções
matemáticas de conjunto e de co-variância, associadas à noção linguística de
significante. É pertinente, então, definir cada termo dessa expressão.
Conjunto: A noção de conjunto utilizada em seu sentido matemático carece de
definição. Em matemática, nem conjunto nem elemento nem pertinência possuem
uma definição formal. Como noção, implica operar com uma coleção de elementos
essencialmente enunciativa (sua definição) que, portanto, não tem necessidade de
referente real algum. "Conjunto" é a mera enunciação de uma coleção de elementos,
precisamente definidos, e que se caracteriza por que "evita as implicações da
totalidade ou as depura". É uma modalidade matematizada de operar com a
enunciação de uma totalidade de elementos, obviamente, os desse conjunto, mas
que estuda os efeitos de considerar tal coleção como um todo; "todo" que se converte,
por sua vez, em um "objeto" que não possui referente.

O estudo do conjunto e sua relação com o problema da totalidade completa gerou,


desde o início do desenvolvimento da teoria dos conjuntos, uma série de paradoxos
matemáticos. Entre eles, destacam-se: a) o paradoxo do conjunto de todos os
conjuntos, conhecido como o paradoxo de Cantor. Neste conjunto, o conjunto
potência introduz a contradição; b) o paradoxo de Russell, ou do conjunto de todos
os conjuntos que não são elementos de si mesmos, cujos exemplos mais conhecidos
são o catálogo de todos os catálogos que não se incluem a si mesmos e o do barbeiro
que corta o cabelo de todos os homens que não o cortam a si mesmos; c) o paradoxo
de Burali-Forti, ou do conjunto de todos os números ordinais e d) o paradoxo de todos
os conjuntos equipotentes. Se o conjunto é considerado um todo completo, produz
paradoxos inevitáveis.

Seguindo o caminho desses desenvolvimentos matemáticos, na psicanálise é


necessária uma noção de estrutura considerada como um todo não completo, ou seja,
tanto completo como incompleto. A partir dessa perspectiva, pode-se afirmar que toda
língua é completa para significar tudo o que um falante da mesma necessite ou queira
comunicar. Nesse sentido, não falta nada e é definida por Lacan como "bateria do
significante"; por sua vez, toda língua inclui em si a falta, o que Lacan designa pela
expressão "tesouro do significante". Toda bateria, de seis, doze ou vinte e quatro
elementos, é completa, todo tesouro, por mais imenso que seja, não pode ser "todo
o ouro do mundo". Então, é necessária uma noção que articule intimamente todo e
não-todo, a de conjunto cumpre com este requisito.
Que o não-todo domine a noção de estrutura é de especial importância na hora de
aplicar tal noção ao sujeito falante. Sempre que se opera com o sujeito falante, a
noção de não-todo é requerida. A estrutura que compreende neurose obsessiva,
histeria, fobia, perversão, psicose, etc., inclui em si as estruturas clínicas, mas não
implica por isso o universo, salvo que caia em profundos paradoxos. Nem todos os
sujeitos falantes ficam incluídos em alguma das estruturas clínicas; a estrutura da
clínica engloba as estruturas clínicas, não os sujeitos. Portanto, não é correto
considerar sempre todo sujeito incluído em uma estrutura clínica. Nesse sentido, é a
nível do sujeito onde se produz uma dimensão do não-todo nas estruturas clínicas.

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