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ABSTRACT:
In "The Question of Lay Analysis", while discussing the problem of the necessary credentials for the
professional practice of psychoanalysis, Freud takes a firm stand for psychoanalysis as a scientific
discipline. It's acceptable, according to Freud, that psychoanalysis be taken as a therapy in the fields of
medicine or psychology. However, it is necessary that therapy doesn't come to a point of “killing
(erschlagen) science”. Lacan proposes the discourse of the master as a condition of the statute of the
body concerned in the medical-therapeutical hygiene, as heir of medieval christianity's "salvation" within
the world of science. The discursive dimension is thus more evidently the sole dimension upon which
psychoanalysis must operate.
Keywords: psychoanalysis; science; therapy
RÉSUMÉ:
Dans «La question de l’analyse profane», à propos du problème des qualifications professionnelles
requises pour l’exercice du métier de psychanalyste, Freud prend une position ferme en faveur de la
psychanalyse en tant que discipline scientifique. Que la psychanalyse soit considérée une thérapie, dans le
champ de la médecine ou de la psychologie, c’est acceptable, dit Freud. Mais on ne peut pas permettre
que la «thérapie tue (erschlägt) la science». Lacan avance que le discours du maître est la condition du
statut du corps sur lequel porte l’hygiène médico-thérapeutique, en tant qu’héritière du «salut» chrétien
du moyen âge au sein du monde de la science. Avec Lacan il devient plus évident que la psychanalyse ne
peut opérer que sur la dimension discursive.
Mots clefs: psychanalyse; science; thérapie
Terapia e psicanálise: Da herança do sagrado à pesquisa científica
A doctrina, legada aos “doctores”, era no mundo medieval a única forma adequada de
ordenação, na qual o conhecimento era perfeitamente enunciado e a “summa” correspondia à
reunião, à soma, dos escritos doutrinários que, por sua vez, eram legados pela tradição
escolástica. Com a ruptura introduzida pela ciência, entretanto, este regramento do
conhecimento a partir da incontestável preeminência das autoridades religiosas foi derrogado.
(HEIDEGGER, 2007). Perde-se então o referencial responsável pelo ordenamento não só da
moral, como também do conhecimento.
O que surge aí é a figura de um homem que deve se assumir como responsável, que
deve fazer uso de seus próprios poderes como “mestre e senhor da natureza”, que deve legislar
sobre ela e sobre a sua própria conduta, porque encontra em si mesmo os meios e as
condições para estabelecer o critério de valor das coisas. A ciência e a moral modernas têm a
medida do homem. Contudo, como aponta Heidegger, a ideia de “salvação”, que norteava o
mundo medieval, não foi inteiramente abandonada. Assume, antes, uma outra configuração,
compatível com o universo da ciência.
Apesar de a ciência moderna, como expressão da decadência da tradição da metafísica
ocidental, desde Aristóteles até Nietzsche, ocupar na obra de Heidegger um lugar muito
diferente do que ocupa na psicanálise com Freud e Lacan, a análise heideggeriana sobre a
“salvação” (Das Heil), que encontramos no capítulo sobre “O Niilismo Europeu”, em N
ietzsche
II, oferece uma indicação bastante interessante para pensarmos o que está em jogo para Lacan
na conferência de 1 de junho de 1971 (2012). Vale destacar que a essa conferência, de uma
série cuja reunião foi intitulada como “O Saber do Psicanalista”, foi proferida no Hospital de
Sainte Anne, para uma audiência que deveria ser prioritariamente de médicos. Nesse mesmo
hospital, oito anos antes, Lacan anunciava a sua ‘excomunhão’ - termo que designa a exclusão
de um membro de uma comunidade religiosa - referindo-se à sua exclusão da Sociedade
Francesa de Psicanálise e da I nternational Psychoanalytical Association. O que estava em jogo
era, também aí, o ensino e a formação em psicanálise.
De fato, o texto de Heidegger nos interessa para pensar as relações entre a psicanálise,
a terapêutica e a ciência. Em particular, é a noção de “salvação”, como descrita acima, e a sua
transfiguração no mundo da ciência o que visamos. Para Heidegger,
... a ‘salvação’ [das Heil] não é mais [no mundo da ciência] a bem-aventurança eterna no além;
o caminho até lá não é mais a perda de si próprio [Entselbstung = abnegação]. O são
[Heile, adjetivo ligado ao verbo heilen] e o saudável [Gesund] é
buscado
exclusivamente no autodesdobramento [Selbstentfaltung = autodesenvolvimento, auto
expansão]1 livre de todas as faculdades criadoras do homem. (HEIDEGGER, 2007,
p.98).
A escolha de traduzir être pétris por "estar petrificado" foi equivocada. O sentido de
pétrir, que evidentemente visa Lacan aí é o de “moldar, modelar”. Trata-se de o sujeito,
enquanto corpo, ser amassado de modo a ganhar certa forma, moldado ou modelado3. O
discurso do mestre, portanto, sova, amassa, modela corpos, preenchendo-os de uma forma
excessiva. É assim, portanto, que ele captura - não aprisiona - corpos. Trata-se aqui, portanto,
desse ato de moldagem de um corpo a partir do conhecimento de si produzido pelos
médicos-santos - corpo este que estará doravante submetido a todo tipo de operação de
preenchimento possível, para estar dentro dos limites do higiênico, do “são (Heile, salvo,
bem-aventurado) e saudável (Gesunde)”.
De fato, a alternativa que Freud encontrou para se distanciar da filosofia e da religião
foi recorrer ao campo da ciência (biologia), uma vez que a medicina se encontrava estabelecida
a partir de um discurso ainda ligado ao sagrado (méde-saints), sustentado na mestria (maître),
indissociável de uma terapêutica tornada possível por um corpo “entificado”, como diz Lacan.
Depois de Freud não ceder ao imperativo da substancialidade da corporeidade, sustentado por
esse discurso medi-santo, como vertente do discurso do mestre, Lacan pôde apontar o lugar
discursivo a ser ocupado pelo analista. Com isso, abandona-se qualquer pretensão de se
estabelecer um dualismo entre discurso e corpo. A articulação que propõe Lacan “do Um ao
Ser”, no seminário XIX (2012), nos revela o corpo como um efeito de discurso, mais
propriamente do discurso do mestre. Ou seja, não há como pensar um corpo, em psicanálise,
senão como fato [fait] ou feito de um dizer.
Falar de um corpo, portanto, é fazê-lo consistir enquanto fato discursivo - note-se que,
se há um registro o qual Lacan relaciona à corporeidade, é o imaginário -, ou seja, em oposição
à filosofia, ao conhecimento que dela advém e à medicina:
Quando alguém me procura no meu consultório pela primeira vez e eu escando nossa entrada
na história com algumas entrevistas preliminares, o importante é a confrontação de
corpos. É justamente por isso partir desse encontro de corpos que este não entra mais
em questão, a partir do momento em que entramos no discurso analítico. (LACAN,
2012, p.220)
Esta clínica, que rejeita a predominância do corpo produzido pelo discurso médico
(méde-saints), se viabiliza pelo modo como Lacan concebeu o significante, intimamente ligado a
esta nova concepção de existência, submetida ao Um matemático. Daí a exigência de se
orientar pelo significante, uma vez que “...a ordem simbólica só é abordável por seu próprio
aparelho” (LACAN, 1956/1998, p.472). Foi com essa orientação que Freud, ao escutar as
histéricas em sua clínica, não se manteve preso a uma sintomatologia médica, a qual se
reportavam os doctores médicos. À medida que as queixas concernentes ao corpo foram
tomadas em sua dimensão discursiva, o tratamento analítico entrou em cena, ou seja: uma vez
que o corpo do qual as pacientes de Freud se queixavam foi esvaziado de substância, a torção
operada entre os discursos foi possível: do discurso do mestre, que garantiria uma terapêutica,
uma higienização, uma normatização, para o discurso do analista, que propõe a passagem
desta impotência, sempre cada vez mais superável, marca do discurso científico, para o que
Lacan viria a apontar como Real, o impossível. Neste sentido, constata-se que foi necessário
que Freud ouvisse Outra coisa e abandonasse sua posição de médico no discurso do mestre.
Pode-se dizer, então, que Lacan reatualiza o debate com a ciência, reformulando a
possibilidade de se propor uma clínica não mais orientada pelo ideal do “salvo,
bem-aventurado, e do saudável” - D
as Heile und Gesunde, i nsistindo assim no caráter leigo da
psicanálise. De novo, as questões relativas à laicidade da psicanálise e à sua legislação se nos
apresentam remetendo-se à constituição da ciência moderna5.
Situar a psicanálise no campo da ciência implica, como vimos acima, colocar em cena
uma operação que só encontra fundamento no discurso. Abandonar a pregnância imaginária da
substância e se fiar na materialidade do significante (moterialisme4) são as condições para a
emergência do discurso analítico.
Há pequenas emergências históricas disso. Um dia, um tal de Newton achou um pedaço de
real. Isso provocou frio na espinha de todos aqueles que pensavam, nomeadamente
um certo Kant, a respeito de quem se pode dizer que fez de Newton uma doença. (...)
Mas isso é justamente sinal de que chegamos num caroço. É daí que é preciso partir.
(LACAN, 2005, p. 119)
- FREUD, S. (1926). A questão da análise leiga. Conversas com uma pessoa imparcial. In:
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