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Terapia e psicanálise: Da herança do sagrado à pesquisa científica

Therapy and psychoanalysis: From the sacred heritage to scientific research

Thérapie et psychanalyse : de l’ héritage sacré à la recherche scientifique

Amandio de Jesus Gomes


Professor do Programa de Pós-Graduação em Teoria Psicanalítica
Instituto de Psicologia - UFRJ
Psicanalista, Membro da Escola Letra Freudiana
amandio.ag@gmail.com
(21) 2529 2117

Augusto Corrêa Vaz de Melo, Psicanalista


Mestrando em Teoria Psicanalítica
Instituto de Psicologia - UFRJ
Psicanalista
augustoa@mls.com.b​r
(21)25389426
RESUMO:
Em “A Questão da Análise Leiga”, ao discutir o problema das credenciais necessárias para o exercício
profissional da psicanálise, Freud assume uma posição firme em favor da psicanálise como uma disciplina
científica. Que a psicanálise seja tomada como uma terapia, no campo da medicina ou da psicologia, é
aceitável, diz Freud. Mas é preciso que a “terapia não venha a matar (​erschlagen​) a ciência”. Lacan
propõe o discurso do mestre como condição do estatuto do corpo sobre o qual incide a higiene
médico-terapêutica, como herdeira da “salvação” do cristianismo medieval no mundo da ciência. Torna-se
mais evidente porque a psicanálise só pode operar na dimensão discursiva.
Palavras-chave: psicanálise; ciência; terapia

ABSTRACT:
In "The Question of Lay Analysis", while discussing the problem of the necessary credentials for the
professional practice of psychoanalysis, Freud takes a firm stand for psychoanalysis as a scientific
discipline. It's acceptable, according to Freud, that psychoanalysis be taken as a therapy in the fields of
medicine or psychology. However, it is necessary that therapy doesn't come to a point of “killing
(​erschlagen​) science”. Lacan proposes the discourse of the master as a condition of the statute of the
body concerned in the medical-therapeutical hygiene, as heir of medieval christianity's "salvation" within
the world of science. The discursive dimension is thus more evidently the sole dimension upon which
psychoanalysis must operate.
Keywords: psychoanalysis; science; therapy

RÉSUMÉ:
Dans «La question de l’analyse profane», à propos du problème des qualifications professionnelles
requises pour l’exercice du métier de psychanalyste, Freud prend une position ferme en faveur de la
psychanalyse en tant que discipline scientifique. Que la psychanalyse soit considérée une thérapie, dans le
champ de la médecine ou de la psychologie, c’est acceptable, dit Freud. Mais on ne peut pas permettre
que la «thérapie tue (​erschlägt​) la science». Lacan avance que le discours du maître est la condition du
statut du corps sur lequel porte l’hygiène médico-thérapeutique, en tant qu’héritière du «salut» chrétien
du moyen âge au sein du monde de la science. Avec Lacan il devient plus évident que la psychanalyse ne
peut opérer que sur la dimension discursive.
Mots clefs: psychanalyse; science; thérapie
Terapia e psicanálise: Da herança do sagrado à pesquisa científica

“Depois de 41 anos de atividade médica,


meu autoconhecimento me diz que nunca fui
realmente um médico no sentido próprio. (...)
Não tenho conhecimento de ter tido em meus
primeiros anos qualquer anseio de ajudar a
humanidade sofredora.”
S. Freud

A recusa da exigência de uma formação médica como condição para a prática da


psicanálise não resultava apenas da compreensão, por Freud, do que era realmente necessário
à formação do psicanalista: a sua própria análise. Tratava-se também de recusar a filiação da
psicanálise à tradição médica, enquanto prática eminentemente terapêutica. O texto de Freud
“A Questão da Análise Leiga” (1926), publicado em forma de diálogo com um interlocutor
imparcial, e mais ainda o seu Pós-Escrito, é sobre isso bastante incisivo. Ao insistir no caráter
leigo da psicanálise, Freud espera esclarecer de uma vez por todas que ela não somente não se
sustenta nem se autoriza por um ​corpus de saber consolidado que se adquire num curso
superior nem tampouco se a poderia definir exatamente como uma terapia. Desde seu Esboço
de uma Psicologia Científica, de 1895, o que sobretudo interessava a Freud era o
estabelecimento da psicanálise como uma ciência. O fato da clínica psicanalítica produzir efeitos
terapêuticos não poderia obrigá-la ao vínculo com a medicina nem poderia obscurecer a sua
vocação primeira, que era a da pesquisa científica. E era p
​ orque s​ e tratava de uma pesquisa
científica que a psicanálise deveria estar comprometida com a laicidade. ​Porque ​radicada no
universo da ciência, a psicanálise era uma prática que não poderia mais sustentar-se no saber
médico, que, como logo veremos, veio a substituir aquele dos doutores da igreja. Vale lembrar
que “leigo” não designa apenas o não especialista, o ignorante, o que não tem o saber. “Leigo”
(ou “laico”, “​laikos​”, em grego, de “​laicus​”, em latim) inicialmente era todo o homem que não
era membro do clero, iniciado nas verdades sagradas, mas também e por extensão, o iletrado,
membro da plebe, ou, como na França do século XVII, o indivíduo que não fazia parte da
Universidade. Até religiosos de ordens menores como os franciscanos podiam, para a Igreja, ser
considerados leigos. O leigo (​laie em alemão, ​lai em francês, ou ​lay em inglês) era, de um
modo geral, tomado como sinônimo de “tolo”. Mas esse “tolo”, ou o leigo, não obrigatoriamente
era desprovido de um saber ou incapaz de obtê-lo. Para Freud, manter que a análise é leiga,
laica ou ‘profana’ - como foi traduzido em espanhol e em francês o “​laien​” d
​ o título da
respectiva obra de Freud - é insistir no seu compromisso com a laicidade consequente com a
revolução do mundo moderno, com o mundo da ciência, caracterizada como um saber parcial,
precário, que leva em conta um real sempre problemático, no lugar de uma verdade definitiva e
redentora, revelada e transmitida pelos doutores da Igreja. A psicanálise é leiga não porque
dispense um fundamento no saber nem porque prescinda uma formação rigorosa que torna
possível a sua elaboração, mas na medida em que seu saber supõe o trabalho realizado como
pesquisa, tal como na ciência. Seu saber é outro, e a relação que se pode estabelecer com esse
saber também.
Do mesmo modo, na conferência sobre a Cosmovisão (​Weltanschaaung​) (1933[1932]),
Freud alinha a visão de mundo da psicanálise – se tivéssemos que lhe atribuir uma – àquela da
ciência. E também aí trata-se de situar a psicanálise em oposição às concepções de mundo que
garantem dar conta de tudo, de tudo explicar, de superar toda a parcialidade, de garantir enfim
a redenção de todo e qualquer mal. Era necessário para Freud, nesse momento, bem distinguir
a psicanálise da filosofia e de um certo ideal de revolução, mas principalmente da religião.
O mundo da ciência, portanto, no qual surge a psicanálise, tem por condição um
“corte” que abre um abismo entre o saber que ingenuamente se revelava da natureza e o que
se poderia conhecer através do rigor conceitual da matemática, tal como Descartes e Galileu
mostraram ser possível. No entanto, segundo Heidegger (2007), esta “revolução científica” só
pôde se dar com o colapso da instituição religiosa enquanto fiadora dos valores em jogo na
condição humana. Anteriormente, à ​doctrina christiana cabia assegurar as condições de
sustentação de uma moral hierárquica baseada no fim último da s​ alvação ​da alma imortal:
Todos os conhecimentos estão ligados à ordem da salvação e se acham a serviço do
asseguramento e do fomento da salvação. Toda a história transforma-se em história da
salvação: criação, pecado original, redenção, última ceia. (HEIDEGGER, 2007, p.98)

A ​doctrina​, legada aos “​doctores​”, era no mundo medieval a única forma adequada de
ordenação, na qual o conhecimento era perfeitamente enunciado e a “​summa​” correspondia à
reunião, à soma, dos escritos doutrinários que, por sua vez, eram legados pela tradição
escolástica. Com a ruptura introduzida pela ciência, entretanto, este regramento do
conhecimento a partir da incontestável preeminência das autoridades religiosas foi derrogado.
(HEIDEGGER, 2007). Perde-se então o referencial responsável pelo ordenamento não só da
moral, como também do conhecimento.
O que surge aí é a figura de um homem que deve se assumir como responsável, que
deve fazer uso de seus próprios poderes como “mestre e senhor da natureza”, que deve legislar
sobre ela e sobre a sua própria conduta, porque encontra em si mesmo os meios e as
condições para estabelecer o critério de valor das coisas. A ciência e a moral modernas têm a
medida do homem. Contudo, como aponta Heidegger, a ideia de “salvação”, que norteava o
mundo medieval, não foi inteiramente abandonada. Assume, antes, uma outra configuração,
compatível com o universo da ciência.
Apesar de a ciência moderna, como expressão da decadência da tradição da metafísica
ocidental, desde Aristóteles até Nietzsche, ocupar na obra de Heidegger um lugar muito
diferente do que ocupa na psicanálise com Freud e Lacan, a análise heideggeriana sobre a
“salvação” (​Das Heil​), que encontramos no capítulo sobre “O Niilismo Europeu”, em N
​ ietzsche
II​, oferece uma indicação bastante interessante para pensarmos o que está em jogo para Lacan
na conferência de 1 de junho de 1971 (2012). Vale destacar que a essa conferência, de uma
série cuja reunião foi intitulada como “O Saber do Psicanalista”, foi proferida no Hospital de
Sainte Anne, para uma audiência que deveria ser prioritariamente de médicos. Nesse mesmo
hospital, oito anos antes, Lacan anunciava a sua ‘excomunhão’ - termo que designa a exclusão
de um membro de uma comunidade religiosa - referindo-se à sua exclusão da Sociedade
Francesa de Psicanálise e da I​ nternational Psychoanalytical Association​. O que estava em jogo
era, também aí, o ensino e a formação em psicanálise.
De fato, o texto de Heidegger nos interessa para pensar as relações entre a psicanálise,
a terapêutica e a ciência. Em particular, é a noção de “salvação”, como descrita acima, e a sua
transfiguração no mundo da ciência o que visamos. Para Heidegger,
... a ‘salvação’ [​das Heil​] não é mais [no mundo da ciência] a bem-aventurança eterna no além;
o caminho até lá não é mais a ​perda de si próprio [​Entselbstung = abnegação]. O ​são
[​Heile​, adjetivo ligado ao verbo ​heilen​] e o saudável [​Gesund​]​ é
​ buscado
exclusivamente no ​autodesdobramento [​Selbstentfaltung = autodesenvolvimento, auto
expansão]​1 livre de todas as faculdades criadoras do homem. (HEIDEGGER, 2007,
p.98).

Mas a tradução desta passagem de Nietzsche II, na edição brasileira, é bastante


precária. Para o nosso propósito, o essencial do texto de Heidegger fica comprometido. O termo
‘salvação’, d
​ as Heil​, n
​ o original em alemão, é usado por Heidegger para tratar da ‘salvação da
alma’, para a sua ‘bem-aventurança’, sua ‘felicidade ou bem-estar’ - como também se poderia
traduzir ​Heil em português. Acontece que esse mesmo termo ganha um significado novo no
mundo da ciência: curado (​geheilt​), d
​ e uma doença provém do verbo ​heilen e
​ H
​ eile ​pode
também ser traduzido como ‘são’, como na escolha do tradutor. Nessa passagem, porém, ele
está relacionado à “salvação” (da alma) e por isso etimologicamente distante e distinto de
Gesunde​, “saudável”. Na língua inglesa o verbo h
​ eal (curar) tem a mesma etimologia de h
​ eilen
(salvar ou curar, conforme o uso, moderno ou medieval), H
​ eil (​ salvação ou cura) e também
heilig ​(apenas sagrado ou santo). ​Entre o sagrado, o santo, a salvação (da alma) de um lado,
no mundo pré-moderno, e o saudável, a cura (da enfermidade), o são, no mundo da ciência, há
uma passagem e uma continuidade que está preservada na língua alemã, nos mesmos termos,
ainda hoje. Ela, no entanto, parece ter se perdido na língua inglesa e no português. Mas
justamente o que nos interessa é a transformação e a continuidade da “salvação”, do sagrado e
do santo, na língua de Heidegger e no discurso que sustenta a terapêutica, médica ou outra.
Em decorrência do “corte” da ciência moderna, o homem viu os alicerces da doutrina
religiosa ruírem. Mas, o que outrora sustentava e regulava os mandamentos do conhecimento e
da “bem-aventurança” tenderia a retornar no seio do desenvolvimento da ciência. Em outras
palavras, pode-se, com Heidegger, bem localizar o germe da idéia de “salvação” nos ideais “são
(​Heile​, salvo, bem-aventurado) e saudável (​Gesunde​)”. Se ao homem cabe, então, levar adiante
o desenvolvimento de seus poderes, esta tarefa não pode ser conquistada e fundamentada sem
buscar a mediação das verdades em outro caminho que não o da ​doctrina​.
Neste ponto é importante ressaltar que ambos os discursos - religioso e médico -
incidem sobre um mesmo objeto: o corpo. A partir da revolução científica, deve-se levar em
conta uma transposição dos valores na compreensão do estatuto da corporeidade. Não mais se
o apreende como sede dos pecados, como marca da corrupção causada desde a queda, mas
como um ente em que se administra um equilíbrio entre o normal e o patológico, entre o
saudável e o insalubre. Haveria expressão mais pertinente desta transposição do que a prática
médica no mundo contemporâneo? É aos novos ​doctores - os médicos - que ficaria legada a
incumbência de legislar sobre essa nova espécie de conhecimento que não se mede mais em
relação a um ideal fixo, imóvel, totalizante, mas a uma construção sempre parcial regida pelo
ideal do progresso científico. Segundo Heidegger (2007), é pela transformação da essência da
verdade em uma “certeza” objetiva a ser sempre ultrapassada, sob as diretrizes cartesianas,
que se estabelece a parcialidade própria ao mundo moderno. É somente nesta direção que
surge a possibilidade de organizar a tarefa própria a qualquer proposta terapêutica. O ideal que
vige aí determina as condições de um fazer que haveria de se pautar por uma eterna superação
das limitações impostas pelas faculdades ou poderes do homem e por seu próprio corpo.
Portanto, o equilíbrio entre o normal e o patológico suporia apenas uma promessa de melhor se
haver com a finitude humana, tornando o homem cada vez mais “são” (​heil​, salvo,
bem-aventurado) e “saudável” (​gesund​).
Como vimos em “A Questão da Análise Leiga” (1926), Freud foi convocado a responder
aos ​doctores quando estes lhe impuseram que a psicanálise deveria ser transmitida aos que
contavam com a legitimidade e o prestígio da formação médica. Em seu tempo, não houve
outra opção senão reafirmar que a sua disciplina haveria de se estabelecer como ciência
natural. Diante do risco de a psicanálise ser reconduzida do laico ao sagrado, Freud recorreu à
aposta numa confirmação futura pela biologia como a disciplina que situaria a psicanálise no
solo da ciência. Ou seja, o recurso à biologia e às ciências naturais foi o modo pelo qual Freud
pode fazer frente à herança do sagrado, no seu viés propriamente religioso, mas também à
filosofia e aos ideais redentores da revolução, como já dissemos acima.
A insistência de Freud em situar a psicanálise no âmbito do profano se evidencia na sua
recusa da religião e da filosofia, tal como encontramos em: ​O Mal-Estar na Civilização, O Futuro
de uma Ilusão, Conferência XXXV - A Questão de uma Weltanschauung. Ao recusar a estatuto
de verdade que o campo religioso poderia oferecer à psicanálise, Freud, de um só golpe, rejeita
também a imputação moral que os médicos haveriam de herdar historicamente. Assim, ele
recusa o estabelecimento de um saber que pudesse se totalizar e garantir uma prática, seja
através de um ordenamento divino ou de uma filosofia idealista. Rejeita, desta maneira, a
especulação e a teologia para colocar em primeiro lugar, sob a promessa de uma biologia cada
vez mais apurada, a pesquisa científica.
Como pensar a clínica preconizada por Freud e Lacan em oposição ao que vigorava e
vigora ainda sob o ideal terapêutico dos médicos, dos d
​ octores​? Lacan nos dá o caminho a
seguir ao destacar a palavra ‘​médecin’, em português ‘médico’, que é homófona com o
neologismo que ele cunha: ‘​méde-saint’ (​ medi-santo). Ele assim faz ressoar na prática médica a
santidade, conforme à advertência heideggeriana, da emergência de novos valores anexados às
ideias de “são (​Heile​, salvo, bem-aventurado) e saudável (​Gesunde​)”. Aos novos ​doctores​, a
esses ​méde-saints​, fica atribuída, no mundo moderno, a tarefa de encarnar o efeito propagado
pelo “corte” da ciência, mas também de prolongar a herança do sagrado que esse mundo teria
recalcado. Uma prática que, como vimos acima, se organiza em torno de um ideal de progresso
infinito.
É para situar a clínica como refratária aos esforços corretivos submetidos à herança
moral religiosa que Lacan resgata a noção do Um, desde a filosofia de Platão até a matemática,
mais propriamente a teoria dos conjuntos. Assim, ao reafirmar o caráter leigo da psicanálise,
ele nos dá uma baliza importante para tratar do fundamento da prática psicanalítica. Este Um é
o resultado de uma articulação conceitual da qual deriva toda dimensão discursiva e só pode ter
consistência matemática. Neste percurso que leva Lacan a pensar a criação a partir do Um da
matemática, no lugar da criação “​ex-deo​”, o Ser advém do Um: “o que comanda é o Um. O Um
cria o Ser (...) Evidentemente, o Um não é o Ser, ele constitui [​fait​] o Ser.” (LACAN, 2012,
p.214).
Isto já deve ser sabido por muitos: Há-um não quer dizer que existe o indivíduo. É por
isso mesmo que lhes peço para enraizarem esse Há-um no lugar de onde ele vem. Ou
seja, não há outra existência do Um a não ser a existência matemática. Há um
argumento que satisfaz uma fórmula, e um argumento completamente esvaziado de
sentido: é simplesmente o Um como Um. (LACAN, 2012, p.180)

Entretanto, dada a fundamentação de toda dimensão discursiva, assentada no Há-Um,


é sob a égide do discurso do mestre (​maître​) que o Ser ganha estofo (‘​étoffe’​). Segundo Lacan,
este é o discurso responsável por garantir alguma coisa que preencha o vazio que o Um faz
ex-sistir: "Faz-se filosofia a partir do momento em que há alguma coisa que enche [​bourre​]
esse suporte, que só é articulável a partir do discurso. Enche-o de quê?" (LACAN, 2012, p.219).
Vale ressaltar que o termo usado por Lacan se remete a um preenchimento ou enchimento
excessivo​2​. O que está em questão, portanto, é o preenchimento, pelo discurso do mestre, de
um suporte que só pode ser discursivo. É através dele, portanto, que se dá consistência ao Ser,
que se lhe “entifica”, diz Lacan. Este preenchimento é a operação de colocar no lugar do
semblante do discurso - andar superior à esquerda - o significante-mestre (S1 - m
​ aître​/​m’être​).

Neste sentido, o semblante no discurso do mestre é semblante do próprio Ser. É na


junção do discurso do mestre com a medicina que o corpo “ganha ser”. A partir desta junção,
Lacan ainda aborda a questão do conhecimento de si mesmo, na máxima socrática g
​ nôthi
séauton​, conhece-te a ti mesmo, radicado no próprio corpo enquanto higiene e sustentado pelo
médico-santo (LACAN, 2012). Neste sentido, é ele que, ocupando o lugar do mestre (​maître​),
possui o conhecimento do corpo de cada um enquanto “meu ser” (​m'être​), enquanto semblante
do Ser. É por essa operação que o sujeito, enquanto corpo, é submetido aos imperativos da
higiene e de saúde:
persiste o fato de que, no nível em que funciona o discurso que não é o discurso analítico,
coloca-se a questão de como esse discurso conseguiu aprisionar [​attraper​] corpos. No
nível do discurso do mestre/senhor, isso fica claro. No discurso do mestre/senhor,
vocês, como corpos, estão petrificados [​êtes pétris​] (LACAN, 2012, p.220)

A escolha de traduzir ê​tre pétris por "estar petrificado" foi equivocada. O sentido de
pétrir​, que evidentemente visa Lacan aí é o de “moldar, modelar”. Trata-se de o sujeito,
enquanto corpo, ser amassado de modo a ganhar certa forma, moldado ou modelado​3​. O
discurso do mestre, portanto, sova, amassa, modela corpos, preenchendo-os de uma forma
excessiva. É assim, portanto, que ele captura - não aprisiona - corpos. Trata-se aqui, portanto,
desse ato de moldagem de um corpo a partir do conhecimento de si produzido pelos
médicos-santos - corpo este que estará doravante submetido a todo tipo de operação de
preenchimento possível, para estar dentro dos limites do higiênico, do “são (​Heile​, salvo,
bem-aventurado) e saudável (​Gesunde​)”.
De fato, a alternativa que Freud encontrou para se distanciar da filosofia e da religião
foi recorrer ao campo da ciência (biologia), uma vez que a medicina se encontrava estabelecida
a partir de um discurso ainda ligado ao sagrado (​méde-saints​), sustentado na mestria (​maître​),
indissociável de uma terapêutica tornada possível por um corpo “entificado”, como diz Lacan.
Depois de Freud não ceder ao imperativo da substancialidade da corporeidade, sustentado por
esse discurso medi-santo, como vertente do discurso do mestre, Lacan pôde apontar o lugar
discursivo a ser ocupado pelo analista. Com isso, abandona-se qualquer pretensão de se
estabelecer um dualismo entre discurso e corpo. A articulação que propõe Lacan “do Um ao
Ser”, no seminário XIX (2012), nos revela o corpo como um efeito de discurso, mais
propriamente do discurso do mestre. Ou seja, não há como pensar um corpo, em psicanálise,
senão como fato [​fait​] ou feito de um dizer.
Falar de ​um corpo, portanto, é fazê-lo ​consistir enquanto fato discursivo - note-se que,
se há um registro o qual Lacan relaciona à corporeidade, é o imaginário -, ou seja, em oposição
à filosofia, ao conhecimento que dela advém e à medicina:
Quando alguém me procura no meu consultório pela primeira vez e eu escando nossa entrada
na história com algumas entrevistas preliminares, o importante é a confrontação de
corpos. É justamente por isso partir desse encontro de corpos que este não entra mais
em questão, a partir do momento em que entramos no discurso analítico. (LACAN,
2012, p.220)

A psicanálise não só não dá qualquer estofo (​bourre​) a um pretenso suporte corporal


como, a partir dela, se pode colocar em xeque a pregnância da substância, tal como entendida
desde a metafísica aristotélica. Cabe lembrar, também, que essa é a subversão própria ao
surgimento do discurso analítico em relação ao discurso do mestre e que nele, no discurso
analítico, faz-se operar, portanto, um Outro que atesta a total disjunção entre um dito e um
dizer:
o que há no discurso analítico, entre as funções de discurso e o suporte corporal, que
não é a significação do discurso, que não se prende a nada do que é dito? Tudo que é
dito é semblante. Tudo que é dito é verdade. Ainda por cima, tudo que se diz faz
gozar. E, como reescrevi hoje no quadro, ​que se diga, como fato, fica esquecido por
trás do que é dito​. O que é dito não está noutro lugar senão no que se ouve. É isso a
fala. O dizer é outra coisa, é noutro plano, é o discurso. (LACAN, 2012, p.221)

Esta clínica, que rejeita a predominância do corpo produzido pelo discurso médico
(​méde-saints​), se viabiliza pelo modo como Lacan concebeu o significante, intimamente ligado a
esta nova concepção de existência, submetida ao Um matemático. Daí a exigência de se
orientar pelo significante, uma vez que “...a ordem simbólica só é abordável por seu próprio
aparelho” (LACAN, 1956/1998, p.472). Foi com essa orientação que Freud, ao escutar as
histéricas em sua clínica, não se manteve preso a uma sintomatologia médica, a qual se
reportavam os ​doctores médicos. À medida que as queixas concernentes ao corpo foram
tomadas em sua dimensão discursiva, o tratamento analítico entrou em cena, ou seja: uma vez
que o corpo do qual as pacientes de Freud se queixavam foi esvaziado de substância, a torção
operada entre os discursos foi possível: do discurso do mestre, que garantiria uma terapêutica,
uma higienização, uma normatização, para o discurso do analista, que propõe a passagem
desta impotência, sempre cada vez mais superável, marca do discurso científico, para o que
Lacan viria a apontar como Real, o impossível. Neste sentido, constata-se que foi necessário
que Freud ouvisse Outra coisa e abandonasse sua posição de médico no discurso do mestre.
Pode-se dizer, então, que Lacan reatualiza o debate com a ciência, reformulando a
possibilidade de se propor uma clínica não mais orientada pelo ideal do “salvo,
bem-aventurado, e do saudável” - D
​ as ​Heil​e und Gesunde, i​ nsistindo assim no caráter leigo da
psicanálise. De novo, as questões relativas à laicidade da psicanálise e à sua legislação se nos
apresentam remetendo-se à constituição da ciência moderna​5​.
Situar a psicanálise no campo da ciência implica, como vimos acima, colocar em cena
uma operação que só encontra fundamento no discurso. Abandonar a pregnância imaginária da
substância e se fiar na materialidade do significante (​moterialisme​4​) são as condições para a
emergência do discurso analítico.
Há pequenas emergências históricas disso. Um dia, um tal de Newton achou um pedaço de
real. Isso provocou frio na espinha de todos aqueles que pensavam, nomeadamente
um certo Kant, a respeito de quem se pode dizer que fez de Newton uma doença. (...)
Mas isso é justamente sinal de que chegamos num caroço. É daí que é preciso partir.
(LACAN, 2005, p. 119)

E esse “pedaço de real” - esse “caroço” - é também a evidência de que a


operacionalidade discursiva porta um limite e é a esse limite constitutivo de todo discurso que
se reporta uma análise. O discurso da psicanálise, inaugurado por Freud, suspende a promessa
de ultrapassamento pelo progresso científico, na persecução do ideal que justificaria o lugar da
mestria. Quando, diante da histérica, ele recusa o lugar do mestre, é todo o discurso médico
vigente e seu compromisso com a terapia que ele recusa, em nome de uma pesquisa que irá
tornar possível o encontro com um outro saber e com o ponto em que esse saber encontra seu
limite. Da ciência, Lacan irá finalmente recolher a escrita que a sustenta, como aquilo que o
simbólico pôde agarrar do real, e que é ao mesmo tempo perturbador e que exige trabalho. Na
decantação que propõe do sintoma psicanalítico como ‘​sinthoma​’, Lacan nos aponta igualmente
o impossível, impossível de se superar, de se curar: “um caroço”, que, enfim, cabe à clínica
psicanalítica acolher, como o resto de mal-estar que não cede diante da sempre renovada
promessa de bem-aventurança.
Notas
1. Indicamos entre colchetes o termo original de Heidegger referido ao termo sublinhado
e a tradução que propomos.
2. O verbo ​bourrer em francês não se esgota no sentido escolhido pela tradução brasileira
[encher], podendo se referir a um preenchimento excessivo seja através do álcool (​se
bourrer pode significar "encher a cara"), de um conteúdo (​bourrer un élève de
mathématiques significa encher, até à saturação, a cabeça de um aluno de lições
referentes à matemática) ou de um alimento (​bourrer pode se referir, também, ao ato
de forçar a alimentação de alguns animais a fim de que eles engordem). Em todos os
casos, portanto, o verbo ​bourrer não se refere apenas ao ato de encher alguma coisa,
mas de um preenchimento excessivo, com certa violência - sentido a ser privilegiado
em nossa leitura.
3. O termo para Lacan parece complementar o sentido de b
​ ourrer​, como assinalado
acima, que significa estar preenchido por algo. O verbo p
​ étrir joga também com esse
sentido: significa amassar, modelar e moldar, tal como fazemos com uma massa
qualquer. Pode-se traduzi-lo também como ‘sovar’, com as mãos, para que uma massa
se torne homogênea e lisa. Deste modo, “​être pétris​" se distancia de "estar petrificado",
como foi traduzido: o que está em questão aqui é o ato de preenchimento que
sublinhamos no verbo b
​ ourrer​.
4. Neologismo entre palavra (​mot​) e materialismo (​materialisme​). Cf. “Conferência em
Genebra sobre o sintoma”, Lacan.
5. No ano de 2000, o pastor e psicanalista Heitor Silva redigiu um projeto de lei para
regulamentar a psicanálise no Brasil, que foi apresentado ao congresso nacional pelo
então deputado federal Eber Silva, também pastor da Igreja Batista. Estavam aí
estabelecidas regras para a formação de psicanalistas profissionais através de um curso
universitário a ser regulado pelo Ministério da Educação. Graças a uma notável
articulação entre as mais diversas escolas de psicanálise, esse projeto de lei não
chegou a ser votado no plenário. Heitor Silva, três anos depois, tenta reapresentar seu
projeto de lei, através de outro deputado, mas novamente fracassou.
Referências Bibliográficas

- FREUD, S. (1926). A questão da análise leiga. Conversas com uma pessoa imparcial. In:
Fundamentos da clínica psicanalítica​. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2017 (Obras
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A questão de uma W
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Completas de Sigmund Freud​. Rio de Janeiro: Imago, 1996, Vol. XXII.

- HEIDEGGER, M. Nietzsche II. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2007

- LACAN, J. (1956). Situação da psicanálise e formação do psicanalista em 1956. In: E


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