Você está na página 1de 23

FILOSOFIA E PSICOLOGIA: AS DIFICULDADES DE UMA INTERFACE

João de Fernandes Teixeira


Departamento de Filosofia, Universidade Federal de São Carlos

Capítulo 3 do livro “Psicologia: Novas direções no Diálogo com outros campos do saber.
Antonio Virgílio Bittencourt Bastos
Nádia Maria Dourado Rocha
Editora Casa do Psicólogo, 2007

Também disponível na página www.filosofiadamente.org

“Na psicologia há métodos experimentais e confusão conceitual”


L. Wittgenstein

Falar das interfaces entre psicologia e filosofia não é tarefa fácil. Tanto uma como
outra mais se apresentam como agregados de saberes onde se mesclam modelos e
metáforas oriundos de outras ciências do que como disciplinas autônomas. Quando o saber
filosófico mais próximo da psicologia – a contemporânea filosofia da mente – aborda temas
psicológicos como a natureza da mente e da consciência a utilização destes modelos e
metáforas torna-se mais conspícua, e com ela, a aproximação entre psicologia, neurociência
e filosofia. Ciência e filosofia convergem na filosofia da mente que, ao contrário do saber
filosófico tradicional, mistura análise conceitual com resultados empíricos. Este
empréstimo inevitável força-nos uma indagação fundamental: teremos chegado, finalmente,
2

a uma situação de diálogo, com parceiros definidos ou estaremos ainda presenciando uma
mescla indistinguível de conhecimentos? Em outras palavras, terá a psicologia, afinal,
adquirido uma real cidadania científica, desvencilhando-se da “enciclopédia filosófica” –
que conglomerava ou subordinava todo o conhecimento sob a filosofia, chamando, por
exemplo, a física de “filosofia natural”. Poderá a psicologia sair da enciclopédia filosófica
da mesma maneira que o fizeram a física, a química e a biologia ao se tornarem disciplinas
autônomas?
Não se trata, aqui, ao modo positivista, de supor a possibilidade de uma ciência sem
pressupostos filosóficos, mas de perguntar pela possibilidade da psicologia se desenvolver,
como diria Heidegger1, “contornando o incontornável”, para se tornar uma ciência, da
mesma maneira que hoje podemos fazer biologia sem perguntarmo-nos o que é a vida ou
fazer física sem nos questionarmos acerca da essência última da matéria. É isto que nos
permite hoje, falar de uma filosofia da física ou uma filosofia da biologia onde nos
indagamos pelos fundamentos e pressupostos destas disciplinas sem, entretanto, que estes
se confundam com as próprias disciplinas das quais o filósofo fala.
Esta é, sem dúvida, uma pergunta ampla e fundamental; uma pergunta pela natureza
do objeto da psicologia que teria, historicamente, oscilado entre as idéias de mente, de
cérebro e de comportamento. Uma pergunta cuja resposta definitiva ultrapassa o escopo
deste trabalho, mas para a qual podemos contribuir com uma primeira aproximação: por
não definir seu objeto, defenderemos que a psicologia ainda é dependente da “enciclopédia
filosófica” e, mais precisamente, da herança cartesiana ou cripto-cartesiana2 – o
cartesianismo dissimulado. É este que constitui a história secreta dos pressupostos da
psicologia; uma longa história da qual podemos aqui focalizar brevemente apenas alguns
momentos fundamentais: as terapias (a psicanálise, a terapia cognitivo-comportamental e a
psicossomática) a psicologia (e a ciência) cognitiva e, finalmente, a neurociência cognitiva.

1
Esta não é, na verdade, a expressão autêntica do pensamento heideggeriano. Adaptei-a para os propósitos
específicos deste ensaio.
2
O cripto-cartesianismo é uma expressão cunhada por Bennett & Hacker (2003) para designar o modo
específico da herança cartesiana na neurociência cognitiva contemporânea. Falaremos dela na terceira parte
deste ensaio.
3

A psicologia nasce de um paradoxo: explicar cientificamente a natureza da


experiência subjetiva quando esta precisou ser desterrada do discurso do conhecimento para
que este se erguesse em ciência – o mundo da ciência moderna iniciado por Descartes. A
modernidade é o primeiro passo em direção a um mundo desencantado, onde se obliteram
as figuras míticas e os heróis, para dar lugar a uma concepção de universo apoiada na
metáfora do relógio à qual se seguiu a mecânica newtoniana e as explicações físicas
baseadas no conceito de força. O melhor representante desta metáfora é o relógio, pois ele
nos remete às idéias de interação mecânica (causal) entre partes (peças) e de precisão na
contagem (e divisibilidade) do tempo. Mas nesta concepção de mundo não há lugar nem
para a vida nem para a mente.
A exclusão das causas psíquicas do domínio da ciência é herdeira da dicotomia
entre mente e corpo (que mais tarde tornou-se dicotomia entre mente e cérebro) proposta
por Descartes no século XVII. Ele foi o pai da medicina moderna ao separar o físico do
mental. O físico é o mensurável e orgânico. O mental não tem dimensão, peso ou
espacialidade. Ao fundar a medicina, Descartes excluiu a possibilidade de uma psicologia
científica. Tratar da interação entre mente e corpo tornou-se impossível na medida em que
o psíquico não pode ser causa de nenhum fenômeno no mundo material. A passagem entre
o físico e o mental – a verdadeira dimensão do problema mente-corpo - não nos é
cognitivamente acessível no mundo cartesiano. A solução proposta por Descartes era
atribuir a um órgão, qual seja, a glândula pineal, a função de interface entre a mente e o
corpo, mas esta era uma solução inaceitável, pois não explicava ainda como e porque algo
físico poderia ter um duplo papel. Uma psicologia cartesiana torna-se, assim, uma
psicofísica, ou seja, o estabelecimento de uma correlação entre o físico e o mental – a
mesma correlação que encontraremos na psicossomática contemporânea entre grupos de
doenças orgânicas e perfis psicológicos.
Versões sofisticadas de uma psicofísica cartesiana podemos encontrar, ainda hoje,
na neurociência cognitiva. Basta ver os trabalhos de Libet (1985) que comparam o tempo
de disparo de uma reação eferente com o tempo de seu registro consciente. Em vez de
medir correlações entre sensações e estados mentais podemos agora, graças à sofisticação
de nossa instrumentação, medir o tempo de impulsos cerebrais. O paradoxo das conclusões
de Libet começam a surgir quando ele deriva deste resultado uma teoria determinista do
4

comportamento – ou seja, usando um arcabouço conceitual cartesiano deriva uma


conclusão francamente anti-cartesiana, qual seja, a de que somos controlados pelos nossos
cérebros.
A psicossomática também se deriva de uma visão cartesiana, como apontamos
acima. Mas antes de abordá-la precisamos falar de um outro filho pródigo do universo de
Descartes que a precedeu no tempo: a psiquiatria. A psiquiatria surge antes da psicologia
nas formas do chamado tratamento moral. Pinel e Tuke, os criadores desta nova disciplina
médica tentaram definir as primeiras nosologias e as primeiras técnicas para a cura dos
insanos. O tratamento moral era uma destas, senão a principal: tratava-se de trazer o doente
mental para um controle social e moral; a cura significava “reinculcar-lhe os sentimentos de
dependência, humildade, culpa, reconhecimento que são a armadura moral da vida
familiar” (Foucault, 1968). O tratamento moral não era nem mental nem físico, submetia-se
o doente a duchas ou banhos para refrescar seus espíritos ou ele era colocado numa
máquina rotatória que girava, para que o curso de seus espíritos demasiadamente fixos
numa idéia delirante fosse recolocado em movimento e re-encontrasse seus circuitos
naturais. A literalidade destas metáforas “refrescar a cabeça” ou “colocar as idéias no
lugar” reflete o pano de fundo sobre a qual a psiquiatria nascente surgia: a separação
cartesiana entre mente e corpo como um problema não resolvido.
Ora, terá este problema sido resolvido na psiquiatria contemporânea? Existe,
atualmente, uma tensão implícita entre as práticas da psiquiatria organicista e a utilização
de diferentes psicoterapias para o tratamento de distúrbios psíquicos. Esta tensão reflete,
sem dúvida alguma, a separação cartesiana. O fenômeno endêmico da depressão parece
acentuar ainda mais este tipo de conflito, que surge ora de forma aberta, ora de forma
camuflada. De um lado existem aqueles que defendem a utilização de fármacos como
instrumento para alívio do desconforto psíquico (que se tornaria evitável) e de outro,
aqueles que identificam esta prática com “a [substituição] da camisa-de-força e os
tratamentos de choque pela redoma medicamentosa”.3
Nos últimos anos há pesquisas sugerindo que o uso complementar destas duas
estratégias tem levado a resultados mais rápidos, mais eficientes e mais duradouros no
tratamento da depressão. Neste caso, o conflito estaria superado, não fosse a ausência de

3
Ver Roudinesco, 2000, p. 21.
5

uma justificação científica, para além de uma simples constatação estatística, do porque a
utilização conjunta destas duas estratégias leva a melhores resultados, evitando, inclusive, a
recidiva freqüente. Este tipo de discurso parece, entretanto, traduzir mais um mal-estar
entre, de um lado, os defensores da biopsiquiatria e de outro os defensores das talking
cures do que propriamente uma crença na possibilidade de uma conciliação de estratégias
de tratamento.
Ora, esta questão não se situa num patamar unicamente científico nem tampouco
pode ser decidida pela constatação estatística da superioridade de uma estratégia sobre a
outra. Sua formulação correta revela-nos um problema filosófico – a questão da natureza da
causação mental - e que é neste terreno que ela deve ser primordialmente discutida, ou seja,
como uma variante do problema mente-corpo ou do problema da passagem entre o físico e
o mental.
O problema das talking cures – sejam elas psicanalíticas ou cognitivo-
comportamentais - está na ausência de uma teoria da causação mental. Em outras palavras,
a desconfiança, e no limite até a rejeição das psicoterapias pela biopsiquiatria reside no fato
de não ter sido formulada, até o momento, uma hipótese consistente acerca de como estas
práticas podem afetar/modificar a atividade cerebral. Estranhamente, encontramos nos
trabalhos de neurobiólogos eminentes como Damásio (1996) o reconhecimento da
existência de uma causalidade psíquica, ou seja, de que estados mentais podem afetar o
funcionamento cerebral, mas nenhuma justificativa de como isto se daria4. Ou seja,
nenhuma explicação inteligível da passagem entre o físico e o mental, o que situaria esta
explicação num patamar além das correlações entre sessões psicoterápicas e modificações
cerebrais posteriores constatadas por tomografia ou fMRI (Ressonância Magnética
Funcional).
Nos últimos anos o problema da causação mental readquiriu grande espaço no
cenário da filosofia da mente (Kim, 1997, 1998, Velmans, 2002). Tratamentos como o
biofeedback, as terapias holísticas e outras formas de intervenção mental sobre pacientes
afetados por distúrbios psíquicos têm provado que a filosofia da mente enfrenta um
4
“A tristeza e a ansiedade podem alterar de forma notória a regulação dos hormônios sexuais, provocando
não só mudanças no impulso sexual, mas também variações no ciclo menstrual. A perda de alguém que se
ama profundamente, mais uma vez um estado de um processamento cerebral amplo, leva a uma depressão do
sistema imunológico a ponto de os indivíduos se tornarem mais propensos a infecções e, em conseqüência
direta ou indireta, mais suscetíveis a desenvolver determinados tipos de câncer. Pode-se morrer de desgosto,
tal qual na poesia” (Damásio, 1996).
6

problema de duas mãos: não se trata apenas de mostrar como o cérebro pode produzir a
mente, mas como esta pode, por sua vez, afetar o cérebro. O efeito placebo, por exemplo,
seria um exemplo típico desta forma de intervenção, embora alguns sustentem que a
administração do placebo diminui apenas a dor e não os distúrbios orgânicos que a
produzem.5
Não há dúvida que a medicação psiquiátrica amortece a angústia e que a intervenção
farmacológica encontra-se plenamente justificada quando há risco de suicídio ou iminência
de uma situação de violência. A questão que permanece, contudo, é a de porque esses
remédios mostram-se, com freqüência, insuficientes para conter uma recidiva ou até mesmo
insuficientes para conter crises agudas pelas quais o paciente pode passar – crises que só
são evitadas se a sua administração for conjugada com a psicoterapia. Neste caso, resta-nos
perguntar que tipo de coadjuvante torna-se a psicoterapia no tratamento psiquiátrico,
examinando brevemente como a psicanálise e as terapias comportamentais lidam com o
problema da causação mental, a principal herança cartesiana.
Psicanalistas tradicionais responderão que só a talking cure desloca os sintomas
para depois efetivamente suprimí-los e, assim fazendo, restaura ao paciente a dignidade de
sujeito, o retornar à primeira pessoa ou à descoberta do desejo antes ocultado pela
despersonalização. O mérito da psicanálise estaria precisamente em deixar de “tratar os
pacientes como organismos à deriva, ao sabor das leis naturais” (Schiller, 2003). Embora
reconhecendo um papel privilegiado para a causação mental como base das talking cures o
ataque de psicanalistas à utilização de recursos farmacológicos parece inconsistente com os
próprios escritos de maturidade de Freud, nos quais ele defendia abertamente o sonho de
tratar as angústias e outros distúrbios através de medicação, ao afirmar, no Esboço de
Psicanálise , que “o futuro talvez nos ensine a agir diretamente com a ajuda de algumas
substâncias químicas, sobre as quantidades de energia e sua distribuição no aparelho
psíquico [...] Por ora dispomos somente da técnica psicanalítica”.6
5
Velmans (2002), p. 5
6
Interessante notar, não apenas o compromisso materialista assumido nesta passagem como também um
compromisso com o materialismo eliminativo assumido em passagens de O inconsciente e em Para além do
princípio do prazer onde Freud afirma que “as deficiências de nossa descrição do psiquismo decerto
desapareceriam se já estivéssemos em condições de substituir os termos psicológicos por termos da fisiologia
ou da química”. O materialismo eliminativo é a doutrina que sustenta a provisoriedade da psicologia e a sua
progressiva substituição pela neurociência a medida em que os termos da chamada folk psychology forem
substituídos por termos neurocientificos. Esta passagem de Freud poderia com certeza ser atribuída ao casal
Churchland, os pioneiros do materialismo eliminativo na filosofia da mente contemporânea. Contudo, Freud
7

Poderíamos afirmar que a psicanálise ataca a tradição cartesiana ao tentar mostrar


que o mental não é co-extensivo com o consciente. Mas aqui estaríamos encontrando uma
(ou mais uma) ambigüidade na obra freudiana: a psicanálise enfrenta o problema da
interação mente-cérebro e da causação mental sem resolvê-lo ao sustentar que um sintoma
pode se modificar a partir de uma interpretação. O sujeito se definiria pela sua história
individual, seja ela consciente ou não. O vivido não teria representação neurológica ou,
mesmo que a tenha, ela pouca diferença faz para a remoção de um sintoma. Tudo se
passaria como no filme recente de Michel Gondry, Eternal Sunshine of the Spotless Mind
(Brilho Eterno de uma Mente sem Lembranças, EUA, 2004) onde se sugere a possibilidade
de apagar memórias traumáticas por uma intervenção neurológica. Como observa um
psicanalista brasileiro famoso7, se fizéssemos uma operação neurológica para nos livrar de
um trauma, continuaríamos nos lembrando de porque fizemos tal operação: no limite, não
poderíamos, por este método, livrar-nos do trauma. Ou seja, não é a representação
neurológica da memória traumática que importa para o psicanalista (e nem tampouco para o
paciente, neste caso) mas sua dimensão enquanto experiência vivida (o que é na verdade
sugerido por Gondry como conclusão de sua obra cinematográfica). Entre o vivido (a
experiência individual) e o neurológico haveria um abismo intransponível – uma versão do
abismo cripto-cartesiano.
Outra ambigüidade da obra freudiana é identificada por alguns de seus exegetas que
sustentam a existência de uma clivagem entre “antes” e “depois” de 1920. Haveria o Freud
médico e neurólogo (que hoje se procura recuperar através da neuropsicanálise de Solms,
que arrepia os lacanianos) e o Freud da tópica cerebral abstrata, mais adiante caminhando
para uma teoria da cultura, deixando para trás a neurociência como lócus privilegiado para
a explicação psicológica.
A crítica veemente à neuropsicanálise parece se voltar contra ela mesma: quanto
mais a psicanálise tenta garantir sua cidadania como disciplina autônoma, mais ela parece
perder lugar no cenário científico pós-moderno. A tentativa de garantir um espaço próprio
para o discurso psicanalítico fora das ciências duras se traduz, sutilmente, um sucedâneo da
distinção cartesiana entre mente e corpo na forma de uma diferença abissal entre natureza e
cultura. Na forma como ela é freqüentemente colocada ela acaba por nos remeter a uma

parece ter sempre evitado enfrentar abertamente o problema mente-cérebro ao longo de sua obra.
7
A referência é a Caligaris (2004)
8

distinção entre biológico e simbólico que se parece à intransponibilidade entre o físico e o


mental de que nos falava Descartes. Curiosamente, muitos antropólogos posteriores a Freud
tentaram buscar algo parecido com a “glândula pineal de Descartes”, ou seja, algum tipo de
ligação entre a natureza e a cultura que servisse de interface para superar essa
intransponibilidade: esse seria o papel da interdição do incesto em Levy-Strauss e do
aparecimento do cemitério humano em Vercors.8
Voltemo-nos agora, brevemente, para as psicoterapias cognitivo-comportamentais.
Estas, embora não excluindo totalmente a intervenção farmacológica, atribuem
implicitamente grande peso à palavra como instrumento para buscar a correção da
representação do ambiente por parte do sujeito. No caso da depressão, onde elas são mais
usadas, trata-se de fazer com que o sujeito livre-se dos chamados “pensamentos negativos
automáticos” (PNAs). Ou seja, a terapia cognitivo-comportamental não pode, tampouco,
tratar o mental como epifenômeno, pois é de sua alteração que se espera a modificação do
comportamento, que, em seguida alterará o ambiente onde ele ocorre, para que este,
fechando o ciclo, retroaja sobre o comportamento e assim por diante.
Em outras palavras, os aspectos cognitivos e os aspectos comportamentais do
sujeito estariam em mútua interação neste tipo de terapia – embora o modo como esta
interação ocorre continue sem explicação. Afinal, será a cognição dependente da mudança
no comportamento ou vice-versa? Que peso deve ser atribuído à talking cure e ao
comportamento no ciclo retroativo (operante) que se instaura entre o organismo e o meio
ambiente? Para o behaviorista radical a explicação periferalista, baseada nas
contingências/variáveis ambientais teria um papel predominante. Mas é preciso notar que
uma leitura cuidadosa da obra de Skinner nos revela que este não considera o mental como
epifenômeno a não ser na medida em que sua proposta de uma ciência psicológica visa
banir o problema da causação mental e, assim, livrar-se da herança cartesiana. Mas banir
não é resolver. A teoria skinneriana ainda precisa ser explorada e completada para que se
possa vislumbrar como nela ocorreria a interação entre o físico e o mental.9
A psicossomática – da qual prometêramos falar - parece marcar, igualmente,
contornos para esta discussão: se admitirmos sua cidadania como disciplina científica, não

8
Ver Vercors (1954/1984) Les animaux dénaturés
9
Ver o capítulo “ Notas para uma teoria do pensamento no behaviorismo radical” in Teixeira, J. de F. (no
prelo).
9

podemos mais apostar na inércia causal do psiquismo. Seu aparecimento marca um passo
histórico importante na medida em que tenta re-inserir o mental no campo de estudos da
medicina que estaria se concentrando quase que exclusivamente na fisiologia e na patologia
do corpo. Mas o desafio colocado pela psicossomática é bastante claro: além de
encontrarmos uma relação causal entre fenômenos mentais (como o fez a psicanálise) e
entre fenômenos físicos (como faz a medicina tradicional), é preciso encontrar uma relação
causal ou uma passagem entre o mental e o físico. A fundamentação da psico-neuro-
imunologia apresenta as mesmas dificuldades epistemológicas.
Schiller (2003) observa que a medicina tradicional tem freqüentemente incorrido no
erro categorial de confundir causa com mecanismo. Por exemplo, diz-se que um aumento
da freqüência cardíaca é causado pela produção de adrenalina quando este não passa do
mecanismo que leva à taquicardia. A causa se encontra na esfera psíquica e pode ser um
drama existencial ou uma situação de medo. As causas psíquicas ficam, porém fora do
domínio da ciência e nesta medida a intervenção psiquiátrica nos mecanismos bioquímicos
da angústia ou da depressão limita-se quando muito a ser um controle do quadro clínico e
não um ataque às suas verdadeiras causas. O mesmo ocorre numa série de outros quadros
clínicos cuja correlação com causas psíquicas já foi constatada estatisticamente:
- irrupção de herpes causada pelo stress,
- ocorrência de câncer de cólon e stress,
- incidência de doença cardíaca e desesperança,
- taxa de ataque cardíaco e depressão,
- taxas de sobrevivência a câncer de mama e participação em grupos de apoio.
Ora, a exclusão das causas psíquicas é uma das mais legítimas heranças cartesianas.
No limite, a obra de Descartes tornou o projeto de uma psicologia científica impossível ao
excluir a experiência consciente do domínio da ciência – ou do domínio do modelo de
ciência que se instaurava no século XVII, inspirado pela física de Galileu. Anos mais tarde
quando Wundt se lançou à tarefa de fundar uma psicologia científica tropeçou no paradoxo
de ter de fazer uma ciência do psiquismo que ao mesmo tempo excluísse de seu escopo a
subjetividade. A solução era distinguir entre a “má” e a “boas” introspecção e eliminar a
primeira. Um projeto que tinha, contudo, como pano de fundo, a proposta de conciliar o
10

irreconciliável: a experiência subjetiva com um modelo de ciência que a excluía do mundo


por tornar este um domínio exclusivo da física.
Não é à toa que no século XX encontraremos uma plêiade de movimentos
psicológicos que tentaram, de uma forma ou de outra, superar a herança cartesiana. O
behaviorismo de Watson, por exemplo, foi uma tentativa de livrar-se do problema da
interação entre mente e cérebro tentando, deliberadamente, ignorar a atribuição de qualquer
tipo de estatuto ontológico ao mental. O behaviorismo de Skinner, embora muito diferente
do behaviorismo metodológico com o qual é indevidamente confundido, tentará fundar uma
psicologia na qual o acesso a estados mentais e estados cerebrais seria mais complicado do
que o estudo da história de reforçamento dos indivíduos, além do fato de que a mediação de
estados mentais poderia ser prescindível na predição do comportamento. Se por um lado, a
psicologia skinneriana deu um passo contra o dualismo cartesiano ao recusar a distinção
entre mente e comportamento como sucedânea da distinção mente/corpo ela peca, por outro
lado, por não conseguir explicar algumas atividades cognitivas humanas fundamentais,
como, por exemplo, nossa capacidade de planejar. Como poderíamos, por exemplo,
explicar nossa capacidade de projetar uma ponte sobre um rio a partir de contingências de
reforço? Ou, como explicar os movimentos que fazemos num jogo de xadrez a partir
destas? Não estaríamos tornando a explicação psicológica, neste caso, uma tarefa hercúlea?
O suposto “desgaste histórico” do behaviorismo skinneriano teria levado à
insurgência dos cognitivistas que proclamaram a revolução cognitiva e também se auto-
proclamaram os únicos a desenvolver uma psicologia verdadeiramente pós-moderna. Mas
teriam estes dado um passo em direção à superação da herança cartesiana? A verdadeira
herança cartesiana reside na concepção de causalidade que ela inspira; uma noção
tradicional e senso comum de uma causalidade linear que não nos permite vislumbrar uma
saída para a interação mente→matéria, confinando-nos em dois mundos distintos onde as
relações causais ocorrem entre mente→mente e matéria→matéria. Ou seja, o problema a ser
enfrentado consiste em saber como, dado que para cada estado mental existe um estado
físico que o produz, como pode o primeiro (a mente) retroagir sobre o segundo (o cérebro)?
Produzir esta explicação esclareceria – entre outras coisas - porque a psicoterapia é
necessária além do tratamento psicofarmacológico no caso de alguns transtornos graves: a
talking cure seria responsável por esta retroação. Mas, para isto, é preciso saber como essa
11

retroação é possível, ou seja, é preciso explicar a possibilidade da existência da causação


mental, o que requer, por sua vez, uma teoria robusta das relações entre mente e cérebro.
Um primeiro passo nesta direção poderia ser dado pela modificação de nossas próprias
idéias cotidianas acerca de causalidade. Mas até agora poucas sugestões neste sentido
foram apresentadas pela ciência cognitiva e pela filosofia da mente.
Idéias como as de, por exemplo, a existência de uma causalidade circular já
sugerida na física e na neurociência contemporâneas (Freeman, 1999, 1999a) parecem
oferecer uma alternativa à visão cartesiana e com isto restaurar a possibilidade de uma
interação entre mente→matéria. A causalidade circular pode expressar inter-relações entre
níveis em uma hierarquia: um evento de nível superior afeta simultaneamente eventos que
um nível inferior gerou e que mantém o próprio evento de nível superior. Esta idéia já é
utilizada, por exemplo, na física. Haken (1983) relata o caso no qual os átomos excitados
por um laser causam uma emissão de luz e esta, por sua vez impõe ordem nos átomos. No
caso de nosso cérebro, a causalidade circular explicaria a retroação de experiências
conscientes sobre a base cerebral que as produz. No caso específico que discutimos, ela nos
explicaria a complementaridade (e a necessidade) da associação entre fármacos e
psicoterapia: esta seria o evento de nível superior que afeta os eventos que um nível inferior
gerou (a modificação cerebral ocasionada pelos fármacos) para manter o próprio evento de
nível superior (a modificação da vida mental do paciente).
Mas a idéia de causalidade circular ainda é vista com muita desconfiança não
apenas por físicos e psicólogos como até mesmo pelos próprios epistemólogos
contemporâneos. Nossa concepção de mundo ainda é próxima, cognitivamente, do universo
concebido como relojoaria e da física newtoniana, o que faz com que as idéias cartesianas
de causalidade e das relações entre mente e cérebro, explicitamente ou não perdurem até
nossos dias. Nunca fomos efetivamente pós-modernos.

II

A partir dos anos 30 (no século passado) a metáfora do relógio começa a ser
substituída pelo computador como máquina dominante na sociedade – uma máquina que,
12

progressivamente vai se tornando a ferramenta principal para a ciência. Surge uma nova
metáfora do universo, baseada no conceito de informação. Esta metáfora culminará, nos
anos 60, com a revolução cognitiva e com o aparecimento da inteligência artificial. Ambas
seriam novas alternativas para a explicação psicológica na medida em que esta seria obtida
pela possibilidade de replicação da vida mental humana (ou aspectos dela) através de
programas computacionais.
Terá a revolução cognitiva mudado o cenário cripto-cartesiano em que se encontra a
psicologia? Uma primeira resposta, de caráter geral, é inevitavelmente negativa. A
digitalização pressupõe uma concepção de tempo como um fluxo de instantes – uma idéia
cartesiana de onde se deriva o universo binário sobre o qual se baseia a ciência da
computação contemporânea. Mas precisamos examinar os modelos cognitivos de mente em
maior detalhe para fundamentar esta resposta.
Nas décadas de 60 e 70 ocorre uma influência mútua entre ciência cognitiva e
neurociência – uma influência que se inicia a partir da concepção do cérebro como um
computador (a metáfora computacional) e culmina na idéia da mente como o software do
cérebro. A noção de uma inteligência artificial como realização de tarefas por dispositivos
que não têm uma arquitetura nem uma composição biológica e físico-química igual à nossa
abala profundamente a idéia de que funções cognitivas responsáveis pelo comportamento
inteligente dependeriam de características específicas dos cérebros vivos. Esta idéia é
fundamentada numa doutrina filosófica subjacente à inteligência artificial e à ciência
cognitiva dessa época, qual seja, o funcionalismo.
Uma noção intuitiva, mas ao mesmo tempo precisa do que é o funcionalismo nos é
proporcionada por Haugeland (Haugeland, 1993). Ele nos convida a considerar o que está
envolvido em um jogo de xadrez, se são as regras do jogo e a posição das peças no
tabuleiro ou se é o material, tamanho, etc de que é feito este último. Certamente são as
regras e a posição das peças. Pouco importa se o bispo e o cavalo são feitos de madeira ou
de metal, se o tabuleiro é grande ou é pequeno. Em outras palavras, o jogo de xadrez tem
uma realidade independente do material que utilizamos para fazer as peças e o tabuleiro.
Mas não haveria jogo de xadrez se não dispuséssemos de algum material para representar o
tabuleiro, as peças, e as regras. Não podemos suprimir inteiramente o material com o qual
construímos um tabuleiro e suas peças, mas podemos variá-lo quase indefinidamente.
13

Ademais, as regras e estratégias do xadrez não serão redutíveis ao marfim se as peças forem
desse material, tampouco ao plástico se elas forem de plástico e assim por diante.10
Façamos agora uma analogia entre jogo de xadrez e a mente. A idéia do
funcionalista é que a mente não se reduz ao cérebro, da mesma maneira que no jogo de
xadrez as regras e estratégias não se reduzem à composição físico-química do tabuleiro e
das peças. O cérebro instancia uma mente, mas essa não é o cérebro nem tampouco se
reduz a ele. Podemos agora perceber porque os pesquisadores da inteligência artificial
apoiaram o funcionalismo, pois se tratava de apoiar a possibilidade de replicação mecânica
de segmentos da atividade mental humana por dispositivos que não têm a mesma
arquitetura nem a mesma composição biológica do cérebro.
O aspecto mais interessante do funcionalismo é sua característica não-reducionista,
do qual podemos derivar a chamada tese da múltipla instanciação (multiple realizability).
De acordo com esta tese, dois computadores podem diferir fisicamente um do outro, mas
isso não impede que eles possam rodar o mesmo software. Inversamente, dois
computadores podem ser idênticos do ponto de vista físico, mas realizar tarefas
inteiramente distintas se seu software for diferente. A mesma analogia vale para mentes e
organismos: um mesmo papel funcional que caracteriza um determinado estado mental
pode se instanciar em criaturas com sistemas nervosos completamente diferentes. Um
marciano pode ter um sistema nervoso completamente diferente do meu, mas se ele puder
executar as mesmas funções que o meu, o marciano terá uma vida mental igual à minha.
Isto é uma conseqüência do materialismo não-reducionista: um rádio (hardware) toca uma
música (software); a música e o aparelho de rádio são coisas distintas, irredutíveis uma a
outra, embora ambas sejam necessárias para que possamos ouvir uma música. Nunca
poderemos descrever o que o rádio está tocando através do estudo das peças que o
compõem.
Os funcionalistas advogaram que sua tese seria um monismo neutro, que poderia
abrigar visões opostas, desde que nenhuma delas fosse reducionista. Não há dúvida de que,
neste sentido, o funcionalismo foi uma das grandes novidades da filosofia da mente do
século XX. Contudo, a idéia de que a mente seria o sofware do cérebro levou à concepção
equivocada de que estes se assemelhariam a idealidades matemáticas desencarnadas e

10
Ver Teixeira, (2000), p. 124, f.f
14

portáteis e não à descrição das transformações de um hardware ao longo do tempo – e foi a


partir deste momento que o funcionalismo passou a poder ser visto como um sucedâneo do
dualismo cartesiano11. Sua versão materialista baseia-se na token-token identity; que
sustenta que alguma instância de um tipo mental é idêntica a alguma instância de um tipo
físico, sendo que este pode ser o sistema nervoso de um ser humano, de um marciano ou o
hardware de um computador. Neste sentido, o funcionalismo poderia igualmente ser
interpretado como uma variante do materialismo – mas seria um materialismo/fisicalismo
minimalista.12
A inteligência artificial dos anos 70 herda a teoria clássica da representação que
começa no século XVII e parte da pressuposição da estranheza do mundo em relação a
mente que o concebe - uma estranheza que resulta de uma caracterização da mente como
algo distinto e separado do mundo. Neste sentido, a representação tem de recuperar esse
mundo do qual a mente não faz parte; é preciso instaurar uma garantia de correspondência
com aquilo que se tornou exterior ou externo, seja ela através de um Deus não-enganador
(Descartes) ou das formas a priori da intuição e do entendimento (Kant).
A ciência cognitiva dessa época, qual seja, o representacionalismo baseado na
inteligência artificial desenvolvida nos laboratórios do MIT, herdou estes pressupostos da
teoria clássica da representação. Ela desenvolveu uma visão da cognição e do chamado
"modelo computacional da mente" onde ambos são definidos como computações de
representações simbólicas. A idéia de representação mental identificada com símbolo não
está tão distante da noção de idéia cartesiana, definida por imagem intelectual ou da
semiótica lockeana que concebia as "idéias" como signos.
Mas não é apenas a idéia da representação mental identificada com símbolos (ou
"imagens intelectuais") que é herdada pela inteligência artificial dos anos 70. Ela herda
também - talvez sem perceber ou a contragosto - a pressuposição do ghost in the machine, a
mesma pressuposição que fazia com que Descartes reconhecesse as limitações dos
autômatos, limitações em princípio que os impediriam de vir a ter uma vida mental
semelhante a nossa por mais que a tecnologia pudesse avançar. O problema do ghost in the

11
Fodor, por exemplo, chega a afirmar que “o fisicalismo token-token não descarta a possibilidade de
máquinas e espíritos desencarnados virem a ter propriedades mentais. “Token physicalism does not rule out
the logical possibility of machines and disembodied spirits having mental properties” ((Fodor, 1981, p. 127).
12
Os três últimos parágrafos foram reproduzidos, com modificações, do livro Cérebro e Comportamento:
neurociência, computadores e behaviorismo radical”. Teixeira, J. de F. (no prelo).
15

machine reaparece nas críticas à inteligência artificial esboçadas no início dos anos 80, sob
a forma do argumento intencional ou o argumento do quarto do chinês13 desenvolvido por J.
Searle (1980). O problema da intencionalidade ou do significado como algo indissociável
de uma consciência (seja esta resultado de um fantasma oculto ou da atividade biológica
dos organismos como queria Searle) não constitui uma efetiva crítica à inteligência
artificial no sentido forte: ele é menos uma ruptura do que a constatação natural dos limites
da computação simbólica; um desdobramento natural da tradição cartesiana herdada pela
inteligência artificial dos anos 70.14
A construção de sistemas conexionistas nos anos 80 levou os teóricos da ciência
cognitiva, num primeiro momento, a supor que esta poderia pura e simplesmente prescindir
da idéia de representação. Esta perspectiva, entretanto, logo se revelou errônea: o
conexionismo não prescinde das representações, mas introduz um aspecto convencionalista
na maneira de concebê-las, ao propor trocar o modelo de inspiração discursiva, baseado
numa metáfora visual (ou semanticamente transparente, para usar a terminologia de Clark,
1989) por um modelo de inspiração matemática onde se constroem representações de
representações, na forma de equações diferenciais que expressam relações entre neurônios
artificiais. Rompem-se possíveis semelhanças entre representação e objeto representado,
mas a idéia tradicional de representação é re-instaurada na medida em que se mantém
inquestionável a dicotomia entre cognição e mundo.
É somente a chamada “terceira onda” da ciência cognitiva, na metade dos anos 90
que procura desvencilhar-se definitivamente dos pressupostos cripto-cartesianos. O
protagonista desta nova onda na ciência cognitiva parece ser a nova robótica de Brooks.

13
O argumento do quarto do chinês, formulado por J. Searle consiste basicamente no seguinte:Uma pessoa
que só conhece português está em um quarto trancado, e em seu poder essa pessoa tem um texto em chinês e
um conjunto de regras de transformação em português, que permite executar operações sobre o texto em
chinês. A pessoa trancada no quarto recebe periodicamente novos textos em chinês e com seu conjunto de
regras essa pessoa passa a escrever novos textos em chinês. A pessoa na verdade só aplica as regras dadas a
ela sem realmente compreender o que está escrevendo. Um observador externo vendo os textos produzidos na
sala poderia dizer que a pessoa trancada na sala realmente compreende chinês, o que não é verdade.
A idéia de Inteligência Artificial Simbólica é a de que a inteligência resulta do encadeamento
adequado de representações mentais, que são símbolos.
A sala chinesa de Searle contradiz isso muito bem, por que seguir regras não significa compreender,
da mesma maneira que executar determinadas funções e produzir resultados esperados tampouco
significam compreender.
14
Os últimos parágrafos foram reproduzidos, com modificações, do livro Filosofia e Ciência Cognitiva, p.35
ff.
16

Com ela estaríamos retornando ao verdadeiro sentido da inteligência artificial que teria se
perdido ao longo da história, qual seja, a de que ela deveria ser uma ciência experimental;
um ramo da engenharia e não da matemática.
A reflexão de Brooks sobre a sua prática científica parte da idéia de que a
inteligência artificial precisa retomar suas origens, ou seja, a cibernética, esta disciplina de
vida efêmera e injustamente esquecida pela historia da ciência. A cibernética começa pela
observação do comportamento e não pelo estudo da cognição entendida como representação
simbólica e computações baseadas em regras formais. É esta a estratégia seguida por Brooks
no seu laboratório no MIT. Insetos podem apresentar comportamento complexo, sem que
para isso seus cérebros tenham que representar regras lógicas. O mesmo podemos afirmar
acerca de gaivotas que fazem vôos rasantes para apanhar peixes no mar – certamente seus
cérebros não representam regras e equações da balística para evitar que um desses vôos
resulte em algum tipo de colisão fatal ou afogamento. Se há representações nestes cérebros,
elas são representações implícitas ou encarnações físicas de processos, como é, por exemplo,
o caso de uma calculadora de bolso que encarna funções matemáticas – embora suas regras
de funcionamento sejam estáticas e invariáveis. Certamente outros hardwares mais flexíveis
podem ser formados a partir das interações comportamentais dos organismos/robôs com a
complexidade do meio ambiente. Neste caso, estamos diante de hardwares plásticos que
podem se modificar a si mesmos nestes processos interativos e este é o verdadeiro sentido da
afirmação de que processos/comportamentos podem se transformar em hardwares ou no
limite em wetwares.
Os trabalhos teóricos de Brooks (1991,1991a, 1991b ) sugerem que as dificuldades
enfrentadas pela ciência cognitiva são muito mais conceituais do que práticas ou
tecnológicas. É a ausência da análise conceitual que pode envolver-nos em confusões
teóricas e até mesmo em pseudo-questões como a interpretação não-materialista do
funcionalismo e suas conseqüências. A crítica a um funcionalismo des-cerebralizado pode
ter outras conseqüências que não poderemos explorar aqui, como, por exemplo, uma
reflexão sobre o estatuto ontológico do que chamamos software e nossa tendência a
concebê-lo como entidade matemática com uma existência independente de sua realização
física. No mesmo esteio, seria preciso rever a idéia de cognição concebida como
computação abstrata sobre símbolos – uma computação que aspira a uma total
17

independência em relação a seu substrato físico, ou seja, a versão contemporânea da mente


imaterial cartesiana.

III

Quando afirmamos no início deste trabalho que a psicologia não teria conseguido se
tornar independente da “enciclopédia filosófica” quisemos dizer que as teorias psicológicas
ainda são, em grande parte, teorias filosóficas, pois a explicação da passagem entre o físico
e o mental só pôde, até agora, ser abordada especulativamente. Estas teorias resistem a um
critério de falseabilidade na medida em que a psicologia permanece sem um objeto definido
e, por vezes, fazem com que seu discurso beire àquele da auto-ajuda.
Nos últimos anos (a década do cérebro) a biopsiquiatria e a neurociência cognitiva
fizeram com que a psicologia perdesse ainda mais de sua já precária cidadania, tendendo a
desfigurar-se em apenas uma variedade de assistência social. A proposta de um
mapeamento cerebral pela neuroimagem passa a centralizar as pesquisas na neurociência
cognitiva, e, com este, surge algo parecido com uma frenologia eletrônica. A mente
finalmente seria o cérebro! – proclamaram alguns neurocientistas cognitivos mais
entusiasmados e embalados pelo sonho reducionista. Eles não mais procuravam funções
cognitivas nas saliências ósseas do crânio, mas nas cintilações dos belíssimos mapas
cerebrais produzidos pela fMRI. Pioneiros da neurociência cognitiva, como Gazzaniga
(1998), chegaram a vaticinar o fim do próprio conceito de mente e a morte da psicologia.
Mais do que isto: a neurociência e a sua parceira, a biologia molecular, passaram
implicitamente a se proclamar como fundamento de todas as outras ciências realizando o
sonho de uma ciência geral que abrangeria todas as outras, o tronco mestre do
conhecimento na medida que é do cérebro e do DNA de suas células que este emana. O
estudo da natureza do pensamento e da consciência – tema central da filosofia e da
psicologia ao longo de suas histórias – deixaria de ser da competência exclusiva dos
filósofos e psicólogos. O pensamento seria apenas o metabolismo do cérebro. Desta forma,
problemas filosóficos seriam progressivamente dissolvidos da mesma maneira que a
dissolução do conceito de mente levaria a psicologia a um fim. Paradoxalmente, os
18

neurocientistas estariam se esquecendo de que se a ciência não fosse independente do


cérebro que a produz, as condições de verdade de suas proposições (ou seja, se estas são
verdadeiras ou falsas) seriam tão transitórias quanto o é a bioquímica deste...
Mas, terá a neurociência cognitiva dado um passo decisivo para superar a herança
cartesiana e seus implícitos e sutis pressupostos? Ou estaria ela apenas revivendo um
cartesianismo às avessas, no qual a mente é substituída pelo cérebro, ou seja, não
eliminando verdadeiramente o dualismo mas apenas revertendo-o? Esta é, sem dúvida, uma
questão muito complexa para cuja resposta podemos oferecer apenas algumas
considerações. O mais provável é que a neurociência cognitiva tenha se perdido na sua
obsessão pelo mapeamento do cérebro. Uma obsessão que tem como conseqüência a
restrição do lócus da explicação psicológica unicamente ao cérebro (internalismo)
excluindo, assim, ambiente e comportamento do escopo da psicologia. Paradoxalmente,
neurobiólogos contemporâneos eminentes têm apontado para a necessidade de direcionar a
investigação do cérebro na direção contrária, rejeitando o mito do cérebro na proveta, ou
seja, do cérebro separado do seu ambiente e do seu corpo em movimento. Mas, o que será
um mapa do cérebro? Que critérios utilizar para construí-lo?
Mapear a anatomia do cérebro não é tarefa fácil, afigurando-se como atividade
complexa e desafiadora. Hoje em dia, apesar de algumas falhas, os mapas de Brodmann são
canonicamente aceitos na neurociência. Os problemas mais graves, contudo, começam a
surgir quando se tenta correlacionar áreas cerebrais demarcadas anatomicamente com
funções cognitivas conscientes – ou seja, quando passamos da neurociência para a
neurociência cognitiva.
Uma primeira crítica contra este tipo de estratégia metodológica consiste em apontar
que esta não nos proporciona uma redução do mental ao cerebral como se pode supor à
primeira vista, mas tão somente o estabelecimento de correlações, não entre apenas
sensações e estados mentais como fazia a psicofísica, mas entre estados mentais e sua
representação cerebral (cintilação). Falta, contudo, passar das correlações à relação causal,
o que daria a estas últimas a inteligibilidade da relação entre mente e cérebro que se procura
com este tipo de investigação. Em outras palavras, o problema cartesiano estaria
reaparecendo pela porta dos fundos.15
15
Esta é a discussão acerca da existência ou não de correlatos neurais da consciência. Veja-se a este respeito
Chalmers (2000) e seus oponentes Alva Noë e Thompson (2004).
19

Mas não é só aqui que o gênio maligno cartesiano reaparece. A correlação entre
áreas cerebrais e funções cognitivas exige que se assuma a possibilidade de uma
divisibilidade metodológica do mental – dizemos metodológica, pois Descartes não
acreditava na possibilidade de uma divisão real da mente, embora sustentando que a divisão
do complexo em partes simples era componente fundamental do método científico. Ora,
será a possibilidade de divisão do mental, mesmo que assumida apenas metodologicamente,
uma premissa sustentável? Ou, em outras palavras, podemos assumir a modularidade da
mente – mesmo numa versão mais branda do que aquela sustentada por cientistas
cognitivos contemporâneos como Fodor e Pinker? Que critérios estabelecer para relacionar
módulos mentais com módulos cerebrais? A dificuldade de mapear a mente no cérebro
parece mais residir em ter de mapear primeiro o mental para depois correlacioná-lo com
representações neurológicas.
É muito difícil chegar a um mapeamento unívoco do mental. Esta já era uma
dificuldade sentida pelo próprio Gall ao fundar sua frenologia. Gall distinguia vinte e sete
capacidades abstratas como individualidade, benevolência, esperança, auto-estima, etc. A
neurociência cognitiva parece ter embarcado numa aventura parecida ao tentar construir um
mapa correlacionando a mente e o cérebro a partir de instrumentos novíssimos e altamente
sofisticados, mas tomando como pressuposto conceitos e entidades psicológicas derivados
da psicologia do século XIX e do senso comum. Tentar encontrar os correlatos neurais de
entidades tão etéreas como a inteligência, a consciência, a humildade, a desesperança e
outros conceitos formados pela nossa linguagem e que impregnam as teorias psicológicas
pode acabar se tornando uma tarefa tão ingrata quanto tentar fotografar o trópico de
capricórnio. Estes termos e entidades são aceitos sem uma análise conceitual prévia.
São estas as razões – ou melhor, apenas algumas delas - que impedem a psicologia,
mesmo quando apoiada inteiramente na neurociência, de se tornar um corpo científico
legitimamente autônomo que possa, então, dialogar com a filosofia para que esta discuta
seus fundamentos epistemológicos, da mesma maneira que ocorre com outras disciplinas
como a física, a química e outras ciências duras. A maturidade da psicologia – se algum dia
esta vier a ocorrer – será atingida não pelo seu desenvolvimento e especialização como foi
o caso da física, da química e da biologia. O caminho terá de ser diferente. Para que isto
possa acontecer será preciso submeter a psicologia a uma cuidadosa análise conceitual que
20

deverá incluir – sem querer incorrer no trocadilho – uma terapia lingüística. Eliminar a
confusão conceitual é tarefa essencialmente filosófica. Estranhamente, será a própria
filosofia que tornará a psicologia livre da filosofia, colocando-a no caminho da ciência –
através de outras alianças da psicologia com a reflexão filosófica que excluam o cripto-
cartesianismo.
Mas para isto será preciso que a filosofia também recupere seu lugar ao sol. É
preciso que o filósofo reassuma sua posição de fabricante de conceitos . Como observam
Deleuze e Guattari (1992) “os conceitos não nos esperam inteiramente feitos, como corpos
celestes. Não há céu para os conceitos. Eles devem ser inventados, fabricados ou antes
criados e não seriam nada sem a assinatura daqueles que os criam.16 Nas últimas décadas
este lugar foi perdido para o marketing, para o design de griffes e para os produtores de
virtualidades que povoam as sociedades pós-modernas. Ou, para citar novamente Deleuze e
Guattari “como a filosofia, essa velha senhora, poderia alinhar-se com os jovens executivos
numa corrida aos universais da comunicação para determinar uma forma mercantil do
conceito?”17
Da mesma maneira que a atividade cientifica a criação de conceitos deve ser vista
como atividade autônoma e sua utilização como uma mera aplicação possível. Isto quer
dizer que, se queremos que a psicologia se torne ciência, após uma análise conceitual
cuidadosa, não queremos, por outro lado, que a filosofia se torne ancilla scientia, ou em
termos mais prosaicos, que a filosofia se exaura na instrumentalidade de uma ferramenta
que a transformaria apenas na faxineira dos cientistas.

BIBLIOGRAFIA E REFERÊNCIAS

ALVA NOË, R. & THOMPSON, E. (2004) “Are there neural correlates of


consciousness?”. Journal of Consciousness Studies 11, n.1, pp.3-28.

BENNETT, M.R. & HACKER, P.M.S.(2003) Philosophical Foundations of Neuroscience.


Cambridge: Blackwells.

16
Ver Deleuze e Guattari, 1992, p. 13.
17
Deleuze e Guattari, 1992, p. 19.
21

BROOKS, R. (1991). “Intelligence without representation”. Artificial Intelligence. (47)


139-159.

BROOKS, R. (1991a) “New Approaches to Robotics” - Science 253: 1227-1232.

BROOKS, R. (1991b) “Intelligence without Reason” - MIT Memo # 1293.

CALLIGARIS, C. (2004) Cartas a um Jovem Terapeuta São Paulo: Elsevier Editora.

CHALMERS, D. (2000) “What is a neural correlate of consciousness?” in METZINGER,


T. (ed) Neural Correlates of Consciousness: Empirical and Conceptual Questions,
Cambridge, MA: The MIT Press/Bradford Books.

CLARK, A. (1989) Microcognition: Philosophy, Cognitive Science and Parallel


Distributed Processing , Cambridge, MA: The MIT Press/Bradford Books.

DAMASIO, A. (1996) O erro de Descartes. São Paulo: Companhia das Letras.

DELEUZE, G. & GUATTARI, F. (1992) O que é Filosofia? S. Paulo: Editora 34.

DENNETT, D. (1995) Darwin´s Dangerous Idea. New York: Simon & Schuster.

DESCARTES, R. (1641/1963) – Méditations – in Oeuvres Philosophiques de Descartes,


presentés par F. Alquié, Tomo I, Paris: Garnier Frères, 1963.

FODOR, J. (1983) The modularity of mind. Cambridge, MA: The MIT Press.

FOUCAULT, M. (1968) Doença Mental e Psicologia. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.

FREEMAN, W.(1999) How Brains Make Up their Minds. London: Weidenfeld and
Nicolson.

FREEMAN, W. (1999a) “Consciousness, Intentionality and Causality”. Journal of


Consciousness Studies. 6, n. 11-12, pp. 143-72.

FREUD, S. (1910) Esboço de Psicanálise Edição Standard Brasileira, vol. XXIII Rio de
Janeiro: Imago, 1987. Segunda edição.

GAZZANIGA, M. (1998) – The Mind’s Past , Berkeley: University of California Press.

HAKEN H. (1983) Synergetics: An introduction. Berlin: Springer.


22

HAUGELAND, J. (1993) “Pattern and Being” in DAHLBOM, B. (ed) Dennett and his
Critics. Cambridge, MA: Blackwells, pp. 53-69.

HEIDEGGER, M. (1954/1973) “Science et Méditation” in Essais et Conférences. Tradução


para o francês por André Préau. Paris: Galimard: 1973. pp. 49-79.

KANT, I. (1789/ 1980) – Crítica da Razão Pura – Traduzido do alemão por V. Rohden e
U. Mossburger. São Paulo: Abril Cultural.

KIM, J. (1997) “The Mind-Body Problem: Taking Stock after Forty Years. Philosophical
Perspectives, 11, pp.185-207.

KIM, J. (1998) Mind in a Physical World Cambridge, MA: The MIT Press.

LEVY-STRAUSS, C. (1996) Antropologia Estrutural. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro.


5a. Edição.

LIBET, B.(1985) “Unconscious cerebral initiative and the role of conscious will in
voluntary action”. Behavioral and Brain Sciences 8 pp.529-66.

PINKER, S. (1998) Como a Mente Funciona. São Paulo: Companhia das Letras.

RORTY, R.(1997) Esperanza o Conocimiento? Una Introducción al Pragmatismo.


Argentina: Fondo de Cultura Económica S.A. Tradução para o castelhano por E. Rabossi.

ROUDINESCO, E. (2000) Por que a Psicanálise? Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.
Tradução para o português por Vera Ribeiro.

RUGG, M. (1997). Cognitive neuroscience. Cambridge, MA: The MIT Press.

SCHILLER, P. (2003) “As psicossomáticas”, in Psicossoma III , Volich, M.R., Ferraz, F.C.
& Ranña (orgs). São Paulo: Casa do Psicólogo, pp. 27-31.

SEARLE, J. (1980) – “Minds, Brains and Programs” – in HAUGELAND, J. (1981). In


Mind Design – Cambridge, MA: The MIT Press, pp. 282-306.

SKINNER, B.F. (1974) About Behaviorism. London: Jonathan Cape.

SOLMS, K.K. & SOLMS, M. (2004) O que é a Neuro-Psicanálise. São Paulo: Terceira
Margem.

TEIXEIRA, J.de F. (2000) – Mente, Cérebro e Cognição. Petrópolis: Vozes.

TEIXEIRA, J.de F. (2004) – Filosofia e Ciência Cognitiva. Petrópolis: Vozes.


23

TEIXEIRA, J. de F. (no prelo) – Cérebro e comportamento: neurociência, computadores e


behaviorismo radical.

UTTAL, W.R. (2001) The New Phrenology. Cambridge, MA: The MIT Press.

VELMANS, M. (2002) “How Could Conscious Experiences Affect Brains?”. Journal of


Consciousness Studies. 9. n.11, pp. 3-29.

VERCORS, J.B. (1954/1984) Les animaux dénaturés, Paris: French and European Pubns,
11a. edição.

WATSON, J. B. Psychology from the standpoint of a behaviorist. Philadelphia: J. B.


Lippincott Company.

WITTGENSTEIN, L. (1951) – Philosophical Investigations, Oxford: Basil Blackwell.


Tradução de G.E.M. Anscombe

Você também pode gostar