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UNIVERSIDADE ESTADUAL DO CEARÁ

CENTRO DE HUMANIDADES
CURSO DE GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

GABRIEL ARARIPE HOLANDA

Um diálogo entre Nietzsche e o Budismo:


sobre a questão do sofrimento humano

FORTALEZA – CEARÁ
2023
GABRIEL ARARIPE HOLANDA

Um diálogo entre Nietzsche e o Budismo:


sobre o problema do sofrimento humano

Trabalho de Conclusão de Curso


apresentado ao Curso de Graduação em
Filosofia do Centro de Humanidades da
Universidade Estadual do Ceará, como
requisito parcial à obtenção do grau de
licenciado em Filosofia

Orientador: Prof.Dr. Gustavo Costa.

FORTALEZA – CEARÁ
2023
RESUMO
O presente trabalho intenciona pesquisar como o filósofo Friedrich Nietzsche
(1844-1900) e a filosofia budista enxergam e lidam com o sofrimento humano,
buscando compreender o que, para eles, representam as causas do sofrimento, assim
como os diferentes formas de sofredores e, em síntese: o que elaboram como
caminhos e propostas para a superação do sofrimento. Toda a discussão gira em
torno do eixo do que representaria o ideal de Grande Saúde — termo que Nietzsche
cunha — tanto para Nietzsche como para o budismo, enxergando também o que seria
o inverso, ou, o que representaria uma oposição a esse ideal. O ideal de Grande
Saúde nietzscheana está intimamente associada ao desenvolvimento da capacidade
do indivíduo de manifestar o amor fati — do latim, “amor ao destino —; para o budismo
o ideal de Grande Saúde é representado pelo alcance do estado de liberação mental
da ignorância e delusão e recebe o nome de Nirvana. Metodologicamente, usamos da
pesquisa bibliográfica para empreender um entendimento geral em ambas as
filosofias, para então nos aprofundar examinando 5 obras diferentes de Nietzsche e
observando em que pontos elas abordam sobre o budismo; nossa segunda
metodologia foi a comparativa, que reflete-se até na estruturação dos capítulos, em
que apresentamos inicialmente um panorama nietzschiano, e após isso um panorama
budista, para então dialogarmos no último capítulo de forma aberta os dois autores.
Utilizamos a obra “Nietzsche e o budismo”, do filósofo Antoine Panaioti, no momento
final de nossa pesquisa, como principal ponte que conectou ambas as filosofias,
demarcando acertos e enganos de ordem perceptual da análise nietzscheana ligada
ao budismo, assim como revisando aspectos fundamentais de ambas as filosofias no
que diz respeito aos ideais de Grande Saúde. Nosso trabalho, portanto, visa
compreender o que representa o sofrimento para ambas as filosofias, assim como as
soluções que chegam para essa questão e que aspectos podem ser percebidos que
dialogam entre si, assim como qual é a relação que se constrói entre Nietzsche e o
budismo, seja como crítica ou concordância.

Palavras-chave: Grande Saúde; Nietzsche; Budismo; Nirvana; Amor fati; Sofrimento.


ABSTRACT

The present work intents in research how the philosopher Friedrich


Nietzsche (1844-1900) and the buddhist philosophy sees and deal with human
suffering, seeking to understand what, for them, represent the different causes
for suffering, as well as the different forms of sufferers and, in summary: what
they elaborate as ways and proposals to the superation of suffering. The entire
discussion revolves around the axis of what would represent the ideal of Great
Health — term that Nietzsche coined — both for Nietzsche and for Buddhism,
also seeing what would be the inverse, or, what would represent an opposition
to this ideal. The Nietzschean ideal of Great Health is closely associated with
the development of the individual's ability to manifest amor fati — from Latin,
“love of destiny" —;for Buddhism, the ideal of Great Health is represented by
reaching the state of mental liberation from ignorance and delusion and is called
Nirvana. Methodologically, we use bibliographical research to undertake a
general understanding of both philosophies, and then go deeper by examining
5 different Nietzsche's works and observing at what points they address
Buddhism. Our second methodology was the comparative, which is even
reflected in the structure of the chapters, in which we initially present a
Nietzschean panorama, and after that a Buddhist panorama, so that we can
openly dialogue the two authors in the last chapter. We used the work
“Nietzsche and Buddhism”, by the philosopher Antoine Panaioti, in the final
moment of our research, as the main bridge that connected both philosophies,
demarcating successes and mistakes of a perceptual order of the Nietzschean
analysis linked to Buddhism, as well as reviewing fundamental aspects of both
philosophies with regard to the ideals of Great Health. Our work, therefore, aims
to understand what suffering represents for both philosophies, as well as the
solutions that come to this question and what aspects can be perceived that
dialogue with each other, as well as what is the relationship that is built between
Nietzsche and the Buddhism, whether as criticism or agreement.
Keywords: Great Health; Nietzsche; Buddhism; Nirvana; Amor fati; Suffering.
LISTA DE ABREVIATURAS

A Anticristo

VP Vontade de poder

NT Nascimento da tragédia

MN Mahijima Nikaya

GC Gaia ciência
SUMÁRIO

1. INTRODUÇÃO............................................................................................. 3
2. NIETZSCHE E A FILOSOFIA DO MARTELO…………………………....... 7
2.1 TRAJETÓRIA HISTÓRICA E CONTEXTO CRÍTICO…………………….... 7
2.2 NIILISMO, RESSENTIMENTO E DECADÊNCIA………………………........ 12
2.3 AS MAZELAS FÍSICAS E SUAS CONSEQUÊNCIAS FILOSÓFICAS........ 16
3. BUDA E A FILOSOFIA DA ILUMINAÇÃO………………………………...... 21
3.1 DO TUDO AO NADA AO CAMINHO DO MEIO…………………………....... 21
3.2 FENOMENOLOGIA DO SOFRIMENTO…………………………….……...... 27
3.3 O CAMINHO ÓCTUPLO COMO VIA DA LIBERTAÇÃO………….……... 31
4. NIETZSCHE E O BUDISMO: CONCORDÂNCIAS, DISCORDÂNCIAS E
PONTOS DE CONTATO……………………………………………............... 35
4.1 O ENCONTRO DE NIETZSCHE COM O ORIENTALISMO……………...... 36
4.2 A VISÃO DO BUDISMO PARA NIETZSCHE EM SUAS OBRAS……......... 38
4.3 PRINCIPAIS PONTOS DE ENCONTRO ENTRE NIETZSCHE E O
BUDISMO…………………………………………………………………......... 45
5. CONCLUSÃO…………………………………………………………….......…. 57
6. ANEXOS……………………………………………………………......………... 61
7. REFERÊNCIASCBIBLIOGRAFICAS…………………………………………. 62
3

1. INTRODUÇÃO

A investigação sobre o problema do sofrimento humano é um dos temas mais


antigos sobre o qual a filosofia se debruça, ao mesmo tempo que é uma questão que
une toda a humanidade. Também carrega suas particularidades para cada indivíduo
nas múltiplas formas que lhe chega, e também de forma tão ampla são as diferentes
respostas que cada povo desenvolve para o sofrimento que sente e as dificuldades
que lhe aparecem. Entre as diferentes tradições de pensamento que abordam esse
tema estão inseridos tanto o pensador alemão Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-
1900), como Sidarta Gautama, fundador do budismo, que viveu por volta de 563 ac -
483 ac. Refletir e comparar quais foram as visões acerca do sofrimento, assim como
que propostas desenvolveram sobre formas de lidar com ele — assim como pela
própria perspectiva de “se” é algo que pode ser lidado, ou até que ponto que pode ser
lidado — que ambos os pensadores desenvolveram é o objetivo principal de nossa
pesquisa. Por essa razão, o maior ponto de encontro que observamos entre essas
duas filosofias é no que elaboram como propostas sobre a saúde, mais
especificamente sobre o ideal que cada uma desenvolve sobre o que seria o “tipo
saudável”, que nasceria a partir do cultivo de uma “Grande Saúde”; É Nietzsche quem
elabora esse termo, mas é possível de se reconhecer que existe um ideal supremo de
saúde em cada uma das filosofias e práticas — pois são filosofias de cunho altamente
prático também — que seriam: para o budismo, a noção de Nirvana, e para Nietzsche
o sujeito que é capaz de desenvolver plenamente a capacidade de amor fati — do
latim, amor ao destino — e não somente aceitar mas sim ser até mesmo capaz de
amar e afirmar a vida, mesmo com todo seu sofrimento.
Antes de continuarmos, gostaríamos de fazer um breve apontamento: o título
inicial de nossa pesquisa usava o termo “problema” ao invés de “questão”. Decidimos
alterá-lo por percebermos ao longo de nossa trajetória de estudo que alguns aspectos
em ambas as filosofias não tomam o sofrimento de fato como um problema — apesar
de assim parecer à primeira vista —, isso ficará mais claro no terceiro capítulo, mas a
questão é: para Nietzsche o sofrimento não é um problema per si, mas sim o que pode
decorrer dele, ou seja, a resposta que cada indivíduo e grupo social dá para seu
. De fato, sofrimento; Em fato, para Nietzsche, é até mesmo desejável o sofrimento em certa
medida para superá-lo e assim crescer com ele. Veremos ao longo de nossa pesquisa
que o sofrimento tanto pode criar o tipo ressentido com a realidade, que a odeia, como
4

também pode ser tomado simplesmente como um obstáculo a ser superado,


promovendo nova força que nasce a partir dessa superação. Esse processo está
intimamente ligado a um desenrolar interno das próprias potencialidades, sintetizado
pela máxima “torna-te quem tu és”, emitida por Píndaro e utilizada por Nietzsche em
seu pensamento filosófico. É perceptível também que muitos conceitos prezados por
Nietzsche tem relação íntima com a saúde interna do indivíduo, que se dá tanto pela
qualidade das suas emoções e pensamentos — que se desenrola consequentemente
em ações—, quanto por sua fisiologia. Nietzsche reconhece que existem perspectivas,
proposições e emoções que ou são capazes de roubar a potência do indivíduo, como
também aponta forças que entregam essa potência ao ser. Cabe a nós perceber que
forças seriam essas que nos afastam de nossas potencialidades ou que nos
aproximam delas, e então, conscienciosamente, escolher o que combater ou
alimentar. O tema é complexo e multifacetado e desenvolveremos com calma ao longo
do primeiro capítulo, apresentando inicialmente uma visão mais ampla, para então nos
aprofundarmos e mostrarmos aspectos mais específicos no último.
Já para a filosofia budista o sofrimento é um tema central (podemos dizer até
aspas duplas mesmo ‘O tema central’). Tamanha é a importância que se dá a essa problemática
ou itálico
que o primeiro discurso que Buda proferiu, conhecido como o Discurso de Benares
(ditada no Parque dos Veados), fala sobre as quatro nobre verdades do budismo, que
aspas duplas são: 'Existe sofrimento, existe uma causa, existe um fim para o sofrimento e existe o
e referência
caminho para abandonar o sofrimento'. Portanto toda a filosofia budista tem como
base o problema do sofrimento, enxergando que se ele existe é porque existem razões
para tal e que conhecer essas razões nos dá a possibilidade de desenvolver um
caminho que possa nos libertar dele, ir além de seus fatores condicionantes. No
entanto, através do estudo da obra “Nietzsche e o budismo”, de Antoine Panaioti, nos
deparamos de forma mais aprofundada com a reflexão de que existiria algo por trás
"aquilo que o
gera"
do sofrimento, no caso aquilo que gera, e que esse sim seria o verdadeiro problema
— sendo o sofrimento um produto dessa postura diante da vida. Isso é algo que se
faz perceptível ao seu estudar o budismo por outras óticas, mas essa virada de chave
ocorreu conosco especificamente com a leitura do autor, o que nos levou a questionar
se o sofrimento ainda seria de fato o principal problema do budismo, ou se seria na
verdade “a sede1”, como Panaioti coloca, o desejo que gera apego ou aversão, ou a

1
atenção Panaioti usa esse termo por ser uma das traduções mais comuns para o que na literatura budista
com a chama-se Trishna — ou Tanha, a primeira vem do sânscrito e a segunda do páli —, que diz respeito à
formatação
5

noção de Eu que gera uma delusão2 diante da realidade e que, por sua vez, produz
sofrimento. Como já não estava mais claro se para nenhum dos pensadores o
sofrimento em si era o problema maior, como antes era pensado, mas ou um produto
do verdadeira problema — para o budismo —, ou simplesmente algo natural do qual
não podemos fugir, somente nos tornar mais fortes para lidar com ele e assumir uma
postura mais altiva diante dele — para Nietzsche, optamos por alterar o termo
problema em nosso título para questão, pois de fato é uma questão complexa
discutida de diferentes maneiras por ambas filosofias.
Nossa pesquisa foi realizada utilizando o método comparativo e também o de
pesquisa bibliográfica. O primeiro capítulo foi estruturado em torno de Nietzsche,
buscando realizar uma apresentação mais ampla, tanto de sua história como de certas
visões que dialogam diretamente com nosso tema, demonstrando sua crítica ao tipo
ressentido, sua análise dos diferentes tipos de niilismo — niilismo ativo e niilismo
passivo — e uma introdução ao conceito de amor fati, assim como uma reflexão
acerca de como sua saúde fragilizada ao longo de sua vida pode ter sido um
importante ponto impulsionador para ter desenvolvido suas noções filosóficas, tanto
de diferentes críticas como de visões do que representam o seu “tipo saudável”. No
segundo capítulo nos focamos exclusivamente no budismo, apresentando
inicialmente a trajetória do Buda até pouco após a sua chegada na iluminação, "à"

culminando no discurso de Benares, no parque dos veados; também apresentamos a


fenomenologia que desenvolve acerca do sofrimento e por fim o caminho óctuplo
como proposta basal de superação dos mecanismos que produzem sofrimento —
mental, emocional e físico também. No último capítulo realizamos uma síntese, em
que dialogamos tanto como Nietzsche entrou em contato com o orientalismo asiático
"tem", se
e o budismo, como quais são as visões que têm acerca do budismo, positivas e refere à
Nietzsche
negativas; nessa seção faremos uma análise de 5 obras diferentes de Nietzsche3 no (singular).

insaciabilidade dos desejos humanos e que é identificada nas 4 nobres verdades budistas como a
origem de dukkha, termo que será explicado quando falarmos sobre budismo.
2
O termo delusão é utilizado ao invés de ilusão por se configurar como algo muito mais profundo do
que a ilusão. Tanto é um fenômeno de distorção que ocorre de forma ativa — não surgindo apenas de
erros perceptivos ou cognitivos — e que, no sentido usado, é tanto sustentado de forma exaustiva, que
no caso é a ilusão da noção de um “eu” fixo e duradouro que é criada a partir de um processo de
elaboração, como também por ter caráter patológico, enfraquecendo e tornando as pessoas
disfuncionais e desajustadas. Alguns desses estados debilitantes são: medo, frustração, apreensão,
desapontamento, desespero, ansiedade, crises de identidade, etc. A delusão alimenta o que no
budismo chama-se de dukkha.
3
O anticristo; A vontade de poder; Genealogia da moral; Nascimento da tragédia e Ecce Homo.
6

que diz respeito às referências encontradas sobre o budismo. Concluiremos nossa


pesquisa com a última seção voltada inteiramente para a análise que Panaioti realiza
acerca da ligação entre Nietzsche e o budismo, ponto chave para a compreensão de
diferentes aspectos das duas filosofias e de como interagem entre si. Esta última
seção pode ser considerada o maior ponto de convergência e diálogo — além da
seção que a precede — entre ambas as filosofias, trazendo reflexões e elucidações
melhor: " que Panaioti desenvolve acerca de diferentes pontos, indo desde uma tipologia dos
apresentação", "
estruturação", " tipos saudáveis e doentes de ambas as filosofias como que pontos interagem entre si,
determinação" etc.
chegando mesmo a apresentar que talvez não fossem tão opostas como Nietzsche
acreditava.
Chegamos à percepção de que o ideal de grande saúde budista e o
nietzschiano de fato têm muitos aspectos em comuns, tanto no que percebem como
sendo saudável como também o que seria adoecedor e que, apesar de — é claro —
distintas em diferentes aspectos, ambas as filosofias dialogam bem entre si, até
mesmo mais do que Nietzsche havia percebido. A crítica de Nietzsche sobre o
budismo como tendo natureza de niilismo passivo é visto principalmente como um
engano por Panaioti e ele desenvolve as razões pelas quais as oposições percebidas
nascem principalmente tanto da influência da visão que Schopenhauer tinha do
budismo, como também das limitações nietzschianas vividas em seu tempo —
especificar: as
traduções eram mal
feitas ou escassas? questões como tradução e pelo próprio fato de Nietzsche não ter se aprofundado mais
Ou as duas coisas?
ainda no budismo. A noção de amor fati como um proposição que afirma a vida, em
oposição ao nirvana como uma que nega a vida, é um dos temas que Panaioti também
percebe que foram mal compreendidos e em nossa última seção desenvolveremos a
compreensão melhor desses diferentes aspectos; por essa razão e para concluirmos
de forma que todos esses diferentes pontos estivessem bem apresentados e
amarrados entre si que a última seção é mais longa que o usual. Esse é o trajeto que
trilhamos em nossa pesquisa, apresentamos então nossos resultados.
7

2. NIETZSCHE E A FILOSOFIA DO MARTELO

Buscamos abordar inicialmente o aspecto histórico do desenrolar da vida de


Nietzsche até certo ponto, para então apontar sua relação com o mundo ao seu redor,
desenvolvendo já certos aspectos que ele criticava em seu tempo, seja nas
instituições religiosas, na moral e nas filosofias com que entrou em contato. Na
segunda seção focaremos a princípio na experiência particular de Nietzsche em
relação às suas doenças, para então buscarmos compreender como essas influências
podem ter se desenrolado em sua filosofia, principalmente no desenvolvimento do
conceito de Amor fati. Por fim, na terceira seção abordaremos então algumas das
visões de Nietzsche acerca do que gera o adoecimento tanto coletivo como individual,
analisaremos a noção de niilismo que Nietzsche propõe, assim como a sua relação
com a décadence e o ressentment.

2.1 TRAJETÓRIA HISTÓRICA E CONTEXTO CRÍTICO

O pensador e filólogo Friedrich Wilhelm Nietzsche (1844-1900) nasceu em


Röcken, na Alemanha, no dia 15 de outubro de 1844. Seu pai e avô eram pastores
protestantes e apesar de seu pai ser um homem considerado gentil e de trato afável,
morreu enquanto Nietzsche ainda era bastante jovem, com apenas quatro anos.
Menos de dois anos após a morte de seu pai, seu irmão falece acometido por uma
doença. Por curiosidade pode-se apontar inclusive um registro que Nietzsche faz de
verificar o
uso das
um sonho que teve no qual seu pai aparecia com sua mortalha, vindo de uma tumba,
vírgulas
carregando uma criança nos braços e que após dar uma volta na igreja volta para a
tumba com a criança, que Nietzsche reconhece como sendo seu irmão.4 Ao acordar,
conta o sonho para sua mãe e ainda neste dia seu irmão morre.
Órfão de pai, ficou aos cuidados exclusivos de sua mãe, avó e irmã — esta
última sendo peça importante na apropriação e deturpação do pensamento do filósofo

4
Nietzsche escreve em primeira mão sobre como essa situação o afetou profundamente, assim como
a morte do pai e a mudança de cidade, na qual as crianças a custo se adaptaram. O relato sofrido e
poético pode ser lido ainda na primeira página em: HALÉVY, Daniel. Vida de Frederico Nietzsche.
Tradutor: Jerônimo Monteiro. São Paulo: Assunção, 1947. Disponível em: http://www.consciencia.org.
8

pelo nazismo, posteriormente à sua morte. Enquanto ainda jovem e ainda não
desiludido com o cristianismo, Nietzsche intenciona seguir os passos do falecido
progenitor — algo que tanto seu pai como sua mãe almejavam para ele — e,
concomitantemente, a família, muda-se para Naumburg -na Saxônia-, que cursa tanto "onde"

o ginásio como posteriormente recebe uma bolsa de estudos na renomada escola de


Pforta para preparar-se para o ofício do clero, aos quatorze anos. Durante essa fase
destaca-se nos estudos religiosos, de humanidades e de línguas clássicas, as quais
desenvolveu fluência em latim e grego. Era tido por seus professores como um jovem
brilhante e recebeu o apelido de seus colegas de ‘jovem pastor’. No entanto, esse
interesse pela experiência religiosa cristã e sua axiologia não duraram muito.
Já um pouco mais afastado da teologia, com vinte anos ingressou na
universidade de Bonn para estudar filologia e teologia, em 1864. No entanto, o
afastamento ao cristianismo já começa enquanto ainda adolescente. Johann Figl
aponta em seu artigo “Os primeiros contatos de Nietzsche com o pensamento asiático”
que desde os dezesseis anos já se é possível de encontrar pistas de livros que
influenciaram no processo de quebra de valores ligados ao cristiniamo. O autor
realizou uma análise de uma lista de livros arrolados em “lista de presentes” e é
destacado, entre outros, a obra no que segue à citação feita por Fernando de Moraes
Barros: “por exemplo, uma nota de abril de 1862 cujo título é “Liberdade da Vontade
usar aspas simples
e do Destino” — que consta da chamada Historisch — kritische Gesamtausgabe
(BAW) organizada por H. J. Mette.”5
Na universidade passou a estudar mais aprofundadamente línguas clássicas e
encantou-se com o estudo de filologia, vindo inclusive futuramente a receber uma
cátedra de professor de filologia clássica na universidade de Basileia com 24 anos,
sendo o mais jovem professor a assumir essa cadeira. Isso decorreu bastante também
da influência de um de seus professores com o qual desenvolveu um afeto quase
paternal, Friedrich Ritschl, que ao ler um de seus artigos que havia escrito para uma
sociedade extracurricular — focada no estudo de textos da antiguidade que fazia parte
na universidade — , decidiu publicá-la em seu periódico e, tendo reconhecido o talento
e a capacidade de Nietzsche, o indica para a cadeira de língua e literatura grega —
de Basileia. Este mesmo professor também foi o responsável por indicar a Nietzsche
que aprofundasse seus estudos em filologia, vendo sua capacidade na área,

5
rever DE MORAES BARROS, Fernando. Um Oriente ao oriente do Oriente: a investigação de Johann Figl.
formatação, Cadernos Nietzsche 15, [S. l.], p. pp. 69-81.. 2023.
segundo abnt
9

recomendando — após a finalização de seu curso na universidade de Bonn — que


este se mudasse para Leipzig, assim como seu professor que também estava de
mudança para lá, para concluir seus estudos.
Nietzsche foi para a guerra franco-prussiana em 1870, aonde serviu como
médico (voluntário), mas foi obrigado a afastar-se por ter contraído difteria e disenteria.
Ao voltar, publica após curto período de tempo depois seu primeiro livro — nascido
também da pressão acadêmica imposta, para que pudesse continuar como professor
— , “O Nascimento da tragédia no espírito da música” (1871), obra bastante
perpassada em influência tanto por Wagner como por Schopenhauer, apesar deste
ter sido seu título inicial, posteriormente ficou conhecida mais pela versão mais curta:
O nascimento da tragédia. Apesar de voltar para a sala de aula, Nietzsche vê-se na
necessidade de tirar um ano de descanso da sua carreira universitária em decorrência
de crises constantes de cefaleia, dificuldades em relação à sua voz que estava ficando
mais fraca, e problemas de visão, ainda assim durante este período não deixou de
escrever. Apesar desse ano que tirou para buscar a melhora de seu quadro físico, ao
voltar a lecionar suas cordas vocais estavam tão debilitadas que sua voz tornara-se
quase inaudível, o que levou os alunos da universidade a deixarem de frequentar suas
aulas, anteriormente lotadas. Sua saúde só viria a piorar com o passar dos anos,
forçando o pensador a abdicar do cargo de professor em 1879 quando estava também
quase cego. Após a saída da universidade passou a se dedicar de forma integral à
edição, escrita e publicação de seus livros, sendo a década de 1880 bastante próspera
do ponto de vista literário, assim como a de 1870. Por conta de sua saúde debilitada
começou uma fase da vida que buscava com constância um clima favorável para sua
saúde, assim como para auxiliar no desenvolvimento de seu pensamento. Entre as
cidades as quais se mudou nessa fase de sua vida estavam Veneza, Turim, Nice, Sils-
Maria e Gênova.
Dizer acerca de Nietzsche é descrever um homem que sempre buscava a
afirmação da vida e da potência, Janz 6 em sua biografia de Nietzsche diz em que
contextos ele mesmo se via: “O mundo é um jogo divino e está além do bem e do mal
– nisso tenho como precursores a filosofia vedanta e Heráclito7” , e como o biógrafo

6
JANZ, Curt Pauk. Friedrich Nietzsche : uma biografia, volume I: infância, juventude, os anos em
Basileia. 1. ed. [S. l.]: Vozes, 2021.
7
Paul APUD Nietzsche. Kritische Gesamtausgabe. Org. Giorgio Colli e Mazzino Montinari. Berlim:
Walter de Gruyter, 1967.
10

bem aponta “Nietzsche ignora os paradigmas antigos mais evidentes: a Escola de


Platão, a escola peripatética de Aristóteles, as escolas dos estóicos ou o jardim de
Epicuro”. Entre autores que tiveram grande influência da antiguidade para Nietzsche
está Heráclito e Empédocles, assim como outros pré-socráticos. Em especial nos
importa discorrer sobre Heráclito ao menos brevemente e de como algumas de suas
perspectivas filosóficas encontraram em Nietzsche um rico espaço para acolhimento
e florescimento.
Algumas destas ideias são o seu desenvolvimento do conceito de Devir, da sua
crítica profunda ao moralismo e também da aceitação completa do sofrimento da vida;
De acordo com Jelson Roberto de Oliveira8, Heráclito é apresentado por Nietzsche
como “aquele que ri, aquele que, ao captar a falta de sentido da existência como um
todo e de sua própria vida, se torna portador de uma alegria trágica”, o que difere
bastante da tradição, que enxerga na figura de Heráclito um sujeito obscuro, triste e
pessimista9. Por conta de ser “aquele que primeiro intuiu a característica perspectivista
do mundo através do vislumbre da multiplicidade vital, traduzida pelo conceito de
Não chamá-lo
apenas pelo
devir.”10. Roberto11 nos apresenta que, para Nietzsche, Heráclito seria “o mais verídico
primeiro nome, o
que denota dos filósofos por ter entendido essa manifestação perspectiva de todas as coisas e ter
intimidade
amigável. se alegrado nelas”, a veracidade dita anteriormente, de acordo com Oliveira (2010)
“está em captar essa condição e recusar a identidade do ser como dominação
empobrecedora de sentido sobre a vida.”. Por ter celebrado o trágico da existência em
sua multiplicidade de perspectivas e estar associado à força de afirmação da vida,
ótimo!
assim como um pensador no qual quase todo o seu tempo esteve contra ele, é
possível de se imaginar que Nietzsche contemplasse certo reflexo de si na figura de
Heráclito.
Já em relação ao próprio tempo em que vivia, Nietzsche enxergava grande
décadence e niilismo ao seu redor, em especial na moral judaico-cristã. Esta última
tendo o sacerdote judaico como principal orquestrador da negação da vida e a primeira
— o cristianismo — , não como um movimento contra o instinto judeu, mas sim “sua

8
OLIVEIRA, Jelson Roberto de. Nietzsche e o Heráclito que ri:: Solidão, alegria trágica e devir
inocente. Veritas, Porto Alegre, v. 55, n. p.217-235, ed. 3, 2010. Disponível em:
https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/veritas/article/view/6263. Acesso em: 2 maio 2023.
9
Roberto nos aponta que Nietzsche até mesmo diz em Filosofia na idade trágica dos gregos que
somente aqueles que não se dão por satisfeitos com a sua descrição natural do homem é que o acham
assim.
10
Ibid p.226.
11
Ibid p.227
11

própria consequência, uma inferência mais em sua lógica apavorante.”12, com uma
lógica que nasceu embrionária da judaica mas que aprofundou todos os aspectos de
negação da vida que a outra já apresentava. Um trecho que exemplifica — dentre as
dezenas de diferentes trechos em seus livros que poderia apresentar — essa visão
está em O anticristo, quando aponta o conceito cristão de Deus como “Deus
degenerado em contradição da vida, em vez de ser transfiguração e eterna afirmação
desta! Em Deus a hostilidade declarada à vida, à natureza, à vontade de vida.”13
finalizando descrevendo Em Deus o nada divinizado, a vontade de nada canonizada14.
cuidado com Sua crítica também se estende à moral de sua época como um todo, tanto da
as repetições
Alemanha como da Europa como um todo, que era o contexto que estava inserido.
Tudo que de alguma forma enxergasse como negador da vida seria atacado, e ainda
"observava"? assim, observa cada aspecto que criticava sob diferentes ângulos, sendo capaz de
até mesmo elogiar certas facetas ao mesmo tempo que criticava outras. Em sua obra
Genealogia da Moral (1887) assim como em quase todas as suas outras, elabora forte
sugiro reescrever crítica aos valores vigentes, incluindo da própria filosofia como Kant e Schopenhauer,
da arte — tornando-se O caso Wagner uma de suas críticas à arte de seu tempo mais
conhecidas — e da moral. Nietzsche cria um novo método filosófico e o chama de
genealogia, que é diferente da noção do termo usado por outros pensadores. No
prólogo da Genealogia da Moral (§2, p.9) ele nos apresenta como o problema da moral
o levou para a gestação dessas ideias, ao dizer: “sob que condições o homem
inventou para si os juízos de valor ”bom” e “mau”? e que valor eles têm? Obstruíram
ou promoveram até agora o crescimento do homem?”. Mais a frente ele desenvolve
de forma mais aprofundada essa ideia, dizendo:
Necessitamos de uma crítica dos valores morais, o próprio valor desses
valores deverá ser colocado em questão — para isto é necessário um
rever conhecimento das condições e circunstâncias nas quais nasceram, sob as
formatação.
Não esquecer quais se desenvolveram e se modificaram (moral como consequência, como
do ponto final sintoma, máscara, tartufice, doença, mal entendido; mas também moral como
na citação. causa, medicamento, estimulante, inibição, veneno)

A partir desse pressuposto tanto Nietzsche discorre contra os valores dos


valores que são transcendentes e tidos como além de reflexão ou crítica (como Deus,
Bom, Moral, por exemplo) e os seus defensores como também desenvolve uma
análise crítica em que identifica o nascimento e crescimento/mudança de valores com

12
(A, §24)
13
(A, §18)
14
(A, §18).
12

períodos históricos e desenvolve uma aferição do quanto esses valores são positivos
e/ou negativos e em que circunstâncias. Esse processo de crítica é ao mesmo tempo
o elemento positivo de uma criação, não sendo reação mas caracterizando-se como
ação; sendo a crítica até mesmo uma forma de lutar contra o ressentimento, afirmando
de forma ativa o que se deseja construir e não aceitando aquilo que promove um
adoecimento da vontade. O processo metodológico de Nietzsche pode ser
brevemente introduzido dessa maneira, assim como alguns objetos principais de sua
crítica e sua relação com a realidade que viveu em seu tempo.

2.2 AS MAZELAS FÍSICAS E SUAS CONSEQUÊNCIAS FILOSÓFICAS

Entre as diferentes doenças que Nietzsche teve sabe-se que desde criança
sofrera de enxaqueca com aura15 assim como de certa dificuldade de visão que
aprofundou-se com os anos — chegando a quase tornar-se cego no período que
deixou de efetivamente dar aula na universidade. É útil apontar que apesar de
muito interessante
múltiplas opiniões atribuírem a demência e o aprofundamento da debilidade de
Nietzsche à neurossífilis, estudos tem apontado para a falta de evidências para apoiar
esse diagnóstico controverso. Diferentes visões surgiram com os anos, entre elas a
falta o ponto final de que o diagnóstico de bipolaridade com psicose periódica fossem razões para
grande piora no seu estado mental16 Um artigo17 sugere ser bastante possível e
razoável que Nietzsche também tivesse CADASIL18, por conta de todos os sintomas
de seu adoecimento estarem incluídos no que é gerado por essa doença. Nietzsche
tinha estudos de biologia e realizava automedicação com haxixe e ópio, que em sua
época eram consideradas possíveis tratamento para as debilidades que sofria, além

15
“A aura é definida como manifestações neurológicas bem localizadas, que surge de maneira gradual
(não súbita!), pelo menos uma aura ocorre em um dos lados do corpo, pode iniciar antes ou junto com
a dor de cabeça e possui duração entre 5 a 60 minutos cada aura. A aura visual é a mais frequente,
ocorrendo em cerca de 90% das pessoas que enxaqueca com aura. Suas formas de manifestações
são: pontos pretos (escotomas), pontos brilhantes (cintilações) e imagens em ziguezague (espectros
de fortificação) que surgem em uma parte do campo visual e pouco a pouco vão se espelhando e
crescendo.” Fonte: https://sbcefaleia.com.br/noticias.php?id=351
16
Cybulska, E. M. (2000). "The madness of Nietzsche: a misdiagnosis of the millennium?".
rever abnt Hospital Medicine. 61 571–575
17
Hemelsoet, D.; Hemelsoet, K.; Devreese, D. (March 2008). "The neurological illness of Friedrich
Nietzsche". Acta Neurologica Belgica. 108 (1): 9–16.
18
Cerebral autosomal dominant arteriopathy with subcortical infarcts and leukoencephalopathy.
Traduzida recebe o nome arteriopatia cerebral autossômica dominante com infartos subcorticais e
leucoencefalopatia.
13

de aliviar suas dores; no entanto, é possível que elas tenham piorado seu estado de
saúde com os anos, principalmente pelo uso constante e intenso por vezes.
Pelo fato de Nietzsche desde novo ter tido uma saúde debilitada, como foi
exposto na primeira seção, tendo contraído também novas doenças que se
aprofundaram com o tempo, o filósofo se viu obrigado a ter sempre um cuidado com
seu estilo de vida. Tamanha era a importância que dava para a rotina e os hábitos que
em seu livro Ecce homo, no capítulo Porque sou tão inteligente, parágrafo 10 ele
afirma: “Essas pequenas coisas — alimentação, lazer, clima, distração, toda a
casuística do egoísmo — são incabivelmente mais importantes do que tudo até agora
tornou-se como importante.”. Outro momento, também no Ecce homo que demonstra
esse cuidado — dessa vez de forma prática em relação à si — é a seguinte passagem:
“Minha humanidade é uma contínua superação de mim mesmo. — Mas tenho
necessidade de solidão, quer dizer, recuperação, retorno a mim, respiração de ar livre,
aspa invertida
leve, alegre... “19. Cabe-se a reflexão também de se pensar o quanto seu sofrimento
fisiológico também o impeliu ao desenvolvimento de certos conceitos e ideias
muito importante!
importantes para sua filosofia, entre eles marcadamente o do Amor Fati — do latim,
amor ao destino — e uma valorização do ideal ascético — pode-se notar entretanto
uma diferença entre o ascetismo característico da figura do filósofo e do espírito livre
do ascetismo niilista e decadente que fundamentam o cristão — , este último bem
desenvolvido na terceira parte de sua obra O Anticristo, obra que iremos nos debruçar
no terceiro capítulo de grande importância para se entender como Nietzsche observa
o budismo e o ideal ascético. Nietzsche inclusive tem uma noção de como o seu
sofrimento e suas doenças o deixaram mais forte, como Panaioti bem cita “Devo
minha saúde superior a ela [minha doença], uma saúde que se torna mais forte graças
a tudo que não a elimina!”20, vale ressaltar no entanto que a saúde superior dita nesse
contexto não se refere tanto à fisiológica mas muito mais a uma saúde mental e ética,
uma forma de enxergar a vida e lidar com ela. Outro aspecto que deve-se abordar é
como a visão de Nietzsche acerca da diferenciação saúde/doença também se difere
ao tradicional da ciência, quando diz em VP §47: “Tanto o mal pode ser considerado
exagero, desarmonia, desproporção quanto o bem pode ser uma dieta protetora
contra o perigo do exagero, da desarmonia e da desproporção.”. ele não considera a

19
(EH, Porque sou tão sábio, §8)
20
Nietzsche APUD Panaioti. NW, § 1.
14

saúde e a doença como essencialmente diferente, nem tampouco a doença física


como algo que em si é necessariamente ruim também, mas citando Nietzsche a partir
de Claude Bernard : “o exagero, a desproporção, a desarmonia dos fenômenos
normais constituem o estado doentio”21.
Ao longo de sua filosofia desenvolve a ideia de Grande saúde, intimamente
ligada ao seu aspecto de construção de novos valores, para “homens novos, nós que
não temos nome, que somos difíceis de compreender, precursores de um futuro
incerto”22. Por enxergar a necessidade de criar-se tipos mais saudáveis, capazes de
promover essa mudança, “para um novo fim, de um novo meio, quero dizer de uma
nova saúde, de uma saúde mais vigorosa, mais aguda, mais obstinada, mais intrépida
e mais alegre do que foi até agora qualquer outra saúde.”23. Note-se que Nietzsche
compreende essa saúde como algo que está sempre em processo de constante
transformação, naturalizando tanto o declínio quanto sua ascensão como aspectos
inerentes à sua construção e mudança. Essa forma de pensar fica claro nesse famoso
trecho ainda no mesmo parágrafo dos anteriores: “Da grande saúde — de uma saúde
que não somente se possui, mas que se deve também se conquistar sem cessar,
porquanto sem cessar é sacrificada e precisa ser sacrificada!”
É um engano considerar que para Nietzsche o valor da vida seria medido pelo
prazer capaz de se advir para com ela. Em fato ele considera que tanto o predomínio
do sofrimento sobre o prazer como o hedonismo são doutrinas precursoras do
niilismo, visto não desenvolverem uma vontade, intenção ou sentido último senão a
busca do prazer ou o oposto.24 Como ele aponta: “um predomínio de dor seria possível
incrível
padronizar citações
e, apesar disso, uma vontade potente, um dizer-sim à vida; um ter-necessidade desse
predomínio.” (VP, p.42). O oposto também ocorre, com as afirmações como “a vida
não vale a pena” ou “resignação” como um modo de pensar fraco e sentimental.
Apesar de inicialmente Nietzsche apresentar a saída para o ressentimento com
o desenvolvimento do ideal do ubermensch25, identificada entre 1882 até início de
verificar se não falta a "trema" no u.

21
(VP, §47)
22
(A Gaia ciência, §382)
23
(IBID, §382)
24
(VP, p.41)
25
Que não iremos aprofundar em nosso texto, por conta da dimensão e da complexidade do conceito.
Estamos apresentando somente como um ponto histórico no pensamento de Nietzsche que depois se
desenvolverá aonde nos atemos ao desenvolvimento de nossa pesquisa, no caso: Amor Fati.
15

188826, Paschoal27 apresenta que o autor desenvolve também outras saídas, a


segunda saída possível sendo, na interpretação de Paschoal: “na forma como os tipos
elevados de homem lidam com o ressentimento, seja numa etiqueta de ordenamento
e de oligarquia dos impulsos.”28, e pela ideia de uma higiene do espírito. Um exemplo
de como essa higiene do espírito ocorre está expressa em GM, II, §1, que diz: “logo
se vê que não poderia haver felicidade, jovialidade, esperança, orgulho, presente, sem
o esquecimento.” Mas posteriormente ocorre uma virada do pensamento de
Nietzsche, como Ishikawa remete à pesquisa de Paschoal, no qual nos últimos
escritos (Ecce homo e O anticristo) “os contornos de uma utopia do além-do-homem
interessante
cede lugar a uma filosofia voltada eminentemente para o presente.”29, e nesse
processo é reavaliado a importância do conceito de Amor Fati, tornando-se
essencialmente voltada para o presente — não como um ideal futuro a ser
conquistado. O Amor Fati pode ser visto muito mais como um antídoto ao
ressentimento do que ao sofrimento — físico — por si só, mas a mudança de visão e
de como se lidar com o sofrimento e as dificuldades da vida é o que efetiva uma
diminuição do sofrimento fisiopsicológico, visto que para Nietzsche, as dificuldades
fazem parte da própria vida, considerando ser mais importante ter como lidar com elas
do que necessariamente fugir de suas agruras e de situações de conflito. Uma saúde
que é capaz de diagnosticar o que não está saudável e de forma afirmativa legislar-
se sobre si, dando fim do que provoca o adoecimento e fortalecendo o que promove
a vitalidade. Nesse contexto, o cultivo de um amor fati, de ser capaz de aceitar as
piores dificuldades da vida e não criar ressentimento dela ou do mundo é algo muito
valioso, a própria capacidade de buscar uma forma de vida em que não se alimentasse
o ressentimento era um dos aspectos que mais tinha em boa quista sobre o budismo. budismo!

No final ainda do §10 de Ecce Homo ele afirma:


“Minha fórmula para a grandeza no homem é amor fati: nada querer diferente,
seja para trás, seja para frente, seja em toda a eternidade. Não apenas
suportar o necessário, menos ainda ocultá-lo -todo idealismo é mendacidade
ante o necessário - mas amá-lo…”

Diante de múltiplas circunstâncias que poderiam promover grande revolta,


como o fato de sua filosofia e pensamentos terem sido ignorado pelos seus amigos

26
(ISHIKAWA,2016)
27
PASCHOAL, Antonio Edmilson. Nietzsche e o Ressentimento. São Paulo: Humanitas, 2015.
Coleção nietzsche em Perspectiva.
28
(ISHIKAWA, p.144)
29
(IBID, p.144)
16

ou de não ter tido nenhum reconhecimento na Alemanha em dez anos, em o Caso


Wagner, §4, ele expõe “Eu mesmo nunca sofri por tudo isso; o necessário não me
fere; amor fati é minha natureza mais íntima”. Nisso se expressa o desejo de
Nietzsche, quando em VP, §54 ele diz: “Ensino o não a tudo o que debilita – que
massa!
esgota. Ensino o sim a tudo o que fortalece, que acumula força, que justifica o
sentimento de força”, seu ideal de lutar contra o que esgota é o que se apresenta em
seu plano de desenvolver a ideia de “Grande Saúde”. Deleuze enriquece e nos ajuda
a entender melhor essa lógica afirmativa do pensamento de Nietzsche quando diz na
citação
dentro de
15° seção do 1° capítulo, §2: ““Nova maneira de pensar” significa um pensamento
citação
requer aspas afirmativo, um pensamento que afirma a vida e a vontade da vida, um pensamento
simples
que expulsa enfim todo o negativo. Acreditar na inocência do futuro e do passado,
acreditar no eterno retorno.”30
Apresentaremos em nosso último capítulo a última peça que falta em nosso
exato!
é um quebra-cabeça, que constitui um ponto de conexão com o Amor Fati e que
quebra-
cabeça! consideramos, assim como Panaioti, que é fundamental para se compreender como
se opera a libertação do ressentimento enquanto atravessado pelo Amor Fati e posto
em prática com um mecanismo conceitual poderoso que Nietzsche desenvolve: o
conceito de “Eterno Retorno”.

2.3 NIILISMO, RESSENTIMENTO E DECADÊNCIA

Assim como abordaremos no próximo capítulo, a visão de Buda sobre o


sofrimento, consideramos importante entregar uma seção voltada para certa
compreensão ao menos de fatores que adoecem e retiram do indivíduo as suas forças
e capacidade de afirmar suas forças no mundo e na vida, comecemos pelo niilismo.
suprimir esse "e" O conceito de niilismo (vem de nihil, do latim, vazio) e não é em essência algo negativo
ou ruim para Nietzsche. Assim como sobre tantos diferentes tópicos, o filósofo busca
observar de forma complexa e multifacetada cada aspecto que lhe capta a atenção, e
com o niilismo não foi diferente. A coletânea de fragmentos de Nietzsche, intitulada
Vontade de poder — ainda que não tenha sido organizada pelo filósofo, tendo ocorrido
após sua morte, inclusive — traz entre os primeiros fragmentos por ele escritos, esse

30
rever abnt (DELEUZE, p.19)
17

que significa niilismo (§2): “Que significa niilismo? – Que os valores supremos
desvalorizem-se. Falta o fim; falta a resposta ao “Por quê?””, os grandes valores
tornam-se todos metafísicos, ideias como Deus, Moral, Verdade, e que geram
problemas quando são tomadas a priori como verdadeiras — algo que Nietzsche ataca
bastante em sua filosofia. A verdade acaba estando sempre além do homem e, pior,
sendo superior ao homem. O problema no niilismo ocorre quando ele passa a negar
a vida. Em VP (§22) Nietzsche expõe a natureza ambígua do niilismo já de dois tipos:
“A) Niilismo como sinal de poder incrementado do espírito: como niilismo ativo. B)
Niilismo como decadência e recuo do poder do espírito: o niilismo passivo.”. O niilismo
passivo pode ser considerado como o niilismo cansado, ele não tem força para atacar,
ele está fatigado, esgotado31, ele prefere desejar o nada ao nada desejar (um além
fictício é preferível para aqueles que não aguentam a crise de valores da vida). Já o
niilismo ativo, apesar de nascer da mesma fonte, de perceber a insuficiência das
crenças, as ficções dos valores que são criadas pelo humano para entregar sentido,
torna-se liberto e afirma sua liberdade, sua Vontade de Poder, ela cria novos valores
por desenvolver uma capacidade de valorar a realidade. “Seu máximo de força
relativa, ele o alcança como força violenta, de destruição: como niilismo ativo.” (VP.
§23).
No niilismo passivo o nada adquire valor, busca-se o nada, uma realidade
idealizada que não encontra fundamento na realidade, enquanto a realidade torna-se
algo pecaminoso ou impuro, um dos problemas que nascem disso é, como Panaioti
descreve: “Não somente o valor do mundo é negado e tido como inútil ou sem valor
como inclusive é carregado de um valor moral negativo. “tendo sido idealizado o
conceito de ‘natureza’ como conceito antitético a ‘deus’”32 o que, em decorrência, faz
com que “‘natural’ tinha de ser a palavra para ‘repreensível’”. (A, §15). É de grande
valia apresentar o outro personagem dessa trama que perpassa por toda a história,
bela frase!
por fazer parte da natureza da existência: o devir. Este — ou isto — é uma realidade
incontestável, a mudança que abarca tudo e todos, que transforma, cria e destrói. É
uma constante dura e assim como ela o sofrimento faz parte inexorável da existência,
no entanto muitos são aqueles que não aguentam esse peso da realidade como vem.
Em decorrência disso, uma das formas do estado psicológico que o niilismo produz é

31
(VP. §23)
32
(PANAIOTI, p, 31)
18

a de condenar todo esse mundo do devir e inventar um mundo que fica além do
mesmo como verdadeiro mundo33. Essa negação é sintoma de um adoecimento da
vontade, como ele diz “Onde, de alguma forma, declina a vontade de poder, há sempre
importante!
um retrocesso fisiológico também, uma décadence", a própria deidade (cristã para seu
contexto) é mutilada em seus impulsos e virtudes mais viris34. Durante esse processo
vai-se gerando a decadência e aprofundando o ressentimento, mas todos esses
aspectos estão interligados de tal forma que é insuficiente a simples afirmação de
dizer que o ressentimento surgiria da decadência e essa por sua vez do niilismo; é lindo!

mais próximo da visão nietzscheana a perspectiva que elas se alimentam e participam


de uma mesma lógica.
O sofrimento causado pelo devir, quando não feito algo com ele, pode tornar
verificar o
francês, acho os indivíduos ressentidos, e esse ressentment já é por si só razão geradora para a
que falta o "i"
negação da realidade pela criação de valores supremos transcendentes. Mas em
relação à décadence ela já aparece como algo que sempre está presente em maior
ou menor instância ao longo da história humana, e que ela por si só não deveria ser
valorada como algo ruim, mas como consequência necessária da vida35, como um fantástico

produto da sociedade, que seria em essência os aspectos doentes dela, como ele diz
“Nenhuma sociedade é livre para permanecer jovem. Mesmo na sua melhor força ela
tem que formar lixo e detritos.36”. O grande problema ocorre quando a décadence
começa a se desenvolver para partes saudáveis37, gerando um adoecimento geral. A
décadence está intimamente associada a um estado de cansaço em diferentes
instâncias, como Panaiot (2018, p.33) escreve:
A décadence é uma forma de fraqueza física e emocional que se manifesta
em primeiro lugar como cansaço e irritabilidade. “a preponderância de
sentimentos de desagrado sobre sentimentos de prazer.” (A, §15) cansados
e irritados, os décadents estão sempre AMARGURADOS com a vida”

Esse cansaço gera esses sintomas e é recorrente em seus textos tardios a


conexão entre fadiga existencial e décadence, em Ecce homo Nietzsche refere-se aos
décadents como “os exaustos”38. “O ressentiment de Nietzsche refere-se a essa
propensão geral a uma agressividade vingativa, autodefensiva, que na maioria de nós,

33
(VP. §12.1)
34
(A, §17)
35
(VP, §40)
36
(VP, §40)
37
(VP, §41)
38
(PANAIOTI APUD Nietzsche, EH, §7)
19

acompanha estados como doença e exaustão.”39 É o principal efeito da décadence.


cuidado com
as repetições Existem múltiplas descrições em diferentes qualidades (moral, fisiológica, psicológica,
artística, filosófica, etc) que Nietzsche (2011, p.44, §42) descreve ao dissecar os
efeitos da décadence, algumas das quais podemos citar para ilustrar a influência:
Consequências da décadence: o vício – o caráter vicioso; a doença – o
caráter doentio; o crime – a criminalidade; o celibato – a esterilidade; a histeria
– as fraquezas da vontade; o alcoolismo; o pessimismo; o anarquismo; a
libertinagem (também a espiritual ). O difamador, o sabotador, o que duvida,
o destruidor.

Percebe-se nesse trecho que a análise de Nietzsche aparece tanto em um nível


individual, observando as características fisiológicas como as geradoras de
determinados tipos de conduta, como também analisa em um contexto mais amplo,
social. Ele procede e aponta também algumas das consequências no estado
fisiológico do corpo, o que é útil de mostrarmos pois nossa pesquisa é mais voltada
para a ideia em fato de saúde e a preocupação com a saúde do corpo é visível em
Nietzsche (2011, p.45, §43):

As doenças, antes de tudo as doenças dos nervos e da cabeça, são sinais de


que falta a força defensiva à natureza forte; precisamente a favor disso
pronuncia-se a irritabilidade, de modo que prazer e desprazer tornam-se
problemas de primeiro plano.

É possível realizar outras abordagens em Nietzsche, como por exemplo trazer


a questão da Vontade, assim como o que produz uma vontade fraca ou uma vontade
forte, úteis para se compreender o esgotamento; também se poderia abordar sobre a
hierarquia de forças e da noção de Nietzsche que não temos uma única
“personalidade”, ou que nosso ego não é uma unidade, como se pensa
comumentemente ainda nos dias de hoje — excetuando certas escolas psicológicas
— , se aproximando mais da noção de que existem várias máscaras e forças que
disputam internamente e externamente poder, fazendo parte do próprio jogo de forças
da vida. Nietzsche tem uma riqueza de visões que possibilitariam desenvolver muito
mais esse recorte temático do que gera a doença e o enfraquecimento, no entanto,
optamos por seguir esse caminho de análise tendo em vista o que seria mais
enriquecedor para nossa pesquisa, para sermos capazes de abordar algumas das
ideias mais importantes que norteiam o arcabouço intelectual e filosófico nietzschiano

39
(PANAIOTI, 2018, p.34)
20

e que ainda esteja de acordo com o tamanho e a capacidade que nossa pesquisa é
capaz de comportar.
parágrafo duplo!

Intencionamos com esse capítulo fazer a maior parte da exposição ligada à


Nietzsche em relação à própria filosofia no que tange aos fatores adoecedores
(niilismo, ressentment, décadence) e do que se poderia ser possível de se fazer a
respeito disso, elaborando o conceito de Amor Fati como peça fundamental para evitar
o ressentment e a geração de males psíquicos, assim como demonstramos a
importância do cuidado com o corpo, para Nietzsche, uma dietética capaz de alimentar
bons pensamentos, capaz de gerar mais força no indivíduo. Como dito no final da
segunda seção, diferentes aspectos que poderíamos ter abordado da filosofia
nietzscheana decidimos deixar de fora para não complexificar em demasia, sem deixar
de fora no entanto, aspectos fundamentais para a compreensão de como esses
diferentes aspectos da filosofia nietzscheana se relacionam.
21

3. Buda e a filosofia da iluminação

Intencionamos abordar inicialmente a trajetória de Siddharta Gautama — Buda


Shakyamuni — até a sua chegada à iluminação, sendo o título da primeira seção uma
brincadeira com seu nascimento na riqueza, para mudança chegando ao ascetismo
extremo e quase morte e então a um dos pontos base de sua filosofia — O Caminho
do meio —, assim como observar qual foi o conteúdo de sua iluminação — o que ele
descobriu ao chegar nesse estado —, e o que realiza a partir disso, sendo o Sermão
de Benares o seu primeiro discurso público em que expõe “As quatro nobres
verdades”, fundamental para compreensão da ótica budista sobre o sofrimento. Na
segunda seção abordaremos a fenomenologia que ele desenvolve acerca do
sofrimento, expondo questões como “As três marcas da existência” e os diferentes
tipos de sofrimento, assim como suas causas. A partir disso apresentaremos por fim
a estrutura que Buda vai desenvolver como via da libertação do sofrimento, conhecido
como “O Caminho óctuplo” .

3.1 Do tudo ao nada ao caminho do meio

Siddharta Gautama foi o fundador do budismo, e é conhecido como o Buda,


ainda que não seja o único. Buda significa, de forma sintética: ‘aquele que despertou’;
"estendida"?
no entanto a versão extendida poderia ser traduzida mais ou menos como “aquele que
despertou do sono da ignorância", outra interpretação seria “aquele que se iluminou”.
Buda nasceu no seio de um clã da casta guerreira com o nome de Shakya, vivendo
em meio a luxos para os padrões de sua época. Depois da iluminação ficou conhecido
também como o Buda Shakyamuni “O sábio do clã dos shakya”, essa distinção se faz
presente pelo fato de vários outros budas terem existido tanto antes como depois de
Siddharta, apesar deste fato não ser tão conhecido por aqueles que não estejam
dentro da tradição budista40.

40
A literatura pali Theravada (a linhagem mais antiga de budismo) tem um texto com o nome de
Buddhavamsa que descreve a vida do Buda (Siddharta) e mais 27 budas que o precederam assim
como um que ainda estaria por vir, conhecido como Maitreya. Vale a consideração de que existe certa
especulação dentro do hinduismo de que O Buda poderia ser uma encarnação -um avatar- de Vishnu,
deidade védica responsável pela sustentação do universo. Avatares seriam personificações de forças
cósmicas, deidades que vêm à Terra em momentos de caos e destruição para ajudar a humanidade e
22

Seu pai fora Shuddoddana, e sua mãe Mayadevi, mulher refinada mas que
morreu pouco tempo após o nascimento de Siddharta, ficando então aos cuidados de
sua tia, Mahaprajapati. Conta-se uma história de que antes do príncipe nascer, um
grande vidente de sua época, Asita, chegou no palácio de Shuddoddana e disse a
seus pais que ele estava predestinado a ter um império, fosse material ou espiritual
— mas não os dois. Os pais ficaram muito felizes e trataram de cercá-lo de prazeres
materiais — visto seus pai quererem que tivesse apego pelas benécias produzidas
pelo poder e luxo, podendo assim o afastar do caminho espiritual — assim como da
melhor educação possível, tendo recebido instrução marcial, filosófica e religiosa, já
que nasceu dentro da cultura e religiosidade hindu. Se casou aos 16 anos com a
princesa Yashodhara. No entanto, toda essa formação não impediu que o jovem
príncipe cultivasse a reflexão sobre a vida e suas problemáticas, nascidas
principalmente de um episódio conhecido historicamente como “As 4 visões”, que
iremos explicitar agora, junto de uma importante ressalva.
O ponto chave de despertar da atenção de Buda para as dificuldades inerentes
à vida são mostrados em uma passagem de sua vida com 29 anos — no entanto
existem algumas versões diferentes sobre esse momento, assim como diferentes
pontos da própria história do Buda. Uma das versões mais conhecidas é a de que aos
29 anos, sem nunca ter conhecido as doenças, a morte ou a miséria, Buda sai um dia
para passear e o portão do palácio que vivia estava aberto. Ele sai para explorar e
conhecer os arredores quando se depara com um velho cansado, que pede ajuda
para chegar em casa pois teme não conseguir a tempo. Isso o faz reconhecer a
inevitabilidade do envelhecimento. O segundo acontecimento é que encontra um
homem que estava em pele e osso, absolutamente enfraquecido em decorrência de
uma doença que roubara-lhe toda vitalidade; conhece assim como as doenças
poderiam ser debilitantes. O terceiro encontro foi se deparar com um grupo de
parentes carregando o cadáver de um ente nos ombros sendo levado para a
cremação. Reconheceu o enlutamento e ficou profundamente comovido por suas
dores. Ao voltar para o palácio e conversar com seu cocheiro41 Channa, este relata
que a morte é um fato que vem para todos os seres vivos, incluindo sua família e

guiar para caminhos melhores. Essa visão de Buda como avatar de Vishnu no entanto é negada
veementemente dentro das tradições do budismo.
41
outras versões dizem que o próprio cocheiro o levou para andar fora do palácio a mando do
príncipe .
23

esposa. O último encontro que tem é com um asceta recluso de olhar distante, sereno
e independente; ao conversar com Channa este o diz que era alguém que abandonou
o lar e tudo que tinha para buscar uma vida de pureza, assim como alguma resposta
para o enigma da vida. Este último encontro o comoveu e o fez ficar reflexivo, por
vislumbrar que existe uma possibilidade além da aceitação passiva das humilhações
causadas pelo sofrimento humano nas suas mais diferentes formas. No entanto, no
momento que Siddharta retorna para o palácio é recebido com a notícia de que sua
esposa estava grávida. Diz-se que nesse momento afirmou pesarosamente: “Um
fonte?
grilhão foi posto em mim.”.
Após ponderação profunda pelos próximos meses, decide por fim abandonar a
família, esposa, reino e filho42 — que havia nascido pouco tempo antes — para buscar
o seu caminho, considerando que todos os prazeres que tem seriam roubados dele
uma hora ou outra pela própria transitoriedade da vida, ele buscou algo além da
transitoriedade, que conseguisse saciar sua busca por respostas, sobre o que fazer
dito por quem? afinal, como lidar com seu sofrimento. É dito que Siddharta procurou diferentes
mestres e treinou durante um tempo com cada um deles, em que aprendia diferentes
técnicas, principalmente ligadas ao treino de meditação. O primeiro chamava-se Alara
Kalama e lhe ensinou uma meditação chamada akimchanyayatana, “esfera ou estado
de não-objetificação” e o segundo professor chamava-se Udraka Ramaputra, que lhe
ensinou naivasamjnanasamjnayatana, “o estado ou esfera da nem percepção nem
não percepção”. No entanto, chegava um momento que ele já se via em igual maestria
em suas práticas em relação a seus professores e percebia que ainda assim elas não
eram capazes de ofertar as respostas para o enigma do sofrimento que buscava,
então partia em frente.
É útil salientar, para critérios acadêmicos de pesquisa, que é bastante difícil
determinar aquilo que, na imensa literatura búdica, está verdadeiramente ligado à
existência histórica do Buda43, isso se deve, como Dennis Gira comenta em seu livro
aqui, não “Budismo, história e doutrina” (VOZES, 1992): “tal problema vem do fato de que os
precisa
indicar a
editora
autores dos relatos que aparecem nas obras canônicas não eram simplesmente
historiadores” (p.28), e isso acontece pois o intuito principal não era de relatar a vida
verificar abnt

42
Dera a seu filho o nome Rahula, que significava “Amarras”, “impedimento”, ou “Pequeno demônio”.
43
Um texto que aborda bem essas diferenças de visões em relação à vida do Buda é o texto In
Search of the real buddha, escrito pelo estudioso Peter Harvey. Disponível para leitura em:
https://www.lionsroar.com/in-search-of-the-real-buddha/
24

factual do Buda mas sim conservar o que era considerado por seus mestres como a
sua doutrina autêntica. Por essa razão, continua: “não hesitaram muito em acrescentar
elementos historicamente pouco fundados, mente a-histórica, mais compreensível e
mais aceitável a seus contemporâneos.” (p.28). Outra razão para isso se deve ao fato
de ser considerado, pelo cânone budista, a vida histórica de Buda como a ponta do
iceberg de um oceano de vidas vividas no Samsara44 (ciclo que prende os seres à
roda/ciclo reencarnatória), e que se ele despertou isso se deve em grande parte —
até maior, possivelmente — em relação à essas vidas que não sabemos nada, do
que à última que seria, por assim dizer, a provação final para sua finalmente conquista
da iluminação. Por conta disso, existe uma mitologia criada em torno da figura do
Buda, quer antes como depois da sua iluminação.
Após a despedida de seus antigos professores, instalou-se em Uruvilva, perto
do rio Nairanjana, tendo como companhia cinco ascetas, que juntos realizavam
práticas ascéticas extremas, como passar longos períodos de tempo sem respirar e,
posteriormente, semanas ou meses sem comer. Neste período Siddharta quase
morreu, desmaiando no chão. Foi encontrado por uma camponesa que o salvou
alimentando-o com uma tigela de mingau de arroz enquanto passava por ali.
Percebendo que aquele caminho estava provocando uma automortificação do corpo
acabou concluindo que nem o ascetismo extremo e a busca excessiva por controle,
nem a excessiva licenciosidade que se entrega aos prazeres da carne eram o caminho
que iriam levá-lo à iluminação. A partir dessa reflexão desenvolve a ideia do Caminho
do Meio, que prega um equilíbrio entre o cuidado da prática individual — não se
encaminhando para nenhum extremo — como tanto o cuidado individual como
coletivo. No entanto existem outros dois extremos mais sutis que Buda critica: o
eternalismo (crença de que a alma tem um propósito e vive para sempre) e o niilismo
(extremo ceticismo em que se nega o valor e o sentido de tudo). A partir da ideia do
caminho do meio Buda vai desenvolver o nobre caminho óctuplo, que iremos abordar
mais a frente em nossa pesquisa.
Diz-se que Buda afastou-se dos ascetas e, cruzando a margem do rio, sentou-
se sob uma árvore e decidiu que não sairia de lá sem ter atingido a iluminação. Lá

44
Uma explicação mais detalhada: “Samsara – existência cíclica, é o ciclo ininterrupto de mortes e
renascimentos ao qual os seres sencientes estão presos, caracterizado pelo contínuo estado de
sofrimento e insatisfação. Os ensinamentos budistas são elaborados para ensinar os seres como se
libertarem desse ciclo vicioso de sofrimento e alcançarem o Nirvana e a Iluminação” disponível
em:.https://centrodedharma.ngalso.org/2015/09/15/glossario-termos-expressoes-budismo/
25

teria meditado continuamente, sem dormir nem comer, por um período de quarenta e
nove dias45. Ao se aproximar da iluminação teria sido interpelado por Mara, um
demônio que é a representação mitológica hindu do Desejo (Kama) e que, para os
budistas, personifica as visões não-budistas incorretas. Esse acontecimento é narrado
no Sutra do Esforço (Padhana Sutta), no cânone Pali, e relata que Mara tentou
Siddharta de todas as formas para impedi-lo de alcançar a iluminação46, sem no
entanto alcançar sucesso. Quando chegou à iluminação o conteúdo principal que
Buda entrou em contato foi com aquilo que ficou conhecido como “A Lei da originação
dependente”, tradução do sânscrito pratitya samutpada, ou, “coisas que avançam
juntas”.; Em Khuddaka-nikaya47, seção 1.1, se diz:

“Havendo isso, há aquilo; quando isto se origina, aquilo se origina. Sendo assim, havendo
a ignorância, há a ação; havendo a ação, há a consciência; havendo a consciência, há o
nome-e-forma; havendo o nome-e-forma, há os seis órgãos de percepção; havendo os
seis órgãos de percepção, há o contato;havendo o contato, há a percepção; havendo a
percepção, há o apego; havendo o apego; há o desejo; havendo o desejo, há a existência;
havendo a existência, há o nascimento e havendo o nascimento, há a velhice, a morte, a
preocupação, a tristeza, o sofrimento, o pesar e o desespero. Assim, pois, surge o
sofrimento.”48

Após essas reflexões e intuições, Buda ainda se questionou se deveria tentar


apresentar essas ideias para o mundo, tendo ciência da dificuldade de recebimento
delas assim como da própria natureza complexa desses ensinamentos. Decidiu por
fim compartilhar, e assim cruzou o rio para encaminhar-se às proximidades de
Varanasi — conhecida também como Benares —, aonde seus antigos colegas
ascetas ainda praticavam. Estes viriam a se tornar seus primeiros discípulos após
ouvir sua lógica e ideias, ainda que inicialmente de forma relutante. Esta primeira

45
Algumas tradições enxergam como esse período tendo sido somente de 8 dias.
46
Para compreensão das diferentes classificações de Mara, tanto dentro do contexto hindu quanto
budista recomendamos a leitura do texto do Dr. Alexander Berzin, que sintetiza bem em seu texto “As
Forças demoníacas e os quatro maras”:
“Shakyamuni especificou os exércitos de Mara da seguinte forma: desejo sensual, descontentamento,
fome, sede, anseio, preguiça, medo, indecisão, inquietação, desejo pelas coisas transitórias da vida
(ganhos, elogios, honra e fama) e elogiar a si próprio enquanto critica os outros. O Buda percebeu que,
para superar tudo isso, ele teria que parar de identificar-se como os pensamentos sobre essas coisas.”
(BERZIN, Alexander. As Forças Demoníacas: Os Quatro Maras. Studybuddhism. Disponível em:
<https://studybuddhism.com/pt/estudos-avancados/lam-rim/samsara-e-nirvana/as-forcas-demoniacas-
os-quatro-maras>. Acesso em 30/03/2023).
47
O Khuddaka Nikāya é o último dentre os cinco Nikāyas — coleções —, no Sutta Pitaka, que é uma
das "três cestas" que compõem o Pali Tipitaka, sendo escrituras sagradas da tradição do budismo
Theravada e que, em teoria, exprimem a mais próxima da fala original do Buda, por ser a mais antiga.
48
Tradução colhida do livro “Textos budistas e zen-budistas”, organizado e escrito por GONÇALVES,
Ricado M. Editora Cultrix. A edição que usamos não tem a data de publicação, por ser um texto antigo.
achei uma versão de 1995. Verificar se não é a mesma que você está utilizando.
26

exposição ao público ficou conhecida como Sermão de Benares49, realizada no


parque dos veados, até hoje este parque ainda é cuidado e pode ser visitado. Nesse
diálogo, Buda expôs As 4 nobres verdades, que encerraremos nossa seção
descrevendo sobre, assim como compreendendo porque é um ponto importante para
seguirmos nossa pesquisa. Cabe a ressalva rápida antes de as expô-las de que elas
não contradizem nem tampouco são diferentes da “Gênese condicionada” dita
anteriormente, mas são ensinadas antes da idéia da Gênese como proposta
pedagógica e metodológica de Buda para ajudar em uma recepção mais fácil e
compreensível do que estava propondo e dizendo.
Essas verdades recebem a alcunha “nobre” com o sentido de que somente os
nobres seriam capazes de compreender e contemplar essas verdades, visto os
ignorantes ainda serem incapazes50. A Primeira nobre verdade, Dukkha, afirma a
verdade que existe sofrimento na vida — bastante inclusive —, tanto dos grandes tipos
como dos menores, isso se dá pela própria natureza da vida, por ser impermanente e
imperfeita. Apesar de convencionalmente ser encontrado em muitas traduções o
termo Dukkha como “sofrimento”, é mais correto o entendimento de Dukkha como
“insatisfação”, e a compreensão de que o sofrimento nasce a partir da insatisfação,
que pode ser tanto grande ou pequena, curta ou demorada, tal como o sofrimento —
por isso o engano muitas vezes—, a primeira vista pode parecer a mesma coisa, mas
em fato a insatisfação é anterior ao sofrimento — na lógica budista. A segunda nobre
verdade, Samudaya, expressa acerca da origem do sofrimento, que é o desejo de que
as coisas sejam de determinada maneira. A terceira nobre verdade, Nirodha, diz que
o sofrimento pode ser eliminado quando ocorre o desapego do desejo. Por fim Magga
é a verdade que afirma que há um caminho para a libertação do sofrimento, e esse
caminho é apresentado por Buda justamente como sendo O Nobre Caminho Óctuplo.
Há duas reflexões finais que gostaríamos de fazer para enriquecer nossa visão
sobre as quatro nobres verdades. A primeira é a perspectiva que Buda adverte para
que as pessoas não se apeguem às religiões na esperança de que elas ajudem
automaticamente a superar o sofrimento, pois somente o próprio indivíduo é capaz de
libertar-se; nada no mundo é capaz de fazer isso por ninguém, nem as doutrinas, nem

49
Saccavibhangasutta é o discurso que explicita as 4 nobres verdades. É ideal para uma breve
introdução ao tema.
50
Essa definição é encontrada no Shastra Yogachara-bhumi (Tratado sobre os Estágios da Prática
da Ioga).
autor, ano e página?
27

as observâncias religiosas — nem nenhum salvador, seja por exemplo Cristo ou até
mesmo Buda —; elas não são fatores essenciais da libertação. A segunda
consideração é a de que a possibilidade de alcançar a bem-aventurança — isso seria
chegar no Nirvana para os budistas — pode ser alcançada enquanto ainda estamos
vivos aqui na Terra, diferente das religiões que promovem uma ideia de recompensa
somente amparados em um ideal de pós-vida.

3.2 FENOMENOLOGIA DO SOFRIMENTO

Quando falamos de sofrimento no budismo, é importante ressaltar que Buda


deve ser visto mais como um médico e terapeuta do que simplesmente um pensador
teórico. Sua mensagem objetivava aliviar o sofrimento humano, por isso é voltada para
um ideal distinto de grande saúde, isto é, o nirvana. Buda era muito pragmático
rever essa sentença
também em suas falas buscavam se adequar de forma pragmática ao seu público
dependendo do grau de maturidade intelectual e ético. Como diz Panaioti (2017, p.
25) “Para ele, o “o quê?” parece ter sido bem menos relevante que o “como?” e “para
que finalidade?”. Dito isto, para compreender melhor sobre a natureza do sofrimento
para o budismo, é importante tanto endereçarmos a ideia das 3 marcas da existência,
assim como os tipos diferentes e formas que o sofrimento pode ocorrer. Dentre as três
marcas51 da existência, a primeira é Annica, e apresenta que tudo é impermanente e
está sujeito à mudança. Já a segunda, Dukkha, apresenta que uma das marcas
impressas em todos os seres sencientes é a do sofrimento, quer psicológico ou físico.
A terceira e última marca é Anata e conclui: como tudo está em constante
transformação, nada possui uma essência fixa. Quando pensamos no sofrimento já
existe um alívio no próprio reconhecimento de que ele também possui um fim, pois
suas condições de existência também são passageiras — lembrar das quatro nobres
verdades — , e nisso está uma semente, ou pista, de como libertar-se do apego —
um dos principais aspectos geradores de sofrimento dentre todos.

51
Essas marcas -ou qualidades básicas- recebem esse nome pois perpassam todos os seres capazes
de sentir algo e entrelaçam-se entre si de forma que nenhuma está afastada da outra mas todas
dialogam em conjunto, assim como ocorrem de várias formas e instâncias diferentes.
28

Reconhecer essas verdades no íntimo pode auxiliar a libertar a mente dos três
grandes venenos — nome que a tradição mahayana dá52 —, kleshas53 que geram
grande sofrimento, as quais são: Ilusão — do sânscrito moha —, Apego — raga — e
Aversão — dvesha. Cada um desses três termos pode receber diferentes traduções.
As mais conhecidas para Ilusão são: ignorância, confusão e ilusão e perplexidade. Em
relação ao apego: desejo, ganância e sensualidade. E por fim para Aversão são: ódio,
raiva e hostilidade. Apresentamos essas diferentes traduções com a intenção de
auxiliar a compreender melhor as nuances de cada um dessas ideias, e apesar de ser
até mesmo mais fácil de encontrar — caso realize uma pesquisa simples por “três
venenos budistas”, por exemplo — o uso desses outros termos, consideramos mais
fácil e pedagógico, apresentá-los dessa maneira, diminuindo assim a chance de serem
perpassados por um certo senso confuso de moral. Eles são representados54
simbolicamente por três animais, sendo o galo para a ganância/apego, a cobra para
aversão/ódio e o porco para ignorância/ilusão.
Existem diferentes qualidades e fontes de sofrimento na visão budista, no
entanto o aspecto mais basal visto nos sutras budistas é que existe o sofrimento
interno e o externo. Os sofrimentos internos são aqueles que consideramos como
parte de nós, como emoções pesadas — ansiedade, medo, ciúme, raiva, etc — e a
dor física. Já os sofrimentos externos são aqueles que parecem vir de fora, como frio,
Cuidado
com essas chuva, seca, catástrofes naturais, guerras, crimes, etc. Se é dito que não se é possível
expressões.
Quem diz? de se evitar nenhum desses dois tipos. Além dessa distinção de sofrimento existem
outras, com uma delas sendo uma divisão dos oito tipos de sofrimento, a que todos
os seres sencientes estão sujeitos, e uma organização desses oito tipos em três
categorias.
Os oito sofrimentos são: 1. Nascimento. Além dos possíveis perigos durante
uma gestação, também sofremos a dor e o medo do parto, assim como somos postos
em um mundo confuso e cheio de riscos. 2. Envelhecimento. Se não morrermos
enquanto jovens teremos de enfrentar o processo de deterioração do corpo e da
mente causado pelo envelhecimento. 3. Doença. Todos em maior ou medida

52
Na Theravada se chama “as três raízes prejudiciais”.
53
Na tradição budista -assim como anteriores, tal como a Yoga- o termo kleshas refere-se a estados
mentais patológicos que nos levam a agir de forma negativa e que geram sofrimento em nós e aos
seres ao nosso redor. São os próprios obstáculos mentais que atrapalham a paz interna assim como
uma forma de pensar e agir dotada de maior sabedoria e lucidez.
54
Disponibilizamos uma foto dessa representação, está presente no apêndice, sendo a 2° imagem. massa!
29

adoecem, usualmente várias vezes ao longo da vida. A doença fustiga, humilha e


machuca o ser. 4. Morte. Tudo que nasce um dia morre. Mesmo uma vida perfeita não
pode evitar a fatalidade da morte — no máximo adiar. Ela pode chegar de forma
inesperada e rápida e também de forma lenta e dolorosa. O medo — as dúvidas do
como e do quando — da morte também geram sofrimento. 5. Perda de um amor.
Podemos sofrer por nos afastarmos de quem nós amamos, ainda que possamos
reencontrá-los. Também sofremos quando morrem aqueles que amamos e quando
nos deixam ou nosso desejo de amor não é retribuído. 6. Ser odiado. O ódio é presente
e sistêmico no mundo; é difícil não ser odiado em algum ponto da vida e não sabemos
os efeitos que alguém pode nos produzir de mal por nos odiar. 7. Desejo não realizado.
Muitos dos nossos desejos não se realizam, nos causando sofrimento emocional. Ao
mesmo tempo, quando se realizam não quer dizer que irão nos satisfazer, pois é da
natureza do desejo sempre querer mais. Muitas vezes nossa busca pela realização
de nossos desejos pode machucar a nós mesmos ou aos outros sem percebermos.
Cabe dizer no entanto que o problema mais do que somente a simples ideia de
“desejo” é em fato o apego ao desejo que gera sofrimento, de diferentes maneiras. 8.
Os cinco skandhas. Também chamados de “cinco agregados”, são: forma, sensação,
percepção, atividade e consciência. São os “tijolos” da existência consciente e são
tidos como uma fonte ilimitada de combustível a gerar dor e sofrimento, principalmente
ao longo do samsara e da sucessão de vidas.
Esses oito sofrimentos são divididos em três categorias. O primeiro é o
sofrimento do sofrimento, esse é o sofrimento inerente, aquele a qual estamos sujeitos
pelo fato de estarmos vivos. O segundo é o sofrimento trazido pela mudança, aquele
que está latente e presente mesmo nos momentos mais felizes, por exemplo:
momentos alegres chegam ao fim, se desfrutamos de um objeto ele irá quebrar em
algum momento, as pessoas morrem, tudo se deteriora com o tempo, etc. E o terceiro
é o sofrimento que a tudo permeia. O autor Chögyam Trungpa descreve essa divisão
em seu livro The Truth of Suffering and the Path of Liberation (Boston, MA: Shambhala
Publications, 2009), enxergando aqueles que se encaixam na categoria do sofrimento
do sofrimento são os que são ocasionados pelo nascimento, pelo envelhecimento,
pela doença, morte e por entrar em contato com o que não desejamos. No sofrimento
da mudança ele enquadra o sofrimento que nasce de não sermos capazes de
assegurar o que desejamos, assim como não conseguirmos o que queremos. E o
sofrimento inerente expõe como sendo os cinco agregados.
melhor usar "sete" por
extenso, para confundir
30
como sendo 7.1

Existem múltiplas causas fundamentais do sofrimento, Buda lista 7. 1. O Eu


não está em perfeita harmonia com o mundo material. É necessário sempre esforço
para encontrarmos conforto e um lugar seguro e de descanso nesse mundo,
raramente o mundo se apresenta como gostaríamos que fosse. 2. O Eu não está em
perfeita harmonia com as outras pessoas. Muitas vezes somos obrigados a estarmos
perto de quem não gostamos ou quem não gosta de nós, gerando atritos, e
constantemente somos afastados daqueles que amamos por diferentes razões. 3. O
Eu não está em perfeita harmonia com o corpo. O corpo muitas vezes adoece, assim
como enfraquece pelo envelhecimento, isso é algo que o “eu” tem pouco controle
sobre, no máximo buscando desenvolver a saúde. 4. O Eu não está em perfeita
harmonia com a mente. A mente é capaz de gerar os maiores problemas do mundo
dentro de si e de estar intranquila mesmo em meio a um ambiente tranquilo, Muitas ponto final.

vezes ela deseja de forma complexa e conflitante e a atividade mental iludida é a fonte
de todo o nosso sofrimento em última instância — a forma como observamos e
lidamos com a vida. 5. O Eu não está em perfeita harmonia com os seus desejos. O
Autocontrole é bastante difícil e requer esforço e disciplina, comprometimento. Deixar
os desejos tomarem de conta de nós facilita que possamos sofrer mais ainda com o
passar do tempo. É necessário ao menos um cultivo ou uma relação saudável com o
desejo. 6. Eu não está em perfeita harmonia com as suas opiniões. “Quando nossas
crenças não estão alinhadas com a verdade, causamos a nós próprios infindáveis
problemas, pois teremos a tendência de repetir os mesmos erros muitas vezes.”55. 7.
O Eu não está em perfeita harmonia com a natureza. As forças da natureza não estão
sob nosso controle e podem nos fazer sofrer, individualmente e coletivamente.
Buda apresenta tudo isso não com a intenção de nos desesperar, mas sim para
apresentar de forma clara as diferentes razões que geram sofrimento em nós, até
mesmo as mais sutis. Como um médico, precisa apresentar os sintomas e as causas
de uma doença para que o doente entenda o que é preciso fazer para se curar de sua
enfermidade. Ele percebia que “a libertação só é possível com o desencanto pelas
coisas do mundo, que por sua vez passa necessariamente pela contemplação da
impermanência daquelas. Esta é a condição inegociável da libertação56.”, todos os
rever!

55
Capítulo 2 do livro Budismo Significados Profundos, Venerável Mestre Hsing Yün,
Escrituras Editora, 2ª edição revisada e ampliada, São Paulo, dezembro de 2011. APUD Templo Zulai
(Disponível em: https://www.templozulai.org.br/quatro-nobres-verdades)
56
“Majjhima Nikāya: The middle length discourses of the Buddha (MN)”. Trans. Bhikkhu Ñānamoli and
Bhikkhu Bodhi. Sommerville: Wisdom Publications, 1995. APUD BARROS, Clodomir, 2016.
31

desejos possuem uma fonte em comum, a ignorância (avidya, do sânscrito) e que


“para o budismo, tanto a sensibilidade quanto os objetos são problemáticos enquanto
não se compreender que os dois são, também, vazios e interdependentes” (BARROS,
p.107). Clodomir nos aponta em seu excelente artigo57 que também a própria dor é
vazia e interdependente, ao mesmo tempo que fundamental, necessária, por ser ela
que em certa medida produz o despertar do ser humano para a problemática
existencial. Como ele afirma: “Sem o sofrimento não haveria o samsara, sem o
samsara, não haveria o nirvana.”, mostrando que o problema último vai além da dor e
fala sobre a ignorância. É sobre as condições e o caminho de libertação da ignorância
que nós buscaremos sintetizar a seguir na nossa próxima seção.

3.3 O CAMINHO ÓCTUPLO COMO VIA DA LIBERTAÇÃO

reescrever É dado a proposta desenvolvida por Buda como realização do caminho do meio
para a obtenção da iluminação é o nome de Caminho Óctuplo, e tem esse nome por
ser constituída de oito aspectos que dialogam entre si, mas que não necessitam ser
seguidos hierarquicamente como uma sequência de passos, mas que podem ser
trabalhados de acordo com as necessidades de cada pessoa. Eles são tidos como
princípios, não ações per si. Se a natureza do sofrimento e as suas condições são a
primeira nobre verdade e a segunda nobre verdade, a verdade de que se é possível
se libertar do sofrimento e qual o caminho para isso é o que iremos desenvolver nessa
última seção, ligadas à terceira e à quarta nobres verdades.
As oito partes que compõem o caminho óctuplo são: 1. Visão correta. 2.
Intenção correta. 3. Fala correta. 4. Ação correta. 5. Meio de vida correto. 6. Esforço
correto. 7. Atenção correta. 8. Concentração correta. Os dois primeiros passos
trabalham a sabedoria, que sem ela o resto do caminho não tem muito propósito. O
terceiro, quarto e quinto aspectos representam diretrizes morais e são a ética na
prática, sendo útil ressaltarmos que “A moralidade budista não está relacionada a
regras que devem ser obedecidas, mas a condições que facilitem o caminho para a
iluminação.” (THOMPSON et al. 2016, p. 141). Por fim, o sexto, sétimo e oitavo passo
interligam-se e descrevem práticas e recomendações acerca do treinamento da mente

57
“O caminho e as suas etapas: as quatro nobres verdades (catvaryāryasatyaṇi), o nobre óctuplo
caminho (āryāṣṭāṇgikamarga) e os estágios dos buscadores” (kriterion, Belo Horizonte, nº 133,
Abr./2016, p. 105-125), este artigo será nosso principal comentador para a seção seguinte.
32

e do cultivo da mentalidade correta para que a pessoa se torne capaz de atingir o


estado de nirvana. O caminho óctuplo configura-se como uma cartografia da busca,
um mapa e uma bússola do caminho. Mas como é bem apontado (BARROS, 2016,
p.111):
“Abraçar com confiança o caminho exige a prévia reflexão sobre sua
fundamentação teórica, que somente pode ser efetivamente demonstrada na
sua dinâmica de materialização. A eficácia do método repousa na tese, que
só se demonstra no trilhar do caminho.”

Percebemos como a teoria e a prática budista se fundem e se alimentam


continuamente, construindo força sinergicamente e nunca estando desconectadas
uma da outra. Como lembra Barros (2016), o objetivo é o pacificar das paixões,
aqueles afetos que nublam as reais potencialidades humanas de sabedoria (prajña) e
compaixão (karuna).
O primeiro aspecto, visão correta está interligado com o segundo, e em um
nível mais direto refere-se à uma educação do olhar, um cuidado reflexivo e uma
pedagogia do olhar, capaz de detectar a verdadeira natureza da realidade
(impermanente, interdependente, vazia e não substância), o que gera um cuidado
seletivo e uma paciência prudente ao estímulo sensível. Esta paciência cria uma
distância entre afecção e resposta, assim como funciona como mecanismo de
detecção da dor, da correta percepção da sua origem e de como tratá-la. Nesse
contexto, a visão correta e as quatro nobres verdades são realidades
interdependentes, inextricáveis e até mesmo intercambiáveis (Barros, 2016), podendo
chegar a serem consideradas sinônimas. Já o segundo aspecto, vontade correta,
pode-se referir a um convite de reflexão à quais são as verdadeiras motivações e
dedicação da prática, assim como também relembra o cuidado no cultivo de uma
práxis amorosa e compassiva, com a sempre rememoração da interdependência
sistêmica de todos os seres e fenômenos. Importante também ressaltar que disso o
próprio Buda assume sua visão neste conjunto de corolários explicitados em Majihima
Nikaya58: renúncia, não violência e não crueldade.
Entrando no segundo grupo, os das virtudes — fala correta, ação correta e vida
correta — , podemos começar falando da vida correta, que assume também
diferentes perspectivas. A primeira é a apologia de buda à vida na solidão das matas
e montanhas, sendo uma relação da correção da vida com a vida de ascetismo; no

58
(MN 126. (2009, pp. 997-1001). APUD BARROS)
33

entanto Buda também enfatiza outros aspectos, em que podemos dictar “nossa vida
será purificada, limpa, ao ar livre, moderada e imaculada, e não apontaremos os erros
das vidas alheias59!”, ele também retrata e explicita o oposto, a vida incorreta, dizendo
que são “Esquemas, complôs, sugerir, desprezar, buscar o ganho pelo ganho.60”, a
tradição aponta que um modo de vida incompatível é aquele que se ocupe de: matar
animais, venda de álcool, drogas ou armas. O quarto caminho é o da ação correta,
apresenta-se no aspecto positivo — recomendativo — abrangendo tudo que fazemos
com o corpo61, como cultivo de bons hábitos de alimentação e sono, exercício e
repousos adequados e tudo o mais que se relacionado ao corpo, como hábitos de
trabalho. Já no aspecto negativo envolve seguir os cinco preceitos62 do budismo que
são: 1. Não matar. 2. Não roubar. 3. Não mentir (esse é mais associado ao caminho
da fala correta). 4. Não ter má conduta sexual. 5. Não ingerir substâncias
embriagantes que causam negligência. Todos esses preceitos visam impedir práticas
que geram sofrimento geradas a partir do desequilíbrio e que afastam da senda o
praticante, cada um com suas múltiplas razões. A fala correta aponta um cuidado com
o uso da linguagem, compreendendo que deve-se evitar “a fala inverídica, a mentira;
a fala maliciosa; a fala ofensiva e a fofoca.63”, cada uma sendo capaz de gerar grande
sofrimento para si e para os outros. A recomendação é de quatro diretrizes que pode-
se seguir no que diz respeito à fala: a primeira é sobre só falar a verdade; a segunda
é ser compassivo ao falar; a terceira é ser encorajador e a quarta é se utilizar da
linguagem de forma a que a fala seja prestativa, para ajudar e ser útil ao próximo.
Entramos no último grupo, com os aspectos referentes à concentração e o
treinamento mental: o esforço correto, a consciência correta e a meditação
correta. A prática da meditação é indissociável do budismo, e deve ser compreendido
este último grupo a partir do nexo entre meditação-consciência e esforço (BARROS,
2016). Cumpre-se perceber que, assim como os outros dois agrupamentos, neste a
interdependência também ocorre, sendo, de acordo com Barros: Concentração e
consciência. Elas alimentam-se mutuamente, amparadas e sustentadas, ambas, pelo
esforço constante. A prática da meditação e da consciência focada acalma o corpo e

59
(MN 39.7. (2009, p.363) APUD BARROS)
60
(MN 117.29. (2009, p. 938). APUD BARROS)
61
O pensamento correto diz respeito ao funcionamento da mente, a Fala Correta ao uso correto da
linguagem e a ação correta às ações ligadas ao corpo. São diferentes instâncias, todas
complementares.
62
Também podem ser chamados de 5 comportamentos morais ou 5 princípios.
63
(MN 117.29. (2009, p. 938). APUD Barros)
34

a mente, permitindo então “a análise daqueles aspectos teóricos mais importantes: os


agregados que informam a experiência, as quatro nobres verdades, a natureza
transitória do corpo e de seus elementos, a insubstancialidade etc.” (BARROS, 2016).
O esforço correto aponta que a pessoa deve buscar conscientizar-se de seus
pensamentos negativos e buscar substituí-los por pensamentos positivos
equivalentes, um exemplo disso é quando, no início do Dhammapada64, Buda diz que
aqueles que se ressentem das ações dos outros jamais se livrarão do ódio, então “A
ideia “esforço correto” inclui a intenção consciente de romper o ciclo de mágoa e
reatividade.65” . O sétimo passo é sobre a atenção correta, que envolve o
direcionamento da atenção no que é valoroso, quer seja a natureza búdica inerente a
si, para encontrar nela segurança na prática, quer a contemplação de certas verdades
para que a mente não seja obscurecida pelos venenos mentais (kleshas) ditos
anteriormente66. Contido nessa parte está o treinamento da mente para não se distrair
com facilidade e então estar mais consciente do momento presente. Existem quatro
fundações da consciência que se busca desenvolver a atenção para atingir o nirvana:
“a consciência do corpo, a consciência dos sentidos, a consciência da mente e a
consciência dos elementos constitutivos da experiência67”. Ou seja, o foco (atenção)
bem direcionado, com o devido esforço consistente da prática leva o indivíduo a
desenvolver sua capacidade de concentração, a concentração correta é a
capacidade de atingir um profundo estado de meditação, conhecido como samadhi68,
com a meditação profunda a consciência torna-se progressivamente cada vez mais
lúcida, desenvolvendo sabedoria maior e, promovendo assim uma forma de agir cada
vez mais saudável e capaz de atingir o estado de grande saúde e libertação para o
budismo, no caso o nirvana.

Iniciar
parágrafo
O leitor deve ter percebido até o momento que o budismo se utiliza bastante de listas,
com recuo
de 1,25 de três, quatro, cinco, oito componentes, essa escolha metodológica parte da intenção cuidado!

de facilitar a memorização, assim como a organização dos ensinamentos — quer do

64
Em tradução literal seria “versos do dhamma” e é um dos livros base mais fundamentais do
budismo Theravada.
65
(THOMPSON et al. 2016, p. 141)
66
Cobiça, raiva e ignorância.
67
(MN 10.3. (2009, p. 145). APUD BARROS, 2016, p.119)
68
Um estado de consciência pura, livre de pensamentos conturbados mas ainda assim tranquila e
concentrada, atenta. Pode ser descrito como um estado de não-dualidade em que o eu e o universo
são experienciados como um.
35

Buda como de mestres posteriores. Uma problemática que infelizmente nos


deparamos foi a dificuldade de encontrar textos tradicionais traduzidos para o
português, por conta de como são longos e difíceis de citar, optamos por citá-los a
partir de comentadores especializados com muita leitura do cânone budista, como
Barros, que na última seção é a nossa principal fonte argumentativa, por conseguir
sintetizar em seu artigo com bastante clareza o caminho proposto por Buda.
Consideramos que conseguimos sintetizar as problemáticas geradoras de sofrimento,
assim como as soluções ofertadas no budismo para tal, apesar de infelizmente não
pudermos nos debruçar mais profundamente sobre cada tópico presente no tema, o
que iria extrapolar o escopo de nossa pesquisa.

4. NIETZSCHE E O BUDISMO: CONCORDÂNCIAS, DISCORDÂNCIAS E PONTOS


DE CONTATO. Os novos capítulos devem ser dispostos em uma página própria, ou seja, deveria começar na página 36.

Visamos a partir desse capítulo primeiramente apresentar como Nietzsche


entrou em contato com a filosofia oriental, para então um vitral que Nietzsche expõe
em diferentes obras acerca do budismo, pra isso usaremos cinco obras, que são: O
Anticristo; Vontade de poder; Ecce homo; O nascimento da tragédia e Genealogia da
Moral, realizando uma síntese sobre diferentes tópicos que ele aborda, positivos e
negativos, acerca do budismo, como a dietética budista, seu combate ao
ressentimento e a forma como o budismo aparece bastante como uma contraposição
a valores cristãos e europeus. Concluiremos desenvolvendo os principais pontos de
interseção que existem entre a filosofia de Nietzsche e a filosofia budista, em primazia
o conceito de Grande Saúde e como essa noção perpassa os dois sistemas; para
esse momento utilizaremos principalmente como auxílio para estruturar e demonstrar
esse pensamento a obra Nietzsche e a filosofia budista, de Antoine Panaioti.. corrigir o ponto
final

4.1 O ENCONTRO DE NIETZSCHE COM O ORIENTALISMO

Como nosso estudo foca na relação que Nietzsche desenvolve de algum modo
cuidado
com o budismo, quer concordante ou discordante, convêm também já desenvolver com
repetições
algumas noções acerca de como o pensamento oriental chegou até o filósofo alemão
“destruidor de ídolos”; ainda que somente no capítulo 3 nos aprofundemos de fato nos
aspectos envolvidos, é enriquecedor para nossa pesquisa algumas reflexões. Entre
melhor seria: "terceiro capítulo"
36

elas a grande influência que Nietzsche sofreu durante sua fase acadêmica em Pforta,
por diferentes professores, entre eles: August Steinhart e Karl August Koberstein.
Em relação à Koberstein, é sabido que este “possuía um conhecimento
detalhado das diversas influências da poesia oriental e que tais relações foram, ao
menos, mencionadas nas suas aulas.69” e na investigação de Johann Figl70 é dito que
Nietzsche faz referências tanto ao Mahâbhârata71 como também ao Râmâyana72 em
uma monografia que ele desenvolve em Língua Alemã a partir de um cotejo com os
Nibelungos. Torna-se perceptível como o pensador alemão não somente tinha contato
com diferentes obras bastante valiosas do pensamento oriental como também
recebeu influência de professores para o aprofundamento e inspiração de contato. Um
cf. ABNT
dos principais aspectos do artigo de Johann, citado por MORAES, é a de que “A ampla
erudição dos professores de Pforta constituía, a ser assim, não apenas a melhor das
preparações para o estudo da filologia, mas também estava apta a comunicar a
Nietzsche uma certa noção das idéias orientais” (Ibid., p. 92). No que diz respeito às
Este trecho principais fontes budologistas que Nietzsche entrou em contato e se valeu para
deveria
estar em desenvolver ideias sobre o budismo, Panaioti nos direciona: “C.F.Koeppen, Die
nota de
rodapé Religion des Buddhas, Berlim: F Schneider, 1857-9, e H. Oldenberg, Buddha: sein
Leben, seine Lhere, seine Gemeinde, Berlim: W.Hertz, 1881.” (PANAIOTI73, P.271).
Cumpre também o seu papel expor que para Nietzsche o Orientalismo foi visto
e utilizado de forma ativa como ponto de contraste com o cristianismo — talvez até

69
(MORAES. P.75).
70
O artigo em questão chama-se “Os primeiros contatos de Nietzsche com o pensamento asiático” e
é a base que o artigo “Um Oriente ao oriente do Oriente”, de Fernando de Moraes Barros, se
desenvolve.
71
O Mahâbhârata é o maior épico do mundo, contendo a monumental quantidade de mais de 74 mil
versos escritos em sânscrito com um total de mais de 1,8 milhões de palavras. Escrito entre IV e III
A.C. É visto por alguns autores como a obra de maior importância religiosa para o hinduísmo e
estabelece os métodos de desenvolvimento espiritual conhecidos como karma, jñana e bhakti. É uma
verdadeira obra de desenvolvimento psico-espiritual e trata de diversos aspectos acerca do
desenvolvimento da evolução humana como um todo, entre eles a liberação (Moksha) do ciclo do
renascimento (Samsara).
72
O nome Rāmāyāna significa “Feitos de Rāma”. Este épico, baseado em fatos históricos, foi narrado
pelo sábio Vālmiki e transcrito ao alfabeto devanāgarī entre os séculos IV e III a.C. Narra as
aventuras de Rāma, a sétima encarnação de Viṣṇu, para resgatar sua esposa Sītā das mãos do
demônio Rāvaṇa, seu raptor. Sītā e Rāma são o paradigma perfeito dos amantes que superam todas
as dificuldades para que o amor e a bondade triunfem. O Rāmāyāna é um dos textos mais
significativos da literatura asiática. Uma boa fonte de leitura introdutória do Rāmāyāna é desenvolvido
por Pedro Kupfer e pode ser lido a partir desse link: https://www.yoga.pro.br/o-ramayana-numa-casca-
de-noz/
73
Outras obras indologistas que também teve acesso incluem “J. Wackernagel, Über den Ursprung
des Brahmanismus, Basel: H. Richter, 1877; M. Müller, Beiträge zur vergleichenden Mythologie und
Ethnologie, Leipzig: Englermann, 1879; e H. Kern, Der Buddhismus und seine Geschichte in Indien,
Leipzig: O. Schulze, 1882.” (IBID, P.271)
37

por isso Zaratustra apareça como uma representação pessoal de Nietzsche de um


sábio oriental. Um grande exemplo dessa diferença e de como Nietzsche a enxerga é
quando escreve sobre o Código de Manu. Em uma carta a Heinrich Köselitz, escrita
em 31 de maio de 1888, Nietzsche revela ter encontrado e feito a leitura de uma antiga
obra hindu intitulada de Código de Manu (Manavadharmasastra é o título original em
sânscrito). Discorre sobre múltiplos tópicos apesar de ter como ponto central o diálogo
sobre o Dharma (pode ser entendido como a lei cósmica que governa todo o universo
e a natureza). No entanto o que interessa a Nietzsche é como ela pode ser utilizada
como contraponto à moral cristã e ocidental, como MORAES (p.70) afirma: “É a fim
de denunciar a normalização global de valores imposta pelos artigos de fé da
moralidade cristã e opor-se declaradamente à literatura escriturística que o filósofo
lança mão do conjunto hindu de leis.”
Para concluir, além da influência desses catedráticos é de absoluta importância
denotar a influência de Schopenhauer para Nietzsche em seu período inicial de
produção filosófica74 , ainda que futuramente o autor tenha rompido e então criticado
veementemente75 diferentes visões de Schopenhauer, chegando a descrevê-lo como
um niilista76. Schopenhauer também foi de considerável relevância no que tange à
influência do budismo para Nietzsche, pois a doutrina filosófica desenvolvida por
Sidarta Gautama é um dos pontos mais importantes de influência para o pensamento
e a visão de Schopenhauer em sua filosofia que, entre seus temas principais também
está a questão do Sofrimento.
Por quem? Schopenhauer é tido como o primeiro pensador ocidental a fundamentar seu
sistema filosófico em uma síntese entre princípios orientais e ocidentais. Sua filosofia
é caracterizada como pessimista, “na medida que afirma o mundo empírico como o
pior dos mundos possíveis, ou seja, um lugar onde o que é permanente é sofrimento
e felicidade, ou alegria, são estados efêmeros.”77 Diz Schopenhauer que a essência

74
Foi inclusive Schopenhauer o principal influenciador que levou Nietzsche a mudar seu foco de
filólogo para desenvolver-se como filósofo.
75
No entanto Panaioti afirma que Schopenhauer nunca deixou de, ao seu modo, estar no fundo da
mente de Nietzsche. “Como lembra Berman de maneira acertada, “Schopenhauer se manteve como a
principal influência filosófica de Nietzsche, mesmo quando se voltou contra ele e Wagner [...] talvez,
Schipenhauer foi mais importante para Neitzsche como ‘bom inimigo’ do que como mentor ou aliado”
(“Schopenhauer and Nietzsche”, p.187)” (PANAIOTI, P,272)
76
Um exemplo dessa crítica pode ser encontrado no §17 de VP, com o título [Em que medida o
niilismo schopenhaueriano ainda é sempre a consequência do mesmo ideal que foi criado pelo teísmo
cristão.]
77
(SCHOPENHAUER, A. O Mundo Como Vontade e Como Representação. Tradução de Jair Lopes
Barbosa. São Paulo: editora UNESP, 2005. p. 23. APUD SILVA Faria, Daniele. P.15)
38

metafísica do universo tem a característica de desejar incessantemente e querer


infinitamente78, ele chama essa força de Vontade, e em sua sistematização a razão
está subordinada à vontade cega e indeterminada. A felicidade nesse sistema é
impossível de se acreditar como sendo um estado duradouro, sendo a vontade um

sugiro
querer incessante. A contraparte desse efeito é que, quando um desejo é satisfeito há
reescrever,
para maior felicidade breve, e não satisfeito, sofrimento e quando nada quer, tédio. O
clareza do
argumento desinteresse e a contemplação são práticas que podem trazer alguma paz desse
tormento que é a vida. A saída é o ascetismo, a libertação completa do jugo da
vontade, “a partir da negação e da supressão de toda volição, o santo se desprende
do mundo sensível e de todo sofrimento” (SILVA, Daniele, P.19).
No entanto, enquanto para Schopenhauer, a falta de finalidade da natureza é
insuportável pois ou há o tédio ou o sofrimento, para Nietzsche essa visão ele vai
chamar de “niilismo passivo” e enxerga Schopenhauer como um homem ressentido;
se para Schopenhauer a vontade é causa de imensa dor, Nietzsche se apropria do
conceito e o transforma em um conceito múltiplo, enxergando-a não como estando
fora do mundo mas sim que se realiza na relação, como uma efetivação real; não uma
vontade única mas sim sempre plural, sendo o mundo uma luta constante entre esse
movimento de tensões entre diferentes forças e vontades. Imaginando a vontade de
potência como a potência que quer a si mesma, uma vontade de Nietzsche está reescrever

sempre procurando afirmar a vida por ela mesma, mesmo com seu sofrimento
intrínseco, para ele a grande saúde se anuncia nos valores criados para e enquanto
se enfrentam o niilismo e o sofrimento, transformando o modo anterior de niilismo
citado em um "niilismo ativo”, buscando a confiança no devir e desenvolvendo o ideal
de grande saúde dito na seção anterior. Quanto mais o homem é capaz de afirmar o
que lhe acontece, mais forte se torna para encarar seus desafios que vivencia.

4.2 A VISÃO DO BUDISMO PARA NIETZSCHE EM SUAS OBRAS.

Abordamos anteriormente tanto algumas visões importantes de Nietzsche


acerca de problemáticas que degeneram a fisiologia e a vitalidade humana em

78
SILVA Faria, Daniele. Sobre a influência do pensamento oriental na metafísica da vontade de
Arthur Schopenhauer – um estudo introdutório. P.15. Disponível em
https://www.marilia.unesp.br/Home/RevistasEletronicas/FILOGENESE/Daniele%20da%20Silva%20Fa
ria%20-%202%20_14-24_.pdf
39

diferentes níveis (psíquica, emocional, física) e algumas propostas de cura para esses
males, como também abordamos o conjunto de visões budistas que diz referência de
forma clara às razões pelas quais o budismo enxerga que o sofrimento se introduz na
experiência humana e como é alimentado também por nossas posturas diante dos
acontecimentos, assim como os antídotos que Buda desenvolve para libertar os
indivíduos desses venenos mentais. Buscaremos agora demonstrar a forma como
Nietzsche enxergava o budismo a partir de diferentes obras que desenvolve.
O budismo é um tópico que aparece em diferentes trechos — usualmente
curtos — da obra de Nietzsche, e é importante apontar que o filósofo não tinha
interesse em estudar o budismo para se tornar um historiador dessa religião, mas central

entrava em contato com seu aspecto filosófico para buscar reconhecer o que poderia
ter de valiosa em sua forma de pensar, assim como as marcas que observa que são
caracterizadas por ainda carregarem visões niilistas acerca da vida. Como
apresentado na última seção do primeiro capítulo, Nietzsche tinha certa leitura do
budismo, assim como de visões orientais de forma bem mais ampla do que era comum
para sua época. Percebe-se que o orientalismo aparece muitas vezes em sua obra
como forma de contraste aos valores europeus do tempo que estava inserido, valores
estes tanto morais, filosóficos e religiosos. Para demonstrar de forma mais clara como
o budismo é um tópico que ao menos é pincelado em múltiplas ocasiões, apesar de
nunca tão aprofundado a análise como no O anticristo, traremos a quantidade de
vezes que aparece em alguns de seus livros, nos utilizando do índice remissivo
contido nos livros da editora Companhia de bolso, com a tradução de Paulo César de
gostei!
Souza: em Genealogia da Moral é abordado seis vezes, no Nascimento da tragédia
quatro vezes, em O Anticristo seis vezes, em Ecce Homo três vezes. No entanto tem
um livro que dentre esses analisados — não analisamos o resto da obra de Nietzsche,
somente essas que sabíamos que poderíamos encontrar referencial acerca do
budismo — supera em grande medida todos os outros é Vontade de Poder79.
Somando todos os usos para os termos “Buda”, “Budismo” e “Budista(s)” encontramos
nossa! um total de quarenta e uma80 referências, inseridas e espalhadas em grande medida

79
Para esse livro usamos a edição da editora Contraponto, com a tradução original do alemão de
Marcos Sinésio Pereira Fernandes e Francisco José Dias de Moraes, publicada em 2011. Nela não há
índice remissivo (assim como no Ecce homo) mas realizamos a busca pelo mecanismo de pesquisa no
PDF.
80
Apesar de encontrarmos mais referências acerca da temática budista no livro VP, elas aparecem
mais vezes como formas a contrapor pensamentos europeu e discorre sobre aspectos distintos. Já no
40

até o §240 — com somente 6 dessas referências ocorrendo no resto do livro.


Buscaremos então realizar um apanhado central dessas ideias espalhadas ao longo
dessas obras para delimitar as diferentes formas como Nietzsche aborda o budismo.
O primeiro aspecto e principal no âmbito positivo que nos apresenta ao
realizarmos essa busca é como Nietzsche enxerga de forma positiva em grande
medida a higiene de hábitos mentais, emocionais e físicos, a dietética budista do
cuidado com aquilo que ingere e do meio no qual — e como — se insere, assim “por
meio de um excesso dos estados pacíficos, benévolos, conciliatórios, solícitos e
afetuosos se empobrece o solo de outros estados...,” (VP, p188, §342), ressaltando a
noção importante de que só se é possível esse agir caso não impere nenhum
fanatismo moral, impedindo assim o mal81 de ser odiado por si mesmo, sendo isto
visto somente como algo que abre caminho para os estados que fazem mal como
inquietude, trabalho, preocupação, complicação e dependência82.
Em O anticristo, Nietzsche expõe que existem dois aspectos fisiológicos que o
budismo tem em vista e que busca cuidar deles, sendo o primeiro uma enorme
excitabilidade, que se exprime como refinada suscetibilidade à dor, e o segundo como
uma hiperespiritualização83, que produziria “uma demasiada permanência entre
conceitos e procedimentos lógicos, na qual o instinto pessoal se prejudicou em favor
da coisa “impessoal.”84, dessas condições fisiológicas surge uma depressão, que
Buda procede higienicamente para tratar, no qual Nietzsche (A, p.24,§20) diz:
Contra isso adota a vida ao ar livre, as andanças, a moderação e a escolha
na comida; a cautela com as bebidas alcoólicas; cautela igualmente com os
afetos que produzem bílis ou esquentam o sangue; nenhuma preocupação,
consigo ou com outras pessoas. Ele solicita ideias que deem tranquilidade ou
animem -ele inventa meios para desabituar-se das demais. Ele entende a
bondade, o ser bondoso, como algo que promove a saúde.

Nietzsche ainda apresenta outras formas como esse cuidado ocorre, tanto em
um sentido de hábito coletivo e religioso, como quando aponta que a oração é excluída
da prática budista, assim como a ideia de ascese, e que não ocorre coação
praticamente, e como exemplo lembra que mesmo dentro do mosteiro pode-se sair

A ele é mais direto em relação às temáticas que deseja abordar, condensando em poucos parágrafos
o essencial de suas ideias.
81
Nesse mesmo § ressalta que diferente do cristianismo, o budismo não odeia o pecado e que até
mesmo falta o conceito de “pecado”.
82
(VP, p.188, §342)
83
(A, p.24,§20)
84
(A, p.24,§20)
41

dele quando se desejar85, como também reforça (p.25): “O pressuposto para o


budismo é um clima bastante ameno, grande mansidão e liberalidade nos costumes,
nenhum militarismo” e complementa mais a frente dizendo: “O budismo não é uma
massa!
religião em que meramente se aspira à perfeição: o perfeito é o caso normal.” Ainda
na mesma página ele aponta a noção de egoísmo como dever que Buda estipula em
relação a cuidar de si mesmo, no que ele referencia: “o “uma só coisa é necessária”,
o “como te livras do sofrimento?” regula e limita a dieta espiritual inteira”, afinal para
tornar-se capaz de alguma forma de ser útil ao mundo, antes de tudo seria preciso o
cuidado consigo mesmo86, mas mesmo essa utilidade não é uma obrigação para o
budismo, sendo muito mais uma escolha. Qualquer mal que for evitado de ser
cometido a outros e a si já é considerado em certa medida um bem para o budismo.
O segundo aspecto mais importante que Nietzsche ressalta na prática budista,
até mesmo se intercalando em nível de importância com o primeiro, dito
anteriormente, é no esforço que se realiza em se cultivar a capacidade de ser superior
ao cultivo do ressentimento, como afirma em VP, p.127, §204: “A luta contra o
ressentimento aparece quase como a primeira tarefa do budista: somente com isso a
paz da alma está garantida. Desprender-se, sim, mas sem nenhum rancor:’, chegando
a ressaltar que para tornar-se capaz de desenvolver essa capacidade, pressupõe-se
uma humanidade que se moderou admiravelmente, tornando-se suave, até mesmo
santa87. O ressentimento — assim como a dietética — é um dos aspectos que mais
separa o budismo do cristianismo e dialoga bastante com o interesse de Nietzsche no
que diz respeito ao cuidado fisiológico do corpo. Para demonstrar isso vamos
apresentar a principal citação do Ecce homo acerca do budismo:
O ressentimento é o proibido em si para o doente — seu mal: infelizmente
também sua mais natural inclinação. — Isso compreendeu aquele profundo
fisiólogo que foi Buda. Sua “religião”, que se poderia designar mais
corretamente como uma higiene, para não confundi-la com coisas lastimáveis
como o cristianismo, fazia depender sua eficácia da vitória sobre o
ressentimento: libertar a alma dele — primeiro passo para a convalescença.
“Não pela inimizade termina a inimizade, pela amizade termina a inimizade”;
isto se acha no começo dos ensinamentos de Buda — assim não fala a moral,
assim fala a fisiologia.

85
(A, p.24,§20)
86
Uma comparação que exemplifica a ideia dessa prática mas trazida ao nosso tempo nos é dado por
D.T.Suzuki em “Uma introdução ao zen-budismo” em que nos lembra que em uma viagem de avião
referência (ABNT)? nos é instruído para que em um caso de despressurização colocarmos primeiro a máscara em nós para
então em quem também precise de nossa ajuda (como uma criança), porque se desmaiarmos não
poderemos ajudar de forma nenhuma quem estiver próximo. É preciso cuidar prioritariamente de si
para estar apto a cuidar de outros.
87
(VP, p.127, §204)
42

Apesar de ser uma citação longa, ela expressa bem tanto a visão que Nietzsche
tem de Buda como um grande fisiólogo como da boa compreensão de seu método ser
eficiente em relação ao cuidado com certas pulsões. Alerta para o cuidado do
ressentimento no indivíduo doente — fisicamente — , e lembra que essa é uma fase
que não somente é preciso se ter um cuidado em especial com o ressentimento, para
não ser produzido um amargor em relação à vida, ao mundo e às outras pessoas,
como também é exatamente o momento em que o sujeito mais está fragilizado e
exposto a isso. O trecho que cita Buda vem do Dhammapada, verso cinco, e é
traduzido usualmente como “Jamais, em todo o mundo, o ódio acabou com o ódio; o
que acaba com o ódio é o amor”, que se aproxima de outra fala muito conhecida do
budismo atribuída erroneamente a Buda mas que é de um erudito budista chamado
Budagosa acerca do ódio e que expressa bem a visão de como o ressentimento é um
sentimento que se retroalimenta continuamente e que se não cuidado rapidamente
pode criar raízes profundas, mas principalmente o caráter autodestrutivo deste estado
psicofisiológico: “Guardar raiva é como segurar um carvão em brasa com a intenção interessante!
referência?
de atirá-lo em alguém; é você que se queima.”, o indivíduo que vive com ódio ou
ressentido não tem paz.
Nietzsche enxerga o homem europeu como bastante ressentido e atribui isso
principalmente aos valores cristãos. O ressentimento é um dos principais pontos em
que se torna claro a visão de como o budismo se diferencia ao cristianismo, isso fica
especialmente claro nas comparações que tece tanto no Vontade de Poder como no
O anticristo. Um exemplo de como enxerga a práxis e a higiene mental do budismo
está presente na página 104 de VP, que diz:
“A religião budista exprime um belo poente, uma doçura e uma suavidade
consumadas, – é a gratidão a tudo o que fica para trás, com o adendo de que
o amargor, a desilusão e o rancor estão ausentes –: por fim, o amor espiritual
elevado, o refinamento da contradição fisiológica encontram-se por trás dela,
que também descansa disso tudo: disso, porém, ela ainda possui a sua glória
espiritual e a candência do sol poente”

Enquanto sobre o cristianismo, diz: “O movimento cristão é um movimento de


degenerescência a partir de toda sorte de elementos decadentes e desprezíveis.”88, e
continua mais a frente (VP, p.105): “Tem por princípio rancor contra tudo que é bem-
sucedido e dominante, tem necessidade de um símbolo que represente a maldição

88
(VP, p.104)
43

sobre os bem sucedidos e dominantes…”. Em determinado trecho de VP, começa a


descrever uma lista — bem sintética inclusive — de formas que o cristianismo é
absurdo, entre elas:“. todo o mundo da imaginação depravada e do afeto doentio, em
lugar da práxis simples e afetuosa, em lugar de uma felicidade budista acessível sobre
a Terra…” (VP. 28, §196). Mais uma vez o budismo é usado como contraponto ao
cristianismo, sendo considerado sua práxis como uma felicidade acessível em terra.
Já no O anticristo (p.47, §42), apesar de já expressar nessa passagem o caráter
decadente do budismo, ainda assim mostra como uma religião prática, que dá
resultado: “a diferença fundamental entre as duas religiões de décadence: o budismo
não promete, mas cumpre, o cristianismo promete tudo, mas nada cumpre.”, já no §23
ele repete essa visão dizendo “O budismo, repito, é mil vezes mais frio, mais
verdadeiro, mais objetivo.”, já no §191 (p.120) de VP ele diz que “O budista age de
modo diverso do não budista; o cristão age como todo mundo e possui um cristianismo
de cerimônias e de humores”, denotando que existe uma efetividade na práxis budista
que diferencia o praticante do não praticante enquanto no cristianismo isso não ocorre.
Para finalizarmos esse extensivo tópico que ocupa parte considerável da escrita de
Nietzsche ligada ao budismo como contraposição aos valores cristãos vamos
apresentar este trecho que o filósofo deixa claro um aspecto psicológico da ótica
cristã: “Para o problema psicológico do cristianismo. – A força motriz permanece: o
ressentimento, a insurreição popular, a rebelião dos malsucedidos.”89 , já em relação
ao budismo é diferente, pois: “ele não nasceu a partir de um movimento de
ressentimento. Ele combate esse mesmo movimento, pois tal movimento impele a
agir).”90 cuidado com parágrafos longos!

No entanto não somente em relação ao cristianismo Nietzsche descreve o


budismo como uma possibilidade que iria enriquecer a Europa, em diferentes textos
ele dimensiona a ideia de um budismo europeu e como viria a contribuir com a
situação europeia, como em VP (p.91): “Reservamo-nos muitas espécies de filosofia
que necessitam ser ensinadas: em certas circunstâncias a pessimista, como martelo;
não poderíamos prescindir talvez de um budismo europeu.” . Não somente sobre a
diferenciação de valores mas também em relação a momentos históricos, ele diz:
“Houve épocas mais pensantes e mais esmiuçadas pelo pensamento do que a nossa:

89
(VP, p.115, §179)
90
(VP, p.115, §179)
44

épocas, por exemplo, como aquela em que surgiu Buda” (vp.41), ele inclusive
demonstra apreço e reconhecimento de como o budismo aparece como religião que
nega os valores correntes de seu tempo, como se vê em VP, p.102: “Como uma
religião ariana que diz não, que cresceu em meio às posições dominantes, aparece:
o budismo.”
penso que as Em relação às críticas de Nietzsche ao budismo, a mais essencial é a sua
críticas
mereciam
serem
percepção de que o budismo é uma religião que nega a vida. Nietzsche considera o
desenvolvidas
em outra budismo uma religião niilista; é possível de se observar isso claramente em VP (§23,
seção, para
não quebrar a p.37) quando vai falar sobre niilismo ativo e então afirmar o que seria o seu oposto:
unidade
temática “[Seu contrário seria o niilismo cansado, que não mais ataca: sua forma mais
conhecida, o budismo: como niilismo passivo.]”. Essa visão de Nietzsche acerca do
budismo como negadora da vida é encontrada explicitamente em vários trechos em
que alude ao budismo, considerando isso inclusive um ponto em comum com o
cristianismo. Como esse expresso em VP (p.27):
O budismo indiano não tem um desenvolvimento fundamentalmente moral
por trás de si; por isso nele somente o niilismo é a moral insuperável:
existência como castigo e existência como erro, combinadas; o erro, portanto,
como castigo – uma avaliação moral”

Para Nietzsche, dois são os motivos que podemos elencar principais em que
se é capaz de perceber as ações e valores — as razões por trás das razões — que
se nega a vida. A primeira é que toda ação budista seria realizada com a intenção91,
em última instância, de não necessitar mais ter que voltar a viver novamente depois
da vida atual, e a segunda é o esforço que o budismo faz em relação ao controle das
suas paixões, que para Nietzsche ainda seria considerado um extremo, exemplo disso
é quando diz: “No budismo prepondera este pensamento: “Todo apetite, tudo o que
produz sangue e paixão arrasta para a ação.”92, mais a frente, ainda na mesma
página, continua: “Procuram um caminho para o não-ser e por isso se proíbem todos
os impulsos da parte dos afetos.” Cabe-se notar que em diferentes trechos de seu
pensamento, Nietzsche fala da importância de um agir equilibrado — poderia lembrar
até mesmo, em certa medida, o “Caminho do meio” budista — e ressalta que os
extremos usualmente nascem de algo que está errado, seja fisiológico, moral ou

91
A maior intenção do budista é atingir a iluminação/liberação, em que se reconhece a própria
natureza e consequentemente supera os grilhões kármicos e samsáricos que o atavam à
necessidade contínua de reencarnar.
92
(VP, §155, p.105)
45

valorativo. Essa visão, aplicada à ótica budista referencia a mesma ideia por trás do
trecho citado anteriormente nessa seção que trata a existência como castigo e a
existência como erro, e que somando-se é um erro que alimenta a existência — a
ignorância que gera karma e impede a libertação. É possível de se demonstrar assim
as razões principais que levaram Nietzsche a criticar o budismo.
O último ponto que gostaríamos de abordar brevemente nessa seção é um
apontamento de Nietzsche que ele faz sobre o budismo no Nascimento da tragédia,
também é uma crítica e junto disso uma percepção de como lidar com um problema
que enxerga. Nietzsche diz:
A partir da experiência orgiástica há apenas um caminho para um povo, o
caminho do budismo indiano, que, para ser suportado no seu anseio pelo
nada, requer os raros estados de êxtase com sua elevação acima de tempo,
espaço e indivíduo; enquanto esses, por suas vez, pedem uma filosofia que
ensine a superar, pela força de uma presentação, o indescritível desprazer
dos estados intermediários.93

Ele afirma que através desse estado de arrebatamento — que entrega o nome
“experiência orgiástica” usada antes — ocorre uma aniquilação das habituais barreiras
e limites da existência. Esse abismo do esquecimento separa o mundo da realidade
cotidiana e o da realidade dionisíaca, “Mas tão logo essa realidade cotidiana volta à
consciência, ela é sentida com nojo; uma disposição ascética, negadora da vontade é
o fruto desses estados.”94. Existe certa relação que ocorre de forma pontual e que por
ela pode-se perceber Nietzsche apontando o budismo como uma doutrina que
exemplifica e serve para demonstrar a negação da vontade, mas também há uma
contraposição que Nietzsche aponta, em que para salvar a vontade deste supremo
perigo — niilismo, desejar o nada nesse sentido — há uma personagem que atua
como “uma feiticeira que salva e cura, a arte”95. Observa-se essa análise em O
Nascimento da tragédia e ele volta a referenciar essa mesma ideia e livro no §853 em
Vontade de poder, o trecho específico que cita o budismo fica claro nessa passagem:
“A arte como única força contrária superior, em oposição a toda vontade de negação
da vida; anticristã, antibudista e antiniilista par excellence.” (VP, p.427), o que dá-nos
a entender que essa visão de arte como força que luta contra a negação da vida
persistiu com o tempo. A arte estaria como uma mentira criada para ajudar a lidar com
a crueldade e o absurdo da vida, protegendo-nos de cair nesse perigoso território de

93
(NT, §21, p.112)
94
(NT, §7, p.48)
95
(NT, §7, p.48)
46

negação da vida. Para finalizar nossa seção apresentamos essa última citação que
aprofunda esse pensamento sobre a arte:
Somente ela sabe transformar os pensamentos enojados sobre o horrível ou
o absurdo da existência em representações com que podemos viver; estas
são o sublime, como amansamento artístico do horror, e o cômico, como
desafogo artístico do nojo pelo absurdo.

3.3 PRINCIPAIS PONTOS DE ENCONTRO ENTRE NIETZSCHE E O BUDISMO

Abordamos até o momento neste capítulo como Nietzsche entrou em contato


com o orientalismo e algumas influências que decorreram em seu pensamento por
conta desse contato, buscando desenvolver uma visão mais panorâmica e
aprofundada em algumas visões que não são tão usualmente trabalhadas no autor
quando pensamos acerca de Nietzsche. Desenvolvemos então uma seção de tom
bibliográfico, em que não nos utilizamos de comentadores, mas de trechos de
diferentes obras do filósofo, o que nos entregaram maior consciência acerca de como
Nietzsche via o budismo, seja em seus aspectos positivos como em seus aspectos
negativos. Nessa seção, usamo-nos do trabalho de Panaioti para demonstrar que,
apesar de Nietzsche considerar sua noção de Grande Saúde como o oposto da noção
de Nirvana budista, é possível de se perceber certas similaridades em suas visões.
Para tal, vamos abordar parte do caminho que Panaioti desenvolve para explicar sua
percepção, aprofundando a ideia já desenvolvida acerca da visão de Nietzsche do
sofrimento e explicando a razão da importância de uma tipologia dos tipos sofredores,
para então desenvolvermos sua fala acerca do amor fati e como ela dialoga com o
conceito de eterno retorno, assim como eles representam grande importância para
entendermos a concepção de Grande Saúde em Nietzsche, para então observarmos
se há ou não sentido maior em alguma noção de relação entre a visão de Nietzsche
e a budista sobre seus ideais de grande saúde. O primeiro aspecto então para se
compreender é a visão de Nietzsche que ele faz da relação amor fati, sofrimento e o
trágico, que podemos introduzir com esse enxerto de Panaioti:
O apogeu da grande saúde no amor fati é uma postura trágica perante a vida
e o sofrimento. Se o nirvana budista representa o contramodelo negativo
desse ideal, então a celebração da vida mediante a veneração de Dioniso na
tragédia grega representa o modelo positivo para o amor fati. E sendo esse o
caso, uma característica central da doutrina ética de Nietzsche é que não é
possível atingir a grande saúde do amor fati sem um grande sofrimento.96

96
(Panaioti, p.103)
47

Nietzsche desenvolve a partir da conceituação grega de Dionísio a visão da


vida como tragédia, em que o sofrimento é um aspecto inerente à vida, não podendo
então os seres fugirem realmente de seus percalços, mas que podem tomá-los de
uma forma diferente, Panaioti (p.104) referencia Nietzsche apresentando que: “Perigo,
risco e sofrimento são essenciais para a felicidade e o crescimento — “O caminho
fantástico
para o céu de cada um percorre a voluptuosidade do inferno pessoal de cada um.”
(GC, §338)”, nesse sentido, para Nietzsche, não há razão em querer fugir do
sofrimento, mas sim aceitá-lo em toda a sua medida, afinal: “A grande saúde do amor
fati é, em si, uma superação — uma superação do infindável sofrimento envolvido na
própria percepção de que este mundo está repleto de sofrimento. E assim, a alegria
que ele envolve também não encontra paralelo.”(PANAIOTI, 2017, p.105). Gera-se
um giro na visão acerca do sofrimento, tomando-o até mesmo como necessário e
desejável — em certa medida — para que se haja um desenvolvimento do ser, pois
compreende-se então que “É no confronto com a ameaça suprema do desespero
absoluto diante da temível natureza da existência, tomado assim pelas maiores dores,
os tumultos e as angústias, que se pode superar o maior dos obstáculos.” (PANAIOTI,
2017) percebendo que o amor fati seria então a maior demonstração possível de força
capaz de existir.
Nietzsche vai apontar que existem diferentes tipos de sofredores, e Panaioti
nos apresenta a importância de se realizar uma tipologia desses sofredores, assim
como diferentes qualidades de prazer97. Panaioti nos apresenta que Nietzsche divide
o sofrimento em dois tipos: como decréscimo de forças (esgotamento) versus
sofrimento como resistência a ser superada, e sobre os prazeres toma “Um prazer
apenas negativo como ausência de sofrimento e um prazer positivo como superação
da resistência” (PANAIOTI, p.110). Para Panaioti, Nietzsche enxerga que os tipos
saudáveis e fortes têm no sofrimento um desafio provocante, enquanto os tipos
doentios e fracos vivenciam o sofrimento como algo debilitante: “Como já estão muito
cansados, não conseguem responder ao sofrimento e reagem apenas de forma
passiva a ele -sofrendo seu impacto, por assim dizer.” (p.110) e conclui nos trazendo
uma rica percepção, a de que: “À luz dessa tipologia, não há nada contraditório na
ideia de que o sofrimento é um agente de saúde/ascendência e um agente de
doença/décadence. De fato tudo depende de quem está sofrendo.” Ainda nesse

97
Panaioti referencia Fragmentos Póstumos 14 (174) para explicitar na literatura de Nietzsche essa
ideia.
48

sentido, Panaioti ressalta a categorização, de diferença crucial, entre sofrimento


extensional e intensional, em que enquanto sofrimento extensional é o dano efetivo,
seja físico ou psicológico recebido pela pessoa, o sofrimento intensional envolve a
interpretação do sofrimento extensional. Concluindo que: “Em síntese, tudo depende
da forma como se interpreta o sofrimento.” (p.110). Por conta disso Nietzsche critica
os décadents por serem hipersensíveis98 ao sofrimento, pois o problema está ligado
sobre a interpretação que fazem do sofrimento, principalmente no que diz respeito à
uma interpretação que cai no domínio moral da culpa e que essa necessidade de
culpabilizar alguma coisa ou alguém sobre o sofrimento que acontece na vida nos
torna “de modo geral, mais sensíveis ao sofrimento e menos capazes de suportá-lo e
aceitá-lo.” (PANAIOTI, p.111).
Há de se lembrar que havíamos anotado no final da segunda seção deste
capítulo que Nietzsche enxerga a arte como a única contraforça superior à toda
vontade de negação da vida; Panaioti realiza os pontos de conexão importantes entre
essa idealização da arte de Nietzsche e como ela se conecta com o amor fati, dizendo:
“A arte genuína, espontânea e autoconsciência (como oposição à mera ilusão) é fruto
do pessimismo da força. A estética é a essência da verdadeira saúde e da força.”
(p.137), isso porque o desenvolvimento do amor fati para cada indivíduo requer que
este realize uma grande falsificação, embora deliberada e consciente. Panaioti
apresenta então que “O tipo saudável e antibudista de Nietzsche é o esteta trágico,
heraclitiano”99, e então nos explica como podemos entender melhor essa ideia: “De
fato, o julgamento estético positivo que constitui o coração do pessimismo do forte e
leva à veneração de Dioniso exemplificada na tragédia ática é o mesmo que, em última
análise, envolve a adoção da eterna recorrência100 no amor fati.”101. O tipo saudável
de Nietzsche não é somente esteta como também um artista trágico e a grande ficção
que cria é a percepção de que sua vida vai recorrer de forma eterna102, e busca criar

98
Panaioti também toma o cuidado de ressaltar que essa hipersensibilização não é relacionada a como
cada indivíduo sente a dor necessariamente, mas muito mais direcionado a como se é gerado pelos
décadents uma forma de lidar com o sofrimento que busca afastá-lo cada vez mais, gerando
consequentemente o efeito rebote de se diminuir a resistência ao sofrimento, de aceitá-lo e não ser
destruído por ele.
99
(Panaioti, p.136)
100
Panaioti usa esse termo para falar sobre o eterno retorno.
101
(Panaioti, p.137)
102
Panaioti inclusive defende que o conceito de eterno retorno não tem haver com uma noção
cosmológica, mas somente individual como uma valoração e ficção criada individualmente por cada
ser.
49

um sentido, uma interpretação afirmativa pessoal de sua vida; o tipo saudável torna-
se duradouro e “fixo” por meio da eterna recorrência. Panaioti aponta que em primeira
instância o maior desafio que pode haver é o de levar em conta a possibilidade da
eterna recorrência e com ela também a repetição perpétua de todas as tristezas e os
problemas pessoais, mas que é necessário para se conseguir a autossuperação;
superado o maior obstáculo, o segundo passo é, no campo psicológico, ser capaz de
possível erro
de digitação.
rever a fonte
“reviver a vida exatamente se desenrolou e como irá se desenrolar permite ao tipo
saudável subverter por completo toda e qualquer forma de culpa, de vergonha ou
remorso.” (PANAIOTI, p.138). No entanto, Panaioti também nos lembra que as ficções
gêmeas do amor fati — a falsificação da transformação em Dioniso como Ser e a
ficção do Eu sempre recorrente — são “encenadas por um artista bastante ciente da
falsificação na qual está envolvido” (p.138), reconhecendo o papel vital da ironia no
summum bonum do tipo saudável. E sintetiza essa noção no seguinte trecho:
No amor fati, tanto Dioniso — o “que recorre de forma eterna” — quanto o Eu
fixo, obrigatório, são aceitos e celebrados, mas o tipo saudável nunca se
esquece de que se trata de ficções. Ele os acolhe com ironia, sabendo muito
bem que são suas criações, suas invenções. É assim que ele se torna, de
forma literal, o artista de seu destino (fatum). Essa é a mentira consciente
com a qual “se chega a ser o que se é”.103

É importante ressaltar que Panaioti determina que seu estudo sobre o ideal de
grande saúde budista é realizado pela própria ótica budista a partir de — como todo
seu estudo — um rigoroso cuidado filosófico sem que se tenha a influência de
Nietzsche no processo. Não consideramos isso um problema pelo fato de já termos
abordado diferentes formas como Nietzsche enxerga a proposta budista, podendo
agora nos debruçar a partir desse olhar de um pesquisador que tanto tem uma
vivência relacionada ao espectro budista muito mais profunda que Nietzsche como
que também é um exímio estudioso do filósofo, auxiliando a nos trazer um olhar mais
Sugiro iniciar
outro
neutro sobre o tema. Comecemos então pela abordagem que Panaioti nos apresenta
parágrafo
do termo Nirvana como significando, literalmente “apagamento” ou “extinção”, como falta uma
vírgula
se pode dizer sobre uma chama ou o fogo. Ele analisa a partir das primeiras definições
dadas pelo Pali Text Society em 1925 de Nirvana como termo coloquial em que
definem tanto como o apagamento de uma lâmpada ou fogo, como “2. saúde, a
Cuidado com as repetições de "Panaioti". Sugiro utilizar também: "o autor", "o comentador", "o intérprete" etc.

103
Panaioti escreve uma nota nesse trecho, que consideramos enriquecedor apresentá-la parte dela:
“Enfatizo o “é” porque o tipo saudável sabe que nunca “é”, apenas “torna-se”. Por óbvio, isso faz parte
do ingrediente essencial da ironia no amor fati.” (p.302)
50

sensação de bem estar corporal (talvez, no início, a cessação do estado febril”104


(p.142) e também no que já referimos na seção sobre a visão do sofrimento budista
dos três fogos, ou aflições: atração, aversão e delusão. A visão é a de que “o summum
bonum budista é a sensação de bem-estar a qual se chega quando a febre ardente
da sede que se tem “é extinguida”.105 A “sede” referida é uma das diferentes traduções
do termo trishna, refere-se à insaciabilidade dos desejos, sendo o desejo persistente
que é a origem do sofrimento — o nirvana representa a cessação dessa sede
insaciável. Nesse ponto Panaioti sugere que pode haver algo errado na maior parte
das apresentações do ensinamento da nobre verdade como discurso médico pela
razão que seria na verdade a sede e não o sofrimento a doença que Buda diagnostica
realmente no seu ensinamento, sendo o sofrimento o seu sintoma. No entanto, ao se
analisar de forma mais profunda, chega-se até mesmo à percepção de que nem
mesmo seria a sede a instância fundamental do sofrimento, mas sim a noção robusta
de um “eu”: “Buda explica que a responsabilidade por nossa condição deplorável está
em se postular um eu de qualquer uma dessas maneiras. “O eu”, conclui, é o “conceito
que leva à origem de dukkha”.106, esse relato nasce do Patipadasutta (“Discurso do
caminho”). Isto pode ser tomado como ponto de partida para então desenvolvermos
algumas das explicações que Panaioti dá para, na sua examinação da relação entre
a grande saúde nietzscheana e a budista, avaliar a suposta oposição entre elas e
demonstrar que elas nascem principalmente de múltiplos enganos, que começam a
partir da visão que Schopenhauer tem do budismo e das conclusões que chega a
partir dela.
O primeiro passo que dá em avaliar a suposta oposição entre esses conceitos
é a examinação que faz da ideia de nirvana budista e da salvação de Schopenhauer,
apontando que Nietzsche é bastante influenciado na sua visão da ética budista como
negadora da vida pela relação que se traça entre os paralelos que ele vê da teoria
schopenhaueriana da salvação com a budista do nirvana e afirma que existe uma
enorme lacuna sobre suas visões éticas. Começa então desfazendo alguns enganos;
o primeiro é que “O budismo não ensina, tal como Schopenhauer, que vivemos “no
pior mundo possível”” (p.168) e continua, ao dizer que “não é correto tampouco afirmar

104
(T, W, Rhys Davids e W. Sted (orgs.), Pali Text Society's Pali-English Dictionary, Chipstead: Pali
Text Society, 1925, p.198 APUD Panaioti)
105
(Panaioti, p.142)
106
(Panaioti, p.145)
51

que a filosofia budista retrata tudo na vida como sendo necessariamente desagradável
e doloroso a cada momento, como Schopenhauer faz.” (p.168), ao contrário, “os textos
budistas falam de diversas formas de existência que são agradáveis quase que por
completo, nas quais quase não há contato com o sofrimento.” (p.168), mas também é
fato que Buda comentou que nenhum desses prazeres dura, e então Panaioti
exemplifica essa diferença: “Assim sendo, frustração, nostalgia e tristeza nunca estão
muito distantes. Porém, isso está longe de ser tão radical quanto à afirmação
schopenhaueriana de que o prazer nada é senão a ausência de sofrimento.” (p.168).
O autor continua em tom interrogatório perguntando como devemos entender então a
rever a escrita
correta dessa
primeira nobre verdade, a de que o samsara está repleto de dukkha, não seria então
expressão
francesa. Não uma declaração evidente de pessimismo à lá Schopenhauer? Ele discorda e se utiliza
esquecer que
estrangeirismos das ferramentas de análise sintática sânscrita para elaborar107 as diferentes formas
devem se
apresentar em
itálico
de interpretação do termo sânscrito relacionado à ideia de “nobre verdade” e ele
sugere que a interpretação que mais deve se aproximar com a ideia proposta seria a
de uma verdade que ela é assim para o(s) nobre(s), ou seja, para um ser iluminado,
como Buda. A intenção é mostrar que apesar da visão de que dukkha permeia o
mundo é uma questão de perspectiva, e explica: “Muitos podem estar mais ou menos
satisfeitos com suas vidas. Porém, segundo a perspectiva de uma pessoa iluminada
que atingiu a saúde suprema do nirvana, todos parecem estar sofrendo.” (p.169), Buda
vê que todos os estados envolvem dukkha até certo ponto, mas isso não o torna tão
pessimista quanto Schopenhauer; para não restar contradições, ele explicita: “A
questão toda é que as coisas poderiam ser bastante melhores para mim, e não que
tudo é terrível na minha vida. Sob a visão budista de que a vida é repleta de sofrimento
há uma mensagem de esperança, não de desespero.” (p.169), em relação a esse
tópico conclui: atenção aos parágrafos longos!

Portanto, a busca budista pelo nirvana e a sede schopenhaueriana de


salvação baseiam-se em avaliações bem diferentes da condição humana. A
avaliação de Buda é perspectivista, relativa e voltada para uma situação de
bem-estar. A avaliação de Schopenhauer, em contraste, é absoluta,
dogmática e negativa de forma irremediável. Está claro que Nietzsche não se
deu conta dessa nuance. (p.169-170)

Outro aspecto em que critica a relação entre Schopenhauer e o budismo é que,


apesar de existirem várias escolas na Índia Antiga e na Clássica que ensinavam,
assim como Schopenhauer, que “a chave para pôr fim a dukkha consiste em rejeitar

107
Nesse ponto sintetizamos a sua análise, rever
52

o eu pessoal e ilusório em prol do Eu Real, ou seja, o Um eterno por trás de todas as


coisas transientes.” (p.170) isso não representa ainda uma recuperação real da
autodelusão na visão budista. O budismo enxerga que apesar da noção da rejeição
de um “eu pessoal” ser um passo na direção certa, buscar refúgio em um “eu” cósmico
ainda indicaria que a pessoa se encontraria sob o feitiço da autodelusão. Panaioti
explica na página 170 essa percepção dizendo que: “O nirvana não envolve o
entendimento de que todas as diferenças neste mundo, inclusive aquela entre o eu e
o outro, são ilusórias e, como resultado, que todos participamos de uma única mística,
não espaço-temporal.”, e nos entrega ainda na mesma página uma chave de
interpretação da ideia de Nirvana, que desenvolveremos mais para frente junto de
como certas noções dela aparentemente não chegaram até Nietzsche: “Em termos
estritos, atinjo o nirvana quando me recupero da autodelusão que condiciona toda
minha postura afetiva e cognitiva diante do mundo.”108
O último ponto importante que Panaioti vai desenvolver da diferenciação do
pensamento schopenhaueriano do budista diz respeito a que, para Schopenhauer, a
Vontade seria o próprio elemento fundamental do mundo, podendo ser considerado a
essência da vida, mas no budismo esse tipo de alegação metafísica não ocorre.
Panaioti inclusive aponta que Nietzsche sem dúvidas conhecida bem a diferença
fundamental entre as duas filosofias no que diz respeito à metafísica, mas ainda
parece não ter percebido a importante implicação dessa diferença no campo da ética;
isso porque a Vontade e a sede são semelhantes por estarem intimamente
relacionadas com os mecanismos de individuação, e portanto, serem a fonta do
sofrimento, e para ambos a destruição representar algo importante, mas o paralelo
cessa aí. A sede que Buda trata não se parece com a essência da vida, nem é uma
substância, ou algo metafísica, somente “Representa formas específicas de
comportamento afetivo que, como tudo o mais na visão de mundo budista, resulta de
um processo: no caso a identificação mediante a apropriação” (p.171), e apresenta a
diferenciação fundamental: “A sede por ser característica da vida psíquica de muitas
pessoas, mas nunca se sugere que a sede é a vida, ou que existir consiste em sentir
sede.” (p.171), portanto, a autonegação da Vontade schopenhaueriana não encontra
paralelo no pensamento budista. A percepção que concatena essa visão pode ser
expressa nessa seção que Panaioti (p.171) apresenta:

108
(Panaioti, p.170)
53

A sede se baseia na delusão de que “eu” sou alguma coisa acima e além
desses processos, de que existe um corpo e uma mente que são “meus”, que
isto e aquilo pertencem a “mim” etc. Conscientizar-se de que isso é delusório
e, mais cedo ou mais tarde, perceber na prática a ausência de eu é que vai
extinguir a febre da sede e levar à cessação do sofrimento. Por tanto o
summum bonum budista com certeza não é uma questão de negar a destruir
o que “sou” na realidade, mas de abandonar quaisquer delusões sobre o que,
de fato, “eu” não sou.

A conclusão a que se chega é a de que por não existir uma autodestruição ou


autonegação no budismo — como existe na ética schopenhaueriana —, existe apenas
a libertação da delusão patológica do eu, “por conseguinte, não existe nada de
“antivida” em si na ética ideal de Buda. Existe apenas a consciência de equívocos. A
sede não é a vida. É um impedimento à vida saudável.”109 partir de determinado
ponto Panaioti começa a discorrer de forma mais direta ainda de como, de forma
Possível erro
de digitação contrária ao que Nietzsche acreditava, o ideal ético do nirvana não é uma expressão
de negação da vida, e que até mesmo parece compartilhar diversas características
interessantes e chega a se complementar com a grande saúde nietzsche em certos
aspectos. Tendo elaborado as críticas que Panaioti faz a Schopenhauer, sigamos em
frente para trabalhar dois aspectos interessantes que o autor desenvolve.
O primeiro desses aspectos é que é compreensível a visão que tanto Nietzsche
quanto Schopenhauer desenvolveram acerca do nirvana como uma meta de pôr fim
à vida. Ele aponta que isso acontece pois muitos textos budistas costumam descrever
o nirvana como a cessação do renascimento cíclico; Buda mesmo afirmou, após a
iluminação, que sabia que não haveria mais isto [vida] para ele. No entanto, apesar
disso, Panaioti argumenta que existem boas razões para se duvidar da perspectiva de
budismo como navegador da vida: uma dessas razões é que na Índia, expressões
sobre a libertação do samsara e a cessação do renascimento são comuns em quase
todas as discussões sobre ética na literatura religiosa e filosófica da Índia, “Sendo
assim, não são fontes lá muito confiáveis de ideias bastante budistas.” (p.172); a
segunda razão é que apesar de terem uma forma com certeza negativa, não está claro
se essas formulações têm conteúdo negativo; para isso ele explica:
Vamos presumir por um instante que podemos entender os termos “vida”,
“samsara” ou “renascimento” nessas expressões idiomáticas como
“existência permeada de dukkha”. Assim, será possível ver como “obter a
libertação da vida/do samsara/renascimento” não implica necessariamente o
autoextermínio, e sim a entrada em um modo de vida no qual dukkha foi
removido. Sob essa óptica, o nirvana não implica a morte final ou o sono
permanente. Pelo contrário: é um estado de plenitude, bem-estar e força.110

109
(APUD, p.172).
110
(P.173)
54

Sob esse sentido, significa que as pessoas iluminadas terão se livrado do que
é tipo da existência normal, doentia e “samsarica”: “Em outras palavras, terão se
recuperado da infecção do princípio do ego, que mediante a inflamação da apreensão
e a febre da sede, leva-nos a vivenciar o mundo como dukkha.” (p.173). Panaioti
também aponta que o paradigma pan-indiano da reencarnação e seus pressupostos
não são relevantes para o conceito budista do nirvana como grande saúde. Essa visão
se fecha quando se compreende somente como se dependesse da doutrina da
reencarnação baseada na noção de metempsicose, nos impedindo de enxergar algo
com significado filosófico e psicológico bem maior. Ele cita então um grande pensador
místico indiano, Nagarjuna, que diz: “nada distingue o samsara do nirvana”, e explica
que o nirvana não é um tipo de Céu ou que a grande diferença entre um e outro é
sobre a questão do renascimento, mas que a verdadeira diferença estaria na
experiência individual no mundo. Da forma que consegue explicar mais sucinta
reescrever
resume: “Aqueles que estão infectados com o princípio do ego, e que por isso têm
sede febril, vivenciam este mundo como um mundo de dukkha. Estão “No samsara”.
Os que se recuperam da infecção do princípio do ego e aqueles para quem a febre da
sede passou não conhecem dukkha. Estão “no nirvana”.111 E conclui explicando então
que “A metempsicose não é relevante. Relevante é a autodelusão.”112. Este é o último
ponto que Panaioti aborda acerca da compreensão de que a meta da ética budista
não é sobre sufocar ou cessar a vida ou o que há de natural em nós, mas sim sobre
se recuperar do que está adoecido para se adquirir a grande saúde, sendo em
essência capacitante, e não incapacitante.
Panaioti aborda então a visão que Nietzsche discorre acerca do budismo, no
que diz respeito ao seu cuidado em relação ao ressentiment, o que trabalhamos em
nossa seção anterior como os décadents são enfraquecidos mais ainda por conta do
ressentiment, o que os torna mais irritadiços e suscetíveis ao sofrimento; mas os
budistas têm grande cuidado com as emoções que levam à ira ou que poderiam levar
a cometer vingança, e, por conta disso — de acordo com Nietzsche —, atingiram “a
felicidade negativa da ausência de dor, cujo epítome é o sono profundo do nirvana.”
(p.174), mas “do mesmo modo como afastam os efeitos conscientes do ressentiment

111
(Panaioti, p.173)
112
(Panaioti, p.173)
55

— o ressentiment1 —, os budistas alimentam o ressentment2 — o “ressentiment


contra a realidade” —, subjacente, pré-reflexivo, característico da décadence.”
(p.174). No entanto, Panaioti observa então que do ponto de vista da psicologia moral
budista, “a explicação de Nietzsche para a forma como os budistas põem fim ao
sofrimento parece um tanto superficial.”(p.174), e explica que não há duvidas de que
Buda impele seus seguidos a apagarem o “fogo” da aversão, e que “Todas as formas
de animosidade, mágoa e desejo de vingança são manifestações da sede e resultam
de atitudes autocentradas às quais a autodelusão deu origem.” (p.174), mas afirma
que não é essa atitude que leva à cessação do sofrimento, elas são somente
condenadas porque reforçam as propensões e tendências autocentradas que nos
“prendem” ao samsara e mais uma vez lembra que o verdadeiro alvo da terapia
budista é a autodelusão, e diz: “Em termos simples, a terapia de Buda focaliza o que
está na raiz da mágoa, da raiva e da aversão; lidar apenas com esses fenômenos
superficiais não é suficiente para atingir o nirvana.” (p.175), e que apesar da descrição
de Nietzsche não estar de todo errada sobre a terapia budista, ela estaria “um pouco
fora do centro do alvo.” (p.175). Panaioti então diz:
Todavia, o que Nietzsche não percebe de forma alguma é que, ao solapar a
autodelusão, o budista destrói não só a raiz do ressentiment1 como a do
ressentiment2. Na análise de Nietzsche, o ressentiment2 é fruto da grande
irritabilidade e da fraqueza dos décadents. Para os décadents esgotados, a
vida está repleta de dores e tristezas perenes. Assim, sentem-se “alvejados
pela vida e decidem que a vida é má. É isso que os leva a se vingarem da
vida mediante diversas formas de ideologia que negam a vida.

Mas a própria ideia da grande saúde budista já intenciona a recuperação da


febre debilitante e enfraquecedora que faz com que vivenciamos a vida como dukkha,
dolorosa: “A sede, de acordo com a análise budista, é o que faz com que as
experiências desagradáveis me firam, machuquem, desestimulem, é o que faz com
que me desespere com a vida etc” (p.176) e que, portanto, livre da sede, não há como
se sentir temeroso, inquieto e defensivo; o tipo saudável budista livra-se dos dois tipos
de ressentment então, removendo as condições para vivência do segundo, e explica:
“Não porque eu tenha “congelado meus instintos” ou “adormecido”, mas porque
superei o modo delusório de pensar e de sentir que me tornou tão irritadiço. Portanto,
estou mais “desperto” (buddha) e forte do que antes — sou um vitorioso.”113

113
(IBID, p.176)
56

Para concluir no que diz respeito a esse ideal de grande saúde e como ambas
as filosofias dialogam entre si, apresentamos a recordação que Panaioti faz de
usar "duas" Nietzsche em que cita 2 passagens enigmáticas sobre o amor fati presentes em Ecce
homo114, em que nelas Nietzsche afirma — surpreendentemente — que o amor fati,
que até o momento era apresentado como envolvendo uma vontade incondicional de
sofrimento, também — a partir dessas duas passagens — envolveria o não sofrimento.
A análise que Panaioti faz é que é precisamente o sofrimento vivido pelo tipo reativo
que promove o ressentment2, e que, por conseguinte: “por envolver a superação
completa de todas as forças reativas, o ideal afirmativo da vida do amor fati também
implicará não sofrer da maneira como sofrem os tipos reativos. Esse “não sofrer” é o
que acontece com o tipo saudável budista para o qual a febre da sede cessou.
Portanto, o amor fati e o nirvana envolvem “não sofrer” na mesma medida.
Ambos envolvem a superação da doença enfraquecedora a qual faz com que
a vida seja vista como depressiva e desesperadamente dolorosa. Sob essa
luz, algo como a “destruição da sede” dos budistas levaria à grande saúde
vislumbrar por Nietzsche. Desse modo, atingir o estado psicológico
característico do nirvana budista, longe de ser uma meta que nega a vida,
pode ser necessário caso se queira superar forças reativas internas para se
atingir o cume da afirmação da vida.115

Isso poderia explicar a razão pela qual, diferente do que Nietzsche pensava, a
chegada ao nirvana parece envolver tudo, menos a anulação que ele atacava, e diz:
“O amor fati é um ideal contrário à anulação. É um ideal de autoestima e de
autoafirmação. Por paradoxal que possa parecer, a superação budista da autodelusão
parece levar a um resultado similar.”116 Um dos aspectos que podemos concluir no
que tange à como Nietzsche e o budismo se conectam de forma nítida é que ambos
perfeito! elaboram uma ética pós-teísta de grande saúde.

114
A nota de Panaioti para esse trecho é: “Ver EH, “Warum ich so gute Bucher schreibe”, NT, §4, e
ibid., GC, §4.”
115
(Panaioti, p.177)
116
(Panaioti, p.177)
57

CONCLUSÃO

Consideramos que nossa pesquisa chegou a resultados interessantes e ricos


a partir das proposições feitas por Panaioti, com suas percepções dos múltiplos
aspectos em comum que existem na ideação entre o tipo saudável nietzschiano e o
budista, apesar, é claro, de suas diferenças. Essas diferenças são mais fundamentais
no que diz respeito a como cada uma das duas filosofias enxerga a importância de
determinadas noções, seja para se chegar à suas metas, ou em fato do que elas
representam para seus objetivos. Exemplos claros — e ainda frescos — que podemos
dar são da diferença no papel da ironia que existe na filosofia budista como algo
apenas funcional que ocorre mais naturalmente a partir do nirvana para que os tipos
saudáveis budistas levem a cabo de forma pragmática seus projetos no mundo e que,
já na filosofia nietzscheana, a ironia representa um papel fundamental para obtenção
do amor fati; outro exemplo que Panaioti explicita e que é bem mais importante do que
os dois tipos saudáveis sabem, tem haver com o espírito com que lidam com o mundo,
ambos sabendo que interpretam papéis, interpretando a artística individuação das
coisas e dos seres no mundo, e que como Panaioti coloca: “a única diferença entre
suas interpretação e a das pessoas comuns é que eles sabem que estão criando a si
mesmos e a seu horizonte.” (p.179). Panaioti demonstra ao longo de seu pensamento
como, em essência, a noção entre os tipos doentio e saudável para ambos as filosofias
compartilham muitas noções em comum, em que se é possível de se observar
múltiplos paralelos até mesmo na percepção de ambas as filosofias de que
reconhecem que o Ser é uma ficção. Tal realização se dá por reconhecerem que,
de um modo
geral, não
muito bem colocado nas palavras de Panaioti: “existe apenas uma torrente dinâmica
constam
citações na de devir na qual nada perdura e na qual todas as “coisas” — inclusive ele — são, de
conclusão
fato, o produto da interação de forças plurais, sempre em mutação.”117.
Como o escopo de nossa pesquisa é mais voltado de fato para a percepção de
como ambas as filosofias lidam com a questão do sofrimento humano e em última
instância, do que representa um ideal que cada uma percebe como a melhor resposta
possível diante desse ponto, e não simplesmente um exercício comparativo entre tudo
que existe na filosofia budista e nietzscheana que dialoga entre si, deixamos de
trabalhar diferentes pontos que para o leitor pode ser ainda interessante de ser

117
(P.179)
58
Não fazer esse gênero de inferência

trabalhado, o principal deles que observamos é o que diz respeito da “Compaixão” e


como ambas lidam com isso. Sabe-se na academia o quanto Nietzsche critica a noção
Não introduzir
novas ideias
de compaixão como um afeto enfraquecedor e emotivo, que nasce de uma dor
na conclusão
psicológica pessoal, e que critica o budismo por conta disso; no entanto Panaioti
apresenta que a noção budista de compaixão — ou pelo menos a de Buda — é bem
mais parecida com a noção que Nietzsche considera saudável, poderíamos dizer uma
Compaixão — com C maiúsculo —, isso pelo fato de ela nascer também de um certo
distanciamento, de um cuidar do outro que não envolve o sofrimento pessoal
emocional ou psíquico junto — esse sofrimento para o budismo nasce do apego, ainda
sendo considerado um aspecto da delusão. Dos 6 capítulos que Panaioti escreve, os
últimos dois são voltados para uma análise da compaixão, da sua superação — no
contexto nietzschiano — e do seu cultivo — no contexto budista — e é um tema que
dialoga bem com o tema de nossa pesquisa; mas não o abordamos dado o escopo
de nosso trabalho, assim como pelo fato de ser algo secundário e não essencial como
os outros tópicos que abordamos, apesar de sugerirmos para aqueles curiosos em
saber no que e como ele trabalha que leiam sobre — não somente esses dois
capítulos mas o próprio livro do Panaioti, é muito esclarecedor e enriquecedor sobre
o tema.
Nossa pesquisa enfrentou diferentes percalços ao longo de seu
desenvolvimento. A primeira problemática encontrada nasceu da dúvida de quais
foram as fontes que Nietzsche entrou em contato com a filosofia budistas, afinal:
seriam elas principalmente de comentadores ou obras originais do cânone budista?
De que tradição ou linhagem budista elas se amparariam118? Seriam essas traduções
confiáveis ou carregariam seus preconceitos ideológicos nascidos pelas visões
européias de seu tempo? Junto com essas dúvidas de ordem bibliográfica de qual
Nietzsche teria tido acesso também nasce outra problemática: dada a miríade de
tradições budistas, como poderíamos afirmar algo acerca do budismo de forma mais
sólida sem nos comprometermos em demasia com visões que potencialmente podem
ser amplamente diferentes até em relação à forma como Nietzsche entrou em contato
com a filosofia budista? Além de tudo duas últimas problemáticas acabaram por

118
As duas principais são a theravada e a mahayana mas dentro dessas existem várias subtradições,
cada uma diferente das outras em diferentes pontos, apesar de concordarem usualmente sobre alguns
aspectos fundamentais, mesmo que as interpretações sejam diferentes desses mesmos aspectos
59

aparecer ao longo do processo, que são: 1) A quantidade de traduções budistas


brasileiras de textos importantes da tradição é meio escassa119. e 2) A complexidade
principalmente dos textos tradicionais da tradição Hinayana — o outro nome que se
dá para a Theravada — dificultariam bastante uma boa compreensão sem as chaves
simbólicas dos diferentes conceitos, além da necessidade de um mergulho com mais
intensidade e que, dado o tempo disponível tornava essa tarefa mais árdua do que já
era, dado o fato de nossa pesquisa ser de análise bibliográfica e comparativa — o que
demanda mais tempo e comprometimento.
Algumas foram as respostas que melhor encontramos para essas últimas
questões, a primeira foi sobre buscar principalmente trabalhos e autores que
dialogassem — ligado à parte do budismo — pela tradição Mahayana, considerada
mais receptiva como porta de entrada ao pensamento budista, sendo mais facilmente
compreensível e que, por ter quantidade maior de seguidores, também ser mais fácil
de encontrar bons textos ligados a essa tradução. Buscamos fontes variadas que nos
permitissem uma construção mais ampla da visão budista, sem nos distanciarmos da
fonte e do rigor necessário à pesquisa acadêmica. Graças a isso, conseguimos montar
um panorama que, apesar de mais exigente em tempo e energia de nossa parte, foi-
se possível prover uma visão que consideramos satisfatória para nossa pesquisa120.
Dois trabalhos em especial nos ajudaram bastante a nortear a nossa pesquisa ligado
à como Nietzsche entrou em contato com o budismo, assim como suas fontes foram:
primeiramente o artigo de Fernando de Moraes Barros, Um Oriente ao oriente do
Oriente: a investigação de Johann Figl, e posteriormente uma parte do próprio trabalho
de Johann, intitulado Os primeiros contatos de Nietzsche com o pensamento asiático.
Panaioti também apresentou diferentes fontes que Nietzsche entrou em contato com
o pensamento budista, apesar de não termos tido como a estudarmos de algum modo
— no geral todas eram bastante antigas e a maior parte estavam em alemão.
Cabe também mais uma vez afirmar que Nietzsche não estava preocupado em
ser um erudito do budismo ou conhecê-lo profundamente, então é compreensível que

119
Para exemplificar: Um dos textos que mais apareceram em citações em diferentes artigos e até
mesmo citado em livros que encontramos e que não conseguimos encontrar uma edição — nem física
nem online — é o Mahijima Nikaya, o segundo das cinco coleções de textos basais do budismo, que
faz parte do Sutta Pitaka.
120
Ficamos felizes em perceber que diferentes percepções que havíamos construído ao longo do
caminho, quer por intuições — como a própria noção da ideia de grande saúde ser o melhor ponto de
contato entre o budismo e Nietzsche — se mostraram concordantes com o pensamento de um
pensador especializado tanto em Nietzsche como no budismo, no caso o Panaioti.
60

ele vai se utilizar do budismo mais de forma conceitual, analisando que aspectos dele
considera mais saudável que seu tempo — de Nietzsche — na forma de pensar e lidar
com a realidade — e o sofrimento —, mas também compreensivelmente criticando o
que acha válido e que significasse aquilo que ele enxergasse como um niilismo
passivo. No último capítulo de nossa pesquisa, principalmente na última seção, somos
apresentados com a perspectiva de algumas limitações de Nietzsche na visão acerca
do budismo, tanto por conta das traduções de seu tempo como pela análise que faz
dele por conta da proximidade de Schopenhauer121 e até mesmo algumas
interpretações que faz que talvez não estivessem tão próximas do que realmente
significassem, principalmente acerca da ideia de nirvana.
Apesar das problemáticas encontradas ao longo do caminho, acreditamos que
conseguimos enunciar e sintetizar os diferentes aspectos referentes ao entendimento
aprofundado do que fundamentalmente geraria o sofrimento para o budismo e também
como o enfraquecimento ocorre nos indivíduos ressentidos que Nietzsche discorre
sobre. Nossa lógica foi a de apresentar tanto as causas como também os caminhos
propostos por cada uma dessas duas filosofias do que se deveria seguir para realizar
essa superação, se não necessariamente do sofrimento — na visão nietzscheana —
ao menos do enfraquecimento de força que dele pode ocorrer.

faltou reapresentar a problemática orientadora do trabalho, a hipótese da pesquisa e o resultado a que se chegou, seja ele conclusivo ou não.

121
Que chega a certas conclusões que destoam de visões do próprio budismo apesar de acreditar
que sua forma de enxergar o mundo é igual, o que ao menos Panaioti vai discordar, e elaborar melhor
em seu livro. Não nos aprofundamos demais nesse ponto por não ser a intenção de nossa pesquisa.
61

6. ANEXOS

Anexo A - Os 3 venenos da mente.

Disponível em: https://meditaciondmt.wordpress.com/2017/03/21/los-tres-venenos-


mentales/
Acessado em 20/04/2023 às 10:09.
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1. ed. não
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só a partir
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Tradução de Fernando de Moraes Barros. Cadernos Nietzsche 15, 2003. Disponível
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