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CENTRO DE HUMANIDADES
CURSO DE GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA
FORTALEZA – CEARÁ
2023
GABRIEL ARARIPE HOLANDA
FORTALEZA – CEARÁ
2023
RESUMO
O presente trabalho intenciona pesquisar como o filósofo Friedrich Nietzsche
(1844-1900) e a filosofia budista enxergam e lidam com o sofrimento humano,
buscando compreender o que, para eles, representam as causas do sofrimento, assim
como os diferentes formas de sofredores e, em síntese: o que elaboram como
caminhos e propostas para a superação do sofrimento. Toda a discussão gira em
torno do eixo do que representaria o ideal de Grande Saúde — termo que Nietzsche
cunha — tanto para Nietzsche como para o budismo, enxergando também o que seria
o inverso, ou, o que representaria uma oposição a esse ideal. O ideal de Grande
Saúde nietzscheana está intimamente associada ao desenvolvimento da capacidade
do indivíduo de manifestar o amor fati — do latim, “amor ao destino —; para o budismo
o ideal de Grande Saúde é representado pelo alcance do estado de liberação mental
da ignorância e delusão e recebe o nome de Nirvana. Metodologicamente, usamos da
pesquisa bibliográfica para empreender um entendimento geral em ambas as
filosofias, para então nos aprofundar examinando 5 obras diferentes de Nietzsche e
observando em que pontos elas abordam sobre o budismo; nossa segunda
metodologia foi a comparativa, que reflete-se até na estruturação dos capítulos, em
que apresentamos inicialmente um panorama nietzschiano, e após isso um panorama
budista, para então dialogarmos no último capítulo de forma aberta os dois autores.
Utilizamos a obra “Nietzsche e o budismo”, do filósofo Antoine Panaioti, no momento
final de nossa pesquisa, como principal ponte que conectou ambas as filosofias,
demarcando acertos e enganos de ordem perceptual da análise nietzscheana ligada
ao budismo, assim como revisando aspectos fundamentais de ambas as filosofias no
que diz respeito aos ideais de Grande Saúde. Nosso trabalho, portanto, visa
compreender o que representa o sofrimento para ambas as filosofias, assim como as
soluções que chegam para essa questão e que aspectos podem ser percebidos que
dialogam entre si, assim como qual é a relação que se constrói entre Nietzsche e o
budismo, seja como crítica ou concordância.
A Anticristo
VP Vontade de poder
NT Nascimento da tragédia
MN Mahijima Nikaya
GC Gaia ciência
SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO............................................................................................. 3
2. NIETZSCHE E A FILOSOFIA DO MARTELO…………………………....... 7
2.1 TRAJETÓRIA HISTÓRICA E CONTEXTO CRÍTICO…………………….... 7
2.2 NIILISMO, RESSENTIMENTO E DECADÊNCIA………………………........ 12
2.3 AS MAZELAS FÍSICAS E SUAS CONSEQUÊNCIAS FILOSÓFICAS........ 16
3. BUDA E A FILOSOFIA DA ILUMINAÇÃO………………………………...... 21
3.1 DO TUDO AO NADA AO CAMINHO DO MEIO…………………………....... 21
3.2 FENOMENOLOGIA DO SOFRIMENTO…………………………….……...... 27
3.3 O CAMINHO ÓCTUPLO COMO VIA DA LIBERTAÇÃO………….……... 31
4. NIETZSCHE E O BUDISMO: CONCORDÂNCIAS, DISCORDÂNCIAS E
PONTOS DE CONTATO……………………………………………............... 35
4.1 O ENCONTRO DE NIETZSCHE COM O ORIENTALISMO……………...... 36
4.2 A VISÃO DO BUDISMO PARA NIETZSCHE EM SUAS OBRAS……......... 38
4.3 PRINCIPAIS PONTOS DE ENCONTRO ENTRE NIETZSCHE E O
BUDISMO…………………………………………………………………......... 45
5. CONCLUSÃO…………………………………………………………….......…. 57
6. ANEXOS……………………………………………………………......………... 61
7. REFERÊNCIASCBIBLIOGRAFICAS…………………………………………. 62
3
1. INTRODUÇÃO
1
atenção Panaioti usa esse termo por ser uma das traduções mais comuns para o que na literatura budista
com a chama-se Trishna — ou Tanha, a primeira vem do sânscrito e a segunda do páli —, que diz respeito à
formatação
5
noção de Eu que gera uma delusão2 diante da realidade e que, por sua vez, produz
sofrimento. Como já não estava mais claro se para nenhum dos pensadores o
sofrimento em si era o problema maior, como antes era pensado, mas ou um produto
do verdadeira problema — para o budismo —, ou simplesmente algo natural do qual
não podemos fugir, somente nos tornar mais fortes para lidar com ele e assumir uma
postura mais altiva diante dele — para Nietzsche, optamos por alterar o termo
problema em nosso título para questão, pois de fato é uma questão complexa
discutida de diferentes maneiras por ambas filosofias.
Nossa pesquisa foi realizada utilizando o método comparativo e também o de
pesquisa bibliográfica. O primeiro capítulo foi estruturado em torno de Nietzsche,
buscando realizar uma apresentação mais ampla, tanto de sua história como de certas
visões que dialogam diretamente com nosso tema, demonstrando sua crítica ao tipo
ressentido, sua análise dos diferentes tipos de niilismo — niilismo ativo e niilismo
passivo — e uma introdução ao conceito de amor fati, assim como uma reflexão
acerca de como sua saúde fragilizada ao longo de sua vida pode ter sido um
importante ponto impulsionador para ter desenvolvido suas noções filosóficas, tanto
de diferentes críticas como de visões do que representam o seu “tipo saudável”. No
segundo capítulo nos focamos exclusivamente no budismo, apresentando
inicialmente a trajetória do Buda até pouco após a sua chegada na iluminação, "à"
insaciabilidade dos desejos humanos e que é identificada nas 4 nobres verdades budistas como a
origem de dukkha, termo que será explicado quando falarmos sobre budismo.
2
O termo delusão é utilizado ao invés de ilusão por se configurar como algo muito mais profundo do
que a ilusão. Tanto é um fenômeno de distorção que ocorre de forma ativa — não surgindo apenas de
erros perceptivos ou cognitivos — e que, no sentido usado, é tanto sustentado de forma exaustiva, que
no caso é a ilusão da noção de um “eu” fixo e duradouro que é criada a partir de um processo de
elaboração, como também por ter caráter patológico, enfraquecendo e tornando as pessoas
disfuncionais e desajustadas. Alguns desses estados debilitantes são: medo, frustração, apreensão,
desapontamento, desespero, ansiedade, crises de identidade, etc. A delusão alimenta o que no
budismo chama-se de dukkha.
3
O anticristo; A vontade de poder; Genealogia da moral; Nascimento da tragédia e Ecce Homo.
6
4
Nietzsche escreve em primeira mão sobre como essa situação o afetou profundamente, assim como
a morte do pai e a mudança de cidade, na qual as crianças a custo se adaptaram. O relato sofrido e
poético pode ser lido ainda na primeira página em: HALÉVY, Daniel. Vida de Frederico Nietzsche.
Tradutor: Jerônimo Monteiro. São Paulo: Assunção, 1947. Disponível em: http://www.consciencia.org.
8
pelo nazismo, posteriormente à sua morte. Enquanto ainda jovem e ainda não
desiludido com o cristianismo, Nietzsche intenciona seguir os passos do falecido
progenitor — algo que tanto seu pai como sua mãe almejavam para ele — e,
concomitantemente, a família, muda-se para Naumburg -na Saxônia-, que cursa tanto "onde"
5
rever DE MORAES BARROS, Fernando. Um Oriente ao oriente do Oriente: a investigação de Johann Figl.
formatação, Cadernos Nietzsche 15, [S. l.], p. pp. 69-81.. 2023.
segundo abnt
9
6
JANZ, Curt Pauk. Friedrich Nietzsche : uma biografia, volume I: infância, juventude, os anos em
Basileia. 1. ed. [S. l.]: Vozes, 2021.
7
Paul APUD Nietzsche. Kritische Gesamtausgabe. Org. Giorgio Colli e Mazzino Montinari. Berlim:
Walter de Gruyter, 1967.
10
8
OLIVEIRA, Jelson Roberto de. Nietzsche e o Heráclito que ri:: Solidão, alegria trágica e devir
inocente. Veritas, Porto Alegre, v. 55, n. p.217-235, ed. 3, 2010. Disponível em:
https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/veritas/article/view/6263. Acesso em: 2 maio 2023.
9
Roberto nos aponta que Nietzsche até mesmo diz em Filosofia na idade trágica dos gregos que
somente aqueles que não se dão por satisfeitos com a sua descrição natural do homem é que o acham
assim.
10
Ibid p.226.
11
Ibid p.227
11
própria consequência, uma inferência mais em sua lógica apavorante.”12, com uma
lógica que nasceu embrionária da judaica mas que aprofundou todos os aspectos de
negação da vida que a outra já apresentava. Um trecho que exemplifica — dentre as
dezenas de diferentes trechos em seus livros que poderia apresentar — essa visão
está em O anticristo, quando aponta o conceito cristão de Deus como “Deus
degenerado em contradição da vida, em vez de ser transfiguração e eterna afirmação
desta! Em Deus a hostilidade declarada à vida, à natureza, à vontade de vida.”13
finalizando descrevendo Em Deus o nada divinizado, a vontade de nada canonizada14.
cuidado com Sua crítica também se estende à moral de sua época como um todo, tanto da
as repetições
Alemanha como da Europa como um todo, que era o contexto que estava inserido.
Tudo que de alguma forma enxergasse como negador da vida seria atacado, e ainda
"observava"? assim, observa cada aspecto que criticava sob diferentes ângulos, sendo capaz de
até mesmo elogiar certas facetas ao mesmo tempo que criticava outras. Em sua obra
Genealogia da Moral (1887) assim como em quase todas as suas outras, elabora forte
sugiro reescrever crítica aos valores vigentes, incluindo da própria filosofia como Kant e Schopenhauer,
da arte — tornando-se O caso Wagner uma de suas críticas à arte de seu tempo mais
conhecidas — e da moral. Nietzsche cria um novo método filosófico e o chama de
genealogia, que é diferente da noção do termo usado por outros pensadores. No
prólogo da Genealogia da Moral (§2, p.9) ele nos apresenta como o problema da moral
o levou para a gestação dessas ideias, ao dizer: “sob que condições o homem
inventou para si os juízos de valor ”bom” e “mau”? e que valor eles têm? Obstruíram
ou promoveram até agora o crescimento do homem?”. Mais a frente ele desenvolve
de forma mais aprofundada essa ideia, dizendo:
Necessitamos de uma crítica dos valores morais, o próprio valor desses
valores deverá ser colocado em questão — para isto é necessário um
rever conhecimento das condições e circunstâncias nas quais nasceram, sob as
formatação.
Não esquecer quais se desenvolveram e se modificaram (moral como consequência, como
do ponto final sintoma, máscara, tartufice, doença, mal entendido; mas também moral como
na citação. causa, medicamento, estimulante, inibição, veneno)
12
(A, §24)
13
(A, §18)
14
(A, §18).
12
períodos históricos e desenvolve uma aferição do quanto esses valores são positivos
e/ou negativos e em que circunstâncias. Esse processo de crítica é ao mesmo tempo
o elemento positivo de uma criação, não sendo reação mas caracterizando-se como
ação; sendo a crítica até mesmo uma forma de lutar contra o ressentimento, afirmando
de forma ativa o que se deseja construir e não aceitando aquilo que promove um
adoecimento da vontade. O processo metodológico de Nietzsche pode ser
brevemente introduzido dessa maneira, assim como alguns objetos principais de sua
crítica e sua relação com a realidade que viveu em seu tempo.
Entre as diferentes doenças que Nietzsche teve sabe-se que desde criança
sofrera de enxaqueca com aura15 assim como de certa dificuldade de visão que
aprofundou-se com os anos — chegando a quase tornar-se cego no período que
deixou de efetivamente dar aula na universidade. É útil apontar que apesar de
muito interessante
múltiplas opiniões atribuírem a demência e o aprofundamento da debilidade de
Nietzsche à neurossífilis, estudos tem apontado para a falta de evidências para apoiar
esse diagnóstico controverso. Diferentes visões surgiram com os anos, entre elas a
falta o ponto final de que o diagnóstico de bipolaridade com psicose periódica fossem razões para
grande piora no seu estado mental16 Um artigo17 sugere ser bastante possível e
razoável que Nietzsche também tivesse CADASIL18, por conta de todos os sintomas
de seu adoecimento estarem incluídos no que é gerado por essa doença. Nietzsche
tinha estudos de biologia e realizava automedicação com haxixe e ópio, que em sua
época eram consideradas possíveis tratamento para as debilidades que sofria, além
15
“A aura é definida como manifestações neurológicas bem localizadas, que surge de maneira gradual
(não súbita!), pelo menos uma aura ocorre em um dos lados do corpo, pode iniciar antes ou junto com
a dor de cabeça e possui duração entre 5 a 60 minutos cada aura. A aura visual é a mais frequente,
ocorrendo em cerca de 90% das pessoas que enxaqueca com aura. Suas formas de manifestações
são: pontos pretos (escotomas), pontos brilhantes (cintilações) e imagens em ziguezague (espectros
de fortificação) que surgem em uma parte do campo visual e pouco a pouco vão se espelhando e
crescendo.” Fonte: https://sbcefaleia.com.br/noticias.php?id=351
16
Cybulska, E. M. (2000). "The madness of Nietzsche: a misdiagnosis of the millennium?".
rever abnt Hospital Medicine. 61 571–575
17
Hemelsoet, D.; Hemelsoet, K.; Devreese, D. (March 2008). "The neurological illness of Friedrich
Nietzsche". Acta Neurologica Belgica. 108 (1): 9–16.
18
Cerebral autosomal dominant arteriopathy with subcortical infarcts and leukoencephalopathy.
Traduzida recebe o nome arteriopatia cerebral autossômica dominante com infartos subcorticais e
leucoencefalopatia.
13
de aliviar suas dores; no entanto, é possível que elas tenham piorado seu estado de
saúde com os anos, principalmente pelo uso constante e intenso por vezes.
Pelo fato de Nietzsche desde novo ter tido uma saúde debilitada, como foi
exposto na primeira seção, tendo contraído também novas doenças que se
aprofundaram com o tempo, o filósofo se viu obrigado a ter sempre um cuidado com
seu estilo de vida. Tamanha era a importância que dava para a rotina e os hábitos que
em seu livro Ecce homo, no capítulo Porque sou tão inteligente, parágrafo 10 ele
afirma: “Essas pequenas coisas — alimentação, lazer, clima, distração, toda a
casuística do egoísmo — são incabivelmente mais importantes do que tudo até agora
tornou-se como importante.”. Outro momento, também no Ecce homo que demonstra
esse cuidado — dessa vez de forma prática em relação à si — é a seguinte passagem:
“Minha humanidade é uma contínua superação de mim mesmo. — Mas tenho
necessidade de solidão, quer dizer, recuperação, retorno a mim, respiração de ar livre,
aspa invertida
leve, alegre... “19. Cabe-se a reflexão também de se pensar o quanto seu sofrimento
fisiológico também o impeliu ao desenvolvimento de certos conceitos e ideias
muito importante!
importantes para sua filosofia, entre eles marcadamente o do Amor Fati — do latim,
amor ao destino — e uma valorização do ideal ascético — pode-se notar entretanto
uma diferença entre o ascetismo característico da figura do filósofo e do espírito livre
do ascetismo niilista e decadente que fundamentam o cristão — , este último bem
desenvolvido na terceira parte de sua obra O Anticristo, obra que iremos nos debruçar
no terceiro capítulo de grande importância para se entender como Nietzsche observa
o budismo e o ideal ascético. Nietzsche inclusive tem uma noção de como o seu
sofrimento e suas doenças o deixaram mais forte, como Panaioti bem cita “Devo
minha saúde superior a ela [minha doença], uma saúde que se torna mais forte graças
a tudo que não a elimina!”20, vale ressaltar no entanto que a saúde superior dita nesse
contexto não se refere tanto à fisiológica mas muito mais a uma saúde mental e ética,
uma forma de enxergar a vida e lidar com ela. Outro aspecto que deve-se abordar é
como a visão de Nietzsche acerca da diferenciação saúde/doença também se difere
ao tradicional da ciência, quando diz em VP §47: “Tanto o mal pode ser considerado
exagero, desarmonia, desproporção quanto o bem pode ser uma dieta protetora
contra o perigo do exagero, da desarmonia e da desproporção.”. ele não considera a
19
(EH, Porque sou tão sábio, §8)
20
Nietzsche APUD Panaioti. NW, § 1.
14
21
(VP, §47)
22
(A Gaia ciência, §382)
23
(IBID, §382)
24
(VP, p.41)
25
Que não iremos aprofundar em nosso texto, por conta da dimensão e da complexidade do conceito.
Estamos apresentando somente como um ponto histórico no pensamento de Nietzsche que depois se
desenvolverá aonde nos atemos ao desenvolvimento de nossa pesquisa, no caso: Amor Fati.
15
26
(ISHIKAWA,2016)
27
PASCHOAL, Antonio Edmilson. Nietzsche e o Ressentimento. São Paulo: Humanitas, 2015.
Coleção nietzsche em Perspectiva.
28
(ISHIKAWA, p.144)
29
(IBID, p.144)
16
30
rever abnt (DELEUZE, p.19)
17
que significa niilismo (§2): “Que significa niilismo? – Que os valores supremos
desvalorizem-se. Falta o fim; falta a resposta ao “Por quê?””, os grandes valores
tornam-se todos metafísicos, ideias como Deus, Moral, Verdade, e que geram
problemas quando são tomadas a priori como verdadeiras — algo que Nietzsche ataca
bastante em sua filosofia. A verdade acaba estando sempre além do homem e, pior,
sendo superior ao homem. O problema no niilismo ocorre quando ele passa a negar
a vida. Em VP (§22) Nietzsche expõe a natureza ambígua do niilismo já de dois tipos:
“A) Niilismo como sinal de poder incrementado do espírito: como niilismo ativo. B)
Niilismo como decadência e recuo do poder do espírito: o niilismo passivo.”. O niilismo
passivo pode ser considerado como o niilismo cansado, ele não tem força para atacar,
ele está fatigado, esgotado31, ele prefere desejar o nada ao nada desejar (um além
fictício é preferível para aqueles que não aguentam a crise de valores da vida). Já o
niilismo ativo, apesar de nascer da mesma fonte, de perceber a insuficiência das
crenças, as ficções dos valores que são criadas pelo humano para entregar sentido,
torna-se liberto e afirma sua liberdade, sua Vontade de Poder, ela cria novos valores
por desenvolver uma capacidade de valorar a realidade. “Seu máximo de força
relativa, ele o alcança como força violenta, de destruição: como niilismo ativo.” (VP.
§23).
No niilismo passivo o nada adquire valor, busca-se o nada, uma realidade
idealizada que não encontra fundamento na realidade, enquanto a realidade torna-se
algo pecaminoso ou impuro, um dos problemas que nascem disso é, como Panaioti
descreve: “Não somente o valor do mundo é negado e tido como inútil ou sem valor
como inclusive é carregado de um valor moral negativo. “tendo sido idealizado o
conceito de ‘natureza’ como conceito antitético a ‘deus’”32 o que, em decorrência, faz
com que “‘natural’ tinha de ser a palavra para ‘repreensível’”. (A, §15). É de grande
valia apresentar o outro personagem dessa trama que perpassa por toda a história,
bela frase!
por fazer parte da natureza da existência: o devir. Este — ou isto — é uma realidade
incontestável, a mudança que abarca tudo e todos, que transforma, cria e destrói. É
uma constante dura e assim como ela o sofrimento faz parte inexorável da existência,
no entanto muitos são aqueles que não aguentam esse peso da realidade como vem.
Em decorrência disso, uma das formas do estado psicológico que o niilismo produz é
31
(VP. §23)
32
(PANAIOTI, p, 31)
18
a de condenar todo esse mundo do devir e inventar um mundo que fica além do
mesmo como verdadeiro mundo33. Essa negação é sintoma de um adoecimento da
vontade, como ele diz “Onde, de alguma forma, declina a vontade de poder, há sempre
importante!
um retrocesso fisiológico também, uma décadence", a própria deidade (cristã para seu
contexto) é mutilada em seus impulsos e virtudes mais viris34. Durante esse processo
vai-se gerando a decadência e aprofundando o ressentimento, mas todos esses
aspectos estão interligados de tal forma que é insuficiente a simples afirmação de
dizer que o ressentimento surgiria da decadência e essa por sua vez do niilismo; é lindo!
produto da sociedade, que seria em essência os aspectos doentes dela, como ele diz
“Nenhuma sociedade é livre para permanecer jovem. Mesmo na sua melhor força ela
tem que formar lixo e detritos.36”. O grande problema ocorre quando a décadence
começa a se desenvolver para partes saudáveis37, gerando um adoecimento geral. A
décadence está intimamente associada a um estado de cansaço em diferentes
instâncias, como Panaiot (2018, p.33) escreve:
A décadence é uma forma de fraqueza física e emocional que se manifesta
em primeiro lugar como cansaço e irritabilidade. “a preponderância de
sentimentos de desagrado sobre sentimentos de prazer.” (A, §15) cansados
e irritados, os décadents estão sempre AMARGURADOS com a vida”
33
(VP. §12.1)
34
(A, §17)
35
(VP, §40)
36
(VP, §40)
37
(VP, §41)
38
(PANAIOTI APUD Nietzsche, EH, §7)
19
39
(PANAIOTI, 2018, p.34)
20
e que ainda esteja de acordo com o tamanho e a capacidade que nossa pesquisa é
capaz de comportar.
parágrafo duplo!
40
A literatura pali Theravada (a linhagem mais antiga de budismo) tem um texto com o nome de
Buddhavamsa que descreve a vida do Buda (Siddharta) e mais 27 budas que o precederam assim
como um que ainda estaria por vir, conhecido como Maitreya. Vale a consideração de que existe certa
especulação dentro do hinduismo de que O Buda poderia ser uma encarnação -um avatar- de Vishnu,
deidade védica responsável pela sustentação do universo. Avatares seriam personificações de forças
cósmicas, deidades que vêm à Terra em momentos de caos e destruição para ajudar a humanidade e
22
Seu pai fora Shuddoddana, e sua mãe Mayadevi, mulher refinada mas que
morreu pouco tempo após o nascimento de Siddharta, ficando então aos cuidados de
sua tia, Mahaprajapati. Conta-se uma história de que antes do príncipe nascer, um
grande vidente de sua época, Asita, chegou no palácio de Shuddoddana e disse a
seus pais que ele estava predestinado a ter um império, fosse material ou espiritual
— mas não os dois. Os pais ficaram muito felizes e trataram de cercá-lo de prazeres
materiais — visto seus pai quererem que tivesse apego pelas benécias produzidas
pelo poder e luxo, podendo assim o afastar do caminho espiritual — assim como da
melhor educação possível, tendo recebido instrução marcial, filosófica e religiosa, já
que nasceu dentro da cultura e religiosidade hindu. Se casou aos 16 anos com a
princesa Yashodhara. No entanto, toda essa formação não impediu que o jovem
príncipe cultivasse a reflexão sobre a vida e suas problemáticas, nascidas
principalmente de um episódio conhecido historicamente como “As 4 visões”, que
iremos explicitar agora, junto de uma importante ressalva.
O ponto chave de despertar da atenção de Buda para as dificuldades inerentes
à vida são mostrados em uma passagem de sua vida com 29 anos — no entanto
existem algumas versões diferentes sobre esse momento, assim como diferentes
pontos da própria história do Buda. Uma das versões mais conhecidas é a de que aos
29 anos, sem nunca ter conhecido as doenças, a morte ou a miséria, Buda sai um dia
para passear e o portão do palácio que vivia estava aberto. Ele sai para explorar e
conhecer os arredores quando se depara com um velho cansado, que pede ajuda
para chegar em casa pois teme não conseguir a tempo. Isso o faz reconhecer a
inevitabilidade do envelhecimento. O segundo acontecimento é que encontra um
homem que estava em pele e osso, absolutamente enfraquecido em decorrência de
uma doença que roubara-lhe toda vitalidade; conhece assim como as doenças
poderiam ser debilitantes. O terceiro encontro foi se deparar com um grupo de
parentes carregando o cadáver de um ente nos ombros sendo levado para a
cremação. Reconheceu o enlutamento e ficou profundamente comovido por suas
dores. Ao voltar para o palácio e conversar com seu cocheiro41 Channa, este relata
que a morte é um fato que vem para todos os seres vivos, incluindo sua família e
guiar para caminhos melhores. Essa visão de Buda como avatar de Vishnu no entanto é negada
veementemente dentro das tradições do budismo.
41
outras versões dizem que o próprio cocheiro o levou para andar fora do palácio a mando do
príncipe .
23
esposa. O último encontro que tem é com um asceta recluso de olhar distante, sereno
e independente; ao conversar com Channa este o diz que era alguém que abandonou
o lar e tudo que tinha para buscar uma vida de pureza, assim como alguma resposta
para o enigma da vida. Este último encontro o comoveu e o fez ficar reflexivo, por
vislumbrar que existe uma possibilidade além da aceitação passiva das humilhações
causadas pelo sofrimento humano nas suas mais diferentes formas. No entanto, no
momento que Siddharta retorna para o palácio é recebido com a notícia de que sua
esposa estava grávida. Diz-se que nesse momento afirmou pesarosamente: “Um
fonte?
grilhão foi posto em mim.”.
Após ponderação profunda pelos próximos meses, decide por fim abandonar a
família, esposa, reino e filho42 — que havia nascido pouco tempo antes — para buscar
o seu caminho, considerando que todos os prazeres que tem seriam roubados dele
uma hora ou outra pela própria transitoriedade da vida, ele buscou algo além da
transitoriedade, que conseguisse saciar sua busca por respostas, sobre o que fazer
dito por quem? afinal, como lidar com seu sofrimento. É dito que Siddharta procurou diferentes
mestres e treinou durante um tempo com cada um deles, em que aprendia diferentes
técnicas, principalmente ligadas ao treino de meditação. O primeiro chamava-se Alara
Kalama e lhe ensinou uma meditação chamada akimchanyayatana, “esfera ou estado
de não-objetificação” e o segundo professor chamava-se Udraka Ramaputra, que lhe
ensinou naivasamjnanasamjnayatana, “o estado ou esfera da nem percepção nem
não percepção”. No entanto, chegava um momento que ele já se via em igual maestria
em suas práticas em relação a seus professores e percebia que ainda assim elas não
eram capazes de ofertar as respostas para o enigma do sofrimento que buscava,
então partia em frente.
É útil salientar, para critérios acadêmicos de pesquisa, que é bastante difícil
determinar aquilo que, na imensa literatura búdica, está verdadeiramente ligado à
existência histórica do Buda43, isso se deve, como Dennis Gira comenta em seu livro
aqui, não “Budismo, história e doutrina” (VOZES, 1992): “tal problema vem do fato de que os
precisa
indicar a
editora
autores dos relatos que aparecem nas obras canônicas não eram simplesmente
historiadores” (p.28), e isso acontece pois o intuito principal não era de relatar a vida
verificar abnt
42
Dera a seu filho o nome Rahula, que significava “Amarras”, “impedimento”, ou “Pequeno demônio”.
43
Um texto que aborda bem essas diferenças de visões em relação à vida do Buda é o texto In
Search of the real buddha, escrito pelo estudioso Peter Harvey. Disponível para leitura em:
https://www.lionsroar.com/in-search-of-the-real-buddha/
24
factual do Buda mas sim conservar o que era considerado por seus mestres como a
sua doutrina autêntica. Por essa razão, continua: “não hesitaram muito em acrescentar
elementos historicamente pouco fundados, mente a-histórica, mais compreensível e
mais aceitável a seus contemporâneos.” (p.28). Outra razão para isso se deve ao fato
de ser considerado, pelo cânone budista, a vida histórica de Buda como a ponta do
iceberg de um oceano de vidas vividas no Samsara44 (ciclo que prende os seres à
roda/ciclo reencarnatória), e que se ele despertou isso se deve em grande parte —
até maior, possivelmente — em relação à essas vidas que não sabemos nada, do
que à última que seria, por assim dizer, a provação final para sua finalmente conquista
da iluminação. Por conta disso, existe uma mitologia criada em torno da figura do
Buda, quer antes como depois da sua iluminação.
Após a despedida de seus antigos professores, instalou-se em Uruvilva, perto
do rio Nairanjana, tendo como companhia cinco ascetas, que juntos realizavam
práticas ascéticas extremas, como passar longos períodos de tempo sem respirar e,
posteriormente, semanas ou meses sem comer. Neste período Siddharta quase
morreu, desmaiando no chão. Foi encontrado por uma camponesa que o salvou
alimentando-o com uma tigela de mingau de arroz enquanto passava por ali.
Percebendo que aquele caminho estava provocando uma automortificação do corpo
acabou concluindo que nem o ascetismo extremo e a busca excessiva por controle,
nem a excessiva licenciosidade que se entrega aos prazeres da carne eram o caminho
que iriam levá-lo à iluminação. A partir dessa reflexão desenvolve a ideia do Caminho
do Meio, que prega um equilíbrio entre o cuidado da prática individual — não se
encaminhando para nenhum extremo — como tanto o cuidado individual como
coletivo. No entanto existem outros dois extremos mais sutis que Buda critica: o
eternalismo (crença de que a alma tem um propósito e vive para sempre) e o niilismo
(extremo ceticismo em que se nega o valor e o sentido de tudo). A partir da ideia do
caminho do meio Buda vai desenvolver o nobre caminho óctuplo, que iremos abordar
mais a frente em nossa pesquisa.
Diz-se que Buda afastou-se dos ascetas e, cruzando a margem do rio, sentou-
se sob uma árvore e decidiu que não sairia de lá sem ter atingido a iluminação. Lá
44
Uma explicação mais detalhada: “Samsara – existência cíclica, é o ciclo ininterrupto de mortes e
renascimentos ao qual os seres sencientes estão presos, caracterizado pelo contínuo estado de
sofrimento e insatisfação. Os ensinamentos budistas são elaborados para ensinar os seres como se
libertarem desse ciclo vicioso de sofrimento e alcançarem o Nirvana e a Iluminação” disponível
em:.https://centrodedharma.ngalso.org/2015/09/15/glossario-termos-expressoes-budismo/
25
teria meditado continuamente, sem dormir nem comer, por um período de quarenta e
nove dias45. Ao se aproximar da iluminação teria sido interpelado por Mara, um
demônio que é a representação mitológica hindu do Desejo (Kama) e que, para os
budistas, personifica as visões não-budistas incorretas. Esse acontecimento é narrado
no Sutra do Esforço (Padhana Sutta), no cânone Pali, e relata que Mara tentou
Siddharta de todas as formas para impedi-lo de alcançar a iluminação46, sem no
entanto alcançar sucesso. Quando chegou à iluminação o conteúdo principal que
Buda entrou em contato foi com aquilo que ficou conhecido como “A Lei da originação
dependente”, tradução do sânscrito pratitya samutpada, ou, “coisas que avançam
juntas”.; Em Khuddaka-nikaya47, seção 1.1, se diz:
“Havendo isso, há aquilo; quando isto se origina, aquilo se origina. Sendo assim, havendo
a ignorância, há a ação; havendo a ação, há a consciência; havendo a consciência, há o
nome-e-forma; havendo o nome-e-forma, há os seis órgãos de percepção; havendo os
seis órgãos de percepção, há o contato;havendo o contato, há a percepção; havendo a
percepção, há o apego; havendo o apego; há o desejo; havendo o desejo, há a existência;
havendo a existência, há o nascimento e havendo o nascimento, há a velhice, a morte, a
preocupação, a tristeza, o sofrimento, o pesar e o desespero. Assim, pois, surge o
sofrimento.”48
45
Algumas tradições enxergam como esse período tendo sido somente de 8 dias.
46
Para compreensão das diferentes classificações de Mara, tanto dentro do contexto hindu quanto
budista recomendamos a leitura do texto do Dr. Alexander Berzin, que sintetiza bem em seu texto “As
Forças demoníacas e os quatro maras”:
“Shakyamuni especificou os exércitos de Mara da seguinte forma: desejo sensual, descontentamento,
fome, sede, anseio, preguiça, medo, indecisão, inquietação, desejo pelas coisas transitórias da vida
(ganhos, elogios, honra e fama) e elogiar a si próprio enquanto critica os outros. O Buda percebeu que,
para superar tudo isso, ele teria que parar de identificar-se como os pensamentos sobre essas coisas.”
(BERZIN, Alexander. As Forças Demoníacas: Os Quatro Maras. Studybuddhism. Disponível em:
<https://studybuddhism.com/pt/estudos-avancados/lam-rim/samsara-e-nirvana/as-forcas-demoniacas-
os-quatro-maras>. Acesso em 30/03/2023).
47
O Khuddaka Nikāya é o último dentre os cinco Nikāyas — coleções —, no Sutta Pitaka, que é uma
das "três cestas" que compõem o Pali Tipitaka, sendo escrituras sagradas da tradição do budismo
Theravada e que, em teoria, exprimem a mais próxima da fala original do Buda, por ser a mais antiga.
48
Tradução colhida do livro “Textos budistas e zen-budistas”, organizado e escrito por GONÇALVES,
Ricado M. Editora Cultrix. A edição que usamos não tem a data de publicação, por ser um texto antigo.
achei uma versão de 1995. Verificar se não é a mesma que você está utilizando.
26
49
Saccavibhangasutta é o discurso que explicita as 4 nobres verdades. É ideal para uma breve
introdução ao tema.
50
Essa definição é encontrada no Shastra Yogachara-bhumi (Tratado sobre os Estágios da Prática
da Ioga).
autor, ano e página?
27
as observâncias religiosas — nem nenhum salvador, seja por exemplo Cristo ou até
mesmo Buda —; elas não são fatores essenciais da libertação. A segunda
consideração é a de que a possibilidade de alcançar a bem-aventurança — isso seria
chegar no Nirvana para os budistas — pode ser alcançada enquanto ainda estamos
vivos aqui na Terra, diferente das religiões que promovem uma ideia de recompensa
somente amparados em um ideal de pós-vida.
51
Essas marcas -ou qualidades básicas- recebem esse nome pois perpassam todos os seres capazes
de sentir algo e entrelaçam-se entre si de forma que nenhuma está afastada da outra mas todas
dialogam em conjunto, assim como ocorrem de várias formas e instâncias diferentes.
28
Reconhecer essas verdades no íntimo pode auxiliar a libertar a mente dos três
grandes venenos — nome que a tradição mahayana dá52 —, kleshas53 que geram
grande sofrimento, as quais são: Ilusão — do sânscrito moha —, Apego — raga — e
Aversão — dvesha. Cada um desses três termos pode receber diferentes traduções.
As mais conhecidas para Ilusão são: ignorância, confusão e ilusão e perplexidade. Em
relação ao apego: desejo, ganância e sensualidade. E por fim para Aversão são: ódio,
raiva e hostilidade. Apresentamos essas diferentes traduções com a intenção de
auxiliar a compreender melhor as nuances de cada um dessas ideias, e apesar de ser
até mesmo mais fácil de encontrar — caso realize uma pesquisa simples por “três
venenos budistas”, por exemplo — o uso desses outros termos, consideramos mais
fácil e pedagógico, apresentá-los dessa maneira, diminuindo assim a chance de serem
perpassados por um certo senso confuso de moral. Eles são representados54
simbolicamente por três animais, sendo o galo para a ganância/apego, a cobra para
aversão/ódio e o porco para ignorância/ilusão.
Existem diferentes qualidades e fontes de sofrimento na visão budista, no
entanto o aspecto mais basal visto nos sutras budistas é que existe o sofrimento
interno e o externo. Os sofrimentos internos são aqueles que consideramos como
parte de nós, como emoções pesadas — ansiedade, medo, ciúme, raiva, etc — e a
dor física. Já os sofrimentos externos são aqueles que parecem vir de fora, como frio,
Cuidado
com essas chuva, seca, catástrofes naturais, guerras, crimes, etc. Se é dito que não se é possível
expressões.
Quem diz? de se evitar nenhum desses dois tipos. Além dessa distinção de sofrimento existem
outras, com uma delas sendo uma divisão dos oito tipos de sofrimento, a que todos
os seres sencientes estão sujeitos, e uma organização desses oito tipos em três
categorias.
Os oito sofrimentos são: 1. Nascimento. Além dos possíveis perigos durante
uma gestação, também sofremos a dor e o medo do parto, assim como somos postos
em um mundo confuso e cheio de riscos. 2. Envelhecimento. Se não morrermos
enquanto jovens teremos de enfrentar o processo de deterioração do corpo e da
mente causado pelo envelhecimento. 3. Doença. Todos em maior ou medida
52
Na Theravada se chama “as três raízes prejudiciais”.
53
Na tradição budista -assim como anteriores, tal como a Yoga- o termo kleshas refere-se a estados
mentais patológicos que nos levam a agir de forma negativa e que geram sofrimento em nós e aos
seres ao nosso redor. São os próprios obstáculos mentais que atrapalham a paz interna assim como
uma forma de pensar e agir dotada de maior sabedoria e lucidez.
54
Disponibilizamos uma foto dessa representação, está presente no apêndice, sendo a 2° imagem. massa!
29
vezes ela deseja de forma complexa e conflitante e a atividade mental iludida é a fonte
de todo o nosso sofrimento em última instância — a forma como observamos e
lidamos com a vida. 5. O Eu não está em perfeita harmonia com os seus desejos. O
Autocontrole é bastante difícil e requer esforço e disciplina, comprometimento. Deixar
os desejos tomarem de conta de nós facilita que possamos sofrer mais ainda com o
passar do tempo. É necessário ao menos um cultivo ou uma relação saudável com o
desejo. 6. Eu não está em perfeita harmonia com as suas opiniões. “Quando nossas
crenças não estão alinhadas com a verdade, causamos a nós próprios infindáveis
problemas, pois teremos a tendência de repetir os mesmos erros muitas vezes.”55. 7.
O Eu não está em perfeita harmonia com a natureza. As forças da natureza não estão
sob nosso controle e podem nos fazer sofrer, individualmente e coletivamente.
Buda apresenta tudo isso não com a intenção de nos desesperar, mas sim para
apresentar de forma clara as diferentes razões que geram sofrimento em nós, até
mesmo as mais sutis. Como um médico, precisa apresentar os sintomas e as causas
de uma doença para que o doente entenda o que é preciso fazer para se curar de sua
enfermidade. Ele percebia que “a libertação só é possível com o desencanto pelas
coisas do mundo, que por sua vez passa necessariamente pela contemplação da
impermanência daquelas. Esta é a condição inegociável da libertação56.”, todos os
rever!
55
Capítulo 2 do livro Budismo Significados Profundos, Venerável Mestre Hsing Yün,
Escrituras Editora, 2ª edição revisada e ampliada, São Paulo, dezembro de 2011. APUD Templo Zulai
(Disponível em: https://www.templozulai.org.br/quatro-nobres-verdades)
56
“Majjhima Nikāya: The middle length discourses of the Buddha (MN)”. Trans. Bhikkhu Ñānamoli and
Bhikkhu Bodhi. Sommerville: Wisdom Publications, 1995. APUD BARROS, Clodomir, 2016.
31
reescrever É dado a proposta desenvolvida por Buda como realização do caminho do meio
para a obtenção da iluminação é o nome de Caminho Óctuplo, e tem esse nome por
ser constituída de oito aspectos que dialogam entre si, mas que não necessitam ser
seguidos hierarquicamente como uma sequência de passos, mas que podem ser
trabalhados de acordo com as necessidades de cada pessoa. Eles são tidos como
princípios, não ações per si. Se a natureza do sofrimento e as suas condições são a
primeira nobre verdade e a segunda nobre verdade, a verdade de que se é possível
se libertar do sofrimento e qual o caminho para isso é o que iremos desenvolver nessa
última seção, ligadas à terceira e à quarta nobres verdades.
As oito partes que compõem o caminho óctuplo são: 1. Visão correta. 2.
Intenção correta. 3. Fala correta. 4. Ação correta. 5. Meio de vida correto. 6. Esforço
correto. 7. Atenção correta. 8. Concentração correta. Os dois primeiros passos
trabalham a sabedoria, que sem ela o resto do caminho não tem muito propósito. O
terceiro, quarto e quinto aspectos representam diretrizes morais e são a ética na
prática, sendo útil ressaltarmos que “A moralidade budista não está relacionada a
regras que devem ser obedecidas, mas a condições que facilitem o caminho para a
iluminação.” (THOMPSON et al. 2016, p. 141). Por fim, o sexto, sétimo e oitavo passo
interligam-se e descrevem práticas e recomendações acerca do treinamento da mente
57
“O caminho e as suas etapas: as quatro nobres verdades (catvaryāryasatyaṇi), o nobre óctuplo
caminho (āryāṣṭāṇgikamarga) e os estágios dos buscadores” (kriterion, Belo Horizonte, nº 133,
Abr./2016, p. 105-125), este artigo será nosso principal comentador para a seção seguinte.
32
58
(MN 126. (2009, pp. 997-1001). APUD BARROS)
33
entanto Buda também enfatiza outros aspectos, em que podemos dictar “nossa vida
será purificada, limpa, ao ar livre, moderada e imaculada, e não apontaremos os erros
das vidas alheias59!”, ele também retrata e explicita o oposto, a vida incorreta, dizendo
que são “Esquemas, complôs, sugerir, desprezar, buscar o ganho pelo ganho.60”, a
tradição aponta que um modo de vida incompatível é aquele que se ocupe de: matar
animais, venda de álcool, drogas ou armas. O quarto caminho é o da ação correta,
apresenta-se no aspecto positivo — recomendativo — abrangendo tudo que fazemos
com o corpo61, como cultivo de bons hábitos de alimentação e sono, exercício e
repousos adequados e tudo o mais que se relacionado ao corpo, como hábitos de
trabalho. Já no aspecto negativo envolve seguir os cinco preceitos62 do budismo que
são: 1. Não matar. 2. Não roubar. 3. Não mentir (esse é mais associado ao caminho
da fala correta). 4. Não ter má conduta sexual. 5. Não ingerir substâncias
embriagantes que causam negligência. Todos esses preceitos visam impedir práticas
que geram sofrimento geradas a partir do desequilíbrio e que afastam da senda o
praticante, cada um com suas múltiplas razões. A fala correta aponta um cuidado com
o uso da linguagem, compreendendo que deve-se evitar “a fala inverídica, a mentira;
a fala maliciosa; a fala ofensiva e a fofoca.63”, cada uma sendo capaz de gerar grande
sofrimento para si e para os outros. A recomendação é de quatro diretrizes que pode-
se seguir no que diz respeito à fala: a primeira é sobre só falar a verdade; a segunda
é ser compassivo ao falar; a terceira é ser encorajador e a quarta é se utilizar da
linguagem de forma a que a fala seja prestativa, para ajudar e ser útil ao próximo.
Entramos no último grupo, com os aspectos referentes à concentração e o
treinamento mental: o esforço correto, a consciência correta e a meditação
correta. A prática da meditação é indissociável do budismo, e deve ser compreendido
este último grupo a partir do nexo entre meditação-consciência e esforço (BARROS,
2016). Cumpre-se perceber que, assim como os outros dois agrupamentos, neste a
interdependência também ocorre, sendo, de acordo com Barros: Concentração e
consciência. Elas alimentam-se mutuamente, amparadas e sustentadas, ambas, pelo
esforço constante. A prática da meditação e da consciência focada acalma o corpo e
59
(MN 39.7. (2009, p.363) APUD BARROS)
60
(MN 117.29. (2009, p. 938). APUD BARROS)
61
O pensamento correto diz respeito ao funcionamento da mente, a Fala Correta ao uso correto da
linguagem e a ação correta às ações ligadas ao corpo. São diferentes instâncias, todas
complementares.
62
Também podem ser chamados de 5 comportamentos morais ou 5 princípios.
63
(MN 117.29. (2009, p. 938). APUD Barros)
34
Iniciar
parágrafo
O leitor deve ter percebido até o momento que o budismo se utiliza bastante de listas,
com recuo
de 1,25 de três, quatro, cinco, oito componentes, essa escolha metodológica parte da intenção cuidado!
64
Em tradução literal seria “versos do dhamma” e é um dos livros base mais fundamentais do
budismo Theravada.
65
(THOMPSON et al. 2016, p. 141)
66
Cobiça, raiva e ignorância.
67
(MN 10.3. (2009, p. 145). APUD BARROS, 2016, p.119)
68
Um estado de consciência pura, livre de pensamentos conturbados mas ainda assim tranquila e
concentrada, atenta. Pode ser descrito como um estado de não-dualidade em que o eu e o universo
são experienciados como um.
35
Como nosso estudo foca na relação que Nietzsche desenvolve de algum modo
cuidado
com o budismo, quer concordante ou discordante, convêm também já desenvolver com
repetições
algumas noções acerca de como o pensamento oriental chegou até o filósofo alemão
“destruidor de ídolos”; ainda que somente no capítulo 3 nos aprofundemos de fato nos
aspectos envolvidos, é enriquecedor para nossa pesquisa algumas reflexões. Entre
melhor seria: "terceiro capítulo"
36
elas a grande influência que Nietzsche sofreu durante sua fase acadêmica em Pforta,
por diferentes professores, entre eles: August Steinhart e Karl August Koberstein.
Em relação à Koberstein, é sabido que este “possuía um conhecimento
detalhado das diversas influências da poesia oriental e que tais relações foram, ao
menos, mencionadas nas suas aulas.69” e na investigação de Johann Figl70 é dito que
Nietzsche faz referências tanto ao Mahâbhârata71 como também ao Râmâyana72 em
uma monografia que ele desenvolve em Língua Alemã a partir de um cotejo com os
Nibelungos. Torna-se perceptível como o pensador alemão não somente tinha contato
com diferentes obras bastante valiosas do pensamento oriental como também
recebeu influência de professores para o aprofundamento e inspiração de contato. Um
cf. ABNT
dos principais aspectos do artigo de Johann, citado por MORAES, é a de que “A ampla
erudição dos professores de Pforta constituía, a ser assim, não apenas a melhor das
preparações para o estudo da filologia, mas também estava apta a comunicar a
Nietzsche uma certa noção das idéias orientais” (Ibid., p. 92). No que diz respeito às
Este trecho principais fontes budologistas que Nietzsche entrou em contato e se valeu para
deveria
estar em desenvolver ideias sobre o budismo, Panaioti nos direciona: “C.F.Koeppen, Die
nota de
rodapé Religion des Buddhas, Berlim: F Schneider, 1857-9, e H. Oldenberg, Buddha: sein
Leben, seine Lhere, seine Gemeinde, Berlim: W.Hertz, 1881.” (PANAIOTI73, P.271).
Cumpre também o seu papel expor que para Nietzsche o Orientalismo foi visto
e utilizado de forma ativa como ponto de contraste com o cristianismo — talvez até
69
(MORAES. P.75).
70
O artigo em questão chama-se “Os primeiros contatos de Nietzsche com o pensamento asiático” e
é a base que o artigo “Um Oriente ao oriente do Oriente”, de Fernando de Moraes Barros, se
desenvolve.
71
O Mahâbhârata é o maior épico do mundo, contendo a monumental quantidade de mais de 74 mil
versos escritos em sânscrito com um total de mais de 1,8 milhões de palavras. Escrito entre IV e III
A.C. É visto por alguns autores como a obra de maior importância religiosa para o hinduísmo e
estabelece os métodos de desenvolvimento espiritual conhecidos como karma, jñana e bhakti. É uma
verdadeira obra de desenvolvimento psico-espiritual e trata de diversos aspectos acerca do
desenvolvimento da evolução humana como um todo, entre eles a liberação (Moksha) do ciclo do
renascimento (Samsara).
72
O nome Rāmāyāna significa “Feitos de Rāma”. Este épico, baseado em fatos históricos, foi narrado
pelo sábio Vālmiki e transcrito ao alfabeto devanāgarī entre os séculos IV e III a.C. Narra as
aventuras de Rāma, a sétima encarnação de Viṣṇu, para resgatar sua esposa Sītā das mãos do
demônio Rāvaṇa, seu raptor. Sītā e Rāma são o paradigma perfeito dos amantes que superam todas
as dificuldades para que o amor e a bondade triunfem. O Rāmāyāna é um dos textos mais
significativos da literatura asiática. Uma boa fonte de leitura introdutória do Rāmāyāna é desenvolvido
por Pedro Kupfer e pode ser lido a partir desse link: https://www.yoga.pro.br/o-ramayana-numa-casca-
de-noz/
73
Outras obras indologistas que também teve acesso incluem “J. Wackernagel, Über den Ursprung
des Brahmanismus, Basel: H. Richter, 1877; M. Müller, Beiträge zur vergleichenden Mythologie und
Ethnologie, Leipzig: Englermann, 1879; e H. Kern, Der Buddhismus und seine Geschichte in Indien,
Leipzig: O. Schulze, 1882.” (IBID, P.271)
37
74
Foi inclusive Schopenhauer o principal influenciador que levou Nietzsche a mudar seu foco de
filólogo para desenvolver-se como filósofo.
75
No entanto Panaioti afirma que Schopenhauer nunca deixou de, ao seu modo, estar no fundo da
mente de Nietzsche. “Como lembra Berman de maneira acertada, “Schopenhauer se manteve como a
principal influência filosófica de Nietzsche, mesmo quando se voltou contra ele e Wagner [...] talvez,
Schipenhauer foi mais importante para Neitzsche como ‘bom inimigo’ do que como mentor ou aliado”
(“Schopenhauer and Nietzsche”, p.187)” (PANAIOTI, P,272)
76
Um exemplo dessa crítica pode ser encontrado no §17 de VP, com o título [Em que medida o
niilismo schopenhaueriano ainda é sempre a consequência do mesmo ideal que foi criado pelo teísmo
cristão.]
77
(SCHOPENHAUER, A. O Mundo Como Vontade e Como Representação. Tradução de Jair Lopes
Barbosa. São Paulo: editora UNESP, 2005. p. 23. APUD SILVA Faria, Daniele. P.15)
38
sugiro
querer incessante. A contraparte desse efeito é que, quando um desejo é satisfeito há
reescrever,
para maior felicidade breve, e não satisfeito, sofrimento e quando nada quer, tédio. O
clareza do
argumento desinteresse e a contemplação são práticas que podem trazer alguma paz desse
tormento que é a vida. A saída é o ascetismo, a libertação completa do jugo da
vontade, “a partir da negação e da supressão de toda volição, o santo se desprende
do mundo sensível e de todo sofrimento” (SILVA, Daniele, P.19).
No entanto, enquanto para Schopenhauer, a falta de finalidade da natureza é
insuportável pois ou há o tédio ou o sofrimento, para Nietzsche essa visão ele vai
chamar de “niilismo passivo” e enxerga Schopenhauer como um homem ressentido;
se para Schopenhauer a vontade é causa de imensa dor, Nietzsche se apropria do
conceito e o transforma em um conceito múltiplo, enxergando-a não como estando
fora do mundo mas sim que se realiza na relação, como uma efetivação real; não uma
vontade única mas sim sempre plural, sendo o mundo uma luta constante entre esse
movimento de tensões entre diferentes forças e vontades. Imaginando a vontade de
potência como a potência que quer a si mesma, uma vontade de Nietzsche está reescrever
sempre procurando afirmar a vida por ela mesma, mesmo com seu sofrimento
intrínseco, para ele a grande saúde se anuncia nos valores criados para e enquanto
se enfrentam o niilismo e o sofrimento, transformando o modo anterior de niilismo
citado em um "niilismo ativo”, buscando a confiança no devir e desenvolvendo o ideal
de grande saúde dito na seção anterior. Quanto mais o homem é capaz de afirmar o
que lhe acontece, mais forte se torna para encarar seus desafios que vivencia.
78
SILVA Faria, Daniele. Sobre a influência do pensamento oriental na metafísica da vontade de
Arthur Schopenhauer – um estudo introdutório. P.15. Disponível em
https://www.marilia.unesp.br/Home/RevistasEletronicas/FILOGENESE/Daniele%20da%20Silva%20Fa
ria%20-%202%20_14-24_.pdf
39
diferentes níveis (psíquica, emocional, física) e algumas propostas de cura para esses
males, como também abordamos o conjunto de visões budistas que diz referência de
forma clara às razões pelas quais o budismo enxerga que o sofrimento se introduz na
experiência humana e como é alimentado também por nossas posturas diante dos
acontecimentos, assim como os antídotos que Buda desenvolve para libertar os
indivíduos desses venenos mentais. Buscaremos agora demonstrar a forma como
Nietzsche enxergava o budismo a partir de diferentes obras que desenvolve.
O budismo é um tópico que aparece em diferentes trechos — usualmente
curtos — da obra de Nietzsche, e é importante apontar que o filósofo não tinha
interesse em estudar o budismo para se tornar um historiador dessa religião, mas central
entrava em contato com seu aspecto filosófico para buscar reconhecer o que poderia
ter de valiosa em sua forma de pensar, assim como as marcas que observa que são
caracterizadas por ainda carregarem visões niilistas acerca da vida. Como
apresentado na última seção do primeiro capítulo, Nietzsche tinha certa leitura do
budismo, assim como de visões orientais de forma bem mais ampla do que era comum
para sua época. Percebe-se que o orientalismo aparece muitas vezes em sua obra
como forma de contraste aos valores europeus do tempo que estava inserido, valores
estes tanto morais, filosóficos e religiosos. Para demonstrar de forma mais clara como
o budismo é um tópico que ao menos é pincelado em múltiplas ocasiões, apesar de
nunca tão aprofundado a análise como no O anticristo, traremos a quantidade de
vezes que aparece em alguns de seus livros, nos utilizando do índice remissivo
contido nos livros da editora Companhia de bolso, com a tradução de Paulo César de
gostei!
Souza: em Genealogia da Moral é abordado seis vezes, no Nascimento da tragédia
quatro vezes, em O Anticristo seis vezes, em Ecce Homo três vezes. No entanto tem
um livro que dentre esses analisados — não analisamos o resto da obra de Nietzsche,
somente essas que sabíamos que poderíamos encontrar referencial acerca do
budismo — supera em grande medida todos os outros é Vontade de Poder79.
Somando todos os usos para os termos “Buda”, “Budismo” e “Budista(s)” encontramos
nossa! um total de quarenta e uma80 referências, inseridas e espalhadas em grande medida
79
Para esse livro usamos a edição da editora Contraponto, com a tradução original do alemão de
Marcos Sinésio Pereira Fernandes e Francisco José Dias de Moraes, publicada em 2011. Nela não há
índice remissivo (assim como no Ecce homo) mas realizamos a busca pelo mecanismo de pesquisa no
PDF.
80
Apesar de encontrarmos mais referências acerca da temática budista no livro VP, elas aparecem
mais vezes como formas a contrapor pensamentos europeu e discorre sobre aspectos distintos. Já no
40
Nietzsche ainda apresenta outras formas como esse cuidado ocorre, tanto em
um sentido de hábito coletivo e religioso, como quando aponta que a oração é excluída
da prática budista, assim como a ideia de ascese, e que não ocorre coação
praticamente, e como exemplo lembra que mesmo dentro do mosteiro pode-se sair
A ele é mais direto em relação às temáticas que deseja abordar, condensando em poucos parágrafos
o essencial de suas ideias.
81
Nesse mesmo § ressalta que diferente do cristianismo, o budismo não odeia o pecado e que até
mesmo falta o conceito de “pecado”.
82
(VP, p.188, §342)
83
(A, p.24,§20)
84
(A, p.24,§20)
41
85
(A, p.24,§20)
86
Uma comparação que exemplifica a ideia dessa prática mas trazida ao nosso tempo nos é dado por
D.T.Suzuki em “Uma introdução ao zen-budismo” em que nos lembra que em uma viagem de avião
referência (ABNT)? nos é instruído para que em um caso de despressurização colocarmos primeiro a máscara em nós para
então em quem também precise de nossa ajuda (como uma criança), porque se desmaiarmos não
poderemos ajudar de forma nenhuma quem estiver próximo. É preciso cuidar prioritariamente de si
para estar apto a cuidar de outros.
87
(VP, p.127, §204)
42
Apesar de ser uma citação longa, ela expressa bem tanto a visão que Nietzsche
tem de Buda como um grande fisiólogo como da boa compreensão de seu método ser
eficiente em relação ao cuidado com certas pulsões. Alerta para o cuidado do
ressentimento no indivíduo doente — fisicamente — , e lembra que essa é uma fase
que não somente é preciso se ter um cuidado em especial com o ressentimento, para
não ser produzido um amargor em relação à vida, ao mundo e às outras pessoas,
como também é exatamente o momento em que o sujeito mais está fragilizado e
exposto a isso. O trecho que cita Buda vem do Dhammapada, verso cinco, e é
traduzido usualmente como “Jamais, em todo o mundo, o ódio acabou com o ódio; o
que acaba com o ódio é o amor”, que se aproxima de outra fala muito conhecida do
budismo atribuída erroneamente a Buda mas que é de um erudito budista chamado
Budagosa acerca do ódio e que expressa bem a visão de como o ressentimento é um
sentimento que se retroalimenta continuamente e que se não cuidado rapidamente
pode criar raízes profundas, mas principalmente o caráter autodestrutivo deste estado
psicofisiológico: “Guardar raiva é como segurar um carvão em brasa com a intenção interessante!
referência?
de atirá-lo em alguém; é você que se queima.”, o indivíduo que vive com ódio ou
ressentido não tem paz.
Nietzsche enxerga o homem europeu como bastante ressentido e atribui isso
principalmente aos valores cristãos. O ressentimento é um dos principais pontos em
que se torna claro a visão de como o budismo se diferencia ao cristianismo, isso fica
especialmente claro nas comparações que tece tanto no Vontade de Poder como no
O anticristo. Um exemplo de como enxerga a práxis e a higiene mental do budismo
está presente na página 104 de VP, que diz:
“A religião budista exprime um belo poente, uma doçura e uma suavidade
consumadas, – é a gratidão a tudo o que fica para trás, com o adendo de que
o amargor, a desilusão e o rancor estão ausentes –: por fim, o amor espiritual
elevado, o refinamento da contradição fisiológica encontram-se por trás dela,
que também descansa disso tudo: disso, porém, ela ainda possui a sua glória
espiritual e a candência do sol poente”
88
(VP, p.104)
43
89
(VP, p.115, §179)
90
(VP, p.115, §179)
44
épocas, por exemplo, como aquela em que surgiu Buda” (vp.41), ele inclusive
demonstra apreço e reconhecimento de como o budismo aparece como religião que
nega os valores correntes de seu tempo, como se vê em VP, p.102: “Como uma
religião ariana que diz não, que cresceu em meio às posições dominantes, aparece:
o budismo.”
penso que as Em relação às críticas de Nietzsche ao budismo, a mais essencial é a sua
críticas
mereciam
serem
percepção de que o budismo é uma religião que nega a vida. Nietzsche considera o
desenvolvidas
em outra budismo uma religião niilista; é possível de se observar isso claramente em VP (§23,
seção, para
não quebrar a p.37) quando vai falar sobre niilismo ativo e então afirmar o que seria o seu oposto:
unidade
temática “[Seu contrário seria o niilismo cansado, que não mais ataca: sua forma mais
conhecida, o budismo: como niilismo passivo.]”. Essa visão de Nietzsche acerca do
budismo como negadora da vida é encontrada explicitamente em vários trechos em
que alude ao budismo, considerando isso inclusive um ponto em comum com o
cristianismo. Como esse expresso em VP (p.27):
O budismo indiano não tem um desenvolvimento fundamentalmente moral
por trás de si; por isso nele somente o niilismo é a moral insuperável:
existência como castigo e existência como erro, combinadas; o erro, portanto,
como castigo – uma avaliação moral”
Para Nietzsche, dois são os motivos que podemos elencar principais em que
se é capaz de perceber as ações e valores — as razões por trás das razões — que
se nega a vida. A primeira é que toda ação budista seria realizada com a intenção91,
em última instância, de não necessitar mais ter que voltar a viver novamente depois
da vida atual, e a segunda é o esforço que o budismo faz em relação ao controle das
suas paixões, que para Nietzsche ainda seria considerado um extremo, exemplo disso
é quando diz: “No budismo prepondera este pensamento: “Todo apetite, tudo o que
produz sangue e paixão arrasta para a ação.”92, mais a frente, ainda na mesma
página, continua: “Procuram um caminho para o não-ser e por isso se proíbem todos
os impulsos da parte dos afetos.” Cabe-se notar que em diferentes trechos de seu
pensamento, Nietzsche fala da importância de um agir equilibrado — poderia lembrar
até mesmo, em certa medida, o “Caminho do meio” budista — e ressalta que os
extremos usualmente nascem de algo que está errado, seja fisiológico, moral ou
91
A maior intenção do budista é atingir a iluminação/liberação, em que se reconhece a própria
natureza e consequentemente supera os grilhões kármicos e samsáricos que o atavam à
necessidade contínua de reencarnar.
92
(VP, §155, p.105)
45
valorativo. Essa visão, aplicada à ótica budista referencia a mesma ideia por trás do
trecho citado anteriormente nessa seção que trata a existência como castigo e a
existência como erro, e que somando-se é um erro que alimenta a existência — a
ignorância que gera karma e impede a libertação. É possível de se demonstrar assim
as razões principais que levaram Nietzsche a criticar o budismo.
O último ponto que gostaríamos de abordar brevemente nessa seção é um
apontamento de Nietzsche que ele faz sobre o budismo no Nascimento da tragédia,
também é uma crítica e junto disso uma percepção de como lidar com um problema
que enxerga. Nietzsche diz:
A partir da experiência orgiástica há apenas um caminho para um povo, o
caminho do budismo indiano, que, para ser suportado no seu anseio pelo
nada, requer os raros estados de êxtase com sua elevação acima de tempo,
espaço e indivíduo; enquanto esses, por suas vez, pedem uma filosofia que
ensine a superar, pela força de uma presentação, o indescritível desprazer
dos estados intermediários.93
Ele afirma que através desse estado de arrebatamento — que entrega o nome
“experiência orgiástica” usada antes — ocorre uma aniquilação das habituais barreiras
e limites da existência. Esse abismo do esquecimento separa o mundo da realidade
cotidiana e o da realidade dionisíaca, “Mas tão logo essa realidade cotidiana volta à
consciência, ela é sentida com nojo; uma disposição ascética, negadora da vontade é
o fruto desses estados.”94. Existe certa relação que ocorre de forma pontual e que por
ela pode-se perceber Nietzsche apontando o budismo como uma doutrina que
exemplifica e serve para demonstrar a negação da vontade, mas também há uma
contraposição que Nietzsche aponta, em que para salvar a vontade deste supremo
perigo — niilismo, desejar o nada nesse sentido — há uma personagem que atua
como “uma feiticeira que salva e cura, a arte”95. Observa-se essa análise em O
Nascimento da tragédia e ele volta a referenciar essa mesma ideia e livro no §853 em
Vontade de poder, o trecho específico que cita o budismo fica claro nessa passagem:
“A arte como única força contrária superior, em oposição a toda vontade de negação
da vida; anticristã, antibudista e antiniilista par excellence.” (VP, p.427), o que dá-nos
a entender que essa visão de arte como força que luta contra a negação da vida
persistiu com o tempo. A arte estaria como uma mentira criada para ajudar a lidar com
a crueldade e o absurdo da vida, protegendo-nos de cair nesse perigoso território de
93
(NT, §21, p.112)
94
(NT, §7, p.48)
95
(NT, §7, p.48)
46
negação da vida. Para finalizar nossa seção apresentamos essa última citação que
aprofunda esse pensamento sobre a arte:
Somente ela sabe transformar os pensamentos enojados sobre o horrível ou
o absurdo da existência em representações com que podemos viver; estas
são o sublime, como amansamento artístico do horror, e o cômico, como
desafogo artístico do nojo pelo absurdo.
96
(Panaioti, p.103)
47
97
Panaioti referencia Fragmentos Póstumos 14 (174) para explicitar na literatura de Nietzsche essa
ideia.
48
98
Panaioti também toma o cuidado de ressaltar que essa hipersensibilização não é relacionada a como
cada indivíduo sente a dor necessariamente, mas muito mais direcionado a como se é gerado pelos
décadents uma forma de lidar com o sofrimento que busca afastá-lo cada vez mais, gerando
consequentemente o efeito rebote de se diminuir a resistência ao sofrimento, de aceitá-lo e não ser
destruído por ele.
99
(Panaioti, p.136)
100
Panaioti usa esse termo para falar sobre o eterno retorno.
101
(Panaioti, p.137)
102
Panaioti inclusive defende que o conceito de eterno retorno não tem haver com uma noção
cosmológica, mas somente individual como uma valoração e ficção criada individualmente por cada
ser.
49
um sentido, uma interpretação afirmativa pessoal de sua vida; o tipo saudável torna-
se duradouro e “fixo” por meio da eterna recorrência. Panaioti aponta que em primeira
instância o maior desafio que pode haver é o de levar em conta a possibilidade da
eterna recorrência e com ela também a repetição perpétua de todas as tristezas e os
problemas pessoais, mas que é necessário para se conseguir a autossuperação;
superado o maior obstáculo, o segundo passo é, no campo psicológico, ser capaz de
possível erro
de digitação.
rever a fonte
“reviver a vida exatamente se desenrolou e como irá se desenrolar permite ao tipo
saudável subverter por completo toda e qualquer forma de culpa, de vergonha ou
remorso.” (PANAIOTI, p.138). No entanto, Panaioti também nos lembra que as ficções
gêmeas do amor fati — a falsificação da transformação em Dioniso como Ser e a
ficção do Eu sempre recorrente — são “encenadas por um artista bastante ciente da
falsificação na qual está envolvido” (p.138), reconhecendo o papel vital da ironia no
summum bonum do tipo saudável. E sintetiza essa noção no seguinte trecho:
No amor fati, tanto Dioniso — o “que recorre de forma eterna” — quanto o Eu
fixo, obrigatório, são aceitos e celebrados, mas o tipo saudável nunca se
esquece de que se trata de ficções. Ele os acolhe com ironia, sabendo muito
bem que são suas criações, suas invenções. É assim que ele se torna, de
forma literal, o artista de seu destino (fatum). Essa é a mentira consciente
com a qual “se chega a ser o que se é”.103
É importante ressaltar que Panaioti determina que seu estudo sobre o ideal de
grande saúde budista é realizado pela própria ótica budista a partir de — como todo
seu estudo — um rigoroso cuidado filosófico sem que se tenha a influência de
Nietzsche no processo. Não consideramos isso um problema pelo fato de já termos
abordado diferentes formas como Nietzsche enxerga a proposta budista, podendo
agora nos debruçar a partir desse olhar de um pesquisador que tanto tem uma
vivência relacionada ao espectro budista muito mais profunda que Nietzsche como
que também é um exímio estudioso do filósofo, auxiliando a nos trazer um olhar mais
Sugiro iniciar
outro
neutro sobre o tema. Comecemos então pela abordagem que Panaioti nos apresenta
parágrafo
do termo Nirvana como significando, literalmente “apagamento” ou “extinção”, como falta uma
vírgula
se pode dizer sobre uma chama ou o fogo. Ele analisa a partir das primeiras definições
dadas pelo Pali Text Society em 1925 de Nirvana como termo coloquial em que
definem tanto como o apagamento de uma lâmpada ou fogo, como “2. saúde, a
Cuidado com as repetições de "Panaioti". Sugiro utilizar também: "o autor", "o comentador", "o intérprete" etc.
103
Panaioti escreve uma nota nesse trecho, que consideramos enriquecedor apresentá-la parte dela:
“Enfatizo o “é” porque o tipo saudável sabe que nunca “é”, apenas “torna-se”. Por óbvio, isso faz parte
do ingrediente essencial da ironia no amor fati.” (p.302)
50
104
(T, W, Rhys Davids e W. Sted (orgs.), Pali Text Society's Pali-English Dictionary, Chipstead: Pali
Text Society, 1925, p.198 APUD Panaioti)
105
(Panaioti, p.142)
106
(Panaioti, p.145)
51
que a filosofia budista retrata tudo na vida como sendo necessariamente desagradável
e doloroso a cada momento, como Schopenhauer faz.” (p.168), ao contrário, “os textos
budistas falam de diversas formas de existência que são agradáveis quase que por
completo, nas quais quase não há contato com o sofrimento.” (p.168), mas também é
fato que Buda comentou que nenhum desses prazeres dura, e então Panaioti
exemplifica essa diferença: “Assim sendo, frustração, nostalgia e tristeza nunca estão
muito distantes. Porém, isso está longe de ser tão radical quanto à afirmação
schopenhaueriana de que o prazer nada é senão a ausência de sofrimento.” (p.168).
O autor continua em tom interrogatório perguntando como devemos entender então a
rever a escrita
correta dessa
primeira nobre verdade, a de que o samsara está repleto de dukkha, não seria então
expressão
francesa. Não uma declaração evidente de pessimismo à lá Schopenhauer? Ele discorda e se utiliza
esquecer que
estrangeirismos das ferramentas de análise sintática sânscrita para elaborar107 as diferentes formas
devem se
apresentar em
itálico
de interpretação do termo sânscrito relacionado à ideia de “nobre verdade” e ele
sugere que a interpretação que mais deve se aproximar com a ideia proposta seria a
de uma verdade que ela é assim para o(s) nobre(s), ou seja, para um ser iluminado,
como Buda. A intenção é mostrar que apesar da visão de que dukkha permeia o
mundo é uma questão de perspectiva, e explica: “Muitos podem estar mais ou menos
satisfeitos com suas vidas. Porém, segundo a perspectiva de uma pessoa iluminada
que atingiu a saúde suprema do nirvana, todos parecem estar sofrendo.” (p.169), Buda
vê que todos os estados envolvem dukkha até certo ponto, mas isso não o torna tão
pessimista quanto Schopenhauer; para não restar contradições, ele explicita: “A
questão toda é que as coisas poderiam ser bastante melhores para mim, e não que
tudo é terrível na minha vida. Sob a visão budista de que a vida é repleta de sofrimento
há uma mensagem de esperança, não de desespero.” (p.169), em relação a esse
tópico conclui: atenção aos parágrafos longos!
107
Nesse ponto sintetizamos a sua análise, rever
52
108
(Panaioti, p.170)
53
A sede se baseia na delusão de que “eu” sou alguma coisa acima e além
desses processos, de que existe um corpo e uma mente que são “meus”, que
isto e aquilo pertencem a “mim” etc. Conscientizar-se de que isso é delusório
e, mais cedo ou mais tarde, perceber na prática a ausência de eu é que vai
extinguir a febre da sede e levar à cessação do sofrimento. Por tanto o
summum bonum budista com certeza não é uma questão de negar a destruir
o que “sou” na realidade, mas de abandonar quaisquer delusões sobre o que,
de fato, “eu” não sou.
109
(APUD, p.172).
110
(P.173)
54
Sob esse sentido, significa que as pessoas iluminadas terão se livrado do que
é tipo da existência normal, doentia e “samsarica”: “Em outras palavras, terão se
recuperado da infecção do princípio do ego, que mediante a inflamação da apreensão
e a febre da sede, leva-nos a vivenciar o mundo como dukkha.” (p.173). Panaioti
também aponta que o paradigma pan-indiano da reencarnação e seus pressupostos
não são relevantes para o conceito budista do nirvana como grande saúde. Essa visão
se fecha quando se compreende somente como se dependesse da doutrina da
reencarnação baseada na noção de metempsicose, nos impedindo de enxergar algo
com significado filosófico e psicológico bem maior. Ele cita então um grande pensador
místico indiano, Nagarjuna, que diz: “nada distingue o samsara do nirvana”, e explica
que o nirvana não é um tipo de Céu ou que a grande diferença entre um e outro é
sobre a questão do renascimento, mas que a verdadeira diferença estaria na
experiência individual no mundo. Da forma que consegue explicar mais sucinta
reescrever
resume: “Aqueles que estão infectados com o princípio do ego, e que por isso têm
sede febril, vivenciam este mundo como um mundo de dukkha. Estão “No samsara”.
Os que se recuperam da infecção do princípio do ego e aqueles para quem a febre da
sede passou não conhecem dukkha. Estão “no nirvana”.111 E conclui explicando então
que “A metempsicose não é relevante. Relevante é a autodelusão.”112. Este é o último
ponto que Panaioti aborda acerca da compreensão de que a meta da ética budista
não é sobre sufocar ou cessar a vida ou o que há de natural em nós, mas sim sobre
se recuperar do que está adoecido para se adquirir a grande saúde, sendo em
essência capacitante, e não incapacitante.
Panaioti aborda então a visão que Nietzsche discorre acerca do budismo, no
que diz respeito ao seu cuidado em relação ao ressentiment, o que trabalhamos em
nossa seção anterior como os décadents são enfraquecidos mais ainda por conta do
ressentiment, o que os torna mais irritadiços e suscetíveis ao sofrimento; mas os
budistas têm grande cuidado com as emoções que levam à ira ou que poderiam levar
a cometer vingança, e, por conta disso — de acordo com Nietzsche —, atingiram “a
felicidade negativa da ausência de dor, cujo epítome é o sono profundo do nirvana.”
(p.174), mas “do mesmo modo como afastam os efeitos conscientes do ressentiment
111
(Panaioti, p.173)
112
(Panaioti, p.173)
55
113
(IBID, p.176)
56
Para concluir no que diz respeito a esse ideal de grande saúde e como ambas
as filosofias dialogam entre si, apresentamos a recordação que Panaioti faz de
usar "duas" Nietzsche em que cita 2 passagens enigmáticas sobre o amor fati presentes em Ecce
homo114, em que nelas Nietzsche afirma — surpreendentemente — que o amor fati,
que até o momento era apresentado como envolvendo uma vontade incondicional de
sofrimento, também — a partir dessas duas passagens — envolveria o não sofrimento.
A análise que Panaioti faz é que é precisamente o sofrimento vivido pelo tipo reativo
que promove o ressentment2, e que, por conseguinte: “por envolver a superação
completa de todas as forças reativas, o ideal afirmativo da vida do amor fati também
implicará não sofrer da maneira como sofrem os tipos reativos. Esse “não sofrer” é o
que acontece com o tipo saudável budista para o qual a febre da sede cessou.
Portanto, o amor fati e o nirvana envolvem “não sofrer” na mesma medida.
Ambos envolvem a superação da doença enfraquecedora a qual faz com que
a vida seja vista como depressiva e desesperadamente dolorosa. Sob essa
luz, algo como a “destruição da sede” dos budistas levaria à grande saúde
vislumbrar por Nietzsche. Desse modo, atingir o estado psicológico
característico do nirvana budista, longe de ser uma meta que nega a vida,
pode ser necessário caso se queira superar forças reativas internas para se
atingir o cume da afirmação da vida.115
Isso poderia explicar a razão pela qual, diferente do que Nietzsche pensava, a
chegada ao nirvana parece envolver tudo, menos a anulação que ele atacava, e diz:
“O amor fati é um ideal contrário à anulação. É um ideal de autoestima e de
autoafirmação. Por paradoxal que possa parecer, a superação budista da autodelusão
parece levar a um resultado similar.”116 Um dos aspectos que podemos concluir no
que tange à como Nietzsche e o budismo se conectam de forma nítida é que ambos
perfeito! elaboram uma ética pós-teísta de grande saúde.
114
A nota de Panaioti para esse trecho é: “Ver EH, “Warum ich so gute Bucher schreibe”, NT, §4, e
ibid., GC, §4.”
115
(Panaioti, p.177)
116
(Panaioti, p.177)
57
CONCLUSÃO
117
(P.179)
58
Não fazer esse gênero de inferência
118
As duas principais são a theravada e a mahayana mas dentro dessas existem várias subtradições,
cada uma diferente das outras em diferentes pontos, apesar de concordarem usualmente sobre alguns
aspectos fundamentais, mesmo que as interpretações sejam diferentes desses mesmos aspectos
59
119
Para exemplificar: Um dos textos que mais apareceram em citações em diferentes artigos e até
mesmo citado em livros que encontramos e que não conseguimos encontrar uma edição — nem física
nem online — é o Mahijima Nikaya, o segundo das cinco coleções de textos basais do budismo, que
faz parte do Sutta Pitaka.
120
Ficamos felizes em perceber que diferentes percepções que havíamos construído ao longo do
caminho, quer por intuições — como a própria noção da ideia de grande saúde ser o melhor ponto de
contato entre o budismo e Nietzsche — se mostraram concordantes com o pensamento de um
pensador especializado tanto em Nietzsche como no budismo, no caso o Panaioti.
60
ele vai se utilizar do budismo mais de forma conceitual, analisando que aspectos dele
considera mais saudável que seu tempo — de Nietzsche — na forma de pensar e lidar
com a realidade — e o sofrimento —, mas também compreensivelmente criticando o
que acha válido e que significasse aquilo que ele enxergasse como um niilismo
passivo. No último capítulo de nossa pesquisa, principalmente na última seção, somos
apresentados com a perspectiva de algumas limitações de Nietzsche na visão acerca
do budismo, tanto por conta das traduções de seu tempo como pela análise que faz
dele por conta da proximidade de Schopenhauer121 e até mesmo algumas
interpretações que faz que talvez não estivessem tão próximas do que realmente
significassem, principalmente acerca da ideia de nirvana.
Apesar das problemáticas encontradas ao longo do caminho, acreditamos que
conseguimos enunciar e sintetizar os diferentes aspectos referentes ao entendimento
aprofundado do que fundamentalmente geraria o sofrimento para o budismo e também
como o enfraquecimento ocorre nos indivíduos ressentidos que Nietzsche discorre
sobre. Nossa lógica foi a de apresentar tanto as causas como também os caminhos
propostos por cada uma dessas duas filosofias do que se deveria seguir para realizar
essa superação, se não necessariamente do sofrimento — na visão nietzscheana —
ao menos do enfraquecimento de força que dele pode ocorrer.
faltou reapresentar a problemática orientadora do trabalho, a hipótese da pesquisa e o resultado a que se chegou, seja ele conclusivo ou não.
121
Que chega a certas conclusões que destoam de visões do próprio budismo apesar de acreditar
que sua forma de enxergar o mundo é igual, o que ao menos Panaioti vai discordar, e elaborar melhor
em seu livro. Não nos aprofundamos demais nesse ponto por não ser a intenção de nossa pesquisa.
61
6. ANEXOS
AMBALU, Shulamit; et al. O livro das religiões. Tradução de Bruno Alexander. 2° ed.
São Paulo: Globo Livros. 2016.
Janz, Curt Paul. Friedrich Nietzsche : uma biografia, volume I : infância, juventude,
os anos em Basileia. Tradução de Markus A. Hediger. Petrópolis, RJ : Vozes, 2021.
________. ECCE HOMO: Como alguém se torna o que se é. Tradução de Paulo César
de Souza. São Paulo: Companhia de Bolso. [s.d].