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UNIVERSIDADE DE LISBOA

FACULDADE DE LETRAS / DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA


Curso de Especialização em Filosofia e Estudos Orientais

MAHAYANA-UTTARATANTRA-SHASTRA
Síntese da obra e abordagem no contexto do Mahayana

Sérgio Paulo Martins Gorjão

Trabalho realizado para a avaliação das disciplinas de


Filosofia Clássica Indiana e Introdução ao Budismo
(docentes Prof. Doutor Carlos João Correia e Prof. Doutor Paulo Borges)

0
UTTARATANTRA
UTTARA TANTRA SHASTRA

Maitreya (1)

Introdução
O Mahayana-Uttaratantra-Shastra (em tibetano Gyu Lama) (2) é um dos
textos fundamentais da filosofia budista, tendo como tema de dissertação a
Natureza de Buda ou acerca da Iluminação.
De acordo a tradição budista podemos classificar os textos de várias formas,
mas de um modo mais simples podemos agrupá-los em duas grandes classes:
os ensinamentos que provêm do discurso directo de Buda Sakyamuni e os
tratados que clarificam o seu discurso e que se traduzem em compilações e
comentários (snk: shastra). No contexto dos ensinamentos do Mahayana (3)

1
Fonte da imagem: www.hpluscommunity.com.
2
O título sânscrito poderá ser traduzido, passo a passo, por: Maha (grande, supremo) Yana (caminho, via)
Uttrara (último, definitivo, sublime) Tantra (contínuo mental) Shastra (comentário, tratado); ou seja,
poderá ser traduzido para português de formas diversas mas com o sentido de “Comentário aos
ensinamentos do Grande Veículo acerca do Sublime Contínuo [ou acerca da Natureza de Buda]”.
3
Mahayana, Grande Veículo, uma das três abordagens filosóficas e práticas principais dos budismo, o
qual coloca em ênfase a via da Iluminação (não estritamente pessoal) num contexto de amor e compaixão

1
(também conhecido por Veículo dos Bodhisattvas), o Uttaratantra surge na
linha do segundo grupo, tratando-se de um dos cinco textos transmitidos por
Arya Maitreya um Bodhisattva que se encontra no limiar do último bhumi
(4),ao nobre sábio Asanga (5).
Sendo que os dois últimos ciclos de ensinamentos do Buda Sakyamuni são
considerados os “definitivos”, mas atendendo à dificuldade da sua
compreensão e de realização, dois grandes mestres dedicaram-se a clarificá-
los no contexto do Mahayana: Nagarjuna, que se dedica sobretudo à questão
da Vacuidade; e Asanga, que coloca mais enfoque no contexto da
Luminosidade.
O Uttaratantra (Sublime Contínuo), refere-se à Natureza de Buda ou
Realidade Última (dharmata) e é uma das bases do Mahayana. Neste texto é
desenvolvida a tese de que todos os seres sencientes possuem Natureza de
Buda e que, de acordo com o exemplo do próprio Buda Sakyamuni, é possível
atingir ou revelar a Iluminação, a transcendência do samsara (6), e o
Paranirvana (7), ou seja, o estabelecimento no estado de budeidade, pelo que
naturalmente se encoraja ao refúgio nas Três Jóias (Buda, Dharma e Sangha),
ao abandono de acções negativas e à adopção de uma conduta positiva,
dedicada ao benefício de todos os seres e que, por fim, conduza à revelação
da Iluminação: a via do Bodhisattva (8).

Autoria do texto
A composição do presente texto é atribuído a Arya Maitreya, um Bodhisattva
no limite do décimo bhumi, prestes a revelar-se como o próximo Buda nesta
era (9).

para com todos os seres. O Mahayana surge da necessidade de interpretação dos sutras no que respeita ao
sentido real dos ensinamentos, surgindo como movimento cerca do séc. I a.C..
4
Bhumi: designação dada aos 10 níveis de treino prévios pelos quais os Bodhisattvas passam até atingir a
Budeidade.
5
Asanga (c. 300-370), sábio nascido em Purushapura (actualmente Peshawar, actual Paquistão),
inicialmente adepto da escola Mulasarvastivada mas que se “converteu” à escola Mahayana.
Estão-lhe atribuídas várias obras, quer pelos tibetanos quer por chineses, havendo contudo alguma
discrepância. É um dos fundadores do sistema filosófico budista Yogakara (cujo co-fundador é
Vasubandhu, tradicionalmente referido como seu meio irmão).
6
Samsara é o ciclo dos renascimentos que remete para uma existência em um dos seis reinos: dos
Deuses, dos Semi-deuses (Asuras), Seres Humanos, Animais, Espíritos-ávidos (Pretas) ou Infernos. O
samsara é sinónimo de sofrimento considerando que existe num contexto de ilusão e de dualidade, bem
como dependente do karma (a manifestação das relação causa/efeito ou acção/reacção). O samsara é
também um conceito do vedanta hindu, como o ciclo da transmigração do Atma e a sua manifestação nos
mundos materiais.
7
Paranirvana é sinónimo de Paz absoluta, resultante dos factores de cessação e de Iluminação.
8
Bodhisattva - Seres com um grau de consciência superior que, devido ao seu altruísmo e motivado por
amor e compaixão profundos, estabelecem-se numa prática e progressão espiritual que os conduz à
Iluminação mas, simultaneamente esta evolução e respectivos estados (progressão por bhumis), são
factores em que se apoiam para ajudar todos os seres que se encontrem no ciclo de sofrimentos do
samsara. Embora pudessem, a certa altura, transcender definitivamente o samsara, eles não “ingressam”
porém no Nirvana absoluto devido aos votos e forte sentido de auxílio (amor e compaixão) aos seres.
9
Maitreya “o amoroso”, é considerado na perspectiva sútrica como um Bodhisattva e na perspectiva
tântrica como um Buda. Desta forma pode ser representado de duas formas, sentado mas com um pé
ligeiramente voltado para fora, no sentido em que, como Bodhisattva, está sempre preparado para ajudar
os outros seres, ou sentado sobre um trono à maneira “ocidental” (situação invulgar já que todas as

2
Por solicitação de Asanga, Maitreya concedeu-lhe ensinamentos no Céu
Tushita, os quais foram compilados dando origem a um conjunto de tratados
cujo conteúdo se encontra organizado de acordo com o sistema filosófico do
Grande Veículo. Se excluirmos as referências míticas aos ensinamentos
recebidos de forma “sobrenatural”, podemos mesmo assim observar que o
Uttaratantra tem como suporte as escrituras búdicas do Prajnaparamita-sutra
(nas diversas versões conhecidas: longa, média e curta), constituindo uma
clarificação, uma análise e uma tipificação de diversas instruções aí contidas.

Estrutura e tema
O texto encontra-se organizado em sete pontos (ditos sete pontos vajra),
percorrendo diversas fases desde a geração de Bodhicitta (10) até ao
estabelecimento do Dharmakaya (realidade última), passando assim pelas
fases de geração, aplicação e resultado.
Os sete pontos estruturam-se em 4 grupos:
1. Buda
2. Dharma
3. Sangha (estes três podem ser condensados em apenas um ponto: as
Três Jóias, objectos de refúgio)
4. Os restantes pontos: Kham (elemento individual), Iluminação,
Qualidades de Iluminação e Actividade Iluminadas.
Todos os pontos tratados são antecedidos das respectivas homenagens aos
Budas e Bodhisattvas e, no final, são realizadas as dedicatórias (para o
benefício dos seres).
O tema é, pois, o reconhecimento da Natureza de Buda que existe em todos
os seres, o seu potencial de realização e a “viabilidade” de Iluminação, como
algo que efectivamente pode e irá ocorrer, dependendo da diligência e
motivação posta na rejeição de condutas negativas praticadas através das três
portas (corpo, fala e mente), a purificação de reacções cármicas negativas, o

restantes deidades do panteão budista se apresentam em posição de lótus completa, meio-lótus ou na


posição régia). A sua expressão é de extrema bondade e pode ser representado performando vários
mudras diferentes (os mais comuns como ofertando ou ensinando o Dharma). A ele também se associa o
lótus (símbolo da espiritualidade ou da pureza da mente), uma Roda do Dharma (símbolo dos
ensinamentos), e um bompa (vaso ritual simbolizando a purificação). Apresenta (ou assume mesmo que
“invisivelmente”) também todas as marcas maiores e menores que o identificam como um ser iluminado,
sendo especialmente visíveis a ushnisha (protuberância) no topo do crânio, os lóbulos das orelhas
alongados e a urna (tufo de pelo entre as sobrancelhas, símbolo dos poderes “sobrenaturais”). Maitreya é
regente do céu Tushita, um dos 33 espaços celestiais que se encontram sobre o monte Meru, pelo que
exibe a coroa que lhe foi confiada por Sakyamuni. Também geralmente apresenta um pára-sol símbolo de
da sua condição real e de protecção.
10
Bodhicitta, sinónimo de mente compassiva, mente amorosa, mente de iluminação, bom coração, etc.
Trata-se de um factor essencial à verdadeira prática do Dharma do Buda. Só esta dimensão de realização
permite atingir a Iluminação e, por isso, ela deve ser suscitada na mente dos seres, depois deve ser
cultivada, desenvolvida, sustentada até a budeidade ser plenamente revelada. O Bodhicitta é a síntese da
Mente de Buda, de amor, compaixão, felicidade e equanimidade, em plena sabedoria. Nos seus estágios
evolutivos pode dividir-se em dois tipos: Bodhicitta em Intenção e Bodhicitta em Acção. O Bodhicitta é a
essência dos votos e das práticas dos seres que se encontram na via do Mahayana e em particular dos
Bodhisattvas.

3
domínio das emoções perturbadoras e a libertação de sucessivos véus; bem
como pela adopção das acções virtuosas.
Aqui o próprio Budha Sakyamuni, manifestando-se no corpo do Príncipe
Sidharta Gautama, dá exemplo aos seres (para o fortalecimento desta
convicção) da capacidade de iluminação, através das “Doze Actividades”
(acções da sua vida terrena) ou, em síntese, nos seguintes quatro aspectos:
que nasceu com um corpo humano normal; atingiu a iluminação (logo
demonstrou essa possibilidade); além disso ensinou a outros o modo de atingir
essa mesma condição (apontou então um método que os serem podem
aplicar), por último, atingiu o Paranirvana: o Nirvana absoluto (11).
Contudo neste ponto, quando se refere à Natureza de Buda de que todos os
seres dispõe, deve haver especial cuidado para que não seja compreendido
como uma espécie de atman (hindu) ou de alma (como nas tradições
monoteístas do próximo oriente e do ocidente). Trata-se tão-somente da
“qualidade” desta Natureza de Buda, algo incomposto e que não é, em si
mesmo, puro ou impuro, simplesmente está para além de conceptualizações.
É necessário ter presente que esta Natureza de Buda não “está” ou “é”, em
termos últimos, suja ou limpa, pura ou impura, boa ou má… isso seria cair no
dualismo; contudo para uma mais completa compreensão há que reduzir a
questão ao nível da relatividade, daí falar-se em “purificação”, “domínio”,
“libertação”, etc. A qualidade (ou qualidades) a que nos reportamos são
aspectos de iluminação, que estão para além dos quatro extremos (tão
analisados por Nagarjuna), e que devido às suas características é inconcebível
e indescritível. Contudo as qualidades de iluminação são reveláveis através de
posicionamentos mentais que, em termos últimos, mais não são do que a
realização plena do potencial da mente (no domínio da vacuidade), através da
aplicação de vários métodos e, em especial, pelo desenvolvimento do
Bodhicitta, a expressão da mente iluminada, transformada em expressão de
compassividade amorosa por todos os seres, que permite um desenvolvimento
espiritual, a transposição de vários bhumis através da pratica da disciplina e a
revelação do resultado: o estado do pleno despertar.

Classificação
O presente shastra pertence ao Mahayana, atendendo a que propõe uma visão
consentânea com este sistema filosófico: a não existência autónoma de um
“eu” e dos fenómenos; a firme convicção de renúncia não apenas ao Samsara,
mas também ao Nirvana; a adopção de uma conduta positiva propícia não
apenas para uma libertação individual, mas para extensiva a todos os seres.
Pertence ainda à divisão da escola Madhyamika (que tem duas subdivisões:
Svatantrika e Prasangika). Neste caso a maioria dos estudiosos filia-o ao
segundo sub-grupo: Madhyamika-Prasangika (12).

11
De algum modo estes quatro passos ligam-se de forma estreita às “Quatro Nobres Verdades”.
12
No método Prasangika não são aceites ou apresentadas teorias que possam ser enquadráveis na análise
de qualquer um dos pontos dos quatro extremos. Comprometer-se com uma posição ou apresentar uma
teoria seria um erro, pois geraria de imediato um erro de visão sustentado no apego e logo no dualismo. O
método usado na escola Madhyamika Prasangika é essencialmente a desmontagem dos argumentos dos
oponentes, revelando as consequências das suas visões erradas, sobretudo se elas se inclinam claramente

4
Os textos ainda podem ser classificados como sendo de sentido definitivo ou
provisional (considerando o seu enquadramento no 1.º ou 2.º e 3.º ciclos dos
ensinamentos do Buda). A maior parte dos autores entende-o como referente
ao sentido definitivo, contudo outros, como Sakya Pandita, considerou-o como
provisional. As múltiplas classificações possíveis devem-se à colocação do
texto sobre vários prismas de análise, contudo há um aspecto importante a
reter: para que não se confundam conceitos tão assertivos como
“permanente”, “incomposto”, etc., é essencial desmontar constantemente
essas categorias. Caso assim não fosse o “conceito” de Natureza de Buda e
outros conceitos filosófico-religiosos hindus, como atman, prakriti ou
purusha, não fariam diferença.
É comummente aceite que este texto se inscreve na linha dos ensinamentos
definitivos dados pelo Buda, nomeadamente no que respeita aos da terceira
volta da Roda do Dharma que tratam, essencialmente, da dimensão da
Luminosidade (por complemento aos da segunda volta referente, sobretudo, à
Vacuidade).
É talvez ao facto de se encontrar como referência ao último ciclo de
ensinamentos do Buda e também porque, para um correcto entendimento dos
mesmos, ser já necessário um elevado grau de abstracção e de relativização
dos conceitos operativos, que o Uttaratantra se costuma ensinar apenas no
final dos shedras (formações monásticas superiores), mesmo depois de já se
terem estudado matérias tão complexas como o vinaya, metafísica, astrologia
e outras.
Quanto aos shastras podemos falar, em termos clássicos, de quatro tipos:
1. Os que são reunidos ou compilados por discípulos após terem sido
solicitados.
2. Os therma, ou seja, tesouros espirituais escondidos em locais físicos ou
na mente e que servem o propósito de serem revelados apenas quando
forem necessários, devendo ser descobertos por praticantes com
capacidades especiais nesse domínio.
3. Os textos que estiveram dispersos e que foram reagrupados de forma a
terem um contexto coerente de compreensão (aqui se encontram
textos que foram memorizados ou que redigidos, mas que com o tempo
se dispersaram).
4. Os textos especialmente concebidos para as práticas meditativas.
O presente texto pertence ao primeiro grupo: dos textos compilados depois de
se terem cumprido as formalidades do pedido de ensinamento e da
transmissão do mesmo.

ao eternalismo ou ao nihilismo. Por outro lado, nas asserções deste sistema, existe a consciência das duas
verdades: relativa e absoluta, como elementos estruturantes nas análises e perspectiva nas asserções. Há
também o entendimento das duas acumulações (mérito e sabedoria), como processo de treino para atingir
(ou revelar) a Iluminação.

5
Propósito do texto
O propósito do presente tratado é certificar que a Iluminação é um estado
possível de alcançar, tomando como exemplo o próprio Buda que, devido às
suas tendências kármicas e à compreensão e realização profundas do Dharma,
atingiu o estado de pleno despertar. Serve, assim, de guia aos seres
(especialmente aos praticantes do Mahayana / Bodhisattvayana), no que
respeita à progressão nos diversos estágios de realização “escondidos” no
Prajanaparamita-sutra e de que forma devem estes ser entendidos e postos
em prática como método de acumulação de mérito e de purificação das
máculas. É por este motivo que o Uttaratantra é muitas vezes entendido
como um texto que estabelece a ponte entre os Sutras e os Tantras; ou seja,
entre o conteúdo decorrente do discurso do Buda e as práticas conducentes à
Iluminação.

Textos e ensinamentos base usados na presente síntese:


• Buddha-Nature: Mahayana-Uttaratantra-Shasta; Canadá, Khyentse
Fundation, 2007 (versão online dispensada no sítio digital
www.siddhartasintent.org), com comentário do Lama Dzongsar
Jamyang Khyentse Rinpoché (butanês), compilado a partir dos
ensinamentos dados no Centre d’Etudes de Chanteloube (Dordogne,
França) que por sua vez se guiou por uma versão tibetana (Gyu Lama
[tekpa chenpo gyu lamey tem cho]) e por duas traduções em inglês:
uma da autoria de Ken Holmes (The Changeless Nature: The Ultimate
Mahayana Treatise on Changeless Continuity of the True Nature);
Karma Drubgyud Darjay Ling, 1985; e outra de Rosemarie Fuchs
(Buddha Nature: The Mahayana Uttaratantra Shastra with
Commentary).
• Buddha-Nature: The Mahayana Uttaratantra Shastra with
Commentary; traduzido por Rosemarie Fuchs (baseado em
ensinamentos de Khempo Tsultim Gyamtso Rinpoché), Itaca, Snow Lion
Publications, 2000.
• Tulku Thondub Rinpoché: Hidden Teachings of Tibet an explanation
of the Terma tradition of Tibetan Buddhism; Boston, Wisdom, 1997
• Maitreya on Buddha Nature; traduzido por Ken e Katia Holmes
(baseado em ensinamentos de Khenchen Thrangu Rinpoché e Khempo
Tsultim Gyamtso Rinpoché); Altea Publishing, Scotland, 1999.
• Em especial os ensinamentos verbais recebidos do Lama Dzogchen
Ranyak Dza Patrul Rinpoché (tibetano), ensinados no âmbito do Shedra,
no ano lectivo de 2009, em Dharma City (Florennes, Bélgica) (13).

O presente trabalho, realizado para a avaliação das disciplinas de Filosofia


Clássica Indiana e Introdução ao Budismo, nomeadamente para o Prof. Doutor

13
A compreensão do shastra em apreço, mesmo que limitada e parcial da minha parte, deve-se
inteiramente à generosidade e qualidade dos ensinamentos recebidos deste Lama a quem dedico qualquer
mérito que o presente trabalho possa ter.

6
Carlos João Correia e Prof. Doutor Paulo Borges, do curso de especialização
em Filosofia e Estudos Orientais do Departamento de Filosofia da Faculdade
de Letras da Universidade de Lisboa, pretende apenas sintetizar os pontos
principais da obra Mahayana-Uttaratantra-Shastra ressalvando os principais
aspectos focados. Contudo, devido à complexidade e profundidade da obra,
não será possível em tão poucas páginas ter um vislumbre correcto do tema
tratado, a Natureza de Buda, nem tão pouco foi possível um entendimento
mais abrangente da obra num contexto mais alargado do budismo como
movimento heterodoxo das filosofias de raiz hindu.

7
Síntese do texto:

A estância 3 do Uttaratantra revela a estrutura do shastra, distribuindo-se por


7 pontos vajra.
Buda Testemunho de que, compreendendo a realidade última,
Sidharta tornou-se um Buda.
Dharma Plenamente Iluminado Sakyamuni ensinou o Dharma.
Sangha O Dharma foi ensinado a uma assembleia de discípulos: a
Sangha.
Elemento Cada ser senciente tem determinada disposição ou elemento
(kham) e, de acordo com isto, pode executar diversas acções
como a acumulação de mérito e sabedoria, e a purificação do
karma.
Iluminação Agindo, assim, em acordo com a disposição ou elemento, todos
os seres (incluindo os membros da Sangha que tiveram o bom
karma de escutar o Dharma autêntico) atingem a Iluminação ou,
mais correctamente, iluminam-se, já que não há nada a
“atingir”.
Qualidades No processo de Iluminação simultaneamente todas as Qualidades
são reveladas.
Actividade Com as “Qualidades de Iluminação” automaticamente toda a
actividade que os Budas e Bodhisattvas possam ter será
inexoravelmente para benefício dos seres.

Primeiro ponto Vajra: Buda (Estâncias 4 – 8)

Na estância 5 referem-se claramente as oito qualidades de Buda:


1) As que são próprias (ou específicas) do Buda:
3) Que este estado é incriado (incomposto); aqui se certifica
que o estado de Buda (não se entenda aqui como o Buda
histórico, Sakyamuni, mas sim o Buda em termos absolutos, um
“corpo” na dimensão do Dharmakaya) (14), não tem princípio,
meio ou fim, não tendo por isso exaustão ou cessação, isto
porque é incomposto (está para além dos skandas) (15).

14
Trata-se do Corpo Absoluto de Buda, um estado não dual, para além dos 4 extremos e que integra todas
as restantes dimensões sem qualquer espécie de concepção. Este tópico é tratado no decurso do texto
como expressão equivalente a Buda, ou Natureza de Buda, Verdade Última, Grande verdade ou
Tathagatagarba.
15
Skanda, agregados que compõe as percepções: forma (matéria), sensações (prazenteiras, neutras ou
desagradáveis), percepção (cognição), formações mentais (tendências), consciências (sentidos).

8
4) Que não havendo qualquer esforço à sua manifestação ele é
espontaneamente presente ou completo; e totalmente livre dos
extremos, porque pacificou ou transcendeu todos os conceitos,
logo é Paz.
5) Que este estado só se consegue revelar através da sabedoria
do auto-conhecimento e de compaixão para com todos os seres,
logo não depende de condições externas, tem de ser
“cultivado” interiormente e pessoalmente.
2) As que são potencialmente fruíveis por outros:
6) Detém sabedoria,
7) Detém amor compassivo profundo, pelo que:
8) Tem poder (ou capacidade) de dissipar os sofrimentos.
Assim há dois sentidos expressos: a noção de que a Budeidade tem uma
dimensão “íntima” e pessoal: incomposta, espontânea e imcompreensível ou
irrealizável por via de outro agente; e um segundo sentido, de que é uma
manifestação de sabedoria, compaixão e que isso revela poder de acção em
prol dos outros.
Embora este conjunto de 8 qualidades do Buda se dividam em 2 grupos, há
aqui uma ponte que pode ser estabelecida entre ambos: de um lado aquilo
que é próprio de cada ser enquanto budas em potência, algo que há de
“realizar” pessoalmente e que em nada depende de terceiros; por outro a
disposição de receber as bênçãos (sabedoria, compaixão e poder) dos seres
iluminados.

Segundo ponto Vajra: Dharma (Estâncias 9 – 12)

Na estância 9, em jeito de homenagem/posternação, faz-se uma “definição”


sobre o Dharma (ou na realidade sobre o que não é, dado fazê-lo por via
apofática, pela negação relativamente à possibilidade de pender para
extremos).
O Dharma é sumariado como estando para além de ser existente, ou não-
existente, ou ambas as coisas ou nenhuma delas. Está para além da
capacidade das palavras e linguagem, e para além de métodos de análise e de
analogias. Pode apenas ser “conhecido” através de realização da Sabedoria.
Está livre das raízes do samsara, logo livre de emoções negativas e
pensamentos perturbadores. É um caminho e Luminosidade pura; está para
além dos objectos e dos apegos e aversões aos mesmos; e é “O” antídoto à
Ignorância (16).
A estância 10, 11 e 12 classificam o Dharma como tendo 8 características (ou
mais propriamente duas características e seis qualidades):

16
Aqui entenda-se ignorância como a perspectiva dualista, a crença na existência de um “eu” autónomo;
o apego, a aversão e todas as emoções e pensamentos que daí decorrem.

9
Referentes à Verdade da Cessação [do sofrimento]
Inconcebível
Não dualista
Livre de conceitos
Referentes à Verdade do Caminho [para a cessação do sofrimento]
Pureza
Claridade
Antídoto [contra os 3 venenos: ignorância, apego e aversão]
Na estância 12 reafirma-se que o Dharma não é matéria de compreensão
lógica ou de “investigação conceptual”, por isso é inconcebível, sem
dualidades e livre de conceitos; também por isso mesmo se torna
inexpressível por palavras e matéria de realização interior pelos Bodhisattvas.
Atendendo que não se inclina para extremos o Dharma não é arrastado para os
ciclos cármicos nem por emoções perturbadoras, logo é Paz; livre de todos
véus de obscurecimento, e livre de pensamentos. Deste modo o Dharma puro
e comparável à luz do Sol.
Neste ponto há uma chamada de atenção no que respeita ao “entendimento”
sobre o Dharma, que muitas vezes é percepcionado como uma ideia
académica ou interpretado como um método de atingir a Iluminação, mas na
realidade é apresentado como sendo mais que isso. Paradoxalmente para uma
realização correcta do Dharma há que “desmontar” conceitos e, por esse
motivo, o entendimento meramente lógico e “académico” deste aspecto
nunca é perfeito.

Terceiro ponto Vajra: Sangha (Estâncias 13 – 22)

Na estância 13, tal como nos pontos vajra anteriores e em jeito de


homenagem/posternação, faz-se uma “definição” da Sangha dos Bodhisattvas
que já passaram à fase de não retorno.
Esses Bodhisattvas, já livres de emoções perturbadoras grosseiras, revelam
uma mente luminosa que lhes permite entender a sua existência como algo
que está para além dos extremos e sobretudo do conceito de uma existência
própria intrínseca. Também nesta perspectiva os Bodhisattvas detêm duas
sabedorias: a realização de que a natureza do Dharmakaya existe em todos os
seres e o entendimento dos fenómenos tantos quantos eles sejam, como
sendo sem essência própria individual; ou seja, trata-se de uma sabedoria que
“vê” correctamente e completamente, produzindo ainda um efeito de
purificação corrupções e dos dois obscurecimentos (emocionais e cognitivos).
Uma visão correcta e omnisciente dirige o “conhecimento” para o facto de
tudo ser ulteriormente puro e, imediatamente a seguir, para o facto que nem
sequer se poderá falar em “puro” (para evitar a oposição a impuro). A

10
natureza da mente revelada pelos Budas e Bodhisattvas, o Tatagatagarbha,
“É”, em termos últimos, sem classificações.
As estâncias 15, 16 e 17, referem a seguinte classificação adaptada à Sangha
dos Bodhisattvas, contemplando oito aspectos:
Referentes a Sabedoria (Rigpa)
1. Conhecimento de que todos os seres sencientes dispõem de essência da
natureza de Buda “Tatagatagarbha”;
2. Conhecimento da quantidade e natureza de todos os fenómenos;
3. Auto reconhecimento da sabedoria interior.
Referentes a Libertação
4. Libertação em face dos sentimentos de apego e aversão;
5. Libertação em face dos obscurecimentos;
6. Libertação do sentido dos veículos inferiores (Hinayana) que não
conduzem a uma Iluminação efectiva.
Desta forma se tenta demonstrar a superioridade da Sangha dos Bodhisattvas
por comparação aos seres comuns (que apenas aspiram a não sofrer e não
renascer em reinos inferiores), aos Shravakas, que aspiram a uma libertação
pessoal; aos Pratyekabhudas, que embora reconheçam o sistema da
interdependência e dos 12 elos de co-produção condicionada, não atingem
mais do que o estado de Aharat.

[Três Jóias]

As estâncias seguintes dedicam-se a estruturar o sentido do refúgio nas Três


Jóias:
O Buda como expressão do Mestre/professor com qualidades búdicas; o
Dharma como a expressão da Verdade justa, da interdependência e
vacuidade; e o Sangha como destinatário e campo de florescimento.
Referem-se também as diferenças de objecto de refúgio: os Shravakas
depositam o seu voto de refúgio último no Sangha; para os Pratyekabhudas
será no Dharma e para os Bodhisattvas no Buda.
No caso do Mahayana (ou do Bodhisattvayana) entende-se que o tudo terá de
ser abandonado/eliminado, tanto o Sangha (companheiros de percurso) que,
mesmo que estejamos a falar de Bodhisattvas, não são ainda não são
totalmente perfeitos dado que têm, ainda que em níveis extremamente
subtis, aspectos de imperfeição; como o Dharma, que é comparado a um meio
para atingir um fim: como um barco que serve apenas para atravessar para
outra margem e que, depois de ser correctamente utilizado, deve ser deixado
para trás, tanto mais que o Dharma revelado é essencialmente de dois tipos:
escrituras e realização (em ambos os casos são elementos compostos,

11
destinados a um entendimento dos seres e por isso não é totalmente
permanente).
Assim, de acordo com Maitreya, após o abandono de tudo, resta o estado de
Buda como refúgio último, por ser totalmente perfeito. Este estado assume-se
no Dharmakaya, logo é um estado “absoluto”, que não só não é composto
(logo é permanente), como incorpora todos os fenómenos, mesmo o Dharma e
o Sangha.
Mesmo que o refúgio no Buda integre automaticamente o Dharma e o Sangha,
este deve ser sempre dirigido às Três Jóias, porque efectivamente existem
laços de interdependência entre estas dimensões, essenciais a que os seres,
quer os comuns, quer os Bodhisattvas, consigam revelar todo o seu potencial
búdico, podendo-se encarar, nesta perspectiva, diversos níveis de acordo com
as capacidades / estados dos seres.
Na estância 22 resumem-se, então, as 6 qualidades das Três Jóias (como um
objecto único):
1. Rara [porque são necessárias muitas circunstâncias auspiciosas para
que esta seja reconhecível, dado que nem sempre se revelam Budas,
nem sempre estão disponíveis ensinamentos e nem sempre se obtêm
condições ou corpos favoráveis à aprendizagem, como o “precioso
corpo humano”];
2. Livre [dos obscurecimentos (cognitivos e emocionais), emoções
perturbadoras e tendências habituais];
3. Com poder (ou Poderosa) [é antídoto e tem habilidade de dissipar o
sofrimento];
4. Adorno [porque detêm características especiais de raridade e
simbologia, são preciosas como fontes de refúgio para o nosso mundo e
são belas];
5. Sublime [pelas mesmas razões indicadas anteriormente e porque são
insuperáveis por outras];
6. Imutáveis [logo confiáveis em absoluto, fontes de esperança].

Geralmente estas 6 qualidades resumem-se a dois adjectivos que


caracterizam as Três Jóias “Raras e Sublimes”.

[Introdução aos restantes 4 pontos Vajra]

Nas Estâncias 23 – 26 volta-se a falar das Três Jóias mas no que respeita à sua
função, sendo a ênfase é posta, neste caso, na razão pela qual as Três Jóias
se manifestam.
As Três Jóias manifestam-se quando a Natureza de Buda está represada nas
máculas que desenvolvemos; mas também quando está livre delas; também se

12
manifestam porque detêm grandes qualidades (como os 10 Poderes, 4
Sagacidades, 18 Qualidades Distintivas, as 32 Marcas Maiores), e porque se
revelam espontaneamente em infinita actividade motivadas pelo Bodhicitta e
destinadas ao benefício de todos os seres.
De um modo comparativo, a Natureza de Buda existe mas imaginamo-la retida
com diversos tipos de obstruções e impurezas, embora na realidade ela não
seja pura nem impura, ou esteja obstruída. Contudo, para conseguirmos
clarificar este mau entendimento, precisamos, na perspectiva relativa,
promover uma purificação das máculas (usando o Dharma e a Sangha).
Há, no entanto, 4 paradoxos que se afiguram metodologicamente
inquietantes:
Se a Natureza de Buda é Pura e existe em cada ser, porque é que se
sente inquietação a fim a revelar?
Se a Natureza de Buda é “Iluminação”, porque é que os seres sentem
necessidade de purificar ou eliminar algo?
Se as qualidades do Buda são “indivisíveis” e existem em todos os seres
(sem aumento ou regressão), então porque é que não são aparentes?
Tendo os Budas uma actividade espontânea de amor e compaixão,
omnipresentes e penetrantes, como ou porque é que esta ocorre sem
qualquer espécie de intenção?
Em resumo: todos os seres têm Natureza de Buda mas, devido aos
obscurecimentos, terão de realizar uma purificação de forma a obter as
condições para a sua revelação. É por este motivo que as Três Jóias surgem
como objecto de refúgio, são como que a chave para descodificar a
compreensão, a realização e a sabedoria para atingir a Iluminação.
Assim, o primeiro dos paradoxos surge como “causa” – a inquietação e o
sentido de que há algo para além da percepção comum [que funciona à
semelhança do que Sidharta sentia quando vivia fechado no palácio e a
inquietação que sentia por conhecer a realidade, metaforicamente algo que
estava para além da sua visão, para além dos muros do seu “ego” e da sua
ignorância], e os restantes três são as “condições” [trata-se da necessidade de
purificação, de atingir as qualidades de libertação que só se adquirem através
da prática do Bodhicitta].

Quarto ponto Vajra: Kham / Elemento (Estâncias 27 – 167)

Este é um longuíssimo capítulo, o mais importante de todo o Uttaratantra,


sintetizado logo no primeiro verso quando se diz que todos os seres têm
Natureza de Buda.
Qualquer ser pode praticar o Dharma e com isto revelar a Iluminação. Só o faz
porque tem Natureza de Buda (snk.: Tathagatagarba), algo entendível como
“potencial” mas na esfera do incomposto. Numa visão tendencialmente
tântrica pode dizer-se que todos os fenómenos do Samsara e Nirvana são

13
idênticos. Por este mesmo motivo não se pode dizer que os Seres e a Natureza
de Buda são algo diferenciado.
O Tathagatagarba é aqui estabelecido através de razões lógicas: a vacuidade,
a “existência” sem elaboração e a luminosidade; mas também pode ser
asseverado, de forma clássica, fazendo fé nas escrituras, ou seja, nos sutras.
Em alguns sutras e shastras é dada ênfase à Vacuidade, noutros é enfatizado o
aspecto da luminosidade (como as qualidades do Buda), mas na realidade é a
justa compreensão de que ambos estão intrinsecamente associados que pode
existir uma realização efectiva da Natureza de Buda.
Num determinado nível temos de aceitar que todos os seres têm
Tathagatagarba e que este é absolutamente imperturbável por
obscurecimentos cognitivos ou emocionais. Assim nada há a purificar porque
na realidade nem sequer alguma vez existiu algo que fosse puro ou impuro e
que por sua vez pudesse ser correlacionável com essa Natureza Búdica. Este é
um raciocínio ou uma razão que se reporta à “Verdadeira Natureza”.
Contudo, noutro nível de entendimento (relativo), embora na perspectiva do
Tathagatagarba nada haja a alterar, na perspectiva dos seres existe algo a
purificar; ou seja, havendo a ideia de que existem qualidades e que as
mesmas têm de ser reveladas, há simultaneamente a necessidade de
encontrar caminhos e realizar processos a fim disso acontecer (purificação de
máculas, a confissão, o abandono de acções negativas e acumulação de
mérito pela prática das acções virtuosas). Esta é uma razão que se pode
classificar como “Procurando o Resultado”.
De acordo com o exposto anteriormente podemos entender que existe a
dimensão da vacuidade, mas também a dimensão das qualidades ou aspectos
do Buda, algo que encaramos como referente à dimensão da luminosidade,
mas que são apenas objectos internos da nossa mente. Como nada neste
domínio é exterior, nem composto, logo não diferem de cada ser nem do
Buda, não são aspectos animados ou inanimados, nem é algo que se possa ser
dito como “existente” ou “não existente”, em sentido comum, ou que é
“bom” ou “mau” em termos absolutos.
Intelectualemente podemos considerar que, em essência e numa perspectiva
absoluta (do Tathagatagarba), há uma transcendência de conceitos e não é
aplicável uma visão dualista. Podemos assim falar de uma Visão Pura.
Contudo, na perspectiva dos seres, terá de ser usada a sabedoria do auto-
conhecimento para analisar e eliminar os múltiplos véus que recobrem e
escondem a plenitude da iluminação.
Neste caso uma das analogias mais usadas será a do Sol no céu. O Sol, tal
como a Natureza de Buda, existe e espontaneamente revela as suas
qualidades (como a luz e o calor dos raios solares), agindo para o benefício de
todos os seres sem intenção. Contudo o céu pode estar coberto com nuvens,
sendo impossível que a luz passe, ou que o Sol de manifeste. Pode até
acontecer que se aceite que o Sol existe mas não se vê. Só com a dispersão ou
ausência de nuvens (equiparáveis aos véus) é que o Sol (o Tathagatagarba) se
pode manifestar plenamente.

14
Na estância 29 referem-se os 10 aspectos da Natureza de Buda numa alusão
aos significados secretos da própria vacuidade; e nas seguintes estâncias faz-
se uma descrição mais detalhada de cada um destes aspectos:
1. Essência / pureza - A Natureza de Buda é essencialmente pristina e
primordialmente pura. Tal como uma jóia, a água ou o céu,
intrinsecamente livres de qualquer mácula.
2. Causa - A Natureza de Buda manifesta-se com motivação (o benefício
dos seres), embora não se trate de uma causa “real”, porque é
composta, mas apenas aparente. Assim a Natureza de Buda emerge
pelas seguintes 4 causas: pela devoção ao Dharma (entusiasmo pela
prática do Mahayana), elevada sabedoria (Prajna) referente à não-
dualidade, Samadi (estado de beatitude, felicidade e de posse de
poderes decorrente da prática meditativa, predispondo à satisfação de
todos os desejos dos seres, nomeadamente o desejo de obtenção de
felicidade) e Compaixão (o desejo / necessidade de eliminar os
sofrimentos dos seres sentido pelos Bodhisattvas, a essência da
Vacuidade e logo da Natureza de Buda). O Tathagatagarba [Natureza
de Buda] dispõe assim de qualidades inalteráveis, como o céu; bem
como de poder efectivo (como a Jóia Cittamani), agindo apenas com
uma cognição inobstrutível: a Compaixão.
Nas estâncias 32 e 33 referem-se as antíteses às 4 causas acima
mencionadas: a repulsa (agressão ou negação) pelo Dharma (antítese à
devoção/interesse pelo Dharma), o apego à ideia de existir um “eu”
autónomo [por oposição à Sabedoria], o medo ao Samsara e
consequente desenvolvimento de desejo pelo Nirvana numa perspectiva
egocentrada [antítese a Samadi], e não desenvolver acções para o
benefício dos seres [opondo-se ao sentido de Compaixão].
Cada uma destas antíteses são obscurecimentos que podemos
correlacionar com diversos tipos de seres: o primeiro será com os seres
comuns, eivados de ignorância e estupidez, que se recusam a aceitar a
ideia de morte ou outras circunstâncias naturais (a lei do Karma); o
segundo por seres que, embora tenham uma via, mesmo assim têm
fortes inclinações e sobretudo um exacerbado sentido de “si”; o
terceiro é obscurecimento muito comum aos Shravakas que apenas
desejam, individualmente, não sofrer; e o último aos Pratyekabudhas,
que de tão centrados que estão em si mesmos, não observam as
necessidades dos outros, como se não houvesse correlação entre a sua
felicidade e a dos restantes.
Os Bodhisattvas são aqueles que fogem a este ciclo de antíteses. A sua
prática apoiada no Dharma é como uma semente; a sabedoria de
entender sunyata é como uma mãe que dá à luz todas as qualidades
búdicas; o Samadi é como um útero ou um colo maternal, um lugar de
aconchego onde se dissipa todo o medo (do Samsara); e a prática da
Compaixão como uma enfermeira que trata e beneficia todos os seres.
Pode ainda ser observada como tendo 4 fases associadas: a de
instrução, geração, prática e resultado.

15
A via do Bodhisattva atrás expressa é não só um movimento
generalizado de benefício para todos os seres, como também uma
forma de purificar obscurecimentos e acumulação de méritos essenciais
ao aprofundamento da Visão no sentido da Iluminação.
3. Resultado - A Natureza de Buda é igual ao seu resultado, o
Dharmakaya.
O resultado refere-se essencialmente aos frutos que são a perfeição do
estado de Buda, ou de uma forma mais simples, por analogia às 4
Nobres Verdades, à erradicação da doença após aplicação dos
remédios. Neste capítulo referem-se as 4 visões erróneas (ideia de um
“si”, percepção dualista, a infelicidade e a permanência), por oposição
aos resultados das 4 causas: não certificação da existência de um
“eu/si”, não dualidade, felicidade e impermanência.
Por outro lado, dado que o resultado final é o próprio Dharmakaya,
este é caracterizado como sendo claro/luminoso, expressão de
felicidade, permanência e entidade verdadeira/com existência própria;
contudo qualquer rotulagem que se lhe aplique é meramente
indicativa, dado que o Dharmakaya não se confina aos limites destes
conceitos, estando por natureza livre dos mesmos e transcendendo-os.
No que respeita à via dos Bodhisattvas, com o desenvolvimento do
Poder da Sabedoria conseguem furtar-se ao Samsara, contudo, pelo
Poder da Compaixão, mantêm-se fora do Nirvana para o auxílio a todos
os seres.

4. Acção / função – Se não existisse a Natureza de Buda nada existira que


provocasse um movimento mental motivado por algo como a repulsa
pelo Samsara ou a necessidade de auto-conhecimento. O facto de
termos Natureza de Buda permite, assim, reconhecer a dor num sentido
lato (snk.: duhkka), a ansiedade, o desconforto, o descontentamento
ou o arrependimento, como uma oportunidade de aspirar a não sofrer,
“fugir” ao Samsara e encontrar meios para que isso possa ocorrer; ou
seja, desenvolver esperança, interesse e Fé Confiante no Dharma,
como uma via de libertação.
5. Possuidor / contentor – Na estância 42 a Natureza de Buda é
assemelhada a um vaso, a uma jóia e água, simbolizada pelo oceano
que tudo abarca, e a uma lamparina na qual todas as qualidades são
inseparáveis e incorruptíveis (tal como a luz, calor e cor). Assim dispõe
de todas as qualidades de causa e resultado.
6. Portal / fonte / manifestação – Todos os seres podem revelar o estado
de Buda porque dispõem de Tathagatagarba. Por outro lado,
reconhecendo-se a existência de existência da Natureza de Buda como
um estado a que se pode aceder, este é como que um “objecto” ou
modelo pelo qual os praticantes acedem ao resultado, a Iluminação. A
Natureza de Buda é compreendida pelos seres comuns como um algo
que pode ser purificado e atingido; os seres que já se encontram no
caminho, praticantes e Bodhisattvas, sabem que a Natureza de Buda

16
não é suja e logo não terá de ser limpa; os Budas eventualmente
observam a sua própria Natureza como algo transcendente, sem
separação entre objecto e observador, naturalmente livre de conceitos
de “limpeza”, “purificação” e outras classificações.
7. Estado / fase / ocasião - A Natureza de Buda existe em todas as fases
ou ocasiões, tanto impuras (para os seres comuns), como “impuras” e
“puras” (para os Bodhisattvas respectivamente dos primeiros 7 bhumis
e dos últimos 3), ou transcendentalmente “puras” (no estado dos
Tathagatas - Budas). São, por isso, referentes a uma espécie de
condição individual.
8. Penetrante - A natureza de Buda tem capacidade de tudo permear ou
de tudo abarcar. Ela é aqui comparada com o espaço: imaculado, vasto
(sem limites), espontâneo (livre de ideias e categorizações) e
incomposto.
9. Imutável – A Natureza de Buda é inalterável. Nada nela é passível de
ser alterada, corrigida ou melhorada, logo é imperturbável, já que
nada nela é condição adventícia. A purificação das máculas é possível
porque estas são compostas e adventícias, mas esse processo de
purificação em nada interfere com a natureza de Buda em si. Todos os
aspectos positivos ou negativos advêm da mente e nela se desintegram.
Contudo a mente em si não está refém dos pensamentos, ela é apenas
como um espaço onde essas ocorrências fenomenológicas ocorrem. A
Natureza de Buda, por não ser composta, não está sujeita ao “fogo da
destruição”, não revelando assim qualquer progressão como o
nascimento, envelhecimento [fogo comum], doenças [fogo do inferno]
ou morte [fogo do fim, ou fogo dos sete sóis] (est. 54).
Na cosmologia budista-tibetana há uma correlação entre os elementos,
comparável a diversos estados:
Espaço Natureza de Buda
Vento Actividade conceptual
Terra Skandas (agregados)
Água Karma / venenos,
emoções perturbadoras
O espaço envolve tudo, mas não é envolvido por nada. Assim não tem
limites nem é alterável, ao contrário dos restantes elementos que se
suportam sucessivamente (est. 55). A actividade conceptual emerge da
mente, mas a mente não emerge em nada, da actividade conceptual
emergem a percepção dos agregados e destes o karma. Sendo estes
fenómenos compostos não têm existência intrínseca e são
impermanentes. “Não existindo” são contudo experienciados e sentidos
pela mente e nela se dissolvem, mas a mente não se dissolve a si
mesma nem nada a afecta.
Nas estâncias 63 a 65 estabelecem ainda os seguintes paralelismos: que
a Natureza de Buda é luminosa como o céu e não é perturbável por
qualquer espécie de nuvem (mácula); não é criada pelo karma, logo

17
não envelhece, adoece ou morre, do mesmo modo como nunca nasceu
ou se produziu nenhuma “nova” Natureza de Buda; desta forma não é
destrutível pelos “fogos” do tempo.
Compreendendo e realizando estas realidades, os Bodhisattvas
encontram-se numa via em que gradualmente vão eliminando as causas
e consequências do karma, libertando-se dos ciclos do samsara. Em
termos últimos os Bodhisattvas, quando livres ou na eminência da total
libertação, mantêm uma intenção de se manifestarem, pelo poder da
Compaixão, para auxílio dos seres e mesmo no que respeita aos ciclos
do renascimento, têm uma visão dos mesmos substancialmente diversa
da dos seres comuns.
A estância 70 refere-se aos Bodhisattvas do 1.º bhumi (nível), que
conscientemente se manifestam entre os seres comuns e revelando as
mesmas características (nascimento, envelhecimento, doença e morte,
forma e acções), mas que efectivamente estas manifestações são
apenas meios hábeis para agir em benefício dos seres. Contudo neste
nível ainda só realizaram a Verdadeira Natureza da Mente, tendo ainda
de purificar uma série de obstáculos (obscurecimentos cognitivos e
emocionais).
Nas estâncias 71 e 72 refere-se os Bodhisattvas do 2.º ao 7.º níveis, os
quais não sendo tocados por máculas, mesmo assim ainda têm de
purificar obscurecimentos cognitivos procedentes do seu karma de
vidas passadas. Embora se manifestem em qualquer dos seis reinos, a
sua disposição de auxílio motivada pela compaixão nunca se altera e
desenvolvem as 2 sabedorias dos Bodhisattvas: não estão no Samsara,
nem no Nirvana devido à sua realização, contudo não abandonam o
Samsara nem integram o Nirvana por Compaixão, ou seja, para
poderem continuar a auxiliar os seres.
As estâncias 73 e 74 referem-se os Bodhisattvas do 8.º e sobretudo aos
9.º e 10.º níveis. Neste caso já não se regista um “esforço” ou
aspiração intencional de agir no benefício dos seres, sendo essa
actividade totalmente natural e espontânea, ocorrendo como que um
reflexo cármico ou como “juros” das acções positivas praticadas em
vidas anteriores. Esta situação é comparável a uma madeira a arder, ao
início ter-se-á de fazer algum esforço para que arda, mas depois de
começar a arder não há qualquer “esforço” para que isso aconteça.
A partir da estância 75 referem-se aspectos mais precisos dos
Bodhisattvas do 10.º nível. Neste caso os Bodhisattvas têm uma
capacidade imensa de usar a Sabedoria como um meio hábil de agir no
melhor interesse e capacidade dos seres, por isso podem manifestar-se
em qualquer dos kayas, ou usar de um poder compassivo mais pacífico
ou mais irado.
Os Bodhisattvas que se encontram nos primeiros bhumis apresentam
estados meditativos semelhantes à dos Bodhisattvas que estão no 10.º
nível, contudo a diferença reside no “esforço” de aplicação e no estado
pós-meditativo. Com a progressão gradual através dos níveis, a visão do
estado meditativo e pós-meditativo torna-se cada vez mais semelhante

18
e una e cada vez é necessário menos esforço, até que a absorção
meditativa e o estado pós-meditativo não revelam qualquer
discrepância.
Outra diferença gradual tem a ver com o apuramento da sabedoria e
com a purificação dos obscurecimentos, desde os grosseiros (ainda no
primeiro nível, aos mais subtis no décimo). A meditação é, pois, um dos
aspectos de acções iluminadas dos Bodhisattvas e, no 10.º nível, toda e
qualquer acção só se destina ao benefício dos seres.
Embora haja muitas semelhanças entre a atitude de um Bodhisattva e
de um Buda, mesmo assim há diferenças relativamente ao poder de
ambos. A analogia apresentada refere esta diferença de “competência”
comparável com a capacidade de contenção de água numa pegada de
búfalo impressa na lama, e a capacidade de contenção de um vasto
oceano respectivamente. No primeiro caso, embora a compaixão de um
Bodhisattva de 10.º nível seja imensa, ele ainda revela vestígios muito
subtis de algo composto e, no caso do Buda, fala-se da plenitude
inexaurível do Dharmakaya, fonte última de refúgio, livre de dualidade
(dharmata) e indestrutível.
Revela assim, em síntese, 4 atributos: permanente, estável, pacífico e
imutável [est.80].
Os Bodhisattvas que sucessivamente reencarnaram ou se manifestaram
sucessivamente de nível em nível, ao atingir o limite estabelecem-se no
Dharmakaya revelando a budeidade. Neste estado e nesta perspectiva,
não há samsara nem nirvana, nem sequer um corpo mental por vezes
manifesto pelos Ahrats e Bodhisattvas.
10. Inseparável / Não dual - Da estância 84 a 95 refere-se a Natureza de
Buda como não assumindo a possibilidade de registar separadamente
vacuidade e luminosidade, ou qualquer outra classificação baseada
numa interpretação dualista e composta.
Começa-se por estabelecer a paridade entre os termos Dharmakaya,
Tathagata, Grande Verdade (o Buda também é designado por Richi
[aquele que diz] a Grande Verdade) e Nirvana absoluto (por
diferenciação ao Nirvana comum, um estado de Paz ou Beatitude em
que os Ahrats se encontram, mas que efectivamente não é ainda
último, por haver vestígios de obscurecimentos e ser um estado
composto, logo impermanente e provisório). Todos estes aspectos são
descritos no Uttaratantra como inseparáveis tal como o Sol e os seus
raios.
Dharmakaya – Na perspectiva absoluta as qualidades do Buda são incontáveis
e incomensuráveis. Contudo, à escala do que é percepcionável pelos seres
humanos e de um ponto de vista relativo, as qualidades do Buda, embora sem
distinção entre si, são classificadas como sendo em número de 64,
subdividindo-se em: 10 Poderes, 4 Sagacidades, 18 Qualidades Distintivas e 32
Marcas Maiores, todas elas em união absoluta (embora no ponto de vista
relativo sejam distinguíveis para melhor compreensão).

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As qualidades podem ainda ser subdivididas em dois grandes grupos: as de
Libertação e as de Maturação, as quais dependem, para se completarem e se
estabelecerem no Dharmakaya, da total purificação e acumulação de mérito
na observância das seis perfeições transcendentais (as 6 Paramitas). Para esse
efeito há que aplicar as 2 sabedorias: analítica [praja] (aplicada às virtudes,
karma, etc. que permitem reconhecer a Verdadeira Natureza) e primordial
[jnana] (referente ao estabelecimento no Estado de Buda) [ou 3 sabedorias se
associarmos a Sabedoria da Pureza], as quais têm três aspectos: iluminação,
pureza e inseparabilidade.
Tathagata – refere-se ao momento em que as qualidades do Buda são
reveladas; daqui derivando Tathagatagarba: Natureza de Buda ou Essência da
Mente de Buda.
Grande Verdade – refere-se à infalibilidade da verdade, que não apresenta
qualquer aspecto de falsidade, distinções, dualidade e nem mudança.
Nirvana absoluto – refere-se a uma pureza absoluta e primordial da Paz
búdica (Paranirvana), mas também é referente ao estado de Iluminação já
que se reporta à purificação/eliminação de todas as máculas temporárias.
Buda e Nirvana são idênticos em natureza, embora sejam aspectos
diferenciados que, por tal, intelectualmente podem ser analisados
separadamente.
Na estância 95 inicia-se uma explicação de como o Tathagatagarba emerge
envolto em “nuvens” de aflições (17) através da apresentação de 9 exemplos:
1. Como o corpo de um ser sublime (um Buda) dentro de um perecível
Lótus (um corpo comum); neste caso um ser com as capacidades de
visão superior (“olho divino”), vê que todos os seres têm Natureza de
Buda e assim procura libertar os seres, através da Compaixão, dos
84.000 venenos enunciados nos Sutras e Tantras, e que se resumem à
ignorância de onde advém apego e aversão.
2. Como o mel rodeado por um enxame de abelhas; quando um ser
sublime, através de meios hábeis, auxilia no sentido de remover os
factores de sofrimento, revelando assim a Natureza da Mente nos seres
(por analogia a um apicultor que, sem matar as abelhas, usando os
meios hábeis do fumo para as afastar, consegue aceder em segurança à
essência que é o mel).
3. Como um grão dentro da sua casca; refere-se a que, tal como o
homem não pode alimentar-se de grãos sem os libertar das suas cascas,
assim a Natureza de Buda deve ser “limpa” das emoções perturbadoras;
ou seja, o potencial da Natureza de Buda totalmente revelado só é
aproveitável plenamente quando livre de obscurecimentos.
4. Como uma peça de ouro caída na lama ou dentro de um balde de lixo;
trata-se de uma tomada de consciência da preciosidade da Natureza da
Mente e de que esta se encontrava ao acaso. Quando encontrado esse
ouro, que é a Natureza da Mente (de Buda ou Tathagatagarba), ele
pode ser a qualquer momento limpo, pela “chuva da compaixão” e
17
Ignorância/ilusões, Apego, Aversão, Ira, Orgulho, Dúvidas, Visões Erróneas. Em textos diversos
podem ser descritas de outros modos.

20
utilizado apropriadamente, dado que o facto de ter estado na lama ou
num balde de lixo (rodeado de obscurecimentos e máculas) nada
alterou as propriedades do ouro.
5. Como um tesouro enterrado debaixo da casa de um pobre; é um
exemplo semelhante ao anterior, mas que reforça a ideia de que os
seres sublimes têm capacidade de girar a Roda do Dharma, dando
ensinamentos, para “apontar” aos seres o “lugar”, o caminho e modo
de revelar esse tesouro, que é o Tathagatagarba. Os Budas e
Bodhisattvas têm capacidade de agir no verdadeiro interesse dos seres,
ou seja, impelindo ou “influenciando” a que estes reconheçam a sua
Natureza de Buda.
O próprio exemplo do Buda histórico é aqui muito elucidativo: ele
performou um conjunto de (12) acções que servem como modelo ou
criam a certeza de que a Iluminação é possível. Uma dessas acções é
especialmente interessante neste caso, o Buda decidiu ensinar o
Dharma de modo a que este fosse mais facilmente inteligível aos seres
(especialmente adaptadas às capacidades humanas), alavancando a
motivação ou a aspiração de libertação do samsara a título pessoal,
mas também da “extinção” do samsara, ele mesmo, em todos os reinos
de existência.
6. Como o potencial de uma árvore (com toda a capacidade de frutificar)
na matriz de uma semente; uma semente tem todo o potencial, mas
só pode revelar as suas qualidades através das condições propícias:
água, sol, vento, terra, espaço (para crescer) e tempo (de
desenvolvimento). A semente é vista aqui como um emaranhado que
retém o potencial, mas simultaneamente é algo que serve de base ao
desenvolvimento, logo é parte integrante e objecto de transformação
em potencial. De algum modo aproxima-se de uma leitura mais
tântrica, considerando que nada há a eliminar e que mesmo as coisas
“negativas” podem servir o propósito de desenvolver condições
positivas.
7. Como uma estátua do Buda envolta em trapos velhos; trata-se de
outra analogia à envolvente de emoções perturbadoras que escondem a
Natureza de Buda.
8. Como um Chakravartin (monarca universal) no ventre de uma
mulher comum; refere-se ao facto dos seres se encontrarem enredados
em sofrimento, quando na realidade transportam o remédio para todos
os males sem saber. É uma alusão explícita à ignorância e ao seu
antídoto. Trata-se de reconhecer a Verdade Última que efectivamente
resido no interior de cada ser.
9. Como uma estátua de ouro ainda inclusa no seu molde de barro. Esta
analogia refere-se a um elemento subtil: a beleza da mente, a
compaixão, em termos últimos o Tathagatagarba, que está preso num
conjunto de elementos temporários, compostos e que ilusoriamente são
entendidos como existentes, quando na realidade não são. O barro aqui
é visto como algo moldado, fruto das acções cármicas que remetem
para o samsara; contudo no seu interior, sem se misturar, está um

21
“objecto” magnífico, totalmente acabado e fonte de felicidade. Para
retirar a imagem do molde é preciso, primeiro, reconhecer que aquele
objecto é passível de ser meramente um molde e que no interior
deverá residir um outro objecto mais valioso; depois é preciso usar
instrumentação adequada (meios hábeis) para o extrair, destruindo o
barro (eliminando o samsara). Só depois o objecto precioso pode ser
plenamente fruído. Outra analogia podia ser aqui usada com a água. Se
houver sede a água congelada não serve, terá de ser “transformada” do
estado sólido (um estado que retém as capacidades) para um estado
líquido (com possibilidade de ser útil). Para isso são precisos meios
hábeis (calor); contudo, em essência, água e gelo são iguais, só não são
reconhecidos e utilizáveis de forma idêntica.
Cada um dos exemplos corresponde também a 9 tipos de venenos e
respectivos níveis:
Veneno Analogia Níveis de seres
1. Apego Lótus – belo mas perene Seres comuns
2. Aversão Abelhas – provocam dor Seres comuns
3. Cegueira mental (ignorância) Cápsulas – esconde por Seres comuns
completo o interior
4. Escravidão/obstinação Lama ou balde de lixo – Seres não sublimes que se
analogia aos três venenos encontram na via do Mahayana
anteriores no seu estado
activo e solidário.
5. Tendências habituais Tesouro enterrado – Ahrats, Shravakas e Pratyekabudas
hábitos que produzem
formas mentais
6. Obscurecimentos a abandonar Semente – Bodhisattvas nos caminhos de
no “Caminho da Visão”, que desmantelamento das acumulação, aplicação, visão e
impedem de ver a verdadeira emoções através da meditação
natureza dos fenómenos. sabedoria
7. Obscurecimentos a abandonar Trapos – Bodhisattvas nos caminhos de
no “Caminho da Meditação” desmantelamento das acumulação, aplicação, visão e
máculas e meditação
obscurecimentos através
da Meditação
8. Corrupções (com base em níveis Mulher comum – Bodhisattvas do 1.º ao 7.º Bhumi
impuros / obscurecimentos obscurecimentos dos 7
emocionais e cognitivos) primeiros bhumis dos
Bodhisattvas
9. Corrupções (com base em níveis Molde de barro – Bodhisattvas do 8.º ao 10.º Bhumi
puros / obscurecimentos obscurecimentos dos
cognitivos) últimos 3 bhumis.

Na estância 144 e seguintes inicia-se uma correlação dos nove exemplos


anteriormente referidos e três aspectos diversos da Natureza de Buda. Assim
se afirma que os primeiros três exemplos são explicativos do Dharmakaya; o
4.º exemplo para imutável; e os restantes cinco para as cinco famílias de Buda
(kham, também traduzível por raça [tib.: rig] ou elemento).
Na estância 145 referem-se duas categorias do Dharmakaya: realização -
perceptível apenas através da Sabedoria de auto-conhecimento; apreensão

22
pela via dos ensinamentos, que são Vastos e Profundos. Contudo a estância
seguinte é peremptória em afirmar que o Dharmakaya, dado que é
transcendente, não tem analogias reais, ele é simbólico de si mesmo.
Os três primeiros exemplos são referentes a essa subtileza, o primeiro
estabelecendo a diferença entre algo mundano e comum com algo sublime (ou
seja não se trata de uma analogia mas de uma diferenciação entre o que não
é permanente e intrinsecamente existente e o que “é”, trata-se do
Dharmakaya da realização que está para lá de concepções), o segundo e
terceiro exemplos são referentes ao Dharmakaya de “aproximação” (referido
anteriormente como “dos ensinamentos”), que é extremamente difícil de
obter e exige esforço (como o mel), mas simultaneamente se revela em
muitos tipos diversos de ensinamentos (como a diversidade de grãos
existentes).
A natureza imutável é simbolizada pelo exemplo do ouro.
O kham está também subdividido em duas categorias: 1) espontaneamente
presente / primordialmente puro (representado pela analogia do tesouro
enterrado) e 2) por ser algo que pode ser “purificado” (no aspecto relativo):
representado pelos últimos 4 exemplos. Estes deverão ser entendidos como o
caminho gradual (bhumis) para atingir a iluminação.
Os aspectos anteriormente referidos são realizações dos três kayas
(dimensões): Nirmanakaya, Samboghakaya e Dharmakaya, que podem ser
descritos como corpo de fruição, corpo de emanação e “corpo” absoluto,
respectivamente. Os primeiros dois pertencem ao reino da forma (Rupakaya)
e o último à forma absoluta (que é ausência de forma simultaneamente).
Transversalmente podemos ainda falar de Svabhavikakaya (aspecto essencial
dos kayas, algo que também pode ser traduzido por “essência pura”, um
aspecto comum a todos os kayas.
A estância 151 diz que o exemplo da estátua de ouro é similar ao
Svabhavikakaya, dado que na essência ela é preciosa, feita de material
primordialmente puro.
O Samboghakaya é similar ao grande monarca, Chakravartin [est.152] um ser
com capacidades superiores que consegue apreciar o manancial de felicidade
que é representado pela fruição da estátua de ouro. Contudo, embora o Buda
esteja representado, em essência, por esta estátua; a Verdade Última, o
Buda, só é realizável através de devoção / fé. Na est.153 Maitreya não só
afirma esta asserção, como de certa forma diz que só com os olhos da fé (uma
visão livre e que transcende os extremos) é que se torna possível a realização
da “Natureza de Buda”. Deverá ser, pois, desenvolvida uma Fé Confiante à
qual se aplicam as sabedorias, diferindo assim de outros dois tipos de fé
entendidos como desadequados: a Fé Vívida (cega, sem ser testada) e a Fé
Ardente (egocentrada).
A est. 155 refere-se essencialmente a que nada na Natureza de Buda é
passível de ser adicionada ou removida (como aliás já anteriormente foi dito).
É contudo uma introdução para uma abordagem ao significado dos três ciclos
de marcha da Roda do Dharma: o primeiro provisional, o segundo pondo em
evidência a doutrina da Vacuidade (profusamente comentados por Nagarjuna)
e o terceiro movimento pondo em evidência a doutrina da Luminosidade

23
(explicitados, entre outros, por Asanga). Não há, no entanto, qualquer
contradição acerca dos ensinamentos considerados provisionais e definitivos,
nem entre as doutrinas de Vacuidade e Luminosidade, que são aspectos
indissociáveis: por isso se diz que a Forma é “Vazia”, e que a Vacuidade é a
Forma; a Forma não difere da Vacuidade e esta não difere da Forma.
A partir da est. 157 referem-se 5 razões pelas quais se justifica a existência
de ensinamentos (como o actual) sobre a Natureza de Buda:
1. Para que os Bodhisattvas não se desencorajem (pela perspectiva do
niilismo), sabendo que tanto eles como todos os seres dispõe de
Tathagatagarba, logo que a camada superior, o “molde”, pode ser
quebrado e revelar a “estátua preciosa” que é a Natureza de Buda;
2. Para que os Bodhisattvas não se tornassem orgulhosos (pela perspectiva
do eternalismo) pensando que dispunham de algo mais ou melhor que
os restantes seres comuns;
3. Para dispersar obstáculos quanto ao entendimento de que o Buda
realmente existe, evitando a percepção teísta, a crença cega e a
dualidade;
4. Ou de que, pelo contrário, o Buda não existe, caindo num cepticismo
redutor;
5. Para evitar que os seres gerem apego a si mesmos e aversão a outros,
considerando a hipótese errada de uns disporem de Tathagatagarba e
outros não (evitando as visões do egocentrismo / hedonismo).
A estância 159 afirma que os venenos são como nuvens, que o karma é como
um sonho, e que os skandas (agregados que na realidade não têm essência)
são meramente uma experiência ilusória. Na segunda volta do Dharma esta
ideia de miragem é posta em evidência. É por estes motivos que o Dharma foi
ensinado e em particular refereindo-se à Natureza de Buda, para que
efectivamente se criem as condições de emergência do Bodhicitta, para que
este, depois de surgido não decresça, mas que ao invés floresça cada vez
mais, por força da Compaixão e para benefício de todos os seres.
O benefício de aprender sobre a Natureza de Buda radica, pois, em [est. 166]:
1. Entusiasmo no caminho (Mahayana);
2. Respeito pelos seres;
3. Sabedoria analítica (snk.: Prajna) de que todos os obscurecimentos e
máculas podem ser purificados;
4. Sabedoria primordial (snk.: Jnana) que atesta que todos os seres têm
Natureza de Buda;
5. Compaixão amorosa por todos os seres.

24
Quinto ponto Vajra: Iluminação (Estâncias 168 – 240)

O quinto ponto Vajra do Uttaratantra tem como objecto de estudo a


Iluminação, vista como a consequência ou resultado de um processo de
eliminação e acumulação de mérito, não como uma espécie de prémio ou
meta, não como a superação de um objectivo, mas como expressão de um
caminho de realização e manifestação da Natureza de Buda.
A Iluminação é apresentada como tendo 8 pontos pelos quais pode ser
explicada:
1. Essência
2. Causa
3. Fruto / resultado
4. Função / actividade
5. Contentor [vaso adequado]
6. Portal de entrada
7. Permanência / imutável
8. Inexpressável

Por outro lado é também apresentado como tendo 4 qualidades:


1. Livre de condições adventícias
2. Permanente
3. Estável
4. Imutável

O estado de Buda nunca está separado das suas qualidades e revela-se em


duas esferas relativas à pureza: quando manifesta todas as qualidades
(comparável ao Sol) e não tendo qualquer obscurecimento (como o espaço).
As qualidades e aspectos da Iluminação são muito variados e ricos. Quando se
diz, por exemplo, Claridade ou Luminosidade, esse mesmo espectro, tal como
com a luz, pode ser refractado numa miríade extraordinária de cores, de tons
e semi-tons, alguns que podem ser apreendidos, mas outros existem que não
se conseguem sequer observar. As qualidades de Iluminação não são, assim,
perceptíveis a todos os seres, dependendo sobretudo das capacidades de
percepção destes.
A iluminação é representativa do Dharmakaya e também tem poder de
manifestação ao nível dos restantes kayas, daí ser um benefício extraordinário
para todos os seres.
De acordo com a est. 174, a Sabedoria tem 2 aspectos: 1) uma referente ao
estado meditativo, livre de conceptualizações, a outra 2) referente ao estado
pós-meditativo, apoiado na capacidade de discriminação dos fenómenos.

25
Ambas são antídoto para os 2 véus: obscurecimentos cognitivos e emocionais,
e máculas ou corrupções cármicas.
Na estância 175 e 176 fazem-se analogias à Natureza de Buda:
• Como um lago que, se estiver poluído (pelo apego) não permitirá que os
Lótus aí floresçam (analogia às condições para o desenvolvimento das
qualidade de Iluminação);
• Que o estado de Buda é livre de aversão, ao invés do passo mitológico
do Asura Rahula que tenta engolir a lua motivado pelo ódio / aversão;
• Como o Sol cujos raios são totalmente livres, dirigem-se em qualquer
direcção no espaço, sem que qualquer nuvem possa obscurecê-lo na
realidade (analogia à erradicação da Ignorância, à Grande Compaixão,
à Grande Sabedoria e ao benefício para todos os seres).

O texto continua a referir outras analogias possíveis com o Buda, como com a
rara flor Ubunbara, ou com os 4 animais (elefante, leão, búfalo de água e
unicórnio), mas reevoca os 9 exemplos expostos no ponto vajra anterior:
• O Buda é comparável ao ser sublime;
• Ao mel;
• Ao grão (com qualidades inigualáveis);
• Ao ouro;
• Ao tesouro;
• À árvore grandiosa (primordialmente livre de obscurecimentos);
• À estátua de um Sugata;
• Ao Chakravartin;
• À estátua de ouro (como uma “Jóia ou árvore que satisfaz todos os
desejos”. [est.176, 182-184].

É também livre de qualquer mácula, tudo permeia, é insdestrutível, estável,


pacífico, permanente e sem morte, tal como o Espaço [est. 185].
O Buda revela uma infinitude de acções que podem ser abreviados em 2
aspectos: perfeição da purificação através da qual se purificam as máculas e
se obtém um corpo de libertação Vimuktikaya (18); a segunda, a perfeição da
purificação dos obscurecimentos cognitivos a partir do qual se obtém o
Dharmakaya.
Na est. 194 estabelece-se outro conceito complementar: o Dharmakaya é
como o espaço, embora este não seja a causa “da forma”, é contudo através
dele e por ele que se consegue ver, ouvir, cheirar, saborear e sentir.

18
Representa o aspecto de vacuidade dos kayas. Como o Smuktikaya (represnentando a Vacuidade) e o
Dharmakaya (representando, neste caso, o aspecto luminoso) se dissolvem no próprio Dharmakaya, regra
geral utiliza-se apenas este conceito como sinónimo da Grande União designada por Kadak [tib.].

26
Em resumo, na est. 196 elencam-se as 15 qualidades do Estado de Buda (19):
1. Inconcebível
2. Permanente
3. Estável
4. Pacífico
5. Inalterável
6. Perfeito
7. Tudo permeia
8. Livre de concepções, como o espaço
9. Não pende para extremos
10. Sem obstruções
11. Não percepcionável
12. Invisível
13. Imperceptível
14. Virtuoso
15. Imaculado

O Dharmakaya (união entre o Dharmakaya e Vimuktikaya) apresenta 5


qualidades:
1. Imensurável - vasto
2. Inumerável – “mais que os grãos de areia do Ganges”
3. Inconcebível – devido à sua profundidade
4. Incomum – nada mais se lhe assemelha
5. Puro – Primordialmente puro

O Samboghakaya tem as seguintes qualidades [est.207]:


1. Corpo / forma - apresentando as marcas maiores e menores
2. Fala / Discurso infinito – todo o seu discurso é apenas Dharma
3. Mente / Diligência e Compaixão – para o benefício de todos os seres
4. Acção / Benefício sem concepções – sem desejos, prioridades ou
recusas
5. Manifestação – em múltiplas formas cores, sons, formas, etc., mas
sendo apenas uma manifestação, não uma realidade como tal.

19
Nas seguintes estâncias, até à 206, detalha-se melhor cada uma das 15 qualidades.

27
O Svabhavikakaya, não sendo objecto de análise, apresenta as seguintes
qualidades [est.214]:
1. Imensurável
2. Incontável
3. Inconcebível
4. Incomparável
5. Pureza última

Considerando a cadeia cármica que existe entre os diversos kayas, na est. 222
começa-se por dar exemplo das 12 actividades do Buda (Sakyamuni):
1. Emanação a partir do Céu Tushita
2. Incarna no ventre da mãe, a rainha Mayadevi
3. Nasceu
4. Aperfeiçoou as capacidades
5. Domina o “artesanato” (trabalhos oficinais)
6. Domina a ciência (da mente)
7. Domina a arte (da luta e outras artes)
8. Desposa e tem um filho
9. Renuncia e torna-se ascético
10. Decide atingir a Iluminação e vence Maras
11. Depois da Iluminação dá ensinamentos
12. Morre fisicamente e entra em Paranirvana

Nas estâncias seguintes continua-se a explanação da biografia do Buda


histórico, dando-se ênfase ao sentimento de inquietação e sofrimento [snk.:
Dukkha] que sentia e que o obrigou a partir e procurar uma via; depois aos
momentos em que pôs a Roda do Dharma em movimento, ou seja, em que dá
ensinamentos: os primeiros provisionais, nos quais se encontram contidas as 4
Nobres Verdades (20) e o Caminho Óctuplo (21). Há também referência aos 4
Selos [est.224-226], uma das bases estruturantes do pensamento do Buda:

20
Verdade [da Natureza] do Sofrimento, Verdade da Origem ou das Causas do Sofrimento, Verdade da
Cessação do sofrimento; Verdade do Caminho para a Cessação do Sofrimento.
21
Compreensão justa: entender as coisas como elas realmente são; Pensamento justo: motivação
positiva; Fala justa: não mentir, não caluniar, não usar palavras ásperas, falar verdade, falar de forma
construtiva, falar de forma agradável; Acção justa: não matar, roubar, usar psicotrópicos ou ter uma
conduta sexual imprópria, pelo contrário promover e dar refúgio à vida, praticar a generosidade e, quando
haja, desenvolver relacionamentos sexuais que não provoquem sofrimento ou sejam motivo de separação;
Modo de vida justo: evitar prática de acções que gerem sofrimento (a matança de animais e outras), pelo
contrário trazer à prática quotidiana os princípio enunciados pelos 4 Incomensuráveis e as 6 Paramitas;
Atenção justa: prática da disciplina e vigilância às motivações mentais; Sabedoria justa: ter consciência

28
Todas as coisas compostas são impermanentes;
Todas as corrupções são Dor;
Todos os fenómenos têm ausência de um “si”;
Iluminação é livre de extremos, por isso é Paz.

Estas as Verdades (os 4 Selos) compõem os “sons” que se experienciam ao


nível do Nirmanakaya, servindo assim para instigar os seres que vagueiam no
samsara a ouvir, reflectir e meditar nos mesmos, de forma a procurarem uma
via conducente à Iluminação (ou, no caso dos Ahrats, Shravakas e
Pratyekabudas, a corrigir as suas inclinações para os estados em que se
encontram, posicionando correctamente as suas visões).
A fundação ou justificação dos kayas, em síntese, é a seguinte:
1. O Dharmakaya é Profundo, como o espaço;
2. O Samboghakaya é Vasto – Porque se reporta ao caminho, aos bhumis e
assim permite manifestações inteligíveis e úteis ao seres;
3. O Nirmanakaya é Grandioso / magnífico – Porque é a dimensão em que
os seres se encontram e, para seu benefício, permite o contacto
dármico.

A est. 229 refere 7 razões para a permanência do Samboghakaya (aplicável


aos kayas da forma – Rupakaya):
1. Porque as causas da sua “existência” não têm fim, ou seja, porque
existem muitos seres;
2. Porque as necessidades dos seres são inumeráveis;
3. Porque dispõe de amor compassivo;
4. Dispõem de Poder milagrosos;
5. Sabedoria / conhecimento;
6. Dispõe de Felicidade;
7. Dominam todas as qualidades.

Elucida ainda sobre o porquê da permanência do Dharmakaya, ou seja, o


porquê do Buda agir em benefício dos seres [est.232-233]:
1. Como não vêm diferença entre samsara e nirvana, não precisam de
desistir do samsara;
2. Como estão em permanente beatitude resultante da absorção
meditativa (samadi) não há fronteiras entre samsara e nirvana;

das acções praticadas através do corpo, fala e mente; Visão justa: ter uma visão fundamentada no
Dharma.

29
3. As máculas do samsara não os perturbam, já que estão sempre puros,
como uma flor de lótus num lago de lama.

Na est. 236 volta a falar, em síntese, nos três kayas como sendo, na
perspectiva absoluta (do Dharmakaya que tudo abarca):
1. Inconcebíveis;
2. Inexpressíveis;
3. Para além de conceitos;
4. Para além de possibilidade de análise;
5. Para além da possibilidade de serem ilustrados com exemplos.

Sexto ponto Vajra: Qualidades de Iluminação (Est. 241 – 279)

Neste capítulo referem-se as 64 Qualidades do Buda, 32 resultantes do


processo de eliminação (referentes ao Dharmakaya, logo impossíveis de serem
apreciadas por outros seres sendo específicas do Buda): 10 Poderes, 4
Audácias (ou Fortalezas) e 18 Qualidades Distintivas; e as restantes 32
qualidades decorrem do processo de maturação (referentes ao Rupakaya, que
podem ser apreciadas por outros seres): as Marcas Maiores (22).
De acordo com a est.244, os 10 poderes são como o Vajra e cortam o véu da
ignorância; as 4 Audácias são como o Leão que domina qualquer obstáculo; as
18 Qualidades Incomuns são interpretadas por analogia ao Céu porque nenhum
outro fenómeno se lhe assemelha.
Os 10 Poderes correspondem à sabedoria/conhecimento do Buda nos seguintes
pontos [est.247]:
1. O que serve (o que é mais útil ou mais correcto);
2. Karma (conhecimento detalhado das causas, condições e efeitos do
karma);
3. Faculdades (quem tem e que tipo de faculdades os seres dispõem);
4. Elemento (disposição [tib.: kham]);
5. Aspiração;
6. Veículos (sank.: yana, que veículos existem e qual deve ser usado
atendendo às capacidades de casa ser);
7. O que é puro/impuro (só o Buda conhece perfeitamente a diferença
entre o que é puro e o que não é);
8. Memória de vidas passadas (conhece todas as vidas passadas, lugares,
acontecimentos, etc.);

22
Codificam-se, ainda, noutros textos budistas a existência de 80 marcas menores associadas à
manifestação dos Budas ao nível do corpo subtil do Samboghakaya.

30
9. Nascimento e morte (consegue ver em detalhe os processos de
nascimento, envelhecimento e morte);
10. O que pode eliminar as impurezas.

Relativamente ainda a estes 10 poderes, podemos agrupá-los em 3 categorias:


1. (1-6) “como um vajra destruidor da armadura da ignorância”;
2. (7-9) “como um vajra que destrói a muralha da ignorância”;
3. (10) “como um vajra que corta a ignorância”.

Quanto às 4 Audácias, estas referem-se ao facto do Buda não revelar medo ao


dizer que:
1. Todos os fenómenos sempre dispuseram de Iluminação;
2. As máculas obstruem a Iluminação e têm de ser eliminados;
3. As 37 Práticas do Bodhisattva conduzem à Iluminação;
4. Que ele (Buda) obteve a cessação do sofrimento (sank.: niroda).

Estas 4 Audácias têm também a particularidade de serem indutoras aos seres


para que sigam ou reconheçam as 4 Nobres Verdades (23) ensinadas pelo Buda
Sakyamuni no primeiro ciclo dos seus ensinamentos. Por outro lado está
também associado ao enunciado dos 4 Selos, na realidade a síntese e a
essência dos sutras e trantras (24).
Das estâncias 251 a 256 referem-se as 18 Qualidades Incomuns ou Distintivas
do Buda, agrupáveis em 4 subgrupos:
1. (1-6) Qualidades de Conduta;
2. (7-12) Qualidades de Realização;
3. (13-15) Qualidades de Actividade Iluminada;
4. (16-18) Qualidades de Sabedoria.

As 18 Qualidades Distintivas são as seguintes:


1. Livre de falhas ao nível do comportamento físico;
2. Livre de falhas ao nível do discurso (sem falar alto ou com conversas
sem sentido);
3. Livre de falhas ao nível da mente, com grande capacidade de memória
e de saber;

23
Verdade do Sofrimento, Verdade das Causas do Sofrimento, Verdade do Caminho e a Verdade da
Cessação do Sofrimento.
24
Todos os fenómenos compostos são impermanentes; Todos os pensamentos ou emoções que
provenham da ideia de existência de um “eu”, são sofrimento; Nenhum fenómeno dispõe de existência
própria intrínseca; Nirvana é Paz (está para além dos extremos).

31
4. Está em absorção meditativa;
5. Não tem ideias dualistas ou diversas;
6. Nunca age com frivolidade, todas as suas acções são por ele conhecidas
em termos em termos das consequências;
7. A aspiração altruística do Buda é o Bodhicitta perfeito e nunca
decresce;
8. É diligente no auxílio aos seres;
9. Tem total presença mental e sabedoria a auxiliar os seres;
10. A sua sabedoria é sempre perfeita (sabedoria discriminativa sem
máculas);
11. Tal como o é a sua Libertação (Sabedoria Primordial de libertação);
12. Auto conhece a sua própria sabedoria interior (Realização perfeita);
13. Nunca se separa das 3 sabedorias. As acções físicas do Buda são sempre
precedidas, acompanhadas e seguidas por Sabedoria;
14. Tal como no seu discurso;
15. E em todas as suas acções mentais;
16. A Sabedoria que precede os seus actos físicos, discursivos e mentais é
suportada por uma Sabedoria que conhece a natureza dos 3 tempos:
passado;
17. Presente;
18. Futuro.

32 Marcas Maiores
As 32 Marcas Maiores são apresentados nas estâncias 257 a 265 como algo que
será possível de ser apreciado (visto, percepcionado, fruído) pelos seres,
dependendo das suas capacidades e condições cármicas. Estabelece-se,
também, a analogia de que estas marcas são como o reflexo da lua nas águas,
mesmo que aí existam flores e outros objectos à superfície, nunca a lua é
perturbada ou obstaculizada, nem mesmo o seu reflexo é reduzido [est.266].
Existem as seguintes 32 marcas:
1. As solas dos pés são lisas e apresentam o desenho da roda do Dharma.
2. Os seus pés e tornozelos são arredondados e não se distingue o osso do
tornozelo.
3. Os seus dedos são longos tal como as palmas das suas mãos e as solas
dos pés.
4. Os seus dedos estão ligados por uma membrana de luz.
5. Tem uma pele macia e carnações jovens.
6. Os seus joelhos, cotovelos, ombros, nuca e pescoço são elevados.
7. Os seus músculos dos gémeos são como os de um antílope.

32
8. As suas partes privadas estão introvertidas como as de um elefante.
9. O seu torso majestoso como o de um Leão.
10. Não há concavidade entre o osso das suas clavículas.
11. Os ombros são elegantemente arredondados.
12. As suas mãos não têm altos.
13. Tem braços longos e não precisa de se dobrar para tocar nos joelhos.
14. Irradia luminosidade do seu corpo.
15. O seu pescoço é como uma concha, mostrando uma espécie de anéis.
16. As suas faces (maxilar/bochecas) são como as de um leão.
17. Tem 40 dentes, 20 em cada maxilar.
18. Os seus dentes são muito limpos e puros (brancos e brilhantes).
19. Os seus dentes estão perfeitamente dispostos.
20. Os seus caninos são muito brancos e afiados.
21. Tem uma língua muito comprida.
22. O sentido do sabor é supremo (qualquer que seja o alimento por si
provado sabe sempre excelentemente).
23. A sua voz é melodiosa como um rouxinol.
24. Tem olhos rasgados e azuis, da cor de lótus utpala.
25. As suas pestanas são densas e brilhantes como as de um boi.
26. A sua face é bela e está adornada com um tufo (sank.: urna) de pelo
branco entre as sobrancelhas (que pode ser esticado e tem o tamanho
de um pé, e depois regressa ao seu estado encaracolando no sentido
contrário aos ponteiros do relógio).
27. Manifesta uma protuberância (sank.: ushnita) na coroa da sua cabeça.
28. Tem uma pele pura e delicada onde nenhuma sujidade adere.
29. Tem uma pele dourada.
30. O seu corpo é coberto por finos e suaves pelos, nunca crescendo dois
pelos no mesmo poro, crescendo todos para cima e sendo
encaracolados no sentido contrário ao dos ponteiros do relógio.
31. Tem um cabelo impecável, crescendo encaracolado no sentido
contrário ao dos ponteiros do relógio e numa cor azul profunda
(índigo).
32. Todo o seu corpo é como uma árvore nyagrodha, a sua altura e largura
com os braços estendidos é a mesma, sendo forte como Narayana (25).

25
Figura mitológica hindu, muito forte, associada a mitos referentes ao deus Indra e as suas lutas contra
os Asuras.

33
As 64 qualidades enunciadas são, em resumo [est. 267-279], exemplificadas
pelo indestrutível vajra, pela coragem do leão, pela incomparabilidade do céu
e pela inexistência de conceitos como o reflexo da lua.
Dos 10 poderes [como Vajra], 6 servem para dispersar os véus da ignorância; 3
para destruir a as corrupções da sabedoria/conhecimento; 1 para cortar com
os obscurecimentos cognitivos e emocionais.
As 4 Audácias [como o leão], referem-se à verdade e ao destemor de qualquer
audiência que seja. Sendo o Dharma o equivalente a Verdade, esta mesma
verdade não se “constrange” por ninguém. É estável, tem perícia e é ágil, não
se deixa impressionar nem pressionar. Assim os 4 testemunhos referidos são
afirmados a todos os seres sencientes, como aos “ouvintes” Shravakas e
Pratyekabudhas, como ainda aos Bodhisattvas dos níveis impuros e dos níveis
puros.
As 18 Qualidades Distintivas são como o espaço, referindo-se ainda aos
diversos níveis de seres anotados no parágrafo anterior, correlacionando-os,
respectivamente, com os 5 elementos: terra, água, fogo, vento e espaço.
As 32 Marcas Maiores são comparáveis ao reflexo da lua num lago:
independentemente da superfície de reflexão ou dos obstáculos à superfície,
a lua emana sempre a sua luminosidade. São também comparáveis a uma jóia
a qual não se consegue dividir em radiância, luz, cor, forma. Pode ainda haver
outra analogia: os seres que residem ao nível do Nirmanakaya podem ver (os
que têm mérito para tal) as Marcas do Buda, contudo é uma espécie de
reflexo. Como este se encontra ao nível do Dharmakaya, o que se vê é uma
manifestação, não as marcas em si, reflectidas/emanadas para o
Sambhogakaya. O seres que residem nesta dimensão (Samboghakaya), por sua
vez conseguirão ver com maior acuidade esse reflexo do Buda. Cada dimensão
vê para a que lhe antecede como um reflexo: o Nirmanakaya com o
Sanboghakaya; o Sanboghakaya com o Dharmakaya.

Sétimo ponto Vajra: Actividade Iluminada (Estâncias 280 – 376)


A Actividade Iluminada provém directamente das Qualidades anteriormente
referidas.
Considerando as capacidades e temperamentos dos seres (discípulos), o Buda
ensinou o Dharma de vários modos, gerando os diversos veículos (individuais,
Hinayana, Mahayana/Bodhisattvayana, Vajrayana). Para além destes “meios
hábeis”, a Actividade Iluminada dos Budas é ainda referida como sendo
Permanente (nos três tempos), todo-abrangente/permeável (para todos os
seres e lugares) e Espontânea.
Por analogia diz o texto que, a Actividade dos Budas, dispõem de múltiplas
qualidades preciosas: de Sabedoria Primordial vasta e profunda como o
Oceano (comparável aos 10 níveis dos Bodhisattvas); com acumulação total de
mérito e sabedoria luminosa como o Sol (referenciável às 2 acumulações);
vasto como o Espaço (relativo à Iluminação como fruto); é omnisciente ao
considerar que todos os seres dispõe de Natureza de Buda, como um Tesouro
incorruptível, perspectivando a budeidade dos seres (relacionável com o
Dharmata como suporte); e que como o Vento dissipa as nuvens das aflições e

34
os obstáculos ao conhecimento (entendendo-se o vento como a prática da
Compaixão).
Considerando 3 causas a Actividade Iluminada é também inexaurível no que
respeita aos seres iluminados e em particular aos Bodhisattvas já que:
1. Renunciam a partir definitivamente [estar para além do samsara e
nirvana]; decidem revelar-se nos kayas; e agem para benefício de todos
os seres. Caso não houvesse esta “renúncia” de transcender não
existiria Actividade Iluminada.
2. Na perspectiva de um ser iluminado, este não vê diferença da sua
natureza e da dos restantes seres, por isso a manifestação no
Samboghakaya ou no Nirmanakaya é meramente algo que é intrínseco
ao Dharmakaya.
3. Aplicado à visão dos seres que residem no samsara, os obstáculos e
máculas podem ser removidos e purificados. Este é, aliás, um dos
ensinamentos do Buda no que respeita ao exemplo e ao entendimento
que os seres comuns ou já na via podem fazer da sua manifestação
“histórica”.
Neste capítulo associa-se a actividade iluminada dos Budas a 9 exemplos,
explicados de modo bastante detalhado. São estes:
Analogia Explicaçãoe Similitude Diferença
O reflexo do Deus Indra Deus Indra aqui Reflexo do Dharmakaya O Buda difere nesta
no chão de lápis-lazúli comparado com as no Samboghakaya e no analogia porque o
do seu palácio qualidades de Buda Nirmanakaya para reflexo não dispõe de
apenas “apreciáveis” benefício dos seres, capacidade de discurso.
por reflexão. O chão de sem qualquer esforço e
lápis-lázuli como concepções. Refere-se
analogia a que o ao Corpo do Buda.
reflexo das qualidades
tem de ser feito no
campo da Fé.
O tambor do reino dos Tambor ressoa: O Dharmakaya revela- O Buda difere nesta
Deuses “impermanência”, se em todos os reinos analogia porque o
“sofrimento”, do Samsara; conhece a tambor apenas ressoa
“inexistência intrínseca disposição e elemento no reino dos deuses,
de um «eu»” e de todos os seres; não sendo audível nos
“Nirvana-Paz” [sons ensina (Discurso do restantes.
referentes aos 4 selos]. Buda) de acordo com
Os seres iluminados as necessidades.
podem emanar-se no
que for mais útil, neste
caso o som de um
tambor que lembra aos
deuses o seu estado
samsárico.
A nuvem de chuva de Chuva de compaixão O Dharmakaya revela- O Buda difere nesta
compaixão que cai indistintamente se espontaneamente analogia porque a
sobre todos os seres e afectando os seres, nuvem não consegue
afectando-os de acordo contudo os fenómenos beneficiar para além
com as suas não o afectam. desta vida.
capacidades e
disposições. Quando os Reposta-se também à
seres se envolvem em capacidade de tudo
actividades abarcar
conducentes à indistintamente. Esta
iluminação, a chuva da analogia refere-se à

35
compaixão é Mente compassiva de
percepcionável como Buda.
samadi e sabedoria.
A manifestação de Brahma manifesta-se O Dharmakaya revela- O Buda difere nesta
Brahma pelo seu próprio mérito se / emana-se em analogia porque
sem sair do seu qualquer forma, em Brahma não produz
“lugar”. Do mesmo qualquer kaya, sem continuamente as
modo os seres contudo deixar de ser causas da maturação
iluminados manifestam- Dharmakaya. O (dura apenas uma
se no Rupakaya. exemplo disto está no vida).
Brahma revela-se pelo próprio exemplo da
mérito dos deuses. De vida de Sidharta
igual modo o Buda Gautama como uma
revela-se pelos méritos emanação ao nível do
dos seres sencientes. Rupakaya, sendo que,
ao nível absoluto, o
Buda nunca tenha
deixado o nível do
Dharmakaya.
O Sol Quando o Sol brilha, há O Dharmakaya revela O Buda difere nesta
flores que as qualidades de analogia porque nem
desabrocham, outras é- permanência e todo- sempre o Sol está no
lhes indiferente e abrangente. Trata-se céu (não consegue, em
outras fecham-se. da Sabedoria que tudo todas as circunstâncias,
permeia. clarear a escuridão [por
Relaciona-se com a exemplo, à noite].
ideia de primeiro
remover as visões
negativas, depois as
visões de apego à ideia
de um “eu” e por fim
de romover
simplesmente todos os
conceitos [relaciona-se
com os três ciclos do
Dharma do Buda]. O
Dharmakaya é como o
sol e os seus raios e
propriedades como o
Rupakaya.
A jóia que satisfaz Qualquer que seja o ser O Dharmakaya não tem O Buda difere nesta
todos os desejos que procure a intenção, não produz analogia porque uma
felicidade encontrará qualquer espécie de jóia comum não é assim
seguramente o Dharma, esforço para beneficiar tão rara de encontrar.
representado na jóia os seres. É contudo
tríplice que satisfaz algo raro, pois, embora
todos os desejos [Buda, os Budas estejam
Dharma e Sangha] sempre em actividade
sintetizados na pessoa iluminada, nem sempre
do Guru [Lama]. A jóia os seres reúnem as
é preciosa porque condições para receber
satisfaz os desejos ensinamentos,
supremos de felicidade, compreende-los e
paz, libertação, praticá-los. Os Kayas
Iluminação, ou seja, em revelam-se como
termos últimos, a refractações do
Budeidade. Dharmakaya, logo são
assemelhados às
propriedades de uma
jóia e os aspectos
secretos da Mente do
Buda.
O Eco O Eco não tem O Dharmakaya é livre O Buda difere nesta
materialidade, é de concepções. analogia porque o eco é

36
apenas um reflexo. Manifesta-se em forma produzido na
Contudo é audível e de Discurso dependência de causas
provoca reacções aos naturalmente sem que e condições.
seres. O Discurso do haja nisto bom ou mau
Buda é como um ou qualquer outro
reflexo da Natureza conceito dualista.
última que reside em Reporta-se aos
todos os seres aspectos secretos do
sencientes. Discurso/fala do Buda.
O Espaço Apesar do céu não ter O Dharmakaya embora O Buda difere nesta
uma identidade se possa manifestar em analogia porque o
própria, mesmo assim inumeráveis formas espaço não é “chão”
os seres, do ponto de percepcionáveis ele é, para o cultivo de
vista relativo, falam em termos absolutos, virtude.
dele como forma de o imperceptível, e em
apreender. Nesta nenhuma das
analogia estabelece-se manifestações “é” ele
uma tentativa de mesmo. Reporta-se aos
exemplificar a Mente aspectos secretos do
do Buda, como algo Corpo do Buda.
intangível, mas que os
seres podem “apreciar”
tratando-se de uma
manifestação inteligível
às suas capacidades.
A Terra A terra suporta muitas O Dharmakaya revela- O Buda difere nesta
formas de vida sem ter se como suporte para analogia porque a terra
alguma intenção em os restantes kayas gera apenas frutos
fazê-lo. De igual modo devido à Compaixão. É comuns e temporários.
o Buda suporta o um suporte para fazer
crescimento das desabrochar e florescer
virtudes e das o Bodhicitta.
condições para atingir a
Iluminação.

37
Capítulo V - Benefício (Estâncias 377 – 404)

Considerando que a Actividade Iluminada provém directamente das


Qualidades descritas nos pontos vajra anteriores, Asanga explana os
ensinamentos recolhidos de Maitreya, reportando-se a estes como uma
expressão própria da actividade búdica e, deste modo, validando o
Uttaratantra como um “novo sutra” do ciclo do Mahayana.
Contudo o “elemento” do Buda, o seu despertar, as suas qualidades e
actividades não podem ser compreendidas nem mesmo pelo seres sublimes
como os Bodhisattvas, já que isto é domínio da omnisciência e, por isso,
impossível de abarcar por um corpo composto. Deste modo há uma dimensão
sapiencial associada, que implica a sua percepção através da devoção e da
realização interior.
Maitreya exorta, então, a que os seres e, em particular, os Bodhisattvas, a
que desenvolvam devoção (fé confiante e alegria) e que assim se transformem
em vasos apropriados ao entendimento do Dharma: que todos os seres têm
Natureza Búdica; que as máculas podem ser purificadas; que as 32 marcas
maiores sempre existiram e são intactas; que a actividade búdica se manifesta
permanentemente.
Neste encadeamento a prática do abandono das acções negativas e a adopção
de acções virtuosas referidas como as seis Paramitas (virtudes
transcendentais) são como o campo de cultivo onde se coloca a semente e
esta pode desenvolver-se dando bons frutos e, em termos últimos, conduzindo
à Iluminação. Contudo há uma diferença entre a prática de virtudes
“mundanas” e as “transcendentais”, por exemplo, quando Maitreya fala de
generosidade, não se trata de dar objectos materiais, mas sim permitir a
Sabedoria e a prática da Compaixão. Esta mesma asserção é válida para todas
as restantes paramitas. Em termos finais a prática das Paramitas, sintetizada
na última delas: a Sabedoria, é tudo aquilo que envolve a supressão da ideia
de dualidade e que permite a revelação das qualidades de iluminação.
A Fé nos ensinamentos, em particular no Uttaratantra, é vista como um
propulsor, uma coragem, para aplicar o seu conteúdo à prática. Com isto se
estabelece o caminho para o reconhecimento da Natureza de Buda e se
progride nos 10 bhumis revelando a Iluminação. Esta asserção é equivalente
ao desenvolvimento de um Bom Coração ou Mente de Iluminação (Bodhicitta),
pelo que o texto de Maitreya/Asanga, termina com um conjunto de estrofes
em que põe em evidência o valor das preces aspiratórias, a confiança nos
ensinamentos do Buda com aplicação das sabedorias (fé confiante), que a
purificação é necessária e possível, que todas as práticas sejam realizadas no
sentido do benefício de todos os seres.

38
Conclusão

O Uttaratantra é uma obra crucial da filosofia Budista no contexto do


Mahayana, dando especial ênfase à ideia de que todos os seres dispõem de
Natureza de Buda e que, por tal, todos podem atingir a Iluminação (de acordo
com o exemplo dado por Sakyamuni); além do mais a obra coloca grande
acuidade na via do Bodhisattva, como o caminho que efectivamente permite
o acesso à Iluminação, equivalente ao reconhecimento integral do estado de
Buda (para além dos 4 extremos, empossado de todas as qualidades e
capacidades activas).
Trata-se, assim, de um texto de grande profundidade e maturidade filosófica
elaborado no contexto de expansão e consolidação do Mahayana nas regiões
centro-asiáticas (Paquistão, Afeganistão, etc.) mas ainda colorido por um
“primitivismo” de exemplos colhidos em contexto cultural hindu (daí as
analogias a mitos e a deidades do panteão védico que pontuam o texto, como
as referências a Brahma, Indra, Asura Rahula, Narayana, etc.).
Espelha-se, no Uttaratantra, não só a “fractura” filosófica suscitada cerca de
900 anos antes pela manifestação e ensinamentos do Buda Sakyamuni (26),
gerando um novo movimento que, embora se assemelhe em muitos aspectos
ao hinduísmo, na realidade revoluciona e introduz uma nova panorâmica no
contexto cultural, filosófico e religioso então vivido, como também um novo
fôlego filosófico que assenta no desenvolvimento do Mahayana a partir do séc.
I e por influência das correntes e diálogo inter-cultural com a antiga Grécia e
Pérsia (27).
São diversas as similitudes, ao tempo do tratado Uttaratantra (e ainda
actualmente) entre o hinduísmo e o budismo, sobretudo no que respeita ao
uso de termos e conceitos técnicos:
• A ideia de que a “realidade” relativa não é mais que uma ilusão, que a
lei do karma condiciona o renascimento cíclico no samsara (embora
justificado de forma diversa em cada um dos sistemas);
• Que os seres devem estabelecer um caminho dármico de renúncia e de
defesa dos valores da paz como factor de progressão espiritual;
• A prática de diversos yogas, meditação e a recitação de mantras;
• Ambas as filosofias desenvolveram linguagens simbólicas semelhantes,
sobretudo na prática tântrica;
• Ambas têm visões de uma cosmologia em alguns aspectos semelhante
(diversos reinos de existência) etc..

26
Nascido em Lumbini, actual Nepal, em data imprecisa. Alguns autores apontam para 624 a.C., outros
apontam para datas talvez mais fiáveis - cerca de 565, 564 ou 563 a.C..
27
Podem ser estabelecidos inúmeros pontos de contacto e de possíveis influências mútuas entre diversas
correntes filosóficas correntes na altura. Em particular podemos notar uma grande proximidade aos
conceitos gregos ética, cepticismo (que pode resultar na equinanimidade ou na visão da vacuidade), da
dialéctica, lógica, etc.. Podemos também estabelecer paralelos entre a figura do autor atribuído do texto,
Maitreya, como a deidade Mitra venerada na Pérsia, ambas inspiradoras de uma noção de virtude
amorosa.

39
No entanto, apesar destas aparentes semelhanças, há diversos factores
distintivos entre o hinduísmo e o budismo:
• Tecnicamente, o hinduísmo apresenta-se como uma multitude de
formas religiosas agregadas pelas origens comuns dos seus textos, ao
invés do budismo que, além de um fundador histórico, dispõe de uma
coerência formal bastante maior quanto às práticas religiosas, além da
observância básica das 4 Nobre Verdades e o Caminho Óctuplo;
• Na fundação das doutrinas budistas reside algum sentido das
Upanishades, contudo estas, ao contrário do Vedanta Hindu, não
constituem um lastro efectivo já que no budismo se recorre em
exclusivo, aos Sutras e os Tantras, matriz escrita/discursiva dos
ensinamentos de Sakyamuni;
• Embora a palavra “Nirvana” já existisse antes do nascimento do
Budismo, ela contudo não era usada pelas Upanishades hindus. Assim,
tecnicamente, esta palavra passou a ter um significado técnico muito
preciso e adequado ao sistema filosófico enunciado por Buda, não no
sentido de “salvação” (para evitar a ideia de salvador e salvado), mas
no sentido de obtenção pessoal de um determinado estado de paz
(relativo ou absoluto).
• Ao contrário do hinduísmo, o sistema do Dharma do Buda não assenta
na ideia munista da existência de uma alma ou atman (identidade
individual), mas sim num anatman ou sunyata, a certificação da não
existência de um “si” autónomo;
• Nem postula a existência de um criador, ao contrário dos hindus que
identificam um deus criador e omnipotente: Brahaman;
• Considerando a possibilidade dos seres melhorarem a sua condição
através da prática de acções virtuosas e pelo abandona de acções
negativas, o Buda nega, face á lei do karma, que se estabeleça uma
“rotina” de renascimentos sempre nas mesmas castas (e esta foi uma
das rupturas mais radicais com a sociedade do seu tempo).
• O Mahayana desenvolve uma visão altruística associada a um forte
sentimento de amor compassivo equinânime (Bodhicitta) que é o
campo e o caminho dos Bodhisattvas;
Na perspectiva budista o Uttaratantra embora não seja um texto discursado
directamente pelo Buda Sakyamuni, ele não deixa de ser uma revelação
autêntica. De acordo com a tradição, ao longo dos tempos diversos tesouros
espirituais podem revelar-se de acordo com as necessidades dos seres e com
as suas capacidades de entendimento, assim esta obra surge num alinhamento
com o Mahayana (que começa a ganhar expressão pouco mais de dois séculos
antes).
Nesta circunstância podemos categorizar o texto como alinhado ao grupo dos
ensinamentos definitivos do Buda (2.º e 3.º ciclo de ensinamentos do Buda),
embora lhe subjaza, em lato senso, os princípios enunciados nas 4 Nobre
Verdades (próprios do 1.º ciclo). Neste caso porém, depois de um processo de
análise que permite ultrapassar o estágio básico e provisional dos

40
ensinamentos (1.º ciclo), exorta-se ao estabelecimento de uma prática que
tenha como convicção a existência da Natureza de Buda em todos os seres,
bem como a que se reconheça a ideia de vacuidade dos fenómenos (sunyata)
(sobretudo expressa no 2.º ciclo de ensinamentos) e da necessidade de
expressar acções benéficas a todos os seres, revelando a plena Iluminação, as
qualidades de Buda e todo o seu potencial de actividade natural de amor e
compaixão (cuja expressão “luminosa” é expressa no 3.º ciclo de
ensinamentos). Surge assim, como modelo, o modo de acção dos
Bodhisattvas, considerando que só a prossecução desta via reúne as causas e
condições que permitem a realização da Iluminação.

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