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AUFKLÄRUNG, João Pessoa, v.9, n.3, Set.­Dez., 2022, p.

67­84
DOI: https://doi.org/10.18012/arf.v9i3.63336
Recebido: 13/06/2022 | Aceito: 25/11/2022
Licença: Creative Commons 4.0 International (CC BY 4.0)

O CONCEITO DE SAÚDE NO ECCE HOMO DE NIETZSCHE

[THE CONCEPT OF HEALTH IN NIETZSCHE'S ECCE HOMO]

Flávio Freitas *
Leonice Silva **
Universidade Federal do Maranhão, Brasil

RESUMO: O presente artigo pretende explicitar a ABSTRACT: The present article intends to
problematização acerca do conceito de saúde explain the problematization about the concept
exposta no Ecce homo de Friedrich Nietzsche. of health exposed in Friedrich Nietzsche's Ecce
Para tanto, o presente artigo está dividido em homo. Therefore, this article is divided into
três momentos. Na primeira parte, trouxemos a three moments. In the first part, we brought the
relação entre a tríade de pensamentos (teoria relationship between the triad of thoughts
das forças, eterno retorno e vontade de poder). (theory of forces, eternal return and will to
Posteriormente, trouxemos a descrição do que power). Subsequently, we brought the
seriam os critérios para classificar o processo description of what would be the criteria to
saúde­doença (método, genealogia e classify the health­disease process (method,
fisiopsicologia), por fim, apresenta­se a genealogy and physiopsychology), finally, we
classificação das doenças da vida expostas no present the classification of the diseases of life
Ecce Homo, tal como seu processo de exposed in Ecce Homo, as well as its
disseminação. É oportuno ressaltar que durante dissemination process. It is worth noting that
nossa argumentação, destacamos o paradoxo during our argument, we highlight the paradox
que funciona como condição para o exercício that works as a condition for Nietzsche's
filosófico de Nietzsche em Ecce Homo, cujo philosophical exercise in Ecce Homo, whose
núcleo é composto pelo seguinte enunciado: só core is composed of the following statement: it
é possível recuperar a saúde, de um ponto de is only possible to recover health, from a
vista filosófico, se em algum momento anterior philosophical point of view, if in some previous
houve uma vivência de saúde e potência. moment there was an experience of health and
PALAVRAS­CHAVE: Nietzsche; Saúde; Doença; potency.
Moral; Ressentimento; Má consciência KEYWORDS: Nietzsche; Health; Disease; Moral;
Resentment; Bad conscience

O pensamento de Nietzsche pode ser dividido em três grandes períodos1: o


primeiro se encontra pautado pelo pessimismo romântico, influenciado pela
filosofia de Schopenhauer e Wagner, ele busca suas interpretações a partir da sua
bagagem filológica, acreditando na renovação da cultura alemã; o segundo, ele rompe
com esse pessimismo ao sofrer influências do positivismo cético, principalmente com
* Doutorado e Pós­Doutorado em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos (UFSCar),
com estágio sanduíche pela Université Paris 1 ­ Panthéon Sorbonne. Professor permanente do
Programa de Pós­Graduação Interdisciplinar em Cultura e Sociedade da Universidade Federal do
Maranhão (UFMA). Email: f_lcf@hotmail.com. * Mestranda em Cultura e Sociedade ­
Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Email: f_lcf@hotmail.com
Flávio Freitas & Leonice Silva

Comte, busca o caminho enquanto espírito livre. O terceiro período se fundamenta na


reconstrução de suas obras anteriores e salienta a elaboração consistente da sua própria
filosofia, constrói a doutrina do eterno retorno, a teoria da vontade de potência, torna
operatório o conceito de valor e instaura o procedimento genealógico.
A fonte que selecionamos como porta de entrada para estudarmos o conceito de
68 saúde na obra de Friedrich Nietzsche é o texto intitulado de Ecce homo (1908). Assim, o
tema da saúde é exposto e problematizado em vários momentos, sobretudo nas três
primeiras partes. A obra constitui o terceiro período de seu pensamento, o Nietzsche
maduro, considerado uma de suas últimas obras, após O Anticristo (1895). O Ecce homo
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é simultaneamente uma espécie de autobiografia intelectual do autor & uma análise de


seus trabalhos mais importantes.
Pode­se dividir o Ecce homo em duas partes: uma autobiográfica e uma
genealógica, composta pelos quatro primeiros capítulos; nos demais capítulos ele
apresenta a gênese da composição e relevância dos seus escritos anteriores; e no último
capítulo ele faz uma síntese de toda a sua real intenção que se constitui em uma crítica a
moral cristã, reafirma sua moral da saúde e apreço a vida, demonstrando as fontes da
doença e consequentemente a miséria espiritual da civilização ocidente.
Mediante a conexão entre filosofia e psicologia, o conceito de saúde consistirá na
afirmação da alegria e no caráter trágico da própria Vida. A imagem do médico precede
a do filósofo, o qual só pode surgir após medicar a si mesmo — para, em seguida, se
tornar amigo da sabedoria. Filosoficamente, o médico é transformado em condição e
pressuposto para o amigo e, consequentemente, da filosofia na totalidade.
Na primeira parte deste artigo, buscou­se identificar os pressupostos e
componentes envolvidos no conceito de saúde, na obra Ecce homo, especificamente
com a relação entre a tríade de pensamentos da teoria das forças, eterno retorno e
vontade de poder. No segundo momento, descrevem­se os critérios para classificar os
processos saúde­doença no Ecce homo, trabalhou­se com a relevância de seu método, a
genealogia e a fisiopsicologia. Por fim, apresentamos a classificação das doenças da vida
no Ecce homo, tal como, a culminação desse processo e sua transvaloração.
A filosofia nietzschiana se consolida como uma análise da existência a partir de
uma dupla perspectiva, de um lado temos Nietzsche como saudável, mediante a clareza
intelectual apresentada em seus escritos, de outro, doente, dada as suas condições físicas
e somáticas. A maioria de suas obras foram escritas em meio a fortes dores de cabeça,
colapso físico e início de cegueira. Sagazmente, em meio a doença, conseguia manter
uma clareza intelectual.
Como ele próprio apresenta: “para os sinais de ascensão e declínio tenho um
sentido mais fino do que homem algum jamais teve, nisto sou o mestre para excelência
— conheço ambos, sou ambos”2. Ao se considerar um decadente, mas também o seu
oposto, ele denota que soube escolher os “remédios” certos para tais estados ruins. É
nesse ponto que ele se diferencia dos demais decadentes, toma a si mesmo e curará a si
mesmo.
Nietzsche revela que “para um psicólogo, poucas questões são tão atraentes como
a da relação entre filosofia e saúde, e, no caso de ele próprio ficar doente, levará toda a
sua curiosidade científica para a doença”3. A própria doença, por esse prisma, não é vista
como doença, mas como um experimento, uma vida dotada de potência consegue ir
além, essa é a função do médico filósofo4.
É necessário de antemão, reconhecer que mediante tais processos de doenças,
nasce também outras tantas maneiras de pensar uma nova filosofia. Em Nietzsche corpo
e alma se entrelaçam, como aponta no § 3 de AGaia Ciência:
Apenas a grande dor é o extremo liberador do espírito, enquanto mestre da grande
suspeita, que de todo U faz um X, um autêntico e verdadeiro X (…) apenas a
O conceito de saúde no Ecce Homo de Nietzsche

grande dor, a lenta e prolongada dor, aquela que não tem pressa, na qual somos
queimados com madeira verde, por assim dizer, obriga a nós, filósofos, a alcançar
nossa profundidade extrema e nos desvencilhar de toda confiança, toda
benevolência, tudo o que encontramos, que é brando, mediano, tudo em que antes
púnhamos talvez nossa humanidade. Duvido que uma tal dor 'aperfeiçoe' —, mas
sei que nos aprofunda.5 69
Com efeito, diante de “tais abismos, de tal severa enfermidade, também da
enfermidade da grave suspeita voltamos renascidos (…) cem vezes mais refinados do
que jamais fôramos antes”6. As ideias acerca da Grande Saúde buscam a superação de si

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mesmo, no entanto, ao contrário dos profetas7 Nietzsche apenas indicava as trajetórias
possíveis para se alcançar tal estado.
Nietzsche se apresenta como um terapeuta e como um paciente, agindo como
médico de si mesmo e também como médico da cultura. A Grande saúde e doença, são
revistas como dois estados da cultura8 ocidental. Este olhar de um ponto de vista doentio
para as profundezas da decadência, possibilitaria a Transvaloração de valores. Pois, de
acordo com Nietzsche:
Da ótica do doente ver conceitos e valores mais sãos, e, inversamente, da plenitude
e certeza da vida rica descer os olhos ao secreto lavor do instinto de décadence —
este foi o meu mais longo exercício, minha verdadeira experiência, se em algo vir
a ser mestre, foi nisso. Agora tenho­o na mão, tenho bastante mão para deslocar
perspectivas: razões primeiras porque talvez somente para mim seja possível uma
‘trensvaloração dos valores’9.
Nietzsche encontra uma força, que a leva ao desejo de viver, durante o longo
período de enfermidade, se redescobre e reconstrói sua filosofia. Saboreou de todas as
coisas até as mais simples, de uma forma que só ele saberia, “fiz da minha vontade de
saúde, de vida, a minha filosofia”10. A ideia de saúde e doença que precisam ser
analisadas por outros aspectos assim como a preocupação com a vida:
Pois, não existe uma saúde em si, e em todas as tentativas de definir tal coisa,
fracassaram miseravelmente. Depende do seu objetivo, do seu horizonte, de suas
forças, de seus impulsos, seus erros e, sobretudo, dos ideais e fantasias de sua
alma, determinar o que deve significar saúde também para seu corpo. Assim, há
inúmeras saúdes do corpo; (…) nossos médicos terão de abandonar o conceito de
uma saúde normal, juntamente com uma dieta normal e curso normal da doença. E
apenas então chegaria o tempo de refletir sobre a saúde e doença da alma11.
O conceito de vida surge anterior ao da vontade de potência, e assim como tal,
possui variações e sentidos diversos. Inicialmente a vida e conhecimento apresentam
alguns conflitos, somente com o escrito de AGaia ciência ele retoma a questão, e essa
ideia anterior de conflito desaparece. Vida agora significa uma “possibilidade de
‘experimentação de conhecimento’ e este é encarado como o que permite a manutenção
daquela”12.
No caráter cosmológico e genealógico, o conceito de vida não se encontra
distante do sistema de lutas, ele “constata tanto na vida social quanto na individual, tanto
na vida mental quanto na fisiológica, uma única e mesma maneira de ser na vida: a
luta”13. A luta é considerada necessária, é com ela que irá se determinar os vencedores e
vencidos, os que mandam e os que obedecem, como um sistema de hierarquias. A
exemplo disso temos:
A célula ao tornar­se função de outra mais forte, está a obedecê­la; o pensamento,
ao sobrepujar os demais, passa a mandar neles; o impulso ao queixar­se de outros,
recusa a obediência busca o mando (…) enquanto vontade de potência, a vida é
mandar e obedecer; é, portanto, lutar14.
Flávio Freitas & Leonice Silva

Significa dizer que Nietzsche relaciona vida e vontade de potência de duas


maneiras. Em dado momento, essa relação “encontra­se identificadas, ora, a vida
aparece como caso particular da vontade de potência”15. No segundo momento, a
vontade de potência se depara com empecilhos que nos cercam, submeterá os que a ela
se opõem para colocá­los à sua disposição.
70 Doravante, podemos pensar a filosofia nietzschiana a partir de um triângulo de
conceitos que permeia toda a estrutura de seu pensamento; a teoria das forças, o eterno
retorno e a vontade de poder. A distinção entre orgânico e inorgânico perde sentido com
a teoria das forças, onde Nietzsche se submete a resolver os problemas da ciência de sua
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época. Logo, é na teoria das forças que a vontade de potência se direciona para uma
nova dimensão, antes a vontade de potência se encontra atrelada como vontade orgânica,
agora ela aparece como força eficiente, dessa forma ela atua a tudo aquilo que existe, a
vontade de potência diz respeito assim ao efetivar­se da força.
Nessa perspectiva, Nietzsche traz uma nova fórmula para se pensar o corpo, essa
fórmula seria a teoria das forças, “o que define um corpo é a relação entre forças
dominantes e forças dominadas. Toda relação de forças constitui um corpo: químico,
biológico, social, político”16. Dessa forma, o corpo é múltiplo, ao se pensar nele como
uma relação de forças, forças estas que se baseiam em duas concepções, como afirma
Deleuze17 “o corpo é fenômeno múltiplo, sendo composto por uma pluralidade de forças
irredutíveis; sua unidade é a de um fenômeno múltiplo, ‘unidade de dominação’ (…) as
forças dominantes são ditas ativas,as forças inferiores ou dominadas são ditas
reativas”18.
Durante o seu percurso filosófico fica evidente um caráter pluralista,
principalmente cosmológico. Ao se definirem como forças reativas, as forças inferiores
exercem funções que “assegurem os mecanismos e finalidades, a exemplo disso,
cumprem as condições de vida e funções, assim como, as tarefas de conservação,
adaptação e utilidade”19. Marton20 aponta que quando se tratava do mundo, ele
postulava a existência de uma pluralidade de forças que estão por toda a parte. A força
só existiria no plural, uma força está relacionada a outra a medida em que elas se
encontram num ponto de tensão.
Nesse sentido, não se pode afirmar o que o corpo é capaz. O organismo,
necessariamente seria visto apenas pelo lado das reações. É possível perceber um caráter
pluralista, que se volta para a diversidade das forças ativas e reativas. Contudo, as forças
ativas, as dominantes exigem critérios mais complexos para se caracterizarem, cujas
características são compostas em apropriar­se, apoderar­se, subjugar, dominar. Ou seja,
impor formas, criar formas, explorar as circunstâncias.
De acordo com Klossowski, “antes de describir ‘cómo se llega a ser lo que uno
es’ vuelve a poner en tela de juicio la cuestión de quién es él mismo. Nunca deja de
señalar que tal o cual de sus fue escrita en tal o cual momento de salud”21. Nietzsche tem
essa correlação com a saúde e doença em seus escritos, se tratando tanto dele como
estado de saúde­doença, como também da sociedade ocidental de seu tempo. Trazendo
esse paradoxo constitutivo da Grande Saúde como condição para o exercício de um
pensamento filosófico. O eu físico e o eu moral de Nietzsche se coincidem, dadas as
forças ativas enquanto funções orgânicas, querem terminar com a escravidão, esse
processo ocorre, tal como insaciavelmente:
Insaciável, ela continua a exercer­se a vontade de potência. Não há finalidades a
realizar; por isso ela é desprovida de caráter teleológico. A cada momento, as
forças relacionam­se de modo diferente, dispõem­se de outra maneira; a todo
instante, a vontade de potência, vencendo resistências, se auto­supera e, nessa
superação de si, faz surgir novas formas. Enquanto força eficiente, ela é, pois,
força plástica, criadora22.
O conceito de saúde no Ecce Homo de Nietzsche

Durante muito tempo Nietzsche experimentou e vigiou apaixonadamente essa


concorrência dissolvente de forças somáticas e anímicas. Quanto mais escuta o corpo,
mas desconfia da pessoa que o corpo sustenta. A obsessão do suicídio, pelo desespero de
nunca sarar dessas terríveis enxaquecas, volta a condenar o corpo em nome da pessoa
que ali se encontra diminuída. A ideia de não ter ainda realizado sua obra lhe dá a força
para tomar partido pelo corpo. Se esse corpo é um ponto doloroso, se o cérebro só envia 71
sinais de socorro, é porque se trata de uma linguagem que se conduzirá a entender o
custo da razão.
O sofrimento não só o interpreta como energia, mas considera que o sofrimento

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físico só é tolerável se estiver estreitamente ligado ao gozo, se desenvolver uma lucidez
voluptuosa: ou extingue qualquer pensamento possível, ou atinge o delírio do
pensamento. O corpo é o resultado do fortuito, é o lugar de encontro de um conjunto de
impulsos individuais por esse intervalo que constitui uma vida humana.
Do mesmo modo, a vontade de potência pode ser compreendida como o impulso
de toda força a efetivar­se dado um primeiro momento, criando configurações em
relação com as demais forças. Superando a si mesma, o mundo se apresenta como um
vir — a — ser, uma mudança sucede outra, um estado atingido sucede outro estado.
Em contradição a teologia e a teoria mecanicista, Nietzsche considera o mundo
como eterno, não precisamente um momento inicial, pois a vontade de potência não é
intencional. Da mesma forma, não há um instante final, por não possuir um caráter
teológico, o mundo não se constitui como um sistema, ele é um processo dinâmico, com
campos de forças não estáveis, sempre em tensão, ele não se encontra governado por
leis, ou cumpre categorias de finalidades, ele não é, portanto, submetido a um
determinado poder transcendental. Sua coesão não se garante por nenhuma categoria de
substância, ele só se permanece uno, porque a multiplicidade de forças se inter­
relacionam.
Assim como na percepção da Scarlett Marton, Deleuze nos traz uma
interpretação parecida sobre vontade de potência como o elemento genealógico da
força, de forma que, ele é tanto o elemento diferencial das forças, por ser um elemento
de produção da diferença da quantidade entre as forças que se relacionam, e também um
elemento genético, por ser um elemento da produção da qualidade no que se refere a
cada força, sem a vontade de potência como princípio, não haveria plasticidade ou
metamorfose.
O conceito de vontade de potência e a teoria das forças se encontram vinculadas
à doutrina do eterno retorno. O eterno retorno nietzschiano faz alusão a uma crítica do
estado de equilíbrio no universo. “Se o universo tivesse uma posição de equilíbrio, diz
Nietzsche, se o devir tivesse um objetivo ou um estado final, ele já o teria atingido”23.
Significa dizer que o tempo passado como infinito, esse devir já teria atingido um estado
final se houvesse um e consequentemente não teria saído de um estado inicial, se
houvesse um. Nietzsche elucida que se o universo fosse permanente e fixo não haveria o
devir e este não poderia ser observado.
Na Gaia ciência, o eterno retorno é visto em dois pontos: a repetição cíclica dos
acontecimentos e o movimento circular em que a mesma série de eventos ocorre. Essa
ideia permeará suas futuras obras, numa versão cosmológica de sua doutrina. É a partir
da experiência do eterno retorno que, em simultâneo, apresenta uma ruptura irreversível
e se desenvolve uma versão da fatalidade, o círculo vicioso, cujo objetivo é suprir o fim
e o sentido, o começo e fim se encontram interligados. “A doutrina do ‘eterno retorno’,
ou seja, do ciclo absoluto e infinitamente repetido de todas as coisas — essa doutrina de
Zaratustra poderia ter sido ensinada também por Heráclito”24.
Para melhor compreensão, parte­se de duas ideias centrais: a primeira é a noção
de força como sendo finita, e a segunda como o tempo infinito. O tempo sendo
compreendido com infinito, pressupõe que não teve um início ou fim, então tudo o que
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existe além do orgânico, é constituído por forças finitas. A doutrina do eterno retorno do
mesmo, para tanto, é finito, mas eterno. Conforme o seu artigo que descreve a
concepção de uma forma nova de observar o mundo, a partir da tríade de pensamento
nietzschiana, Marton afirma que:
72 Todos os dados são conhecidos: finitas são as forças, finito é o número de
combinações entre elas, mas o mundo é eterno. Daí se segue que tudo já existiu e
tudo tornará a existir. Se o número dos estados por que passa o mundo é finito e se
o tempo é infinito, todos os estados que hão de ocorrer no futuro já ocorreram no
passado25.
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De acordo com Marton, “sublinhando­se a repetição dos acontecimentos, nada


impediria que, por um processo fortuito, as forças constitutivas do mundo viessem a
combinar­se de tal forma que as configurações voltassem a ocorrer; seriam regidas pelo
acaso.”26Ao se realizar o movimento circular, uma mesma série de eventos ocorrem, mas
seria necessário que as forças se combinam em uma mesma sequência padrão, dessa
forma todas as configurações se repetiram, no entanto, “da repetição dos acontecimentos
não se pode deduzir o movimento circular em que a mesma série de eventos ocorre; não
se deduz que uma configuração só retorna após finda toda a série e, menos ainda, que
cada configuração determina a seguinte”27.
Se pressupõe com base nessa afirmação, que nessa sequência de eventos, cada
estado no mundo, em um determinado momento, definirá o próximo e indiretamente
todo o ciclo. “Assevera que este momento que estamos vivendo já se deu e voltará a dar­
se um número infinito de vezes exatamente como se dá agora. O que se repete não é o
que eventualmente poderia ocorrer, mas o que ocorre de fato”28.
Acerca do Eterno Retorno, é válida a análise do Klossowski, segundo ele, “no
podemos renunciar al lenguaje, ni a nuestras intenciones, ni a nuestra voluntad; pero
podríamos apreciar de un modo diferente al que lo habíamos hecho hasta ahora, esa
voluntad y esa intención sometidas a la ‘ley’ del Círculo vicioso”29. Compreende­se
então, que, mesmo não podendo renunciar a linguagem, as nossas intenções ou
vontades, poderíamos ainda, diferentemente, apreciar essa vontade e essas intenções
submetidas à lei do Círculo vicioso.
Mediante tal encadeamento, não são os eventos possíveis que retornam, o que
retornam são os acontecimentos reais. “Assim, o querer não pode restringir­se ao desejo
de repetir uma vez ou muitas vezes. Pois, desse modo, a intensidade do sim, não
atingiria seu ápice. O sim, verídico do além­do­homem só se completa no querer que
retorne infinitas vezes tudo o que é e foi”30. Surge, segundo Nietzsche “o pensamento do
eterno retorno, a mais elevada forma de afirmação que se pode em absoluto alcançar”31.
Na Gaia Ciência, Nietzsche traz uma das mais importantes reflexões, que possui um
enorme peso, talvez o maior de todos eles:
Esta vida, como você a está vivendo e já viveu, você terá de viver mais uma vez e
por incontáveis vezes; e nada haverá de novo nela, mas cada dor e cada prazer, e
cada suspiro, e pensamento, e tudo o que é inefavelmente grande e pequeno em
sua vida, terão de lhe suceder novamente, tudo na mesma sequência e ordem32.
Dessa forma, a pergunta subsequente é a seguinte, “você quer isso mais uma vez
e por incontáveis vezes?”33. Não há outra fuga, estamos condenados a viver inúmeras
vezes e, todas elas, sem razão ou objetivo, então tudo o que nos resta é aprender a amar
nosso destino, é inevitável que a existência tal como é, sem sentido ou finalidade, se
repita; é imprescindível que o homem, não possuindo outra vida além desta, a afirme. O
amor fati, logo, é uma fórmula para medir a grandeza da vontade afirmativa do homem,
vinculado ao pensamento do eterno retorno, que seria a possibilidade de uma repetição
cíclica de todos os acontecimentos, portanto, amar o que é necessário, seria amar a
O conceito de saúde no Ecce Homo de Nietzsche

possibilidade eterna do retorno do próprio niilismo, dizer Sim, ao mundo tal como ele é.
O Ecce Homo de Nietzsche deve ser visto não só como um texto autobiográfico,
como foi inicialmente pressuposto, mas, como algo bem mais complexo, ele constitui a
genealogia do seu pensamento. Os próprios títulos dos capítulos, por exemplo, são
perguntas genealógicas, pois buscam as gêneses das condições envolvidas em
determinado modo de vida ou forma de pensar. Na obra podemos encontrar duas 73
dimensões de saúde; uma dimensão empírica, e uma dimensão transcendental e
noológica34.
Tendo em vista tal abordagem, os critérios para classificar os processos saúde­

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doença, consistem na análise do método adotado por Nietzsche, tal como seus
instrumentos de diagnósticos, a genealogia e a fisiologia. O método de Nietzsche se
encontra presente de maneira mais sistemática na sua obra A genealogia da moral
(1887), para Deleuze, “o método todo consiste no seguinte: referir um conceito à
vontade de potência para dele fazer o sintoma de uma vontade sem a qual ele não
poderia nem mesmo ser pensado (…) tal método corresponde a questão trágica”35.
Roberto Machado faz uma síntese do pensamento nietzschiano de forma muito
bem elaborada, onde, o projeto genealógico, consistiria numa “tentativa de superação da
metafísica através de uma história descontínua dos valores morais que investiga tanto a
origem, compreendida como nascimento, como invenção, quanto o valor desses
valores”36. Prossegue ele, “ligar filosofia à história — como Nietzsche também faz com
a filologia, a fisiologia, a psicologia — é um modo de marcar posição, de assinalar sua
diferença com relação a uma filosofia que ele denunciará como metafísica e moral”37.
Em Nietzsche adota­se duas origens dos valores morais, a moral dos senhores e a
moral dos escravos, de um lado temos a moral dos senhores que coincide com uma
moralidade sadia, por assim dizer, se concretiza naturalmente, é conduzida pelos
instintos da vida, e a moral dos escravos, está no que lhe concerne, é uma moral
contranatural, se volta contra esses mesmos instintos. “O objetivo fundamental da
genealogia é realizar uma crítica radical dos valores morais dominantes, na sociedade
moderna”38.
A vida é analisada a partir da vontade de poder, dessa forma, a investigação não
cairia num círculo vicioso, a moral passa a ser vista como uma dupla perspectiva, de um
lado pode ser elucidado como consequência e como causa, assim, como doença e
remédio. Os valores são associados à vida, e assim como tal, se modificam ao longo dos
anos.
Em seus escritos posteriores, a filologia toma grande parte de sua filosofia como
um instrumento fundamental para analisar o cristianismo. Ele se propõe a provar que o
cristianismo é fundado em mentiras propriamente ditas, como relata no Anticristo:
Dessa defeituosa ótica em relação às coisas a pessoa faz uma moral, uma virtude,
uma santidade, vincula a boa consciência à falsa visão — exige que nenhuma
outra ótica possa mais ter valor, após tornar sacrossanta a sua própria, usando as
palavras ‘Deus’, ‘salvação’, ‘eternidade’. Desencavei o instinto de teólogo em toda
parte: é a mais disseminada, a forma realmente subterrânea de falsidade que existe
na Terra. O que um teólogo percebe como verdadeiro tem de ser falso: aí se tem
quase que um critério de verdade39.
Não obstante, o cristianismo compreende como pecado a natureza e os valores
naturais, assim como negar a cientificidade, o corpo, a vida terrena, constitui uma
prática do autoengano. Essa incapacidade de ver a realidade como ela realmente é, é
para tanto, uma franqueza aos olhos de Nietzsche, pois para viver há a necessidade de se
apegar aos suportes metafísicos.
A ideia de outro mundo, o suprassensível (Deus) ou de valores superiores à vida
constituem uma depreciação da vida e uma negação dessa vida. “A história do niilismo
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não tem um começo. O niilismo é a expressão da décadence fisiológica. Esta surge nas
mais distantes culturas que se constituem independentemente umas das outras”40. Uma
característica marcante em Nietzsche que o coloca com uma visão acentuada sobre a
“grande psicologia”, de acordo com Giacoia:

74 O auto­reconhecimento como o primeiro grande psicólogo corresponde, em


Nietzsche, uma concepção ampliada de psicologia: a "grande psicologia". Esta, por
sua vez, é peça constitutiva de todo seu programa genealógico de filosofia. Ela
funciona como um operador estratégico em sua genealogia da moral, em suas
análises dos fenômenos religiosos, em sua apreciação das grandes personalidades
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históricas antigas e modernas, em sua crítica da ciência, da arte, da educação e da


política, enfim, em sua inteira tarefa de ‘médico e sintomatologista da cultura’41.
Nietzsche dá à filosofia um tratamento psicológico, isso possibilita um
tratamento psicológico da cultura. A fisiopsicologia não necessariamente consiste numa
prioridade à fisiologia. O alvo estratégico do projeto nietzschiano, é a genealogia da
moral, de modo que, se trata de uma derivação genética da consciência da moral. Ele
unifica a fisiologia com psicologia, formando seu próprio método, a fisiopsicologia, ele
considera fisiológico não apenas corpos vivos, mas o inorgânico e as produções
humanas, como o Estado, Religião, Arte, Ciência e Filosofia.
A consciência moral, conceitualmente desenvolvida pelos gregos, desenvolvida
posteriormente na ética cristã, com a filosofia medieval, concretiza a ideia de uma
aproximação ao “remorsus”. Giacoia pressupõe que inicialmente “a consciência moral
está relacionada ao senso moral das próprias ações, ao sentimento provido de urna
faculdade de autojulgamento, à consciência de incondicional conformidade ao dever,
indicando ser justa uma ação que se deseja empreender”42.
Todavia, Nietzsche não se satisfaz e investiga a gênese da consciência moral,
cuja tarefa principal consiste em reconduzir formações culturais complexas que vão
desde as instâncias psíquicas, práticas, instituições, sociais e sistemas orgânicos; às
condições (pré) históricas de surgimento, transformação e desenvolvimento. Porquanto:
Trata­se de identificar as condições de instauração e deslocamento de sentido de
tais formações, por intermédio da decifração de sinais inscritos nos corpos e almas
dos indivíduos e dos povos. Compreender tais fenômenos significa, portanto,
reconstruir o movimento de sua gênese e a dinâmica de seu desenvolvimento, a
cadeia histórica de sua apropriação em relações sociais de poder que determinam a
emergência e os deslocamentos de sentidos43.
No capítulo intitulado “Por que eu sou tão sábio” Nietzsche se descreve como
experimentador de duplas perspectivas “sou um décadent, sou também o seu contrário
(…) eu era sadio, como ângulo, como especialidade era décadent”44. Via­se em
Nietzsche múltiplas facetas, que solidificam uma espécie de guerra interior aos seus
próprios impulsos, ele torna­se um espelho de si mesmo em suas obras. Sua necessidade
de subjugar os outros encontraria expressão em sua concepção de luta entre a moral dos
senhores e a moral dos escravos45.
A necessidade de subjugar os outros,seria em uma visão psicanalítica apresentada
por Salomé em um de seus escritos uma áspera ilustração do que ocorre com o homem
singular mais elevado, do cruel processo anímico, através do qual este tem de cindir­se
em deus sacrificial e animal sacrificial. Dessa maneira, Nietzsche apenas descreveria o
caráter antagônico de seu próprio “eu”.
No entanto, o que nos interessa quanto a validade de seu pensamento, é que
Nietzsche compreende a si mesmo como crítico de sua época. “Mas para que a própria
época possa ser atacada no eu, é preciso expor suas múltiplas correntes espirituais; o ‘eu’
precisa ampliar­se em consciência completa de sua época”46. De acordo com Giacoia, “a
O conceito de saúde no Ecce Homo de Nietzsche

história da consciência moral identifica­se com a história da repressão, mas também da


transfiguração e sublimação dessa barbárie por meio da espiritualização e
aprofundamento da consciência de culpa”47. Tais noções farão o ensejo para os conceitos
de esquecimento, memória e repetição.
Nietzsche percorre toda a esfera da alma moderna, redescobrindo novos pontos a
serem trabalhados, como a visão sobre o corpo ser muito mais do que podemos 75
imaginar, assim como a divisão de mundos e ideias, que nos encaminham para enormes
contradições. “De sua filosofia dos antagonismos brotam assim os antagonismos
intransponíveis de seu filosofar”48. É notório, que a vontade de potência só se manifesta

AUFKLÄRUNG, João Pessoa, v.9, n.3, Set.­Dez., 2022, p.67­84


mediante a resistências de forças.
Para Nietzsche o homem cultivou abundantemente instintos e impulsos
antagônicos, é esse sistema de impulsos contrapostos que dão vida ao movimento das
forças, gerando novos impulsos. Os impulsos se desenvolvem individualmente, quando
um deles se sente estimulado ou impedido, um se sobrepõe ao outro. Logo:
Impulso, força, afeto; a palavra impulso é só uma tradução, na linguagem do
sentimento, do que­não­sente. Nunca se constatou uma força, mas sempre se
afirmam apenas efeitos, traduzidos numa linguagem completamente estranha. E
também os afetos não são nada além de uma invenção de causas que não existem.
Depois dessas destruições das conceptualizações metafísicas, em recusa a essas
determinações, por vezes Nietzsche faz uso do “quantas dinâmicos”, que estão
numa relação de tensão com todos os outros quantas dinâmicos, no entanto,
conceitualmente é incompreensível tal modo de falar.49
Tendo em vista “não apenas a força tem de ser, por fim, entendida como vontade
de potência; também os afetos nada mais são do que ‘configurações’ da vontade de
potência que ‘é a forma primitiva do afeto’, assim como se diz dos impulsos, que a ela
pode ser remetidos”, a vontade de potência, se torna a essência do mundo. Quando
Nietzsche traz em seu discurso a unidade do múltiplo, significa dizer que existe uma
relação meramente recíproca entre a relação de dependência dos múltiplos entre si, que
se origina no conjunto de mundo uno, e não a má interpretação de que ele visa uma raiz
metafísica.
Ao eliminar a matéria, desvinculando­se do materialismo, substituindo­a pela
noção de força, Nietzsche busca suprimir os preconceitos provenientes da sua época,
“pré­juízos metafísicos, superstições religiosas, grosseria da linguagem, limites do senso
comum, as ideias do substrato e sujeito são examinadas e julgadas a partir de diferentes
perspectivas”50. Durante o seu percurso filosófico fica evidente um caráter pluralista,
principalmente cosmológico. “Quando se trata do mundo, ele sempre postula a
existência de uma pluralidade de forças presentes em toda a parte. A força só existe no
plural; não é em si, mas na relação com outras, não é algo, mais um agir sobre”51.
Compreende­se que somos uma constante relação de forças dinâmicas, onde cada
corpo exprime sua potência e experimenta os seus limites. Uma pluralidade de forças
sempre em transformação e transmutação, o corpo se divide, se multiplica. Essas forças
podem entrar em conflito, mas o corpo ainda se mantém, permanece em sua
organização. Pois, o organismo é uma grande estrutura, dentro delas há várias lutas,
conflitos, movimento, mas, sempre surge uma ordem, uma espécie de hierarquia.
Nietzsche usa comparações fisiológicas, para retratar o que seria o corpo, como a
ideia do corpo como um grande estômago, em simultâneo, ele faz uma análise da
existência humana. Onde, nossas experiências são mastigadas, os pensamentos
ruminados, as vivências digeridas, e aquilo que não nos interessa, excretamos. Nesse
contexto, o corpo fará uma seleção daquilo que importa e daquilo que não nos interessa.
Ele rompe o distanciamento entre corpo e alma, na filosofia nietzschiana eles estão
interligados, não há mais dualidades.
Flávio Freitas & Leonice Silva

Em algumas de suas cartas escritas a Lou A. Salomé, Nietzsche relata que


quando se sentia são e vigoroso com sua capacidade criadora, era o momento em que se
via em maior contato com a doença, o repouso e a ociosidades forçadas acabam
trazendo o seu restabelecimento. Se o corpo diz respeito tanto às nossas forças mais
imediatas como às mais remotas pela sua origem, tudo o que o corpo diz — o seu bem­
76 estar e as suas indisposições — é o que melhor nos informa sobre o nosso destino.
Nietzsche busca nos seus períodos de isolamento ir para o mais longe de si mesmo, para
então compreender o imediato. Segundo Klossowski, quando Nietzsche se sentia são e
vigoroso, com toda a sua força e capacidade de criação, “era el momento en que se
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ponía en mayor contacto con la enfermedad: el reposo y la ociosidade forzosos le


procuraban de nuevo el restablecimiento y mantenían la catástrofe en suspenso”52.
Nietzsche possui um cuidado com o corpo rigoroso, devido ao seu estado doentio, logo:
nada entre as refeições, nenhum café: café obscurece. Chá, somente de manhã
benéfico. Pouco, porém vigoroso: é prejudicial e debilitante por todo o dia quando
fraco demais, mesmo que por um mínimo. Cada qual possui nisso a sua medida,
com freqüência entre os limites mais estreitos e delicados. Em um clima irritante
desaconselha­se o chá como primeira bebida: deve­se começar uma hora antes por
uma xícara de chocolate espesso sem gordura. — Ficar sentado o menor tempo
possível; não dar crença ao pensamento não nascido ao ar livre, de movimentos
livres53.
O corpo até então esquecido, se torna o centro, ele anseia ampliar seu poder, a
sua potência, é uma vontade de ter, ser, dominar, conquistar sempre mais, indo além do
seu limite. Dessa forma a dimensão empírica do pensamento nietzschiano, diz respeito
às condições físicas e materiais, alimentação, clima e lugar, estão em constante
equilíbrio. “Com a questão da alimentação relaciona­se antes de tudo a questão do clima
e do lugar. A ninguém é dado viver em qualquer lugar.”54
A dimensão empírica de seu pensamento, não deixa de influenciar as condições
transcendentais ligadas ao pensamento. Dessa forma, em tudo isso — a escolha na
alimentação; a escolha de clima e lugar; — reina naturalmente um instinto de
autoconservação que se expressa da maneira mais inequívoca como instinto de
autodefesa.
Por conseguinte, as chaves para descrever os processos transcendentais do
pensamento referentes ao conceito de saúde­doença são a culpa e o ressentimento. Logo,
o “[conhece­te a ti mesmo] seria a fórmula para a destruição, esquecer­se, mal entender­
se, empequenecer, estreitar, mediocrizar­se torna­se a própria sensatez”55
Dessa forma, as premissas morais “amar o próximo, viver para outras coisas pode
ser a medida protetora para a conservação da mais dura subjetividade”56. Mediante tal
análise do próprio autor, nos resta ver que “essas pequenas coisas — alimentação, lugar,
clima, distração, toda a casuística do egoísmo — são inconcebivelmente mais
importantes do que tudo o que até agora se tomou como importante”57.
A filosofia nietzschiana é uma filosofia que busca a valorização da vida. Ele se
restringe particularmente, para uma reflexão filosófica sobre a saúde e doença que
transcende a mera redução somática da doença enquanto campo médico. A doença nesse
patamar de investigação, é ampliada para o campo da fisiopsicologia. Dessa forma,
saúde e doença enquanto problema filosófico, deve ser compreendido no encadeamento
entre a vontade de potência e o sintoma de décadence enquanto deterioração
fisiológica.
Se saúde em Nietzsche é compreendida como uma organização dos impulsos
fisiopsicológicos, hierarquicamente organizados, a doença então, passa a ser
subentendida como a desorganização pulsional, que conduzirá à deterioração fisiológica,
e por fisiológica engloba­se muito mais que apenas o estado físico de um corpo. Tendo
O conceito de saúde no Ecce Homo de Nietzsche

em vista, que para Nietzsche pode­se ser gravemente doente58, mas, em simultâneo,
sadios em seus próprios termos. Um estado não anula o outro necessariamente, pois,
cada indivíduo carrega consigo traços físicos e psicológicos, logo, pode ser considerado
fraco, doente, escravo ou forte, sadio, senhor. Quando inserimos no diagnóstico o
processo genealógico, pretende­se investigar do estado físico as produções humanas,
dessa forma tem­se como objeto de estudo, o organismo, a um indivíduo, uma cultura. 77
Os critérios para diagnosticar saúde e doença são respectivamente elaborados, se
de um lado temos a afirmação enquanto processo contínuo de autossuperação, potência,
hierarquia, logo, é saudável; por outro lado, se nega a vida, é impotente e anárquico,

AUFKLÄRUNG, João Pessoa, v.9, n.3, Set.­Dez., 2022, p.67­84


logo, é doente. A exemplo temos, a moral, a filosofia metafísica, a religião cristã e a
ciência, como sintomas de doença. Os avanços obtidos na modernidade, podem ser
também considerados como sintomas de doenças.
O processo civilizatório trouxe ao homem, a criação da memória, antagônica a
força do esquecimento. De acordo com Klossowski, “la mezcolanza social,
consecuencia de la revolución, el establecimiento de derechos iguales, la superstición de
la igualdad entre los seres humanos (…) los factores de los instintos de decadência”59.
Todo esse aparato civilizatório, consequente dessa inversão de valores, os fatores dos
instintos de decadência, como o ressentimento, a insatisfação, o impulso destrutivo e até
mesmo o niilismo, são por si, considerados como instintos de servidão, covardia.
O ressentimento é um estado patológico que surge da disfunção que caracteriza o
ressentimento como doença. O ressentido se revolta contra tudo em que se depara, sente
a necessidade de se vingar, pois, possui uma impotência que o impede de realizar
qualquer atividade, esperando que os outros as realizem. Quando isso não ocorre, busca
sempre alguém para culpar, projetando sua infelicidade como sendo responsabilidade do
outro.
O projeto nietzschiano, como já mencionado, identifica como tais condições se
instauram no seio da cultura moderna, buscando interpretações na formação dos povos,
até às cadeias psíquicas do eu. A compreensão de tais fenômenos significa, reconstruir a
cadeia histórica das relações sociais de poder, para compreender as classificações de
doenças.
Para Nietzsche a memória está ligada a ressentimento e doença, enquanto o
esquecimento está ligado a alegria e saúde e ambas se encontram interligadas60. O
esquecimento teria evitado o acúmulo de lembranças desnecessárias que prejudicam o
funcionamento normal do organismo, dessa forma esse ato de esquecer significa um
sinônimo de saúde. Todavia:
Esquecer não é uma simples vis inertiae [força inercial], como crêem os
superficiais, mas uma força inibidora ativa, positiva no mais rigoroso sentido,
graças à qual o que é por nós experimentado, vivenciado, em nós acolhido, não
penetra mais em nossa consciência, no estado de digestão (ao qual poderíamos
chamar ‘assimilação psíquica’) do que todo o multiforme processo da nossa
nutrição corporal ou ‘assimilação física’61.
Eis que, o esquecimento é uma “espécie de guardião da porta, de zelador da
ordem psíquica, da paz, da etiqueta: com o que logo se vê que não poderia haver
felicidade, jovialidade, esperança, orgulho, presente, sem o esquecimento”62. O
esquecer, logo é uma força ativa, doravante, uma forma de saúde, pois o homem
consegue desenvolver tal capacidade em oposição ao elemento destrutivo, a memória.
No entanto, não podemos encontrar nenhum contorno de civilização em que não haja
vestígios de um sentimento de culpa, sentimento de dever, de consciênciamoral,
proveniente da relação credor e devedor.
Nietzsche explicará a origem genealógica da culpa a partir da relação de credor e
devedor, e a crença numa divindade única criadora de todo o universo elevou esse
Flávio Freitas & Leonice Silva

sentimento. A partir das noções de Deus (judaico­cristão) e do pecado original, gerando


uma consciência de culpa. Dessa forma, ele inverte a tradição, o sentimento de culpa
não poderá mais ser visto como uma instância metafísica da consciência que funciona
como uma bússola moral e leva o homem a praticar o “bem” e sentir­se incomodado ao
praticar o “mal”. Nesse sentido a culpa não é um elemento a­histórico colocado por
78 Deus, na alma, ele demonstrará que a culpa foi forjada historicamente.
Poderíamos dizer que, o homem não esquece, não consegue esquecer, de modo
que, vive envolto em sentimentos oriundos de experiências passadas, sejam elas boas ou
más. Essa exaustiva carga emocional, de ressentimento, angústia e dor, fazem parte de
AUFKLÄRUNG, João Pessoa, v.9, n.3, Set.­Dez., 2022, p.67­84

suas experiências vividas. Como um animal histórico, ele está sempre interligado ao
momento e espaço em que vive, ou seja, a todas as condições de subsistência.
Compreende seu destino, enquanto estabelece os parâmetros do entretenimento e da
obrigação, estes são experimentados como prazer e dor, ele é conduzido a pensar de
acordo com um parâmetro estabelecido pelas normas de seu meio, obedecendo assim
como um escravo obedece ao seu senhor. Logo, quando ele não se encontra pressionado
por tais obrigações, busca amparo nas realizações de seus desejos em busca de prazer.
Desde as origens da sociedade e do Estado, há uma organização errante, pois, a
transição do estado natural [errante e instintivo] do homem para o estado civilizatório,
interessar­se encaixar nas regras, normas e costumes da vida em sociedade, consiste em
“uma renúncia aos mais rigorosos impulsos de sua natureza animal, na repressão brutal e
sangrenta de selvagens e poderosas correntes de energia psíquica”63. Pois, se esse estado
de impulsos naturais permanecesse no interior da vida em sociedade, seríamos levados
novamente ao estado de “guerras de todos contra todos”64. Para Machado:
A decadência prevalece como uma diminuição, um enfraquecimento do homem;
ela inverte os valores, transforma os homens fortes em fracos, aqui vemos o
triunfo das forças reativas sob as forças ativas. A moral judaico­cristã é resultado
dessa inversão de valores, ela expressa um enorme ódio à vida, ela desconsidera
tudo o que for positivo, afirmativo e ativo; é por excelência a negação da própria
vida, ela é niilista. A genealogia da moral define esse tipo de niilismo a partir de
suas três figuras principais: o ressentimento, a má consciência e o ideal ascético.
Contudo se situará apenas os dois primeiros, dado o encadeamento da pesquisa65.
Todavia, essa existência mediante a “camisa de força” da sociedade e do Estado,
nesse processo de privação dos prazeres naturais e impulsos, fazem com que se busque
novos meios de satisfações, “as cargas pulsionais (…) voltam­se contra o próprio
homem e, em aliança com a imaginação, encontram, na interioridade do eu, o canal
subterrâneo e interiorizado de satisfação compensatória”66. Na Segunda dissertação da
Genealogia da Moral, no que concerne ao surgimento da má consciência, Nietzsche
assinala:
Todos os instintos que não se descarregam para fora voltam­se para dentro — isto
é o que chamo de interiorização do homem­, é assim que no homem cresce o que
depois se denomina sua ‘alma’. Todo o mundo interior, originalmente delgado,
como que entre duas membranas, foi se expandindo e se estendendo, adquirindo
profundidade, largura e altura, na medida em que o homem foi inibido em sua
descarga para fora. Aqueles terríveis bastiões com que a organização do Estado se
protegia dos velhos instintos de liberdade — os castigos, sobretudo, estão entre
esses bastiões — fizeram com que todos aqueles instintos do homem selvagem,
livre e errante se voltassem para trás, contra o homem mesmo. A hostilidade, a
crueldade, o prazer na perseguição, no assalto, na mudança, na destruição — tudo
isso se voltando contra os possuidores de tais instintos: esta é a origem da má
consciência. Esse homem que, por falta de inimigos e resistências exteriores,
cerrado numa opressiva estreiteza e regularidade de costumes, impacientemente
O conceito de saúde no Ecce Homo de Nietzsche

lacerou, perseguiu, corroeu, espicaçou, maltratou a si mesmo, esse animal que


querem ‘amansar’, que se fere nas barras da própria jaula, este ser carente,
consumido pela nostalgia do ermo, que a si mesmo teve de converter em aventura,
câmara de tortura, insegura e perigosa mata — esse tolo, esse prisioneiro presa da
ânsia e do desespero tornou­se o inventor da ‘má consciência’. Com ela, porém,
foi introduzida a maior e mais sinistra doença, da qual até hoje não se curou a 79
humanidade, o sofrimento do homem com o homem, consigo (…)67.
Subtende­se que o preço necessário a passagem à cultura, incide numa brusca
ruptura com o passado [instinto animalesco] caindo sem paraquedas a uma nova

AUFKLÄRUNG, João Pessoa, v.9, n.3, Set.­Dez., 2022, p.67­84


condição de existência, mergulhando em novas situações, pressupondo­se que essa
mudança não tenha sido de forma voluntária, mas um processo coercivo. De outro
modo, “a má consciência é uma doença, quanto a isso não há dúvida”68, logo,
averiguamos quais condições determinaram seu surgimento. Compreende­se em
Nietzsche que “a noção de política estará então completamente dissolvida em uma
guerra de espíritos, todas as formações de poder da velha sociedade terão explodido
pelos ares — todas se baseiam inteiramente na mentira”69.
Com a decadência da civilização ocidental que culmina o niilismo, restando
apenas o vazio, a vontade de nada, a experiência da perda de sentido por parte dos
valores cristãos, possibilita um resgate de uma virtualidade cultural. Para tanto, destaca
Nietzsche:
Não me foi perguntado, deveria me ter sido perguntado, o que precisamente em
minha boca, na boca do primeiro imoralista, significa o nome Zaratustra (…)
Zaratustra foi o primeiro a ver na luta entre o bem e o mal a verdadeira roda motriz
na engrenagem das coisas — a transposição da moral para o metafísico, como
força, causa, fim em si, é obra sua. Mas essa questão já seria no fundo a resposta.
Zaratustra criou este mais fatal dos erros, a moral: em conseqüência, deve ser
também o primeiro a reconhecê­lo. (…) Compreendem­me?… A auto­superação
da moral pela veracidade, a auto­superação do moralista em seu contrário — em
mim­, isto significa em minha boca o nome Zaratustra70.
Enquanto Nietzsche se coloca como aquele que nega por um lado “os bons, os
benévolos, os benéficos; por outro lado (…) a moral de décadence, falando de modo
mais tangívela moral cristã”71. Ele salienta que “a superestimação da bondade e da
benevolência”72 é uma consequência da décadence, “sintoma de fraqueza, incompatível
com uma vida ascendente e afirmadora”73. Nietzsche conduz menções ao profeta do
amor fati e da transvaloração dos valores, trazendo anúncio do além­homem, aquele que
consegue superar a si mesmo.
Contrário ao homem ressentido, o além­homem em Nietzsche, consegue superar,
criar valores, ele consegue se reencontrar consigo mesmo, contemplando a vida em sua
totalidade, “esse gênero de homem que ele concebe, concebe a realidade tal como ela é:
ele é forte o bastante para isso – ele não é a ela estranho, dela estranhado, ele é ela
mesma,ele tem ainda em si tudo o que dela é terrível e questionável, somente então pode
o homem possuir grandeza…”74. Tendo em vista, o aborrecimento, a sensibilidade
doentia, a impotência causada pela vingança, o desejo, como males para a saúde. Pois,
tais formas de reagir aos sentimentos causados pelo ressentimento trazem uma exaustão,
o que deve ser proibida ao doente, é preciso saber dominá­lo.
De acordo com Deleuze, “o tipo do senhor [ativo] será definido pela faculdade de
esquecer, bem como pela potência de agir nas ações. O tipo escravo [tipo reativo] será
definido pela prodigiosa memória, pela potência do ressentimento”75. Todavia, a
pretensiosa noção de um mundo verdadeiro, alma imortal, o desprezo ao corpo, dirigem
o sentido de saúde para outro patamar, substitui­se a noção séria, como questões de
alimentação, clima e lugar, para se tratar de uma:
Flávio Freitas & Leonice Silva

‘salvação da alma’ — isto é, uma folie circulaire [loucura circular] entre


convulsões de penitências e histeria de redenção! A noção de ‘pecado’ inventada
juntamente com o seu instrumento de tortura, a noção de ‘livre­arbítrio’, para
confundir os instintos, para fazer da desconfiança frente aos instintos uma segunda
natureza! Na noção de ‘desinteressado’, de ‘negador de si mesmo’, a verdadeira
80 marca da décadence, a sedução do nocivo, a incapacidade de encontrar o próprio
proveito, a autodestruição, convertidos no signo de valor absolutamente, no
‘dever’, na ‘santidade’, no ‘divino’ no homem!76
Por conseguinte, segundo Giacoia77 os destinos de uma cultura não desaparecem,
AUFKLÄRUNG, João Pessoa, v.9, n.3, Set.­Dez., 2022, p.67­84

mas submergem em espessas camadas de esquecimento e sempre de novo podem


irromper à tona, vencendo o recalque, é que se toma possível ainda, por mais tênue e
fugaz que seja a esperança, velar pelas virtudes criadoras de um niilismo ativo, no
momento em que um novo budismo, o budismo europeu, se toma, para Nietzsche,
experiência histórica irrecusável no mundo moderno. “No fundo, tentamos conter, a dor
e a melancolia ontológica, o sentimento profundo e verdadeiro relativo à contingência
não somente da nossa existência, mas daquela de todos os seres”78.
Nietzsche já nos alertava para tal situação, quanto mais tentamos nos esquivar ao
devir, mais imersos nele estaremos. O homem moderno, quer sufocar a potência que lhe
rege e lhe conforma. Preso ao conhecido, ao já configurado, como noções, normas,
regras, valores, adquiridas no processo da passagem para a cultura. A partir do
diagnóstico realizado de sua época, Nietzsche consegue identificar o amesquinhamento
do homem, previstos desde a relação credor e devedor.
De todo modo, o eterno retorno poderia ser reconhecido como uma forma
extrema do niilismo, este só se encontra completo quando se unem, “faz da negação uma
negação das próprias forças reativas”79, se conserva como a destruição dos fracos,
autodestruição, uma seleção instintiva dessa força destrutiva. Caso contrário, ele apenas
nega a força ativa ou leva a força ativa a se negar e se voltar contra si.
Contudo, visto como um princípio de preservação da vida, uma vida fraca,
diminuída, a depreciação e a negação em que a vida reativa se estrutura e se torna
contagiosa. “O homem pequeno, mesquinho, reativo não voltará. Pelo e no eterno
retorno, a negação como qualidade da vontade de potência transmuta­se em afirmação,
torna­se uma afirmação da própria negação, uma potência de afirmar, uma potência
afirmativa”80
As análises de Nietzsche acerca da saúde, doença, ressentimento e relações que
vão das instâncias da psique às condições de vida do homem, marcam o autor com o
próprio médico filósofo de sua época. A união entre a filosofia e a psicologia se
entrelaçam de tal maneira, que cria seu método próprio enquanto genealogia e
diagnóstico. É inegável que a relação entre ele enquanto doente e suas obras, nos mostra
o quanto o filósofo vivenciou a sua filosofia.
Nietzsche efetua da filosofia uma grande Arte de transmutação, ele consegue
transmutar sofrimento em conhecimento, além de todo o caráter autobiográfico que a
obra apresenta, não há separação entre obra e vida, com a paciência de um filólogo ele
traça os fios de sua filosofia, apropria­se com maestria da doença e a transforma em
saúde. Essa apropriação e domínio, que ele supera a si mesmo, tornar­se enfim aquilo
que é. O paradoxo constitutivo da “Grande saúde” se torna assim, condição para
exercício filosófico.
No procedimento genealógico, emaranhado com as mais diversas áreas de
conhecimento, nesse anseio de unir as ciências da natureza e as ciências do espírito,
Nietzsche concebe o mundo como um campo de forças em permanente tensão, mediante
a dupla perspectiva da vontade de potência, ele anuncia a sua fórmula para a suprema
auto afirmaçãoda humanidade. Diagnostica os valores vigentes, transformando­se em
suas mãos uma poderosa ferramenta de combate à sua época.
O conceito de saúde no Ecce Homo de Nietzsche

A tríade de pensamento, teoria das forças, eterno retorno e vontade de poder,


formulam uma hipótese cosmológica, introduzindo a ideia de amor fati, fórmula criada
para medir a grandeza da vontade afirmativa do homem, vinculado ao pensamento do
eterno retorno, dá a possibilidade de uma repetição cíclica de todos os acontecimentos,
portanto, só nos resta amar o que é necessário, amar a possibilidade eterna do retorno do
próprio niilismo, dizer Sim, ao mundo tal como ele é. 81
Ao destruir a dualidade metafísica de corpo e espírito, promove o corpo a um
novo patamar, este se torna protagonista, ele anseia ampliar seu poder, a sua potência, é
uma vontade de ter, ser, dominar, conquistar sempre mais, indo além do seu limite.

AUFKLÄRUNG, João Pessoa, v.9, n.3, Set.­Dez., 2022, p.67­84


Contrário, ao que muitos pensam, a filosofia nietzschiana é uma filosofia que busca a
valorização da vida. Ele se restringe para uma reflexão filosófica sobre a saúde e doença
que transcende a mera redução somática da doença enquanto campo médico. Dessa
forma, saúde e doença enquanto problema filosófico, deve ser compreendido no
encadeamento entre a vontade de potência e o sintoma de décadence enquanto
deterioração fisiológica.
Considera­se que diferenças marcantes compõem a moral do senhor e a moral do
escravo, a moral dos senhores se concentra no sentimento de distância, enquanto a moral
dos escravos usa a igualdade e a fraqueza. Esses são os dois mecanismos principais que
movem os interesses de ambos. O antagonismo presente nessas distinções, separam
essas morais. O nobre despreza o escravo, pois, este aos seus olhos não conseguem
elevar­se sobre ele, mas o escravo menospreza o nobre. Aquilo que funda a moral dos
escravos, é o medo, pois, o fraco teme o forte, criando uma defesa pautada na
coletividade.
Percebe­se que a crítica psicológica aos fracos, pressupõe consequências
pulsionais do sentimento de impotência, o ressentimento. O escravo possui um
desequilíbrio de suas forças, suas ações sofrem influências externas, a sua fraqueza
impede que sua força se afirme, por não ser dono de si ele é impedido e desviado pelas
forças externas. A vontade de potência não se afigura, pois, aceita o Não como uma
entidade ontológica. Ao nobre, por possuir condições adequadas, a sua força segue seu
fluxo livremente, ele apresenta um controle de si e do mundo exterior, ambos se movem
harmonicamente, elevando sua potência. O escravo, por outro lado, se separa desse
mundo, nega o exterior e busca se afirmar com seus escassos recursos.
Dessa forma, Nietzsche apresenta um processo de reconstituição das condições
que levaram ao surgimento do que seria a moralidade contemporânea do seu tempo,
através da tradição histórica, ressaltando que essa moral leva ao adoecimento. Pensar a
ciência e a filosofia nesse sentido, predetermina que a formação do saber filosófico e
científico se encontra comprometido com uma conformação moral doentia, no que lhe
concerne, à filosofia e a ciência deveriam exercitar a saúde, é necessário pensar, como
Nietzsche irá propor uma ciência é uma filosofia que enaltece a “Grande Saúde”, uma
genealogia da saúde como um método que fundamenta as Ciências Humanas, enquanto
possibilidade de exaltar a vida.
Logo, a faculdade do esquecimento teria evitado o acúmulo de lembranças
desnecessárias que prejudicam o funcionamento normal do organismo, dessa forma esse
ato de esquecer significa um sinônimo de saúde. Enquanto, a faculdade da memória
aprisiona o homem em angústias de vidas passadas. A culpa não é um elemento a­
histórico colocado por Deus, na alma, ele demonstrará que a culpa foi forjada
historicamente. O homem moderno quer sufocar a potência que lhe rege e lhe conforma.
Preso ao conhecido, ao já configurado, como noções, normas, regras, valores, adquiridas
no processo da passagem para a cultura, este é o homem a ser superado, cortando pela
raiz a necessidade de metafísica.
Flávio Freitas & Leonice Silva

REFERÊNCIAS
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São Paulo: N­1 Edições, 2018.
GEN­GRUPO DE ESTUDOS NIETZSCHE. Dicionário Nietzsche. São Paulo: Sendas & Veredas,
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JUNIOR, Oswaldo G. Nietzsche como psicólogo. Rio Grande do Sul: Editora Usinos, 2001.
KLOSSOWSKI, Pierre. Nietzsche y él círculo vicioso. Trad. De Roxana Páez. Buenos Aires:
Editorial Altamira, 1995.
AUFKLÄRUNG, João Pessoa, v.9, n.3, Set.­Dez., 2022, p.67­84

MACHADO, R. Nietzsche e a verdade. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2017.
MARTON, S. A nova concepção do mundo: vontade de potência, pluralidade de forças, eterno
retorno do mesmo. Ágora filosófica, Universidade Católica De Pernambuco, n. 1, jul. /dez.
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MARTON, S. Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos. São Paulo: Brasiliense, 1990.
MÜLLER­LAUTER, W. Nietzsche: sua filosofia dos antagonismos e os antagonismos de sua
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NIETZSCHE, F. A Gaia Ciência. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras,
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NIETZSCHE, F. Ecce Homo. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras,
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NIETZSCHE, F. Genealogia da moral: uma polêmica. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 1998.
NIETZSCHE, F. O anticristo. Trad. de Paulo César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras:
2012.
SOUZA, M. C. dos Santos. O sentido da cultura moderna segundo Friedrich Nietzsche. São Luis:
Lithograf, 2011.

NOTAS
1 Demarcou­se três períodos, considerando a divisão e periodização realizada pela Scarlett
Marton, filósofa brasileira, fundadora do GEN — Grupo de Estudos Nietzsche e criadora
dos Cadernos Nietzsche. MARTON, Scarlett. Nietzsche: das forças cósmicas aos valores
humanos. São Paulo: Editora brasiliense, 1990. p.27
2 EH, “Por que sou tão sábio”, § 1, p. 21.
3 GC, “Prólogo”, § 2
4 Para Nietzsche a saúde e doença de um corpo está intrinsecamente relacionado a curiosidade
filosófica, ele coloca corpo e mente no mesmo nível de importância. A fisiologia e a
psicologia, unidas pela fisiopsicologia respondem às questões que a dualidade corpo e
alma, não conseguiram. De acordo com ele não se pode elaborar uma boa filosofia se
desconsiderarmos o corpo, assim como muitos filósofos tradicionais fizeram. Na
Fisiopsicologia, o valor da existência consiste no valor atribuído ao próprio corpo, corpo,
alma e mundo estão conectados, dessa forma, as condições fisiológicas determinam a
forma de pensar. Um corpo repleto de impulsos, afetos e pulsões.
5 GC, § 3, p.13.
6 Ibid., § 4
7 Nietzsche descreve os profetas comohorrendos híbridos de doença e vontade de poder chamados
fundadores de religiões.
8 Vale ressaltar que o termo “cultura” se torna um tanto delicado no que consiste a filosofia
nietzschiana, dado que, o próprio afirma, antes dele ninguém sabia o que era cultura, sendo
ele o primeiro a problematizar o tema, indo além de uma investigação, se propondo a
diagnosticá­la. Dessa forma, podemos pensar no mínimo três conceituações, ele encara a
cultura como produções humanas, não havendo distinção entre as produções espirituais e
materiais. Com a implantação da doutrina da vontade de potência, ele amplia essa visão
anterior, a cultura é vista como uma configuração de impulsos que, de um ponto de vista é
O conceito de saúde no Ecce Homo de Nietzsche

saudável (cresce em sua potência e é altamente hierarquizada) e do outro doente/decadente


(quando se decai e é pouco hierarquizada). Outro sentido, propriamente nietzschiano, é a
cultura como expressão dos impulsos, como afirmação da vida, um fluxo contínuo de
autossuperação. A cultura elevada deve conseguir preparar sua própria superação quando
ela se esgotar.
9 EH, “Por que sou tão sábio”, § 1, p. 22 83
10 Ibid., § 2, p. 23
11 Id., GC, § 120, p. 144
12 MARTON, Scarlett. Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos. São Paulo: Editora
Brasiliense, 1990. p.47

AUFKLÄRUNG, João Pessoa, v.9, n.3, Set.­Dez., 2022, p.67­84


13 Ibid.
14 Ibid., p. 48
15 Ibid., p. 50
16 DELEUZE, G. Nietzsche e a filosofia. São Paulo: n­1 edições, 2018. p. 56
17 Trazemos o Deleuze como comentador de Nietzsche, faz­se necessária essa distinção, pois, em
certas passagens de sua obra, Deleuze começa a desenvolver sua própria filosofia na
tentativa de preencher algumas lacunas deixadas por Nietzsche, que mais adiante serão
abordadas.
18 Ibid.
19 Ibid., p. 57
20 MARTON, Scarlett. Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos. São Paulo: Editora
Brasiliense, 1990.
21 KLOSSOWSKI, P. Nietzsche y el círculo vicioso. Editorial Altamira: Buenos Aires, 1995. p. 36
22 MARTON, S. A nova concepção do mundo: vontade de potência, pluralidade de forças, eterno
retorno do mesmo. Ágora filosófica, Universidade Católica De Pernambuco, n. 1, jul. /dez.
2017­2.
23 DELEUZE, G. Nietzsche e a filosofia. São Paulo: n­1 edições, 2018. p. 64
24 EH. Nascimento da Tragédia, § 3, p. 62
25 MARTON, S. A nova concepção do mundo: vontade de potência, pluralidade de forças, eterno
retorno do mesmo. Ágora filosófica, Universidade Católica De Pernambuco, n. 1, jul. /dez.
2017­2. p.136
26 Ibid.
27 Ibid., p. 137.
28 Ibid., p. 138.
29 KLOSSOWSKI, P. Nietzsche y el círculo vicioso. Editorial Altamira: Buenos Aires, 1995. p. 60
30 MÜLLER­LAUTER, W. Nietzsche e sua filosofia dos antagonismos e os antagonismos de sua
filosofia. São Paulo: Editora Unifesp, 2009. P. 229
31 EH, “Assim falou Zaratustra, § 1, p. 79
32 GC, § 341
33 Ibid.
34 A noologia é conhecida como uma das ciências auxiliares da Metafísica, que tem por objeto de
estudos as funções cognitivas. Trata­se da ciência do espírito, do intelecto ou do
pensamento, que corresponde ao exame de um funcionamento psicológico racional e das
raízes institucionais e afetivas. Deleuze irá propor uma reinvenção dessa ciência, recriando
a noologia, a partir da perspectiva de uma genealogia das imagens do pensamento.
Mediante tal análise, a noologia ocuparia o lugar da história da filosofia, busca­se libertar
do pensamento de uma imagem dogmática, um despertar do dogmatismo, de ideias
pressupostas. Surge então uma nova forma de enxergar a ciência.
35 DELEUZE, G. Nietzsche e a filosofia. São Paulo: n­1 edições, 2018. p. 102
36 MACHADO, Roberto. Nietzsche e a verdade. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz & Terra; 4ª edição,
2017. p. 83
37 Ibid., p. 84
38 Ibid., p. 88
39 AC, § 9
40 MÜLLER­LAUTER, W. Nietzsche e sua filosofia dos antagonismos e os antagonismos de sua
Flávio Freitas & Leonice Silva

filosofia. São Paulo: Editora Unifesp, 2009, p. 143


41 GIACOIA, O. Nietzsche como psicólogo. São Leopoldo, RS: EDITORA UNISINOS, 2001, p.
10.
42 Ibid., p. 104
43 Ibid., p. 105
84 44 EH, “Por que sou tão sábio”, § 2, p. 23
45 MÜLLER­LAUTER, W. Nietzsche e sua filosofia dos antagonismos e os antagonismos de sua
filosofia. São Paulo: Editora Unifesp, 2009, p. 32.
46 Ibid., p. 34
47 GIACOIA, O. J. Nietzsche como psicólogo. São Leopoldo, RS: EDITORA UNISINOS, 2001,
AUFKLÄRUNG, João Pessoa, v.9, n.3, Set.­Dez., 2022, p.67­84

p. 106.
48 MÜLLER­LAUTER, W. Nietzsche e sua filosofia dos antagonismos e os antagonismos de sua
filosofia. São Paulo: Editora Unifesp, 2009, p. 35.
49 Ibid., p. 55­56
50 MARTON, Scarlett. Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos. São Paulo: Editora
Brasiliense, 1990. p.54
51 Ibid., p. 55
52 KLOSSOWSKI, P. Nietzsche y el círculo vicioso. Editorial Altamira: Buenos Aires, 1995. p. 36
53 EH, “Por que sou tão inteligente, § 1, p. 35­36
54 Ibid., § 2, p. 36
55 Ibid., § 9, p. 46
56 Ibid.
57 Ibid., §10, p. 47
58 Em termos somáticos.
59 KLOSSOWSKI, P. Nietzsche y el círculo vicioso. Editorial Altamira: Buenos Aires, 1995.
60 Na Genealogia da moral ele usa o exemplo do senhor/nobre e escravo/fraco. No tipo senhor ele
usa a faculdade do esquecimento impedindo que a memória invada a consciência, ele não
desenvolve o ressentimento. Nietzsche acredita que o cristianismo representou uma
continuidade do ressentimento já previsto na moral judaica.
61 GM, II, § 1, p. 47
62 Ibid.
63 JUNIOR, Oswaldo G. Nietzsche como psicólogo. Rio Grande do Sul: Editora Usinos, 2001, p.
115
64 Ibid., p. 116
65 MACHADO, R. Nietzsche e a verdade. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2017, p. 92
66 JUNIOR, Oswaldo G. Nietzsche como psicólogo. Rio Grande do Sul: Editora Usinos, 2001, p.
116
67 GM, II, § 16, p. 73
68 Ibid., p. 76
69 EH, “Por que sou um destino”, § 1, p. 103
70 Ibid., § 3, p. 104
71 Ibid., § 4, p. 104
72 Ibid.
73 Ibid.
74 Ibid., § 5, p. 106
75 DELEUZE, G. Nietzsche e a filosofia. São Paulo: N­1 Edições, 2018, p.152
76 EH, “Por que sou um destino”, § 8, p. 109
77 GIACOIA, O. Nietzsche como psicólogo. Rio Grande do Sul: Editora Usinos, 2001, p. 151
78 SOUZA, M. C. dos Santos. O sentido da cultura moderna segundo Friedrich Nietzsche. São
Luis: Lithograf, 2011.
79 DELEUZE, G. Nietzsche e a filosofia. São Paulo: n­1 edições, 2018. p. 91
80 Ibid., p. 92

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