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6784
DOI: https://doi.org/10.18012/arf.v9i3.63336
Recebido: 13/06/2022 | Aceito: 25/11/2022
Licença: Creative Commons 4.0 International (CC BY 4.0)
Flávio Freitas *
Leonice Silva **
Universidade Federal do Maranhão, Brasil
RESUMO: O presente artigo pretende explicitar a ABSTRACT: The present article intends to
problematização acerca do conceito de saúde explain the problematization about the concept
exposta no Ecce homo de Friedrich Nietzsche. of health exposed in Friedrich Nietzsche's Ecce
Para tanto, o presente artigo está dividido em homo. Therefore, this article is divided into
três momentos. Na primeira parte, trouxemos a three moments. In the first part, we brought the
relação entre a tríade de pensamentos (teoria relationship between the triad of thoughts
das forças, eterno retorno e vontade de poder). (theory of forces, eternal return and will to
Posteriormente, trouxemos a descrição do que power). Subsequently, we brought the
seriam os critérios para classificar o processo description of what would be the criteria to
saúdedoença (método, genealogia e classify the healthdisease process (method,
fisiopsicologia), por fim, apresentase a genealogy and physiopsychology), finally, we
classificação das doenças da vida expostas no present the classification of the diseases of life
Ecce Homo, tal como seu processo de exposed in Ecce Homo, as well as its
disseminação. É oportuno ressaltar que durante dissemination process. It is worth noting that
nossa argumentação, destacamos o paradoxo during our argument, we highlight the paradox
que funciona como condição para o exercício that works as a condition for Nietzsche's
filosófico de Nietzsche em Ecce Homo, cujo philosophical exercise in Ecce Homo, whose
núcleo é composto pelo seguinte enunciado: só core is composed of the following statement: it
é possível recuperar a saúde, de um ponto de is only possible to recover health, from a
vista filosófico, se em algum momento anterior philosophical point of view, if in some previous
houve uma vivência de saúde e potência. moment there was an experience of health and
PALAVRASCHAVE: Nietzsche; Saúde; Doença; potency.
Moral; Ressentimento; Má consciência KEYWORDS: Nietzsche; Health; Disease; Moral;
Resentment; Bad conscience
grande dor, a lenta e prolongada dor, aquela que não tem pressa, na qual somos
queimados com madeira verde, por assim dizer, obriga a nós, filósofos, a alcançar
nossa profundidade extrema e nos desvencilhar de toda confiança, toda
benevolência, tudo o que encontramos, que é brando, mediano, tudo em que antes
púnhamos talvez nossa humanidade. Duvido que uma tal dor 'aperfeiçoe' —, mas
sei que nos aprofunda.5 69
Com efeito, diante de “tais abismos, de tal severa enfermidade, também da
enfermidade da grave suspeita voltamos renascidos (…) cem vezes mais refinados do
que jamais fôramos antes”6. As ideias acerca da Grande Saúde buscam a superação de si
época. Logo, é na teoria das forças que a vontade de potência se direciona para uma
nova dimensão, antes a vontade de potência se encontra atrelada como vontade orgânica,
agora ela aparece como força eficiente, dessa forma ela atua a tudo aquilo que existe, a
vontade de potência diz respeito assim ao efetivarse da força.
Nessa perspectiva, Nietzsche traz uma nova fórmula para se pensar o corpo, essa
fórmula seria a teoria das forças, “o que define um corpo é a relação entre forças
dominantes e forças dominadas. Toda relação de forças constitui um corpo: químico,
biológico, social, político”16. Dessa forma, o corpo é múltiplo, ao se pensar nele como
uma relação de forças, forças estas que se baseiam em duas concepções, como afirma
Deleuze17 “o corpo é fenômeno múltiplo, sendo composto por uma pluralidade de forças
irredutíveis; sua unidade é a de um fenômeno múltiplo, ‘unidade de dominação’ (…) as
forças dominantes são ditas ativas,as forças inferiores ou dominadas são ditas
reativas”18.
Durante o seu percurso filosófico fica evidente um caráter pluralista,
principalmente cosmológico. Ao se definirem como forças reativas, as forças inferiores
exercem funções que “assegurem os mecanismos e finalidades, a exemplo disso,
cumprem as condições de vida e funções, assim como, as tarefas de conservação,
adaptação e utilidade”19. Marton20 aponta que quando se tratava do mundo, ele
postulava a existência de uma pluralidade de forças que estão por toda a parte. A força
só existiria no plural, uma força está relacionada a outra a medida em que elas se
encontram num ponto de tensão.
Nesse sentido, não se pode afirmar o que o corpo é capaz. O organismo,
necessariamente seria visto apenas pelo lado das reações. É possível perceber um caráter
pluralista, que se volta para a diversidade das forças ativas e reativas. Contudo, as forças
ativas, as dominantes exigem critérios mais complexos para se caracterizarem, cujas
características são compostas em apropriarse, apoderarse, subjugar, dominar. Ou seja,
impor formas, criar formas, explorar as circunstâncias.
De acordo com Klossowski, “antes de describir ‘cómo se llega a ser lo que uno
es’ vuelve a poner en tela de juicio la cuestión de quién es él mismo. Nunca deja de
señalar que tal o cual de sus fue escrita en tal o cual momento de salud”21. Nietzsche tem
essa correlação com a saúde e doença em seus escritos, se tratando tanto dele como
estado de saúdedoença, como também da sociedade ocidental de seu tempo. Trazendo
esse paradoxo constitutivo da Grande Saúde como condição para o exercício de um
pensamento filosófico. O eu físico e o eu moral de Nietzsche se coincidem, dadas as
forças ativas enquanto funções orgânicas, querem terminar com a escravidão, esse
processo ocorre, tal como insaciavelmente:
Insaciável, ela continua a exercerse a vontade de potência. Não há finalidades a
realizar; por isso ela é desprovida de caráter teleológico. A cada momento, as
forças relacionamse de modo diferente, dispõemse de outra maneira; a todo
instante, a vontade de potência, vencendo resistências, se autosupera e, nessa
superação de si, faz surgir novas formas. Enquanto força eficiente, ela é, pois,
força plástica, criadora22.
O conceito de saúde no Ecce Homo de Nietzsche
existe além do orgânico, é constituído por forças finitas. A doutrina do eterno retorno do
mesmo, para tanto, é finito, mas eterno. Conforme o seu artigo que descreve a
concepção de uma forma nova de observar o mundo, a partir da tríade de pensamento
nietzschiana, Marton afirma que:
72 Todos os dados são conhecidos: finitas são as forças, finito é o número de
combinações entre elas, mas o mundo é eterno. Daí se segue que tudo já existiu e
tudo tornará a existir. Se o número dos estados por que passa o mundo é finito e se
o tempo é infinito, todos os estados que hão de ocorrer no futuro já ocorreram no
passado25.
AUFKLÄRUNG, João Pessoa, v.9, n.3, Set.Dez., 2022, p.6784
possibilidade eterna do retorno do próprio niilismo, dizer Sim, ao mundo tal como ele é.
O Ecce Homo de Nietzsche deve ser visto não só como um texto autobiográfico,
como foi inicialmente pressuposto, mas, como algo bem mais complexo, ele constitui a
genealogia do seu pensamento. Os próprios títulos dos capítulos, por exemplo, são
perguntas genealógicas, pois buscam as gêneses das condições envolvidas em
determinado modo de vida ou forma de pensar. Na obra podemos encontrar duas 73
dimensões de saúde; uma dimensão empírica, e uma dimensão transcendental e
noológica34.
Tendo em vista tal abordagem, os critérios para classificar os processos saúde
não tem um começo. O niilismo é a expressão da décadence fisiológica. Esta surge nas
mais distantes culturas que se constituem independentemente umas das outras”40. Uma
característica marcante em Nietzsche que o coloca com uma visão acentuada sobre a
“grande psicologia”, de acordo com Giacoia:
em vista, que para Nietzsche podese ser gravemente doente58, mas, em simultâneo,
sadios em seus próprios termos. Um estado não anula o outro necessariamente, pois,
cada indivíduo carrega consigo traços físicos e psicológicos, logo, pode ser considerado
fraco, doente, escravo ou forte, sadio, senhor. Quando inserimos no diagnóstico o
processo genealógico, pretendese investigar do estado físico as produções humanas,
dessa forma temse como objeto de estudo, o organismo, a um indivíduo, uma cultura. 77
Os critérios para diagnosticar saúde e doença são respectivamente elaborados, se
de um lado temos a afirmação enquanto processo contínuo de autossuperação, potência,
hierarquia, logo, é saudável; por outro lado, se nega a vida, é impotente e anárquico,
suas experiências vividas. Como um animal histórico, ele está sempre interligado ao
momento e espaço em que vive, ou seja, a todas as condições de subsistência.
Compreende seu destino, enquanto estabelece os parâmetros do entretenimento e da
obrigação, estes são experimentados como prazer e dor, ele é conduzido a pensar de
acordo com um parâmetro estabelecido pelas normas de seu meio, obedecendo assim
como um escravo obedece ao seu senhor. Logo, quando ele não se encontra pressionado
por tais obrigações, busca amparo nas realizações de seus desejos em busca de prazer.
Desde as origens da sociedade e do Estado, há uma organização errante, pois, a
transição do estado natural [errante e instintivo] do homem para o estado civilizatório,
interessarse encaixar nas regras, normas e costumes da vida em sociedade, consiste em
“uma renúncia aos mais rigorosos impulsos de sua natureza animal, na repressão brutal e
sangrenta de selvagens e poderosas correntes de energia psíquica”63. Pois, se esse estado
de impulsos naturais permanecesse no interior da vida em sociedade, seríamos levados
novamente ao estado de “guerras de todos contra todos”64. Para Machado:
A decadência prevalece como uma diminuição, um enfraquecimento do homem;
ela inverte os valores, transforma os homens fortes em fracos, aqui vemos o
triunfo das forças reativas sob as forças ativas. A moral judaicocristã é resultado
dessa inversão de valores, ela expressa um enorme ódio à vida, ela desconsidera
tudo o que for positivo, afirmativo e ativo; é por excelência a negação da própria
vida, ela é niilista. A genealogia da moral define esse tipo de niilismo a partir de
suas três figuras principais: o ressentimento, a má consciência e o ideal ascético.
Contudo se situará apenas os dois primeiros, dado o encadeamento da pesquisa65.
Todavia, essa existência mediante a “camisa de força” da sociedade e do Estado,
nesse processo de privação dos prazeres naturais e impulsos, fazem com que se busque
novos meios de satisfações, “as cargas pulsionais (…) voltamse contra o próprio
homem e, em aliança com a imaginação, encontram, na interioridade do eu, o canal
subterrâneo e interiorizado de satisfação compensatória”66. Na Segunda dissertação da
Genealogia da Moral, no que concerne ao surgimento da má consciência, Nietzsche
assinala:
Todos os instintos que não se descarregam para fora voltamse para dentro — isto
é o que chamo de interiorização do homem, é assim que no homem cresce o que
depois se denomina sua ‘alma’. Todo o mundo interior, originalmente delgado,
como que entre duas membranas, foi se expandindo e se estendendo, adquirindo
profundidade, largura e altura, na medida em que o homem foi inibido em sua
descarga para fora. Aqueles terríveis bastiões com que a organização do Estado se
protegia dos velhos instintos de liberdade — os castigos, sobretudo, estão entre
esses bastiões — fizeram com que todos aqueles instintos do homem selvagem,
livre e errante se voltassem para trás, contra o homem mesmo. A hostilidade, a
crueldade, o prazer na perseguição, no assalto, na mudança, na destruição — tudo
isso se voltando contra os possuidores de tais instintos: esta é a origem da má
consciência. Esse homem que, por falta de inimigos e resistências exteriores,
cerrado numa opressiva estreiteza e regularidade de costumes, impacientemente
O conceito de saúde no Ecce Homo de Nietzsche
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SOUZA, M. C. dos Santos. O sentido da cultura moderna segundo Friedrich Nietzsche. São Luis:
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NOTAS
1 Demarcouse três períodos, considerando a divisão e periodização realizada pela Scarlett
Marton, filósofa brasileira, fundadora do GEN — Grupo de Estudos Nietzsche e criadora
dos Cadernos Nietzsche. MARTON, Scarlett. Nietzsche: das forças cósmicas aos valores
humanos. São Paulo: Editora brasiliense, 1990. p.27
2 EH, “Por que sou tão sábio”, § 1, p. 21.
3 GC, “Prólogo”, § 2
4 Para Nietzsche a saúde e doença de um corpo está intrinsecamente relacionado a curiosidade
filosófica, ele coloca corpo e mente no mesmo nível de importância. A fisiologia e a
psicologia, unidas pela fisiopsicologia respondem às questões que a dualidade corpo e
alma, não conseguiram. De acordo com ele não se pode elaborar uma boa filosofia se
desconsiderarmos o corpo, assim como muitos filósofos tradicionais fizeram. Na
Fisiopsicologia, o valor da existência consiste no valor atribuído ao próprio corpo, corpo,
alma e mundo estão conectados, dessa forma, as condições fisiológicas determinam a
forma de pensar. Um corpo repleto de impulsos, afetos e pulsões.
5 GC, § 3, p.13.
6 Ibid., § 4
7 Nietzsche descreve os profetas comohorrendos híbridos de doença e vontade de poder chamados
fundadores de religiões.
8 Vale ressaltar que o termo “cultura” se torna um tanto delicado no que consiste a filosofia
nietzschiana, dado que, o próprio afirma, antes dele ninguém sabia o que era cultura, sendo
ele o primeiro a problematizar o tema, indo além de uma investigação, se propondo a
diagnosticála. Dessa forma, podemos pensar no mínimo três conceituações, ele encara a
cultura como produções humanas, não havendo distinção entre as produções espirituais e
materiais. Com a implantação da doutrina da vontade de potência, ele amplia essa visão
anterior, a cultura é vista como uma configuração de impulsos que, de um ponto de vista é
O conceito de saúde no Ecce Homo de Nietzsche
p. 106.
48 MÜLLERLAUTER, W. Nietzsche e sua filosofia dos antagonismos e os antagonismos de sua
filosofia. São Paulo: Editora Unifesp, 2009, p. 35.
49 Ibid., p. 5556
50 MARTON, Scarlett. Nietzsche: das forças cósmicas aos valores humanos. São Paulo: Editora
Brasiliense, 1990. p.54
51 Ibid., p. 55
52 KLOSSOWSKI, P. Nietzsche y el círculo vicioso. Editorial Altamira: Buenos Aires, 1995. p. 36
53 EH, “Por que sou tão inteligente, § 1, p. 3536
54 Ibid., § 2, p. 36
55 Ibid., § 9, p. 46
56 Ibid.
57 Ibid., §10, p. 47
58 Em termos somáticos.
59 KLOSSOWSKI, P. Nietzsche y el círculo vicioso. Editorial Altamira: Buenos Aires, 1995.
60 Na Genealogia da moral ele usa o exemplo do senhor/nobre e escravo/fraco. No tipo senhor ele
usa a faculdade do esquecimento impedindo que a memória invada a consciência, ele não
desenvolve o ressentimento. Nietzsche acredita que o cristianismo representou uma
continuidade do ressentimento já previsto na moral judaica.
61 GM, II, § 1, p. 47
62 Ibid.
63 JUNIOR, Oswaldo G. Nietzsche como psicólogo. Rio Grande do Sul: Editora Usinos, 2001, p.
115
64 Ibid., p. 116
65 MACHADO, R. Nietzsche e a verdade. 3ª. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2017, p. 92
66 JUNIOR, Oswaldo G. Nietzsche como psicólogo. Rio Grande do Sul: Editora Usinos, 2001, p.
116
67 GM, II, § 16, p. 73
68 Ibid., p. 76
69 EH, “Por que sou um destino”, § 1, p. 103
70 Ibid., § 3, p. 104
71 Ibid., § 4, p. 104
72 Ibid.
73 Ibid.
74 Ibid., § 5, p. 106
75 DELEUZE, G. Nietzsche e a filosofia. São Paulo: N1 Edições, 2018, p.152
76 EH, “Por que sou um destino”, § 8, p. 109
77 GIACOIA, O. Nietzsche como psicólogo. Rio Grande do Sul: Editora Usinos, 2001, p. 151
78 SOUZA, M. C. dos Santos. O sentido da cultura moderna segundo Friedrich Nietzsche. São
Luis: Lithograf, 2011.
79 DELEUZE, G. Nietzsche e a filosofia. São Paulo: n1 edições, 2018. p. 91
80 Ibid., p. 92