O estoicismo foi uma escola de filosofia helenística fundada por Zenão de Cítio na Grécia, em Atenas, no início do Século III a.C. É uma filosofia da eudaimonia e virtude pessoal. E como nota Sellars, é importante salientar que os três termos: lógica, física e ética, estavam sendo usados ligeiramente diferente do modo como são utilizados hoje. A lógica, por exemplo, foi concebida em um sentido muito mais amplo do que tem agora, englobando não apenas a lógica formal, mas também a retórica e a epistemologia. Do mesmo modo, a física foi entendida como abrangendo não apenas a filosofia natural, mas também a ontologia ou metafísica e a teologia. Ao contrário dos epicuristas, os estoicos, como vimos, foram menos apegados à ortodoxia.
Os estóicos se orgulhavam da coerência de sua filosofia. Eles estavam
convencidos de que o universo é passível de explicação racional e é em si uma estrutura racionalmente organizada. Esta ideia estóica penso eu, parece-me reavivada no final da Idade Moderna por Hegel, o principal nome do Idealismo Alemão, quando ele diz: “o real é racional e o racional é real”.
A faculdade do homem que o habilita a pensar, planejar e falar, que os
estóicos chamavam de logos, está literalmente incorporada no universo como um todo. O ser humano individual, na essência de sua natureza, compartilha uma propriedade que pertence à Natureza no sentido cósmico. E porque a Natureza cósmica abrange tudo o que existe, o indivíduo humano é uma parte do mundo em um sentido preciso e integral. Esta convicção estóica fica nítida na primeira parte da “Fenomenologia do Espírito”, quando Hegel fala sobre a certeza sensível. Na certeza sensível ou na imediatidade, o indivíduo percebe- se como algo particular ou singular (há uma teoria da mente sobre como o indivíduo nota-se a si próprio), e sua relação com os objetos do mundo (ontologia) se dá na forma de particulares/singulares também, ou seja, o indivíduo se percebe como um eu individual que ao dirigir-se para o mundo confronta-se com objetos particulares, por exemplo, uma casa particular ou um lápis particular. Ao tentar falar sobre esses objetos, Hegel percebe que os nega, pois ao falar por exemplo de uma casa particular, com o advento do devir não é possível descrever esse objeto, pois o tempo passa e esse objeto pode não ser mais o que ele era quando estava sendo descrito. Logo, Hegel analisa que o que sobra desses objetos são apenas os universais, ou seja, apenas as ideias, conceitos dos mesmos. Esta conclusão sobre os universais está contida na segunda parte da Fenomenologia do Espírito, chamada de percepção. Aqui não é apenas dos objetos que se fala universalmente, mas também do indivíduo, ou seja, agora o indivíduo percebe-se não mais como um particular analisando objetos particulares, mas sim como um universal analisando objetos universais. Quando ele fala que o indivíduo não é mais um eu singular, mas um universal, ele está dizendo algo muito semelhante aos estóicos, quando estes falam que o ser humano individual, na essência de sua natureza, compartilha uma propriedade que pertence à Natureza no sentido cósmico. Ambos estão querendo dizer que a consciência humana está de certa maneira contida ou conectada ao todo, ou como diz a proposição XXVIII da Ética de Espinosa: “Somos uma ideia na mente de Deus”.
É possível apresentar duas leituras bastante diferentes da física estoica.
Uma leitura enfocaria o papel do pneuma como uma força que, em vários graus de tensão, forma os objetos materiais da natureza. Os estoicos delineiam três condições principais do pneuma, cada uma refletindo um nível diferente de “tensão” (tonos). A primeira é a “coesão” (hexis), e essa é a força que dá unidade a um objeto físico; é a força que mantém juntas uma pedra, por exemplo. A segunda é a “natureza” (phusis) e essa é a força em virtude da qual algo pode ser dito estar vivo. É pneuma como phusis que constitui o princípio da vida em organismos biológicos tais como plantas. A terceira é a “alma” (psuchē), e essa forma de pneuma constitui o princípio da vida em animais que têm os poderes da percepção (impressões), movimento (impulsos) e reprodução. A diferença entre estes três tipos de entidades naturais é simplesmente um dos diferentes níveis de tensão em seu pneuma. Isso tem sido caracterizado como uma diferença na complexidade organizacional. Eles estão em um continuum, a diferença entre eles sendo de grau e não de tipo. Poder-se-ia assim imaginar uma explicação evolutiva do desenvolvimento da vida e de formas superiores de vida puramente em termos de complexidade crescente na Natureza. Assim, é possível fazer com que a física estoica soe bem moderna e completamente naturalista. Os estóicos acreditavam também que a natureza dotou os animais do impulso (horme), isto é, uma função da alma ativa desde o início da geração que permite com que os animais humanos e não humanos imediatamente reconheçam seu objetivo, que é a autoconservação em sua integridade física e psíquica.
As ideias estóicas citadas no parágrafo acima, possuem forte
semelhança ao conceito de autopoieses (do grego auto "próprio", poiesis "criação"), que designa a capacidade dos seres vivos de produzirem a si próprios, que os filósofos e biólogos Humberto Maturana e Francisco Varella propuseram na década de 1970. Assim sendo, me parece que a ideia estóica de autoconservação faz eco a ideia de autopoieses, ou seja, automanutenção, autocriação dos seres biológicos. A organização autopoiética significa simplesmente processos concatenados de uma maneira específica, de modo que os processos concatenados produzam os componentes que constituem e especificam o sistema como uma unidade. A hipótese é que existe uma organização comum a todos os sistemas vivos, qualquer que seja a natureza de seus componentes, sendo esse sistema vivo definido por sua organização e, portanto, pode ser explicado como qualquer organização pode ser explicada, ou seja, em termos de relacionamentos, não de propriedades dos componentes. Um sistema vivo é tal porque é um sistema autopoiético, e é uma unidade no espaço físico porque é definido como uma unidade nesse espaço através de sua autopoiese. Portanto, qualquer transformação que um sistema vivo sofra, preservando sua identidade, deve ocorrer de forma determinada por sua autopoiese definidora e estar subordinada a ela; então, num sistema vivo, a perda de sua autopoiese é sua desintegração como unidade e a perda de sua identidade, ou seja, a morte.
A caracterização dos sistemas vivos como sistemas autopoiéticos deve
ser entendida como dotada de validade universal; isto é, a autopoiese deve ser considerada como a definição de sistemas vivos em qualquer parte do universo físico, por mais diferentes que sejam dos sistemas terrestres em outros aspectos. Isso não deve ser entendido como uma limitação de nossa imaginação, nem como uma negação de que sistemas complexos ainda não imaginados possam existir. É uma afirmação sobre a natureza da fenomenologia biológica: a fenomenologia biológica não é nem mais nem menos que a fenomenologia dos sistemas autopoiéticos no espaço físico. Logo, pode-se dizer que máquinas autopoiéticas são máquinas homeostáticas e essas máquinas autopoiéticas são autônomas; ou seja, subordinam todas as suas mudanças à conservação de sua própria organização, por mais profundas que sejam as outras transformações que possam sofrer durante o processo, ou seja, o corpo humano seria uma máquina autopoiética, formado de células, moléculas, átomos, sistema nervoso, sistema digestório, sistema endócrino, sendo sistemas dentro de sistemas auto organizados com troca de energia e nutrientes com o meio, e dessa forma mantendo a lei do Conatus: aquela que diz que todo indivíduo luta para continuar existindo.
Quando os estóicos falam que a diferença entre os três tipos de
entidades naturais é simplesmente um dos diferentes níveis de tensão em seu pneuma e que eles estão em um continuum, sendo a diferença entre eles de grau e não de tipo e dessa maneira poder-se-ia imaginar uma explicação evolutiva do desenvolvimento da vida e de formas superiores de vida puramente em termos de complexidade crescente na Natureza, me parece as bases do que contemporaneamente veio a chamar-se Enativismo, que hoje é uma teoria da cognição e da linguagem, na qual pretende-se explicar desde o funcionamento da célula até organismos mais complexos, tendo a Biologia e a Neurofenomenologia como pontos de partida, juntamente com a ideia de sistemas, sendo dessa forma uma ontologia. Apenas a custo de curiosidade, Francisco Varella era um grande leitor de Platão e no começo de suas publicações como cientista não era levado a sério pelos cientistas ortodoxos, que diziam que ele misturava demais filosofia com ciência.
A cosmologia estóica tem sido, assim, descrita como uma
“cosmobiologia” (Hahm 1977: 136). Esta teoria antiga é ecoada em algumas discussões modernas da Natureza, ou “Gaia”, como um sistema biológico auto- regulador. Onde os estoicos vão mais longe é em afirmar que a Natureza, concebida como um organismo vivo, é também consciente. Em relação a ideia da natureza como consciente, há divergências de pensamento dentro do próprio Enativismo. Para Humberto Matura e Francisco Varella, que foram os primeiros a falar sobre a teoria da autopoieses, a natureza não é consciente, e os organismos são vistos como máquinas autopoiéticas. Nota-se que essa ideia mecanicista da ciência em geral, são resquícios do pensamento cartesiano-newtoniano, na qual a realidade é vista como uma grande máquina, como um relógio por exemplo, e dessa maneira tudo é determinado e explicado por causa e efeito. De outra maneira, o filósofo Evan Thompson, que foi aluno de Francisco Varella, já possui outra ideia, na qual ele aponta para uma espécie de pampsiquismo, afirmando a tese de que onde há vida, há mente. O pampsiquismo é a tese que a realidade em última instância é mental, havendo uma consciência por trás ou na realidade, ou seja, é a doutrina filosófica que reduz a uma força única todas as energias existentes. Essa ideia na ciência pode ser nova, mas filosoficamente ela é muito antiga. Platão no Timeu escreve: “este mundo é de fato um ser vivo dotado de alma e inteligência ... uma única entidade viva visível contendo todas as outras entidades vivas, que por sua natureza são todas relacionadas.” O filósofo neoplatônico Plotino também possui essa ideia em suas obras, quando ele fala da Alma do Mundo, esta que seria a terceira hipóstase das emanações do Uno. Na renascença, Giordano Bruno afirma: “Não há nada que não possua alma e que não tenha princípio vital”. Na Idade Moderna, Espinosa e Leibniz também são vistos como pampsiquistas; o primeiro quando fala que tudo o que existe é uma substância infinita, indivisível, única, que possui infinitos atributos, entretanto nós percebemos só dois: mente e extensão, porém nós somos apenas modos da substância, como diz Espinosa na proposição XXVIII de sua Ética: “Somos apenas uma ideia na mente de Deus”. Leibniz fala que tudo o que existe são substâncias mentais absolutamente simples chamadas mônadas, que compõem a estrutura fundamental do universo. Já o físico João Bernardes da Rocha Filho diz: “A natureza pode ser uma possibilidade, um vir-a-ser potencial, e se a mente estivesse contida em forma germinal, na matéria ou em suas leis, seu surgimento seria apenas uma decorrência da sua própria existência, sem a necessidade de se postular um agente organizador externo em constante atuação. É claro que permaneceria a dúvida sobre o início de toda a matéria e sobre como a mente poderia estar nela definida, mas há algo de criticamente sustentável em crer que acabou aí a ação deflagradora responsável pelo estabelecimento das leis físicas diretoras da evolução posterior do universo”, posteriormente ele continua: “a vida e a consciência podem, assim, constituir simplesmente um par de consequências da operação de leis oriundas da própria estrutura do universo, gravadas de forma análoga à latência do processo evolutivo de uma árvore, por exemplo, enquanto sobrevive como semente”. Hegel também possui em suas obras tendências pampsiquistas quando ele afirma que ser é igual a pensar, e dessa maneira reaviva o sonho dos antigos, dizendo que sim é possível conhecer a realidade pelo pensamento, pois ele se identifica com ela e assim conhece-a. Hegel considera o universo como um todo orgânico que possui um ciclo de vida designado para a evolução. Em sua cosmologia ele afirma que a primeira tese é que o absoluto é puro ser, mas um puro ser sem qualidades é nada, de forma que somos levados a antítese: “O absoluto é nada”. Tese e antítese são superadas pela síntese: a união do Ser e do Não-Ser, e portanto conclui: “O absoluto é vir-a-ser”; dessa forma ele conclui que a história universal é a exibição do espírito no processo de realizar o conhecimento do que ele é potencialmente. O neurocirurgião Francisco di Biase fala de informação como sinônimo de consciência, o cito: “informação deve ser entendida como uma propriedade intrínseca, irredutível e não local do universo, capaz de gerar ordem, auto organização e complexidade, e deve ser considerada mais básica do que o princípio da conservação da matéria e energia”.
Portanto, fica claro como a filosofia estóica é complexa e profunda, e
como ela é influente até hoje em discussões que vão da lógica, a metafísica, ética e biologia, por exemplo. Dessa forma, é válido sempre lembrar como essencial o estudo da riquíssima filosofia antiga. Ademais, a ideia de auto regulamentação estóica são as bases para a autopoieses do Enativismo, e sobre esta por fim infere-se que é necessária e suficiente para caracterizar a organização dos sistemas vivos, a reprodução e a evolução, tal como observadas nos sistemas vivos, e todos os fenômenos deles derivados, surgem como processos secundários, subordinados à existência e ao funcionamento de unidades autopoiéticas. Chegando ao fim, a ideia da natureza como consciente que está presente na filosofia estóica, ganha novo fôlego com o Enativismo, mas não só com ele, também com os últimos estudos de biologia molecular e da física quântica, estes confirmando o que na filosofia já se discute a muitos anos. Assim sendo, cito Max Planck, o pai da física quântica: “Toda a matéria se origina e existe somente em virtude de uma força que faz com que a partícula do átomo vibre, essa força mantém unido o pequeno sistema solar do átomo. Devemos assumir que detrás de essa força existe uma mente consciente e inteligente. Esta mente é a matriz de toda a matéria.”
REFERÊNCIAS
BIASE, F, D. A revolução da consciência: novas descobertas sobre a mente
no século XXI. Petrópolis: Editora Vozes, 2004.
FILHO, J, B, R. Física e Psicologia: as fronteiras do conhecimento científico,
aproximando a Física e a Psicologia Junguiana. 2.ed. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003.
HEGEL, G, W, F. Conceitos fundamentais / Michael Baur; tradução José
Maria Gomes de Souza Neto. Petrópolis: Editora Vozes, 2021.
INWOOD, B. Os estóicos. São Paulo: Odysseus Editora, 2006.
REALE, G. Plotino e o Neoplatonismo. 3.ed. São Paulo: Edições Loyola,
2014.
ROMESÍN, H, M. De máquina y seres vivos, Autopoieses: la organización de
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THOMPSON, E. A mente na vida: Biologia, Fenomenologia e Ciências da