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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA MARIA

CENTRO DE CIÊNCIAS SOCIAIS E HUMANAS


CURSO DE FILOSOFIA- BACHARELADO

ESTOICISMO E ENATIVISMO

NOME DO ALUNO: José Paulo de Moura Groff

NOME DO PROFESSOR: José Lourenço Pereira da Silva

Santa Maria, julho de 2023


O estoicismo foi uma escola de filosofia helenística fundada por Zenão
de Cítio na Grécia, em Atenas, no início do Século III a.C. É uma filosofia da
eudaimonia e virtude pessoal. E como nota Sellars, é importante salientar que
os três termos: lógica, física e ética, estavam sendo usados ligeiramente
diferente do modo como são utilizados hoje. A lógica, por exemplo, foi
concebida em um sentido muito mais amplo do que tem agora, englobando não
apenas a lógica formal, mas também a retórica e a epistemologia. Do mesmo
modo, a física foi entendida como abrangendo não apenas a filosofia natural,
mas também a ontologia ou metafísica e a teologia. Ao contrário dos
epicuristas, os estoicos, como vimos, foram menos apegados à ortodoxia.

Os estóicos se orgulhavam da coerência de sua filosofia. Eles estavam


convencidos de que o universo é passível de explicação racional e é em si uma
estrutura racionalmente organizada. Esta ideia estóica penso eu, parece-me
reavivada no final da Idade Moderna por Hegel, o principal nome do Idealismo
Alemão, quando ele diz: “o real é racional e o racional é real”.

A faculdade do homem que o habilita a pensar, planejar e falar, que os


estóicos chamavam de logos, está literalmente incorporada no universo como
um todo. O ser humano individual, na essência de sua natureza, compartilha
uma propriedade que pertence à Natureza no sentido cósmico. E porque a
Natureza cósmica abrange tudo o que existe, o indivíduo humano é uma parte
do mundo em um sentido preciso e integral. Esta convicção estóica fica nítida
na primeira parte da “Fenomenologia do Espírito”, quando Hegel fala sobre a
certeza sensível. Na certeza sensível ou na imediatidade, o indivíduo percebe-
se como algo particular ou singular (há uma teoria da mente sobre como o
indivíduo nota-se a si próprio), e sua relação com os objetos do mundo
(ontologia) se dá na forma de particulares/singulares também, ou seja, o
indivíduo se percebe como um eu individual que ao dirigir-se para o mundo
confronta-se com objetos particulares, por exemplo, uma casa particular ou um
lápis particular. Ao tentar falar sobre esses objetos, Hegel percebe que os
nega, pois ao falar por exemplo de uma casa particular, com o advento do devir
não é possível descrever esse objeto, pois o tempo passa e esse objeto pode
não ser mais o que ele era quando estava sendo descrito. Logo, Hegel analisa
que o que sobra desses objetos são apenas os universais, ou seja, apenas as
ideias, conceitos dos mesmos. Esta conclusão sobre os universais está contida
na segunda parte da Fenomenologia do Espírito, chamada de percepção. Aqui
não é apenas dos objetos que se fala universalmente, mas também do
indivíduo, ou seja, agora o indivíduo percebe-se não mais como um particular
analisando objetos particulares, mas sim como um universal analisando objetos
universais. Quando ele fala que o indivíduo não é mais um eu singular, mas um
universal, ele está dizendo algo muito semelhante aos estóicos, quando estes
falam que o ser humano individual, na essência de sua natureza, compartilha
uma propriedade que pertence à Natureza no sentido cósmico. Ambos estão
querendo dizer que a consciência humana está de certa maneira contida ou
conectada ao todo, ou como diz a proposição XXVIII da Ética de Espinosa:
“Somos uma ideia na mente de Deus”.

É possível apresentar duas leituras bastante diferentes da física estoica.


Uma leitura enfocaria o papel do pneuma como uma força que, em vários graus
de tensão, forma os objetos materiais da natureza. Os estoicos delineiam três
condições principais do pneuma, cada uma refletindo um nível diferente de
“tensão” (tonos). A primeira é a “coesão” (hexis), e essa é a força que dá
unidade a um objeto físico; é a força que mantém juntas uma pedra, por
exemplo. A segunda é a “natureza” (phusis) e essa é a força em virtude da qual
algo pode ser dito estar vivo. É pneuma como phusis que constitui o princípio
da vida em organismos biológicos tais como plantas. A terceira é a “alma”
(psuchē), e essa forma de pneuma constitui o princípio da vida em animais que
têm os poderes da percepção (impressões), movimento (impulsos) e
reprodução. A diferença entre estes três tipos de entidades naturais é
simplesmente um dos diferentes níveis de tensão em seu pneuma. Isso tem
sido caracterizado como uma diferença na complexidade organizacional. Eles
estão em um continuum, a diferença entre eles sendo de grau e não de tipo.
Poder-se-ia assim imaginar uma explicação evolutiva do desenvolvimento da
vida e de formas superiores de vida puramente em termos de complexidade
crescente na Natureza. Assim, é possível fazer com que a física estoica soe
bem moderna e completamente naturalista. Os estóicos acreditavam também
que a natureza dotou os animais do impulso (horme), isto é, uma função da
alma ativa desde o início da geração que permite com que os animais humanos
e não humanos imediatamente reconheçam seu objetivo, que é a
autoconservação em sua integridade física e psíquica.

As ideias estóicas citadas no parágrafo acima, possuem forte


semelhança ao conceito de autopoieses (do grego auto "próprio", poiesis
"criação"), que designa a capacidade dos seres vivos de produzirem a si
próprios, que os filósofos e biólogos Humberto Maturana e Francisco Varella
propuseram na década de 1970. Assim sendo, me parece que a ideia estóica
de autoconservação faz eco a ideia de autopoieses, ou seja, automanutenção,
autocriação dos seres biológicos. A organização autopoiética significa
simplesmente processos concatenados de uma maneira específica, de modo
que os processos concatenados produzam os componentes que constituem e
especificam o sistema como uma unidade. A hipótese é que existe uma
organização comum a todos os sistemas vivos, qualquer que seja a natureza
de seus componentes, sendo esse sistema vivo definido por sua organização
e, portanto, pode ser explicado como qualquer organização pode ser explicada,
ou seja, em termos de relacionamentos, não de propriedades dos
componentes. Um sistema vivo é tal porque é um sistema autopoiético, e é
uma unidade no espaço físico porque é definido como uma unidade nesse
espaço através de sua autopoiese. Portanto, qualquer transformação que um
sistema vivo sofra, preservando sua identidade, deve ocorrer de forma
determinada por sua autopoiese definidora e estar subordinada a ela; então,
num sistema vivo, a perda de sua autopoiese é sua desintegração como
unidade e a perda de sua identidade, ou seja, a morte.

A caracterização dos sistemas vivos como sistemas autopoiéticos deve


ser entendida como dotada de validade universal; isto é, a autopoiese deve ser
considerada como a definição de sistemas vivos em qualquer parte do universo
físico, por mais diferentes que sejam dos sistemas terrestres em outros
aspectos. Isso não deve ser entendido como uma limitação de nossa
imaginação, nem como uma negação de que sistemas complexos ainda não
imaginados possam existir. É uma afirmação sobre a natureza da
fenomenologia biológica: a fenomenologia biológica não é nem mais nem
menos que a fenomenologia dos sistemas autopoiéticos no espaço físico.
Logo, pode-se dizer que máquinas autopoiéticas são máquinas homeostáticas
e essas máquinas autopoiéticas são autônomas; ou seja, subordinam todas as
suas mudanças à conservação de sua própria organização, por mais profundas
que sejam as outras transformações que possam sofrer durante o processo, ou
seja, o corpo humano seria uma máquina autopoiética, formado de células,
moléculas, átomos, sistema nervoso, sistema digestório, sistema endócrino,
sendo sistemas dentro de sistemas auto organizados com troca de energia e
nutrientes com o meio, e dessa forma mantendo a lei do Conatus: aquela que
diz que todo indivíduo luta para continuar existindo.

Quando os estóicos falam que a diferença entre os três tipos de


entidades naturais é simplesmente um dos diferentes níveis de tensão em seu
pneuma e que eles estão em um continuum, sendo a diferença entre eles de
grau e não de tipo e dessa maneira poder-se-ia imaginar uma explicação
evolutiva do desenvolvimento da vida e de formas superiores de vida
puramente em termos de complexidade crescente na Natureza, me parece as
bases do que contemporaneamente veio a chamar-se Enativismo, que hoje é
uma teoria da cognição e da linguagem, na qual pretende-se explicar desde o
funcionamento da célula até organismos mais complexos, tendo a Biologia e a
Neurofenomenologia como pontos de partida, juntamente com a ideia de
sistemas, sendo dessa forma uma ontologia. Apenas a custo de curiosidade,
Francisco Varella era um grande leitor de Platão e no começo de suas
publicações como cientista não era levado a sério pelos cientistas ortodoxos,
que diziam que ele misturava demais filosofia com ciência.

A cosmologia estóica tem sido, assim, descrita como uma


“cosmobiologia” (Hahm 1977: 136). Esta teoria antiga é ecoada em algumas
discussões modernas da Natureza, ou “Gaia”, como um sistema biológico auto-
regulador. Onde os estoicos vão mais longe é em afirmar que a Natureza,
concebida como um organismo vivo, é também consciente. Em relação a ideia
da natureza como consciente, há divergências de pensamento dentro do
próprio Enativismo. Para Humberto Matura e Francisco Varella, que foram os
primeiros a falar sobre a teoria da autopoieses, a natureza não é consciente, e
os organismos são vistos como máquinas autopoiéticas. Nota-se que essa
ideia mecanicista da ciência em geral, são resquícios do pensamento
cartesiano-newtoniano, na qual a realidade é vista como uma grande máquina,
como um relógio por exemplo, e dessa maneira tudo é determinado e explicado
por causa e efeito. De outra maneira, o filósofo Evan Thompson, que foi aluno
de Francisco Varella, já possui outra ideia, na qual ele aponta para uma
espécie de pampsiquismo, afirmando a tese de que onde há vida, há mente. O
pampsiquismo é a tese que a realidade em última instância é mental, havendo
uma consciência por trás ou na realidade, ou seja, é a doutrina filosófica que
reduz a uma força única todas as energias existentes. Essa ideia na ciência
pode ser nova, mas filosoficamente ela é muito antiga. Platão no Timeu
escreve: “este mundo é de fato um ser vivo dotado de alma e inteligência ...
uma única entidade viva visível contendo todas as outras entidades vivas, que
por sua natureza são todas relacionadas.” O filósofo neoplatônico Plotino
também possui essa ideia em suas obras, quando ele fala da Alma do Mundo,
esta que seria a terceira hipóstase das emanações do Uno. Na renascença,
Giordano Bruno afirma: “Não há nada que não possua alma e que não tenha
princípio vital”. Na Idade Moderna, Espinosa e Leibniz também são vistos como
pampsiquistas; o primeiro quando fala que tudo o que existe é uma substância
infinita, indivisível, única, que possui infinitos atributos, entretanto nós
percebemos só dois: mente e extensão, porém nós somos apenas modos da
substância, como diz Espinosa na proposição XXVIII de sua Ética: “Somos
apenas uma ideia na mente de Deus”. Leibniz fala que tudo o que existe são
substâncias mentais absolutamente simples chamadas mônadas, que
compõem a estrutura fundamental do universo. Já o físico João Bernardes da
Rocha Filho diz: “A natureza pode ser uma possibilidade, um vir-a-ser
potencial, e se a mente estivesse contida em forma germinal, na matéria ou em
suas leis, seu surgimento seria apenas uma decorrência da sua própria
existência, sem a necessidade de se postular um agente organizador externo
em constante atuação. É claro que permaneceria a dúvida sobre o início de
toda a matéria e sobre como a mente poderia estar nela definida, mas há algo
de criticamente sustentável em crer que acabou aí a ação deflagradora
responsável pelo estabelecimento das leis físicas diretoras da evolução
posterior do universo”, posteriormente ele continua: “a vida e a consciência
podem, assim, constituir simplesmente um par de consequências da operação
de leis oriundas da própria estrutura do universo, gravadas de forma análoga à
latência do processo evolutivo de uma árvore, por exemplo, enquanto
sobrevive como semente”. Hegel também possui em suas obras tendências
pampsiquistas quando ele afirma que ser é igual a pensar, e dessa maneira
reaviva o sonho dos antigos, dizendo que sim é possível conhecer a realidade
pelo pensamento, pois ele se identifica com ela e assim conhece-a. Hegel
considera o universo como um todo orgânico que possui um ciclo de vida
designado para a evolução. Em sua cosmologia ele afirma que a primeira tese
é que o absoluto é puro ser, mas um puro ser sem qualidades é nada, de forma
que somos levados a antítese: “O absoluto é nada”. Tese e antítese são
superadas pela síntese: a união do Ser e do Não-Ser, e portanto conclui: “O
absoluto é vir-a-ser”; dessa forma ele conclui que a história universal é a
exibição do espírito no processo de realizar o conhecimento do que ele é
potencialmente. O neurocirurgião Francisco di Biase fala de informação como
sinônimo de consciência, o cito: “informação deve ser entendida como uma
propriedade intrínseca, irredutível e não local do universo, capaz de gerar
ordem, auto organização e complexidade, e deve ser considerada mais básica
do que o princípio da conservação da matéria e energia”.

Portanto, fica claro como a filosofia estóica é complexa e profunda, e


como ela é influente até hoje em discussões que vão da lógica, a metafísica,
ética e biologia, por exemplo. Dessa forma, é válido sempre lembrar como
essencial o estudo da riquíssima filosofia antiga. Ademais, a ideia de auto
regulamentação estóica são as bases para a autopoieses do Enativismo, e
sobre esta por fim infere-se que é necessária e suficiente para caracterizar a
organização dos sistemas vivos, a reprodução e a evolução, tal como
observadas nos sistemas vivos, e todos os fenômenos deles derivados, surgem
como processos secundários, subordinados à existência e ao funcionamento
de unidades autopoiéticas. Chegando ao fim, a ideia da natureza como
consciente que está presente na filosofia estóica, ganha novo fôlego com o
Enativismo, mas não só com ele, também com os últimos estudos de biologia
molecular e da física quântica, estes confirmando o que na filosofia já se
discute a muitos anos. Assim sendo, cito Max Planck, o pai da física quântica:
“Toda a matéria se origina e existe somente em virtude de uma força que faz
com que a partícula do átomo vibre, essa força mantém unido o pequeno
sistema solar do átomo. Devemos assumir que detrás de essa força existe uma
mente consciente e inteligente. Esta mente é a matriz de toda a matéria.”

REFERÊNCIAS

BIASE, F, D. A revolução da consciência: novas descobertas sobre a mente


no século XXI. Petrópolis: Editora Vozes, 2004.

FILHO, J, B, R. Física e Psicologia: as fronteiras do conhecimento científico,


aproximando a Física e a Psicologia Junguiana. 2.ed. Porto Alegre:
EDIPUCRS, 2003.

HEGEL, G, W, F. Conceitos fundamentais / Michael Baur; tradução José


Maria Gomes de Souza Neto. Petrópolis: Editora Vozes, 2021.

INWOOD, B. Os estóicos. São Paulo: Odysseus Editora, 2006.

REALE, G. Plotino e o Neoplatonismo. 3.ed. São Paulo: Edições Loyola,


2014.

ROMESÍN, H, M. De máquina y seres vivos, Autopoieses: la organización de


lo vivo. 6.ed. Buenos Aires: Lumen, 2003.

THOMPSON, E. A mente na vida: Biologia, Fenomenologia e Ciências da


Mente. Lisboa: Instituto Piaget.

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