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BRAYNER, Flávio. Para além da educação popular.

Campinas,
SP: Mercado das Letras, 2018.
Paulo Freire e Hannah Arendt: um confronto, p. 161-173;
Por que ainda somos freireanos? Ensaio sobre uma teologia laica,
p. 245-292.
Flávio Brayner

PARA ALÉM
", , DA EDUCAÇÃO
..-: ",

:.~
POPULAR
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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (ClP)
(Câmara Brasileira do livro, SP, Brasil)
Brayner, Flávio
Para além da educação popular / Flávio Brayner. - Cam-
pinas, SP : Mercado de Letras, 2018.

Bibliografia.
ISBN 978-85-7591-473-1

1. Arendt, Hannah, 1906-1975 2. Diálogos 3. Educação


4. Educação popular 5. Freire, Paulo, 1921-19976. Uni-
versidades e escolas I. Titulo.
SUMÁRIO
18-21693 CDD-370
índices para catálogo sistemático:
1. Educação 370

capa e gerênci« editorial: Vande Rotta Gomide


loto de capa: Marina Meirelles Gomide
PREFÁCIO 7
preparação dos originais: Editora Mercado de Letras
revisão linal do autor Oani/o R. Streck
bibliotecária: Cibele Maria Dias - CRB-8/9427

NOTA DO AUTOR 11

UNIVERSIDADE E EDUCAÇÃO POPULAR 17

DIALÉTICA: MODOS DE (AB)USAR 27

O ELIXIR DA REDENÇÃO. O MOVIMENTO DE


CULTURA POPULAR DO RECIFE(1960-1964) 47
DIREITOS RESERVADOSPARA A LíNGUA PORTUGUESA:
., MERCADO DE LETRAS®
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DE ASSUJEITAMENTO" 99
1ª edição
OUTUBRO/2018
IMPRESSÃO DIGITAL
PARA ALÉM DO PLATONISMO
IMPRESSO NO BRASIL NA EDUCAÇÃO POPULAR 117

Estaobra está protegida pela Lei 9610/98.


É proibida sua reprodução parcial ou total HOMENS E MULHERES DE PALAVRA:
sem a autorização prévia do Editor. O infrator SOBRE O DIÁLOGO 135
estará sujeito às penalidades previstas na Lei.
PAULO FREIREE HANNAH ARENDT:
UM CONFRONTO 161

O CLlCHÊ: NOTAS SOBRE UMA DERROTA


DO PENSAMENTO. POR UMA
CONSCIÊNCIA INGÊNUA 175

EDUCAÇÃO POPULAR E
"COMPETÊNCIA" REPUBLICANA 201 PREFÁCIO

UM CERTO SILÊNCIO BIBLIOGRÁFICO


(SOBRE A "INFLUÊNCIA") 217

POR QUE AINDA SOMOS FREIREANOS? Danílo R. Streck


ENSAIO SOBRE UMA TEOLOGIA LAICA 245

Enquanto escrevo este prefácio vejo acadêmi-


cos e jornalistas procurando compreender o que fez
com que milhares de pessoas, muitas vezes liderados
por jovens até há pouco tempo considerados aliena-
dos pelo consumo e redes digitais fossem para as ruas.
As explicações são tão variadas quanto as bandeiras
levantadas nas manifestações. Parece que todos têm
razão em seus argumentos, mas também parece que
não se alcança aquela explicação que dê conta de tudo
o que está em jogo nos protestos. A realidade nos sur-
preende, desacomoda e questiona. Basta que esteja-
mos abertos para perceber, sentir e pensar o que está
à nossa volta.
Flávio Brayner é um pensador que se permite
sair de lugares seguros propiciados pela fidelidade a
uma corrente filosófica e pedagógica ou pela adesão
a algum intelectual de moda. Transcrevo o parágrafo
final de um dos capítulos para indicar ao leitor o que
pode encontrar desde o início do livro: "A derrocada

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If'DS áreas encontrarão nas abundantes referências a
autores e obras entradas e desafios para dialogar.
Sinto-me privilegiado por ter sido convidado a
ler; em primeira mão, este conjunto de textos que me
"pro-vocaram" e "com-vocararn" no melhor sentido
dessas palavras. E tenho certeza que o farão com mui-
tos leitores e muitas leitoras.
NOTA DO AUTOR

Li pela primeira vez a Pedagogia do Oprimido


quando estava terminando minha licenciatura, porvol-
ta de meus 22 anos, em 1979. Foi, parafraseando Ban-
deira, 'meu primeiro alumbramento' pedagógico! Não
sei se compreendi bem algumas de suas noções, mas
a passagem sobre a "educação bancária" me deixou
uma impressão tal que comecei a enxergar "bancaris-
mo" em praticamente todas as relações que envolviam
autoridade ou hierarquia e supunha, na minha inge-
nuidade, que dialogicidade bem que poderia ser uma
norma universal de conduta, um critério ontológico
e transcendental! Não tinha a menor desconfiança,
àquela altura de minha vida, de que o futuro do pau-
lofreireanismo seria esta ampla institucionalização de
seu pensamento e memória, que culmina no Patronato
e no Marco de Referência da Educação Popular. Mas,
talvez seja da própria natureza das instituições trair
seus fundadores (ou, como disse, um "herege", "Se
quiseres ser cristão, afasta-te dos padres!"). Naqueles
anos (o que alongava ainda mais minha beata ingenui-
dade), eu estava certo de que alguém que tivesse lido
Freire ou Marx não teria outra saída a não ser tornar-

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se freireano ou marxista. Ou então permanecer em sua muito mais profundidade e influência propriamente
"desumanidade" e alienação. escolar do que Paulo, e que a Escola Nova brasileira
Certo dia, minha amiga Maria Adosinda (já fale- era, na verdade, a grande contribuição do país às prá-
cida), cunhada de Paulo Freire, convidou-me para um ticas educativas contemporâneas.
debate muito reservado em que o educador compare- Estas duas observações, vindas de "fora" do
ceria. Sentei-me junto dele, que colocou a mão em meu Brasil, chamaram-me a atenção sobre a real importân-
ombro. Minha reação foi a de não me mexer durante cia teórica e prática das ideias de Freire. Mas o ponto
quase toda a manhã temendo que ele interpretasse decisivo de minha inflexão foi, sem dúvida, a experi-
qualquer gesto meu como uma reação antipática ao ência com a escola republicana francesa, que sempre
seu tocar. Passei o resto do dia com torcicolo por cau- teve sérios embates com os "pedagogístas" inspirados
sa de Paulo Freire! É a lembrança mais dolorosa que no escolanovismo e que tiveram em Phillipe Meurieu
tenho dele. Mas, ali foi ficando claro que a figura ca- seu principal paladino teórico, que a acusa de adul-
rismática de Paulo ia muito além do encanto que ele tocêntrica, conteudística, vertical, autoritária, classi-
exercia sobre seus seguidores ou admiradores: como ficatória ... Não se trata, a meu ver, de escolher entre
se, ser tocado por ele, implicasse uma conversão. Ou Anísio ou Paulo, ambos fortemente influenciados pela
um torcicolo! educação progressiva (confesso ter tomado um susto
Em um curso na Universidade de Paris VIII quando li aquela passagem de Saviani sobre o "esco-
(Saint Denis), onde eu estava realizando meu pós- lanovismo popular" de Freire!), trata-se de saber por
doutorado, a Professora Danielle Bachmann, que mi- que as pedagogias ativas, numa sociedade tão clamo-
nistrava a disciplina de Educação Popular, nunca falou rosamente desigual como a nossa e, nos anos 30, prati-
no nome de Freire em suas aulas. Quando, num deter- camente recém-saída da escravidão, encontraram tão
minado momento, eu solicitei sua opinião a respeito forte acolhida entre os educadores e, ainda mais, como
daquele educador, ela me disse que ele era este alvo de explicar que uma pedagogia inspirada no primeiro
veneração na América Latina devido a razões perfei- pragmatismo americano (James, Dewey, Kilpatrick),
tamente explicáveis por uma abordagem sociológica. quer dizer, gestada no interior de uma sociedade mul-
Mas na França, onde a escola republicana tinha, bem ticultural, plástica e democrática tenha logrado obter a
ou mal, funcionado, Freire era um autor sem grande adesão que conheceu numa sociedade tão severamen-
importância e, de forma até grosseira, disse-me que te injusta como a nossa e, pior, que seus princípios te-
sua Pedagogia do Oprimido "não passava de protofe- nham se tornado "oficiais" durante regimes de exceção
nomenologia para o Terceiro Mundo"! (com Capanema no Estado Novo e, mais tarde, com a
Lei 5692/71, durante o pior período da ditadura mili-
O pesquisador da Universidade de Berna (Suis-
tar). O curioso é ver que os teóricos que inspiraram o
sa), Martin Stauffer; que fez pesquisa no Recife no iní-
liberalismo de nossas doutrinas pedagógicas antíauto-
cio dos anos 2000, considerava que Anísio tinha tido
ritárias, processuais, dialogais, alunocêntricas, liberta-

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deras, terminaram perseguidos (ou mortos) pelos re- nossos já habituados ouvidos libertários), nos deram
gimes que as adotaram. escolanovismo.
Meu amigo José Sérgio de Carvalho (USP) arris- Mas seria profundamente injusto perfilar Paulo
ca uma resposta. Para ele, estes modelos centrados no Freire e suas ideias pedagógicas no interior destas pe-
indivíduo de aprendizagem, de extração psicologista, dagogias individualizantes e de esteio liberal. O que a
mais preocupados com desenvolvimentos pessoais do Educação Popular propôs, naquele final dos anos 50,
que com conteúdos de saber, assentados sobre horí- início dos 60 era algo mais profundo e mais extenso:
zontalismos e democracias pedagógicas muitas vezes constituir um "povo"! Se nossa "direita" abominava a
artificiais, terminam por retirar da educação escolar democracia por que nela os ignorantes e incautos po-
-sobretudo a pública- um elemento fundamental de diam decidir, ou odiavam a presença negra em nossa
toda formação supostamente republicana: a crença demografia por que ela impedia nosso processo cíví-
de que, o que está "entre nós" (lnter homines esse) é lizacional (basta pensar aqui nos Sílvio Romero, Al-
o Mundo; que a educação, como expressão de um berto Torres, Nina Rodrigues, Oliveira Viana), nossa
Amor Mundi arendtiano, não é apenas um problema "esquerda" não ficou muito atrás: com a "consciência"
de aprendizagem ou de métodos, mas um fundamen- precária que aquele povo detinha, nenhuma transfor-
tal encontro entre duas gerações em que uma delas mação da realidade seria possível. Partir da "realidade
herdará este Mundo (como Mundo de significações do educando", quer dizer, de sua precariedade social,
e não como planeta) sem nenhum modo de usar e a dando um novo nome à sua "cultura" (falo da valoriza-
outra (geração) o deixará sem saber o que os novos ção da cultura popular que começara com os Moder-
farão dele. Estamos falando, assim, da relação entre nistas, Mário de Andrade puxando o cordão) era o pri-
educação e espaço público. Ora, com a supressão des- meiro gesto de uma ação pedagógica que principiava
ta esfera pública da pluralidade, da palavra e da ação, por nomear a consciência do outro (o povo), apontava
durante os regimes de exceção que o Brasil conheceu, sua insuficiência e dizia onde ela deveria chegar para
nada mais "natural" que nossas doutrinas pedagógi- "pensar certo" e "ser sujeito de sua própria história".
cas se concentrassem nos sujeitos de aprendizagem, Romantismo e iluminismo se juntam, aqui, não para
uma perspectiva altamente individualista da qual fa- definir projetos de conscientização, mas, a partir da
zem parte todos os "construtívísmos" que vincaram nomeação da precariedade da consciência do outro,
e definiram a formação de nossas crenças educativas. sugerir a conversão pedagógica desta mesma consci-
Assim, pedagogias centradas nos educandos não são ência, o que fazia da Educação Popular um amplo pro-
incompatíveis com sistemas políticos autoritários! grama "ortopédico".
Isto significa dizer que, quando tínhamos necessidade É isto o que vou tentar mostrar nos ensaios que
de escola republicana, mesmo com todos os seus desa- compõem este livro, em sua maioria apresentados nas
gradáveis vieses "autoritários" e meritocráticos (para reuniões do GT de Educação Popular da ANPEd (Asso-
ciação Nacional de Pesquisa e Pós-Graduação em Edu-

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cação). Neles, o leitor verá que o torcicolo que Freire
me provocou continua me incomodando, mas por
uma razão bem diferente: eu consegui sair de minha
posição original para enxergar meu próprio itinerário
intelectual e tentar, a duras penas, refazer minhas in-
terrogações.

UNIVERSIDADE E
EDUCAÇÃO POPULAR

As culturas populares já haviam praticamente


desaparecido no momento da consolidação dos Esta-
do Nacionais quando os intelectuais começaram a se
interessar por aquele tema. Foi o Romantismo, como
sabemos, que se encarregou de recuperar uma tradi-
ção oral/popular que tivera seus direitos virtualmente
caçados com o racionalismo e o classicismo burguês.
Já avançado o século XX, no entanto, as sociedades
centrais praticamente desconheciam as manifesta-
ções dialetais locais, os universos simbólicos e míti-
cos que davam coerência e estabilidade a formas de
vida e inserção social, características daquele material
sobre o qual Herder ou Michelet tentaram construir
uma "história": o avanço da escolarização obrigatória,
o imperativo da unidade linguística nacional, os pro-
gramas escolares racionalizados, as novas formas de
socialização num mundo industrial, tudo contribuirá
para a usura das culturas locais que o romantismo tan-
to lamentava. Foi quando este novo elemento de "bar-
barismo" inundara a democracia: a cultura de massas.

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Referências bibliográficas

ARENDT,Hannah (1993[1954]). "O interesse pela po-


lítica no pensamento filosófico europeu recen-
te", in: A dignidade da política. 2ª edição. Rio de
janeiro: Relume Dumará.
___ o (1974). Viés politiques. Paris: Gallimard.
PAULO FREIRE E HANNAH ARENDT:
___ o(1992).ln: Entre o passado e ofuturo. São Pau- UM CONFRONTO
lo: Perspectivas.
AVRON,Henri (1970). La Philosophie Allemande. Paris:
Seguera.
BUBER, Martin (1978). Do diálogo e do dialógico. São
No ensaio A Crise na Educação encontramos a
Paulo: Perspectiva.
seguinte frase: "A educação não pode desempenhar
FREIRE, Paulo (1987). Pedagogia do oprimido. Rio de nenhum papel na política, pois na política lidamos com
janeiro: Paz e Terra. adultos que já estão educados. Quem quer que queira
___ o(1975). Educação como prática da liberdade. educar adultos na realidade pretende agir como guar-
Rio de Janeiro: Paz e Terra. dião e impedi-los de atividade política. Como não se
pode educar adultos, a palavra 'educação' soa mal em
HABERMAS,Jurgen (1983). Le Discours Philosophique
política; o que há é um simulacro de educação, en-
de Ia Modernité. Paris: Gallimard.
quanto o objetivo real é a coerção sem o uso da força"
(1983). Morale et communication. Paris: CERF.
(Arendt 1992, p. 225).
___ o

MERQUIOR,José G. (1987). Marxismo ocidental. Rio de A passagem acima é decididamente surpreen-


janeiro: Nova Fronteira. dente para a sensibilidade pedagógica brasileira acos-
SCHOLEM, Gerson (1989). Judaica I. São Paulo: Pers- tumada desde, pelo menos, os anos 60, a ouvir falar,
pectiva. através da obra de Paulo Freire (e de toda a aura mítica
TOLEDO,Caio Navarro (1983).ISEB: Fábrica de Ideolo- que a recobre), em "educação de adultos". Aliás, Han-
gia. São Paulo: Ática. nah Arendt já era conhecida do público brasileiro na-
queles anos, mas diante do avanço das chamadas "for-
VALLÉE,Cathérine (1999). Hannah Arendt, Socrates et
ças progressistas" e do entusiasmo geral provocado
Ia Question du Totalitarisme. Paris: Ellipses.
entre a nossa esquerda, pela "etapa popular da revo-
lução brasileira" e da pedagogia que lhe correspondia,

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a "pedagogia da libertação", a obra de Arendt caiu num usar a própria razão que, uma vez superado, nos con-
relativo esquecimento.
duziria à maioridade. Daí, a célebre divisa kantiana:
Sabemos que vem de Durkheim (Sociologia e "Sapere Aude!". No entanto, uma forte tensão perma-
Educação) a separação, aqui estabelecida, entre educa- neceu presente no pensamento de Freire : de um lado,
ção e política, onde a educação aparece como atividade uma simetria "ontológíca" (Freire 1979) entre educa-
intergeracional (adultos que educam crianças) e a po- dor e educando, permitindo a realização do diálogo,
lítica como intrageracional (reservada aos adultos). O só possível entre iguais (daí, a assertiva de Freire de
tema foi, há alguns anos, retomado por Hugo Lovisolo que "Ninguém liberta ninguém; os homens se libertam
em sua tese de doutorado, "Educação Popular. Conci- em comunhão"); mas, por outro lado, as consciências
liação e Maioridade" (Lovisolo 1989), entendida (em em diálogo, que se encontram para desvelar o mundo,
termos freireanos) como "consciência ingênua", como possuem status diferentes, tendo uma delas o privilé-
pretendia, em seu ponto de chegada, promovê-Ia ao ní- gio cognitivo que possui, aliás, o próprio Freire: a com-
vel em que pretensamente já se encontrava uma certa petência crítica.
"consciência crítica': cujo modelo seria representado Como bom llurnínísta, embora não fosse pro-
pelos intelectuais, o que o autor chama de "conciliação". priamente um diretivista em matéria pedagógica
Freire defendeu acertadamente, até o final de (Saviani o chamou de "escolanovísta popular"), Frei-
sua vida, uma posição pedagógica "dialoga!", porém re adere a um modelo dualista que encontramos fre-
- sublinhemos - Freire tratou essencialmente de alfa- quentemente nas pedagogias diretivas e, de uma ma-
betização de adultos. Mas a profunda crença que ele neira geral, na própria forma como a modernidade viu
depositava no poder desvelador e libertador da pala- a relação entre esclarecimento e obscurantismo. Cito
vra e na simetria que ele identificava entre educador alguns exemplos: em Hegel, sob a forma do ser-em-si e
e educando, ambos portadores de uma experiência de do ser-para-si; em Marx, sob a forma da classe-em-si e
mundo, nunca impediu que, em seu pensamento, se da classe-para-si; em Lukàcs, em termos de consciên-
forjasse uma problemática distinção entre consciên- cia-de-classe e consciência reificada; em Gramsci, sen-
cias: uma "crítica", capaz de se perceber como crítica so comum e consciência filosófica; em Snyders, cultura
e de perceber no outro - o popular - a sua "ingenuida- primeira e cultura elaborada ... Assim, e sob invólucros
de", e uma « consciência ingênua» incapaz de se per- diferentes, se repete um diagrama dualista vivido na
ceber como tal (se ela o fizesse não seria mais ingênua modernidade como uma espécie de fratura (Nouss
!) e, portanto, carente de trânsitos ("consciência tran- 1995) e cuja solução - uma vez afastados os "garantias
sitiva") para níveis superiores de "conscientização". A metassociais" (Touraine 1987) de que dispúnhamos
fórmula, sabemos, remonta a Kant e ao seu conceito numa ordem ainda dominada pela religião- se encon-
de « esclarecimento »: nele está presente uma inca- tra, agora, no sujeito transcendental, em seu pleno e
pacidade de se dar a própria norma, o que ele chama autônomo uso da razão (Kant), ou em sujeitos coleti-
de menoridade, resultado essencialmente do medo de vos em conformidade com uma razão histórica (o pro-

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letariado de Marx), todos desejosos de uma reconcilia- lavra", aceita, muitas vezes, como a única a recobrir a
ção final, seja sob a forma de um espírito absoluto que realidade dos desfavorecidos. Como se o valor do ato
penetra finalmente na ordem do mundo para a reali- de exprimir fosse equivalente ao conteúdo expresso!
zação da filosofia (Hegel), de uma « paz perpétua» e Isto gerou muitos mal-entendidos e só bem tarde (Pe-
de um sujeito dotado de um ego transcendental (Kant) dagogia da Esperança) é que Freire vai procurar reatar
ou de uma sociedade sem exploradores nem explora- os nós desfeitos com o sucesso e com a banalização in-
dos (Marx). Queda e reconciliação são palavras-chave controláveis de seu opus major.
na modernídade, o que Baudelaire exprimiu de forma Esta longa digressão sobre o pensamento de
definitiva: "Ia modernité c'est éffacer les traces du pêché Freire é de certa forma íncontornável, visto que mui-
originar (A modernidade é apagar os traços do peda- tos dos problemas que ainda enfrentamos na edu-
do original). cação de nossa população menos favorecida são em
Paulo Freire tenta solucionar a tensão através grande parte devidos a tais ideias: nossas escolas pú-
do conceito de Práxis ("ação e reflexão sobre a ação") blicas (mesmo aquelas orientadas por políticas educa-
num sentido bem mais próximo de Kant do que, por tivas "progressistas e populares" e, em inúmeros ca-
exemplo, de Marx ou Gramsci. Nem no domínio exclu- sos, de inspiração freíreana), não desenvolveram em
sivo da ação - a tentação do ativismo =, nem da simples seus alunos algumas das competências necessárias
palavra - pecado de verbalismo; mas numa ação (polí- para virem, mais tarde, a participar do espaço público
tica? moral?) continuamente corrigida por uma razão ; a educação de adultos, fortemente identificada com
reflexiva, centrada no sujeito que dialoga com o mun- "polítízação'; não apenas não produziu a "libertação"
do, consigo e com os outros. esperada, como também não franqueou a seu público
Porém, a tentativa falha em vários sentidos por- as possibilidades de acesso à cultura e à tradição. Nada
que e principalmente falta a Freire uma definição pre- disso, dirá o leitor, depende exclusivamente da educa-
cisa dos conceitos com que trabalha e, no caso, concei- ção, e Freire não é de forma alguma responsável pela
tos seminais de seu pensamento, tais como diálogo e incúria pública de nossa educação, suas condições de
ação. Esta condição -de conceitos com geometria vari- trabalho, seus salários, a baíxíssírna qualificação de
ável- permitiu que o pensamento de Freire fosse con- seus professores ... Concordo! Mas o que estou tentan-
trabandeado para territórios não autorizados e não do chamar a atenção é para o fato de que há mais de
previstos pelo autor, mas que também nunca encon- quarenta anos que falamos de uma educação popular
traram nele mesmo, uma oposição vigorosa. Falo, por líbertadora, conscientízadora, politizante cujos resul-
exemplo, da utilização da noção de "diálogo" aplicada tados são precários, que não estimulou uma sólida
à educação infantil, muito frequentemente interpreta- formação do professor (já que o "bom" professor era,
da por professores e educadores de escolas elemen- neste sentido, o professor "polítízado", mais do que o
tares em meio popular, como uma prática pedagógica professor competente didática e pedagogicamente) e
que parte do "mundo do aluno" expresso em sua "pa- que, no entanto, continua produzindo aderentes no

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campo da educação popular, que além do mais tem debate entre conservadorismo e progressívísmo, já
muita dificuldade em se liberar do mito Freire. que ambos, Freire e Arendt, admitem e querem o ad-
Na verdade, o fracasso de pedagogias "emanei- vento do "novo".
pacionistas" talvez esteja associado ao fato de que le- O ponto de partida da educação não é uma pre-
vamos longe demais nossas emancipações! O núcleo tendida "igualdade ontológica" que justificaria, in li-
duro do projeto moderno era exatamente a promoção mine, o diálogo; na verdade a educação não trata de
das emancipações: emancipamo-nos da tradição, do "ontología', de uma essência qualquer do ser que o fun-
passado, da autoridade, da família; mas também da daria. Aliás, Freire tem disso consciência quando fala
história, da sociedade (no sentido da afirmação radical no homem como um "vir-a-ser", o que reabre a tensão,
do individualismo) e do futuro (nenhuma história nos em seu pensamento, entre ontologia e historicidade.
levará inexoravelmente a um futuro radioso e iguali- Ela - a educação - também não opera em termos de
tário); da religião e da moral coercitiva (inclusive de "igualdade", nem no ponto de partida da relação pe-
uma moral sexual pré-orientada e fixa). Isto sem falar dagógica, nem no seu ponto de chegada. Seu ponto de
na emancipação da natureza via tecnologia, do nasci- partida, ou seja, aquilo que justificaria sua existência
mento biológico "natural", do trabalho e não poupa- social é que, diz Arendt, "a educação está entre as ati-
mos esforços, atualmente, para nos libertarmos desta vidades mais elementares e necessárias da sociedade
última fronteira que é a morte. O resultado parece ser humana, exatamente porque ela jamais permanece
uma estranha sensação de que ficamos completamen- tal qual é, porém se renova continuamente através do
te órfãos e, agora, sentimos que o passado nos faz fal- nascimento, da vinda de novos seres humanos. Esses
ta, como podemos observar nesta persistente moda recém-chegados, além disso, não se acham acabados,
retrô, de fundo nostálgico, como uma tentação de res- mas em um estado de vir a ser. Assim, a criança, objeto
tauração que caracteriza propriamente uma reação. da educação, possui para o educador um duplo aspec-
Como dizia Jean-Marie Domenach, "ilfout s'émanciper to: é nova em um mundo que lhe é estranho e se en-
de ['émancipation elle-même ...n (É preciso se emanci- contra em processo de formação" (Arendt 1992, p. 234
par da própria emancipação (1986, p. 23). ss). Vê-se, assim, que em se considerando a educação
Tudo o que acabamos de dizer em torno de uma como atividade íntergeracíonal, implicando o advento
vertente muito influente do pensamento pedagógi- ao mundo do que os gregos chamavam de neói", os
"óí

co brasileiro atual, choca-se frontalmente com o que novos, ela não pode partir de uma igualdade implica-
pensa Arendt. E ela se constitui numa interlocutora da numa acepção "ontológica" Ela precisa, sob pena
aceitável, não porque o espírito de tolerância exigiria de não assegurar a introdução no mundo dos recém-
que a voz do "conservador" também fosse ouvida, mas chegados, desta desigualdade que contrapõe adultos
porque ela pensa que agindo desta maneira estam os e crianças.
caminhando exatamente no sentido contrário a uma Também em seu ponto de chegada, entendendo
possibilidade de renovação. Portanto, não se trata do por isso, os fins que o processo educacional deveria
166 167
permitir e produzir, não é possível se pensar em ter- dos símbolos (Kundera) -, estará sempre em curso ao
mos de igualdade. Porque, aqui, "mesmo às crianças longo de nossa existência.
que se quer educar para que sejam cidadãos de um Acontece que Arendt viveu e frequentou o inte-
amanhã utópico é negado, de fato, seu próprio papel rior de um mundo cultivado, inicialmente num meio
futuro no organismo político, pois, do ponto de vista familiar judeu onde uma tradição de leitura, de exege-
dos mais novos, o que quer que o mundo adulto possa se e de formação do espírito é sobejamente conhecida;
propor de novo, [este novo] é necessariamente mais numa Alemanha que, pelo menos desde 1880, já havia
velho do que eles mesmos" (id., p. 225 ss). Isto signifi- reduzido seus níveis de analfabetismo para menos de
ca que se quisermos ainda pensar em termos de igual- 1% da população escolarizável (o que permitia a um
dade, esta só seria imaginável na situação em que as importante editor da época, [oseph Meyer, criar a divi-
crianças de hoje se tornarão os adultos de amanhã, ou sa "AEducação Liberta!") e, mais tarde, numa América
seja, se igualariam na condição de "adultos", aos seus que já havia amplamente universalizado a educação,
mestres de hoje. Mas aqui, entre adultos, não estaría- mesmo para aqueles jovens imigrantes, para quem a
mos mais, segundo Arendt (e Durkheirn), no domínio escola e a instrução cumpriam uma função política de
da educação, mas no da política. americanização dos filhos de imigrantes. Porém, em
No entanto, devemos acolher tranquilamente a casos como o brasileiro, nos defrontamos com a de-
tese de que entre adultos não há educação? Acho que é soladora situação de uma grande parte da população
perfeitamente aceitável o fato de que a educação pode adulta ainda em condições de analfabetismo ou de
se constituir num processo durável e permanente na iletrismo, sem jamais ter frequentado a escola, tendo
nossa existência, quer dizer; extensível para muito -a abandonado antes de finalizar o ensino elementar
além da vida infantil, o que pode não acontecer com ou simplesmente perdido suas precárias aquisições
a educação formal (escolar); e aceitando, ainda mais, escolares por viverem num ambiente também iletra-
que não se trata exclusivamente da educação intelec- do. Situação que, nos anos 50 e 60, se aproximava de
tual, nem apenas do que Cícero chamou de excolere uma verdadeira catástrofe social. Foi neste contexto
animum (a educação do espírito), mas também de uma em que educadores como Paulo Freire propuseram
educação afetiva e emocional, como autoconhecimen- inicialmente, não uma educação de adultos, mas a al-
to. Penso, assim, que não é difícil a defesa da tese de fabetização de adultos. E aqui reside uma substantiva
que, mesmo adultos, continuamos a nos educar. Para diferença!
aceitar esta possibilidade, eu não preciso recorrer às Quando Freire dizia que o educando já traz para
teorias da educação permanente, mas simplesmente a escola, antes mesmo do aprendizado da leitura/es-
à literatura e, em especial, a uma frase de Baudelaire: crita, uma "leitura do mundo", ele admitia que este
"O homem é uma criança perdida numa floresta de adulto analfabeto, se constituía, de fato, em adulto, ou
símbolos", o que significa que uma educação para a seja: uma forma de inserção e de aparência (Visibili-
maturidade - sendo a maturidade, o desvencilhar-se dade) no e para o mundo, com suas responsabilida-

168 169
des, suas formas (mesmo que limitadas) de ação, de da Nação. Isto tem consequências porque a infantili-
trabalho, de pertencimento e identidade culturais. Sua zação do povo é a condição de sua transformação em
grande limitação se situaria, num nível que chamarei "objeto pedagogizável", o que permite, neste mesmo
de 'interno', na incapacidade de decifrar o código por ato, a entronização de uma elite pretensamente "crí-
excelência da nossa civilização: a escrita, e, num outro tica". É a "consciência" do outro, ingênuo, que precisa
nível que nomearei 'externo', no constrangimento so- ser modificada para se adaptar ao projeto histórico de
cial de não poder "falar sua própria palavra". Mas seu transformação social. E aqui, numa linhagem de ide-
aprendizado não estaria na esfera da educação, mas al educacional que remonta a Rousseau, a educação
sim no da instrução, com todo seu caráter operativo, torna-se instrumento da política e a própria ativida-
instrumental, enquanto meio de acesso a um mundo de política passa a ser concebida como uma forma de
até então fechado e indecifrável. Em resumo, não se educação. Não é, pois, acidental a febre gramsciana
trata de apresentar o mundo a recém-chegados. Aliás, que infectou o discurso pedagógico brasileiro durante
a história apresenta exemplos eloquentes de insurgên- quase duas décadas!
cias, rebeliões, revoltas conduzidas por lideranças com Ocorre que, neste caso, é o próprio advento
pouca ou nenhuma escolarização. Portanto, o analfa- do "novo" que se encontra comprometido. Quando -
beto não é necessariamente um impotente político: como assistimos tão frequentemente nestes últimos
mas sua participação política é profundamente limita- anos - pensava-se a educação de crianças de classes
da e, não raras vezes, promotora de exclusão (sendo a populares como "instrumentalização para que elas
mais elementar, o odioso instituto que impedia o voto viessem a transformar suas condições de existência",
aos analfabetos). O problema é quando a alfabetização estávamos na verdade, assistindo a uma tentativa de
de adultos se torna "educação de adultos". E aqui eu "administração do futuro" (a expressão é de Castoria-
penso que Arendt tem razão, mesmo não tendo conhe- dis) e impedindo, apesar de todas as louváveis inten-
cido a educação de adultos no Brasil e o que ela produ- ções que mobilizaram aqueles educadores, que aque-
ziu como consequência. las crianças viessem a inaugurar suas próprias formas
De fato, reinstala-se a tensão no pensamento de de inserção na vida política. Tentar produzir as consci-
I1
Freire no momento em que ocorre a transição de uma ências futuras a partir de condições dadas no presen- I
para outra: adultos aceitos como tais, com sua leitura te é dizer que a história -e toda a história- é perfeita-
própria do mundo são, no mesmo movimento, reduzi- mente concebível teoricamente e que o futuro não é
dos à condição infantil de "consciência ingênua". O que senão o desdobramento necessário das condições atu- ~
situa tal pensamento na esteira de uma tradição das ais, para o que as consciências devem ser preparadas.
nossas elites nacionais conservadoras: a de ver o povo Esta, como sabemos, é uma das marcas ideológicas do
como dotado de características essencialmente nega- autoritarismo de esquerda, de reconhecida inspiração
tivas e que, portanto, precisa ser educado para poder hegeliana.
atender responsavelmente à exigência de construção
Mas este Novo encontra-se também comprome- mensão apenas escolar e não imaginou a possibilidade
tido na forma como praticamos a chamada educação de que, mesmo ali onde a educação escolar jamais se
de adultos: ao infantilizar estes adultos através de uma uníversalízou, adultos analfabetos podem ter vita acti-
educação "conscientizadora", o futuro destes adultos va. Mas, diria ela, porque são adultos, não porque são
não seria senão a reprodução de um modelo social e analfabetos!
político já presente na cabeça dos "educadores popu-
lares" de hoje. Uma conclusão aqui se impõe: vivíamos
a "educação popular" como se dela esperássemos a Referências bibliográficas
libertação dos oprimidos; o que descobrimos, ao fim
de um longo período, é que, sob a simbologia extrema-
mente sedutora da "libertação", podia se esconder uma ARENDT, Hannah (1992). Entre o passado e o futuro.
impublicável "vontade de poder". Que a "educação de São Paulo: Perspectiva.
adultos" se encontre, hoje, no Brasil, imersa em uma LOVISOLO,Hugo (1989). Educação Popular: entre con-
verdadeira crise, isto apenas atesta o dito baudelai- ciliação e maioridade. Salvador: UFBAjOEA.
reano de que ela ainda se encontra "numa floresta de
FREIRE, Paulo (1979). Pedagogia do oprimido. Rio de
símbolos".
Janeiro: Paz e Terra.
NOUSS,Nicolas (1985). La Modernité. Paris: PUF.

*** TOURAINE,Alain (1987). Critique de Ia Modernité. Pa-


ris: Fayard.
DOMENACH,[ean Marie (1986). Approches de Ia Mo-
Permanece, porém, no pensamento de Arendt,
dernité. Paris: Ecole Polithecnique.
algo não resolvido: se a política é atividade de adultos
KUNDERA,Milan (1978). L'Art du Roman. Paris: Galli-
que já foram educados, como é possível a política entre
mard.
adultos que jamais foram "educados"? Se reduzirmos
a educação a sua instância puramente escolar -como
espaço pré-político situado entre o mundo afetual da
família e a participação na esfera decisional pública-
somos obrigados a aceitar que esta participação é im-
possível; se admitirmos que a educação é algo que se
pode dar também em inúmeros espaços institucionais
além da escola, a participação política dos "não-edu-
cados" é plenamente possível. O ponto de Arquimedes
da questão é que Arendt pensou a educação em sua di-

172 173
Mas este Novo encontra-se também comprome- mensão apenas escolar e não imaginou a possibilidade
tido na forma como praticamos a chamada educação de que, mesmo ali onde a educação escolar jamais se
de adultos: ao infantilizar estes adultos através de uma uníversalízou, adultos analfabetos podem ter vita acti-
educação "conscientizadora", o futuro destes adultos va. Mas, diria ela, porque são adultos, não porque são
não seria senão a reprodução de um modelo social e analfabetos!
político já presente na cabeça dos "educadores popu-
lares" de hoje. Uma conclusão aqui se impõe: vivíamos
a "educação popular" como se dela esperássemos a Referências bibliográficas
libertação dos oprimidos; o que descobrimos, ao fim
de um longo período, é que, sob a simbologia extrema-
mente sedutora da "libertação", podia se esconder uma ARENDT, Hannah (1992). Entre o passado e o futuro.
impublicável "vontade de poder". Que a "educação de São Paulo: Perspectiva.
adultos" se encontre, hoje, no Brasil, imersa em uma LOVISOLO,Hugo (1989). Educação Popular: entre con-
verdadeira crise, isto apenas atesta o dito baudelai- ciliação e maioridade. Salvador: UFBAjOEA.
reano de que ela ainda se encontra "numa floresta de FREIRE, Paulo (1979). Pedagogia do oprimido. Rio de
símbolos".
Janeiro: Paz e Terra.
NOUSS,Nicolas (1985). La Modernité. Paris: PUF.

*** TOURAINE,Alain (1987). Critique de Ia Modernité. Pa-


ris: Fayard.
DOMENACH,[ean Marie (1986). Approches de Ia Mo-
Permanece, porém, no pensamento de Arendt, dernité. Paris: Ecole Polithecnique.
algo não resolvido: se a política é atividade de adultos
KUNDERA,Milan (1978). L 'Art du Roman. Paris: Galli-
que já foram educados, como é possível a política entre
mard.
adultos que jamais foram "educados"? Se reduzirmos
a educação a sua instância puramente escolar -como
espaço pré-político situado entre o mundo afetual da
família e a participação na esfera decisional pública-
somos obrigados a aceitar que esta participação é im-
possível; se admitirmos que a educação é algo que se
pode dar também em inúmeros espaços institucionais
além da escola, a participação política dos "não-edu-
cados" é plenamente possível. O ponto de Arquimedes
da questão é que Arendt pensou a educação em sua di-

172 173
___ o(1982). Educação como prática da liberdade.
Rio de Janeiro: Paz e Terra.
___ (1990). Pedagogia do oprimido. Rio de Janeiro:
o

Paz e Terra.
___ o(2003). Educação e atualidade brasileira. Cam-
pinas: Cortez.
FREYRE, Gilberto (1967). Manifesto Regionalista. 4ª
ed. Recife: Instituto Joaquim Nabuco de Pesqui- POR QUE AINDA SOMOS FREIREANOS?
sas Sociais/MEC. ENSAIO SOBRE UMA TEOLOGIA LAICA
GRAMSCI,A. (1978). Os intelectuais e a organização da
cultura. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.

JARDIM,Eduardo (201S).Sou trezentos. Mário deAndrade


Vida e Obra. Rio de Janeiro: Edições de Janeiro.
Não há movimento de renovação que, no pr6prio mo-
MACIEL,[arbas (1983). "A fundamentação teórica do mento em que se aproxima do objeto (...] não resva-
Sistema Paulo Freire", in: FÁVERO,Osmar (org.) le para o automatismo das velhas instituições e não
Cultura Popular. Educação Popular. Memória dos tome aforma da tradição. À medida que se define e se
anos 60. 2ª ed. Rio de Janeiro: Graal. precisa, vai perdendo energia. É o que acontece com
PINTO, A. V. (1960). Consciência e realidade nacional. as pr6prias ideias: quanto mais forem formuladas, ex-
Rio de Janeiro: ISEB. plícitas, mais sua eficácia diminuirá. Uma ideia clara
é uma ideia sem futuro. Fora de seu estado virtual, I
PAIVA,V (1980). Paulo Freire e o nacionalismo desenvolvi- 1 11

pensamento e ação se degradam e se anulam: um I1


mentista. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira.
conduz ao sistema; a outra ao poder. Duasformas de 1IIIi
ROSAS,P. (2004). Fontes do pensamento de Paulo Frei- esterilidade e de degradação. Podemos discorrer lon- I
re. Recife: Editora Universitária. gamente sobre o destino das revoluções, políticas ou ~II

ROSENFELD, A. (1976). Mário e o cabotinismo. São outras: s6 uma característica lhes é comum, s6 uma
Paulo: Texto/Contexto. certeza resulta do seu exame: a decepção que suscita
em todos os que acreditaram nelas com fervor.
TOLEDO, C. N. (1978). [SER. Fábrica de ideologia. São
(Cioran. Exercícios de Admiração)
Paulo: Ática.
VERAS,Dimas Brasileiro (2010). Sociabilidades letradas
Petitio principii
no Recife: a Revista Estudos Universitários (192-
1964). Dissertação de Mestrado em História. Reci-
fe: Programa de Pós-Graduação em História, UFPE. °ensaio que segue não trata diretamente de
Paulo Freire (1921-1997) como construtor de ideias

244 245
educacionais, nem se coloca forçosamente "contra" ou trata da crítica à construção, não de um "método" ou
"a favor" de sua obra: o homem e o educador têm, aqui, de um "sistema", mas de uma instituição Paulo Freire. É
importância secundária em nossa argumentação e a isto que estou chamando, aqui, de "freíreanísmo"
invocação, citações ou referências aos seus escritos se Poderíamos tratar o tema a partir de uma So-
darão apenas quando o assunto aqui tratado - o "frei- ciologia das Instituições, o que significaria tratá-lo
reanismo" - assim o exigir. É evidente que não será de forma "positiva", quer dizer, considerar o percurso
possível, num ensaio sobre o tema, ignorar comple- exercido por um movimento ou uma iniciativa social
tamente o papel que o autor pode ter exercido na re- que nasce periférica e marginal e, pouco a pouco, vai
cepção social de sua obra ou na institucionalização de abandonando tal marginalidade, penetrando em práti-
seu pensamento. Rogo, no entanto, como uma espécie cas não oficiais ou informais e passa, em seguida, a re-
de petição de princípio, para que os eventuais leitores ceber um reconhecimento formal e chega, finalmente,
deste texto façam amplo uso de sua inteligência judi- a se constituir em política de estado que não depende
cativa para não incorrerem em nenhuma confusão ou mais de vontades individuais (ou de governos) e ter-
amálgama entre o autor (que atribui a sua obra uma minam recebendo um estatuto legal que assegura sua
significação que não pode impor aos seus leitores) e positividade jurídica. Não é neste sentido que quero
seus epígonos, cuja tarefa de institucionalização de tratar o assunto e, sim, a partir de seu lado, digamos
seu pensamento escapa, em geral, ao poder do autor. "negativo": como perda da força subversiva original,
Porque é disto que este ensaio trata: do pro- sua conversão num ismo característico, com sua feição
cesso de institucionalização do pensamento de Paulo doutrinária e "teológica".
Freire, que produziu uma corrente de seguidores, co- Reconheço que todo "ísmo" é, no fundo, uma
mentadores, divulgadores, pesquisadores e admira- caricatura. Isto significa dizer que estou consciente de
dores reunidos em instituições de ensino e pesquisa e que a obra e o pensamento de Freire também encontra-
que, em nome da preservação da memória intelectual ram expressões de renovação original (sobretudo nas
deste educador, o transformou num "autor": centro ir- metodologias participativas de pesquisa), realizadas
radiador de citações, núcleo onde se concentra as "ín- com grande respeito à sua letra e espírito e atualizan-
tenções", veio de comentários, de exegese, de teses e do aquele saudável movimento que Paulo Freire tanto
dissertações, vendo e identificando na obre do Mestre admirava na obra de Georges Snyders: continuidade e
uma palavra fundamental repleta de indicações e ca- ruptura. Mas, a caricatura tem uma função figurativa
minhos não apenas pedagógicos, mas também éticos, específica e substantiva: ressaltar e produzir em alto
epistemológicos, estéticos, políticos ou culturais que relevo os traços principais de uma personagem ou, no
orientam, mais do que ações educativas, formas de re- nosso caso, de uma corrente pedagógica que se toma
lacionamento intersubjetivo, relações cognitivas com por continuadora de uma obra e de uma reflexão e
o mundo e reflexões sobre práticas individuais ou co- cujas ações estão resultando numa séria ameaça de es-
letivas, privadas ou públicas. Em resumo, este ensaio terilização daquele pensamento. Ao sublinhar tais ca-

246 247
racterísticas relativas a esta ameaça, que eu identifico Não vem de hoje a suspeita de que o "Sócrates"
com sua institucionalização, estou lançando um alerta de Piatão, por exemplo, provavelmente não é fiel ao Só-
à área de conhecimento em que venho trabalhando há crates real. E o homem da palavra viva, pública e dialo-
muitos anos. Mas estou convencido de que - como ad- gal jamais aceitaria a existência de uma 'Academia' ou
verti acima - se separarmos judiciosamente a obra de a transformação da Filosofia em uma disciplina reser-
Freire dos usos e abusos realizados por seus epígonos, vada a uma aristocracia da vida contemplativa; Renan
veremos que a caricatura aqui esboçada cumpre a con- termina o seu "Paulo, o décimo terceiro apóstolo" afir-
tento sua função. mando que o Cristianismo é o sermão da montanha e
não as Epístolas de Paulo! O problema, portanto, pode
Que a obra de um autor, seja ela sistemática
ser assim resumido: o quê e como se faz para que as
(Hegel) ou fragmentária e aforística (Nietzsche), pos-
ideias de um autor se transformem em uma "doutrina"
sa constituir uma instituição (adquirindo, como disse-
altamente institucionalizada? É isto que este ensaio
mos, um ismo característico), não há nisso nenhuma
procurará examinar, tratando especialmente daquilo
novidade: a história das ideias está repleta de exem-
que acima chamamos de freireanismo.
plos. Esta institucionalização aparentemente indepen-
de das intenções que o próprio autor procurou impri-
mir à sua produção e raramente encontra, nele mesmo,
Argumento
expressões de resistência que possam impedir seus
seguidores de promover tal institucionalidade. Hege-
lianismo, marxismo, confucionismo, budismo, grams-
Analisando os manda rins acadêmicos alemães a
cianismo, cristianismo, platonismo ... são exemplos de
partir do fim do século XIX,Fritz Ringer (The Decline
como as ideias podem se constituir em sistemas narra-
of the German Mandarins), os assimilava aos funcio-
tivos (com suas condições de enunciação específicas e
nários-letrados estudados por Max Weber: "uma elite
normatizadas) capazes de dar respostas consideradas
cultural e social que deve seu status menos a direitos ou
válidas a algumas interrogações a respeito do que so-
a uma riqueza hereditária que ao nível de seus estudos,
mos, do como devemos agir, das relações que guarda-
sancionado por instituições e exames". Esta elite cultu-
mos com o mundo de nossas experiências, do que nos
ral depende para sua reprodução, enquanto mandari-
espera, de onde viemos, de como nos interpretamos
nato, do grau de fidelidade e de proximidade que seus
etc. A relação que o pensamento de um determina-
epígonos e discípulos institucionais guardam com a
do autor pode guardar com a instituição que leva seu
figura e a obra do Maítre-à-penser: aqui eles se tornam 111
nome, sugere uma indagação imediata, que é a de sa-
verdadeiros Kulturtrãqer (depositários ou guardiães IIIIIII!

ber qual o grau de fidelidade ou de fidedignidade entre 1

da cultura, para ainda usar os termos de Ringer), no 1111


1

ambos ou, dito de outro modo, se o que se diz em seu


caso, guardiães da obra e do pensamento do Mestre i
nome poderia ser realmente endossado pelo autor.
em torno do qual, não raras vezes, se erige um ver-

248 249
dadeiro culto à personalidade, em geral travestido de Paulo Freire foi alçado -apenas para dar alguns exem-
"preservação do legado intelectual", e se constrói um plos- à condição de Patrono, não de uma instituição,
corpo hierárquico onde a proximidade pessoal ou ex- mas de uma prática social (a educação) e referência
pertise intelectual a respeito da obra do mestre garan- normativa (Marco de Referência] para as políticas pú-
tem as posições superiores. Já os recém-chegados têm blicas federais (confira Documento elaborado por GT
que, enquanto esperam a sua vez, dar mostras contí- da Secretaria de Articulação Social da Presidência da
nuas de fidelidade doutrinária. República)?
O mandarinato acadêmico, composto segundo
uma conformação oligárquica - uma oligarquia do
pensamento -, em torno do qual giraria um mundo Culto à personalidade?
de favores, de dependência pessoal e, in extremis, de
vassalagem intelectual apontaria com precisão para
Podemos falar aqui, de fato, de "culto à persona-
formas conhecidas de controle instítucional, de apro-
lidade", como acabo de sugerir?
priação e difusão de ídeías, definindo as regras de no-
Temo que sim! A expressão, claro, lembra os
meação dos agentes autorizados a falar em nome da
doutrina e fixando o poder de uma burocracia do pen- piores momentos do stalinismo (e das políticas do Co-
samento, com forte espírito corporatívo, criada para mintern), com suas imensas fotos, seus títulos de "no-
breza" (Guia Genial, Grande Timoneiro, Comandante
selecionar membros confiáveis e impedir que a crítica
aos princípios doutrinários corroam as bases onde se Supremo da Revolução etc.),' seus cânticos e odes,
seus desfiles, as narrativas de suas proezas (revolucio-
assenta tal mandarinato.
nárias, sexuais, intelectuais etc.), suas frases lúcidas e
Aquilo que comumente chamamos de "freirea-
arrebatadoras ... Analisando este culto, Gyõrgy Lukács
nísmo" parece se adequar, em grande parte, às condi-
(Carta sobre o stalinismo) mostra que ele funciona sob
ções acima apenas esboçadas. Isto significa que a per-
uma arquitetura piramidal, em que a figura do Líder
gunta (na verdade, secundária, em relação à questão
precisa ser reproduzida cada vez em menor escala até
precedente) "por que ainda somos freireanos?", quer
a base da pirâmide, e o segredo de sua estabilidade
dizer, a que tipo de indagação o pensamento de Freire
está em não deixar que ninguém saia de sua 'posição',
ainda responde, parece que deixou, já há algum tempo,
duvide do valor deste culto ou permita que o sistema
de ser uma indagação "pedagógica": somos freireanos
seja infectado por agenciamento externo (o que não
por razões que, a meu [uízo, deixaram de ter nature-
za "educatíva', "libertadora" ou "conscíentízadora"
Mas, esta questão pode ser completada com uma ou- 1. Em relação a Paulo Freire (o que, a meu conhecimento, não
aconteceu com nenhum outro educador brasileiro), também
tra, já anunciada no início deste ensaio e sem a qual
lhe foram atribuídos títulos que caracterizam o chamado "culto
a primeira permaneceria incompleta: qual o sentido à personalidade": "Cidadão do Mundo", "Andarilho da Utopia",
e as consequências desta ínstítucíonalízação, em que "Andarilho do Óbvio","Educador do Mundo" ...

25° 251
deixa de ter semelhança com a ordem mandarinal). O dizia Freire": "segundo Paulo Freire", "de acordo com
que está em jogo, aqui, já havia sido observado quatro Freíre" ...), do que de uma avaliação mais severa, loca-
séculos antes pelo grande amigo de Montaígne, Etíen- lizando e datando as linhas fortes de seu pensamento
ne de Ia Boétie (Discours de Ia servitude volontaire), em no contexto de uma atmosfera intelectual que fez sen-
que é a identificação com o Um (ou Uno) que assegura tido e tem suas raízes em uma determinada quadratu-
a fidelidade servil, a dependência moral e intelectual ra histórica, mas que hoje necessitaria ter sua validade
onde tudo pode desabar bastando que alguém diga conceitual demonstrada. Não é, como me disse uma
"Não!'; que retire seu ponto de apoio. freireana devota, "porque existem ainda oprimidos que
Frequento, no meio universitário, colegas em a obra de Paulo continua válida"? Uma filosofia ou uma
quem posso constatar pelo menos uma coisa que cha- pedagogia não são "superadas" (um termo que remete
ma a atenção, sobretudo em se tratando de uma meio a uma determinada concepção de história das ideias)
que se distingue, em sua condição profissional, por sua porque as "condições objetivas" de que trata não exis-
exigência "crítica": diz respeito à sacralização do nome tem mais, e sim, porque outras ideias (filosóficas ou
de Freíre, de sua obra e de seu legado pedagógico que pedagógicas) propuseram novos conceitos capazes de
rara e excepcionalmente se fazem objeto de uma ava- ver a realidade de outra maneira, renovando, assim, a
liação isenta e rigorosa. "Paulo é íncrítícável!", disse- nossa própria capacidade de pensar aquelas "condi-
me certa vez sua cunhada, Maria Adosinda (Dosa), ções objetivas", que podem, inclusive, permanecer as
uma conhecida educadora pernambucana já falecida mesmas (embora, aqui, fosse necessário discutir estes
1

e de quem fui amigo durante muitos anos; afirmação termos e averiguar até onde a própria objetividade não 11
1

talvez perdoável pelo grau de admiração e de proxi- seria um efeito de nomeação, de linguagem. Discussão
que não faremos aqui). Mas claro que também seria 1II
midade afetiva que os unia. De fato, fora passagens ra-
pidíssimas mostrando algumas fragilidades do pensa- possível fazer o contrário: antes de propor pedagogias
mento de Freire numa época de derrocada das figuras pastorais ou salvacionistas, examinar se as formas
do Sujeito, críticas em geral realizadas pelas correntes da dominação ou opressão (as célebres "condições
pós-estruturalistas, ou algo mais antigo, como a vín- objetivas") continuam as mesmas, se na transição da :I!I'I

culação de uma fase de seu pensamento ao ideário sociedade do trabalho para a sociedade do consumo, :I!I

nacional-desenvolvimentista, o que fez de Vanilda Pai- a estratégia de administração pulsíonal, com sua éti-
va ajudas lscariotis do freireanismo, a obra de Frei- ca correspondente e fabricando determinadas dispo-
re posterior à Pedagogia do Oprimido foi objeto mais sições de espírito -projetos de subjetívação- podem
de incontáveis entrevistas com amigos e admiradores ainda ser consideradas como um problema de "conscí-
(Shor, Faundez, Brandão etc.) ou partiu para a cons-
trução de "novas" e pouco desenvolvidas "pedagogias" 11

(da Autonomia, da Indignação, da Esperança), mas, so- 2. o argumento lembra aquele de Sartre a respeito do marxismo,
"A filosofia insuperável de nossa época, porque as contradições
bretudo, objeto mais de citações ad nauseam Ccomo que a produziram ainda não foram superadas".

252 253
ência" (ingênua ou crítica). De qualquer maneira, esta com a realidade são aqueles fornecidos pelo próprio
camaraderie freireana termina por anular exatamente sistema doutrinário, o que impede o fiel de ultrapassar
aquilo que a obra dele tanto exigiu: a vigilância crítica! os limites mentais oferecidos por aquele corpus, algo
Menos perdoável, no entanto, porque ratifica a bastante semelhante às célebres autocrfticas comunis-
suspeita de culto à personalidade, é ver espalhados nos tas ou à confissão cristã, descritas e analisadas por Pe-
centros de educação deste país, imensos pôsteres da- ter Berger (Perspectivas Sociológicas). É isto que estou
quele educador, com sua longa e profética barba -como chamando também de 'apelo emocional e ideológico'
um personagem saído de uma página de Amós- sobre que os clichês freireanos implicam. Aqui também resi-
fundo de uma frase qualquer, em geral de forte apelo de uma das formas "terminais" da institucionalização
emocional e teológico. Coisas como "ninguém liberta de um pensamento: o cliché, a frase batida e rebatida,
ninguém "; "a educação não muda o mundo, muda as cuja função é produzir os automatismos do pensar,
pessoas "; "todo ato educativo é um ato político" ... - e impedindo a avaliação distanciada e judicativa dos
poderíamos multiplicar os exemplos!- atestando a in- enuncíados.' Numa palavra: o que era, no início, po-
teressante operação intelectual posta em prática pelos tencialidade crítica, aqui se transforma em operação
freireanos: realizar o trânsito de uma pedagogia com ídeológíca,' oferecendo antecipadamente as respostas
pretensões soteriológicas para uma teologia laica, com às indagações e evitando a tarefa do pensar.
suas fraternidades, seus códigos identífícatórios, seu
léxico, sua vulgata, seus oficiantes e, finalmente, a sa- Os lugares santos
cralidade com que o Seu nome é invocado, Sua "pre-
sença" lembrada, Sua imagem cultuada.
Como não poderia deixar de ser, a transforma-
ção de uma Pedagogia em uma Teologia Laica exigia a
Fidelidade doutrinária sacralização de certos lugares onde a palavra e as prá-
ticas do Mestre se exerceram. Embora Paulo tivesse es-
Este culto, tão comum nos centros e institutos tado muito rapidamente em Angicos (RN), na abertura
que levam seu nome, exige, para assegurar seus meca- do curs9 de alfabetização de adultos que projetaria o
nismos de reposição identítáría, o que chamei acima "método" nacionalmente (1961), a casa onde se pas-
de fidelidade doutrinária. Essa fidelidade não significa sou a experiência foi preservada, nela se faz reuniões
forçosamente a proteção dos pressupostos da pedago- frequentes em memória do que ali se passou, indivídu-
gia com vistas a torná-Ia infensa à própria realidade, os ainda vivos que participaram do experimento são
imune a qualquer possibilidade de contaminação; nem frequentemente solicitados a dar depoimentos sobre
apenas a verificação constante do grau de respeito aos
compromissos assumidos pelos oficiantes. Significa 3. Trabalhei o tema do "Clichê" em artigo publicado na Revista
que os instrumentos conceituais de que se dispõe para Educação e Realidade, UFRGS.(2014).
julgar a sua validade e para avaliar as relações dela 4. Usoo termo "ideológico"na acepção de H.Arendt (Opensar) e não
na de Marx (falsa consciência ou ideias da classe dominante).

254 255
I11

as vivências daqueles gloriosos dias de convívio com a ção" freireana no processo de sindicalização rural (um
I
presença física do educador, como se fossem verdadei- indicador à época muito valorizado), foi insignificante! II

ros apóstolos a difundir a sua palavra e as suas práticas O Sítio da Trindade (Recife), sede recifense do
e, sobretudo, a rememorar o milagre que ali ocorrera. Movimento de Cultura Popular, é outro destes luga-
Sim, porque a ideia de que era possível se alfabetizar res sagrados do freireanismo, apesar do afastamento ~
em 40 horas, bastando se ter vontade política e méto- do Mestre daquele Movimento, sobretudo, depois da
do adequado às condições sociais dos educandos, tem publicação da cartilha (Livro de Leitura para Adultos).
algo de milagroso. Aliás, sabemos muito pouco sobre Após a redemocratização (1985), a Fundação Guara-
o destino posterior daqueles angicanos alfabetizados rapes - o sucedâneo conservador do MCP,criado em
pelo "método": se desenvolveram suas habilidades lei- 1965- voltou a funcionar naquele Sítio e o Presidente
toras ou se as perderam. Neste último caso, os freirea- desta Fundação, o Professor João Francisco de Souza
nos teriam sempre o argumento providencial de que a (a quem Paulo Freire dedicou, entre outros, o livro
ditadura impediu o progresso de alfabetizaçãojcons- Pedagogia da Autonomia) decorava sua sala com uma
cíentízação, o que, mais uma vez, livraria o freireanis- verdadeira galeria de fotos do Santo Pedagogo de sua
mo do cotejamento com a realidade." devoção. A sala de trabalho de Freíre, na PUC-SI',mui-
Angicos tornou-se, para todos os efeitos, a Jeru- to tempo após a Sua morte (1997), ainda ostentava à
salém do freireanismo, o lugar em que ocorreram os porta nome e foto do Patrono.
primeiros "milagres"," Pesquisas, no entanto, mostram Os Templos onde se oficia a palavra e a memó-
a fragilidade deste mito (confira Gerhart 1979; Lyra ria do Mestre são, hoje, os institutos e centros "Paulo
1996, sobre Angicos, Harasim e Facundo 1983, sobre Freíre" espalhados por este vasto e lucrativo mun-
a Guiné Bíssau, apud Stauffer 2000). Em Angicos 70% do. Transformado em marca registrada, diria mesmo
dos 122 participantes passaram no teste final de alfa- numa franchise, o selo PF empresta a tais institutos
betização e 87% no de politização (Gerhart 1979. Id.). o valor simbólico agregado para se obter dos cofres
Mito, aliás, acrescido da ideia de que alfabetização e públicos financiamento para projetos de educação
consciência política se adquiriam no mesmo processo. "popular" cujos resultados são, a rigor, inavaliáveis
Meu colega, André Gustavo Ferreira (UFPE), estudioso (níveis de consciência crítica, transitividade da cons-
da matéria, observou que o impacto da "conscíentíza- ciência, capacidade de problematízação, cidadania
ativa), mas que rendem "relatos de experiência", sim-
pósíos, congressos, pesquisas, publicações, prestígio
5. Este argumento contrafactual ("Se não fosse a ditadura ...") foi pessoal e venda de projetos de Educação Popular, com
abundantemente utilizado pelos membros do MCP.Ver entre-
vista de Germano Coelho, ex-Presidente do MC?,ao Jornal do
sua promessa de formação de consciências "críticas e
Commércio (Recife) em 29 de março de 2014. ínterveníentes", que trazem para alguns oficiantes do
6. A "World Conference on Literacy and Society" prevê em tor- fereireanismo mais do que distinção simbólica ou ex-
no de 250-400 horas para que analfabetos possam chegar ao
"Functíonal Literacy Grade" da Unesco. pectativa de "inéditos viáveis".

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o "Programa" metodo/6gico de consciência lndlvldual e condição histórica. Mas
do freireanismo (Recife 1963) não é qualquer consciência individual que interessa
aqui, mas apenas a dos "proletários e subproletários"
que mais tarde ganharão o nome genérico de "oprimi-
Em abril de 1963, apareceu no n° 4 da revista dos". Esta condição não se aplica, por exemplo, a um
Estudos Universitários (Revista de Cultura da Universi- intelectual como o próprio Freire, que já se encontra
dade do Recife), um longo artigo de Paulo Freire onde, do lado da transitividade crítica!
passado todos os anos que nos separam dele, pode-se
Do lado ainda da consciência individual temos
constatar que ali residia o balbucio de todo o progra-
os célebres termos com que Freire nomeia a consciên-
ma "metodológico" do freireanismo. Se, no mesmo
cia (dos Outros), a da transitivação-ingênua, se mer-
número, o professor [arbas Maciel, auxiliar de Freire
gulhada nas estruturas objetais da sociedade fechada
na SEC-UR, propõe um "Sistema Paulo Freíre" (uma
(homem -ob]eto), ou de transitivação-crítica, quando
verdadeira miscelânea ideológica de que trataremos
emerge para a sociedade aberta e torna-se "sujeito de
mais adiante), nosso educador propõe o seu "método",
sua própria história" (homem-sujeito). Tudo acompa-
também elaborado no molde de "etapas". Ali, Freire
nhado de uma rápida e curiosa nota sobre a "apetêncía
deixa claro que o "método" supõe uma epistemolo-
educativa das populações urbanas" e "certa inapetên-
gia inteiramente centrada numa filosofia do sujeito:
cia das rurais, ligada à intransitivação de sua consci-
o portador último das significações, detentor de uma
ência" (como se o meio geográfico, rural ou urbano,
"consciência" sobre a qual ele pode agir e transformar,
definisse prontidões de aprendizagem segundo "ape-
e onde se concentra a possibilidade de tratar o mundo
tências educatívas'T).' E para completar este quadro
como algo a ser transformado, retomando a clássica
de claríssima inspiração dual-estruturalista e sístê-
distinção epistemológica do sujeito-objeto. A origi-
mica, banhado em iluminismo pedagógico, a distinção
nalidade do "método", no entanto, está em promover
entre povo e massa (provavelmente extraída de suas
uma curiosa transposição -na verdade, já presente
leituras de Ortega y Gasset que inspirara, com o seu A
nas formulações do ISEB- em que consciência individu-
Rebelião das massas de 1930, toda aquela geração de
al e realidade nacional terminam por se encaixar em
intelectuais, inclusive os Isebianos).
modelos de "transítívídade" semelhantes! Do lado da
É surpreendente, neste artigo, ver Freire reto-
segunda (realidade nacional), a ideia de que o Brasil
mar a construção que [arbas Maciel fará em artigo na
vivia um Trânsito entre o colonial (inautêntico) e o
mesma Revista, evocando a teoria do reflexo condicio-
nacional (autêntico), entre a sociedade fechada ("sem
nado de Pavlov como "uma das etapas da relação dos
povo"), marcada pelo latifúndio e a sociedade aberta
que a promessa democrática indicava. Em cada uma
destas condições sócio-históricas a preocupação está 7. A tese de que o meio geográfico pode determinar certas dispo-
centrada na correspondência, hegeliana, entre forma sições psicológicas é antiga entre nós e teve, entre seus mais
influentes promotores, Euclides da Cunha.

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homens com a realidade", teoria que inspirava um dos sobretudo quando se tenta realizar o tour de force de
fundamentos de seu "sistema". Francamente, teorias pa- juntar sistema com libertação.
vlovianas -base das correntes comportamentalistas e O problema é saber se o Mestre tinha consciên-
que nos remetem, no campo pedagógico, aos anos som- cia, naquele momento, de tais riscos e até onde ele po-
brios do behaviorismo e do tecnicismo- são absoluta- deria intervir sem deslegitimar sua própria pedagogia
mente incompatíveis com concepções dialogais de edu- que, como ocorre com certas "criaturas", começava a
cação assentadas sobre fenomenologias da consciência se tornar independente de seu criador;" Dito de outra
(intencionalidade). Quem viu, por exemplo, o filme La- forma, até que ponto Freire poderia ter tido a coragem
ranja Mecânica (Stanley Kubrick) sabe o que aconteceu de dizer como Marx que "Seé isto o fretreanismo. então
com o rebelde Alex (MaIcolm MacDowell) após o trata- eu não sou um freireano"!
mento pavloviano que ele recebeu! Juntar dialogicidade
com pavlovianismo é tentar a quadratura do círculo!
O que vai ficando evidente, desde os primeiros Temas geradores e universo vocabu/ar
ensaios do método e do sistema é este desiderato de
nomear, de qualificar a consciência do Outro e buscar
em supostas teorias científicas, ou entendidas como No entanto, a questão acerca de ter ou não cons-
tais, o substrato que permitiria oferecer graus eleva- ciência dos riscos contidos na recepção social de qual-
dos de legitimidade institucional à pedagogia. quer obra, como já afirmamos, remete a um enigma
As teorias ditas sistêmicas, de onde deriva o "ges- moral dificilmente decifrável.
tionarismo" atual- e digo isto consciente da formulação Naquele que eu considero um verdadeiro pro-
simplista que segue, mas suficiente para o caso- enten- grama-manifesto do freíreanísmo, o artigo a que me
de que as instituições são uma espécie de caixa racío- referi acima, Freire desenvolve a ideia que conhecerá
nalizante onde nós introduzimos insumos ou fomentos uma grandiosa fortuna pedagógica: a das palavras e
(input) que se transformam no seu interior e nos forne- temas geradores.
ce, ao final, um resultado previsto no plano inicial (ou- Volto a insistir: há algo que chama a atenção no
tput), mesmo que aqui se trate de consciências. Vejo isto fato de que Sócrates (mas também Jesus) não tenha es-
menos em Freire do que em [arbas Maciel, e diria mes- crito uma única palavra, embora fossem pessoas cul-
mo que o próprio Paulo, paulatinamente consciente dos tas e letradas. Não sei onde se encontra a razão para
enganos e riscos que estes primeiros ensaios de sua pe- tal decisão, mas é possível supor que ambos estavam
dagogia comportavam, passou boa parte de seus encon- convencidos do valor da palavra viva, no interior de
tros com os interlocutores que cruzou em seus "livros
dialogados" a tentar desfazer alguns mal-entendidos e
8. Como afirmaria jarbas Maciel, no artigo citado, sustentando
perigos que as concepções sistêmicas podem produzir,
a "irreversibilidade do sistema" que não dependeria mais das
vontades individuais.

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um "jogo de linguagem" em que gestos, entonações, revestidas de uma nova roupagem supostamente li-
inflexões vocais, expressões faciais faziam parte de bertadora da consciência porque capaz de desvelar o
uma intersubjetividade direta e sem intermediários opressor hospedado em cada um deles.
ou tradutores. O diálogo, aqui, alcançava sua dimen- No entanto, quem estaria autorizado a recolher
são mais precisa: ele era travessia de algo pela palavra aquelas palavras/temas-geradores e "devolvê-Ias" sob
(Dia Logein, em grego) e caracterizava aquele mais im- uma formatação "crítica" aos seus usuários habituais
portante pilar da vita activa a que se refere Hannah que em suas vidas cotidianas jamais fariam semelhan-
Arendt, a Ação, em que os homens se tornam visíveis te uso semântico? Há, aqui, algo que lembra a Alegoria
uns aos outros através de sua palavra: Ação fugaz que da Caverna (República. Livro VII): esta libido educandi
se desfaz no momento em que eles, os homens, se presente em toda pedagogia pastoral, que sempre su-
separam. Mas "entre eles" - inter homines esse - está põe (mas esta talvez seja a condição de toda Pedago-
o Mundo, não como mundo geográfico e físico, mas gia!) que a consciência do outro é insuficiente, precária
como Mundo de significações. O problema, a meu ver, ou ingênua. Desde Platão que praticamos, enquanto
se dá quando palavras que tem um sentido e um signi- intelectuais, uma espécie de ortopedia da consciência
ficado no interior de uma malha semântica e lexical de do outro que marca as práticas pedagógicas com o tim-
uma cultura de classe ("popular") e cujas articulações bre de uma promessa: a de que ao final de um dolo-
só são inteiramente compreensíveis no interior desta roso percurso de imersão em si mesmo (reconhecer
cultura e daquela malha, são selecionadas por alguns que sua interioridade-consciência está contaminada
intelectuais-educadores, segundo critérios estranhos por ilusões e aparências) se vislumbra a promessa da
àquele universo linguístico (suas dificuldades ortográ- libertação destas invisíveis dominações. O segredo
ficas ou fonéticas), listadas segundo seu grau ou poder (ou melhor, a libido potentiae) desta operação reside
de "conscíentízação", quer dizer, de se fazerem objeto no fato de que como não posso enxergar diretamen-
de um "desvelarnento" ideológico de coisas aparente- te meu "interior-hospedaria-de-opressores" (Santo
mente escondidas à consciência do homem ordinário Agostinho dizia que a alma não pode ser investigada
-mas visíveis por aquele que as seleciona- e capazes pelos sentidos), e ele só pode se revelar pelo uso da
de, se trazidas à luz, favorecer emergências e transitivi- linguagem, então, é modificando o sentido que dou a
dades desta mesma consciência. Não é mais o Sócrates cada palavra que remeterei minha consciência à auto-
ou o Jesus da filosofia viva, da reflexão vivida, da vida avaliação, numa operação que nos reenvia à tradição
refletida, mas o Platão ou o Paulo de Tarso da doutri- filosófica do hegelianismo (refiro-me ao tríptico alie-
na escrita, reservada e ensinada: recolher palavras, nação-auto consciência-libertação ).
selecioná-Ias em função de um impreciso potencial No início dos anos 60, quando em Recife ainda
conscientizador, ou em função de uma certa concepção se iniciava a experiência do Mep (Movimento de Cul-
do social (e da relação entre consciência e realidade) tura Popular), confeccionou-se uma cartilha (Livro de
significa devolver aquelas palavras aos seus usuários Leitura para Adultos) em que as palavras-geradoras

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já vinham definidas antecipadamente, o que provo- va a aparência democrática (dialogal) da pedagogia,
cou, como dissemos, um certo afastamento de Paulo mas impõe significados (segundo critérios de legitimi-
Freire daquele Movimento, sob a alegação de que sem dade ideológica discutíveis) que não são mais os dos
o respeito ao universo vocabular dos educandos, de educandos. Há, a propósito, uma passagem em André
onde aquelas palavras deveriam ser extraídas, todo o Malraux (Anti-memórias) em que, em seu encontro
princípio em que a alfabetização "conscíentízadora" se com Mao Tsé-Tung, este teria dito ao grande escritor
fundava, estaria comprometido. Era, pois, para Freíre, francês que "precisamos devolver às massas, de forma
uma questão de princípio político-pedagógico e não clara e organizada, aquilo que recebemos dela de for-
de estratégia educativa? (confira Entrevista a [anete ma obscura e dispersa". Embora a "tese" pareça possuir
Azevedo, 1981, e também o artigo citado em Estudos um elemento "revolucionário" e educatívo, no fundo
Universitários 1962). esconde um contrabando ideológico em que a ativida-
É preciso ver essa recusa de Freire com precau- de crítica só começa após esta intervenção intelectual,
ção e distanciamento. O problema não estava em pa- e não antes, quando o uso apenas ordinário das ex-
lavras definidas antecipadamente, ato supostamente pressões impede processos de "conscíentízação" Nes-
"autoritário" e que contrariava os fundamentos de seu te exato sentido as pedagogias ditas bancárias ou da
ideal pedagógico. A questão se situa em outro ponto, transmissão são mais honestas em seu "autorltarismo",
de calado mais profundo, e que apenas esbocei acima: Mecanismo sutil, aqui reside o ponto inicial da institu-
na extração das palavras de seu contexto linguístico cionalização de um pensamento: sua constituição em
original ("popular"), sua reapropríação por intelec- "método",'?

tuais-educadores vincados por certas opções político


-pedagógicas, sua ressemantização (com perdão pela
expressão batida!) em uma formatação ideológica dis- Os Apóstolos
tinta e, finalmente, sua devolução ao contexto original,
agora banhadas em intenções políticas e pedagógicas
muito diferentes de seu uso linguístico original. Isto, a Existem graus diferentes de proximidade das
pessoas com a figura do Mestre: ter participado da San-
meu ver, coloca em questão a ideia mesma de "partir
ta Ceia conferiu aos 12 Apóstolos do Cristianismo uma
da realidade do educando" que, desta forma, preser-
distinção hierárquica e um grau de santidade superior
que os fez, justamente, "apóstolos" ("mensageiro", "o
9. o mais surpreendente, a este respeito, foi revelado pelo pro-
fessor da Universidade de Berna (Suissa), Martin Stauffer,
que elaborou tese sobre Paulo Freire e a Escola Nova no Bra- 10. Paulo Leminski, em seu fabuloso Catatau, faz o filósofo René
sil (Stauffer, 2002), mostrando que Freire, diferentemente de Descartes (que ele chama pelo nome latino, Cartesius), perdido
sua posição a respeito do MC?,na Guiné-Bíssau permitiu que no Pernambuco de Maurício de Nassau, dizer que "Mas ora sei
os militares "revolucionários" definissem os temas geradores! que todo método é método de preservar-se da irrupção de novas
(Stauffer 2002; Harasim 1983 e Facundo 1984). realidades".

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que é enviado"), um deles, inclusive, tornando-se o piar, tais hagiografias cumpriram, na última parte da
chefe da instituição (Pedro). Aqueles que gozaram da Alta Idade Média, profunda função ...pedagógica! Vidas
amizade, do amor e da proximidade, aqueles a quem o sem manchas nem pecados (Agostinho, claro, é um caso
Mestre dedicou obras, a quem ele agradeceu por esta à parte!), aquelas hagiografias mostravam exatamente
ou aquela "contribuição" se situariam nesta categoria aonde deveríamos chegar caso aquela exemplaridade
apostólica da proximidade imediata. fosse seguida: é nisto que são menos narrativas hagio-
Quem, por acaso, acompanha as andanças e in- gráficas do que pedagógicas. Quem leu, por exemplo,
tervenções da segunda esposa de Freire, a senhora Ana a vida de São Francisco -O Pobre de Deus- escrita por
Maria Freire (Nita), que se tornou, para todos os efei- Nikos Kazantzakis, surpreende-se e deleita-se com as
tos, a legatária oficial e Grã Sacerdotisa do "Movimento passagens de sua relação com Clara e do desejo erótico
Freireano", sabe que sua presença em encontros e co- reprimido e sublimado em santidade: um santo com te-
lóquios tem apenas a função eucarística do "Reconhe- são! Vi o público recifense delirar quando Anita Freire
cimento", do "Ele está entre nós"; e logo perceberá que relatou o seu encontro na sala do Mestre na PUC-SPem
suas intervenções não se dão mais no nível da discus- que ele, surpreendentemente e com uma "ousadia ja-
são das ideias daquele educador, de sua validade atual mais anteriormente demonstrada" - as palavras são da
ou de seu confronto com um mundo completamente própria! -, disse-lhe "Você hoje está muito bonita!". Era
transformado e carente de novos conceitos, mas em como se a plateia descobrisse naquele momento que o
relatar momentos de sua vida pessoal com o Andari- mito também tinha desejos iguais aos nossos ...
lho do Óbvío." Não há nenhuma novidade nisto e quem
quer que tenha lido algo sobre a vida dos santos, sabe
As fontes do Mestre
que nestas hagiografias está em jogo uma tentativa de
construir uma exemplaridade (logo, uma distância em
relação ao comum dos mortais) e, ao mesmo tempo,
Uma das funções apostólicas é exatamente
de fazer com que o Santo não se afaste completamente
guardar ciosamente a palavra original do Mestre e
de seus seguidores, caso toda referência a ele se desse
dar início à interminável exegese da sua obra. Corrijo-
apenas no nível elevadíssimo de sua moral, de seus mi-
me: talvez menos apostólica do que evangélica! Achei
lagres, de sua santidade: é preciso trazê-Io para perto,
bastante "revelador" quando o Professor Paulo Rosas,
relatando e recontando sua vida de homem, ao mesmo
que acompanhara Freire desde o Serviço de Extensão
tempo, comum e exemplar, a qual todos podem com a
Cultural da antiga Universidade do Recife, escreveu,
"graça", ou, no nosso caso, com incansável esforço de
numa edição bilíngue (francês-português), uma pe-
militância pedagógica, alcançar. Moralizante e exem-
quena brochura sobre as leituras de Paulo Freire: uma
lista das obras e referências que Freire supostamen-
11. Confira Chronicles of Life. My Life with Paulo Freire. Nova York: te tinha lido ao longo de seu itinerário, realizada por
Peter Lang, 2001.

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quem tinha acesso a sua biblioteca. A tarefa não deixa Por outro lado, só se pode afirmar e reproduzir
de ter a sua importância, na medida em que o Mestre uma política de identidade e pertencimento (que exige
jamais indicou as suas fontes: não há praticamente na dos fieis não apenas a observância da doutrina, mas
obra de Freire nenhuma bibliografia sistemática, cita- também a contínua e pública reafírmação desta fé)
ções referenciadas ou indicações de fontes de consulta nomeando e designando o Outro que a ameaça, o que
que pudessem ajudar o leitor ou seguidor a rastrear mostra que toda política de identidade constitui, no
e conhecer os autores que alimentaram aquele "edu- mesmo movimento, uma política de exclusão e conde-
cador-pedagogojpedagogo-educador" (Souza). O que nação. A consequência é imediata: ser crítico do freire-
isto quer dizer ou revela? O que estou fazendo quando anis mo é ser contra uma educação que liberta, funda-
apago ou omito os rastros de minhas influências inte- da no diálogo, é aderir ao reacionarismo da "educação
lectuais? bancária", é querer manter os 'oprimidos' no interior
Acho que o segredo deste ocultamento reside de suas cadeias ideológicas. Mas, na verdade, os reais
aqui: a palavra começa comigo, sou a origem, o in- "inimigos" do freireanismo não são os conservadores
causado; é a partir de mim que uma nova mensagem ou reacionários políticos ou pedagógicos, facilmente
(evangelho) se anuncia (denunciare anunciar era tam- identificáveis: são aqueles que levantam justificadas
bém a tarefa dos antigos profetas), e sempre que os suspeitas a respeito das ideias e promessas da moder-
homens se afastarem da palavra original, é a ela que nidade (liberdade, sujeito, consciência, revolução, alie-
devem voltar para impedir toda heresia ou apostasia. nação) onde o freireanismo assenta suas convicções:
Tal ocultamento imprime ao mesmo tempo um grau de sem a noção moderna de "sujeito" e seus atributos de
originalidade e de ineditismo que vincam o seu pen- consciência e liberdade - que os freireanos não discu-
samento com a marca da ruptura e do novo, o que, no tem! - a doutrina simplesmente desaba." E é por isto
caso de Freire, está muito longe de ser verdade. que os encontros freireanos (congressos, seminários,
colóquios) estão praticamente reservados aos segui-
Se, no entanto, o Mestre não citava suas fontes,
dores, àqueles que louvarão a obra do educador, àque-
os epígonos precisam citar o Mestre e fazê-lo à exaus-
les que farão "relatos de experiências exítosas" basea-
tão e, com isto, obter um duplo efeito: reproduzir a sua
das na obra de Paulo. Estes "relatos de experiências"
autoridade e legitimar seus próprios escritos. Aqui, ele
se torna, para usar um termo foucaultíano, um "Au-
tor": objeto do comentário, da exegese, da hermenêu- 12. É muito significativo que nas longas intervenções de Freire
tica infinita, da citação; centro unitário das intenções, (Universidad de San Luis), colhidas por Roberto Iglesias (El
grito manso. Confira bibliografia), o pedagogo pernambucano
fundando escola, autorizando a palavra, definindo o
apenas se refira ao "pragmatísmo neolíberal" como a única
campo de investigação, protegendo as fronteiras deste ameaça "fatalista" aos propósitos "esperançosos" da Educação
campo e, ao final, constituindo-se na autoridade que Popular. Não há nenhuma referência às críticas pós-estrutura-
listas à filosofia moderna: dar uma resposta aos "neolíberaís",
credencia ou não a palavra dita em Seu nome.
afinal, era muito mais fácil do que aceitar que os fundamentos
conceituais de sua pedagogia tinham se tornado problemáticos.

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tem uma forte característica "crísmática" onde se rea- uma "escola" (acrescida de seu 'ísmo' característico),
firma o espírito extático de quem, a cada "experiência", com seus epígonos exercendo sobre a obra uma verda-
comprova e confirma sua fé na doutrina pedagógica. deira exegese, procurando aqui e acolá em seus textos,
Encontros não raras vezes celebrativos e marcados passagens que desvendassem uma nova face do real
por um espírito de seita que faz lembrar a ironia da ainda não comentada ou desvelada. O nó da questão
economista inglesa [oan Robinson a respeito de outra está todo aqui: ter se constituído, inicialmente, numa
"seita": "O marxismo é o ópio dos marxistas!". Pedagogia e, em seguida, numa Teologia laica, tema ao
qual voltarei no final deste ensaio.

***
00 método ao sistema

Quem lê e relê sempre as mesmas obras termi-


na por adquirir uma certa tranquilidade em sua relação Já nos primeiros passos da pedagogia freirea-
com a realidade: há sempre uma frase daquele autor na, no início dos anos 60, o professor da UFPE (então
lido e relido capaz de conter a impulsiva e inesperada Universidade do Recife), [arbas Macíel, que participara
realidade com o bridão de suas rédeas teóricas. Quando com Paulo Freire da experiência do Serviço de Exten-
isto acontece é porque o autor, caso já tenha falecido, vai são Cultural daquela Universidade, no mesmo número
conhecer sua segunda "morte" que corresponde, justa- da Revista Estudos Universitários (1963, n° 4, pp. 25-
mente, à institucionalização de seu pensamento. 60, abril/junho) propõe não mais um "Método" Pau-
Marx, repito, já no final de sua vida percebeu lo Freíre, mas um "Sistema" Paulo Freire de educação
os perigos contidos neste tipo de institucionalização para o quê ele elabora, neste artigo, sua "fundamenta-
deformante e na sua consequência mais visível (o es- ção teórica". No que consistia?
vaziamento de sua complexidade conceitual) e, criti- Tal "sistema" se desenvolvia em seis etapas:
cando os "materialistas" franceses do final dos anos de
1870, dizia numa carta a Engels: "Tudo que sei é que eu
não sou marxista". Freire vivo talvez pudesse dizer a a) alfabetização infantil;
mesma coisa! Mas se ele o tivesse feito é porque teria b) alfabetização de adultos;
admitido que seu pensamento tornara-se, para o bem c) ciclo primário rápido (textos antológicos
ou para o mal, uma Pedagogia (quer dizer, um conjun- reduzidos, rápida formação profissional);
to teórico institucionalizado, estruturado e estrutura- d) universidade popular (Serviço de Extensão
dor que tenta enquadrar as experiências educativas Cultural);
reais e que pode, ou não, estar aberta à sua própria e) Instituto de Ciências do Homem da Univer-
revisão conceitual), uma "corrente", um "movimento", sidade do Recife e,

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f) Centro de Estudos Internacionais da Uni- democratização possível (da comunicação cultural) é o
versidade do Recife. Aqui, neste longo (e Cristianismo" (!), ou coisas como "o homem analfabeto
confuso!) artigo podemos assistir, ainda na é apenas parcialmente um ser de relações". O mais inte-
dor do parto de uma pedagogia, sua primei- ressante deste "Sistema" é que "uma vez posto a funcio-
ra tentativa de ir além de um "Método" para nar, não para mais, é processo irreversível e que, dada a
constituir um "Sistema" abrangendo não sua grande objetividade, independe da atuação isolada
apenas todas as etapas da escolarização dos indivíduos que o apliquem ou o queiram deformar".
das camadas populares, como também o Chega a ser desconcertante! Mas há algo de revelador
desejo de internacionalizar (universalizar) neste redemoinho ideológico jarbista: a ideia, não de
todo declarada, de que um sistema pedagógico possa
um pensamento supostamente entendido
ter a mesma natureza de uma religião, o Cristianismo,
como portador de uma resposta pedagógi-
entendido como o grau máximo de humanidade autên-
ca para a "hominização" do homem.
tica. Estavam lançados os fundamentos "teóricos" para
a transformação do freireanismo em uma teologia laica.
o artigo é uma verdadeira pérola de ecletismo
De resto, qual a ambição de todo Sistema? Pre-
teórico, misturando Cristianismo, lógica tomísta-arísto-
tender que toda a movediça e imprevisível realidade
télica, lógica apofântica (aquela capaz de esclarecer ou
do mundo (a passada, a presente e também a futura)
iluminar a realidade através de proposições verdadei-
possa caber no interior de uma explicação global; su-
ras), teoria escolástica da suposição formal e material,
por que toda irrupção histórica do não-previsto seja
teoria do reflexo condicionado de Pavlov, pragmática
entendida como dísfunção sistêmica, "Sistema'; com
existencial concreto-sensível-vegetatíva (!), teoria dos
efeito, é o nome do medo que temos da emergência da
sistemas ..., uma verdadeira salada ideológica que che-
incerteza e da imprevisibilidade que as relações huma-
ga a causar espécie o fato de o próprio Paulo Freire ter
nas comportam.
aceito esta vertigem protofilosófica do Professor [arbas
Maciel como fundamentação teórica de seu "Sistema". O
fato é que Paulo nunca repetiu esta mistura e creio que
***
jamais falou de sua pedagogia como um "sistema","
O Professor [arbas falando da Extensão Univer-
sitária e seu papel na democratização da cultura che-
ga a afirmar, a certa altura de seu artigo, que "O maior
Dicionarização
exemplo histórico do grau máximo de comunicação en-
tre os seres humanos foi o Cristo"; ou "o grau máximo de
É preciso, aqui, fazer a distinção entre o que signi-
fica o pensamento de um autor no interior de uma institui-
13. Quando se referiu a este "Sistema", foi repetindo uma frase da
professora Dulce Dantas no artigo na mesma Revista.
ção e a institucionalização do pensamento de um autor.

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No primeiro caso, um autor pode perfeitamente criticar e conotar realidades ordinárias (a da 'opressão', por
os hábitos e normas consagradas em uma instituição exemplo), nos obrigando a dar novos significados às
(a cultura institucional) e, ao assumi-Ia, como Paulo fez nossas experiências, com a institucionalização aquelas
ao receber; por exemplo, a direção do SEC (Serviço de novas palavras passam a compor e se fixar num "di-
Extensão Cultural da antiga Universidade do Recife) e, cionário". Definindo sinônimos e usos normatizados
ao ver na Extensão (no caso rural) formas autoritárias da língua, a dicionarização de um léxico (existe, ali-
de "doação" ou "transmissão" de saber aos camponeses, ás, um dicionário Paulo Freíre, organizado pelo. Mas,
procurar modificá-Ias através de uma pedagogia dialo- aqui, é necessário distinguir um esforço de definição,
gal (Comunicação). Isto é perfeitamente compreensí- de sinonimização e semantização de um léxico, nem
vel: introduzir rupturas na tradição, quebrar a cadeia sempre evidente -é o que faz o professor Danilo Streck
do continuum para que o pensamento possa continuar -, com o seu enquadramento conceitual sistemático e
a pensar; impedindo que tenhamos sempre as mesmas ínstítucíonalízante), a dícíonarízação, retomo, ordena
respostas para novas indagações ou para os objetos que e limita o campo em que um pensamento está auto-
se dão a pensar e que aparecem no horizonte intelectu- rizado e legitimado a designar coisas, e fora dele tais
al, esta é a tarefa do pensador que revigora e até muda o coisas perdem seu sentido ou não são pronunciáveis.
perfil de uma instituição. Bem diferente é a instituciona- "Não usarás outras palavras para me pensar" poderia
lização do pensamento de um autor. ser o primeiro mandamento de toda institucionali-
zação de uma ideia (o corolário bem que poderia ser
Provavelmente, o maior risco que se corre aqui
"Não permitirás que se introduzam germes lexicais em
- risco para o próprio pensamento, quero dizer- é,
meu dicionário''). Imaginar que a permissão para que
como acima indiquei, o de que ele deixe de pensar. Se
este Outro pronuncie a sua palavra (como pronúncia
todo pensar está ligado "ao que nos acontece" (Han-
do mundo anterior a da palavra escrita: o oprimido
nah Arendt), ao fazê-I o (ao pensar) nos afastamos do
não é um "analfabeto oral". A expressão é de Freire)
mundo, nos subtraímos dele para experimentar a dis-
significaria introduzi-Io na liberdade é, na verdade,
tância e a solidão do "dois-em-um" socrático, aquele
praticar algumas sutis operações, como a) esquecer
diálogo interior de que falava o filósofo. É esta inquiri-
-como vimos- que esta palavra inicial não se esgota
ção interior; esta autointerpelação, só possível no en-
aqui: ela é "trabalhada" pelo educador que a devolve
contro com o outro e após exercer o que Kant chamou
ao seu usuário ideologicamente modificada segun-
de pensamento representativo (colocar-se no lugar do
do as opções do próprio educador; b) supor a crença
outro), que nos permite voltar para o mundo para jul-
numa conversão da consciência através da palavra
gar aquilo que nos acontece. Pensamento e julgamento
(uma espécie de terapêutica política, o "pensar certo"),
fazem, assim, parte de um mesmo movimento de Ação.
um gênero de freudismo sem divã, mas com "círculos
A dificuldade principal que a institucionalização
de cultura"; c) insistir numa aceitação do sujeito de
de um pensamento nos impõe é que, se no início, ele
consciência, construção moderna, em que a origem de
nos fornecia e propunha palavras novas para designar

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toda significação, de toda cognição, de toda moralída- longo dos anos para que o saber culto final-
de está situada num Sujeito-já-aí dotado de categorias mente a incorpore a seu acervo?
que antecedem suas experiências possíveis, enquan- d) Ou isso representaria uma democratização
to ego transcendental e, d) é imaginar que as formas temática do universo de saberes oferecidos
da opressão ainda atingem preferencialmente, nesta pela Universidade?
sociedade do hiperconsumo (para alguns) e do hípe- e) Ou seria uma política "constantiniana" ("se
rindividualismo, a consciência, e não o desejo, sobre o você não pode com o seu inimigo, junta-se a
qual, as pedagogias da consciência praticamente nada ele", coopte-o e mantenha seus maiores in-
têm a dizer. teressados, o "povo", fora de seus muros)?

A aceitação de qualquer destas questões/hi-


Oisciplinarização póteses, aqui esboçadas, não nos livraria do fato de
que a disciplinarização do freireanismo no interior da
instituição universitária não é necessariamente um
A aceitação de qualquer destas questões pode avanço, conquista política ou reconhecimento do valor
ser observada na disctpíinarização deste pensamento: imanente daquela narrativa: é retirar dele o saber mar-
sua tradução e normatização em cátedra universitária. ginal, não oficial, que o marcava em seus pródromos; é
Levantemos - concedendo o benefício da dúvida - al- subrnetê-lo a uma lógica "formativa" envolvendo suas
gumas interrogações a respeito deste processo: didáticas, ordenamento de conteúdos, avaliação, clas-
sificação dos indivíduos, bibliografia consagrada, exa-
a) a criação de disciplinas acadêmicas, tais mes regulares etc., além do que, transforma comple-
como a de "Educação Popular", atestaria o tamente o sentido da própria Educação Popular, que
fracasso do impulso inicial em que ela as- não está mais voltada para as classes subalternas, não
sentaria todo seu potencial subversivo, e trata mais com adultos analfabetos, não pretende mais
que agora se encontraria apaziguado sob a "conscientizá-los". O que se faz aqui é a leitura, apren-
forma curricular? dizado e comentário da obra do Mestre, o que não tem,
b) Ou, antes, ela indicaria que a Universidade, a rigor, mais nada a ver com "educação popular"!
apesar de todo seu conservantismo corpo- "Estou cansado de ser subalterno: agora eu que-
rativo, seria sensível a modelos alternativos ro ser hegemônico!", disse-me, recentemente, um co-
de educação ainda em trânsito para formas nhecido educador popular (lotado numa universidade
mais sistemáticas? federal). Esta frase talvez resuma, muito apropriada-
c) Esse reconhecimento teria sido o resultado mente, esta libido institutionis: criar os mecanismos
de pressões sociais e políticas exercidas ao capazes de submeter a sociedade a consensos ético
-polítícos (se entendermos hegemonia em sua acep-

276 277
ção mais comum, a gramsciana). Isto significa apenas lações polltlcas que estão na base dos agenciamentos
repisar uma compreensão do social herdada dos mes- públicos (e a formação dos atores sociais - em geral,
mos parâmetros do ideário burguês (que criou isto "populares" - seja para elaborá-Ias, seja para monito-
que chamamos de Sociedade Civil), reduzindo, deste rá-las) em relações pedagógicas: uma espécie de pe-
modo, o princípio da pluralidade que deveria marcar a dagogização das políticas públicas, políticas que são
forma como vemos o mundo, que funda as pedagogias sempre o resultado de amplos e contínuos conflitos
dialogais e que, sem ele, teríamos que abolir a própria em torno de significados sociais, aplicando-se o "mé-
ideia de espaço público. O curioso é que estes grams- todo" freireano para concebê-Ias e executá-Ias. Como
cianos (adeptos de políticas hegemonistas) também se seguindo o modelo da problematização, conscienti-
afirmam e reafirmam suas próprias virtudes "plura- zação, transformação na formação dos atores e na dis-
listas", o que significa querer realizar a proeza teórica cussão das políticas, pudéssemos obter a legitimidade
de juntar hegemonia com pluralismo (é como querer ideológica que um suposto "diálogo libertador" ofere-
casar o pote de ferro com a panela de barro: na hora ceria, apoiando-se, além do mais, em conceitos como
H, a hegemonia bate e o pluralismo, coitado, apanha!). "amorosídade" curiosamente tomado como princípio ...
Porém, a frase de meu colega termina por resumir o epístemológíco!" No entanto, o nó da questão não é o
fenômeno da institucionalização àquele aspecto que "método": é o princípio que orienta o "método".
chamei de "positivo": quando adquire legitimidade A ideia de fazer do estado o educador da so-
para sair da esfera "privada" (no sentido gramsciano) ciedade foi colocada inicialmente pelos Jacobinos
e se tornar política pública de estado. durante a Revolução Francesa (especialmente Saint
O mais elevado patamar deste amplo programa [ust e Le Pelletier de Saint-Fargeau) que advogavam
de institucionalização doutrinária se dá quando a Edu- a precedência da igualdade em relação à liberdade e,
cação Popular (leia-se freireanismo) se torna Política assim, à época da Convenção (dominada pelo Terror
Nacional de Educação Popular vinculada à Secreta- robespierreano), as ideias que Condorcet apresentara
ria de Articulação Social da Presidência da República à Assembleia em 1789 ("Cinq mémoires sur l'instruc-
e que culmina com a elaboração e publicação de um tion publique'), defendendo o princípio de autonomia
Marco de Referência (2014)! do professor e da liberdade de escolha dos conteúdos,
fora vencida pelo princípio "igualitarista" da escola
republicano-jacobina. A questão toda estava centrada
Marco de Referência: uma pedagogia de Estado? numa determinada ideia política de "povo" (funda-
mento "uno e indivisível" da Nação) que a escola deve-

O problema central que enxergo neste Marco é o 14. Tenho dúvidas, aliás, se um tal conceito, normalmente asso-
do interesse do estado em se tornar "pedagogo', atra- ciado à esfera privada (a ideia arendtiana de Amor Mundi e
aos homens não tem nenhum sentido "epistemológico") pode
vés de uma operação estratégica que transforma as re- orientar políticas "públicas",

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ria produzir. Pois é: o "pOVO"ou os "oprimidos", como Estado em ação" - (Azevedo 1997) num procedimento
queiram, não é algo que está aí, vagando pelo social à pedagógico sobre a sociedade. Qualquer semelhança
espera de que os políticos venham manipulá-Io ou que com injunções totalitárias -produtoras de pedagogias
os intelectuais venham líbertá-lo: o povo é uma cria- de estado- não é mera coincidência! E, não resisto à
ção discursiva com conotações muito diversificadas ironia, se eu quisesse que a Pátria educasse meu filho,
em cada época histórica, servindo -como conceito- a eu o matricularia ... na Pátria!
interesses muito diferentes e está longe de represen- Ah, sim! A quem possa interessar, Condorcet -
tar qualquer forma de homogeneidade em sua compo- que defendia a liberdade como anterior à igualdade-
sição semântica. O que um estado-educador freireano terminou guilhotinado (1792) a mando de Robespier-
parece intentar, aqui, é formar (no sentido de forma- re. Saint-Iust também!
tar) através de uma ideia humanista de "homem" -
ideia seriamente questionada hoje, inclusive e, sobre-
tudo, em suas consequências pedagógicas- um projeto Uma teologia laica
de nação que retoma pressupostos muito semelhantes
ao debate que se deu nos anos 50-60. Quando o estado
quer ser educador" e considera como legítima sua ex- Não conheço nenhuma outra proposta pedagó-
clusiva opção de construção de políticas públicas atra- gica que tivesse elaborado seus fundamentos a partir
vés de um "método pedagógico emancipador", temos das noções modernas de "crítica", de "liberdade", de
o direito, eventualmente, de desconfiar: afinal, foi em "sujeito" e de "consciência" e exposto suas ideias e
nome da emancipação da sociedade que o stalinísrno, expectativas (pedagógicas, humanas e sociais) em lin-
usando do poder intelectual supostamente "ernancí- guagem tão vincada por uma nomenclatura religiosa
patórío" do marxismo, inventou os Gulags! como o freireanismo!
Aqui é o estado que se apropria de uma peda- Não é o fato de Paulo Freire ter sido ele mesmo
gogia (pedagogia é algo que, em princípio, está asso- confessadamente de formação cristã, se cercado de
ciado às teorias que sustentam e orientam as práticas amigos e colaboradores (ao menos, no início de seu
educativas. A educação, não custa lembrar, diz respeito percurso intelectual e institucional) também seguido-
ao que se É; a instrução ao que se SABE. Uma Pátria res desta fé e de atribuir aos títulos de suas obras refe-
Educadora quer formatar subjetividades e não distri- rências diretas a uma concepção cristã de vida (Opri-
buir saberes escolares), erige-a em "método" de for- midos, Esperança, Indignação): o que é surpreendente
mação subjetiva de agentes das políticas públicas e, é o projeto de importar tais princípios para o interior
finalmente, transforma a própria política pública - "o de uma pedagogia supostamente laica e mundana que,
assim sendo, deve advogar a responsabilização dos
homens pela condução de sua vida em direção à liber-
15. Não seria surpreendente encontrar alguma coincidência com a
dade. Não é à toa que a grande maioria dos freireanos
divisa do governo Dilma Roussef ("Brasil: pátria educadora").

280 281
que conheci, experimentou, professou ou se formou sa"), vencidas no Interior de cada consciência, claro, é
no interior de uma fé de inspiração cristã, como se quando me constituo "povo". Não como "Povo Eleito"
encontrasse no freireanismo a expressão pedagógica mas como "Povo-Sujeito".
secular de suas aspirações salvacionistas! O resumo mais elo quente e que condensa esta
Secular? Nem tanto! Tomemos o tema da ES- curiosa articulação entre laicidade pedagógica mo-
PERANÇA, por exemplo: uma consciência laica e re- derna e expectativas soteriológicas - o que estou cha-
publicana não pode aceitar a "esperança" nem como mando aqui de "teologia laíca" - aparece no dístico
princípio político nem pedagógico. A esperança é uma freireano da célebre "VOCAÇÃO-PARA-SER-MAIS". Na
das três virtudes teologais (junto com a fé e a carida- sua origem latina, Vocatio, vocationis diz respeito a
de) e quando recrutamos esta virtude para o campo uma voz interior, a um chamado irresistível que orien-
pedagógico é porque pretendemos atribuir-lhe um ta todo nosso destino: contrariá-Io seria romper com
mandato teológico (salvacionista) e, ao mesmo tem- aquilo que somos e conduzir uma vida inautêntica e
po, revesti-Io de um sentido pastoral, em que homens infeliz, como pode ser a vida de alguém que está em
são reunidos e conduzidos em rebanho. Na vívêncía da constante contradição consigo mesmo. Por outro lado,
Esperança há sempre a necessidade de uma TRAVES- a ideia de ser-mais, cuja origem podemos encontrar
SIA, o que supõe um ponto de partida em que (somos em Pico Della Mirandola (Discurso sobre a Dignidade
e) tomamos consciência de nossa imperfeição ou de do Homem, século XV) e posteriormente retomada pe-
nossa "queda" (em linguagem laíca, alienação ou in- los modernos, de Rousseau a Sartre, sob a forma da
genuidade política), após o quê, se impõe um longo "íncompletude" e, portanto, do homem como um ser
trajeto, uma passagem, uma transitividade (muitas ve- de liberdade, capaz de escapar das determinações so-
zes dolorosa e arriscada) em que, ao final, poderemos ciais e culturais em que nasceu e escolher seu próprio
vislumbrar não propriamente a Terra Prometida, mas "destino" (que, assim, deixa de ser um "chamado" para
o modelo de homem "humanizado" que a PROMESSA ser uma escolha consciente), a ideia contida neste "ser
contém. A Travessia está contida em todo DIÁLOGO,16 -mais" é a mesma que inspirou a noção moderna de
já que o sufixo grego Dia significa exatamente "traves- meritocracia (que não tem nada a ver com o discurso
sia" ou "através de" Uma vez atravessado (mas uma atual de nossos tecnocratas)! Explico.
travessia coletiva, supondo que sozinho ninguém che- Nas sociedades aristocráticas (Antigo Regime),
gará ao outro lado) e vencidas as tentações em cada os 'melhores' já nasciam com todas as suas disposi-
passo do percurso (em linguagem laica, as da socie- ções morais e psicossociais estabelecidas e, assim, ne-
dade de consumo que me incitam a me tornar "mas- nhum esforço era necessário para que eles pudessem
"ser mais": eles já eram os "melhores" (Aristhos)! É
nas sociedades democráticas e liberais em que se for-
16. Não mais o diálogo com o Deus da tradição paulina ou o diálo- mula o princípio da igualdade "natural" (nascimento)
go interior da vertente agostíníana, mas o diálogo com outros
homens igualmente "oprimidos". entre os homens - embora o "social" possa torná-los

282 283
desiguais-, e em que a ideia de que desigualdades in- da somos freireanos?" talvez encontre aqui, na tese de
dividuais ("talentos" diferentes) podem ser superadas Kepel, um primeiro balbucio de resposta.
através do esforço e do trabalho pessoal: é o mérito Uma pedagogia completamente "secularizada",
contra o "berço", o percurso contra a origem, a traba- como a que praticamos hoje - e numa tendência cada
lho contra o sangue (azul). A famosa frase com que os vez mais crescente - sofre de uma patologia que já ha-
professores terminavam irrecorrivelmente a correção via sido apontada, entre outros, por Marcuse. Trata-se
de nossas provas ("Pode melhorar!"] é a assinatura da da ideia de Unidimensionalidade (Ideologia da Socie-
ideologia meritocrática em que esforço é igual a pro- dade Industrial) em que, para sermos breves, Marcuse
gresso individual fundado no talento. procura mostrar que a velha tradição do Romantismo
Ora, juntar vocação com ser-mais não chega a alemão, separando as esferas da Kultur (mundo das
ser propriamente uma contraditio in limine: é um pro- realizações espirituais, da arte, da literatura) e da Zt-
jeto, ao mesmo tempo moderno e pré-moderno, em vilisation (mundo da vida ordinária, do trabalho, da
que laicismo pedagógico (republicanismo) se alia à produção e das trocas), permitia que tivéssemos pos-
esperança contida nas religiões salvíficas. Mas, talvez, sibilidade de escapar (pela literatura, por exemplo)
aqui, resida uma primeira razão pela qual "ainda so- dos automatismos da vida cotidiana dominada por re-
mos freireanos". lações de mercado, e garantia a sobrevivência da uto-
Em 1991, Gilles Kepel publicou um interessante pia como crítica e como imaginação. Mas, no momen-
livro chamado La revanche de Dieu em que analisava to em que a utopia se torna, ela própria, mercadoria,
o fenômeno recente que, nós ocidentais, chamamos esta "aderência" à facticidade da vida, a esta espécie
de fundamentalismo e integrismo, expresso numa de presente contínuo, dissolve o poder subversivo da
retomada de formas religiosas tradicionais que, de imaginação. Esta é a noção marcuseana de unidimen-
certa maneira, nós esperávamos ver paulatinamente sionalidade.
superadas com o avanço da ciência e de instituições Ora, uma educação que se despreocupou em for-
seculares. O autor identifica nesta retomada, não ape- mar, uma pedagogia exclusivamente centrada nas exi-
nas a vacuidade das utopias marxistas e liberais, mas, gências subjetivas do mercado (flexibilidade, empre-
sobretudo, uma forma de resistência ao esfarelamen- gabilidade, adaptabilidade ..., para o quê a competência
to da sociedade, sua anomia, a ausência cada vez mais socioemocional é a última aquisição!) só pode encon-
visível de projetos comuns: uma sociedade sem Deus trar um contraponto num projeto de "reencantamento"
não significou menos angústia e ansiedade, nem fez transcendente do pedagógico, um projeto que nos lance
progredir a crença moderna de que caberia aos ho- para além da facticidade da vida e alimente nossas "es-
mens, através do uso da razão, dominar as forças de peranças" de que o homem pode ultrapassar, pela ação
seu destino. "É a cidade secular que se encontra num concertada com outros homens, as determinações da
Impasse', diz o autor. Penso que a questão "porque ain- vida ordinária; que o presente não é um cão morden-
do a própria cauda e que poderíamos, em algum ponto

284 285
de nosso percurso, restaurar a dignidade da crítica e tados contra a "dignidade humana"), a profecia é, an-
a sensibilidade utópica. Neste exato sentido, o freírea- tes de tudo, um ensinamento, um convite à ação, uma
nismo preservaria, em sua ambígua dimensão secular advertência moral contra o "pecado" (como no res-
e teológica, o potencial de expectativas sociais (que a mungão Ieremíasl) e um chamado para realizar a vida
Kultur outrora proporcionava) normalmente frustra- digna de seu Deus. Estão contidos, aqui, os elementos
das pela ordem "presentísta"," Meu mais profundo te- da denúncia e do anúncio, parâmetros do binômio pro-
mor, confesso, é o de que a obra de Freire se transforme fético presentes em nossa "teologia laíca"
num compêndio de autoajuda pedagógica - com seu Mas, o que é denunciado no freireanismo? De
indignado, mas esperançoso otimismo- para desencan- maneira muito grosseira, diria que sua denúncia recai
tados professores de redes públicas! sobre a incapacidade de examinarmos nossa própria
O último ponto desde já longo ensaio e que com- consciência - por que nos faltam os instrumentos para
pleta o percurso de nossa "teologia laíca', toca na ques- tal-, de fazermos de nossa interioridade a hospedagem
tão propriamente "profética" do freireanismo. Aqui, a de formas sutis de opressão, de aceitarmos modelos
ideia de profecia não tem nenhuma relação com as de educação que, de maneira intransparente, instalam
inúmeras mistificações e charlatanismos que vicejam colonizadores em cada um de nós e, por fim, de con-
numa sociedade desorientada e com psiquês em fran- ceber o mundo como algo dado, não sujeito às trans-
galhos ou com visionários de opereta, arautos de ar- formações, não histórico ou, para usar uma expressão
tes divinatórias. O sentido da profecia que trataremos mais adequada ao tema, não "problematízável"
aqui é aquele contido no Antigo Testamento, cuja men- Em que consiste, em contrapartida, o anúncio?
sagem fundamental era uma advertência aos que acre-
O anúncio não se dá na descrição do que seria a
ditavam em outra coisa (riqueza, opressores) que não sociedade futura e suas relações intersubjetivas, e sim,
em seu Deus, Profetas que não aceitavam uma ordem na necessidade imperiosa de fazermos a transição de
injusta e que condenavam a opressão social e a explo- nossa consciência para procedermos a este ersatz do
ração, como se pode ler em Amós .... Podemos, desde Apocalípse:" a ideia freireana de DESVELAR.A noção
logo, identificar a matriz profética contida no freírea- de desvelamento trata a realidade como se existisse
nismo, expressa no binômio DENUNCIAR-ANUNCIAR. um "por trás" das aparências que a ideologia nos im-
Tanto em Oséias (e na sua denúncia das desigualdades põe (um tema platônico, aliás!), uma "verdade resplan-
sociais e dos abusos do poder), como em Isaías (de- decendo seus fogos" (como no poema de Drummond)
núncia da autos suficiência humana), quanto em Mí- e cujo reconhecimento exigiria uma outra qualidade
quéias (com sua ênfase nas injustiças sociais e, como da consciência (crítica), a partir do que, poderíamos
um autor moderno avant Ia lettre, a denunciar os aten- medir o grau de ingenuidade ou de alienação em que

17. Sobre o conceito de "presentismo", ver a obra de François Har- 18. "Apocalipse" no sentido grego da palavra: revelar o que está
tog (2014). encoberto.

286 287
estarnos, compreender nosso inacabamento essen- Assim, pode-se morrer mais de uma vez! Gueva-
cial, vislumbrar nossa "humanízação" e, finalmente, ra, morto nas floretas bolivianas, conheceu sua segunda
compreender e praticar pedagogias libertadoras que "morte" na banalização de sua imagem, fotografada por
anunciam, via dialogicidade e amorosidade, aquilo que Korda, estampada em camisetas e spots publicitários e,
poderíamos ser e que as formas insidiosas da opres- finalmente, alçado à condição - pouquíssimo "revolu-
são nos impedem. cionária", aliás - de latin lover. Quando [ohn Lennon
De resto, receio que estejamos diante de um anunciou que o "sonho havia acabado", ele denunciava
léxico (denúncia, anúncio, desvelamento, verdade, pen- o fato de que a ruptura cultural promovida pelos "jo-
sar certo, opressão, ingenuidade, libertação, diálogo, vens" dos anos 50 e 60 havia sido recuperada e pacifi-
travessia, vocação, amorosidade etc. etc.) que, visto de cada em seu poder de subversão pelo mercado (indús-
uma certa distância, demonstra sua indisfarçável veia tria cultural): era o fim de seu potencial de "mudar o
religiosa. Mas, talvez esteja aqui o enigmático encanto mundo" ("unidimensionalidade"). Eis o significado que
que o frereanismo exerce sobre seus seguidores: ele atribuo ao que estou chamando de "segunda morte".
lhes devolve um sentimento de comunidade, atado Penso que o ferireanismo é uma forma (incons-
pelos laços de uma mística teo-pedagógica ratificada ciente?) de promover a segunda morte daquele edu-
a cada instante pela própria doutrina que os mecanis- cador! Aliás, o próprio Freire falava de uma espécie
mos institucionais induzem e reproduzem. de "magístercídío": a necessidade que temos todos de
"matar" simbolicamente nossos mestres para que pos-
samos assumir nossa autonomia intelectual (algo se-
Conclusão: um manual da segunda morte
melhante ao parricídio psíquico freudiano, analisado
em Totem e Tabu). De seu caráter marginal e subver-
Cornelius Castoriadis afirmou certa vez que a sivo, perseguido pelas forças da reação, preso e exila-
melhor maneira de honrar o pensamento de um autor, do, tendo as obras proibidas de publicação no Brasil,
é criticá-lo. Com certeza, a assertiva inversa também passando pela tentativa de construção de um "siste-
é verdadeira: desonrar um autor seria condená-lo ao ma" (Jarbas Maciel) a partir da experiência do SEC da
que alguém já chamou de "crítica roedora dos ratos", à Universidade do Recife, de Angícos, do MCP,da Secre-
indiferente obscuridade das bibliotecas. Quando o le- taria de Educação do Município de São Paulo, dos inú-
meros "diálogos" e entrevistas" elogiosas com amigos,
gado de um autor não se faz mais objeto de avaliação
da criação dos incontáveis institutos e centros "Paulo
crítica, não é propriamente o autor que estamos con-
denando à morte (embora isto também seja verdade):
é o próprio "pensar" que o autor certamente estimulou A rigor, diria que não se trata de entrevistas (pontos de vis-
19.
que se encontra ameaçado. São seus epígonos, pois, a ta que se cruzam) e, sim, de urna espécie de visita ao Mestre.
Ali são freireanos convictos que consultam o seu "oráculo" a
quem devemos processar pela cumplicidade fatal da
respeito do que ele pensa sobre assuntos diferentes, em geral,
institu cionalização esterilizante! relacionados às mudanças de nossa época e suas implicações
educativas.

288 289
estam os, compreender nosso inacabamento essen- Assim, pode-se morrer mais de uma vez! Gueva-
cial, vislumbrar nossa "humanízação" e, finalmente, ra, morto nas floretas bolivianas, conheceu sua segunda
compreender e praticar pedagogias libertadoras que "morte" na banalização de sua imagem, fotografada por
anunciam, via dialogicidade e amorosidade, aquilo que Korda, estampada em camisetas e spots publicitários e,
poderíamos ser e que as formas insidiosas da opres- finalmente, alçado à condição - pouquíssimo "revolu-
são nos impedem. cionária", aliás - de latin lover. Quando [ohn Lennon
De resto, receio que estejamos diante de um anunciou que o "sonho havia acabado", ele denunciava
léxico (denúncia, anúncio, desvelamento, verdade, pen- o fato de que a ruptura cultural promovida pelos "jo-
sar certo, opressão, ingenuidade, libertação, diálogo, vens" dos anos 50 e 60 havia sido recuperada e pacifi-
travessia, vocação, amorosidade etc. etc.) que, visto de cada em seu poder de subversão pelo mercado (indús-
uma certa distância, demonstra sua indísfarçável veia tria cultural): era o fim de seu potencial de "mudar o
religiosa. Mas, talvez esteja aqui o enigmático encanto mundo" ("unidimensionalidade"). Eis o significado que
que o frereanismo exerce sobre seus seguidores: ele atribuo ao que estou chamando de "segunda morte".
Ihes devolve um sentimento de comunidade, atado Penso que o ferireanismo é uma forma (incons-
pelos laços de uma mística teo-pedagógica ratificada ciente?) de promover a segunda morte daquele edu-
a cada instante pela própria doutrina que os mecanis- cador! Aliás, o próprio Freire falava de uma espécie
mos institucionais induzem e reproduzem. de "magistercídio": a necessidade que temos todos de
"matar" simbolicamente nossos mestres para que pos-
Conclusão: um manual da segunda morte samos assumir nossa autonomia intelectual (algo se-
melhante ao parricídio psíquico freudiano, analisado
em Totem e Tabu). De seu caráter marginal e subver-
Cornelius Castoriadis afirmou certa vez que a sivo, perseguido pelas forças da reação, preso e exila-
melhor maneira de honrar o pensamento de um autor, do, tendo as obras proibidas de publicação no Brasil,
é criticá-lo. Com certeza, a assertiva inversa também passando pela tentativa de construção de um "siste-
é verdadeira: desonrar um autor seria condená-Io ao ma" (Jarbas Maciel) a partir da experiência do SEC da
que alguém já chamou de "crítica roedora dos ratos", à Universidade do Recife, de Angicos, do MCp,da Secre-
indiferente obscuridade das bibliotecas. Quando o le- taria de Educação do Município de São Paulo, dos inú-
gado de um autor não se faz mais objeto de avaliação meros "diálogos" e entrevistas" elogiosas com amigos,
crítica, não é propriamente o autor que estamos con- da criação dos incontáveis institutos e centros "Paulo
denando à morte (embora isto também seja verdade):
é o próprio "pensar" que o autor certamente estimulou
19. A rigor, diria que não se trata de entrevistas (pontos de vis-
que se encontra ameaçado. São seus epígonos, pois, a ta que se cruzam) e, sim, de uma espécie de visita ao Mestre.
quem devemos processar pela cumplicidade fatal da Ali são freireanos convictos que consultam o seu "oráculo" a
respeito do que ele pensa sobre assuntos diferentes, em geral,
institucionalização esterilizante!
relacionados às mudanças de nossa época e suas implicações
educativas.

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Freire", da disciplinarização universitária da Educação as instituições que portam seu nome e se visse, num
Popular, da elevação de sua figura à condição de Patro- determinado momento, reconhecido por um destes
no da Educação Nacional e, finalmente, da confecção próceres do freireanismo, diretor de um importante
de um Marco de Referência para basear nos princípios instituto que porta Seu nome, gestor de importantes
da educação popular (dialogicidade, amorosidade, contratos de formação "conscentízadora" e, para Sua
problematízação etc.) as políticas públicas do Governo
imensa surpresa, se deparasse com a profunda insa-
FederaL, são exemplos eloquentes da fortuna reser-
tisfação provocada pelo seu Segundo Advento. Penso
vada ao seu pensamento, um pensamento que guarda
que, o romance de Dostoievsky pode ser, mais do que
a marca sedutora do humanismo moderno, centrado
esclarecedor; prenunciador do destino das ideias.
numa concepção de homem e de sujeito de consciência
que os freireanos teimam em não enxergar seus limi- Ivan Karamazov fala de um projeto de poema
tes e problemas conceituais (o que, como dissemos, com seu irmão, Aliocha, sobre o Segundo Advento de
seria fatal para a doutrina), escrito numa linguagem Jesus, que deu o azar de cair em Sevilha, no século XVI
de matiz lítero-teológica e, portanto, impreciso concei- e é preso pelo Cardeal Grande Inquisidor, nonagenário
tualmente (o que fez com que Freire "se identificasse" que na véspera mesmo deste encontro, mandara quei-
ora com Gramsci, ora com Habermas, autores muito mar um lote de 70 homens na fogueira. Reproduzirei,
distantes um do outro!) para assistirmos a uma peda- aqui, apenas um extrato do diálogo inventado por Ivan
gogia transformada numa espécie de Ontologia da Es-
(sob protesto de seu irmão!) que creio apropriado ao
. perança (vocação-para-ser-mais), anunciada em frases
argumento que desenvolvi ao longo deste ensaio:
de efeito pastoral muito atraente e, ao fim, todo este
conjunto institucionalizado em organismos nos quais
tenho dificuldades cada vez maiores em enxergar ne- "És tu? És tu?
les processos de libertação ou de conscientização, seja Não respondas, cala-Te. E o que poderias Tu dizer?
lá o que isto signifique. Sei muito bem o que Tu dirias. Não tens o direito
de acrescentar nada ao que disseste outrora. Por
que vieste nos perturbar? Pois vieste para isto,
para perturbar. (...) Amanhã condenar-Te-ei quei-
***
mar na fogueira como o pior dos hereges.
(...) O Inquisidor enfim se cala, aguarda a respos-
ta do prisioneiro. Mas o silêncio é opressor. Em
Sugiro, para terminar este já longo ensaio, um
silêncio Ele se aproxima e beija os lábios pálidos
exercício de imaginação que, admito, me foi inspirado
do nonagenário. Esta é toda a Sua resposta.
pela leitura de um romance de Dostoievsky (Os Irmãos
- "Vai e não volta mais ... não volta ... não volta
Karamazov). Imaginemos que a Paulo Freire tivesse
nunca mais!"
sido dada a ocasião de retomar à terra dos vivos para
perambular entre educadores "freireanos", observar e
avaliar o destino terreno de seu pensamento, visitar ***
290 291
Confesso, ao terminar este ensaio, que algumas Bibliografia citada
vezes sou tomado pela estranha ideia de que a história
dos homens foi dolorosamente vincada pela expecta- ARENDT,Hannah (1996). La vie de l'esprit. La pensée.
tiva da "salvação": desde salvar o homem da Polís, do Paris: PUF.
pecado e da tentação, da ignorância e da alienação; sal- AZEVEDO,[anete (1997). Educação como política pú-
vá-Io das forças do destino, da história, da natureza, de blica. Campinas: Ed. Cortez.
si mesmo, da dominação dos outros ...
BERGER, Peter (1980). Perspectivas sociológicas. Pe-
E este desiderato soteriológico foi acompanha- trópolis: Vozes.
do de linguagem igualmente diversa: religiosa, eco-
BOÉTIE, Etienne de Ia (1984). Discurso da servidão vo-
nômica (marxismo), literária, política e, chegamos ao
luntária. São Paulo: Brasiliense.
ponto, também pedagógica. O freireanismo é, neste
BRAYNER,Flávio (2014). "O Clichê. Notas sobre uma
sentido, apenas uma das expressões pedagógicas des-
derrota do pensamento. (Por uma consciência
te atávico desejo de salvação.
ingênua):' Revista Educação e Realidade. Porto
É provável que os freireanos tenham percebido Alegre: UFRGS.
que a grande obsessão moderna -a liberdade- talvez
CASTORIADIS,Cornelius (1979). A instituição imagi-.
tenha se transformado numa quimera insustentável nária da sociedade. Rio de Janeiro. Paz e Terra.
fora de uma filosofia da consciência (o que não signifi-
DOSTOIEVSKY,F. M. (1989). Les frêres Karamazov. Pa-
ca que não possamos redescrevê-Ia); também é possí-
ris: Folío/Gallimard.
vel que tenham se dado conta de que os homens estão
aparentemente dispostos a trocar a liberdade pela or- FACUNDO,Blanca (1984). Issues for an evaluation of
Freire-inspired programs in the United States and
dem e pela submissão que as instituições asseguram
Puerto Rico. Rio Píedras/Puerto Rico. Disponí-
(uma liberdade que, afinal, foi uma fonte permanente
vel em: http://nlu.nl.edu/ace/Resources/Docu-
de angústia e temor); que estão prontos a negociar,
ments/Facundo.html. Acesso em: 28/12/2001.
enfim, a autonomia moral e intelectual pela felicidade (Apud Stauffer 2000).
que o consumo promete. Se isto for verdade, nossos
FOUCAULT,Michel (2001). Ou'est-ce qu'un auteur? Dits
freireanos terão que aceitar a vitória de uma antro-
et Écrits 1.Paris: Gallimard.
pologia realista sobre a promessa utópica da "huma-
nização". Mas, insistindo no freireanismo - e eis aqui FREIRE, Ana Maria (2001). Chronicles of Love. My Life
with Paulo Freire. Introduction by Donaldo Ma-
o segundo motivo pelo qual "ainda somos freíreanos"
cedo. Trad. de Alex Oliveira. Nova York: Peter
-, seus seguidores garantiriam, numa espécie de razão
Lang.
cínica (Sloterdijck), que o nome do Mestre continuasse
FREIRE, Paulo (1975). Extensão ou comunicação. Rio
a ser invocado e cultuado (uma garantia de legitimi-
de Janeiro: Paz e Terra.
dade), mas sob a impreterível condição de que ... não
voltasse nunca mais, nunca mais!

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