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Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)

Carvalho Filho, Silvio de Almeida. / Nascimento, Washington Santos. (Orgs.)


Intelectuais das Áfricas / Silvio de Almeida Carvalho Filho / Washington Santos Nascimento (Orgs.)
Campinas, SP: Pontes Editores, 2019 - 2ª Edição

Bibliografia.
ISBN 978-85-7113-959-6

1. Cultura - sociologia - literatura e filosofia - África 2. História da África


3. Interação social - África I. Título

Índices para catálogo sistemático:

1. Cultura - sociologia - literatura e filosofia - África - 306


2. História da África - 900
3. Interação social - África - 302
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Coordenação Editorial: Pontes Editores
Editoração e capa: Eckel Wayne
Imagem de Capa: Juliana Ribeiro da Silva Bevilacqua
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2019 - Impresso no Brasil


SUMÁRIO

PREFÁCIO ................................................................................................ 9
Renato Noguera

INTELECTUAIS DAS ÁFRICAS: APROXIMAÇÕES ....................................... 17


Silvio de Almeida Carvalho Filho
Washington Santos Nascimento

ACHILE MBEMBE: IMAGINAÇÃO, PODER E COSMOPOLITISMO A PARTIR


DA ÁFRICA ............................................................................................... 37
José Rivair Macedo

PERCURSOS TRANSLOCAIS: VALENTIN MUDIMBE E O PÓS-COLONIAL... 71


Regiane Augusto de Mattos

O DECANO DA FILOSOFIA AFRICANA: PAULIN HOUNTONDJI ................. 95


Itamar Pereira de Aguiar

MALEK CHEBEL: O NAVEGADOR AFRICANO DA CULTURA


ÁRABE-ISLÂMICA ..................................................................................... 117
Murilo Sebe Bon Meihy
FATEMA MERNISSI: UMA CONTESTADORA DO PATRIARCALISMO
NO MUNDO ÁRABE-ISLÂMICO ................................................................. 143
Isabelle Christine Somma de Castro

OUSMANE SEMBÈNE E A ÁFRICA TRADUZIDA EM PALAVRAS


E IMAGENS .............................................................................................. 169
Sílvio Marcus de Souza Correa

FELA KUTI E O AFROBEAT: ENTRE A DESCOLONIZAÇÃO ESTÉTICA


E A REINVENÇÃO DA ÁFRICA................................................................... 203
Amailton Magno Azevedo

WOLE SOYINKA. TRAVESSIAS ENTRE MUNDOS E EPISTEMES ................ 229


Divanize Carbonieri

UANHENGA XITU: DO ANCESTRAL AO MODERNO, E VICE-VERSA .......... 273


Washington Santos Nascimento

MIA COUTO: O INTELECTUAL E SUAS ESCOLHAS ................................... 299


Tania Macêdo

CHIMAMANDA NGOZI ADICHIE: CONTORNOS FEMINISTAS E DE SOLIDARIEDADE


EM UMA AUTORA CONTEMPORÂNEA ..................................................... 327
Izabel de Fatima Brandão

PEPETELA: ENTRE A SORDIDEZ DAS PRÁTICAS E A SEDUTORA UTOPIA..... 355


Silvio de Almeida Carvalho Filho

AMÍLCAR CABRAL. CONSTRUÇÃO DA NAÇÃO E MODERNIZAÇÃO


DA CULTURA ............................................................................................ 397
Fábio Baqueiro Figueiredo

A ATUALIDADE DE FRANTZ FANON: ACERCA DA CONFIGURAÇÃO


COLONIALISTA ......................................................................................... 437
Muryatan S. Barbosa
PALAVRAS FINAIS .................................................................................... 463
Silvio de Almeida Carvalho Filho
Washington Santos Nascimento

SOBRE OS ORGANIZADORES E AUTORES .............................................. 473

SOBRE A IMAGEM DE CAPA ..................................................................... 479


Juliana Ribeiro da Silva Bevilacqua
IntelectuaIs das áfrIcas

PREFÁCIO

Renato Noguera1

A aceitação geral da hipótese da origem monogenética


e africana da humanidade suscitada pelos trabalhos do
professor Leakey tomou possível colocar em termos
totalmente novos a questão do povoamento do Egito, e
mesmo do mundo. Há mais de 150 mil anos, a única parte
do mundo em que primeiro, não posso deixar de registrar
agradecimentos para todas as pessoas envolvidas neste
projeto por este presente: a honra de prefaciar viviam seres
morfologicamente iguais aos homens de hoje era a região
dos Grandes Lagos, nas nascentes do Nilo. Essa noção – e
outras que não nos cabe recapitular aqui – constitui a es-
sência do último relatório apresentado pelo Dr. Leakey no
VII Congresso Pan-Africano de Pré-História, em Adis Abeba,
em 19711. Isso quer dizer que toda a raça humana teve
sua origem, exatamente como supunham os antigos, aos
pés das montanhas da Lua. Contra todas as expectativas
e a despeito das hipóteses recentes, foi desse lugar que o
homem partiu para povoar o resto do mundo.
Cheikh Anta Diop2

Este livro, belamente organizado pelos historiadores Silvio


de Almeida Carvalho Filho e Washington Santos Nascimento, não
engana quem lê, entrega realmente o que anuncia, apresentando
intelectuais relevantes do continente africano. No Brasil, a leitura
1 Doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Professor da Univer-
sidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ).
2 DIOP, Cheikh Anta. “Origem dos antigos egípcios” In: MOKHTAR, Gamal (Org) História geral
da África, II: África antiga. – 2.ed. rev. – Brasília: UNESCO, 2010, p.01

9
IntelectuaIs das áfrIcas

de intelectuais estadunidenses e europeus faz parte do cardápio


acadêmico; mas, num contexto plural e de demandas variadas,
não podemos restringir nossas leituras e deixar de fora produções
sólidas e consistentes de outras regiões do planeta. Segundo di-
versos estudos, a África é o continente mais antigo do planeta no
quesito: civilizações humanas. Todo o complexo cultural africano
está presente nas Américas, na Europa e influencia o mundo in-
teiro. Por isso, corremos o risco de empobrecer muito as grandes
discussões se a produções e contribuições intelectuais africanas
ficarem de fora.
É preciso incluir a África na conversação intelectual mundial.
Mesmo que algumas leitoras e alguns leitores possam acenar
para a falta de alguns nomes. É preciso termos em mente: não é
corriqueiro encontrarmos publicações brasileiras com o objetivo
de apresentar intelectuais africanos. Por isso, não seria possível
reunir tantos nomes numa mesma obra. Talvez, um nome que esteja
presente indiretamente, seja porque abriu portas ou influenciou,
de uma maneira ou de outra, o mundo acadêmico africano é o do
senegalês Cheikh Anta Diop. O seu legado está presente, a sua
envergadura temática, assim como sua acidez e coragem para en-
frentar os grandes temas, atravessa os escritos desta obra. Autoras
e autores de Intelectuais africanos não decepcionam, fazem par com
Diop quando o assunto é a disposição de desbravar perspectivas
intelectuais e promover a visibilidade de abordagens africanas. O
que o físico, historiador e antropólogo Diop tem em comum com
os nomes que aparecem neste notável trabalho? O legado indireto,
quiçá direto, do primeiro grande intelectual africano do século
XX, não foi outro, senão: levantar voz em favor do protagonismo
investigativo de africanas e de africanos para contarem sua própria
história, apresentando suas teses sobre os fenômenos filosóficos,
sociais, artísticos, científicos e políticos. Diop foi uma voz que abriu
caminho para as que surgiram depois. Pois bem, Achile Mbembe, Va-
lentim Mudimbe, Paulin Jidenu Hountondji, Malek Chebel, Fatema
Mernissi, Osmane sembene, Fela Kuti e o afrobeat, Wole Soyinka,

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IntelectuaIs das áfrIcas

Uanhenga Xitu, Mia Couto, Chimamanda Ngozie Adichie, Pepetela,


Amílcar Cabral e Frantz Fanon trazem em comum algo simples e
genial: usar um sotaque africano para expor o que pensam. Talvez,
a grande verve presente nos escritos dessas/es intelectuais seja usar
a filosofia, história, antropologia, sociologia, literatura, cinema,
música e ciência política, dentre outras áreas, para apresentar o
pensamento africano sem filtros europeus.
Num dos capítulos, os contornos feministas da escrita da
nigeriana Chimamanda Ngozie Adichie. Num aprendizado de
usar a língua do colonizador para resistir, a autora é apresentada
como exemplo ímpar. Adichie recebeu prêmios internacionais e,
antes dos quarenta anos, já figurava entre as vinte melhores jovens
autoras no cenário internacional. Izabel Brandão convida-nos a
mergulhar nesse universo intelectual feminista e literário. A leitura
desse capítulo instiga a leitura das obras de Adichie, uma escrita
literária que, segundo Brandão, traz um equilíbrio interessante
entre aspectos artísticos e políticos. Outra mulher africana, dessa
vez uma marroquina, convida-nos para um mergulho no mundo
feminismo diante do contexto árabe-islâmico. As palavras da inte-
lectual marroquina Fatema Mernissi, falecida em 2015, são muito
importantes. Isabelle Christine Somma de Castro faz um retrato
instigante de Mernissi. Afinal, ela é uma das pioneiras no projeto
de fazer uma tradução sociológica e jurídica do lugar feminino no
mundo do islamismo, apresentando uma leitura crítica do lugar-
comum patriarcal. A autora do capítulo descreve bem a contribuição
de Mernissi, argumentando que o mundo árabe-islâmico não tem
razões suficientes para defender o sexismo e a submissão feminina.
Além de Mernissi, outro intelectual africano fez uma incursão
profunda e cuidadosa na cultura árabe-islâmica é Malek Chebel.
Ora, Murilo Sebe Bon Meihy brinda-nos com uma apresentação
precisa. O argelino Chebel era bacharel em letras árabes e filo-
sofia, especializado em psicanálise e antropologia e trouxe uma
contribuição original. Chebel argumentou que o Islã não se opõe
ao Ocidente. Entretanto, uma leitura distorcida do complexo

11
IntelectuaIs das áfrIcas

cultural árabe-islâmico que projetou o papel de rival da cultura


ocidental equivocadamente. Em tempos, de significativa circulação
de estereótipos sobre o islamismo, a leitura de Malek Chebel é
obrigatória e, nada melhor, do que começar a conhecê-lo por meio
do trabalho de Meihy.
No segundo capítulo, Regiane Augusto de Mattos apresenta o
filósofo Valentim Mudimbe situando-o como um intelectual, diga-
mos “polirracional”. Afinal, cita o próprio Mudimbe falando de sua
vivência entre dois mundos, da iniciação Luba-Sonkye e da escola
regular ocidentalizada. Mudimbe propõe um percurso intelectual
translocal. A translocalidade mudimbeana é um pensamento que
trata de experiências plurais partilhadas entre mundos africano
e europeu, nas interseções e vivências entre colonizador e colo-
nizado. Mattos descreve a riqueza da experiência do intelectual,
um acadêmico feito no mundo colonial, herdeiro de uma tradição
cultural africana, formado pela cultura católica beneditina. Outro
filósofo que aparece na obra por intermédio da redação de Itamar
Pereira de Aguiar é o costa marfinense Paulin Jidenu Hountondji.
Uma das maiores contribuições de Hountondji está nas objeções
à etnofilosofia, assim como nas hipercríticas às condições epis-
temológicas das ciências humanas e as possibilidades de novas
práticas através de línguas africanas. Aguiar tem a felicidade de
fazer uma bela radiografia da trajetória e interesses intelectuais
de Hountondji. A envergadura do filósofo costa marfinense é bem
tratada por Aguiar. Hountondji é um filósofo influente que abriu
várias linhas de investigação, incontornável quando o assunto é
história da filosofia africana contemporânea.
O leão e a jóia, este é o título de uma bela obra do nigeriano
Wole Soyinka. O título do capítulo dá a exata dimensão bem expli-
citada neste livro de 1962, um trabalho em que a modernidade e a
tradição disputam protagonismo na África do presente. Divanize
Carbonieri escreve com escuta atenta à literatura soyinkiana. O
objetivo é enfrentar o pensamento abissal ocidental, através de
uma estratégia denominada por Carbonieri de “cosmopolitismo

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IntelectuaIs das áfrIcas

vernacular”. Soyinka assume seu lugar de fala como ponto de


partida para construção de um conhecimento acadêmico e polí-
tico dentro de uma linguagem literária partindo da cosmologia e
mitologia iorubás.
António Emílio Leite Couto, conhecido como Mia Couto é um au-
tor bastante popular no mercado editorial literário da Comunidade de
Países de Língua Portuguesa (CPLP). Tânia Macedo, autora do capítulo,
é feliz na condução do texto, inicia com um trecho de uma entrevista
que, somente o seu comentário, valeria um livro. Couto é perguntado
se optou por ser moçambicano ao invés de retornar a Portugal, terra de
sua família. Depois de abandonar o curso de medicina, a formação na
área de biologia, aguçou o olhar do escritor num contexto de transfor-
mações na relação entre Portugal e Moçambique. O olhar de ecologista
e jornalista trouxe matéria prima para sua construção literária ímpar.
Num trecho da entrevista, Mia Couto diz que, em certo momento
da vida, deixou a militância política para continuar fazendo política
através de sua escrita. Outro que faz militância política por meio da
literatura (ou seria uma literatura desconolizadora?) é Uanhenga Xitu,
um angolano da etnia kimbundu que estudou enfermagem e ciência
política. Washington Santos Nascimento assumiu o desafio de, além
de organizar o livro, apresentar Xitu, um autor que transitou de modo
tão dinâmico durante a vida que fica difícil categoriza-lo dentro de uma
escola ou período literário. Nascimento consegue descrever Xitu para
quem nunca teve acesso às suas obras. Xitu esteve ligado às missões
cristãs, num período apoiou e integrou as que foram capitaneadas
pela Igreja Católica Apostólica Romana, algum tempo depois sentiu-se
mais acolhido pelos grupos protestantes. Xitu também foi membro
do Movimento Popular de Libertação de Angola (MPLA), preso em
1959 quando tinha 35 anos. Xitu autodefiniu-se como um contador
de histórias, seu objetivo era descolonizar a literatura e, quiçá, como
nos diz Nascimento: angolanizar Angola. Ao lado de Washington
Santos Nascimento, o historiador Silvio de Almeida Carvalho Filho
também assumiu este desafio de presentear o grande público com esta
obra. Carvalho Filho apresentou outro escritor angolano, Artur Carlos

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IntelectuaIs das áfrIcas

Maurício Pestana dos Santos, mais conhecido como Pepetela. Carvalho


Filho faz uma anamnese da trajetória de Pepetela, sem a pretensão
de um mosaico que dê conta de seus romances, textos acadêmicos,
entrevistas e crônicas jornalísticas dentro de um contexto de esquerda.
O capítulo escrito por Amailton Magno Azevedo encarou um
desafio, ele adentrou uma seara que nada tem de fácil, poucos
anos depois da do lançamento da tradução da biografia de Fela
Kuti escrita por Carlos Moore, Azevedo debruçou-se sobre a aven-
tura de apresentar Kuti, o “pai do afrobeat”. Kuti é um dos grandes
nomes da cena mundial musical, uma reinvenção da África imersa
no contexto daquilo que passou a ser chamado de renascimento
africano. Ora, essa sob o prisma da descolonização e imersa no
contexto do renascimento que a música de Fela Kuti torna-se uma
descolonização de corpos e almas.
Amilcar Cabral é celebrado merecidamente, uma das referên-
cias políticas mais decisivas durante o processo de descolonização
africana. Cabral foi como um meteoro, apesar do pouco tempo de
vida. Sua presença política foi muito intensa. Fabio Baqueiro deixa
explicito no penúltimo capitulo do livro que Cabral, apesar de ter
vivido pouco, assassinado aos 48 anos de idade. Ele foi um ativista
e líder político que influenciou todo o continente. De Guiné-Bissau
para toda a África e o mundo inteiro, à medida que o poeta tinha
uma capacidade de articulação e criar convergências que ameaça-
ram o projeto colonial português. Baqueiro põe em relevo a sa-
cralização da figura de Amílcar Cabral, ressaltando que isso trouxe
alguns inconvenientes: uma leitura enviesada. Parte dos intérpretes
de Cabral atribuem-lhe a defesa de um multiculturalismo conjugado
a preservação da diversidade étnica. Ora, Baqueiro enfatiza que o
intelectual Bissau-guineense era adepto do nacionalismo africano.
No último capítulo, encontramos um dos mais decisivos divi-
sores de águas para os estudos pós-coloniais, Frantz Omar Fanon.
Um homem que viveu pouco tempo, apenas 36 anos. Mas, foi capaz
de trazer, com apenas dois livros, um encaminhamento urgente: a

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IntelectuaIs das áfrIcas

urgência da descolonização. Muryatan S. Barbosa apresenta com


o cuidado necessário a envergadura e o raio de ação de um pen-
sador que, no Brasil, foi inicialmente lido pelo Movimento Negro
já nos anos 1970. Décadas depois, a inclusão de Fanon na agenda
da Grande Área de Ciências Humanas tornou-se praticamente
obrigatória. Não raramente Fanon hoje é lido como precursor dos
estudos pós-coloniais e da decolonialidade. O camaronês Achille
Mbembe, assume-se fanoniano. Ele aparece sob a escrita de José
Rivair Macedo, tal como é: um dos maiores intelectuais públicos
do mundo contemporâneo, um dos pensadores africanos mais ce-
lebrados na atualidade. Mbembe é dono de obras que não deixam
dúvidas. Nós estamos diante um pensamento incontornável para
uma aproximação crítica e notável da história do presente. Mbembe
tem algo em comum com Fanon – talvez seja ousado afirmar isso
– é um divisor de águas naquilo que diz respeito à capacidade de
entender o cenário político contemporâneo. Se Fanon ficou diante
do nazismo, do facismo e da colonização; Mbembe encontrou-se
de frente com novos desafios, ao invés da biopolítica, uma necro-
política e uma crítica à razão que transforma as pessoas da classe
trabalhadora em corpo-ferramenta e corpo-mercadoria.
Este livro nasce com um propósito de ser um projeto em curso,
uma das apostas é que o grande público não fique satisfeito com
apenas uma edição. Sem dúvida, uma nova seleção de intelectuais
será convocada para futuras edições. Por fim, vale a pena comentar
a citação que abre o prefácio. A epígrafe é um convite para que
possamos revitalizar a África como território intelectual. A África
não é um lugar no passado; mas, está presente na urgência de
pensarmos o futuro de toda a humanidade. Este livro cumpre o
papel de provocar com a devida qualidade, mobilizando leitoras e
leitores para descolonizar a África, abandonar ficções míticas sobre
o continente, injetando em nossos corações e mentes doses largas
de elementos críticos para releitura da realidade.

Rio de Janeiro, 08 de agosto de 2017

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IntelectuaIs das áfrIcas

INTELECTUAIS DAS ÁFRICAS: APROXIMAÇÕES

Silvio de Almeida Carvalho Filho


Washington Santos Nascimento1

Na primeira frase da Introdução Geral do volume I da História


Geral da África, Joseph Ki-Zerbo anuncia: “A África tem uma história”.
Eram finais da década de 1970, mais do que uma proposição, era
um grito que anunciava a tão esperada edição dos livros que conta-
riam a história do continente segundo a perspectiva dos africanos,
mesmo que vários autores fossem africanistas estrangeiros. Essa
coleção trazia a produção de uma série de intelectuais africanos,
pela primeira vez juntos, do porte de Cheikh Anta Diop (Senegal),
Amadou Hampate Ba (Mali), Joseph Ki-Zerbo (Alto Volta, atual
Burkina Faso), Theofile Obenga (República Popular do Congo) e
Elikia M’ Bokolo (República Democrática do Congo.
Era, desta forma, uma demarcação importante no campo da
produção científica mundial, reafirmando, mais uma vez, a ideia
de um continente que produz conhecimento e ciência e que, além
disso, os seus intelectuais podiam repensar os cânones ocidentais
e propor uma renovação epistemológica, importante e necessária
para o descentramento da produção científica do norte ocidental.
Do mesmo modo, trazia a ideia, que hoje pode parecer estapafúr-
dia, mas que sim, a África tinha intelectuais! Com essa premissa,
este livro, Intelectuais das Áfricas, foi pensado.

1 Doutor em História Econômica pela Universidade de São Paulo (USP). Professor da Universi-
dade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

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IntelectuaIs das áfrIcas

O acúmulo de discussões desenvolvidas por nós, diante do


cenário acadêmico, no que se refere à produção em torno de
temas ligados à História da África, fez-nos perceber, no Brasil,
uma quase ausência de obra que trace uma análise a respeito
de intelectuais africanos ou sobre os que pensaram com inserção
tão intensa no continente, que podemos considerá-los africanos,
mesmo que lá não tenham nascido, como Frantz Fanon2. Temos a
convicção de que as reflexões desses intelectuais fornecem-nos
caminhos para entendimento das sociedades africanas e de seus
problemas ao longo de suas historicidades, podendo inspirar
novas pesquisas relativas ao continente. Portanto, resolvemos
lançar-nos nessa empreitada, organizando um livro nesse intuito.
Para dar conta da diversidade de perspectivas teóricas dos
autores convidados para construir este livro, adotamos um concei-
to relativamente abrangente de intelectual, aqui entendido como
um indivíduo que, a partir do continente africano, reflete, teoriza,
imagina, projeta e produz sobre as suas sociedades, formulando
construções teórico-metodológicas que vão além da realidade afri-
cana. Em nossa concepção, o intelectual não é apenas o que possui
uma produção estritamente escrita, mas, também, todo aquele que
exerce práticas intelectuais em outras áreas da cultura e do poder,
como a música e o cinema.
Os intelectuais africanos foram hábeis na arte de representar
– escrevendo, falando, ensinando, cantando, opinando na mídia
ou fazendo cinema. Se a maior parte deles simbolizou sentimen-
tos e ideias por meio da escrita, houve muitos que o fizeram por
meio das letras, das músicas ou de imagens e diálogos em pelí-
culas cinematográficas. Portanto, entre os intelectuais africanos
escolhidos por nós para serem analisados nesta obra, podemos
encontrar um músico, Fela Kuti; um cineasta, Sembène; litera-
tos, como Uanhenga Xitu, Soyinka, Pepetela, Chimanda Adichie;
filósofos, tais quais Mudimbe, Hountondji e Mbembe; cientistas

2 Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Professor da Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).

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IntelectuaIs das áfrIcas

sociais, que nem Fatema Mernissi e Malek Chabel; e um grande


pensador, como Fanon. 3
De maneira específica, em relação ao continente africa-
no, interessa-nos perceber como esses indivíduos partem de
suas histórias locais para articular projetos globais, ou vice-versa,
além de transitarem em um espaço de disputas e conexões entre
o tradicional, o étnico e o regional, por um lado, e o moderno, o
nacional e o global, por outro. Por fim, as ideias-chave, Intelectual
e África, articulam os capítulos entre si.

O TERMO INTELECTUAL

O termo intelectual, tal qual em grande parte trabalhamos na


produção historiográfica brasileira, tem a sua origem no Ocidente,
em finais do século XIX, na França, por conta do Caso Dreyfuss.4
A partir de então, intelectual passou a representar aquele que
transforma uma determinada autoridade intelectual em autorida-
de política, tendo como ponto de partida sua autoridade moral5.

3 Um dos primeiros livros que trazem uma perspectiva de pensamento africano foi o organizado por
Elisa Larkin Nascimento. NASCIMENTO, Elisa Larkim. (Org.) Afrocentricidade: uma abordagem
epistemológica inovadora. São Paulo: Selo Negro, 2009. Mais recentemente, um dos autores do
nosso livro, José Rivair Macedo, organizou a obra “O Pensamento Africano no século XX”. MA-
CEDO, José Rivair Macedo, O Pensamento Africano no Século XX, São Paulo: Outras Expressões,
2016, e, em 2019, uma coletânea de pensadores marxistas africanos também foi organizada por
Jones Manoel e Gabriel Landi Fazzio, “Revolução Africana – Uma Antologia do Pensamento
Marxista” pelo selo Quebrando Correntes, 2019. MANOEL, Jones e FAZZIO, Gabriel Landi.
Revolução Africana – Uma Antologia do Pensamento Marxista. Quebrando Correntes, 2019. Por
sorte nossa, diferentes revistas acadêmicas têm organizado dossiês trazendo para o Brasil traduções
ou pesquisas relativas a estes intelectuais.
4 Quando nos referimos a intelectuais africanos estamos falando tanto de homens quanto de mu-
lheres. Diferentemente da primeira edição do livro, desta vez preferimos retirar o “africanos/as”
por conta da fluidez do texto. Quando for importante fazer um demarcador de gênero usaremos
“os intelectuais africanos e africanas”.
5 Alfred Dreyfus, um francês judeu, foi injustamente acusado em seu país de fornecer documentos
secretos ao exército alemão. Preso em 1894, ele foi julgado de maneira sumária e condenado à
degradação militar e à prisão perpétua. Em 1898, foram encontradas evidências de sua inocência,
provocando a indignação do escritor Émile Zola (1840-1902), que escreveu, em 1898, carta aberta
ao presidente francês, publicada na imprensa, intitulada J’Accuse!, gerando um debate público por
mais de oito anos até Dreyfus ser totalmente inocentado em 1906. Longe de ter sido somente
um erro judiciário, o então intitulado “Caso Dreyfus” correspondeu a uma das maiores crises
políticas da III República francesa, na qual os intelectuais tiveram alta participação nos debates.
RODRIGUES, Helenice. O intelectual no “campo” cultural francês: do “Caso Dreyfus” aos tempos
atuais. Varia História, Belo Horizonte: Universidade Federal de Minas Gerais, Pós-Graduação em
História, v. 21, n. 34, p. 395-413, jul. 2005.

19
IntelectuaIs das áfrIcas

Por conseguinte, neste livro, procuramos estudar alguns homens


e mulheres africanas que, nos séculos XX e XXI, usaram o lugar
de autoridade conseguido no campo cultural para exercer uma
prática política e moral em face do colonialismo e das sociedades
e Estados pós-independência.
Na disciplina histórica, o saber sobre os intelectuais situa-se no
cruzamento das histórias política, social e cultural. No âmbito da
historiografia francesa e daquelas por ela influenciada, os estudos
sobre os intelectuais entrou em descrédito após a década de 1920
com a crítica sobre a visão acerca da história política, advinda do
século XIX, moldada pela concepção de que a História deveria
dedicar-se aos grandes homens.6 Essa percepção negativa sobre
a história dos intelectuais passou a ser gradativamente destruída
pelos fatos. O papel dos intelectuais franceses, em especial de Jean
Paul Sartre, na crítica à atuação de seus compatriotas na Guerra da
Argélia (1954-1961), fortaleceu na França a percepção de que os
intelectuais interferiam em eventos significativos da vida social.
Todavia, na historiografia, a história intelectual só retomou seu
status após a segunda metade da década de 1970, com o início de
nova abordagem sobre a história política, o fortalecimento de uma
história cultural e a afirmação da história do tempo presente.7 Entre-
tanto, o mesmo não pode ser dito para os Estudos Africanos e para
a historiografia preocupada com o continente africano. Textos sobre
Cheik Anta Diop, Léopold Senghor, Kwame Nkrumah e Franz Fanon
já eram divulgados no bojo do movimento do Pan-africanismo ou
da Negritude, como forma de resistência à argumentação de que
a África era um continente sem história e com uma estrutura de
pensamento “atrasada” ou “selvagem”.

6 WOLFF, Francis. Dilema dos intelectuais. In: NOVAIS, Adauto (Org.). O silêncio dos intelectuais.
São Paulo: Companhia das Letras, WOLFF, 2006, p. 47.
7 ZANNOTTO, Gizele. História dos intelectuais e História intelectual: contribuições da historio-
grafia francesa. Biblos. Revista do Instituto de Ciências Humana e Informação, Rio Grande,
Universidade Federal do Rio Grande (FURG), v. 22, no. 1, p. 31-45, 2008, p.34.

20
IntelectuaIs das áfrIcas

OS INTELECTUAIS DAS ÁFRICAS: ORIGENS E INFLUÊNCIAS

No continente africano, em linhas gerais, o surgimento dos


intelectuais está ligado a três origens distintas, porém, de certa
forma, complementares: o universo, o qual chamaremos de “tra-
dicional”; o islamismo; e a escolarização europeia. Em algumas
regiões do continente, como o norte, esses três processos forma-
tivos encontram-se, divergem entre si e misturam-se, por isso os
intelectuais atuam quase sempre como criadores, mas, também,
como mediadores culturais entre os diversos estratos sociais.
Formados no período do colonialismo europeu em África,
outro traço comum aos intelectuais africanos, abordados por nós,
é o engajamento, quer no empenho anticolonial e nacionalista,
quer na construção e gestão do Estado-Nação, ou mesmo em lutas
mais recentes, como os direitos das mulheres.
A intelectualidade africana da qual falamos é justamente aquela
que viveu o processo do fim da colonização, a descolonização e a
emergência dos novos Estados africanos independentes, portanto
existiu no século XX ou ainda vive no início do XXI. Eles apropria-
ram-se de teorias e metodologias ocidentais, algumas vezes as
hibridizaram com outras provenientes do continente africano, do
Islã e mesmo dos intelectuais negros estadunidenses e caribenhos.8
Entre eles, destacam-se algumas mulheres que conseguiram fazer
ouvir suas vozes, mesmo em sociedades androcêntricas.
Neste livro, retratamos as atuações de Fatema Mernissi e Chi-
mamanda Ngozie Adichie, que mostram a necessidade de pensar
para além dos designativos patriarcais de origens europeias e que
ainda estão presentes nas sociedades africanas. Mas, poderíamos
elencar, entre várias outras, a antropóloga feminista senegalesa
Awa Thiam, a escritora feminista ugandense Hilda Twongyeirwe,
a ganesa Abena Busia e as nigerianas Ifi Amadiume e Oyèronkè
Oyèwúmi como responsáveis por fazer uma crítica interna em
8 SIRINELLI, Jean-François. “Os intelectuais”. In: RÉMOND, René (Org.) Por uma história
política. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2003, p. 237-238; ZANNOTO, 2008, p. 34-35.

21
IntelectuaIs das áfrIcas

relação aos enquadramentos europeus e seus impactos epistemó-


lógicos e sociais.9 Talvez uma segunda obra sobre os Intelectuais
das Áfricas pudesse ser dedicada integralmente às mulheres, evi-
denciando, dessa forma, a pujança emergente do poder feminino
no continente.
Esses homens e mulheres tiveram (e têm) um papel público,
sendo, dessa forma, indivíduos que possuem vocação para repre-
sentar, dar corpo e articular uma mensagem ou mesmo um ponto
de vista, atitude, filosofia ou opinião para, mas também por, de-
terminada coletividade.10 Esse papel público faz com que também
dialoguem com outros suportes que não somente a escrita cien-
tífica, contribuindo para o processo de descolonização do conhe-
cimento e de construção de redes, responsáveis pelo trânsito de
conceitos, ideias e posicionamentos políticos diversos, favoráveis
aos processos libertários.11
Muitas vezes, eles se remetem a pensamentos africanos an-
teriores à chegada dos colonizadores em seus territórios. Como
os diferentes textos irão mostrar, há influência de matrizes pré-
coloniais no tipo de conhecimento produzido e sistematizado pelos
intelectuais que são objeto do livro. Esses são, de certa forma,
produtos daquilo que Mary Louise Pratt vai chamar de “zonas de
contato”, ou seja, espaços sociais estruturados a partir da presença
colonial, onde culturas diferentes encontram-se, chocam-se e se
hibridizam, a despeito da violência e das relações assimétricas de
subordinação presentes12. Além disso, foram fortemente influencia-
dos pelo Pan-Africanismo e pela Negritude, quer dialogando, quer
se coadunando, quer, até, se diferenciando desses movimentos.

9 MACEDO, José Rivair. O pensamento africano no século XX. São Paulo: Outras Expressões,
2016, p. 281
10 Awa Thiam, Hilda Twongyeirwe e Abena Busia são feministas, as duas primeiras muito conhecidas
pela luta contra a mutilação genital de mulheres africanas, enquanto a terceira é famosa por sua
poesia.
11 SAID, Edward W. Representações do Intelectual. As Conferências de Reith de 1993. São Paulo:
Companhia das Letras, 2005, p.25.
12 HERNANDEZ, Leila Leite. A itinerância das ideias e o pensamento social africano. Anos 90
(UFRGS. Impresso), v. 21, p. 195-225, 2014.

22
IntelectuaIs das áfrIcas

AS INFLUÊNCIAS DO PAN-AFRICANISMO, DA NEGRITUDE E DO


AFROPOLITANISMO

O Pan-Africanismo e a Negritude foram dois importantes mo-


vimentos político-ideológicos de resistência dentro do continente
africano e que, mesmo de forma indireta, influenciaram vivamente
os intelectuais. O primeiro era (e é) centrado na ideia de anterio-
ridade africana, que levaria a um “sentimento racial” gerador da
solidariedade entre os descendentes de africanos. Já o movimento
da Negritude, que surgiu em finais da década de 1930, é centrado
na positividade do ser negro e da cultura negra. O termo apare-
ceu em 1939 no poema lírico Diário de um retorno ao país natal, do
antilhano da Martinica Aimé Césaire. Mais tarde, Léopold Senghor
desenvolveu a ideia em suas diferentes obras, servindo, assim, de
base para diversos intelectuais e movimentos de resistência não
só no mundo africano, como, também, no diaspórico.
O sentimento de que pertenciam a uma vasta comunidade,
o orgulho da África, a luta não contra o sistema, mas contra seus
abusos são marcas dos primeiros anos do Pan-Africanismo. Somente
depois da invasão da Etiópia por Mussolini em 1935 é que a luta
pelas independências entrou na agenda pan-africana. Esse aspecto,
por exemplo, influenciou, inclusive, a obra cinematográfica do sene-
galês Osmane Sembène, que ressaltou a importância do movimento
em cimentar uma unidade ideológica, “uma rede de solidariedade
frente ao colonialismo”, muito mais determinante, em sua opinião,
que uma herança biológica ou geográfica.13 Segundo essa ideia de
coparticipação, o pan-africanista Amílcar Cabral, líder da indepen-
dência de Cabo Verde e Guiné-Bissau na década de 1960, postulava
que a libertação na África não poderia caminhar apenas na linha da
independência de cada colônia, mas de toda a África.14 Portanto,

13 PRATT, Mary Louise. Os olhos do império: relatos de viagem e transculturação. Bauru/São Paulo:
EDUSC, 1999.
14 LIMA JÚNIOR, David Marinho de. Descolonizando as mentes: Ousmane Sembène e a proposta de
um Cinema Africano na década de 1960. Dissertação (Mestrado do Programa de Pós-Graduação
em História Social da Cultura) - Departamento de História do Centro de Ciências Sociais, PUC-
Rio. Rio de Janeiro, 2014, p.. 40, 109.

23
IntelectuaIs das áfrIcas

com a luta pela descolonização africana, esse Pan-Africanismo “con-


tinental” passou a estimular a unificação de toda a África em um
único Estado, englobando populações negras ou não. A ideia de uma
unidade estatal de todo o continente para estimular o desenvolvi-
mento africano teve em Nkrumah, líder da independência ganesa,
governante do país entre 1957 e 1966, um dos principais difusores.
Mas, o Pan-Africanismo “continental” sempre foi prejudicado pela
xenofobia aos estrangeiros africanos, pelas divergências ideológicas
entre os regimes africanos de esquerda e direita, pelas enormes
distâncias geográficas intercontinentais, pelas dificuldades de co-
municação, pelas prioridades econômicas, pelos interesses de cada
governo em relação à aliança com Estados não africanos, assim como
pelas alianças regionais., que, vez por outra, ensaiaram-se no terri-
tório africano. Por isso, ante a proposta unificadora do líder ganês
já no início da década de 1960, os dirigentes africanos dividiram-se
em dois grupos: primeiro, aqueles que queriam uma união política
forte, um futuro Estado; segundo, os que apenas desejavam uma
confederação suave de Estados plenamente soberanos, preocupados
com a construção de cada Estado nacional e com a manutenção das
fronteiras coloniais.15
Apesar dos esforços de chefes de Estado, como Nkrumah
(Gana) e Kenyatta (Quênia), que desejavam um futuro Estado
africano unificado, os interesses particulares dos Estados recém-
independentes caminharam não para uma integração estatal de
toda a África, mas para uma união entre Estados independentes
e soberanos em torno de uma solidariedade internacionalista de
natureza supostamente anti-imperialista. Surgiu, assim, em 1963,
a Organização da Unidade Africana (OUA), vencendo, portanto, a
vontade da segunda vertente, que desejava apenas uma organização
interestatal. Fustigando o endeusamento dos novos Estados afri-
canos descolonizados, a escritora nigeriana Chimamanda Adichie

15 CASSAMA, Daniel Júlio Lopes Soares. Amílcar Cabral e a independência da Guiné-Bissau e Cabo
Verde. Dissertação (Mestrado do Programa de Pós-graduação em Ciências Sociais). Faculdade
de Ciências e Letras, Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho, Araraquara (SP),
2004, p.81-82.

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IntelectuaIs das áfrIcas

faz um dos seus personagens lembrar-nos de que esses são, em


grande parte, uma criação branca16, logo permite-nos pensar o que
eles poderiam trazer de herança dos antigos estados coloniais em
África com suas fronteiras nascidas de forma artificial, seu autori-
tarismo e suas corrupções.
Na medida em que o combate ao racismo foi uma das ban-
deiras do Pan-Africanismo, mas, também, da Negritude, eles ob-
tiveram nesse aspecto a simpatia de vários intelectuais africanos,
mesmo daqueles que vão criticar mais tarde esses movimentos.
Inicialmente, o Pan-Africanismo e a Negritude caracterizaram-se
primordialmente por sua face racialista, ao atestarem a não in-
ferioridade da raça negra. Isso permitiu que vários intelectuais
africanos embandeirassem, como o músico Fela-Kuti, a partir da
década de 1960, a valorização da raça negra como negadora do
eurocentrismo e da branquidade, o que tornou a obra desse artista
uma arte de contracultura.
Essa postura questionadora da superioridade branca é reto-
mada até por intelectuais contemporâneos contestadores de vários
aspectos do movimento, situando-se para além dele. Exemplo
disso, encontramos na obra literária de Chimamanda Adichie, que,
no livro Meio Sol Amarelo, publicado em 2006, faz um personagem
sustentar que os negros foram e são emparelhados pela mesma
opressão branca.
Contudo, o antiocidentalismo e a crítica à branquidade
exacerbados de setores do Pan-Africanismo terão suas reservas e
limitações entre intelectuais africanos na pós-colonialidade, tais
como o nigeriano Wole Soyinka, o literato angolano Pepetela ou
o moçambicano Mia Couto. Soyinka, por exemplo, postulou uma
África que, questionando a tradição europeia e cosmopolita, não
a rejeita, muito pelo contrário, com ela dialoga. Portanto, propôs
valorização das culturas do continente, sem a denegação de qual-
quer aporte, apenas porque esse provinha de uma alteridade não
16 M’BOKOLO. África Negra: história e civilizações. Salvador: EDUFBA; São Paulo: Casa das Áfricas,
2011 p; 588-639.

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IntelectuaIs das áfrIcas

africana. Logo, mais do que confrontar com o ocidental, precisa


restabelecer o que é mais radicalmente africano. Esse último deve
continuar a sê-lo, mesmo quando híbrido ou mestiço, consequen-
temente, sem preocupações puristas.
O angolano Pepetela, assim como o moçambicano Mia Cou-
to, ambos brancos africanos, exaltadores das culturas locais, não
embarcaram na idealização da raça negra; estão abertos à mistura
das culturas, não crendo mais em uma raiz cultural negra original,
pura e intocada. Não é sem propósito que Mia Couto, em Um rio
chamado tempo, uma casa chamada terra, narra uma conversa entre
membros de uma família negra. Quando um deles espanta-se que
nela haja tantos mulatos, o outro retruca: “neste mundo, todos
somos mulatos”.17 Afinal, pela inevitabilidade das mudanças, toda
a identidade africana transforma-se por apropriações de outras,
inclusive as ocidentais, sem que isso a obrigue necessariamente
a renegar o que lhe é anterior ou mais original. O hibridismo cul-
tural torna-se a tônica, pois até os negros seriam culturalmente
“mulatos”, isto é, híbridos e heterogêneos. Ao longo dos séculos,
as culturas africanas sempre se apropriaram de traços culturais
entre si e de outras fora do continente.
O Pan-Africanismo e a Negritude assentaram-se, por vezes, em
uma solidariedade negra ancestral pré-colonial, essencializada, o
que permitiu o músico Fela-kuti, a partir da década de 1960, pro-
por, em sua arte, uma vertente centrada na solidariedade negra
baseada em uma identidade ancestral, pré-colonial, imaginada.
Essa identidade africana pré-colonial idealizada e imaginada será
atacada na pós-colonialidade por intelectuais africanos de forma
delicada, como o faz Osmane Sembène, ou, mais radicalmente,
os escritores nigerianos Wole Soyinka e Chimamanda Adichie ou,
mesmo, o filósofo camaronês Achille Mbembe.
Reconhecendo as influências pan-africanistas e negritudunis-
tas em sua obra, Sembène rejeitou, como o fez também Amílcar
17 Idem, p. 588-639 e MBEMBE, Achille. Sair da Grande Noite. Ensaio sobre a África Descolonizada.
Luanda: Edições Mulemba; Mangualde (Portugal): Edições Pedago, 2014, p. 179.

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IntelectuaIs das áfrIcas

Cabral, em meados da década de 1960, ou Chimamanda Adichie,


em 2006, a ideia homogeneizante de uma única identidade afri-
cana. Embora advogando, Sembène e Cabral, a unidade africana
em torno de propósitos políticos, admitiram a existência em seu
interior de uma pluralidade cultural, proclamando a necessidade
de “uma unidade na diversidade”.18 Chimamanda Adichie vai mais
além, faz um de seus personagens de Meio Sol Amarelo, publicado
em 2006, afirmar que o negro é, em grande parte, uma criação
branca, o que possibilita afirmar que essa identidade negra unifor-
me e essencializada faz parte dessa criação. Acutilando a crítica,
Wole Soyinka assevera que a idealização romântica da raça negra,
realizada pelo Pan-Africanismo e pela Négritude, gerou uma visão
acrítica e artificial dos africanos19.
Ultrapassando o Pan-Africanismo, Achille Mbembe, em 2010,
ao impetrar o que intitulou de Afropolitanismo, postulou que não
se tratava mais de retomar a todo custo um passado glorificado,
mesmo que esse permanecesse no presente como uma imagem
mental ou o desejo de se retornar a uma singularidade essencial,
realidades muito caras ao Pan-Africanismo. Para a sensibilidade
afropolitana de Mbembe, o importante não é a volta ao passado,
por si só impossível, mas a autocriação, o autoengendramento e
a autoexplicação, realizados pelos africanos em cada momento e
lugar de sua história, a gestação de uma estética de transgressão
que exprima o sofrimento do homem africano ou afrodescenden-
te por meio dos instrumentos que ele usualmente faz: a religião,
a música e a literatura e, por que não dizer, as artes em geral.
Mbembe está preocupado não tanto com o passado, mas com a
nova era de dispersão e circulação das recentes diásporas africanas
pelo mundo, quando a África deixa de se constituir como centro
e torna-se polos de passagem, circulação, repetição, um imenso
18 COUTO, Mia. Um rio chamado tempo, uma casa chamada terra. São Paulo: Companhia das Letras,
2003, p.59.
19 FRANCO, Paulo Fernando Campbell. Amílcar Cabral: a palavra falada e a palavra vivida. Disser-
tação (Mestrado do Programa de Pós-Graduação em História Social). Departamento de História,
Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo. São Paulo., 2009,
p. 155-156;

27
IntelectuaIs das áfrIcas

intervalo, uma narração passível de inúmeras combinações e


composições, uma capacidade renovada de bifurcação. O africano
é tomado majoritariamente, mas não apenas, como negro, a raça
não é fator delimitador da africanidade, aí são considerados to-
dos os descendentes dos colonizadores, árabes ou europeus, dos
judeus, dos malaios, dos indianos, dos libaneses, dos sírios, dos
indo-paquistaneses, dos chineses, e, inclusive, dos africânderes20,
moradores ou migrantes na África e que se consideram também
africanos.

OS INTELECTUAIS AFRICANOS E O DEBATE PÚBLICO

Em linhas gerais, os intelectuais africanos procuraram exercer


influência sobre a opinião pública em relação a fatos como o co-
lonialismo, a descolonização ou os Estados e as questões sociais
emergentes no pós-independência, interpretando as realidades do
continente. Denunciaram a inferiorização racista e cultural à qual
foram submetidos ao longo do tempo. Questionaram a lógica da
supremacia civilizacional europeia, deploraram a colonização por
implantar um método de sujeição, desestruturando as sociedades,
as economias e as culturas africanas, realizando em vários setores
a “des-civilização” dos colonizados. Alguns, no pós-independência,
denunciaram o autoritarismo, o subdesenvolvimento e as relações
de classe e de gênero, alimentados por relações desiguais. E fize-
ram isso, primordialmente, por meio de ideias, representações,
visões de mundo, ensinamentos práticos e símbolos. Por meio de
produções culturais, persuadiram ou dissuadiram, encorajaram
ou desencorajaram, exprimiram juízos, deram conselhos, fizeram
propostas, induziram os outros a opinar sobre determinadas coisas.
Inicialmente, foram, em geral, mormente teóricos, entendendo aqui
a teoria como um projeto sistematizado pelo oral, visual ou escrito.
Os intelectuais africanos demandaram o direito de represen-
tar os dilemas vivenciados pelas populações africanas, de fazer e
20 ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Meio Sol Amarelo São Paulo: Editora Companhia das Letras,
2008.

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IntelectuaIs das áfrIcas

escrever as próprias histórias, rompendo os estereótipos forjados


pelos europeus ou pelo conservadorismo em África. Entre inúmeros
exemplos, podemos citar a escritora nigeriana Chimamanda Adi-
chie, que, a partir de uma autoridade cultural adquirida no campo
literário, passou a questionar a subalternização das mulheres afri-
canas. Colocaram-se perante o seu público como testemunhas das
injustiças, diante das quais as maiorias se calavam, instigando a
consciência moral de cada indivíduo que entrava em contato com
suas indagações. Uma das inúmeras experiências que podemos
ressaltar encontra-se na luta de Wole Soyinka contra as ditaduras
nigerianas, sendo, inclusive, preso por suas ações durante a guerra
de Biafra (1967-1970).
Suas políticas não foram as ordinárias dos governantes, da
classe política e dos partidos, da tomada das decisões executivas,
mas a da cultura, da grande política, dos grandes princípios, das
ideologias, dos programas, envolvendo valores, ideais e concepções
de mundo. Entretanto, alguns participaram de governos africanos,
como Senghor, que foi presidente do Senegal (1960-1980), ou Pe-
petela, vice-ministro da Educação do Estado Angolano entre 1976 e
1982. Contudo, a maioria experienciou conflitos com os governos
em toda ou em parte de suas vidas.
Em geral, foram iconoclastas, portanto, muito frequentemente,
estranharam e problematizaram, colocando em perspectiva o esta-
belecido. Tiveram de lidar reiteradamente no mundo ocidental com
um desconhecimento ou uma visão estereotipada dos problemas
africanos. Levantaram questões embaraçosas para o colonialismo,
para os regimes autoritários ou para as sociedades conservadoras
em África.
Os intelectuais africanos aqui estudados não foram, em geral,
homens ou mulheres apenas especialistas de gabinetes, em suas
torres de marfim, pois tiveram de sair delas, alguns, inclusive,
constituíram-se fora dessas torres. Muitos deles, como Soyinka,
Fatema Mernissi, Mudimbe, Hountondji, Malek Chabel, Mbembe

29
IntelectuaIs das áfrIcas

e Chimamanda Adichie, surgiram como intelectuais específicos de


suas áreas do saber, lidando com a linguagem especializada dessas
áreas21, mas todos chegaram ao lugar de um intelectual universal,
que vai além de seu campo de conhecimento, retomando as ques-
tões de grandes segmentos africanos.22
Ultrapassaram, muitas vezes, os auditórios regionais e nacio-
nais, tornando-se mundialmente conhecidos. Elaboraram análises,
concepções e ideias de esclarecimento e de exortação, que forma-
ram pessoas e deram lugar a uma abordagem não eurocêntrica da
história e aos estudos sobre as sociedades africanas, assim como
questionaram os parâmetros das relações do continente africa-
no com o europeu. Estiveram constantemente divididos entre o
dedicar-se ao objeto de suas indagações e o participar na prática
das soluções dos problemas africanos e internacionais, lidando
com questões fulcrais para as suas sociedades, como os debates
sobre a revolução, a autonomia política, as necessidades materiais
e políticas de seus contemporâneos.
Vários refutaram a visão homogênea sobre as sociedades
africanas, como fez Uanhenga Xitu, e denunciaram os sistemas
internos de dominação, como realizaram Fatema Mernissi, Soyinka,
Pepetela e Malek Chabel. Participaram de ações políticas para
transformação das estruturas sociopolíticas no continente, tendo
de lutar contra diversas formas de poder, inclusive contra as estru-
turas estatais autoritárias, seja as do período colonial, seja as do
pós-independência, portanto afirmaram-se muito frequentemente
contra as razões de Estado. Procuraram, muitas vezes, impedir que
o monopólio da força tornasse o monopólio do verosímil. Este livro
pretende analisar de que modo fizeram o seu engajamento político
e as consequências que assumiram por causa disso.

21 MBEMBE, Achille. Sair da Grande Noite. Ensaio sobre a África Descolonizada. Luanda: Edições
Mulemba; Mangualde (Portugal): Edições Pedago, 2014, p.179-182.
22 Aprofundando os campos específicos de cada um: Fanon (psiquiatria), Soiynka (Letras), Mernissi
(sociologia); Mudimbe e Hountondji (filosofia), Chabel (antropologia), Mbembe (história e
politologia), Adichie (comunicação).

30
IntelectuaIs das áfrIcas

Alguns intelectuais surgiram nitidamente no campo da pro-


dução cultural, com sua autonomia e valores respectivos, onde
adquiriram legitimidade para intervir no político. Outros engendra-
ram-se simultaneamente no campo político e cultural, adentrando
cada vez mais no político, e ainda há aqueles que, como Pepetela,
afirmaram-se mais no campo literário, após abandonar o estrito
campo político-partidário. Enfim, lutaram pela promoção da li-
berdade dos africanos e pelo conhecimento crítico das realidades
vivenciadas pela África. Muitos acreditaram que a independência
era o início do processo de emancipação, chegando, alguns, a
pensarem realidades novas, às vezes, utópicas, enquanto outros
acharam que era a sua conclusão.
Esses pensadores, ora lutaram por respeito às tradições locais,
ora defenderam mudanças. Em uns momentos, mais utópicos e
revolucionários, em outros, mais gradualistas, negociadores entre
o velho e o novo, estabeleceram frequentemente um diálogo entre
o local e o ocidental, gerando hibridismos, convivências compreen-
sivas com diferentes e opostos traços culturais. Na medida em que
atuavam nas lutas sociais, tornaram-se, muitas vezes, orgânicos,
participando de interesses de grupos nacionalistas e de segmen-
tos das populações africanas em face dos colonizadores ou dos
regimes conservadores e autoritários que se formaram em África
após a independência.
Resultantes da situação vivenciada por grande parte das
populações africanas e, muitas vezes, da marginalização como
letrados, os intelectuais africanos, não vinculados ao ideário ca-
pitalista por suas posições mais afeitas a um maior igualitarismo,
solidarizaram-se, em geral, com as maiorias subalternizadas, de-
sejando expressar as suas necessidades e reivindicações, enfim,
seus direitos humanos. Tendo uma posição mais progressista
ou mesmo à “esquerda” (em um sentido mais geral), foram, em
geral, perturbadores do status quo. Os intelectuais africanos, que
vivenciaram o período da descolonização e da solidificação de
regimes autoritários e de conservadorismo nas sociedades afri-

31
IntelectuaIs das áfrIcas

canas, agiram em sua maioria contra os meios de comunicação,


governos e grupos empresariais.
Muito constantemente, estiveram preocupados em organizar,
por meio de um grupo de difusores ou diretamente, a educação
política das massas. Frequentemente privilegiados por seu saber,
muitos procuraram contribuir para o surgimento de uma sociedade
na qual a diferença entre abastados e desfavorecidos se extinguisse
ou se atenuasse. Contudo, em determinados momentos, alguns
poucos cambiaram para o serviço dos poderosos ou do status quo.
Os intelectuais permaneceram, em geral, críticos do poder,
portanto, marginais ou exilados em relação a esse, não sendo fa-
cilmente cooptados por governos ou empresas. Temos de admitir,
contudo, que alguns renegaram essa vocação. Outros poucos não
conseguiram manter certa distância crítica de seus engajamentos,
tornando-se cegos por suas convicções. Ainda assim, nem sempre,
em suas práticas, conseguimos separar os dois tipos de atuação,
imbricando-as. Basta citarmos, como exemplo, Amílcar Cabral,
Nkrumah, Senghor. Muitas vezes, ao assumirem governos, aban-
donaram a posição extremamente crítica mais fácil aos intelectuais
de oposição, tendo de justificar reiteradamente regimes ao lado
dos quais passaram a assumir a liderança ou a defesa, desagra-
dando, consequentemente, vários companheiros. Muitos intelec-
tuais africanos, após a independência, com o assumir de regimes
autoritários, corruptos e cleptocratas, passaram a denunciar que
todas as dificuldades atuais da África, como ditaduras, guerras,
genocídios, fanatismo, machismo, corrupções, desperdícios, po-
luição, não poderiam ser atribuídas apenas à colonização. Entre
esses grupos de intelectuais, podemos citar Wole Soyinka, Fatema
Mernissi e Pepetela.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

As diferentes especificidades dos intelectuais africanos listadas


neste livro serão descritas nos capítulos a seguir, esperando que

32
IntelectuaIs das áfrIcas

possamos contribuir para um olhar mais complexo sobre a impor-


tância desses pensadores não só para o continente, mas para o
mundo como um todo. Temos convicção de que o nosso recorte,
apesar de não ser arbitrário, deixou de fora intelectuais extrema-
mente significativos, como Kwame Anthony Appiah e Oyèrónkẹ
Oyěwùmí, entre outros, o que nos leva ao desafio de construir
outros volumes de Intelectuais das Áfricas.
Da mesma forma, não temos a pretensão de imaginar, a des-
peito do que o título da obra possa sugerir, que abarcamos todas
as principais matrizes de pensamentos construídas a partir do
continente. O que pretendemos foi introduzir o leitor brasileiro
em um pouco dessa diversidade, incentivar novas leituras e, quem
sabe, até o mercado editorial do país a se voltar para esses letrados
do outro lado do Atlântico. Talvez seja um bom indicativo que,
depois da publicação de Intelectuais das Áfricas no início de 2018,
três obras de Achile Mbembe foram publicadas no Brasil.

Rio de Janeiro, outubro de 2018


* Revisado em outubro de 2019

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34
IntelectuaIs das áfrIcas

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de 1993. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
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Belo Horizonte, Editora da UFMG, 2004, p. 39-67.

35
IntelectuaIs das áfrIcas

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de Mesquita Filho, Franca, 2015.
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na obra de Mia Couto. Dissertação (Mestrado do Programa de Pós-
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SIRINELLI, Jean-François. Os intelectuais. In: RÉMOND, René (Org). Por
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THIOUB, Ibrahima. L’esclavage et le traites en Áfrique occidentale entre
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remisse à niveau sur l’histoire africaine à l’usage du Président Sarkozy. Paris:
La Découverte, 2009, p. 201-211.
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silêncio dos intelectuais. São Paulo: Companhia das Letras, 2006, p.
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contribuições da historiografia francesa. Biblos. Revista do Instituto
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do Rio Grande (FURG), v. 22, no. 1, p. 31-45, 2008.
SAID, Edward W. Representações do Intelectual. As Conferências de Reith
de 1993. São Paulo: Companhia das Letras, 2005, p.24.

36
IntelectuaIs das áfrIcas

ACHILE MBEMBE:
IMAGINAÇÃO, PODER E COSMOPOLITISMO
A PARTIR DA ÁFRICA

José Rivair Macedo1

O cientista político camaronês Achille Mbembe, nascido


em 1957, é, na atualidade, um dos autores africanos mais co-
nhecidos no Ocidente, um dos mais discutidos e, muito prova-
velmente, um dos mais controversos. Produzida parcialmente
no continente africano e parcialmente fora dele, sua extensa
obra2 revela traços indeléveis de originalidade, capacidade crí-
tica e sofisticação teórica, chamando atenção dos especialistas
internacionais e exercendo determinada influência no debate
africanista recente.
No presente capítulo, serão apresentadas as principais linhas
de rumo de suas interpretações da realidade africana e um mape-
amento provisório do aparato conceitual e metodológico que lhe
dá sustentação. O objetivo é fornecer uma visão introdutória de
sua trajetória intelectual ao público brasileiro que pouco a conhece
devido à inexistência de livros dele publicados entre nós. Espera-

1 Professor titular do Departamento de História - UFRGS; docente permanente do PPG em


História - UFRGS; Coordenador do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros, Indígenas e Africanos,
NEAB-UFRGS; Coordenador da Rede Multidisciplinar de Estudos Africanos - ILEA-UFRGS;
Pesquisador nível 1D do CNPQ, com o projeto de pesquisa: “Portugueses e africanos no contexto
da abertura do Atlântico (séculos XV-XVII)”, em vigência entre 2013-2017.
2 Um detalhado levantamento bibliográfico de sua produção intelectual entre os anos 1982-2004
permite avaliar a gradual afirmação de suas ideias nos meios intelectuais. Neste sentido, ver
NOVACK, John L.; FERNANDEZ, Melissa. Achille Mbembe. A bibliography. In: Wellek Library
Lectures, 2004. Disponível online: http://previous.lib.uci.edu/about/publications/wellek/docs/
Wellek2004AchilleMbembe.pdf (consulta em 12/04/2016).

37
IntelectuaIs das áfrIcas

se, inclusive, que a divulgação de suas ideias contribua de alguma


maneira para fazer diminuir esta lacuna.

OS ANOS DE FORMAÇÃO

Como acontecia habitualmente com os intelectuais africa-


nos da primeira geração do pós-emancipação, Mbembe estudou
inicialmente em estabelecimento missionário na pequena co-
munidade de Otélé, nos Camarões, mas, como lembra e registra
na primeira parte do livro denominado Sair da grande noite, em
vez de voltar a atenção para o cristianismo romano, sentiu-se
atraído pelo ideário da Teologia da Libertação e pela obra de um
dos mais influentes escritores do cristianismo negro-africano,
Jean-Marc Ela, a quem reconhece o débito inicial de sua forma-
ção intelectual3. Vivendo sob o regime ditatorial dos governos
de Ahmadou Ahidjo (1960-1982) e do sucessor dele, Paul Biya,
que governa o país desde então, os interesses de pesquisa do
jovem intelectual logo esbarraram nos limites impostos pelos
donos do poder.
Em 1980, concluiu a redação da dissertação de mestrado
na Universidade de Yaoundé, em que tratou da violência entre
os Bassa do Sul dos Camarões no contexto da insurreição an-
ticolonial, que antecedeu a emancipação do domínio colonial
francês. O trabalho gerou grande inquietação, por abordar temas
considerados delicados e não chegou a ser avaliado pela banca
examinadora, embora o autor tenha recebido diploma do título
pretendido, deixando logo a seguir o país - onde passou a ser
considerado persona non grata e nunca mais voltou a se estabe-
lecer4. A tese de doutoramento defendida na Sorbonne em 1989
sob orientação da experiente pesquisadora francesa Catherine
Cocquery-Vidrovitch, veio depois a ser publicada com o título La

3 MBEMBE, Achille. Sair da grande noite: Ensaio sobre a África descolonizada. Man-
gualde (Portugal), Luanda (Angola): Edições Pedago; Edições Mulemba, 2014, p. 34.
4 ECKERT, Andreas. Rethinking colonial history in Cameroun. Journal of African History
(Cambridge),v. 40, p. 151,1999.

38
IntelectuaIs das áfrIcas

naissance du maquis dans Le Sud-Cameroun: histoire des usages de La


raison en colonie (1996)5.
Nesta primeira fase de sua formação as preocupações de
Mbembe oscilaram entre as realidades camaronesas e a situação
política dos estados emergentes no imediato pós-emancipação.
Indo na contramão de abordagens estruturalistas, com temáticas
voltadas para as esferas econômicas, predominantes nos meios
acadêmicos africanos ou africanistas, ele optou por tratar dos
problemas associados à autoridade, à governabilidade e à partici-
pação política.
Assumindo, desde aí, a postura combativa que orientaria sua
carreira profissional, estudou as formas de expressão do discurso
dos insurgentes anticolonialistas de meados da década de 1950,
dando especial atenção ao testemunho pessoal do seu principal
líder, Ruben Um Nyobè, que acabou assassinado em 1958 pelas
autoridades coloniais com a conivência de líderes nacionais que
negociaram com a França a emancipação do país. Interessava-lhe
detectar o componente político dos escritos deixados por indivídu-
os e grupos que participaram da resistência ao colonialismo e, ao
recuperar suas memórias, contribuiu para quebrar com a aparência
monolítica do discurso nacionalista. Estudou também o imaginá-
rio do poder, desenvolvendo reflexões acerca das representações
visuais da insatisfação dos governados em face dos governantes.
Ao fazê-lo, conferiu maior complexidade à análise das formas de
enunciação de um campo político a partir da África6.

5 Ressalte-se o papel desempenhado por Catherine Cocquery-Vidrovichna formação de jovens


pesquisadores africanos que a partir da década de 1990 renovaram os fundamentos analíticos da
história de suas sociedades, algo ressaltado por BAH, Thierno. Historiographieafricaine: Afrique de
l’Ouest – Afrique centrale. Dakar: CODESRIA, 2015, p. 24. Sua influência junto a essa nova
geração de historiadores aparece no livro de AWENENGO, Sévérine; BARTHÉLEMY, Pascale;
TSHIMANGA, Charles (Orgs). Écrirel’histoire de l’Afriqueautrement?. Paris: L’Harmattan, 2004.
6 MBEMBE, Achille. La palabre de l’indépendance: Les ordres Du discours nationaliste au Ca-
meroun (1948-1958). Revue Française de Science Politique. Paris. v. 35-3, p. 459-487,1985; IDEM.
Domaines de la nuit et autorité onirique dans les maquis du Sud-Cameroun (1955-1958). Journal
of African History. Cambridge, v. 32-1, p. 89-121, 1991; IDEM. La ‘chose’ et ses doubles dans la
caricature camerounaise. Cahiers d’Études Africaines. Paris, v. 36, n°141-142, p. 143-170, 1996. Este
último texto voltou a ser publicado, em inglês, na coletânea editada aos cuidados de BARBER,
Karin. Readings in african popular culture. Bloomington: Indiana University Press, 1997, p. 151-163.

39
IntelectuaIs das áfrIcas

Paralelamente, estabeleceu contatos acadêmicos e uma frutu-


osa parceria com pesquisadores vinculados ao periódico Politique
Africaine criado e dirigido por Jean-François Bayart – cuja pesquisa
de campo tinha por base empírica, dados sobre o período de for-
mação do estado camaronês. Ambos, junto com o togolês Comi
Toubabor, publicaram em 1992 a obra coletiva La politique par Le
bas em Afrique noire: contribution a une problematique de la démocratie.
Tendo em referência elementos conceituais do fazer político
extraídos das obras de Michel de Certeau, de Michel Foucault, dos
subaltern studies e da microstoria, a análise não privilegiou as tradi-
cionais dicotomias do tipo estado/nação, dominantes/dominados,
estado/sociedade, dando atenção às estratégias empregadas pelos
detentores do poder e para os “modos populares de ação política”.
O ângulo da análise incidiu nas lógicas e modos de enunciação de
relações de poder estabelecidas em regimes autoritários, onde a
figura dos ditadores não podia ser confrontada diretamente e, por
isso, acabava sendo objeto de contestação por meios difusos, mas
não menos eficazes. Também interessou aos autores a situação de
grupos que até então recebiam pouca atenção dos especialistas,
como os jovens e as mulheres7.
Data ainda deste período o primeiro projeto de investigação
com bolsas internacionais de pesquisas financiadas, entre outras,
pela Fundação Ford, desenvolvidas na França, Estados Unidos, Amé-
rica do Sul (inclusive no Brasil, onde esteve entre 1984-1985) e em
determinados países africanos. O estudo dizia respeito ao impacto
do cristianismo na África subsaariana e as formas de adaptação e
de resistência aos modelos cristãos hegemônicos herdados pelos
estados africanos modernos. Tais pesquisas serviram de base para
a redação da primeira obra em que são tratadas as realidades mais

7 BAYART, Jean-François; MBEMBE, Achille; TOULABOR, Comi. La politique par lebasen Afrique
Noire -Nouvelle edition augmentée. Paris: Éditions Karthala, 2008. Na última parte, uma discussão
entre Mbembe e Bayart permite entrever suas divergências acerca dos fatores de influência na
disputa de poder na África subsaariana, de acordo com o maior ou menor valor conferido por
cada um deles às lógicas e estratégias locais. As críticas de Mbembe estão, sobretudo, no capítulo
intitulado Pouvoir, violence et accumulation. Ver a resenha de AWESSO, Atiyihwè, publicada no
Bulletin de L.A.P.A.D. Montpellier, nº5, p. 3, 1993.

40
IntelectuaIs das áfrIcas

vastas do continente, o livro recentemente traduzido em português


com o título África insubmissa: cristianismo, poder e Estado na sociedade
pós-colonial, publicado originalmente em 1988.
O eixo de articulação deste livro baseia-se na ideia da exis-
tência de uma conexão, no plano simbólico, entre o cristianismo
implantado ou difundido no contexto de dominação colonial e
os meios de ação e de poder dos estados criados no pós-emanci-
pação - chamados de “estados teológicos”. Estuda-se igualmente
a tendência das sociedades africanas para a indocilidade a esses
modelos de racionalidade de fundo cristão – vista como uma
forma de resistência, como uma “revanche do paganismo”. Em
última instância, pretende-se compreender o ponto de vista dos
grupos subalternos, vinculados à “selvageria”, ao “paganismo” e ao
“atraso” nos discursos de fundo colonial e oferecer uma explicação
plausível para o aparente fracasso dos projetos de modernização
de inspiração ocidental impostos ao continente, como se pode
notar na passagem citada abaixo:

O paganismo pode ser validamente interpretado como


uma negação pertinaz, por parte do indígena, da ‘verdade’
dominante, mesmo se essa verdade não é mais do que uma
unidade entre muitas outras e se as técnicas disciplinares
que visam impô-la, não o fazem, de todo... O julgamento
pagão, formulado de acordo com a ótica pós-colonial, faz
parte de um processo de constituição pública do poder.
Recusando confessar-se peranteas instâncias que visam
apresentar-se como guardiãs exclusivas da única verda-
de concebível, ele actua como uma crítica implícita da
supremacia. Motivo pelo qual testemunha a capacidade
recalcitrante do indígena e a sua recusa em vergar-se to-
talmente. Comprova também a sua rejeição do espírito do
colonialismo, na medida em que este último não desapa-
receu com as independências. Todavia, enquanto princípio
de indisciplina, o paganismo africano revela-se incapaz de
pôr um fim definitivo à supremacia8.
8 MBEMBE, Achille. África insubmissa: Cristianismo, poder e estado na sociedade pós-colonial.
Mangualde (Portugal), Luanda (Angola): Edições Pedago; Edições Mulemba, 2013, p. 161-162.

41
IntelectuaIs das áfrIcas

PÓS – COLÔNIA

Na primeira década do século XXI, Mbembe conquistou espa-


ços importantes no cenário acadêmico, alcançando renome inter-
nacional, ao elaborar obras incontornáveis no debate africanista
recente. Tal projeção ocorreu logo depois de sua passagem pela
administração do Conselho para o Desenvolvimento das Ciências
Sociais na África (CODESRIA), sediado em Dakar – Senegal, onde
ocupou o cargo de Secretário Executivo no período situado entre
1996-2000. Muito criticado pelos pares, que o responsabilizaram
por uma gestão administrativa vista como desastrosa, ele e outros
então jovens pesquisadores, como o historiador senegalês Mama-
dou Diouf, estabeleceram contatos acadêmicos com intelectuais
indianos da linha dos Subaltern Studies.
É provável que a mudança de perspectiva teórica e político-
institucional tenha gerado conflitos com pesquisadores vincula-
dos ao grupo de Samir Amin – ícone intelectual e inspirador da
fundação do CODESRIA-, adeptos dos referenciais marxistas e da
teoria da dependência. Segundo alguns, as divergências teóricas de
formação, de estilo e de perfil intelectual orientam os argumentos
desenvolvidos por Mbembe no artigo As formas africanas de auto-
inscrição, publicado em francês no Bulletin du CODESRIA, Politique
Africaine, em inglês, na revista PublicCulture, e logo em outras línguas
e periódicos especializados. Aí é apresentado exame profundo,
contundente e rigoroso dos impasses e limites dos paradigmas
interpretativos fundados em pressupostos identitários de caráter
racial, nacionalista e nativista, enunciados por marxistas, adeptos
do socialismo africano, dependentistase afrocentristas9.
9 MBEMBE, Achille. As formas africanas de auto-inscrição. Estudos Afro-Asiáticos. Rio de Janeiro, v.
23-1, p. 171-209, 2001. Uma avaliação geral do avanço teórico representado pelo artigo aparece em
DIAGNE, Souleymane Bachir. Keeping africanity open. Public Culture. Duke, v. 14-3, 2002, porém
este autor considera excessivas as críticas em relação a intelectuais como Archie Mafeje, Kwasi
Wiredu, Paulin Hountondji e Samir Amin. Para BARRO, Abdoulaye. Cooperation scientifique
et débat sur les “sciences sociales africaines” au CODESRIA. Cahiers de lRecherche sur l’Education
et lês savoirs. Paris, n. 9, p. 64-65, 2010, as críticas feitas a Mbembeindicam uma reação frente a
sua posição favorável a uma mudança de perspectiva nos rumos do CODESRIA que implicaria
em maior internacionalização de suas pautas e maior participação e financiamento de parceiros
não-africanos.

42
IntelectuaIs das áfrIcas

A experiência profissional acumulada no ambiente intelectual


norte-americano, durante sua passagem pelas universidades de
Columbia, da Califórnia e, sobretudo, pela Universidade de Duke,
e o contato com nomes consagrados dos estudos pós-coloniais e/
oudescoloniais10, entre os quais Arjun Appadurai e Paul Gilroy (de
quem se tornou amigo pessoal), permitiram-lhe certo distancia-
mento do mundo francófono. A França tendeu a ser vista como um
modelo cosmopolita, metropolitano e imperial defasado quando
comparado aos Estados Unidos. Neste país, a luta pela aquisição
dos direitos civis de uma maioria racialmente discriminada teria
produzido um projeto político de emancipação e igualdade social
ainda não existente numa sociedade como a francesa, carente
de uma “descolonização interior”11. Em 2001, estabeleceu-se na
África do Sul, em Johannesburgo, quando foi contratado como
pesquisador e orientador de estudos no Institute of Social and
Economic Research da Universidade de Witwatersrand (WISER),
a partir de onde foram escritas obras que lhe garantiram posição
como referencial teórico de prestígio dos estudos africanos feitos
na África. Percebe-se, desde aí, sua crescente afinidade com as
abordagens dos estudos pós-coloniais, embora ele próprio, por
algum tempo, tenha negado sua inclusão nas pautas de discussão
dessa corrente. Mesmo tendo participado em 2005 do livro de
Nicholas Bancel, Pascal Blanchard e Sandrine Lemaire, intitulado

10 Os termos pós-colonialismo e pós-colonial têm sido empregados nas Ciências Sociais em duas acep-
ções não totalmente excludentes, mas conceitualmente distintas. Na primeira, aplica-se ao período
histórico posterior ao momento em que sociedades africanas e asiáticas foram colonizadaspor euro-
peus, isto é, da década de 1940 para cá. Na segunda, designa uma tendência de interpretação mais
ou menos vinculada aos “estudos culturais” e aos “estudos subalternos”, integrada por autores de
origem oriental (Edward Said; Homi Bhabha; Gayatri Spivak, Arjun Appadurai) ou afro-diaspórico
(Paul Gilroy, Stuart Hall) que, não obstante as preferências temáticas, metodológicas e analíticas,
têm em comum o fato de questionarem a validade das elaborações discursivas, representações
e paradigmas explicativos etnocentrados,problematizaremas percepções convencionais do que
seria a ciência, amodernidade e o cosmopolitismo, e estudarem os fenômenos de hibridização,
deslocamentos culturais e transculturação. Ver SANCHES, Manuela Ribeiro (Org). Deslocalizar
a Europa. Antropologia, arte, literatura e história na pós-colonialidade. Lisboa: Edições Cotovia,
2005. É nesta segunda acepção que o termo será aqui utilizado, mesmo não sendo consensual
entre intelectuais identificados ao pensamento crítico, como Nelson Maldonado Torres, Aníbal
Quijano e Walter Mignolo, que preferem a denominação de “estudos descoloniais” e outros,
como Boaventura de Souza Santos, Jean e John Comaroff, que preferem falar do que denominam
de “epistemologias do Sul”.
11 MBEMBE, Achille. Sair dagrande noite, op.cit., p. 79-139.

43
IntelectuaIs das áfrIcas

La fracture coloniale: La société française au prisme de l’héritage colo-


niale, cuja publicação suscitou amplo debate e despertou reações
imediatas do establishment acadêmico francês12 e, ter contribuído
regularmente com artigos para o periódico Public Culture, dirigido
por um dos nomes fortes do pós-colonialismo, Arjun Appadurai,
seu nome não aparece entre os alvos dos críticos franceses do
post colonial studies13. Durante algum tempo, Mbembe fez questão
de frisar os pontos que o distanciavam do tipo de interpretação
pós-colonialista. Esta equivocada associação poderia ter surgido
em virtude do título da obra que o projetou internacionalmente,
publicada no ano 2000: De La post colonie: essai sur l’imagination
politique dans l’Afrique contemporaine14.
Diferentemente de pós-colonialismo ou pós-colonial, qualificativos
que remetem a uma crítica epistemológica dos pressupostos discur-
sivos hegemônicos e os meios para a sua superação, o substantivo
pós-colônia designa um tipo específico de imposição de soberania
na África após a emancipação. Neste caso, o vocábulo é empregado
para designar um conjunto de experiências político-sociais que ligam
os detentores da autoridade e poder de mando aos seus aliados,
parentes e governados, conjunto este perpassado por relações de
dominação, resistência, acomodação e recomposição social.
12 DUBREIL, Laurent. Alter, inter: Académisme et postcolonial studies. Labyrinthe. Paris, nº 24-2,
p. 47,2006 inclui Achille Mbembe, V.Y. Mudimbe e Édouard Glissant ao campo dos estudos
pós-coloniais.
13 Sabe-se bem da maior representatividade dos estudos pós-coloniais e/oudescoloniais nos meios
intelectuais anglófonos, sobretudo em universidades norte-americanas. As questõesinerentes a
esta tendência chegaram tarde à França e despertaram mais resistências do que adesões. Mesmo
em textos de autores aparentemente neutros prevalecem críticas e reparos, sendo sublinhadas
as deficiências teórico-metodológicas do pós-colonialismo, como se pode ver em DUBREIL,
Laurent. Alter, inter: academicisme et post colonial studies, art.cit., p. 56. Outros são aberta-
mente contrários ao seu valor analítico, ou empregam um curioso recurso de autoridade que
consiste ematribuir a autores franceses dos anos 1950-1960 (como Georges Balandier e Jean-Paul
Sartre, por exemplo) a antecipação dos conceitos desenvolvidos nos estudos pós-coloniais, ou a
teóricos franceses de renome (Jacques Derrida, Gilles Deleuze e Michel Foucault) a paternidade
das inovações teóricas salientadas no debate atual, o que sugere, salvo engano, uma disputa de
precedência que sutilmente atribui aos argumentos dos críticos do status quo intelectual apenas
valor político, negando-lhe qualidade ou originalidade científica e acadêmica. Ver, por exemplo,
BAYART, Jean-François. “Les etudes postcoloniales, une invention politique de La tradition?”.
Sociétés politiques comparés: revue europeene d’analyse des sociétés politiques. Paris, nº 14, 2009.
Disponível online: http://www.fasopo.org/reasopo/n14/article.pdf . Acesso em: 30/05/2014.
14 O mesmo livro foi publicado em inglês com o título On the postcolony. Berkeley: University of
California Press, 2001.

44
IntelectuaIs das áfrIcas

Enquanto os teóricos do pós-colonialismo tinham até então


criticado os fundamentos do discurso colonial e eurocêntrico da
alteridade, pondo acento nas alternativas abertas pelas categorias
da “identidade” e “diferença”, o problema ao qual Mbembe procura
oferecer resposta diz respeito às condições em que se davam as
relações entre africanos, ou seja, com o “semelhante” - sem as
quais, segundo ele, é impossível imaginar uma “ética do próximo”
e, ainda menos, pensar a possibilidade de um “mundo comum”,
de uma “humanidade comum”. Valendo-se de linguagem metafó-
rica, conclui o argumento nos seguintes termos e metáforas – que
muito aprecia:

Ao fazer da luta entre ‘pai’ e ‘filho’- quer dizer, da relação


entre colonizador e colonizado – o paradigma em última
instância do político nas sociedades nãoeuropeias, eles
acabam por ocultar a ‘violência do irmão contra irmão’
e o estatuto problemático da ‘irmã’ e da ‘mãe’ no seio da
fratria15.

É esta muito provavelmente a maior qualidade, ou o maior


defeito, dependendo de como seja vista, da obra aqui considerada.
Os s autores vinculados à teoria da dependência, ao afrocentrismo
e ao pós-colonialismo buscavam encontrar respostas para a situ-
ação do continente na sua forma de inserção no sistema-mundo,
capitaneado pelo Ocidente, em especial no período colonial.
Sem recusar a existência das pressões e influências externas nos
processos de dominação, Mbembe privilegia em sua análise as
estratégias locais para aquisição, acumulação e manutenção de
poder e as modalidades de reação frente a elas. Aposta, enfim, na
multiplicidade de agenciamentos e interesses que dão sentido às
instâncias do social e do político na África. Baseia-se no argumento

15 MBEMBE, Achille. De la postcolonie: Essai sur l’imagination politique dans l’Afrique contempo-
raine. Paris: Éditions Karthala, 2000, p. XI. Na entrevista intitulada Qu’est ce La pensée postcolo-
niale, concedida a revista Esprit, 2016,diz que o propósito do livro é examinar em profundidade
a fratura colonial, isto é, o momento a partir do qual o antigo colonizado assume o poder e o
inimigo deixa de ser o colonizador, mas sim o “irmão”. O livro apresenta, pois, uma crítica ao
discurso africano da fraternidade (p. 131).

45
IntelectuaIs das áfrIcas

segundo o qual, ao reivindicar a autonomia dos sujeitos africanos,


tem-se por consequência o reconhecimento de seus acertos e de-
sacertos, capacidade de iniciativa com a consequente atribuição
de responsabilidade16.
O resultado é uma análise aparentemente pouco condes-
cendente com os africanos, que levou muito de seus críticos a ver
pouca fecundidade heurística em sua obra, concebendo-a como
um pastiche, um amálgama de citações e reproduções de ideias
europeias sobre a África. Entretanto, longe de aplicar categorias e
conceitos de modo acrítico e indiscriminado, estes são submetidos
a uma leitura em que confluem elementos da filosofia, psicanálise,
sociologia, antropologia e ciência política. Valendo-se desse aparato,
Mbembe formula explicações sobre as formas pelas quais as configu-
rações sociais e políticas são dadas na contemporaneidade, segundo
pressupostos africanos. Recompõe as lógicas, temporalidades e di-
nâmicas sociais em seus ritmos e densidades próprias, vinculando-as
aos processos desencadeados a partir das realidades continentais,
em conexão com interferências externas. Em suas próprias palavras:

A hipótese central que guia os textos que se seguem é


que a legalidade própria das sociedades africanas, suas
próprias razões de ser e sua relação a ninguém mais do
que a elas mesmas está enraizada numa multiplicidade de
tempos, ritmos e racionalidades que, embora particulares
e, por vezes, locais, não podem ser pensados isolados de
um mundo que, por assim dizer, se dilatou. De um ponto
de vista estritamente metodológico, isto significa que, pelo
menos a partir do século XV, não há mais ‘historicidade
própria’ destas sociedades que não esteja embutida nestes
outros tempos e ritmos que condicionaram largamente a
dominação europeia... Isto supõe também um mergulho
crítico na própria história ocidentale nas teorias que pre-
tendem interpretá-la17.

16 AJARI, Norman. De La montée en humanité. Violence et responsabilité chez AchilleMbembe.


Unbuntou: Revue internationale des sciences humaines et sociales. Paris, nº 1, p. 29, 2013.
17 MBEMBE, Achille. De la postcolonie, op. cit,p. 21-22; MBEMBE, Achille. “O tempo que se
move”. Cadernos de Campo (USP), nº 24, p. 378-379, 2015.

46
IntelectuaIs das áfrIcas

Em última instância, a interpretação assenta numa perspectiva


comparativa em que as categorias, os conceitos e os recursos me-
todológicos desenvolvidos pela Teoria Social são empregados em
sentido pouco usual entre africanistas. Nos três capítulos iniciais de
De la post colonie, os regimes políticos africanos pós-emancipação
são interpretados não segundo os pressupostos aplicados aos “Es-
tados” ou “nações”, e sim como poderes estabelecidos a partir de
mecanismos de dominação parcialmente herdados do colonialismo
e parcialmente ligados às formas de autoridade existentes na África.
As condições para a aquisição e manutenção do poder, o exercício
da soberania e a imposição de autoridade são consideradas, a partir
dos referenciais analíticos foucaultianos de biopolítica, biopoder
e governamentabilidade. Todavia, tais noções, quando aplicadas
ao contexto africano, ganham nova conformação e rumo diverso,
indo muito além da simples apropriação e reprodução teórica18.
Em síntese, o conceito de pós-colônia é empregado para
descrever a experiência visceral de sociedades vivendo em re-
gimes de dominação marcados pela violência. Embora aparente
funcionar numa “pluralidade caótica”, tais regimes são dotados
de coerência interna, com sistemas de signos particulares e ma-
neiras específicas de fabricar simulacros, reconstruir estereótipos
e expropriar os sujeitos de suas identidades19. Pós-colônia seriaum
tipo de “poder bruto” compartilhado por indivíduos que detém o
monopólio da vida e da morte e os signos pelos quais esse poder
é representado. Consiste, igualmente, numa série de práticas que
geram uma situação de promiscuidade entre a esfera pública e a
esfera privada. Seu estudo exige então que sejam examinadas, em
pormenor, as modalidades da sujeição, adesão e indisciplina em
face dos detentores do poder.

18 GIGENA, Andrea Ivanna. Lecturas post coloniales y decoloniales de la analítica foucaultiana


para el analise de contextos de herencia colonial. Confluenze: Rivistadi Studi Iberoamericani.
Bolonha, v. 3 nº 2, p. 9, 13, 2011.
19 MBEMBE, Achille. De la postcolonie, op. cit,p.41-93.

47
IntelectuaIs das áfrIcas

NECROPOLÍTICA E RACISMO

No decurso da primeira década do século XXI, os escritos de


Mbembe consolidaram sua posição no cenário acadêmico interna-
cional, dentro e fora da África, e algumas de suas interpretações
passaram a ter maior ressonância entre especialistas de outras
áreas, sendo integradas ao conjunto de enunciados da teoria crítica
contemporânea. A partir, sobretudo, de 2005 seu nome tendeu a
ser cada vez mais associado aos estudos pós-coloniais, descoloniais
e aos estudos subalternos, assumindo, ele próprio, os postulados
e problemáticas dessas correntes. Seus trabalhos passaram a tratar
também dos impasses e entraves do colonialismo para a evolução
da sociedade francesa rumo a uma convivência baseada na proximi-
dade e reciprocidade com os povos oriundos de suas ex-colônias;
do corporativismo e narcisismo dos intelectuais do hexágono20.
Os referenciais foucaultianos, facilmente perceptíveis numa
primeira leitura de seus textos, constituem pontos de partida, mas
assumem sentido diverso em suas análises. Em seu modo de ver,
compartilhado por outros intérpretes do pensamento descolonial, o
teórico francês não teria escapado de um essencialismo epistêmico
ao deixar de lado a análise das macroestruturas capitalistas que
deram centralidade ao Ocidente e estruturaram, fora das esferas
da modernidade ocidental, nos espaços americanos, africanos e
asiáticos, os fundamentos do racismo e do colonialismo21.
Para Mbembe, a gênese da “modernidade global” e das formas
de poder que lhe dão sustentação, ao distinguir, hierarquizar e
enquadrar os indivíduos em categorias valorativamente distintas é
bem anterior ao Iluminismo e deve ser buscada nos “laboratórios”
que foram a plantation escravista e o Tráfico Internacional de Escra-
vos na América. Aí teriam sido lançadas as bases dos paradigmas

20 Expressão às vezes utilizada para designar a França, em virtude da semelhança visual entre a
representação cartográfica de seu território e a figura geométrica de um hexágono regular com
seus seis lados.
21 GIGENA, Andrea Ivanna. Lecturas postcoloniales y decoloniales de la analítica foucaultiana para el
analise de contextos de herencia colonial, art. cit. p.14.

48
IntelectuaIs das áfrIcas

sociais racistas desenvolvidos posteriormente na África, no bojo


do colonialismo, e na própria Europa pelo nazismo – a forma mais
bem acabada e destrutiva de um estado alicerçado em princípios
discriminatórios de fundo racial22.
As instâncias da biopolítica, entendidas por Foucault, como
meios de exercer o poder na modernidade visando a submissão
corporal e sanitária dos cidadãos, são levadas ao extremo e ser-
vem de referência para o desenvolvimento e aplicação do conceito
radical e transgressor de necropolítica – empregado para nomear
regimes de governo em que a soberania é definida pela capacidade
de decidir quem deve viver e quem deve morrer.
Mbembe explora as relações profundas entre razão, moderni-
dade e terror em estados orientados por uma “política da morte”,
onde as formas de imposição de poder passam a ser uma finalida-
de em si e a vida das populações transcorre em zonas de conflito
permanente, como ocorreu no regime do Apartheid da África do
Sul ou na Palestina sob domínio israelense. Aqui, prevalecem
formas de controle e alto grau de militarização com a finalidade
de dominar territórios ou populações inteiras, numa verdadeira
institucionalização do “estado de sítio”. As noções de política da
morte e poder da morte refletiriam então os meios pelos quais, no
mundo contemporâneo, as armas são empregadas com o objetivo
de destruição máxima de pessoas e a criação de mundos da mor-
te, quer dizer, “formas únicas e novas de existência social em que
numerosas populações são submetidas a condições de existência
que as reduzem a condição de mortos-vivos”23.
Tais parâmetros de análise de sociedades pós-coloniais sub-
vertem categorias analíticas tidas como consensuais nas ciências
sociais que têm em referência a experiência da modernidade oci-
dental. O que há de mais impactante em sua leitura das formas de
poder vigentes na pós-colônia é a liberdade no uso de metáforas que
22 MBEMBE, Achille. Critica da razão negra. Lisboa: Antigona, 2014, p. 223-244.
23 Necropolítica, seguido de Sobre el gobierno privado indireto. Madrid: Editorial Melusina, 2011, p.
75. O texto original, Necropolitics, foi publicado no periódico Public Culture. Duke, v.15-1, p. 11-
40, 2003.

49
IntelectuaIs das áfrIcas

expressam a promiscuidade e a obscenidade pelas quais aqueles


poderes manifestam-se e se imaginam com imagens fálicas, esca-
tológicas, fetichistas, antropofágicas.
A distância conceitual entre Foucault e Mbembe deve-se à gra-
dual centralidade das categorias explicativas da condição colonial
extraídas de Frantz Fanon - aquele que melhor e mais profunda-
mente desvendou a extensão dos sofrimentos psíquicos causados
pelo racismo e a presença viva da loucura no sistema colonial. Os
deslocamentos de significado e as subversões conceituais advêm
do fato de que os referenciais africanos são lidos a partir da expe-
riência dos colonizados e não dos referenciais do colonizador24.
Em De La post colonie e em Necropolitics, os problemas coloca-
dos pela interpretação fanoniana são evidentes, mas o tratamento
difere substancialmente daquele desenvolvido em Os condenados
da terra. Leitor atento do teórico da revolução africana, Mbembe
esforça-se para pensar, como ele próprio afirma, “com e contra
Fanon”25. Tanto quanto aquele, suas ideias estão comprometidas
com uma perspectiva libertária que capacite os indivíduos a assumir,
como sujeitos, sua condição humana maculada pela opressão racial
instaurada pelo colonialismo e pela violência intrínseca própria
daquele regime de poder.
Mas a alternativa proposta por ambos é diferente. Para Fanon,
a recuperação da vida integral e da condição humana plena seria
obtida com a morte do inimigo: provocar a morte do colonizador
seria não apenas um dever, mas responsabilidade ético-política. Já
para Mbembe, o problema é que, na pós-colônia, o monopólio da
violência pelos governantes africanos gerou graves consequências
24 As referências a Fanon aparecem já em textos dos anos 1990, mas ganham maior destaque a
partir do livro De La postcolonie, tornando-se central em seus textos mais recentes, sobretudo Sair
da grande noite e Crítica da razão negra. Ele fez o prefácio das obras de Frantz Fanon publicadas
pelas Éditions La Découverte, em 2011. A atualidade e radicalidade da crítica fanoniana para
a compreensão das relações de dominação e resistência no mundo atual são enunciados em
MBEMBE, Achille. A universalidade de Frantz Fanon. Publicado em Art Africa. Lisboa. Disponível
online: http://www.artafrica.info/html/artigotrimestre/artigo.php?id=36. Acessado em: 28
de abril, 2014. Ver ainda MBEMBE, Achille. De La scène coloniale chez Frantz Fanon. Collège
International de Philosophie. Paris, nº 58, p. 37-55, 2007.
25 MBEMBE, Achille. De La postcolonie, p.XII.

50
IntelectuaIs das áfrIcas

para a maioria da população, para quem uma “política da vida” e


uma aquisição plena da liberdade e humanidade exige a inversão
do paradigma fanoniano e a instauração de um compromisso ético
que tenha por objetivo “dar morte a morte”, isto é, esvaziar os me-
canismos do poder da violência congênita que os acompanham26.
O livro De La post colonie, publicado em 2000, tinha em refe-
rência o período entre 1960-1980, em que as sociedades africanas
passavam por contextos de transição e reajustamento. Uma década
mais tarde, em 2010, nos capítulos finais do livro Sair da grande
noite, o exame das formas constitutivas de poder político e econô-
mico revelam alterações em relação aos elementos estruturantes
anteriores: entre 1980-2000, um modelo de capitalismo, atomiza-
do e desprovido de grandes polos de crescimento, desenvolveu-
sesobre os escombros de uma economia antes dominada, de um
lado, por grupos estatais ou estatizantes controlados por clientelas
associadas ao poder e, de outro, por grupos monopolistas que
remontavam ao período colonial.
Essa fragmentação extrema é ainda mais acentuada por fe-
nômenos de circulação transnacional que afetam mercadorias,
pessoas, crenças e ideologias, modas e estilos de vida, que produ-
zem complexos entrelaçamentos sociais, culturais e econômicos
de alcance continental – o fenômeno do afropolitanismo, que será
examinado adiante. Outro traço distintivo diz respeitoà tendência
àinformalização das relações de poder, à dispersão da autoridade
dos que controlam as instituições estatais e a privatização de seus
poderes por agentes locais27.
Paralelamente, o fenômeno colonial e seu duplo, o racismo,
tendem a ser vistos por ele como determinantes na cartografia
dos poderes em âmbito global. Daí ter dedicado um de seus der-
radeiros livros, Crítica da razão negra, ao estudo aprofundado da
gênese e desenvolvimento da categoria racial inerente ao “negro”,

26 AJARI, Norman. De la montée en humanité. Violence et responsabilité chez Achille Mbembe, art.
cit., p. 27-30.
27 MBEMBE, Achille. Sair da grande noite, op.cit., p. 141-163.

51
IntelectuaIs das áfrIcas

que se tornou uma representação primal, estruturante, de um tipo


de hierarquização extremamente eficaz não apenas para a sujeição
dos indivíduos identificados a cor escura, mas também ao conjunto
de grupos oprimidos, discriminados, segregados.
No início do século XXI, tal categoria tende a ser cada vez
mais alargada e, através dela, podem-se identificar diversas formas
de distinção, classificação e hierarquização entre grupos humanos
de variadas procedências: geográfica, cultural e mesmo biológica,
genética (em virtude do avanço dos estudos sobre reprodução
humana), que sinalizariam, nas relações sociais do capitalismo
contemporâneo, relações de dominação em escala planetária:

Pela primeira vez na História humana, o nome Negro dei-


xa de remeter unicamente para a condição atribuída aos
genes de origem africana durante o primeiro capitalismo
(predações de toda espécie, desapossamento da autodeter-
minação e, sobretudo, das duas matrizes do possível, que
são o futuro e o tempo). A este novo caráter descartável e
solúvel, à sua institucionalização enquanto padrão de vida
e à sua generalização ao mundo inteiro chamamos o devir
negro do mundo28.

COSMOPOLITISMO AFRICANO

O interesse de Mbembe pelas configurações discursivas em


que, através da literatura e das artes, da filosofia, das ciências so-
ciais e do pensamento social, os africanos expressaram seu senti-
mento de pertencimento ao continente, seu modo de inscrição no
mundo, enfim, sua africanidade, pode ser notada desde o início da
carreira. No artigo As formas africanas de auto-inscrição ele apontou
os condicionamentos ideológicos e políticos que acompanham os
enunciados empregados para representar a identidade africana,
formulando uma série de argumentos contrários aos pressupostos
de caráter economicista, dependentista, afrocentrista e nativista,

28 MBEMBE, Achille. Crítica da razão negra, op.cit., p.18.

52
IntelectuaIs das áfrIcas

considerando-os reducionistas ou essencialistas. Segundo ele, a


identidade africana não existe em substância, como algo natural,
assentada numa ordem biológica estabelecida por vínculos de
sangue, raça, ou por delimitações geográficas. Ao final do texto,
sua afirmação é aparentemente desconcertante:

Não é mais suficiente afirmar que apenas um eu africano


dotado de uma capacidade narrativa de síntese, ou seja,
capaz de gerar tantas histórias quantas forem possíveis a
partir de quantas vozes forem possíveis, pode afirmar a dis-
crepância e a multiplicidade de normas e regras interligadas
características de nossa época. Talvez um passo além deste
círculo seja reconceitualizar a própria noção de tempo
em sua relação com a memória e a subjetividade. Já que o
tempo em que vivemos é fundamentalmente fraturado, o
próprio projeto de um resgate essencialista ou sacrificial
do eu está, por definição, fadado ao fracasso. Apenas as
diversas (e muitas vezes interconectadas) práticas através
das quais os africanos estilizam sua conduta podem dar
conta da densidade da qual o presente africano é feito29.

O que está aqui em causa é, em sua opinião, o esgotamento


dos postulados inerentes aos mais conhecidos discursos anticolo-
nialistas, que alimentaram o nacionalismo africano, vinculados aos
movimentos da Negritude e do Pan-africanismo, ambos, por sua
vez, relacionados à ideia de uma solidariedade transcontinental
entre uma “África negra” e os afrodescendentes do Novo Mundo.
Se os processos identitários de caráter étnico-racial serviram de
referência positiva para a autoafirmação dos indivíduos vitimados
pelos três eventos fundadores da discriminação e exclusão, isto é,
a escravidão, o colonialismo e o Apartheid, os referidos discursos
não seriam suficientes para corporificar as práticas socioculturais
africanas, fortemente marcadas pela mobilidade, reversibilidade e
instabilidade, enfim, pela flutuação e mudança.

29 MBEMBE, Achille. Asformas africanas de auto-inscrição, art.cit., p. 200.

53
IntelectuaIs das áfrIcas

O motivo da recusa do paradigma identitário para a explicação


das dinâmicas africanas é explicada de modo claro em determina-
do trecho de um artigo dedicadoao exame do universo ficcional
do escritor nigeriano Amos Tutuola – autor do notável romance
O bebedor do vinho de palma. A narrativa é tomada como exemplo
da capacidade de expressão da imaginação africana oprimida pelo
colonialismo, onde a evasão e o sonho ultrapassam os limites
estabelecidos pela lógica ocidental perpassada pelas noções de
verdade, simetria ou verossimilhança.
Amos Tutuola admite uma pluralidade de mundos, tempos e
lugares, realidades paralelas e acontecimentos para os quais não
existem explicações plausíveis segundo o pensamento cartesiano,
dando mostras de que, para os africanos, as fronteiras entre o real
e o imaginário, o fantasmático e o sonho são muito tênues, pre-
cárias. A dificuldade de enquadramento deste universo ficcional
nos cânones ocidentais encontraria correspondência nos limites
estabelecidos pelas noções de “identidade e diferença”, na medida
em que, desde as primeiras formulações apresentadas pela filosofia
grega, a noção de identidade esteve associada à ideia da imutabili-
dade e estabilidade das propriedades inerentes a seres e as coisas
semelhantes, cuja realidade seria idêntica, distinguindo-se de todas
as outras coisas de espécies diferentes. Neste jogo especular entre
o idêntico/semelhante e o nãoidêntico/diferente, a universalidade
estaria na particularidade, na singularidade da semelhança, o que
equivale a admitir a impossibilidade por uma só e mesma coisa ou
por um só e mesmo ser de ter diversas origens diferentes, de existir
simultaneamente em diferentes lugares e sob signos diversos30.
Por causa disso, ao buscar a explicação inteligível do “real
africano”, ele evita reproduzir estruturas conceituais, categorias e
representações criadas no Ocidente que foram empregadas com a
finalidade de enquadrar, subordinar e negar originalidade aos fe-
nômenos originados na África, definindo-as nos termos antitéticos

30 MBEMBE, Achille. Politiques de lavie et violencespeculairedanslafiction d’Amos Tutuola. Cahiers


d’Études Africaines. Paris, v.XLIII-4, nº 173, p. 794, 2003.

54
IntelectuaIs das áfrIcas

da identidade/alteridade – assimiladas pelo ideário racial que deu


suporte à Negritude e ao Pan-Africanismo.
Recusa explicações totalizantes e nexos causais imediatos,
optando pela afirmação da multiplicidade de mundos, observando
os entrecruzamentos de diferentes fluxos temporais em que co-
existem processos de homogeneização e processos de produção
de diferenças e heterogeneidades; optando, pois por uma per-
cepção descentralizada do mundo em que coexistem dinâmicas
contraditórias, disjunções e ritmos variados31. Deste modo, entre
interpretações que visam o estabelecimento de unidades conceitu-
ais, hierarquias e classificações, prefere a diversidade de sentidos
e busca a dispersão, instâncias em que localiza a diversidade de
práticas e experiências socioculturais produzidas na longa duração
da história do continente.
Ao tratar dos processos constitutivos das dinâmicas sociais na
África nas três últimas décadas do século XX, Mbembe identifica
diversos traços gerais de fragmentação dos projetos de unidade
e centralização desenvolvidos por regimes políticos autoritários,
militarizados, controlados por elites altamente ocidentalizadas.
Observa em contrapartida uma grande capacidade de circulação e
ressignificação de práticas sociais, estilos, formas de expressão e de
criação estética fortemente influenciados pela pluralidade cultural
de dentro e de fora do continente. Tais movimentos e tendências
estariam ligados ao que ele denominou de afropolitanismo.
Em artigo publicado no ano de 2005 na revista Africultures,
observa que acentuadas recomposições estavam em curso e que
elas teriam peso decisivo na criatividade estética e política dos anos
futuros, apresentando uma nova resposta a questão de saber o que
significa “ser africano”. Indo além da ideia de uma “autenticida-
de”, de um pertencimento à “África negra” ou a estados-nacionais
artificialmente delimitados, lembra que a configuração cultural
do continente contou com a contribuição de grupos provenientes

31 MBEMBE, Achille. De la postcolonie, p. 107.

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IntelectuaIs das áfrIcas

da Ásia, Arábia ou Europa, assim como, na atualidade, milhões de


pessoas de origem africana são cidadãos em diversas partes do
mundo32. No livro Sair da grande noite, desenvolve melhor o argu-
mento, afirmando que, com a emergência dessas novas diásporas,
a África deixava de constituir um centro em si,

[...] passando a constituir-se por polos entre os quais há


constante passagem, circulação e repetição. Esses polos
sucedem-se uns aos outros e revezam-se. Formam inúmeras
regiões, superfícies e jazidas culturais às quais a criação
africana recorre incessantemente33.

Em meio a sucessivos movimentos de fluxo e refluxo de


corpos, ideias, modos de ser, estilos, o fenômeno da circulação
teria motivado movimentos de dispersão (por migrações, guer-
ras, invasões) e movimentos de imersão (de minorias étnicas que,
vindas de longe, passaram a fazer parte do continente), aos quais
estariam associados variadas superposições e entrelaçamentos.
Os traços culturais associados a essa intensa mobilidade apare-
cem corporificados em textos literários de escritores como Soni
Labou Tansi, Ahmadou Kouroma e Yambo Ouolonguem, autores
de narrativas onde o excesso e descomedimento são a marca
distintiva, onde a representação da realidade admite não um
discurso plano e estruturado segundo uma lógica convencional,
mas um discurso constituído de camadas superpostas que se
entrecruzam e se enrolam a semelhança de uma espiral, de um
turbilhão.
A essa escrita turbilhonar, permeada de fusões e orientada
por uma estética da transgressão, corresponderia um tipo de
experiência cultural pelo qual se expressaria o discurso africano
contemporâneo, marcado por sucessivas misturas, amálgamas
e superposições. Fortemente influenciadas pela crioulização e

32 MBEMBE, Achille. Afropolitanisme. Africultures, 26/12/2005. Disponível online: http://www.


africultures.com/php/?nav=article&no=4248. Acesso em: 02 de março, 2016.
33 MBEMBE, Achille. Sair da grande noite, op.cit., p. 181.

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IntelectuaIs das áfrIcas

mestiçagem e pela alta capacidade de adaptação e recomposição,


as sociedades africanas estariam abertas a diferentes graus de
entrelaçamento e fusão que acabariam por lhe conferir sua marca
distintiva no mundo34.
O conceito de afropolitanismo foi utilizado em 2005 no ensaio
intitulado Bye-Bye Babar,or,WhatisanAfropolitan?, pela escritora e
fotógrafa londrina de origem nigeriana e ganense chamada Taiye
Selasi, que o difundiu e o popularizou, mas com sentido parcialmen-
te distinto daquele pretendido por Mbembe. Para ela, tratava-se de
um fenômeno contemporâneo, do século XXI, e estaria ligado aos
africanos e afrodescendentes, que circulavam pelas capitais do G8
ou pertenciam a grandes metrópoles africanas, como Ibadan, onde
marcariam presença por seu estilo diferencial. Os afropolitanos
seriam aqueles que faziam parte da mais nova geração de emi-
grantes africanos bem sucedidos cuja aparência e comportamento
refletiriam sua condição de indivíduos multilocais, multiculturais,
multilíngues, enfim, “cidadãos do mundo”, figuras complexas, que
representariam uma renovação do que o continente tem de melhor
a oferecer. Seu perfil e influência poderiam contribuir para alterar
a imagem negativa transmitida na mídia, vinculada exclusivamente
a existência de fomes e guerras35.
A definição apresentada por Mbembe tem maior alcance
social e maior conotação política. Difere da concepção de Selazi
ao enfatizar as dinâmicas internas do continente em perspectiva
histórica e ao propor a emergência de tendências cosmopolitas a
partir da África. Não só devido ao traço recorrente da dispersão
resultante de emigrações, circulações e fusões dentro, e de den-
tro para fora, mas igualmente em virtude da imersão, isto é, das
inovações, adaptações e reconfigurações vinculadas à contribuição
de migrações internas e imigrações feitas por grupos de diversa
procedência rumo ao continente.

34 MBEMBE, Achille. Sair da grande noite, op.cit., p. 178-180.


35 GEHRMANN, Susanne. Cosmopolitanism with african roots. Afropolitanism’s ambivalent
mobilities. Journal of African Cultural Studies. Londres, v. 28-1, p. 2, 2016.

57
IntelectuaIs das áfrIcas

O ponto em que ambos concordam diz respeito ao ambiente


identificado ao afropolitanismo hoje: os grandes centros urbanos.
Os locais por excelência em que se poderiam identificar os traços
do afropolitanismo seriam, de acordo com Mbembe, as grandes
metrópoles africanas, como Dakar e Abidjan na África Ocidental,
importantes áreas de renovação cultural e de negócios desde a me-
tade do século XX, ou Nairóbi, na África oriental, destacado centro
comercial e sede regional de diversas instituições internacionais.
A cidade que melhor expressaria o vigor de um cosmopolitismo
africano seria Johannesburgo, metrópole econômica da África do
Sul apresentada como o modelo da “afrópolis”, a cidade moderna
africana, que, junto com São Paulo, Mumbai, Kuala Lumpur, Xangai,
Seul e Sidney, constituiriam um polo de inovação do capitalismo
no Hemisfério Sul. Notável pelos movimentos de resistência desde
os tempos do Apartheid, renovada pelo vigor de múltiplas heranças
raciais e culturais, onde se cruzam negros de variada procedência,
brancos de origem europeia, indianos e chineses, que dão vida a
sua economia vibrantee produzem uma cultura de consumo que
participa diretamente dos fluxos da globalização. Nela são perceptí-
veis formas de sociabilidade particulares, estilos de convivência em
que confluem diferentes experiências desde outras comunidades
sul-africanas e desde Maputo, em Moçambique, sobre a qual exerce
influência econômica, social e cultural36.
Visto como uma “nova fenomenologia da africanidade”, o
conceito de afropolitanismo foi saudado por certos intelectuais e
artistas africanos, e recebido com desconfiança por outros. O termo
passou a circular em grandes metrópoles do Norte, como Londres
ou Nova Iorque, motivando a organização de mostras de arte,
festivais, e, logo a seguir, serviu de inspiração para a divulgação
de “mercadorias simbólicas” associados ao termo - que tendeu a
ser visto como um rótulo e ganhou alguma ressonância na mídia
como um vocábuloda moda.

36 MBEMBE, Achille; NUTTALL, Sarah (Orgs). Johannesburg: The elusive metropolis. Durham:
Public Culture/ Duke University Press, 2004.

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IntelectuaIs das áfrIcas

Em 2011, o Houston Museum of African American Culture orga-


nizou um colóquio intitulado “Africans in America: The New Beat
of Afropolitans” e o Victoria and Albert Museum preparou a mostra
fotográfica de moda e música de artistas, em sua maioria da África
do Sul, conhecida como «Friday Late: Afropolitans». Logo surgiram
sítios eletrônicos, blogs e fóruns de discussão motivados pelo ide-
ário do afropolitanismo, alguns dedicados, inclusive, ao comércio
de produtos de consumo pessoal e vestimentas de inspiração
africana37.
O que se pode constatar é que, na recepção e valorização do
conceito, a dimensão estética de uma modernidade africana asso-
ciada a certo caráter comercial e exibicionista esvaziou a dimensão
crítica e o sentido político que o acompanhavam no momento
inicial de sua formulação. Ele ganhou acentuada coloração elitista
no momento em que foi apropriado e disseminado por africanos ou
afrodescendentes, motivo pelo qual despertou polêmica e dividiu
a opinião nos meios acadêmicos.
Entre as críticas formuladas, estão as da pesquisadora Stepha-
nie Bosh Santana, para quem o fenômeno a ele associado foi criado,
sustentado e explorado nos moldes do neoliberalismo. Segundo a
socióloga Emma Dabiri, o afropolitanismo diria respeito ao universo
das elites africanas, não devendo ser considerado representativo do
modo devida de outras camadas sociais. Os valores em que se ins-
pira, a celebração de um dinamismo e de uma renovação estrutural
em moldes capitalistas, estariam em conformidade com o tipo de
discurso modernizador de instituições financeiras globais como o
Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial. Por outro lado,
o fenômeno diria pouco sobre a situação e os interesses sociais da
maioria da população africana38.

37 GEHRMANN, Susanne. Cosmopolitanism with african roots. Afropolitanism’s ambivalent mobili-


ties, art.cit.,p. 3.
38 DABIRI, Emma. Why I am (still) not an Afropolitan. Journal of African Cultural Studies. Londres,
v. 28-1, p. 104-108, 2016; SANTANA, Stephanie Bosch. Exorcizing the future: Afropolitanism’s
spectral origins. Journal of African Cultural Studies. Londres, v. 28-1,p.120-126, 2016.

59
IntelectuaIs das áfrIcas

Outros intelectuais, entre os quais Patrick Awondo, chegam


a conclusões um pouco diferentes ao considerar o afropolitanis-
mo como movimento cultural e como projeto intelectual. Have-
ria que se considerara crítica ao caráter elitista que o movimento
assumiu sem perder de vista os propósitos que acompanharam
a sua enunciação. Awondo não vê uma oposição substancial
entre o afropolitanismo e formas de expressão da africanidade
como a Negritude e o Pan-Africanismo devido a sua capacida-
de mobilizadora num contexto de profundas reconfigurações
identitárias impostas pela globalização. O problema seria fazer
diminuir a distância entre o discurso e as práticas que lhe dão
sustentação, retomando a vocação inicial do conceito ao qual
estava associada uma utopia mobilizadora, de modo que o que
aparece como ficção ganhe contornos efetivos e se torne reali-
dade. Seria preciso, então, repensar os usos do afropolitanismo
na África e pelos africanos e afrodescendentes, restituindo-lhe
sua dimensão prática39.
A posição intermediária parece-nos mais justa em relação ao
conceito de afropolitanismo porque os argumentos dos críticos
em geral disseram respeito mais a sua recepção do que a sua
formulação. A interpretação dada por Selasi deslocou o debate
para o plano literário e estético, tornando-o uma ideia fácil, com
grande capacidade de sedução, mas vazia do ponto de vista de sua
capacidade crítica e renovadora dos africanos.
Nas formulações de Mbembe, a originalidade do conceito
advém de duas características ligadas ao modode percepção da
capacidade de iniciativa africana. Primeiro, o traço distintivodecor-
re não da resistência, mas da resiliência. Segundo, aforça de uma
solidariedade transcontinental entre africanos e afrodescendentes
provém não de um pertencimento natural comum que os prende
ao passado, mas de um estilo de vida forjado na adversidade. Os
povos negros foram forçados a viver segundo regras e modelos
39 AWONDO, Patrick. Afropolitanisme en débat. Politique Africaine. Paris,nº 136-4, p. 105-119, 2014;
IDEM. Notes provisoires sur l’Afropolitanisme, 2015. Disponível online : https://www.researchgate.
net/publication/281448940_Notes_provisoires_sur_l’Afropolitanisme

60
IntelectuaIs das áfrIcas

que não eram seus e souberam renovar e recriar os signos através


dos quais tiveram que expressar sua existência, reconfigurando-os
para criar um estilo próprio, novo, original, marcado pela ideia da
simbiose, do entrelaçamento.

A questão não reside unicamente no facto de que existe


uma parte da história africana alhures, fora da África:
existe também uma história do resto do mundo da qual
os negros são, pela força das circunstâncias, os agentes e
os depositários. De resto, o seu modo de estar no mundo
sempre se pautou sob a marca, senão da miscigenação
cultural, pelo menos da imbricação dos mundos, numa
lenta e, por vezes, incoerente dança com os signos que não
dispuseram, de todo, do privilégio de escolher livremente,
mas que conseguiram, tanto quanto possível, domesticar
e fazer uso deles. A consciência desta imbricação do aqui
e do alhures, a presença do alhures no aqui e vice-versa,
essa relativização das raízes e as filiações primárias e essa
maneira de acolher com pleno conhecimento de causa, o
estranho, o estrangeiro e o longínquo no propínquo, de
domesticar o nãofamiliar, de trabalhar aquilo que se aparen-
ta inteiramente a uma ambivalência – é essa sensibilidade
cultural, histórica e estética que assinala adequadamente
o termo ‘afropolitanismo’40.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

A trajetória de Achille Mbembe ilustra parcialmente as opções,


condicionamentos e possibilidades da geração de intelectuais
africanos formadas a partir da década de 1970, momento em que,
com exceção dos PALOP, as independências já tinham sido em
geral alcançadas por elites políticas nacionais. Menos idealista, e
menos envolvida com projetos emancipatórios, a obra dos autores
dessa geração caracteriza-se, de acordo com o pesquisador chileno
Eduardo Devés-Valdés, pela autocrítica e pela busca de referenciais
próprios para a interpretação dos fenômenos sociais, observados a

40 MBEMBE, Achille. Sair da grande noite, p. 184.

61
IntelectuaIs das áfrIcas

partir do próprio continente. A diversificação das ciências sociais


e humanas, assim como a ampliação das universidades e redes de
investigação e pesquisa conferiu maior complexidade aos temas
discutidos, segundo parâmetros, paradigmas e linguagens variadas,
e em tom eminentemente crítico. O tema do desenvolvimento, as
causas do fracasso econômico e ademocracia seriam alguns de seus
mais importantes objetos de trabalho41.
Entre os traços apresentados acima, as condições para a con-
quista da democracia constituem, certamente, a espinha dorsal da
obra de Mbembe. As implicações dessa escolha têm sido avaliada
por seus pares de modo diverso. Pode-se dizer que as apreciações
diferem na África, onde o balanço tendeu durante muito tempo a
ser negativo, e no Ocidente, onde a qualidade e inovação analítica
são reconhecidas e enaltecidas42.
Um dos críticos africanos, T. K. Biaya identifica em seu ecletis-
mo metodológico e na influência exagerada do modelo intelectual
francês, vindo, sobretudo, de Foucault, limites efetivos do alcance
de sua interpretação sobre a pós-colonia. Esta se limitaria a uma
explicação de natureza ideológica em que exemplos extraídos do
caso particular dos Camarões teriam sido ampliados para outras
partes do continente43. Mais recentemente, o filósofo camaronês
Charles R. Mbele situou sua obra entre as explicações de tipo pós-
colonialista, com ideias que pretendem, pelo excesso de autocrítica,
o auto-rebaixamento, a atribuição de culpa aos africanos pelos seus
infortúnios, minimizando a responsabilidade do colonialismo e do
imperialismo numa “antropologia penitencial e expiatória” bem ao
gosto da ordem neocolonial44.

41 DEVÉS-VALDÉS, Eduardo. O pensamento africano sul-saariano: Conexões e paralelos com o


pensamento latino-americano e asiático. Rio de Janeiro: EDUCAM; CLACSO, 2008, p. 138.
42 POUCHEPADASS, Jacques. “Autour d’un livre: De lapostcolonie: essai sur l’imagination politique
dans l’Afrique contemporaine; On the postcolony (AchilleMbembe)”. Politique Africaine. Paris,
nº 91, p. 171-176, 2003.
43 BIAYA, Tshikala K.. Dérive épistémologique et écriture de l‘histoire de l‘Afrique contemporaine.
Politique Africaine. Paris, nº 60, p. 110-116, 1995.
44 BARRO, Abdoulaye. Le post-colonialisme africaIn:un miroir brisée. Controverses: Revue d’idées.
Paris, nº 11, p. 59-61, 2009.

62
IntelectuaIs das áfrIcas

O antropólogo francês Jean-Loup Amselle sintetiza de modo


direto e um tanto cru prováveis motivos pelos quais as interpreta-
ções de Mbembe geraram reações negativas e contestações entre
seus pares do continente:

Intelectual brilhante, mas pouco diplomático, ensaísta


dotado de prosa realista, por vezes sulfurosa, sobretudo
para um público africano, Achille Mbembe despertou a ira
dos pesquisadores mais ternos, que não o perdoaram por
ter posto de lado as problemáticas confortáveis e seguras
que eles reproduziam eque lhe permitiam continuar a ter
seu lugar no seio da comunidade universitária africana45.

Vista em perspectiva, a trajetória de Mbembe ilustra parcial-


mente a rearticulação das elites intelectuais africanas e o fenômeno
da “fuga de cérebros” dos anos 1980-1990, quando número ex-
pressivo de brilhantes pesquisadores e/ou pensadores migraram,
construíram ou renovaram suas carreiras em universidades euro-
peias e norte-americanas46, onde se concentram prioritariamente
centros de pesquisa, colóquios e redes de intercâmbio acadêmico
beneficiadas por investimento financeiro provenientes de funda-
ções ou órgãos governamentais. A este respeito, conviria lembrar
as considerações de Paulin Hountondji, para quem, nas relações
de produção científica e tecnológica do mundo globalizado, o
conhecimento elaborado pelos pesquisadores do Terceiro Mundo,
no caso, da África, permanece essencialmente extrovertido, isto é,
organizado e direcionado para responder a uma demanda (teórica,
científica, econômica) que vem do “centro” do mercado mundial,
motivo pelo qual reclama a necessidade de uma transformação das
relações de produção intelectuais47.

45 AMSELLE, Jean-Loup. L’Occident décroché: Enquête sur les postcolonialismes. Paris: Fayard, 2010,
p. 91.
46 DEDIEU. Les elites africaines, enjeu de la diplomatie scientifique des États-Unis. Politique Étran-
gere. Paris, nº 1, p. 120, 2003.
47 HOUNTONDJI, Paulin J. Le savoir mondialisé: desequilibres et enjeux actuels, p. 8. In: La
mondialisation vue d’Afrique (Univ. Nantes), 2001. Disponível online: http://mshafrique.free.fr/
afrique/charpar/cfpaulin.pdf Acessao em: 30/05/2014.

63
IntelectuaIs das áfrIcas

Haveria que se considerar, todavia, outra perspectiva acerca


do alcance e circulação de suas ideias e levar em conta a amplia-
ção depossibilidades abertas pela interlocução em comunidades
acadêmicas de prestígio, com maior capacidade de influência nas
tendências de estudo e pesquisa. Neste sentido, junto a outros
intelectuais africanos de renome internacional na área das ciências
sociais e filosofia, entre os quais V. Y. Mudimbe, Paul Tiyambe Zele-
za, Anthony Kwame Appiah, Souleymane Bachir Diagne e Mamadou
Diouf, ele tem sido qualificado por alguns como um “intelectual em
situação de diáspora” - cuja circulação permitiu recolocar em outros
termos as condições de produção do conhecimento sobre a África
e a busca de alternativas epistemológicas inovadoras48. Cumpre do
mesmo modo sublinhar que, nos deslocamentos, a consolidação
de sua carreira aconteceu no momento a partir do qual ocupou
espaço numa universidade de prestígio situada na própria África,
de onde passou a observar as tendências gerais do continente.
Na seção anterior, foi possível observar a proposição, recep-
ção, divulgação e debate crítico em torno do conceito de afropo-
litanismo, que começou a ser elaborado por Mbembe em 2005.
Independentemente dos rumos assumidos nesse debate, interessa
destacar a gradual ressonância de suas ideias entre os intelectuais
do Hemisfério Sul. Com efeito, na última década, sua produção
vem tendo grande receptividade nos principais núcleos intelectu-
ais da África e na França. Não parece aleatório o fato de que seus
últimos livros não tenham sido lançados no mercado editorial por
estabelecimentos especializados em temas do mundo negro e da
África, como as editoras Presence Africaine, Karthala e l’Harmattan,
e sim por estabelecimento de maior projeção junto ao público
propriamente francês, a Éditions La Découverte– sendo rodeados de
cuidadoso trabalho de divulgação nas mídias e nas redes sociais.

48 SÁ, Ana Lúcia. A idéia de pós-colônia em cientistas sociais africanos na diáspora, pp. 3-4. In: 7º Con-
gresso de Estudios Africanos (ISCTE - Lisboa, 2010). Disponível online: http://www.portaldoconhe-
cimento.gov.cv/bitstream/10961/395/1/A%20ideia%20de%20p%C3%B3scol%C3%B3nia%20
em%20cientistas%20sociais%20africanos%20na%20di%C3%A1spora.pdf. Acessado em:
02/03/2014.

64
IntelectuaIs das áfrIcas

Uma reconhecida contribuição teórica de Mbembe ao debate


sobre as formas contemporâneas das manifestações de poder
estatal tem que ver com a reflexão desenvolvida acerca da go-
vernamentabilidade em sociedades germinadas no colonialismo,
onde os princípios legais e institucionais cedem lugar a violência
institucionalizada e a um estado de exceção permanente, situação
expressa através do conceito de necropolítica.
Este dispositivo de análise tornou-se gradualmente conhe-
cido pelos pesquisadores desde 2003, quando publicou o artigo
Necropolitics na revista Public Culture. De lá para cá, a ideia tem sido
incorporada nas pesquisas de investigadores interessados em es-
tudar diferentes tipos de poder discricionário no mundo atual, ou
aplicadana análise de contextos de discriminação institucional de
cunho social, racial e político49. Seu último livro, intitulado Politiques
de l’Inimitié, lançado em 2016, parece explorar,aliás, um desdobra-
mento da ideia anterior, pois se dedica a examinar,em escala global,
traços da militarização do poder estatal e de práticas totalitárias de
terrorismo de estado que ameaçam o equilíbrio pretendido pelas
democracias liberais na era da globalização.
Para encerrar, resta dizer que, seja qual for a opinião que se
possa ter a respeito das interpretações de Achille Mbembe, é indu-
bitável a crescente relevância delas no conjunto dos estudos sobre
o continente africano. Sua enorme capacidade de discernimento,
capacidade crítica e inovação analítica, sua escrita densa e estilo
direto, contundente, bem como o alargamento do ângulo de seu
olhar da África para problemas mais gerais que afetam o Hemisfério
Sul garantem-lhe posição entre os nomes de intelectuais compro-
metidos com alterações estruturais no mundo contemporâneo.

49 Eis alguns textos que empregam o referido conceito, através de Mbembe: SANTOS, Madalena.
Beyond negotiating impossibilities: the art of palestinian creative resistance. Platforum. Londres,
v.12, p. 57-79, 2011; ALVES, Jaime Amparo. Topografias da violência: Necropoder e governamen-
talidade espacial em São Paulo. Revista do Departamento de Geografiada USP. São Paulo, v. 22, p.
108-134, 2011; LAURIS, Elida. Uma questãode vida ou morte: para uma concepção emancipatória
do Acesso em: a justiça. Revista Direito & Práxis. Rio de Janeiro, v. 6, nº10, p. 412-454,2015.

65
IntelectuaIs das áfrIcas

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

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69
IntelectuaIs das áfrIcas

PERCURSOS TRANSLOCAIS:
VALENTIN MUDIMBE E O PÓS-COLONIAL

Regiane Augusto de Mattos1

Assim, com a oportunidade de voltar para a aldeia ances-


tral durante as férias escolares, o rapaz seguiu a iniciação
tradicional Luba-Sonkye proposta pelos Mestres da Noite.
Ela constituía uma mitologia dos primórdios do mundo.
Embora mais tarde ele dissesse não ter sofrido um impac-
to, o aluno já foi colocado na posição intermediária, entre
o ensino, certamente dominante, recebido dos padres
missionários e o depósito da tradição. Não podemos ver
nesta situação o primeiro indício da experiência dividida
que vai marcar seu pensamento e seus escritos na vida
adulta? 2

Este é um episódio vivido pelo filósofo Valentin Yves Mudimbe.


Nascido em 8 de dezembro de 1941, em Likasi (ex-Jadotville), uma
cidade localizada na província de Katanga, atual República Demo-
crática do Congo, Mudimbe é um dos filósofos mais influentes do
final do século XX, considerado um intelectual por sua trajetória e
produção acadêmica e cultural, mas também pelo seu engajamento
1 Doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo, Brasil. Professor adjunto 1 da
Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro , Brasil
2 Tradução livre de: “C’est ainsi qu’à l’occasion d’un retour au village ancestral pendant les vacances
scolaires, le garçonnet a suivi l’initiation traditionnelle des Luba-Sonkye proposée par les Maîtres
de la Nuit. Elle constituait en une mythologie des commencements du monde. Quoiqu’il ait dit
plus tard n’en avoir guère tiré d’exaltation, l’écolier se trouve déjà placé en position d’entre-deux,
entre l’enseignement, certes dominant, reçu des Pères Missionnaires et le dépôt de la tradition.
Ne peut-on voir dans cette situation le premier indice de l’expérience de la “déchirure” qui va
marquer sa pensée et ses écrits d’adulte?” BAL, Willy. Présence, parcours et paradoxes de Valentin Yves
Mudimbe [en ligne]. Bruxelles: Académie royale de langue et de littérature françaises de Belgique,
2007. Disponible sur: <http://www.arllfb.be/ebibliotheque/communications/vaes100404.pdf>

71
IntelectuaIs das áfrIcas

político, reconhecimento e influência que exerceu na sociedade,


principalmente no âmbito da produção do conhecimento.
Este trabalho tem por objetivo retratar a sua trajetória e a
importância da obra de Valentin Mudimbe dentro dos “estudos
pós-coloniais”, partindo da perspectiva analítica da translocali-
dade. Para entender a concepção de suas ideias serão analisados
as experiências, os trajetos de atuação e os diálogos que esta-
beleceu com outros autores. Serão destacadas igualmente as
redes de sociabilidade entre intelectuais contemporâneos com
trajetórias similares que influenciaram os debates e a produção
das suas ideias.
A obra de Valentin Mudimbe alcançou uma dimensão trans-
continental, abarcando espaços e grupos na África, Europa e Amé-
rica. Sua trajetória e produção, construída em diálogo com outros
autores, permitem pensar movimentos políticos e culturais que
extrapolaram fronteiras nacionais e culturais, proporcionando uma
reflexão sobre o próprio limite destas como categoria de análise
no século XXI. Ao mesmo tempo, é possível notar a influência na
sua obra dos saberes e identidades locais num processo dialético
de valorização de particularidades e de comportamentos globaliza-
dos. Dessa maneira, sua trajetória e produção intelectuais podem
ser analisadas a partir da perspectiva das conexões históricas e
constantes entre redes locais e globais.
Nesse sentido, este texto faz uso do conceito de transloca-
lidade, apresentado no livro organizado pela historiadora Ulrike
Freitag e pelo sociólogo Achim von Oppen3, que visa melhorar
o entendimento e conceituar as conexões entre o local e global.
Como uma alternativa ao foco elitista da história global, os autores
afirmam a necessidade de considerar também o papel de atores
e lugares que não são comumente vistos como constituintes de
processos globais. Translocalidade pode ser um objeto de investi-
gação, ou seja, fenômenos que resultam de múltiplas circulações
3 FREITAG, Ulrike; von OPPEN, Achim. Translocality. The Study of Globalising Processes from a
Southern Perspective. Leiden/Boston: Brill Academic Publishers, 2010.

72
IntelectuaIs das áfrIcas

e transferências com o movimento de pessoas, produtos e ideias,


que cruzam fronteiras geográficas, culturais ou políticas; e como
uma perspectiva de análise destacando o fato de que as intera-
ções e conexões entre lugares, instituições e atores têm efeitos
diversos, às vezes contraditórios. Enquanto perspectiva, a trans-
localidade rompe com a tradição dos estudos essencializantes
do local, como uma unidade independente e autossuficiente que
desenvolveu suas próprias estruturas e eventos, mas também com
as noções de transferência cultural, adaptação ou ressignificação
do global numa esfera local. Privilegia uma análise menos linear,
tentando lidar com algum tipo de ordem, mas também com a
transgressão nas múltiplas interações em diferentes espaços e
escalas.

PERCURSOS TRANSLOCAIS

Valentin Mudimbe nasceu numa família humilde, crescendo


entre aldeões e os ensinamentos cristãos de missionários coloniais.
Seu pai era um trabalhador mineiro de origem songhye e sua mãe
luba era empregada doméstica. Com os pais originários de famí-
lias católicas, viveu até os nove anos de idade numa aldeia suaíli,
quando, então, foi enviado para um mosteiro beneditino para ser
seminarista, no monastério Saints Pierre et Paul de Gihindmuyaga,
em Ruanda. Estudou flamengo, grego, latim, hebraico e russo,
tornando-se um linguista.4
No início dos anos 1960, descontente com a atuação da Igreja
Católica diante dos massacres de 1959, deixou a ordem beneditina
e foi para a Universidade Lovanium de Léopoldville (atual Kinshasa),
na qual se tornou decano com apenas 32 anos de idade. Seu estilo
de vida depois da experiência religiosa continuou a ser bastante
regrado. Sua rotina continuava ser a mesma do monastério com três
turnos de oito horas divididos entre oração, trabalho e descanso,
4 COQUERY-VIDROVITCH, Catherine. Le témoin et l’acteur. In: Cahiers d’études africaines, vol.
36, n°143, 1996. pp. 477-488. doi : 10.3406/cea.1996.1427 http://www.persee.fr/doc/cea_0008-
0055_1996_num_36_143_1427

73
IntelectuaIs das áfrIcas

proporcionando uma dedicação intensa à vida intelectual, o que


facilitou a sua integração ao mundo acadêmico.5
Na sua autobiografia, Les corps glorieux des mots et des êtres (Os
corpos gloriosos das palavras e dos seres), publicada em 1994, cujo
subtítulo é “Esquisse d’un jardin africain à la bénédictine” (Esboço
de um jardin africano à beneditina), é possível perceber a dualidade
que persegue a sua vida e está presente em várias de suas obras.
Dito de outra maneira notam-se as conexões translocais na sua
própria experiência.
Nessa obra, Mudimbe revela-se como um homem, um inte-
lectual e um acadêmico entre dois mundos, condenado a grande
separação entre a vida vivida e a integrada, entre a sua experiência
no seio social e familiar africano e a vida fruto da situação colonial
e como beneditino. São experiências plurais, partilhadas entre os
mundos do negro e do branco, do colonizado e do colonizador,
do local e do global.
Essa experiência plural e dividida se revela igualmente pela
experiência de seus pais inseridos, segundo Mudimbe, numa ca-
tegoria social de congoleses que estavam no meio termo entre
a classe média educada e a população em geral no Congo Belga
colonial “Na classificação colonial, meu pai não é um “evoluído”.
Ele está em algum lugar no meio do caminho entre o aldeão dos
trabalhos antropológicos e o perfeito assimilado do projeto de
conversão colonial”.6
Mudimbe se vê distante dos pais devido a sua formação
religiosa como monge beneditino, com a Igreja se tornando sua
segunda família. A partir desse momento ele ganha também um
status diferente dos demais congoleses, sendo resultado do pro-

5 Ibidem.
6 Tradução livre de: “Dans la classification coloniale, mon père n’est pas un ‘évolué’. Il est quelque
part, à mi-chemin entre le villageois des ouvrages anthropologiques et l’assimilité parfait du projet
de conversion colonial”. MUDIMBE, Valentim. Les Corps glorieux des mots et des êtres. Paris:
Humanitas, 1994. Apud SANKARA, Edgard. Valentin Mudimbé. Autobiography, Philosophy
and Exclusive Francophone Reception. In: Postcolonial Francophone Autobiographies: From Africa
to the Antilles. University Virginia Press, 2011, p.73.

74
IntelectuaIs das áfrIcas

jeto colonial belga. Mas Mudimbe também se identifica como um


predestinado e sua trajetória uma vocação:

No momento em que olho para o meu percurso, eu digo: o


universitário internacional ou simplesmente o homem que
eu me tornei é, para muitos, o resultado de uma eleição.
(...) Minha infância remonta: um quadro, uma arte, uma
vocação. Emergi e, desde então, giro em um jardim, sur-
preso. Os jogos foram visivelmente feitos desde o início.
Até nas minhas revoltas, ofegava pelas normas antigas. Eu
morreria fiel a esse campo ou, mais precisamente, com
os reflexos adquiridos dele. Mesmo as diferenças teste-
munham, no total, sobre o passado. Deus contornado, a
inutilidade das belezas do domingo esquecido, e com ele,
a extensão dos símbolos cristãos reduzidos às ilusões de fé,
ainda me restam um fundo de sonho, uma cultura católica
e suas virtudes.7

Em 1966, casou-se com Elizabeth Mbulamuanza Boyi, com


quem teve dois filhos, Daniel e Claude. Em 1968, formou-se em
Sociologia na Universidade de Paris-Nanterre. Os anos 1960 foram
para Mudimbe e outros jovens universitários africanos um período
de despertar político, no qual o marxismo e depois o socialismo
africano tornaram-se inspiração não somente politicamente para os
movimentos de independência na África como para compreender
academicamente as sociedades africanas. Época também dos movi-
mentos ideológico-culturais da Négritude e do Pan-africanismo, que
promoveram a valorização das culturas dos negros no mundo, rei-
vindicando, sobretudo, uma alteridade africana. Embora admirador
de Aimé Césaire, poeta e político da Martinica, e do também poeta

7 Tradução livre de: “A présent que je peux, à froid, regarder mon parcours, je me dis: l’universitaire
international ou, simplement, l’homme que je suis devenu est, pour beaucoup, le fruit d’une
élection. (...) Mon enfance remonte: un cadre, un art, une vocation. J’en ai émerge et, depuis
lors, tourney en un jardin, surpris. Les jeux étaient, visiblement, faits, dès le depart. Jusqu’en
mes rebellions, j’haletais d’après des norms anciennes. Je mourrais fidèle à ce champ ou, plus
exactement, avec les reflexes acquis de lui. Même les écarts témoignent, au total, de ce passé.
Dieu contourné, la futilité des beautés du Dimanche oubliée et, avec ele, l’étendue des symboles
chrétiens réduite aux illusions d’une foi, il me reste encore un fond de rêve, une culture catholique
et ses vertus”. Ibidem, p.73.

75
IntelectuaIs das áfrIcas

e filósofo senegalês Léopold Sedar Senghor, principais expoentes


da Négritude, Mudimbe criticará o relativismo cultural e o caráter
essencialista do movimento.
Entre 1970, defendeu seu doutorado em semântica, sob a
orientação de André Goosse, na Universidade Louvain, na Bélgica.
Depois disso retornou para a República Democrática do Congo,
naquela época Zaire, como professor associado na Universida-
de Nacional do Zaire. De 1974 a 1980, Mudimbe lecionou em
Haverford College, na Pensilvânia. Desde 1981 tem ensinado na
Universidade Duke e, em 1996, começou a lecionar também na
Universidade Stanford.
Em sua autobiografia, depois de questionar a sua utilidade
para a África sendo um professor universitário nos Estados Unidos,
Mudimbe revela que as suas produções intelectuais foram voltadas
para a salvação de seu país:

Meu plano de ação, como professor, no contexto político


do Zaire, não poderia moldar qualquer coisa decisiva. Eu
não podia esperar nenhuma explosão a partir de meus en-
sinamentos de filologia em Lovanium ou em Lubumbashi.
Hoje, eu digo, a chave está lá na minha infância novamente.
Minha pintura queria capturar o sopro da vida em minha
nudez; minha poesia, assim como meus ensaios, zombavam
dos humores e dos excessos de inspirações burguesas, mas
meu trabalho acadêmico, apesar da decomposição políti-
ca do meu país, queria testemunhar uma educação e sua
competência. Era parte de uma missão religiosa: salvar.8

Além da excelente trajetória como docente universitário, Mu-


dimbe ocupou cargos como o de secretário-geral da Sociedade de

8 Tradução livre de: “Mon projet d’agir, comme enseignant, dans le context politique zaïrois, ne
pouvait rien modeler de décisif. Je ne pouvais attendre aucune explosion à partir de mes enseig-
nements de philologie à Lovanium ou Lubumbashi. Aujourd’hui, je me dis: la clé est là, en mon
enfance une fois de plus. Ma peinture voulait saisir le souffle de la vie en ma nudité; ma poésie,
commme mes essais, se moquaient des humeurs et dérives d’inspirations bourgeoises, mais mon
travail universitaire, malgré la décomposition politique de mon pays, voulait témoigner d’une
éducation et de sa compétence. Il relevait d’une mission religieuse: sauver”. Ibidem, p.70-71.

76
IntelectuaIs das áfrIcas

Filosofia Africana na América do Norte e o de membro do Conselho


editorial da Duke University Press. Entre 1972 e 1979, exerceu im-
portantes funções na universidade e em organizações científicas.
Esses foram anos muito difíceis marcados por uma crise do sistema
universitário causada por conflitos e corrupção generalizada do
governo de Mobutu Sese Seko Kuku Ngbendu Wa Za Banga. Nes-
se contexto, Mudimbe teve o seu nome modificado para Vumbi
Yoka Mudimbe devido ao chamado “culto da autenticidade”, um
movimento do nacionalismo cultural zairista que rejeitava o uso
de nomes cristãos. Embora o regime de Mobutu controlasse a pro-
dução cultural, também promovia a ideia de uma cultura nacional
autêntica. Mobutu tentou incorporar Mudimbe ao partido como
pensador do seu regime político. Contrário à ditadura zairista, Mu-
dimbe viajou para os Estados Unidos com sua família, onde, anos
mais tarde, disseminou a ideia de que a cultura nacional autêntica
era uma mistificação, criticando seus fundamentos filosóficos. Nos
EUA foi professor na Universidade Duke, em Haverford, na Pennsil-
vania, e em Stanford. Foi professor visitante em várias universidades
africanas, americanas e europeias, como a Universidade Livre de
Berlim (Freie Universität). E, em 1997, recebeu o título de doutor
honoris causa pela Universidade Denis-Diderot Paris VII. 9
Além de autor de grandes obras de referência na área da filo-
sofia, como o clássico livro A invenção da África: gnosis, filosofia e a
ordem do conhecimento, Mudimbe escreveu também poesias e nove-
las traduzidas para vários idiomas, assim como os ensaios L’autre
face du royaume (O outro lado do reino, 1974), L’Odeur du père:
essais sur des limites da la science et de la vie en Afrique Noire (O
cheiro do pai: ensaios sobre os limites da ciência e da vida na África
Negra, 1982), Tales of Faith (Contos de fé, 1997) e Cheminements:
Carnets de Berlin (Percursos: cadernos de Berlim, 2006).
Sua carreira de poeta e romancista é igualmente reconhecida,
notadamente com o livro de poesias Déchirures (Rupturas, 1971)
e depois o romance Entre les Eaux. Dieu, un prêtre, la révolution
9 Bal, Willy, op.cit., 2007.

77
IntelectuaIs das áfrIcas

(Entre as águas: Deus, um padre, a revolução, 1973). Por esta últi-


ma ganhou o grande prêmio de Romance Católico, em 1974. Em
1977, Mudimbe recebeu o prêmio Senghor de escritores de língua
francesa e o título de Chevalier de la Pléiade, da Ordem Francófona
e do Diálogo de Culturas de Paris. Em 1989, foi contemplado com
o Herskovitz de Estudos Africanos pela obra A invenção de África:
gnose, filosofia e a ordem do conhecimento. E em 1992 o Prêmio
Literário Internacional Neustadt, entre outros.
A partir da sua trajetória é possível perceber como as suas
ideias é resultado dessas múltiplas experiências que viveu e pro-
moveu, marcadas pela sua circulação em diferentes campos e pelo
entrecruzamento de fronteiras geográficas, culturais e políticas.
Seus perscursos translocais refletirão em suas obras através da
valorização diáletica das particularidades e dos comportamentos
globalizados transpondo as análises essencializantes do local, como
veremos mais adiante neste trabalho.

MUDIMBE E OS ESTUDOS PÓS-COLONIAIS

Intelectuais originários do chamado Terceiro Mundo pre-


sentes nas universidades norte-americanas, europeias e indianas
formularam críticas às correntes de pensamento e aos discursos
eurocêntricos ainda em voga no último quartel do século XX.
Uma das principais marcas desse grupo era a transversalidade,
abrangendo trabalhos em campos variados como os da teoria li-
terária, da filosofia, da política, da antropologia e da história. Esse
conjunto de reflexões, em grande medida, influenciou o debate
historiográfico nas últimas décadas, ficando conhecido como es-
tudos pós-coloniais.
Podemos citar alguns dos mais conhecidos desses estudiosos,
como Ranajit Guha, Arif Dirlik, Arjun Appadurai, Aijaz Ahmad, Stu-
art Hall, Hommi Bhabha, Ali Mazrui, Edward Said, Lata Mani, Leela
Desai, Ania Loomba e Mrinalini Sinha. Alguns destes intelectuais
são de origem africana, como Anthony Appiah e Valentin Mudimbe,

78
IntelectuaIs das áfrIcas

e também tiveram destaque nesse cenário, apresentando questões


em torno da África e das populações africanas no mundo. Esses
intelectuais foram formados nos principais centros universitários
europeus, como França, Alemanha, Reino Unido, em áreas de lín-
guas ocidentais, humanidades e ciências sociais.
O termo pós-colonial é relativamente antigo, remontando à
década de 1970. Enquanto conceito se constitui a partir dos anos
1980, no mundo anglo-saxónico, com o livro The empire writes back:
theory and practice in post-colonial literatures (ASHCROFT, 1989).
Este é um dos primeiros livros que utiliza pós-colonialismo como
conceito e, por essa razão, é considerado um marco deste campo
de investigação.10
Embora nem todos os autores que fazem parte desta área
de estudos aceitem o rótulo “estudos pós-coloniais”, são assim
considerados devido as suas aproximações epistemológicas, como
bem ressalta Inocência Mata:

[...] o que parece aproximar as várias percepções, pers-


pectivas e insights deste campo de estudos é a construção
de epistemologias que apontam para outros paradigmas
metodológicos – que potenciam outras formas de raciona-
lidade, racionalidades alternativas, outras epistemologias,
do Sul, por exemplo – diferentes dos “clássicos” na análise
cultural e literária. Decorre desta reflexão a consideração de
que porventura a mais importante mudança a assinalar é a
atenção à análise das relações de poder, nas diversas áreas
da atividade social caracterizada pela diferença: étnica, de
raça, de classe, de gênero, de orientação sexual. 11

Ademais, os estudos pós-coloniais problematizam o pós-


colonialismo, na tentativa de rever e interrogar o passado colonial
e os seus resquícios nas sociedades colonizadas. Relembrar se
torna obrigatório para os intelectuais do pós-colonialismo, como
10 MATA, Inocência. Estudos pós-coloniais. Desconstruindo genealogias eurocêntricas. Civitas.
Porto Alegre, v.14, n.1, jan.-abr. 2014, p.30.
11 Ibidem, p.30-31.

79
IntelectuaIs das áfrIcas

sobreviventes dos terrores de seu passado colonial. O objetivo


seria ultrapassar esse passado recuperando-se dele e construindo
uma epistemologia alternativa. 12
Um de seus grandes expoentes, o crítico literário Homi Bha-
bha, argumenta: “re-lembrar, a se unir ao passado desmembrado
para dar sentido ao trauma do presente”.13
Como afirma Patrizia Calefato sobre os estudos pós-coloniais:

O espaço teórico, politico e poético reconhecido não só


como o que vem ‘depois’ do colonialismo, ou seja, depois
dos acontecimentos históricos da descolonização iniciados
na segunda metade do século XX (...) mas também como o
‘pós’ pós-colonialismo: uma situação que, histórica e geo-
politicamente, é já uma situação de globalização em que
as razões profundas do colonialismo, juntamente com os
conflitos pós-coloniais e a violência mundializada que trans-
forma as minorias em êxodos, abriram cenários novos.14

Os estudos pós-coloniais não possuem uma única metodolo-


gia, mas a unidade é dada pelo objeto de investigação: os encontros
e confrontos culturais em espaços e relações de subordinação. De
acordo com o professor Narasingha P. Sil, a coexistência problemá-
tica do passado colonial num contexto de independência política,
no presente, gera o desafio de superar o conflito entre o “nativo” e
o “invasor”. “Assim, os estudos pós-coloniais transformam a relação
conflituosa entre o passado e presente em uma relação simbiótica
entre o colonizador e o colonizado”.15
A partir dessa perspectiva, na qual o colonialismo é um con-
ceito fundamental para analisar o presente, ganham espaço as
histórias das migrações pós-coloniais e da diáspora cultural atuais;

12 SIL, Narasingha P. Postcolonialism and Postcoloniality: A Premortem Prognosis Alternatives.


Turkish Journal of International Relations, Vol. 7, No. 4, Winter 2008, p.23.
13 BHABHA, Homi. O local da cultura. Belo Horizonte: Ed. UFMG, 1998, 63.
14 CALEFATO, Patrizia. Introdução de «Critica della ragione postcoloniale» de Gayatri Spivak, Roma
Meltemi, 2004, p.9.
15 SIL, Narasingha P., op. cit, p.23.

80
IntelectuaIs das áfrIcas

os considerados “esquecidos”, antes à margem das grandes nar-


rativas e que agora passam a contar as suas próprias histórias; o
conceito de “sujeito” e suas identidades sociais, politicas, sexuais
e ideológicas. Por outro lado, os conceitos de Estado e Nação, ou
identidade nacional, dão lugar às identidades híbridas e transna-
cionais.16
Considerado um dos principais expoentes desse grupo, o es-
critor nascido na Palestina e emigrado nos Estados Unidos, Edward
Said com o seu livro Orientalismo, publicado em 1978, permeia os
debates acerca do pós-colonialismo. A partir da perspectiva binária
entre colonizado e colonizador, este autor analisa o conceito de
“Oriente” como uma invenção dos ocidentais.
Nesse aspecto, podemos estabelecer uma relação direta com
a análise realizada por Valentim Mudimbe, no livro A Invenção de
África: gnose, filosofia e a ordem do conhecimento. Esse clássico da
filosofia africana apresenta a ideia de África como uma invenção
epistemológica elaborada por europeus. Entretanto, Mudimbe
formula sua teoria de uma maneira um pouco menos dicotômica,
afirmando que os próprios africanos também participaram desse
processo de construção da ideia de África, porém partindo de uma
episteme ocidental, como veremos a seguir.

ENTRE O SINGULAR E O UNIVERSAL: ALTERIDADES E A


INVENÇÃO DA ÁFRICA

Nessa que é uma de suas obras mais conhecidas (A Invenção


de África: gnose, filosofia e a ordem do conhecimento), publicada em
1988, Mudimbe apresenta a ideia de África como uma invenção
epistemológica na área das ciências sociais, defendendo que o
conhecimento sobre o continente seria um conhecimento estrita-
mente controlado por procedimentos específicos elaborados por
europeus, que ele denomina gnose.

16 NEVES, Rita Ciotta. Os Estudos Pós-Coloniais: Um Paradigma de Globalização. Babilónia,


n.º6/7, Lisboa: ULHT, 2009, pp. 235-236.

81
IntelectuaIs das áfrIcas

Já no primeiro capítulo analisa como os saberes sobre o


continente africano foram sendo criados, principalmente a par-
tir do século XVIII, com as representações feitas por viajantes-
exploradores europeus. De acordo com o autor, essas imagens
revelam um etnocentrismo epistemológico e ideológico que são
inseparáveis e complementares. Esses dois aspectos se fundem
no discurso do poder e do conhecimento da experiência coloni-
zadora. Nesse contexto histórico, a antropologia terá um papel
fundamental sendo sua criação ligada intrinsecamente à episte-
mológica ocidental.17
Nas décadas de 1960 e 1970 houve uma forte discussão crítica
sobre antropologia, cultura e geografia africanas, promovida tam-
bém por intelectuais africanos preocupados com o poder político
no contexto pré-independência. Esses intelectuais propunham
a noção de uma “vigilância epistemológica”, isto é, a criação de
estratégias para dominar os paradigmas intelectuais sobre o “ca-
minho para a verdade” com análises das dimensões políticas do
conhecimento e com os procedimentos para instituir novas regras
nos estudos africanos. Nesse sentido, Mudimbe nos chama aten-
ção afirmando que “o princípio fundacional das ciências coloniais
está em funcionamento na África. Os filósofos e cientistas sociais
africanos ainda aceitam de forma sutil o modelo ocidental”.18
Mudimbe questiona a oposição estabelecida entre tradição
europeia e tradição africana, dizendo que este é um modelo externo
executado no Ocidente, no qual se impõem regras para a renúncia
da vontade africana para ser ela própria e se definem princípios
para a abolição das histórias regionais.
Fortemente influenciado pelos trabalhos do filósofo Michel
Foucault sobre filosofia e produção do conhecimento, com des-
taque para a análise de discurso, e enfatizando o discurso cien-
tífico do colonialismo, Mudimbe analisa, no terceiro capítulo da

17 MUDIMBE, Valentim. A invenção da África: Gnose, filosofia e a ordem do conhecimento. Luanda:


Edições Pedago e Mulemba, 2013, p.36-37.
18 Ibidem, p.64.

82
IntelectuaIs das áfrIcas

sua obra, os discursos missionários, os relatos dos viajantes e as


interpretações dos antropólogos, que afirma produzirem um tipo
de conhecimento sobre a África e os africanos. O autor inicia o
capítulo ressaltando:

Não precisamos de muita imaginação para perceber


que os discursos missionários sobre os africanos foram
preponderantes; foram quer sinais quer símbolos de um
modelo cultural, tendo constituído durante bastante
tempo, a par dos relatos dos viajantes e das interpreta-
ções dos antropólogos, um tipo de conhecimento. No
primeiro quarto deste século evidente que o viajante
se tinha tornado um colonizador e o antropólogo o seu
consultor científico enquanto que o missionário, com
mais veemência do que nunca, continuava, na teoria
e na prática, a interpretar o modelo da metamorfose
espiritual e cultural africana.19

Para o autor, o processo de conversão e as perspectivas


ideológicas promoveram as teorias da alteridade africanas, mas
também suscitaram dúvidas sobre discursos ocidentais nas so-
ciedades africanas. Mudimbe pretende investigar a ligação entre
a linguagem missionária e o seu impacto ou a negação africana e
a relação com a antropologia. Questiona as contribuições positi-
vas ou negativas dos missionários para a ideologia africana e as
interpretações controversas desta relação na crise dos Estudos
Africanos. 20
Mudimbe analisa como os discursos missionários se as-
sociaram histórica e ideologicamente e as suas consequências
para a antropologia, afirmando que possuem responsabilidade
na construção de uma ideologia africana da alteridade. Também
nota como ocorreu a associação entre as missões na África a
propaganda cultural, as motivações políticas e aos interesses
comerciais. Ressalta que esses discursos missionários, que são co-
19 Ibidem, p.67.
20 Ibidem, p.64-66.

83
IntelectuaIs das áfrIcas

lonizados, partilham de uma episteme, qual seja, de uma hipótese


evolucionista, vendo nos africanos determinadas características
e indicando a necessidade de regeneração através da conversão
cultural e espiritual.21
Destaca três destes missionários: Giovanni Francesco Roma-
no, Samuel Ajayi Crowther e Placide Frans Tempels. A linguagem
dos missionários apresenta três abordagens principais: irrisão das
religiões primitivas e dos seus deuses, refutação e demonstração
para convencer os africanos desenvolvidos e imposição das regras
da ortodoxia e da conformidade para os convertidos.22 Para Mu-
dimbe, os relatos de missionários e dos antropólogos possuem a
mesma episteme, e seus discursos debatem os processos europeus
de domesticação da África.23
Esses discursos sobre a invenção de uma África primitiva for-
mados, então, por relatos de viajantes, interpretações filosóficas e
pesquisas antropológicas conformariam uma consciência ocidental
ou um saber ocidental sobre a África:

De facto, de uma perspectiva histórica, mais geral, pode-


mos observar três gêneros complementares de “discurso”
que contribuíram para a invenção de uma África primitiva:
o texto exótico sobre selvagens representado pelos rela-
tos de viajantes; as interpretações filosóficas sobre uma
hierarquia de civilizações, e os da pesquisa antropológica
do primitivismo. A complementaridade destes discursos
é óbvia. É percebido como uma unidade na consciência
ocidental. 24

Mudimbe divide, em dois períodos, dois tipos de conheci-


mento sobrepostos em África: antes e depois de Malinowiski,
tendo como marco cronológico o ano de 1920. Antes de 1920
os discursos reprimiam a alteridade em nome da uniformidade
21 Ibidem, p.67-68.
22 Ibidem, p.77.
23 Ibidem, p.93.
24 Ibidem, p.95.

84
IntelectuaIs das áfrIcas

e os estudos sociais africanos tinham como fundamentação um


campo epistemológico da conquista. Entre 1920 e 1950, rejeitam
as investigações antropológicas que são anti-históricas.25
O autor examinou o discurso dos antropólogos, seu poder
e ambiguidade com a criação da expressão “filosofia primitiva”
comum nas décadas de 1920 e 1930 como parte desse sistema
que colonizava o continente desde o final do século XIX. Um
dos marcos iniciais da etnofilosofia26, o livro "Filosofia Bantu"27,
do missionário belga Placide Tempels sobre o pensamento dos
povos de língua bantu, não rejeitava a ideologia do domínio
natural, mas antes propunha meios mais eficazes para o ob-
jetivo de civilizar e evangelizar os africanos, criando formas
para valores cristãos numa base cultural bantu, e de construir
a civilização, que estaria em harmonia com os modos de pensar
e de ser bantu.
A crítica de Mudimbe a Tempels recai na generalização das
afirmações sobre uma filosofia, construída por sinais externos e
com parâmetros ocidentais. Portanto, falar de filosofia bantu sig-
nifica considerar uma coerência linguística das línguas bantu e a
utilidade do método herdado do Ocidente. 28
Para ele a grande questão é o problema da autenticidade:

O que é um africano, como falou dele ou dela e com que


objetivo? Onde e como podemos obter o conhecimento
do ser dele ou dela? Como definimos este mesmo ser e a
que autoridade recorremos para obter possíveis respostas?
É óbvio que o significado destas respostas não está de
forma alguma relacionado com a etnofilosofia, nem com
uma exploração barata e fácil da noção de autenticidade
no sentido em que o governo zairense a usou, no início da
década de 1970. De facto, estas questões têm uma origem
25 Ibidem, p.110-112.
26 Em linhas gerais, a etnofilosofia considera as cosmovisões africanas como sendo o pensamento
filósófico africano, procurando demonstrar, por meio do método etnográfico de pesquisa, a
racionalidade que permeia os mitos africanos, as práticas rituais, os provérbios, etc.
27 TEMPELS, Placide. Bantu philosophy. Tradução de Colin King, Paris, Présence Africaine, 1969.
28 Ibidem, p.171-177.

85
IntelectuaIs das áfrIcas

diferente. São as que considero marcadas pelas exigências


de uma filosofia crítica.29

Também pontua a existência de três abordagens: “1) crítica filo-


sófica da etnofilosofia; 2) tendência hipercrítica da década de 1960
que questiona as bases e as representações das ciências sociais
e humanas de forma a elucidar as condições epistemológicas, as
fronteiras ideológicas e os procedimentos para a prática da filosofia;
3) estudos filológicos, antropologia crítica e hermenêutica, o que
indica vias para novas práticas nas culturas e línguas africanas”.30
A crítica filosófica da etnofilosofia recai sobre os limites me-
todológicos da escola de Tempels, bem como as práticas e obras
africanas sustentadas por temas ocidentais. Em outras palavras,
coloca-se em questão o discurso político com relação à filosofia
que “visa analisar métodos e requisitos para a prática da filosofia
em África”, tendo como fundamento a tradição ocidental da filo-
sofia enquanto disciplina e às estruturas acadêmicas que garantem
práticas aceites institucionalmente.31
Mudimbe igualmente pontua a existência de duas tendências
das escolas ocidentais com efeitos na prática africana com mesma
origem na episteme ocidental, mas com orientações autônomas que
se desenvolveram no contexto europeu. A biblioteca antropológica
e o contexto intelectual das décadas de 1930 a 50, influenciada
por Marx, Freud e Heidegger (neomarxismo, existencialismo e
negritude e personalidade negra), destacaram a pertinência e a
importância da subjetividade, o inconsciente, a existência, a rela-
tividade da verdade, diferença contextual e alteridade.32
Na década de 1960, teóricos e ideólogos africanos usaram a
análise crítica como uma forma de se estabelecer como sujeitos
do seu próprio destino assumindo a responsabilidade pela inven-
ção do seu passado. Foi a denominada africanização das ciências
29 Ibidem, p.192.
30 Ibidem, p.193.
31 Ibidem, p.193.
32 Ibidem, p.207.

86
IntelectuaIs das áfrIcas

sociais e humanas; nacionalismo intelectual. 33 O conceito de his-


tória africana assinalou uma transformação radical de narrativas
antropológicas, valorizando a dimensão diacrônica como parte do
conhecimento sobre culturas africanas e incentivando novas repre-
sentações feitas pelos próprios africanos que eram apenas objeto
da história europeia.34 Dessa maneira, para Mudimbe, a gnose é o
discurso científico e ideológico em África, como resultado de dois
processos: a reavaliação permanente dos limites da antropologia
e uma análise da sua própria historicidade.35
Mudimbe não apenas criticou a antropologia clássica e a
etnologia europeias como rejeitou o movimento político cultural
Négritude, promovido por intelectuais negros, afirmando que tam-
bém era uma concepção influenciada por uma episteme ocidental
da África, mas apresentada por africanos e seus descendentes.
Desde o final do século XIX, intelectuais africanos, norte e
centro-americanos empenharam-se em transformar a visão que
imperava sobre a África de um continente formado por sociedades
sem história. Marcaram os debates acadêmicos e políticos trazendo
à tona interpretações que valorizavam as contribuições, sobretudo
culturais, das sociedades africanas. Organizaram-se em diferentes
manifestações, associações, conferências, congressos e publica-
ções, fazendo uso do conceito de raça como categoria histórica,
mas de forma reelaborada, ou seja, como elemento que organizava
as ideias, os discursos, os projetos e as práticas em resposta às
situações de dominação e discriminação. Esse movimento político-
cultural ficou conhecido como pan-africanismo.
Após o final da 2ª Guerra Mundial, esses intelectuais escreve-
ram trabalhos em torno da problemática colonial, tendo um papel
importante no processo das lutas de libertação no continente afri-
cano. Ganhou destaque nesse âmbito, como um ramo específico do
pan-africanismo, o movimento da Négritude. O termo négritude foi

33 Ibidem, p.208 -211.


34 Ibidem, p.220.
35 Ibidem, p.230-231.

87
IntelectuaIs das áfrIcas

utilizado pela primeira vez por Aimé Césaire, poeta e político nascido
na Martinica, em seu Discurso sobre o Colonialismo, escrito logo após
a 2a Guerra Mundial, revelando a ideia da unidade do mundo negro
fundamentada na solidariedade racial. O principal teórico do movi-
mento foi Léopold Sédar Senghor. Mais tarde, Senghor tornou-se o
primeiro presidente do Senegal, permanecendo no poder entre 1960
e 1980. O meio de debate e divulgação das ideias da Négritude era a
revista Présence Africaine, criada em 1947, em Paris. Foram realizados
intercâmbios pelos futuros líderes das independências como Jomo
Kenyata, Krumah, Senghor nas capitais coloniais com discussão e
elaboração de projetos que contribuiriam para as independências
políticas africanas. De uma maneira geral, esse movimento contribuiu
para que as elites africanas tomassem consciência dos problemas e
das condições políticas, sociais e econômicas do continente e pas-
sassem a questionar e elaborar projetos para combater a opressão
e exploração, propondo as independências.
Com relação à produção dos intelectuais da Négritude, Mu-
dimbe promove uma crítica contundente à filosofia do senegalês
Cheikh Anta Diop, que dizia que a civilização africana havia prece-
dido à civilização europeia e lhe era superior, fundamentando-se
nos estudos sobre o antigo Egito:

Essa filosofia, em nome da autenticidade ou do pretexto


mistificador da alteridade cultural africana absoluta, aban-
dona o local de nossa modernidade e de nossa reificação,
indicando em nossa história duas datas (uma no início da
escravidão e o estabelecimento de colonização), e ao refu-
giar-se nas dobras ilusórias de uma tradição mítica, apenas
parece exorbitante em termos de estratégias de urgência
e de sobrevivência. Em suma, penso sinceramente que
nosso futuro não reside na comemoração de notas sobre as
antiguidades negras, nem nos cultos de epopeias, mas na
consciência do que somos hoje como mulheres e homens.
Podemos e devemos nos opor à razão neo-colonial.36

36 Tradução livre de: “Que la philosophie, au nom d’une authenticité mystificatrice ou sous
prétexte d’une altérité culturelle africaine absolue, abandonne le lieu de notre modernité et de

88
IntelectuaIs das áfrIcas

Assim como questiona o essencialismo do movimento Négritu-


de, Mudimbe promove uma crítica, sobretudo, ao caráter eurocên-
trico da antropologia clássica influenciando muitos antropólogos
que tentam reconfigurar seus métodos num esforço de evitar os
essencialismos culturais. Intrigado com formulações do estrutura-
lismo e da alteridade cultural propostas por Claude Lévi-Strauss,
Mudimbe passou a questionar a etnologia francesa, pela qual foi
inicialmente influenciado.
Na literatura e teoria crítica Mudimbe contribuiu para mo-
dificar as suposições essencialistas sobre literatura africana, so-
bretudo ao se referirem a ela como uma unidade. Para Mudimbe
os africanos deveriam criar suas próprias perspectivas através
da ruptura, rejeitando as teorias do desenvolvimento contínuo
de uma cultura africana, fechada e única. Ele propôs que os in-
telectuais africanos inventassem suas próprias concepções do
conceito de africano.
Como já mencionado, Mudimbe dialoga muito com o filósofo
francês Michel Foucault, sobretudo no que se refere a sua abor-
dagem da relação entre poder e conhecimento, destacando como
as representações sobre o continente africano e suas populações
foram construídas pelos europeus. Ele propõe que os africanos
protagonizem suas próprias experiências combinando-as a uma
nova prática metodológica para as ciências sociais na África. Dessa
maneira, seria possível transformar o conhecimento local das cul-
turas africanas para o conhecimento universalmente reconhecido
sobre a África.
Para Mudimbe os ocidentais se entendem como vetores de
um modelo cultural pretensamente universal. Entretanto, essa
notre réification qu’indiquent dans notre histoire deux dates (celle du début de l’esclavage et de
l’instauration de la colonisation) pour se réfugier dans les replis illusoires d’une tradition mythique,
me paraît simplement scandaleux en termes d’urgence et de stratégies de survie. En somme, je
le pense sincèrement, notre avenir ne réside, ni dans la célébration des gloses sur des antiquités
nègres, ni dans le culte des épopées muséifiées, mais plutôt dans la conscience de ce que nous
sommes aujourd’hui comme femmes et hommes. Nous pouvons et devons nous opposer à la
raison néo-coloniale”. MUDIMBE, Valentim, op. cit, 1994. Apud SANKARA, Edgard, op. cit.,
p.181. SANKARA, Edgar. Postcolonial Francophone Autobiographies: From Africa to the Antilles.
Charlottesville, University of Virginia Press, 2011, 232 p.

89
IntelectuaIs das áfrIcas

universalidade não é construída através de uma experiência real


da pluralidade, pois viveram a alteridade de modo marginal ou
deformado partindo da sua própria identidade.37

Concretamente, o percurso para a verdade continua a


parecer, até agora, um modelo externo executado no
Ocidente, impondo regras para a renúncia da vontade
africana para ser ela própria e simultaneamente, definido
os princípios para a abolição das histórias regionais (...).
Mesmo no compromisso dos filósofos africanos atuais e
cientistas sociais, pode encontrar-se a aceitação, subtil e
silenciosa, da tese do modelo filosófico ocidental como
uma “rationalité en acte”.38

Mudimbe defende a importância da singularidade das expe-


riências históricas. Os africanos teriam capacidade de gerar suas
próprias “normas de inteligibilidade” e de interpretação sem a
necessidade da utilização de categorias criadas por outras expe-
riências. Entretanto, ele desafiou a lógica binária local/global ou
singular/universal, mostrando como essa divisão não é totalmente
absoluta.39 Nas palavras de Pierre Philippe Fraiture:

Mudimbe afirma que nas manifestações religiosas, artísticas,


epistemológicas africanas têm sido capturadas pelas regras,
cânones e procedimentos ocidentais, mas também como a
indigenização é uma consequência inevitável, o que tem sido
capturado, descolado e bricolado pela imaginação e práticas
locais são prova de que a submissão colonial nunca foi abso-
luta; ele aponta também para o duplo significado da palavra
invenção, cuja fabricação epistemológica foi examinada em
a Invenção da África, é também um processo que envolve os
agentes locais e desfoca a divisão entre o de dentro e sem.40

37 Coquery-Vidrovitch, Catherine, op. cit., p.487.


38 MUDIMBE, Valentim, op. cit., 2013, p.64.
39 FRAITURE, Pierre-Philippe. ‘VY Mudimbe: from the “Nation” to the “Global” - “Who is the
Master?”’, Journal of Historical Sociology, 27 (3), 2014, p.325.
40 Ibidem, p.339-340.

90
IntelectuaIs das áfrIcas

Para o antropólogo francês Jean-Loup Amselle, ao mostrar


que a África é uma invenção comum de europeus, mas também
de africanos, Mudimbe defende que todos têm o direito de usar o
conhecimento sobre o continente para construir uma identidade
que pode ser compartilhada. Portanto, as culturas africanas defi-
nem os seus próprios meios de acessar o universal. Isso se explica
porque para Mudimbe a definição de si mesmo passar pelo Outro
e a identidade é definida numa situação dialógica.41
De acordo com Edgar Sankara, Mudimbe utiliza em sua au-
tobiografia a metáfora do jardim para tratar da sua experiência
pessoal, da colonização e do continente africano. A metáfora do
jardim é perceptível no próprio subtítulo do livro: “Esquisse d’un
jardin africain à la Benedictine” (Esboço de um jardim africano à
beneditina). “Na metáfora do jardim beneditino, Mudimbe combina
a noção de natureza e cultura com a colonização. Ele define etimo-
logicamente o processo de colonização como o cultivo da natureza
e aceita que foi colonizado no caminho beneditino.” Quando se
refere, por exemplo, a Dom Charlier, o diretor da escola onde se
formara, afirma que percebe que ele o coloniza, mas não destaca
o grande peso da interferência colonial na sua forma de pensar,
quando afirma: “mas o que isso pode significar?”42

A colonização como razão do mais forte não podia ser, na


melhor das hipóteses, mais que o convite à assimilação,
a crescer. Quer dizer, então: um rearranjo de um espaço
físico, uma domesticação dos seres humanos de acordo
com um novo código de valores; colonização no sentido
etimológico da palavra (colére: cultivar), exatamente como
podemos decidir transformar um trecho de floresta em
um jardim erguido em transcendência, e que decidimos
promover a respeitabilidade de um papel.43
41 AMSELLE Jean-Loup. Mudimbe, V. Y. - The Invention of Africa. Philosophy and the Order of
Knowledge. In: Cahiers d’études africaines, vol. 31, n°121-122, 1991. La Malédiction. pp. 251-252.
http://www.persee.fr/doc/cea_0008-0055_1991_num_31_121_2119_t1_0251_0000_3.
42 SANKARA, Edgard, op. cit., p.75-76.
43 Tradução livre de: “La colonisation comme raison du plus fort ne pouvait ainsi être, au mieux,
qu’invitation à l’assimilation, à grandir. J’entends, donc: un réarrangement d’un espace phy-
sique, une domestication des humains selon un nouveau code de valeurs; colonisation au sens

91
IntelectuaIs das áfrIcas

A metáfora do jardim pode igualmente ser interpretada como


a própria colonização da África pela Europa. O jardim representaria
a experiência pessoal, mas também a do global, de colonização
do continente africano. No entanto, se para ele a sua própria ex-
periência foi bem sucedida, a crítica à colonização recai sobre o
processo colonial falhar na conciliação entre as “tradições” africanas
e europeias.44
Para Mudimbe a sua história teria dado certo devido à valorização
da sua trajetória, do seu papel, da sua individualidade. Assim, a África
ou os africanos poderiam também ter êxito, se soubessem conciliar o
passado colonial às suas próprias experiências históricas. À luz dos seus
“percursos translocais”, protagonizando novas práticas metodológicas
para a produção do conhecimento na e a partir da África.

Obras do autor

MUDIMBE, Valentin. Déchirures. Kinshasa: Editions du Mont Noir, 1971.


_____. Français. Les structures fondamentales. Kinshasa: Centre de
Recherches Pédagogiques, 1971.
_____. Autour de la nation. Kinshasa, Editions du Mont Noir, 1972.
_____. Entretailles [and] Fulgurances d’une lezarde. Saint-Germain-des-Pres,
1973.
_____. Entre les eaux, Presence Africaine, 1973.
_____. Entre les Eaux. Paris: Présence Africaine, 1973.
_____. Les Fuseaux parfois. . Saint-Germain-des-Pres, 1974.
_____. La prix du péché. Essai de psychanalyse existentielle des traditions
Européennes et Africaines. Kinshasa: Editions du Mont Noir, 1974.
_____. Le Bel Immonde. Presence Africaine, 1976.
_____. Contributions à l’étude des variations du genre grammatical des mots
français d’origine latine. Lumbumbashi: Celta, 1976.
_____. Air, étude sémantique. Vienna: Acta Ethnologica et Linguistica, 1979.
_____. L’Ecart. Presence Africaine, 1979.
_____. The Invention of Africa: Gnosis, Philosophy and the Order of
Knowledge. Bloomington: Indiana University Press, 1988.

étymologique du mot (colére: cultiver), exactement comme nous pouvons décider de transformer
un pan de forêt en un jardin érigé en transcendance, et que nous avons décidé de promouvoir
la respectabilité d’un role”. MUDIMBE, Valentim, op. cit, 1994. Apud SANKARA, Edgard, op.
cit., p.75-76.
44 Sankara, Edgard, op. cit., p.76.

92
IntelectuaIs das áfrIcas

_____. Shaba Deux. Presence Africaine, 1989.


_____. Culture and Science in Zaire, 1960-1975: Essay on Social
Sciences. Brussels, 1980.
_____. La culture et la science au Zaire 1960-1975: Essai sur les sciences
sociales et humaines. Brussels, mimeo, 1980.
_____. Visage de la philosophie et de la théologie contemporaines au Zaire Brussels:
Cedaf. Cahiers du CEDAF, 1/1981, Series 4, Philosophy, 1981.
_____. L’Odeur du père. Paris: Présence Africaine, 1982.
_____. L’Autre face du royaume: Une introduction à la critique des langages
en folie
_____. Parables and Fables: exegeses, textuality and politics in Central
Africa. Ma: University of Wisconsin Press, 1991.
_____. The idea of Africa. Bloomington and Indianapolis; James Currey:
Indiana University Press; London, 1994.
_____. Les Corps glorieux des mots et des êtres. Paris: Humanitas, 1994.
_____. Tales of Faith: religion and political performace in Central Africa.
London & Atlantic Highlands, NJ: The Athlone Press, 1997.
_____. On African Fault Lines: meditations on alterity politics. University of
Kwazulu-Natal Press, 2013.

REFERÊNCIAS

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0055_1991_num_31_121_2119_t1_0251_0000_3
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colonial literatures. Londres: Routledge, 1989.
BAL, Willy. Présence, parcours et paradoxes de Valentin Yves Mudimbe [en
ligne], Bruxelles, Académie royale de langue et de littérature françaises
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cea.1996.1427 http://www.persee.fr/doc/cea_0008-0055_1996_
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FREITAG, Ulrike; von OPPEN, Achim. Translocality. The Study of Globalising
Processes from a Southern Perspective. Leiden/Boston: Brill Academic
Publishers, 2010.
FRAITURE, Pierre-Philippe. ‘VY Mudimbe: from the “Nation” to the
“Global” - “Who is the Master?”’, Journal of Historical Sociology, 27 (3),
2014, pp.324-342.

93
IntelectuaIs das áfrIcas

MATA, Inocência. Estudos pós-coloniais. Desconstruindo genealogias


eurocêntricas. Civitas. Porto Alegre, v.14, n.1, p. 27-42, jan.-abr. 2014.
MAZRUI, Ali A. The Re-Invention of Africa: Edward Said, V. Y. Mudimbe,
and beyond. Research in African Literatures, Vol. 36, No. 3, (Autumn,
2005), pp. 68-82.
MELLINO, Miguel. La crítica pós-colonial. Paidós, 2008.
MUDIMBE, Valentim. A invenção da África: Gnose, filosofia e a ordem do
conhecimento. Luanda: Edições Pedago e Mulemba, 2013.
NEVES, Rita Ciotta. Os Estudos Pós-Coloniais: Um Paradigma de
Globalização. Babilónia, n.º6/7, Lisboa: ULHT, 2009, pp. 231 – 239.
KRESSE, Kai. ‘Reading Mudimbe’: An Introduction. Journal of African
Cultural Studies. Vol. 17, No. 1, Special Issue: Reading Mudimbe (Jun.,
2005), pp. 1-9.
SANKARA, Edgard. Valentin Mudimbé. Autobiography, Philosophy and
Exclusive Francophone Reception. In: SANKARA, Edgar. Postcolonial
Francophone Autobiographies: From Africa to the Antilles. Charlottesville,
University of Virginia Press, 2011, 232 p.
SIL, Narasingha P. Postcolonialism and Postcoloniality: A Premortem
Prognosis Alternatives. Turkish Journal of International Relations, Vol.
7, No. 4, Winter 2008.
SPIVAK, Gayatri. Critica della ragione postcoloniale. Roma: Meltemi, 2004.
TEMPELS, Placide. Bantu philosophy. Tradução de Colin King, Paris,
Présence Africaine, 1969.

94
IntelectuaIs das áfrIcas

O DECANO DA FILOSOFIA AFRICANA:


PAULIN HOUNTONDJI

Itamar Pereira de Aguiar1

A produção de conhecimentos científicos e filosóficos por in-


telectuais africanos sobre fenômenos sociopolíticos e culturais da
África envolve, historicamente, temas cruciais, como colonialismo,
diáspora, resistências e rupturas; lutas libertárias, conservação de
tradições e mudanças, visão de mundo, métodos, hierarquia de va-
lores, entre outros que, de modo violento ou não, impuseram novo
universo de significações, produzindo ideologias ao redor do mundo
que afetaram diretamente os africanos e, por isso mesmo, merecem
breves considerações, antes de desenvolvermos o tema central deste
capítulo. Os movimentos de resistência organizados nos Estados
Unidos da América do Norte, mais as lutas em prol da liberdade,
ocasionadas nos diversos lugares da África e em muitos outros
para onde africanos foram levados como escravizados, produziram
convicções e princípios que oportunizaram certezas, tais como:

[...] a liberdade constitui valor supremo, - esse bem supremo


é mais uma ideia do que uma realidade, - essa ideia torna-se
progressivamente realidade, - é mais importante colocar o
passado e o presente ao serviço do futuro, - o que, por fim,
só se poderá realizar por meio da adoção de uma atitude de
vida pragmática, técnica, utilitária do mundo; [...], uma luta
permanente sobre todos os quadrantes, uma luta violenta
ou não-violenta2.

1 Professor titular da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB).


2 ELUNGU, P. E. A. O despertar filosófico em África. Portugal: Edições Pedago LDA, 2014, p. 59.

95
IntelectuaIs das áfrIcas

Essas considerações constituem expressões ideológicas do


negro norte-americano, já distinto do africano por suas tradições,
mitos e ritos, mas sob o julgo do colonialismo. Essa metamorfose
operada na diáspora está vinculada a movimentos que se constitu-
íram em três correntes de pensamentos distintas: a da não violên-
cia, liderada por W.B. Burghardt Du Bois; a liderada pelo apóstolo
da violência Marcus Garvey, através da religião, negócios e ação
direcionada aos negros pobres; e a da redescoberta e reabilitação
da África, que se direcionou à reconstituição cultural e científica,
encetada por Price-Mars, doutor em antropologia, história, medi-
cina e sociologia, natural do Haiti, mas que viveu em Paris. Todas
essas correntes foram dirigidas aos africanos, no sentido do alcance
da liberdade3.
Em decorrência de tal situação, alguns intelectuais, a exemplo
de Elungu P. E.A., asseveram que o africano sente o coração pesado
ao vivenciar cotidianamente, de modo dramático, as profundas
transformações socioculturais, econômicas e ambientais, ao sentir a
angústia que os conduz aos transtornos, às transformações no uni-
verso da metafísica e da religião, criando um quadro de inquietude
que demandou especulação filosófica e motivou os intelectuais a
pensar, a propor ações por uma existência consciente e uma moral
digna do ser livre.
Os autores dessas iniciativas buscavam a unificação dos africa-
nos, e suas ações resultaram, entre outros fenômenos, na ideologia
do Pan-Africanismo, que, a partir de 1900, repercutiu nos meios
intelectuais negros em Paris, se constituindo na origem da “Ne-
gritude” e compondo, com suas especificidades, as denominadas
ideologias africanas4.
3 A referida metamorfose operada no negro-americano está [...] na base da ideologia tipicamente
negra que se desenvolve no final do século passado. Essa ideologia, batizada com nomes dife-
rentes, permanece ligada a três nomes, três acções, três correntes de pensamento distinto. [...].
Os três aspiram à África, ou seja, à unidade da raça, de molde a dotá-la de uma maior liberdade
(ELUNGU, 2014, p. 59-60). ELUNGU, P. E. A. O despertar filosófico em África. Portugal: Edições
Pedago LDA, 2014.
4 A Negritude é o conjunto dos valores culturais do mundo negro, tal como se manifesta na vida,
nas instituições e nas obras dos negros. Quanto a nós, preocupámo-nos em testemunhar essa
Negritude, vivendo-a e ao vivê-la aprofundar o sentido com o intuito de apresentá-la ao mundo

96
IntelectuaIs das áfrIcas

Os caminhos para a construção da ideologia pan-africana


teve início com o retorno de Kwame Nkrumah à Costa do Ouro. E,
também, desde que ele compartilhou com a comunidade negra da
Universidade Lincoln os estudos de filosofia e teologia, juntamente
com G. Padmore e, por último, quando assumiu a Secretaria do V
Congresso Pan-africano em Londres no ano de 1945.
A partir de então, Kwame Nkrumah adota as convicções leni-
nistas sobre imperialismo, assume as ideias de igualdade racial, a
permanência no combate teórico e prático e o messianismo político
e religioso para a libertação dos africanos do julgo colonial, com a
criação dos Estados Unidos da África. Esse ideário foi registrado na
obra Towards Freedom, publicada em 1964. Devidamente instalado
na África, Kwame Nkrumah assumiu a missão histórica na luta pela
libertação do seu país, afirmando: “É esse o meu sonho e torná-
lo-ei realidade”5.
Quanto à Negritude, tem como um dos principais defensores
Léopold Sédar Senghor, que atribui a criação desse termo a Aimé
Césaire, que o introduziu no contexto político em 1938, quando
o utilizou como expressão poética em Le Cahier d’un retour au pays
natal, publicado no ano de 1939. A sua primeira definição é, tam-
bém, atribuída a Léopold Senghor, na obra Rapport sur la doctrine
de parti, de 1959, como “o conjunto dos valores do mudo negro”,
que a desenvolve em três etapas: “a arte: expressão da negritude;
a política e a negritude; a filosofia e a negritude”6.

na qualidade de pilar para a edificação da civilização do Universal, uma obra que será comum a
todas as raças, a todas as civilizações diferentes, ou não será (SENHOR, 1964, IN ELUNGU, P.
E. A. 2014, p. 91). ELUNGU, P. E. A. O despertar filosófico em África. Portugal: Edições Pedago
LDA, 2014.
5 ELUNGU P.E.A. O despertar filosófico em África. Portugal: Edições Pedago LDA, 2014, p. 71.
6 Procedemos à esquematização e caracterização dessa evolução consoante três etapas, durante
as quais a noção de negritude se torna mais clara e definida:
- a arte: expressão da negritude;
- a política e a negritude;
- a filosofia e a negritude. [...]. Contudo, “objectivamente, a negritude é um fato: uma cultura
correspondente ao conjunto dos valores – econômicos e políticos -, não apenas dos povos da
África negra, mas também das minorias negras da América, e mesmo da Ásia e da Oceania”
(ELUNGU, 2014, p. 78-83). ELUNGU, P. E. A. O despertar filosófico em África. Portugal: Edições
Pedago LDA, 2014.

97
IntelectuaIs das áfrIcas

Além do que foi dito até aqui, também merecem referências


a obra de Placide Tempels Filosofia Bantu, editada em 1945 e 1949
em francês, em 1946 em flamenco e, em 1956, em alemão7, e, na
esteira desta, a Filosofia Bantú-Ruandesa Do Ser, de autoria do
missionário africano Alexis Kagame8 datada de 1955, classificada
por alguns autores africanos, como Kwasi Wiredu (1931), Fabien
Eboussi Boulaga (1934), Marcien Towa (1935), como “Etnofiloso-
fia” 9 e, também, criticada pelo autor, cuja vida e obra estão sendo
apreciadas neste trabalho, Paulin Jidenu Hountondji.
Daqui por diante, passaremos a tratar do objeto principal deste
capítulo, que é contextualizar e escrever sobre o pensamento do
filósofo natural da Costa do Marfim, Paulin Hountondji, pontu-
ando aspectos biográficos e bibliográficos. É definido por alguns
pensadores como o “decano” da filosofia moderna acadêmica no
continente africano, principalmente pelos intelectuais africanos
radicados em países americanos e europeus, que usam sua pro-
dução intelectual nos trabalhos acadêmicos, como referencial
indispensável, eu diria não só para esses, mas para qualquer um
que deseje conhecer a produção dos filósofos africanos, presentes
na África do século XX ao momento atual10.
7 En primer término la Filosofia bantú del padre Placide Temples, que apareció e n 194 5
y 1949 en traducción francesa, en 1946 en el flamenco original y en 1956 en alemán” (JAHN,
1963, p. 134). JAHN, Janheinz. MUTUM: Las culturas neoafricanas. Trad. Jasmin Reuter. México
– Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica, 1963.
8 [...] La filosofia bantú-ruandesa del ser. Alexis Kagame, él mismo un bamtú, se graduó como doctor
en filosofia de la Universidad Gregoriana en Roma con esta [...] disertación sobre la filosofia
del ser de los bantúes en Ruanda, publicada por la Real Academia de Ciencias en Bruselas. El
estúdio de la Filosofia ocidental, lo había inspirado a analisar – y definir cada concepto compa-
rándolo com los conceptos occidentales – el sistema de pensamento que sus viejos sacerdotes de
iniciación – “nos vieux initiateurs” – le habían enseñado (JAHN, 1963, p. 135). JAHN, Janheinz.
MUTUM: Las culturas neoafricanas. Trad. Jasmin Reuter. México – Buenos Aires: Fondo de
Cultura Económica, 1963.
9 A essa filosofia tradicional africana transcendental reagiram alguns filósofos, além de Hountondji,
como os camaroneses Fabien Eboussi Boulaga (1934) e Marcien Towa (1935), e o ganês Kwasi
Wiredu (1931), que logo identificaram no que denominaram de etnofilosofia uma tentativa equi-
vocada de associar tradição coletiva, ontologia e “visão de mundo” ao pensamento filosófico tout
court, erudito, individual, como capacidade de crítica e autocritica do conhecimento (ROSEMAN,
1998, p. 295-297; DIAKITIÉ, 2007; BOULANGA, 2004, p. 15-41) (MACEDO, 2016, P. 284).
MACEDO, José Rivair. Intelectuais Africanos e Estudos Pós-Coloniais: considerações Sobre
Paulin Hountondji, Valentin Mudimbe e Achille Mbembe. OPSIS (On-line), Catalão – GO, v.
16, n. 2, p. 280-298, jul./dez. 2016.
10 SEILER, Frank-Ulrich. A comunicação e o saber filosófico contemporâneo africanos: Estudo
exploratório de uma epistemologia comunicacional africanas. Dissertação de Mestrado em Ciências

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IntelectuaIs das áfrIcas

ALGUNS ASPECTOS BIOGRÁFICOS: ESCOLAR, ACADÊMICO E


POLÍTICO

O filósofo Paulin Hountondji nasceu na Costa do Marfim, em


Abdijan, durante a Segunda Guerra Mundial, em 1942. Passado al-
gum tempo, mudou-se para Porto Novo no Daomé, onde concluiu
os primeiros anos de estudo em 1960. Essas duas regiões da África
sofreram influências da administração colonial francesa e, hoje em
dia, vivenciam os efeitos econômico, militar e científico da França.
Após esta primeira fase de sua formação escolar, se mudou
para Paris, já centro colonial em declínio, assistindo, na condição
de integrante da associação de estudantes africanos, a movimen-
tação política que promoveu a derrocada do colonialismo francês
mundo afora. Nesse período, se matriculou no curso de filosofia da
mundialmente conhecida École Normale Supérieure, concluindo os
estudos em 1970, com a defesa da Tese de Doutoramento sobre o
considerado fundador da fenomenologia Edmund Husserl.
Ao concluir sua formação, se articulou com o mudo acadêmico
e ministrou aulas em universidades francesas, norte-americanas e
africanas, a exemplo de Besançon na França; Université Catholique
de Lovanium; em Kinshasa e Lubumbashi, ambas no então Zaire,
na época em que vigorava a ditadura de Mobutu, influenciada pela
ideologia da Authenticité, “variante propagandística da Negritude,
de Léopold Senghor”11.
Durante o mandato de Mobutu, Paulin Hountondji seguiu seu
percurso em silêncio, apenas observando como atua o nacionalismo
dito republicano em uma ditadura ao modo africano. Mas, mesmo
nessas circunstâncias, assumiu a condição de filósofo, fazendo crí-
tica ao que ele e outros pensadores intitularam de “Etnofilosofia”12.
da Educação. Apresentada à Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade
de Lisboa, 2009.
11 Idem.
12 A cumplicidade ou não, da etnofilosofia africana com a hierarquia do saber pretendido pelo
colonialismo é o que explica a tomada de posição de Hountondji. Para ele, haveria que se distin-
guir entre a filosofia propriamente dita, sem aspas, um conjunto de textos e discursos explícitos,
com intenção filosófica; a “filosofia africana” em sentido impróprio, com aspas, que se reduziria

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IntelectuaIs das áfrIcas

Além disso, atuou na tentativa de influenciar o desmonte e a


superação dos regimes nacionalistas e opressores no continente
africano, tentando, sem o sucesso esperado, atribuir à filosofia,
assim como fizera Karl Marx (1845) na Europa, o extraordinário
papel de fator de transformações e mudanças13.
Na sua jornada em movimento, no ano 1972, no Daomé, as-
sumiu a função de professor de filosofia e, em 1974, na cidade de
Cotonou, ocupou cargo na Faculdade de Letras da Universidade
Nacional do Benim. Na condição de ativista político, se opôs ao
regime militarista em vigor, cujos defensores se proclamavam
revolucionários14.
A partir de mudanças no governo que abandonou o viés mar-
xista leninista e, sob a direção do Alto Conselho da República do
Benim, em março de 1990 Hountondji foi nomeado Ministro da
Educação, atividade que continuou desenvolvendo no governo
do Presidente Nicephore D. Soglo, empossado no mês de abril de
1991. Permaneceu nesse posto por dois anos, 1990 e 1991, depois
foi deslocado para a função de Ministro da Cultura e Comunicação,
cargo no qual atuou em 1992 e 199315. Em 1994, foi escolhido
conselheiro do Presidente Soglo e, depois, se afastou de cargos
de confiança em governos e se dedicou às atividades acadêmicas.
O conjunto da sua obra sofreu nítida influência da filosofia mo-
derna ocidental, do Iluminismo, mais especificamente dos pensado-
a uma hipotética visão de mundo de um dado povo; e a etnofilosofia, que se fundamenta, no
todo ou em parte, na hipótese de tal visão de mundo, restringindo-se ao ensaio de reconstituição
de uma suposta “filosofia” coletiva. A crítica dirigia-se à potencial capacidade de especialização e
petrificação dos conhecimentos africanos, enclausurados no anonimato da tradição, do mito e
da oralidade (MACEDO, 2016, p. 284). MACEDO, José Rivair. Intelectuais Africanos e Estudos
Pós-Coloniais: considerações Sobre Paulin Hountondji, Valentin Mudimbe e Achille Mbembe.
OPSIS (On-line), Catalão – GO, v. 16, n. 2, p. 280-298, jul./dez. 2016.
13 11ª tese de Marx sobre Feuerbach, escrita em 1845: “Os filósofos têm apenas interpretado o
mundo de maneiras diferentes; a questão, porém, é transformá-lo. (ENGELS, 1888, pp. 69-72).
Disponível em:https://w.w.w.marxists.org/portugues/marx/1845/tesfeuer.htm - acesso em
20/03/2016 às 8:50hs.
14 Neste período, tempos da “guerra fria”, se dizer revolucionário significava ser marxista militante
em defesa do “Comunismo”, através, em muitos casos, da luta armada (comentário nosso).
15 SEILER, Frank-Ulrich. A comunicação e o saber filosófico contemporâneo africanos: Estudo
exploratório de uma epistemologia comunicacional africanas. Dissertação de Mestrado em Ciências
da Educação. Apresentada à Faculdade de Psicologia e de Ciências da Educação da Universidade
de Lisboa, 2009.

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IntelectuaIs das áfrIcas

res marxistas Louis Althusser e Jacques Derrida. Como intelectual


beninense, voltou-se mais para a filosofia política; porém, cioso
da importância dos elementos culturais e históricos do continente
africano, tornou-se postulante do pensamento endógeno, crítico
da filosofia como visão de mundo em países da África e adotou
paradigmas da Fenomenologia, provavelmente sob a influência de
Edmund Husserl. Paulin Hountondji, também, pode ser qualificado
como um hermeneuta da visão do mundo autóctone16.
O período em que nasceu e viveu Hountondji foi, especialmen-
te, parte do século XX, tão bem e, apropriadamente, avaliado por
Eric Hobsbawm (1995) como o século das duas grandes Guerras
Mundiais, da “globalização” da economia e suas consequências, o
que levou David C. Korten a escrever Quando as Corporações Regem
o Mundo (1996)17. O século do colonialismo em África, das mais
significativas ideologias e partidos políticos. Enfim, o século dos
campos de concentração, do holocausto, na expressão de Tzvetan
Todorov (2002)18.
A produção dos autores citados parece-nos indispensável para
que reflitamos sobre a condição do homem como ser no mundo,
sujeito, entre muitas outras situações, aos limites impostos pela
16 HOUNTONDJI, Paulin (Org). O antigo e o moderno: a produção do saber na África contemporânea.
Mangaulde: Luanda: Edições Pedago; Edições Mulembo, 2012, p. 13-29.
17 HOBSBAWM, Eric. A era dos extremos: breve século XX 1914-1991. 2ª Ed. Trad. Marcos Santarrita
– São Paulo: Companhia das Letras, 1995. KORTEN, C. David. Quando as corporações regem o
mundo. Trad. Anna Terzi Giova – São Paulo: Futura, 1996.
18 O século XX terá sido o das grandes confrontações, dos combates titânicos: entre democracia e
totalitarismo, entre nazismo e comunismo. Eu gostaria, contudo, que também fossem lembrados
alguns indivíduos que souberam permanecer humanos no meio da tormenta. [...] uma argelina,
apelidada Lila. [...], ela participa das redes militares da FLN. Depois de cair nas mãos do exército
francês [...], ela será torturada ininterruptamente durante três meses, até dezembro de 1957.
Será arrancada aos torturadores por um médico militar que a examina certa noite e exclama:
“Mas, minha menina, você foi torturada”! [...]. Graças a ele, Lila será transferida para a prisão,
na Argélia e depois na França. Deixará a prisão depois de outra intervenção, a de Germaine
Tillion, que trabalha então para o ministério da Educação Nacional, no qual está encarregado
de uma missão nas prisões, o que lhe permite obter liberdade de muitos detidos. Lila receberá
a determinação de fixar residência na Córsega, de onde fugirá algum tempo depois. Mais que a
imagem dos franceses [...], mais que a dos argelinos que combateram pela libertação nacional,
eu gostaria que as pessoas levassem consigo, para o século que agora se inicia, a imagem desses
dois seres simples e bons, o doutor Richaud [...] e Germaine Tillion. Dois seres para quem um
indivíduo não se reduz a uma categoria – um inimigo, uma prisioneira -, mas sim permanece
uma pessoa, infinitamente frágil, infinitamente preciosa (TODOROV, 2002, p. p. 366-367).
TODOROV, Tzvetan. Memória do mal, tentação do bem. Trad. Joana Angélica D’Ávila Melo. São
Paulo: Arx, 2002.

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IntelectuaIs das áfrIcas

Natureza. E mesmo após todo o “desenvolvimento” científico


e tecnológico que o faz sentir, por vezes, ser da arrogância, da
supremacia, da insensatez, podendo até destruir o planeta Terra,
na ilusão de reconstruí-lo artificialmente, é incapaz por si de en-
tender o mundo como belo, encantado e mágico, na sua indelével
condição de dádiva19.
A situação supra evidencia a distinção dos conteúdos e a
importância da ação dos intelectuais na elaboração dos conheci-
mentos e suas compreensões, o que, como vimos, almejou, na sua
trajetória intelectual e militância, Houtondji em relação à África.
Mas, a despeito da produção dos conhecimentos e suas aplicações,
os problemas se manifestam mesmo é quando transformam os
conhecimentos em artefatos, mercadorias, equipamentos, e os
líderes do mundo sofisticam ou, altruisticamente, os utilizam, os
vendem sob o pretexto da preservação do ecossistema, da salvação
e da redenção da humanidade, ocultando, muitas vezes ideológica
e intencionalmente, os seus efeitos20.

ALGUMAS OBRAS E PRINCIPAIS PENSAMENTOS DE PAULIN


HOUNTONDJI

As muitas obras produzidas por esse intelectual, que somam


mais de vinte, ao longo de, aproximadamente, cinquenta anos,
revelam a sua intensa e diversificada atividade acadêmica, assim
como os temas por ele explorados, como pesquisador engajado,

19 Mas é importante ter claro que a proposta de Durkheim ultrapassa o campo da antropologia.
O que está em causa é o próprio entendimento humano, a faculdade de classificar, de induzir,
de deduzir, de associar. Durkheim se recusa a aceitar que essas seriam capacidades imanentes
ao indivíduo e se contrapõe às teses do a priori Kantiano, que considerava o espaço e o tempo
como categorias universais do pensamento. O estudo dos povos primitivos leva-o para outra
direção e lhe permite demonstrar que essas categorias são produtos da sociedade, articulando-se
no interior de “quadros sociais do conhecimento”. Isto significa que os universos cognitivos
devem ser apreendidos na sua articulação com os grupos que os exprimem, sejam eles os povos
primitivos, os proletários, ou a classe burguesa. As representações de tempo, espaço, morte etc.
ganham, dessa forma, solo sociológico e historicidade (ORTIZ apud DURKHEIM, 1989, p. 19).
DURKHEIM, Émile. As formas elementares da vida religiosa: o sistema totêmico da Austrália. Trad.
Joaquim Pereira Neto. São Paulo: Ed. Paulinas, 1989.
20 AGUIAR, Itamar Pereira de. O encanto do diamante: sublimidade, perversão e, às vezes, perver-
sidade In: Revista Paradigma. Venezuela: Vol. XXXVI, Nº 1, Junho de 2015, p. 56–71.

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IntelectuaIs das áfrIcas

política, cultural e filosoficamente, nas questões essenciais e exis-


tenciais dos africanos na contemporaneidade, especialmente dos
povos da Costa do Marfim, onde nasceram seus ancestrais e ele
escolheu para dedicar a sua energia, os seus esforços como cidadão
e profissional atuante na sociedade.
Na sua primeira publicação após a tese de doutorado, Remar-
ques sur la philosophie africaine contemporaine, datada de 1970, já
delineia os temas centrais das suas preocupações, na tentativa de
justificar e demonstrar, com clareza e distinção, o que entende por
“filosofia africana” e a sua utilidade prática efetiva para a melhoria
das condições de vida na África21:

Eu designei por esta palavra certa prática da filosofia que


se caracteriza por descrever as visões de mundo coleti-
vas, prática que, a meu ver, transmite a vocação primeira
da filosofia, que é não de descrever, mas de demonstrar;
não de reconstruir de maneira conjectural o sistema de
pensar de tal ou qual povo, desta ou daquela sociedade,
de tal ou qual grupo de pessoas, mas de apreender sua
própria posição, de maneira responsável, sobre as suas
graves questões forçando a justificar de modo racional
suas tomadas de posição22.

Ainda nesta mesma obra, critica a posição de diversos outros


intelectuais africanos que, em artigos e teses, destacam a impor-
tância e as contribuições das obras do europeu Placide Tempels e
do africano Paul Kagame sobre a filosofia bantu e a filosofia bantu
ruandesa do ser, estabelecendo comparações entre a “filosofia
africana” e a europeia, afirmando que tais posições fazem parte da
mesma estratégia dos colonizadores em desqualificar, considerá-los
21 Je designais par ce mot une certaine pratique de la philosophie qui se donnait pour tâche de
décrire dês visions du monde collectives, pratique qui, à mês yeux, trahissait la vocation première
de la philosophie qui est non de décrire, mais de démontrer; non de recostituer de manière con-
jecturale le systeme de pensée de tel ou tel peuple, de telle ou telle société, de tel ou tel grupe de
personnes, mais de prendere soi-même position, de manière responsable, sur lês questions posées
em acceptant la contraint de justifier de manère ratinnelle ces prises de position (HOUNTONDJI,
1970, p. 1). HOUNTONDJI, Paulin. “Ethnophilisophie”: le mot et la chose. Artigo apresentado na
Université Nationale du Bénin. Cotonou em 1970.
22 Idem, p. 1, nossa tradução.

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IntelectuaIs das áfrIcas

incapazes de refletir por si e sobre si, de produzir pensamentos


lógicos. Em últimas palavras, de filosofar23.
Mas, o livro que, efetivamente, lhe proporcionou reconhe-
cimento e prestígio intelectual se intitula: Sur la “Philosophie afri-
caine” critique de l’ethnophilosophie, editado por François Maspero
1, Place Paul-Painlevé, Paris V, 1977, no qual, logo nas primeiras
palavras do primeiro subtítulo, apresenta o seu conceito de fi-
losofia africana: “Eu chamo de filosofia africana um conjunto de
textos: precisamente, os textos escritos por autores africanos e
qualificados por eles mesmos como filosóficos”24. Após escrever o
ensaio biográfico sobre o primeiro africano subsaariano conheci-
do a frequentar uma universidade europeia, Anton Wilhelm Amo,
e considerando o conteúdo da obra desse professor de filosofia
das universidades Halle e Wittemberg na Inglaterra, ele pergunta:
“Em que medida são africanos os chamados ‘Estudos Africanos’?”
E ele mesmo responde alegando que os estudos feitos sobre a
realidade no continente, até então, são extravertidos, voltados
para fora, e convoca os pesquisadores conterrâneos a produzi-
rem conhecimentos sobre e para os africanos que ali nasceram,
ou que ali vivem25. Diante da constatação de que os estudos em
23 Macien Towa se refere, principalmente, a outro camaronês, a ponto [...] de se situar favorável a
um debate nacional, por não participar de competição entre colegas do mesmo país. Assim, a
filosofia bantú de Temples não lhe parece concernente a certa critica. Ela, por certo, como toda
a produção dos africanistas ocidentais sobre o sistema de pensamento africano. Longe de ser ela
mesma certa produção, se volta ao contrário [...] por sua contribuição própria ao eurocentrismo,
comparável a de Pierre Masson-Oursel na sua obra sobre a filosofia no Oriente. [...]. Towa apela
“a filosofia africana na esteira da negritude”. “São partes do mesmo golpe, pelo essencial, os
trabalhos de autores africanos que dão continuidade aos produzidos por Temples e Kagame, e
mais ainda no rastro da ideologia da negritude” [...], se são lançadas impetuosamente “na busca
de uma [...] filosofia original e autenticamente africana’, diferente de toda filosofia europeia”. A
crítica é [...] a um artigo do Senegales Alassane N’daw, [...], a uma tese sustentada por Lille em
1967 e por um compatriota de Towa, Basile-Juéat Fouda (Temples, 1945; Fouda, 1967; Masson-
Oursel, 1969; Towa 1971) (HOUNTONDJI, 1970, p. 1, nossa tradução). “Ethnophilisophie”: le
mot et la chose. Artigo apresentado na Université Nationale du Bénin. Cotonou em 1970.
24 J’appelle philosophie africaine um ensemble de textes: l’ensemble, précisément, des textes écrits
par des Africains et qualifiés par leurs auteurs eux-mêmes de “philosophiques” (HOUNTONDJI,
1977, p. 11).
25 O estudo da África, tal como desenvolvido até hoje por uma longa tradição intelectual, faz parte
de um projecto abrangente de acumulação do conhecimento iniciado e controlado pelo Ocidente.
[...] as sociedades africanas devem elas mesmas apropriar-se activa, lúcida e responsavelmente do
conhecimento sobre elas capitalizado durante séculos. [...] o desenvolvimento em África de uma
tradição autônoma, confiante em si própria, de investigação e conhecimento que responda a
problemas e questões suscitados [...] por africanos. Convida os investigadores africanos da área

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IntelectuaIs das áfrIcas

África foram iniciados e controlados pelo Ocidente, propõe e


defende que os africanos confiantes em si mesmos, de modo
autônomo, se ocupem com as investigações e os conhecimentos
que respondam aos problemas e às questões de interesse direta
ou indiretamente deles mesmos.
As pretensões expressas pelo autor, ao propor que tais estu-
dos sejam realizados por pesquisadores nascidos (e a partir da)
na África e usados por africanos em seus próprios benefícios,
no nosso entendimento se justificam como proposição política,
uma vez que tais conhecimentos se fundam em gnose, ou em
episteme originárias de outras plagas, produzidas por intelec-
tuais estrangeiros, aplicadas a objetos e fenômenos próprios às
sociedades tradicionais e atuais de países africanos, ou ainda
por autores nativos, cuja formação acadêmica fora realizada em
universidades estrangeiras 26.
A partir de evidências comuns a todos os lugares onde se
organizaram academias fundadas nos paradigmas políticos, ges-
tados e implantados com finalidade hegemônica, o próprio autor
se questiona e analisa as dimensões objetivas e subjetivas que
permeiam a questão, ao ponderar que a antropologia ou a socio-

dos Estudos Africanos e das demais disciplinas a compreender que, até o momento, têm levado
a cabo um tipo de pesquisa maciçamente extravertido, isto é, orientado para fora, destinado em
primeiro plano a ir ao encontro das necessidades teóricas e práticas das sociedades do Norte.
Propõe nova orientação e ambições para a investigação feita por africanos em África (HOUN-
TONDJI, 2008, 149 - 160, p. 149, nossa tradução). HOUNTONDJI, Paulin. Conhecimento de
África, conhecimento de Africanos: Duas perspectivas sobre os Estudos Africanos. Revista Critica
de Ciências Sociais, 80, março de 2008: 149-160.
26 Os chamados estudos africanos não só se baseiam em metodologias e teorias que se consolidam
em vários campos – como a história geral, a sociologia, a lingüística, a economia, a ciência política,
etc. – muito antes de terem sido aplicadas a África enquanto novo campo de estudo, como é,
de resto, comum, em instituições acadêmicas e de investigação, encontrar esta matéria associada
a outras disciplinas, como sejam a matemática, a física, a informática, a biologia, a química a
geologia, a gestão e administração, a filosofia ou a engenharia. Em breves palavras, estas discipli-
nas são objeto de ensino e investigação para além dos próprios estudos africanos e das grandes
disciplinas que lhes deram origem. Este quadro institucional não é exclusivo de Bayreuth. De
fato, o mesmo se passa em todo lado, tornando clara a interligação profunda entre as diversas
áreas de investigação. Como é sabido é essa interligação que está na raiz da própria idéia de
universidade (Universita) tal como foi tematizada, entre outros, por um homem que não foi um
mero pensador, mas sim o verdadeiro fundador da Wissenschaftspolitik da Alemanha do século
XIX: Wilhelm Von Humboldt (HOUNTONDJI, 2008: 149-160, pp. 150-151). HOUNTONDJI,
Paulin. Conhecimento de África, conhecimento de Africanos: Duas perspectivas sobre os Estudos
Africanos. Revista Critica de Ciências Sociais, 80, março de 2008: 149-160.

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IntelectuaIs das áfrIcas

logia, produzindo conhecimentos objetivos sobre os conteúdos


específicos de cada ciência encontrados na África, não são iguais
a uma tradição antropológica ou sociológica desenvolvida por afri-
canos na África, sobre cultura e relações sociais autóctones, onde,
provavelmente, outras leituras e significados emergiriam dando
conta da subjetividade, dos modos de ser, de viver, de sentir e de
fazer, específicos de povos africanos27.
As ponderações do autor, na busca por um fazer acadêmico
propriamente africano em proveito deles mesmos, são pertinentes
e louváveis, porém, no que diz respeito aos conhecimentos cientí-
ficos, merecem observações na sua abordagem e distinção no que
se refere às ciências naturais, abstratas, e às ciências humanas e
sociais.
As ciências naturais elegem objetos de estudos e selecionam
a metodologia adequada, visando alcançar um fim, de tal modo
que suas conclusões são sempre universais relativas ao objeto
pesquisado e naquelas circunstâncias. Porém, parece convertê-las
em universais absoluto quando seus conhecimentos são utilizados
e aplicados na produção de mercadoria para atender aos inte-
resses do sistema capitalista. Além disso, os fenômenos naturais
sofrem mudanças de acordo com o clima, altitude, composição
físico-química do solo, enfim de acordo com um ecossistema e
são utilizados por sociedades que os transformam em alimentos,
remédios, ou outros produtos úteis de acordo com sua cultura.
Assim, os conhecimentos e práticas podem ser produzidos, por
exemplo, com o título de biologia africana, porque produzidos
por pesquisadores africanos e sobre fenômenos próprios ao con-
27 Todavia, pelo menos outra questão se coloca: quão africanos são os chamados estudos africanos?
Por exemplo, por história africana entende-se normalmente o discurso histórico sobre África, e
não necessariamente um discurso histórico proveniente de África ou produzido por africanos.
Em termos gramaticais, referimo-nos à história de África: historia Africae em Latim, em que
Africae, genitivo de África, seria objectivo, e não um genitivo subjetivo. Na mesma ordem de
idéias, a sociologia ou a antropologia africana significam a sociologia ou antropologia de África
enquanto genitivo objectivo, ou seja, um discurso sociológico ou antropológico sobre África e
não uma tradição sociológica ou antropológica desenvolvida por africanos na África [...] (HOUN-
TONDJI, 2008: 149-160, pp. 151, nossa tradução). HOUNTONDJI, Paulin. Conhecimento de
África, conhecimento de Africanos: Duas perspectivas sobre os Estudos Africanos. Revista Critica
de Ciências Sociais, 80, março de 2008: 149-160.

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IntelectuaIs das áfrIcas

tinente africano, ou a uma região deste e, portanto, em relação


aos demais conhecimentos produzidos com essa denominação28.
Já no que diz respeito às ciências humanas e sociais, que po-
dem ser classificadas como interpretativas, devem necessariamente
ser construídas a partir dos estudos locais, para apreender as espe-
cificidades, de preferência por autores de cada localidade, porque
mais próximos ou diretamente envolvidos nas teias organizadas por
suas culturas, com sinais, símbolos e significados historicamente
por eles vivenciados e, em alguns casos, inventados29.
A organização do currículo em uma universidade, concordando
com Hountondji, deve sempre levar em conta a interligação dos
conteúdos das diversas disciplinas, a interdisciplinaridade, porém
não se pode pretender que a somatória dos conteúdos de cada
uma delas se constitua em uma totalidade, uma visão filosófica
do mundo, um conjunto, a não ser como ideologia, a exemplo do
Positivismo, ou cientificismo, que abriga contradições internas e
não resiste a uma apreciação crítica racional sistêmica e aberta
ao devir, para o futuro e, assim, exigindo uma dimensão mais
que científica, filosófica, sob a égide da transdisciplinaridade. A
observação dessas assertivas conduz-nos a definir a filosofia como
máquina de mover ideologias.
Quanto ao conceito de filosofia, o próprio autor declara:
“Ao longo do meu próprio percurso intelectual, fui sensibilizado
28 A concepção [...] da teoria da ciência e da pesquisa cientifica consiste na admissão da logicidade
do processo natural enquanto qualidade deste em si mesmo, e não como qualidade pertencente
originariamente ao plano da consciência, ao espírito, vindo a ser projetada na realidade exterior
pela exigência de conhecê-la racionalmente. A diferença entre os dois modos de ver é radical, e
decide de todas as interpretações a que se volta o cientista, ainda quanto disto não tenha clara
percepção. Na segunda destas formulações, a de cunho idealista e metafísico, o espírito, seja o
individual seja o transcendental, caso se admita esta figura, apresenta-se como o reino natural
da logicidade, que se exprime na razão, atributo imaterial, distintivo e imutável do homem (PIN-
TO, 1969, p.159). PINTO, Álvaro Vieira. Ciência e Existência; problemas filosóficos da pesquisa
científica. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1969.
29 O conceito de cultura que eu defendo [...], é essencialmente semiótico. Acreditando, como Max
Weber, que o homem é um animal amarrado a teias de significados que ele mesmo teceu, assumo
a cultura como sendo essas teias e a sua análise; portanto, não como uma ciência experimental
em busca de leis, mas como uma ciência interpretativa, à procura do significado. É justamente
uma explicação que eu procuro, ao construir expressões sociais enigmáticas na sua superfície
(GEERTZ, 1989, p.15). GEERTZ, Clifford. A interpretação das culturas. Rio de Janeiro: LCT-Livros
Técnicos e Científicos, 1989.

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IntelectuaIs das áfrIcas

para este problema e comecei a percepcioná-lo como problema


ao ler livros sobre ‘filosofia africana’ ou sistemas de pensamento
africanos”30. E, continua o texto falando que os livros por ele lidos
tomavam como ponto de partida que “os africanos não tinham
consciência da sua própria filosofia e que apenas os analistas oci-
dentais, que os observavam a partir do exterior, poderiam elaborar
um quadro sistemático da sua sabedoria”31. Em suas considerações,
falando sobre o padre Tempels, formulador de tal proposição,
Hountondji transcreve o seguinte trecho da obra desse estudioso:

Não pretendemos que os Bantus sejam capazes de nos


presentear com um tratado filosófico acabado, já com todo
o vocabulário próprio. É graça à nossa própria percepção
intelectual que ele irá sendo desenvolvido de uma forma sis-
temática. Cabe-nos fornecer-lhes um quadro preciso da sua
percepção das entidades, de forma que se reconheçam em
nossas palavras e concordem, dizendo: “Vos percebestes-
nos, agora conhecei-nos completamente, “conheceis” da
mesma forma que nós “conhecemos”. [...]. Não esperemos
que o primeiro negro com quem cruzarmos na rua (sobre-
tudo se for jovem) nos dê um quadro sistemático da sua
ontologia. Não obstante, esta exista, penetra e enforma
todo o pensamento do primitivo, domina-lhe o comporta-
mento. Recorrendo aos métodos de análise e síntese das
nossas disciplinas intelectuais, podemos e, portanto, temos
de auxiliar o “primitivo” a procurar, classificar e sistematizar
os elementos do seu sistema ontológico32.

Ao analisar o conteúdo dessa citação atribuída ao missionário


belga, Hountondji emite o seu juízo sobre as considerações por ele
ditas erradas, eu diria imprecisas, incorretas e tendenciosas, vez
que são fruto de pré-noções, fonte de discriminação e preconceitos
comuns a pensamentos e ideologia eurocêntrica, que desqualificam

30 HOUNTONDJI, 2008: 149 - 160, pp. 151. HOUNTONDJI, Paulin. Conhecimento de África,
conhecimento de Africanos: Duas perspectivas sobre os Estudos Africanos. Revista Critica de
Ciências Sociais, 80, março de 2008: 149-160.
31 Idem, pp. 151.
32 Idem.

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IntelectuaIs das áfrIcas

o outro, na tentativa de subordinar, principalmente, os que por eles


são considerados “primitivos”33.
Após a publicação da obra African Philosophy, Myth and Reality,
editada em 1996, na qual destaca o panorama ideológico e inte-
lectual de então, e apresentar seu conceito de filosofia declarando
a “filosofia africana um conjunto de textos”34, o autor, após mani-
festar várias considerações sobre o tema, conclui dizendo:

Há que se tomar medidas adequadas no sentido de possibi-


litar à África proceder a uma apropriação lúcida e responsá-
vel do conhecimento disponível, bem como das discussões
e interpretações desenvolvidas noutras paragens. Uma
apropriação que deve vir como reaproximação crítica dos
próprios conhecimentos endógenos, mais do que isso, com
uma apropriação crítica do próprio processo de produção
e capitalização do conhecimento35.

Ao anunciar o seu conceito de filosofia africana, o autor faz


opção consciente e consentânea por sua escola filosófica de ori-
gem, por um conceito restritivo de filosofia, como exercício de
33 O que está errado nesta considerada pretensa inconsistência dos nativos em relação à sua própria
filosofia é esta ser a disciplina mais autoconsciente, pelo menos numa certa tradição filosófica,
aquela em que fui educado: a filosofia da consciência, tal como foi desenvolvida desde Platão
até Husserl, passando por Descartes e Kant, figuras de referência nesta tradição. O que mais
me incomodava era um número crescente de intelectuais africanos a seguir nessa direção. Os
acadêmicos africanos que se dedicavam à filosofia, dentro ou fora das universidades ocidentais,
passavam a maior parte do tempo a redigir teses [...], sobre tópicos como a filosofia do ser entre
os povos de Ruanda, o conceito de tempo entre os povos da África Oriental, [...], a concepção da
vida entre os Fon do Daomé, [...]. Contudo, não podia aceitar que o dever dos filósofos africanos
fosse descrever ou reconstituir a mundivisão dos seus antepassados ou os pressupostos colectivos
das suas comunidades. Por isso, defendi que aquilo que a maioria destes acadêmicos estava a
produzir não era filosofia, mas a etnofilosofia: estavam a escrever uma etnologia que visava estu-
dar os sistemas de pensamento das sociedades “primitivas” como habitualmente estudadas pela
etnologia [...]. 3. Ao mesmo tempo chamei a atenção para a existência destas monografias. Para
mim, elas integravam a filosofia africana num sentido radicalmente novo. A meu ver, a filosofia
africana não devia ser concebida como uma mundivisão implícita partilhada inconscientemente
por todos os africanos. Filosofia africana era apenas uma filosofia feita por africanos. Existia
uma contradição na filosofia ocidental, quando esta se considerava a mais autoconsciente de
todas as disciplinas intelectuais, mas presumia que algumas filosofias não-ocidentais podiam ser
desprovidas dessa consciência de si mesma (HOUNTONDJI, 2008: 149 - 160, pp. 152 – 153,
nossa tradução). HOUNTONDJI, Paulin. Conhecimento de África, conhecimento de Africanos:
Duas perspectivas sobre os Estudos Africanos. Revista Critica de Ciências Sociais, 80, março de
2008: 149-160.
34 Idem, p. 153.
35 Idem, p. 158. Nossa tradução

109
IntelectuaIs das áfrIcas

análise36. Critica através da razão, lógica instrumental, o que tem


sido a filosofia desde a Grécia Antiga, quando Pitágoras pronunciou
esta palavra pela primeira vez na história, ao que se tem notícia.
“Narra-se que o termo foi inventado por Pitágoras, que certa vez
ouvindo alguém chamá-lo de sábio e considerando este nome
muito elevado para si mesmo pediu que o chamasse filósofo, isto
é, amigo da sabedoria”37.
Desde então, a filosofia passou a ser entendida como busca
da verdade, do conhecimento verdadeiro, um conjunto de saberes
com esfera de competência própria muito bem definida, “Visão de
mundo radical, sistemática e global”38. Além disso, ela se constituiu
das produções individuais de filósofos, a exemplo de Sócrates,
Platão, Aristóteles, Descartes, Hume, Kant, Hegel e muitos outros
e, também, como uma criação grega que compõe uma história cujo
fazer se desencadeia desde lá até os dias atuais, como história da
filosofia ocidental.
Ainda, se é considerada como filosofia a chinesa, a indiana,
a europeia, por que não, a africana? Mas, todas as filosofias de
povos para serem definidas como tal se levou em consideração a
esfera de sua competência própria, as origens e a cultura de cada
um desses povos; através da ontologia, metafísica, ética, estética e,
também, na logicidade de um sistema que envolve religião, magia
36 [...]. Essas tendências analíticas da filosofia contemporânea são mais ou menos hostis à meta-
física tradicional e tendem a dar à pesquisa filosófica um método rigoroso para a verificação e
o controle dos seus resultados. Ao mesmo temo tôdas mais ou menos se comprazem de certos
enrijecimentos metafísicos; falando por ex., de “dados últimos”, como faz Bergson, “de formas
ou essências necessárias” como faz Husserl, de “estruturas necessárias”, como faz Heidegger, de
“proposições atômicas” ou de “fatos atômicos” como faz o empirismo logico etc. Pode-se dizer,
contudo, que a tendência das filosofias analíticas e da diretriz analítica das ciências consiste na
progressiva eliminação dos pontos fixos, isto é, dos elementos ou estruturas que, pela sua substan-
cialidade ou necessidade, bloquei o curso ulterior da A. e o imobilizei em resultados assumidos
como definitivos e, portanto, subtraídos a todo controle ulterior. Essa tendência visa portanto
determinar e utilizar técnicas de controle que sejam susceptíveis de correção ou de ratificação
(ABBAGNANO, 1962, P.50). ABBAGNANO, Nicola. Dicionário de Filosofia. 2ª d. Trad. Alfredo
Bosi – São Paulo: Mestre Jou, 1982.
37 MONDIN, Batista. Curso da filosofia. 2ª ed. Trad. Benôni Lemos. São Paulo: Edições Paulinas,
1981, p. 7.
38 “Ato de retomar, reconsiderar os dados disponíveis, vasculhar uma busca constante de signifi-
cado” (SAVIANI, 1980, p. 23). Quando esta reflexão se torna, acrescenta Saviani (ib), radical,
religiosa e global ou de conjunto nasce a filosofia. SAVIANI, Dermeval. Educação do senso comum
a consciência. São Paulo: Cortez, 1980.

110
IntelectuaIs das áfrIcas

e encantamento e outros aspectos, semelhante ao que evidencia


Janheinz Jahn no capítulo “IV NTU La Filosofia Africana”, na obra
“MUNTU: Las culturas neoafricanas” de 196339.

Ao dizer que a tradicional visão de mundo africana abriga


uma extraordinária harmonia, o certo é que, a partir da
palavra “africana”, cada um dos termos desta frase é por
sua vez verdadeiro e falso. Em primeiro lugar, a visão de
mudo tradicional continua viva em nossos dias; em segun-
do lugar, não se trata de uma visão de mudo em sentido
europeu, pois não é possível separar dela o percebido do
experimentado e do vivido; em terceiro lugar, só é possível
destacá-la como extraordinária desde o ponto de vista
europeu, me parece que, para o homem africano, é uma
visão inteiramente normal; em quarto lugar, a expressão
“harmonia” é insuficiente, e a que nos permite reconhecer
quais são as partes que se harmonizam e em que unidade.
E se dissermos; “todo”, esta palavra expressa algo menos
que a anterior. “Todo” não é possível representar-se, nem
dizer com poucas palavras o que se quer significar com
esse termo (tradução nossa).

Ao elaborar o conceito de filosofia, Hountondji fez críticas ao


sistema de filosofias tradicionais africanas, apresentado por pen-
sadores estrangeiros, firmando posição de que a filosofia africana
deve ser escrita, trabalhada, pensada por intelectuais acadêmicos
africanos. Também criticou pensadores contemporâneos, a exemplo
de Léopold Sédar Senghor, Alexis Kagamé e outros, porém suas

39 Al decir que la tradicional imagen del mundo african tiene uma extraordinária armonía, lo
cierto es que, aparte de la palabra “africana”, cada uno de los términos de esta frase es a la vez
correcto y falso. Pues em primer lugar, la imagen del mundo tradicional sigue viva em nuestros
dias; em segundo lugar no se trata de una imargen del mundo em sentido europeo, pues no
es posible separar en ella lo percibido, lo experimentado y lo vivido; em tercer lugar sólo es
posible señalarla como extraordinária desde el punto de vista europeo, mientras que para el
hombre africano es la imagen enteramente normal, y en cuarto lugar la expresión “armonia”
es insuficiente, y a que no permite reconocer cuáles son las partes que se armonizan en qué
unidad. Y si décimos; “todo”, esta palabra expressa aún menos que lo anterior. “Todo” no es
posible representarse, ni tampoco puede decirse con unas cuantas palabras lo que se quiere
significar com el término “todo” (JAHN,1963, p. 131). JAHN, Janheinz. Mutum: Las culturas
neoafricanas. Trad. Jasmin Reuter. México – Buenos Aires: Fondo de Cultura Económica,
1963.

111
IntelectuaIs das áfrIcas

críticas mais intensas, a ponto de declarar que deve ser conside-


rada entre aspas no rol da verdadeira filosofia, se dirigem ao que
denominou de Ethnophilosophie. Essa é uma posição polêmica, se
levarmos em consideração, por exemplo, o conteúdo de filosofia
da cultura.
Em parte de suas obras, deixa claro que a vocação primeira
da filosofia não é a de descrever, mas a de demonstrar; não é a
de reconstruir de maneira conjectural o sistema de pensar de tal
ou qual povo, de tal ou qual sociedade, de tal ou qual grupo de
pessoas, mas tomar a mesma posição de maneira responsável so-
bre questões graves, levando a concordar e forçando a justificar
racionalmente sua posição.
Assim sendo, deixo no ar algumas perguntas: é possível pro-
duzir uma “filosofia africana”, ou de um país da África, sem levar
em conta os modos tradicionais de ser, de fazer e de viver desses
povos? Seriam esses povos inconscientes em relação aos fenôme-
nos que vivenciam e que envolvem suas vidas?

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Este texto tem a pretensão de ser apenas uma primeira e bre-


ve aproximação da ampla e complexa atividade do filósofo Paulin
Hountondji, com sua profícua produção acadêmica e, também,
das atividades políticas: publicação de livros e artigos, palestras,
conferências, pesquisas e aulas; ocupação de cargos públicos em
universidades e outros órgãos governamentais não só em países da
África, mas, também, na França, em outros países da Europa e nos
Estados Unidos da América do Norte, contribuindo teoricamente
com conhecimentos considerados relevantes e posições instigan-
tes. A sua obra é destacada, e ele, reconhecido como intelectual de
peso por onde passou, e onde atuou, soube explorar as condições
históricas, as mais ricas e diversas, vivenciadas por povos africanos
na diáspora e em lutas libertárias.

112
IntelectuaIs das áfrIcas

A produção científica e filosófica na contemporaneidade, em


que pese à autenticidade dos conhecimentos novos, revisou e
conservou parte do quanto produzido na Modernidade, contribuiu
para a definição da filosofia europeia, francesa, inglesa, alemã,
Italiana e outras, não só demarcada pela origem e nascimento do
pensador, como, também, pelo conteúdo das suas obras. Assim,
pode-se afirmar que Paulin Hountondji é um filósofo africano pelo
local de nascimento e conhecimentos produzidos sobre a África,
mas, também, “francês” pela escola filosófica onde se formou.
Ao levar em consideração o conteúdo da obra e as atividades
de Paulin Hountondji, destacamos a influência da escola filosófi-
ca francesa na sua formação, marcada pela certeza inabalável na
importância da análise crítica racional, como instrumental teórico
utilizado na produção do conhecimento dito verdadeiro e, na
verdade, científica, produzida através do rigor metodológico, do
método aplicado ao objeto de pesquisa, quer naturais, quer sociais,
quer humanos. Assim, a filosofia se iguala à ciência, ou se torna
escrava desta, ao ser reduzida à condição de atividade produtora
de conceitos, com finalidade utilitária e prática, secundarizando
as demais necessidades existenciais dos humanos.
Em outras palavras, o modo único de produzir conhecimen-
to, ou a busca da verdade universal e absoluta através da razão e
da lógica, se apresenta como superior a visão de mundo mágica,
mítica e ritualística, supostamente, sem a complexidade, clareza
e distinção alcançadas pela Filosofia Ocidental. Neste sentido, a
formação acadêmica francesa de Hountondji prevalece como mais
adequada e importante que a formação ancestral, autóctone, por
ele e outros filósofos africanos contemporâneos, definida como
Etnofilosofia, para solucionar problemas africanos atuais ou mes-
mo construir, a partir dos saberes endógenos, novas perspectivas
epistemológicas para os povos africanos.

113
IntelectuaIs das áfrIcas

REFERÊNCIAS

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IntelectuaIs das áfrIcas

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TODOROV, Tzvetan. Memória do mal, tentação do bem. Trad. Joana Angélica
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115
IntelectuaIs das áfrIcas

MALEK CHEBEL: O NAVEGADOR AFRICANO DA


CULTURA ÁRABE-ISLÂMICA

Murilo Sebe Bon Meihy1

O que se reconhece como a raiz do pensamento africano,


tende a negligenciar a reflexão crítica e acadêmica de uma ver-
tente de grande importância para a história do continente: a
cultura árabe-islâmica. A maioria das pesquisas que se debruçam
sobre uma história intelectual da África feita no Brasil valori-
zam os intelectuais pan-africanistas, os que discutiram o longo
e violento processo de descolonização na segunda metade do
século XX, ou mesmo aqueles que defendiam projetos e ideias
de nação específicos. Todos esses autores possuem um lugar
de destaque na produção intelectual africana contemporânea,
mas torna-se preciso ressaltar que grandes vultos como Kwame
Nkrumah, Léopold Sédar Senghor, ou mesmo Frantz Fanon, não
estão sozinhos.
A atual agenda geopolítica que envolve o continente africano
produz, ao contrário do auge da descolonização, a urgência da
discussão de temas que afetam a vida dos africanos da mesma
forma que a violência colonial o fazia anteriormente, mas que
respondem a questões mais mundanas como a fé, a razão e, por
que não, a sexualidade. Em um cenário original de emancipações
políticas consolidadas, economias nacionais em busca de sus-
1 Professor de História Contemporânea do Instituto de História (IH) da Universidade Federal do
Rio de Janeiro. Doutor em Estudos Árabes pela Universidade de São Paulo (USP).

117
IntelectuaIs das áfrIcas

tentação, e sociedades civis partidas por identidades culturais


que se colocam como concorrentes, tópicos como a capacidade
transformadora do ativismo político islâmico, a fronteira porosa
entre tradição e modernidade, o lugar do liberalismo na cultu-
ra local, e até mesmo os limites da sexualidade cotidiana são
elementos constitutivos de uma nova África a ser discutida, de
modo que os próprios africanos tenham o protagonismo desse
debate, e os antigos colonizadores circunscrevam-se à condição
de ouvintes atentos.
Nesse complexo enredo em que se assume o papel da África e
dos africanos na cultura árabe-islâmica, o trabalho de Malek Chebel
(1953-2016) merece destaque por retirar o monopólio do pensa-
mento científico das mãos dos analistas europeus, e por romper
a dura supremacia dos teólogos e pensadores do Oriente Médio
clássico em relação aos temas e debates sobre o Islã. Nascido na
cidade de Skikda, Argélia, a antiga Philippeville colonial, Malek
Chebel obteve seu diploma secundário destacando-se em filosofia
e letras árabes. Grande parte de seus estudos iniciais foram marca-
dos pela conjuntura da Guerra de Independência da Argélia e suas
consequências futuras ao país, iniciada em 1954, um ano após seu
nascimento, e terminada em 1962.
No contexto de reconstrução nacional após a independência,
essa geração de jovens, que incluía o próprio Chebel, tentava
sobreviver no interior de uma conjuntura política centralizadora
dominada pelos líderes da independência, e marcada pelo flerte
com o pan-arabismo, o socialismo terceiro-mundista da Guerra
Fria, e a crença em uma revolução social, política e cultural que
não se limitasse às fronteiras da Argélia recém-criada2. Esse
cenário de intensa atividade política, principalmente em países
que se encaixavam no discurso emancipador do momento, como

2 PARADA, Mauricio; MEIHY, Murilo Sebe Bon; MATTOS, Pablo de Oliveira. História da África
Contemporânea. Rio de Janeiro: Ed. PUC-Rio: Pallas, 2013, p. 121-122.

118
IntelectuaIs das áfrIcas

no caso no Magrebe3, marcou a formação de uma juventude que


carregava em seus ombros o orgulho e o desafio de ser a primeira
geração a formar-se nas escolas e universidades constituídas pelo
ensino público das nações africanas recentemente libertadas do
colonialismo europeu.
O que chama a atenção no caso de Malek Chebel é justamente
sua tendência constante em fazer escolhas fora do eixo central de
sua geração na Argélia. Nas primeiras duas décadas após a inde-
pendência política do país, o desejo de servir ao projeto de nação
argelina, laico, socialista, e tecnicista, fez com que a maior parte
dos jovens contemporâneos a Chebel fossem seduzidos pela busca
por carreiras que estivessem diretamente vinculadas ao desenvolvi-
mento econômico e social do país. Enquanto crescia o número de
médicos, engenheiros, químicos, e até mesmo de professores para
o ensino público local, Malek Chebel investiu em um bacharelado
em filosofia e letras árabes, chegando a estender seus estudos “fora
do eixo” até a formação acadêmica na Universidade Ain el Bey, em
Constantine, onde também lecionou anos mais tarde. Em seguida,
deu prosseguimento aos seus estudos em Paris, dedicando-se a es-
pecialização em distintas áreas como a psicanálise, a antropologia
e a ciência política.
O percurso intelectual de Chebel refletiu-se em sua longa pro-
dução bibliográfica. Autor de dezenas de livros de grande sucesso,
sua obra pode ser dividida em três áreas bem definidas: os estudos
mediterrâneos, a quebra da imagem do Islã como uma ameaça para
o Ocidente, e a relação entre cultura e sexualidade no Islã. Nesse
contexto, não há como separar os escritos de Chebel da própria
3 “... región que engloba los actuales Estados del oeste árabe: Libia, Túnez, Argelia, Marruecos y
Mauritania, más el Sáhara Occidental. El Magreb es un concepto geopolítico complementario
del Máxreq, término este de mucha menor difusión en el ámbito euroamericano. La evolución
del vocablo ‘Magreb’ refleja la marcha general de la historia política del sur del Mediterráneo.
Los geógrafos árabes medievales denominaron Yazirat al-Mágrib (la Isla de Poniente) a las tierras
altas montañosas que comenzaban al Oeste del valle del Nilo y se extendían entre el desierto (en
árabe al-sahrá) y el mar (el Mar Mediterráneo y el Atlántico); además, distinguían entre Ifriqiya (la
latina ‘África’: la costa cartaginense, hoy Libia, Túnez y Argelia) y al-Mágrib al-Aqsa, ‘el Mágreb
Extremo’, el actual Marruecos.” Luz Gómes García, 2009, 195.

119
IntelectuaIs das áfrIcas

maneira como o Islã e a cultura árabe são encarados pela Europa


no mundo contemporâneo. A partir de marcos históricos como a
necessidade de incluir o Norte da África na formação civilizacional
do Ocidente pela quebra das fronteiras culturais entre africanos e
europeus separados pelo Mar Mediterrâneo, os ataques terroris-
tas de 11 de setembro de 2001, e a ascensão do ativismo político
islâmico nos séculos XX e XXI, Malek Chebel tenta relativizar a
ideia de que o Islã é uma experiência civilizacional concorrente
ao Ocidente.

OS ESTUDOS MEDITERRÂNEOS: A BÚSSOLA AFRICANA SEMPRE


APONTA PARA O NORTE

A influência da antropologia cultural no pensamento de Ma-


lek Chebel é inegável. Ao analisar as formas de organização do
homem, esse ramo da antropologia permite ao autor discutir a
porosidade das fronteiras políticas entre os povos que, apesar de
suas identidades nacionais e dos diferentes modos dessas nações
se relacionarem com a tradição, podem se aproximar por meio de
um conceito de cultura no tempo histórico que reconstrói os limi-
tes de cada homem. Do ponto de vista acadêmico, a antropologia
já teria rompido a divisão geopolítico entre Europa, Islã e África
ao promover os estudos das “sociedades mediterrâneas” por uma
visão convergente entre os povos e civilizações culturalmente em
contato com o Mar Mediterrâneo. Os trabalhos de autores como
David Gilmore4, J. G. Peristiany5, Julian Pitt-Rivers6, John Davis7, Je-
remy Boissevain8, entre outros, constituíram uma área de estudos
formada pela descrição e análise de sistemas de valores compar-
4 GILMORE, David D. Anthropology of the Mediterranean area. Annual Review of Anthropology,
11: 175–205. 1982..
5 PERISTIANY, J. G. (Org.). Honra e Vergosnha: valores das sociedades mediterrâneas. Lisboa:
Fundação Calouste Gulbenkian, 1971..
6 PITT-RIVERS, J. A. Un pueblo de la Sierra. Madri: Alianza Editorial, 1989.
7 DAVIS, John. People of the Mediterranean: An Essay in Comparative Social Anthropology. Londres:
Routledge, 1977..
8 BOISSEVAIN, Jeremy. Towards a Social Anthropology of the Mediterranean. Current Anthropology,
Vol. 20. No. 1, 1979..

120
IntelectuaIs das áfrIcas

tilhados. Dentre as obras de Malek Chebel que reproduzem essa


perspectiva mediterrânea, ganha destaque L’Esprit de sérail: mythes
et pratiques sexuelles au Maghreb, de 1988. O texto se concentra na
discussão das formas tradicionais da sexualidade magrebina, res-
saltando o caráter patriarcal das sociedades locais que sobrevivem
nas atividades corporais do masculino e do feminino nesses casos.
Essa obra serve como exemplo da metodologia interdisciplinar
que Chebel utiliza em grande parte dos seus escritos, pois com-
bina a contribuição teórica das áreas de conhecimento que foram
fundamentais para a sua formação intelectual: a antropologia, a
história cultural, a moral islâmica e a psicanálise. Escrita por meio
de capítulos independentes, a obra apresenta uma interpretação
secularizada da conduta e do pensamento islâmicos, elementos
centrais para a quebra de estereótipos contemporâneos sobre a
trajetória do Islã como uma experiência cultural uniformizadora,
restritiva e rigorosa.
Os temas principais desse trabalho orbitam em torno das
definições de perversidade, homossexualidade e androgenia na
cultura árabe-islâmica do Magrebe, fatores que moldam a margina-
lização sexual nas sociedades locais, quando tomados apenas pela
ortodoxia corânica, e não pelas práticas corporais do cotidiano.
Somado a esse aspecto, o autor também discute questões como
os estigmas que envolvem a virgindade e o uso do véu entre as
mulheres, a incidência de uma literatura erótica na cultura árabe,
bem como os usos do corpo considerados exóticos pela interpre-
tação eurocêntrica da realidade magrebina, como o trinado emiti-
do pelas mulheres em contextos sociais específicos ao moverem
a língua para a emissão de um som estridente que comunica a
chegada de situações que alteram o papel social do feminino, tais
como casamentos e festividades. A função dos chamados “youyous”
pela literatura franco-árabe seria a de unir os dois sexos, em um
ato social considerado por reformadores religiosos árabes como

121
IntelectuaIs das áfrIcas

al- Ghazâlî 9, como algo que transcende os sentidos sonoros, em


uma “fornicação do olhar10”.
Outro trabalho acadêmico que merece destaque, e que tem
algo a dizer não apenas sobre os estudos mediterrâneos, mas em
relação ao esforço do autor por integrar o resto do mundo ao Islã é
L’esclavage en terre d’islam, de 2007: uma das obras primas de Chebel.
Ao discutir as formas de servidão no mundo árabe-islâmico, o autor
redireciona a bússola cultural africana para o Oriente, conectando
o espaço mediterrâneo do Islã ao infame caminho da escravidão
que parte do Magrebe para o Golfo Pérsico, não antes de deixar
um rastro de sofrimento envolvendo negros, brancos, europeus,
africanos, crentes e infiéis.
Em relação ao território da África, Malek Chebel constrói uma
geografia da escravidão que faz com que partes específicas da rota
comercial dos escravos tivessem uma função bem determinada
no interior da cultura escravista desenvolvida nas terras do Islã.
Ao Egito cabia a condição de “cérebro” do tráfico de escravos,
justamente por ser o lugar onde os chamados Gallabine (mercado-
res itinerantes de escravos) exerciam com maior desenvoltura o

9 “Al-Ghazâlî (c.1056–1111) foi um dos mais proeminentes e influentes filósofos, teólogos, juristas e
místicos do Islã sunita. Ele foi ativo em um momento em que a teologia sunita tinha acabado de pas-
sar por sua consolidação e entrou em um período de intensos desafios produzidos pela teologia xiita
ismaelita e pela tradição árabe da filosofia aristotélica (falsafa). Al-Ghazâlî compreendeu a importância
da falsafa e desenvolveu uma resposta complexa que rejeitou e condenou alguns de seus ensinamentos,
ao mesmo tempo em que permitiu que se aceitasse e aplicasse outros. A crítica de Al-Ghazâlî a vinte
posições da falsafa em sua obra Incoerência dos filósofos (Tahâfut al-falâsifa) é um marco significativo na
história da filosofia a medida que avança na crítica nominalista da ciência aristotélica desenvolvida
mais tarde na Europa do século XIV. No lado árabe e muçulmano, a aceitação da demonstração
(apodeixis) por al-Ghazâlî levou a um discurso muito mais refinado e preciso sobre a epistemologia
e um florescimento da lógica e da metafísica aristotélica. Com al-Ghazâlî começa a introdução bem-
sucedida do aristotelismo ou, melhor, do avicennismo na teologia muçulmana. Após um período
de apropriação das ciências gregas no movimento de tradução do grego para o árabe e os escritos do
falsafa até Avicenna (IBN SÎNÂ, c.980-1037), a filosofia e as ciências gregas foram “naturalizadas”
no discurso da Kalâm e teologia muçulmana (Sabra, 1987). A abordagem de al-Ghazâlî para resolver
contradições aparentes entre a razão e a revelação foi aceita por quase todos os teólogos muçulmanos
posteriores e teve, através das obras de Averroes (IBN RUSHD, 1126-98) e de autores judaicos uma
influência significativa no pensamento medieval latino.” Griffel, Frank, “Al-Ghazali”, The Stanford
Encyclopedia of Philosophy (WINTER, 2016 Edition), Edward N. Zalta (ed.), forthcoming URL =
<http://plato.stanford.edu/archives/win2016/entries/al-ghazali/>. Tradução minha.
10 CHEBEL, MAlek. Du Désir. Paris : Ed. Payot, 2000..

122
IntelectuaIs das áfrIcas

seu ofício, desde o advento do Islã no século VII, até o início do


século XX. Não por acaso esses homens eram reconhecidos como
negociantes de “bois d’ébène” (gado de ébano), e a mesma palavra
que os definia, Gallabine, era utilizada já no período islâmico, para
designar também os vendedores de bovinos. A conexão do Egito
com outras áreas do continente africano dependia, sobretudo, dos
rendimentos alcançados com o comércio de escravos, principal-
mente no chamado “triângulo dourado” da África Oriental: Sudão,
Núbia e Etiópia, ao longo de todo esse período.
Mas, ao estilo do que ocorria em outras regiões do mundo que
contavam com a presença do tráfico de escravos, a responsabilidade
sobre essa prática comercial não incidia apenas sobre os negociantes,
mas é preciso também reconhecer a conivência das autoridades e
da sociedade local na manutenção dessa cultura. Como integrantes
dessa rede de práticas e ofícios relacionados à escravidão no Egito,
Chebel não poupa ninguém ao identificar figuras religiosas que
legitimavam o tráfico de seres humanos no uso de sua autoridade
teológica, e de funcionários governamentais que, especialmente
até 1860, supervisionavam as transações comerciais de escravos e
retiravam grandes quantidades de dinheiro desse ofício11.
A rota da escravidão nas terras africanas e mediterrâneas do
Islã percorria um infame trajeto que conectava vastos territórios
como a Líbia, o Chade, o Níger, praticamente todo o Saara, a
Mauritânia, o Senegal, o Marrocos, Córdoba, Tombuctu/Timbuktu
(Mali), Sudão, Núbia, o Chifre da África, Mombaça (Quênia), Zanzi-
bar (Tanzânia), em direção ao Sultanato de Brunei, na Ásia. A elite
social e econômica das regiões sob domínio islâmico não apenas
se calava diante de um fluxo de mão dupla de escravos entre a Ásia
e a África, mas também era testemunha ocular de uma prática que,
mesmo moralmente contrária aos preceitos religiosos vigentes, foi
timidamente combatida. Nas palavras de Malek Chebel:
11 Idem, 2007, 167.

123
IntelectuaIs das áfrIcas

O Islã deu suporte aos escravagistas?. O Islã os encorajou?


Quem se importa uma vez que o tabu abrange maus pen-
samentos e falsa consciência? O Islã dá a sua bênção para
a implantação da servidão do infiel, legitima a servidão do
pagão, do judeu ou do cristão denominando-os dhimmis?
Essa não é a questão, defendem os guardiões da Tradição.
Na verdade, não houve até o momento nem a tomada de
consciência, nem a medida exata do fenômeno. 12

Os méritos do trabalho do autor sobre a escravidão nas terras


do Islã não se concentram em seus esforços de dessacralização da
história cultural islâmica, mas são perceptíveis também em sua
generosidade com o leitor. Sabendo que seria lido principalmente
entre ocidentais, Chebel complementa sua obra com anexos im-
prescindíveis para a compreensão de seu argumento. O cuidado
com o público leitor está presente nos catorze documentos histó-
ricos apresentados sobre o tema, na apresentação de códigos de
jurisprudência sobre a questão da escravidão no Islã, em um índice
onomástico com “escravos ilustres, eslavos, eunucos, concubinas,
mercadores de escravos e abolicionistas da Terra do Islã a partir
do século VII”, em um vocabulário de termos ligados ao tema, em
uma cronologia temática, e em cartas de época. Nada mais medi-
terrâneo que a hospitalidade literária de Chebel ao tratar de um
tema tão indigesto aos muçulmanos.
A integração da Europa, do Islã e da África, tendo o Medi-
terrâneo como o limite poroso dessas culturas, também está
presente no pensamento de Malek Chebel em uma de suas obras
mais bucólicas: Traité du raffinement, cuja primeira edição é de
1999, mas que se notabilizou em uma segunda edição de 2008. O
argumento central do autor nesse trabalho é que o refinamento
social e a convivialidade são experiências que se desenvolveram
ao longo da expansão do Império árabe-islâmico em todas as suas
12 « L’islam couvre-t-il les esclavagistes? Les encourage-t-il? Qui s’en soucie dès lors que le tabou recouvre mauvaises
pensées et fausse conscience ? L’islam donne-t-il sa bénédiction à la mise en servitude du mécréant, légitime-
t-il celle du païen, celle du juif ou celle du chrétien en les nommant dhimmis ? Là n’est pas la question,
ripostent les gardiens de la Tradition. En vérité, il n’y a pour l’heure ni prise de conscience, ni mesure exacte
du phénomène. » Tradução minha. (MALEK CHEBEL, 2007, 11).

124
IntelectuaIs das áfrIcas

dinastias, mas se transformaram em uma prática social vigente no


chamado “Islã periférico”, ou seja, nas sociedades islâmicas fora
do epicentro histórico dessa civilização, mais especificamente no
entorno da Península Arábica. Nesse caso, o Mediterrâneo islâmi-
co é o ambiente onde o refinamento passou a ser parte da vida
muçulmana, relacionando-se a uma tradição de esplendor cultural
que conectou a Espanha andaluza, o Magrebe, o Império Mogol
na Índia, e a Pérsia.
O amálgama entre antropologia cultural, história cultural e
psicanálise é novamente o grande fio condutor metodológico de
mais uma obra de Chebel. Ao apresentar em quais produtos cul-
turais o refinamento árabe-islâmico se manifestou ao longo dos
séculos, o autor torna evidente sua face interdisciplinar, já que são
eles: o palácio, o poema e a receita culinária13. A vida palaciana, a
erudição do espírito, e a etiqueta do bem viver tornam-se formas
de se imitar o soberano que se revelam como o meio mais seguro
de lhe ser fiel e de externar o desejo de tomá-lo como senhor. Ao
mesmo tempo, o ímpeto do governante de exigir a etiqueta e de
organizar cerimônias luxuosas é, também, um modo de orientar a
cidade, pois esse é um ato político que visa produzir um controle
sobre as condutas de seus governados.
A aliança e cumplicidade entre soberano e súditos que se
fundem socialmente por essas práticas forma uma elite local
que se beneficia diretamente da reprodução do refinamento, e
se transforma no passo inicial da decadência de muitos modelos
políticos na história do Islã. Esse aspecto, Chebel chama de “efeito
espelho” e afirma:

Examinemos agora uma questão de ordem distinta: por


que as elites árabes chegaram a esse altíssimo grau de
refinamento antes de experimentarem certo retrocesso,
inventando (ou sofrendo) tantas guerras fratricidas, tantas
batalhas suicidas, cada uma mais vazia que a anterior?

13 Idem, 2010, 26.

125
IntelectuaIs das áfrIcas

É certo que podemos invocar um grande número de ex-


plicações, entre elas estão o envelhecimento dos regimes,
sua defasagem em relação à sua época, sua má preparação
defensiva, e a corrupção de dinastias que não pareciam
estar ameaçadas por nenhum perigo. Também sabemos que
a decadência moral sofrida pelo Islã está enraizada tanto
na inibida psicologia coletiva da nação árabe, quanto nas
estratégias militares infrutíferas que se espalharam pelos
séculos XII e XIII. (MALEK CHEBEL, 2010, 27-28)14

Ao final, por um longo período, o refinamento tem sido


uma espécie de mística social composto por um código de honra
e uma porta de entrada para um universo carregado de signos,
em especial no Magrebe e em todo o Mediterrâneo islâmico. Do
Reino do Marrocos, passando por importantes cidades da Argélia
e da Tunísia históricas, até chegar à antiga Constantinopla, esse
ambiente refinado se converterá em um desastre que mais aproxima
Oriente e Ocidente do que os separa.
O fenômeno descrito por Chebel passa a ser definido por aquilo
que o autor chama de “paradoxo de Alhambra”, fazendo menção às
características de um dos tesouros arquitetônicos mais impressionan-
tes da cultura árabe-islâmica, um conjunto de construções utilizado
pela dinastia Nasrida em Granada (1238-1492). Trata-se da valorização
cultural de uma oposição entre o luxo extraordinário do interior, e da
simplicidade exterior dessas construções. A aplicação desse paradoxo
na história da Espanha andaluza e do Magrebe seria o contraste vivido
por esses governos mediterrâneos entre o constante cenário de guer-
ra e violência regional, em oposição ao vigor intelectual, artístico e
arquitetônico vivido internamente por essas sociedades. Aqui estaria
a grande contribuição do chamado “Islã periférico” do Mediterrâneo:
14 “Examinemos ahora una cuestón de distinto orden: por qué llegaron las elites árabes a este altísimo grado
de refinamiento antes de experimentar una regresión, inventando (o sufriendo) tantas guerras fraticidas,
tantas batallas suicidas, a cual más vacía que las anteriores?
Es cierto que podemos invocar un gran numero de explicaciones, entre las cuales están el envejecimiento
de los regímenes, su desfase respecto de su época, su mala preparación defensiva y la corrupción de unas
dinastias que no parecían estar amenazadas por ningún peligro. También sabemos que la decadencia moral
en la que cayó el Islam echa sus raíces tanto en la psicología colectiva inhibida de la nación árabe como en
las estrategias militares infructuosas que salpicaron los siglos XII y XIII.” (Tradução minha).

126
IntelectuaIs das áfrIcas

a interiorização de valores, o refinamento cultural, e um modo mais


introspectivo e positivo de encarar a doutrina islâmica.
Da história do Norte da África e do Sul da Espanha sairia uma
alternativa mais humana para o desenvolvimento do Islã e sua
convivência com outros povos e religiões. A ortodoxia da Península
Arábica, e o radicalismo político do ativismo islâmico do “Oriente”,
que parecem ameaçar a Europa Ocidental atualmente, podem ser
substituídos por uma experiência do Islã que se relacionou de forma
mais reflexiva com a diferença cultural. No caso do paradoxo de
Alhambra, ainda que discutindo o passado mediterrâneo dos mu-
çulmanos, Malek Chebel está debruçado sobre questões que tocam
diretamente ao mundo contemporâneo, mais especificamente a
ameaça radical islamista que assola as grandes cidades europeias,
em especial, a sua Paris.

O ISLÃ NO OCIDENTE: O ASTROLÁBIO DE DEUS

A condição de intelectual africano muçulmano residente em


Paris é um traço característico de Malek Chebel que não passa des-
percebido nos dias atuais. Como se fosse algo impregnado na pele, no
rosto, e por que não, nas ideias de alguém exposto constantemente
ao pretenso racionalismo que a universidade representa no Ociden-
te, o Islã assume a função de ser uma marca identitária que precisa
ser explicada. Para muitos, a possibilidade de se ter um acadêmico
muçulmano que se debruça sobre profundas questões filosóficas,
em especial na França, é quase uma contradição, já que a imagem
do Islã como um problema geopolítico recai sobre seus interlocu-
tores na universidade. Por essa razão, respondendo à vinculação
equivocada dos muçulmanos ao radicalismo político, Malek Chebel
passa a produzir reflexões que tentam dar uma resposta humanista
a esse fenômeno. Parte de suas obras ganha esse sentido, tais como:
Le sujet en Islam15, Manifeste pour un islam des lumières : 27 propositions

15 CHEBEL, Malek .Le sujet en islam. Paris: Seuil, 2002

127
IntelectuaIs das áfrIcas

pour réformer l’islam16, L’islam et la raison, le combat des idées17, além


de uma tradução própria do Alcorão, entre outros.
Em linhas gerais, o que essas obras defendem não é uma postu-
ra proselitista do Islã, mas sim, a ideia de que, seja no Ocidente ou
no Oriente Médio, as posições moderadas estão perdendo espaço
para as ortodoxias. O cenário político pós-11 de setembro de 2001
tem transformado o mundo muçulmano e o próprio Ocidente, mais
especificamente a Europa, em vítima e algoz de um tempo marca-
do pela retórica do antagonismo civilizacional. Não por acaso, o
ímpeto de Chebel em escrever e publicar sobre esse tema ganhou
fôlego a partir de 2001, e continua sendo alimentado por episó-
dios constantes de intolerância como a invasão norte-americana
ao Iraque, em 2003, as ações da al-Qaeda na África, os constantes
ataques terroristas reivindicados por grupos do ativismo político
islâmico, principalmente nas grandes cidades europeias, as ações
do chamado “Estado islâmico” na Síria e no Iraque, as tentativas
de proibição do uso do véu e de signos religiosos na França, o
discurso de ódio aos imigrantes utilizados por políticos ocidentais
como Marine Le Pen e Donald Trump, bem como o sequestro de
jovens cristãs na Nigéria pelo grupo Boko Haram.
A resposta de Malek Chebel a esses desafios deve ser tomada
como uma tentativa de, por meio de ideias conciliadoras, navegar
com segurança em águas revoltas, e a melhor maneira de promover
a aproximação e o diálogo nesse caso é a mútua atribuição de res-
ponsabilidades. As instituições diretamente envolvidas nesse cenário,
como o Estado nacional, a imprensa, e as organizações intergoverna-
mentais como a ONU, a União Europeia, a OTAN, a Liga dos Estados
Árabes, a União Africana, e o Conselho de Cooperação do Golfo, por
exemplo, são tão responsáveis por esse clima de tensão geopolítica
quanto os jovens militantes muçulmanos que se sentem seduzidos
pelos discursos de ódio e intolerância espalhados pelo mundo.

16 CHEBEL, Malek. Manifeste pour un islam des Lumières, 27 propositions pour réformer l’islam. Paris:
Hachette Littératures, 2004.
17 CHEBEL, Malek. L’islam et la Raison, le combat des idées. Paris: Perrin, 2005.

128
IntelectuaIs das áfrIcas

Na obra Manifeste pour un islam des lumières: 27 propositions pour


réformer l’islam, Chebel propõe caminhos para a restauração da paz e
do diálogo na contemporaneidade por meio das seguintes propostas:

1. Uma nova interpretação dos textos religiosos;

2. A afirmação da superioridade da razão sobre todas as demais formas


de pensamento e crença;

3. A afirmação de que a chamada “guerra santa” é inútil e ultrapassada;

4. A abolição de todas as fatwas18 que se colocam como um chamado


para a morte;

5. A abolição dos castigos corporais;

6. A luta sem complacência contra qualquer forma de mutilação;

7. O banimento da escravidão, do tráfico humano, e do tráfico de órgãos;

8. As sanções mais severas aos autores de crimes de honra;

9. A modernização do código civil e do código pessoal;

10. A reavaliação do status feminino;

11. A possibilidade de dar à justiça os meios para a sua independência;

18 “Originalmente, apenas um mujtahid, ou seja, um jurista que atende a certo número de qualifi-
cações e treinado nas técnicas de ijtihad (“raciocínio pessoal”, a quarta fonte da lei islâmica após
o Alcorão, a sunna do Profeta Muhammad e a ijma, ou consenso) foi autorizado a emitir uma
opinião legal ou interpretação de uma lei estabelecida. Mais tarde, todos os juristas treinados
podiam ser muftis. As fatwas não são vinculativas, contrárias às leis que derivam das três primei-
ras fontes, e os muçulmanos podem buscar outra opinião legal. As fatwas de juristas famosos
geralmente são coletadas em livros e podem ser usadas como precedentes em tribunais.
Pelo fato de que a maioria dos países muçulmanos parou de seguir a shari’a durante o século XX e
adotou sistemas legais seculares, fatwas são emitidos principalmente em uma base pessoal ou por
razões políticas. A prática de ter um mufti nomeado pelo governo que emita fatwas justificando a
política governamental foi uma crítica central dos movimentos islâmicos reformistas do período.
No entanto, muitos destes últimos muitas vezes permitem que indivíduos sem a formação jurídica
necessária para emitir fatwas. Tais editos podem ser considerados pelos seus seguidores como
vinculativos, mas não são reconhecidos pelos juristas ou pelo resto da comunidade muçulmana
como legítimas opiniões jurídicas”
Wael B. Hallaq. “Fatwa”. Encyclopedia of the Modern Middle East and North Africa. Encyclopedia.
com.Tradução minha.

129
IntelectuaIs das áfrIcas

12. As questões sobre a exploração do trabalho;

13. O reforço à preeminência do indivíduo sobre a comunidade;

14. O reforço do primado da política sobre a gestão da cidade;

15. A luta contra o assassinato político para a democratização dos re-


gimes;

16. A transformação da liberdade de consciência e da liberdade de pen-


samento das virtudes muçulmanas,

17. A desconstrução do culto à personalidade;

18. O respeito incondicional à diferença;

19. A diminuição das diferenças econômicas e sociais;

20. A falta de condescendência com a corrupção;

21. O começo de uma política proativa sobre as novas tecnologias;

22. A definição de uma política clara sobre o domínio da bioética;

23. O chamado para uma obrigação ecológica;

24. Uma postura mais liberal diante de questões estéticas ligadas às artes
musicais e imagéticas;

25. A descriminalização do jogo e da diversão;

26. A aposta no campo da governança mundial;

27. A prioridade de se valorizar o homem.

A proposta de Malek Chebel de apresentar uma reforma se-


cularizante ao Islã passou a ser nomeada pelo próprio autor como
um “Islã iluminista” ou um “Islã das Luzes”. A melhor maneira para
se combater o radicalismo religioso islâmico seria, portanto, uma

130
IntelectuaIs das áfrIcas

releitura mais aberta, racional e reflexiva do Islã original. A heran-


ça intelectual deixada pelos pensadores muçulmanos ao longo da
história não teria nenhuma relação com os movimentos radicais
da atualidade, já que esses antigos intérpretes da religião sempre
reconheceram a liberdade de escolha como uma prerrogativa do
fiel muçulmano, e a total congruência entre o Islã e a modernidade.
Com exceção de alguns pontos específicos, voltados ao con-
texto francês, o argumento reformista de Malek Chebel não é to-
talmente inovador. Os esforços de seu olhar aberto para a relação
entre o Islã e os valores seculares do Ocidente, transformados em
uma interpretação reformada dos textos religiosos, dialogam com
as ideias de outros pensadores muçulmanos que se propuseram
esse desafio a partir da segunda metade do século XX. Após o
processo de independência de seus países, e o aumento da per-
cepção de que as forças ideológicas hegemônicas da Guerra Fria
não podiam fechar seus olhos para o peso da religião nas terras
do Islã, uma geração de muçulmanos “reformadores” ganhou vi-
gor principalmente na África e nas partes da Ásia que queriam se
emancipar da tutela religiosa da ortodoxia que vinha da Península
Arábica. Alguns exemplos são pertinentes não apenas porque de
algum modo influenciaram ou se conectaram com as propostas
de Chebel, mas sim por representarem a contribuição africana
para o debate sobre os males do radicalismo e a compatibilidade
entre Islã e modernidade. Em comum, esses autores possuem a
capacidade de superarem a crítica raivosa, o reconhecimento do
lugar da universidade e da reflexão acadêmica em suas ideias, e a
dedicação a um trabalho intelectual que possui intrinsecamente um
projeto para o futuro. Dentre essas figuras estão: o filósofo argelino
Mohammed Arkoun e sua noção de “razão islâmica19”, o jurista
sudanês Abdullah Ahmed an-Na’im e o debate sobre Islã, Estado
laico e a shari’a20, o linguista egípcio Nasr Hamid Abu Zayd e sua

19 ARKOUN, Mohammed. Pour une critique de la raison islamique. Paris: Maisonneuve et Larose,
1984.
20 AHMED AN-NA’IM, Abdullah . Islam and the Secular State: Negotiating the Future of Shari`a.
Cambridge: Harvard University Press, 2008.

131
IntelectuaIs das áfrIcas

defesa de uma hermenêutica humanista do Alcorão21, bem como a


educadora, ativista LGBT e apresentadora de televisão ugandense-
canadense Irshad Manji e a ideia de “pluralismo islâmico22”.
Algumas questões específicas da reforma de Malek Chebel me-
recem destaque. Ainda que o autor compartilhe com outros intelec-
tuais muçulmanos que o Islã deve se relacionar com determinados
valores do secularismo, seu diagnóstico sobre essa relação é parte
do mérito de seu trabalho. O primeiro movimento a ser construído
na comunidade religiosa islâmica é quebra do estereótipo de que o
secularismo é uma ameaça cristã. À medida que aumenta a agressão
militar ocidental aos países de maioria muçulmana, o radicalismo
islâmico se apropria desse ressentimento e difunde um conjunto
de representações depreciativas sobre o Ocidente que, entre outros
elementos, reforça o possível contraste entre desenvolvimento
tecnológico e material, e atraso espiritual. Essa é uma tese que já
teve diversos desdobramentos nos países de maioria muçulmana.
Em 1949, por exemplo, um dos futuros líderes mais atuantes do
ativismo político islâmico, o educador egípcio Sayyid Qutb, pou-
co antes de integrar a Irmandade Muçulmana23, defendeu em seu
21 ABU ZAYD, Nasr Hamid. Rethinking the Qur’an: Towards a Humanistic Hermeneutics. Utrecht:
Humanistics University Press, 2004.
22 MANJI, Irshad . The Trouble with Islam Today: A Muslim’s Call for Reform in Her Faith. St. Martin’s
Griffin, 2005.
23 “Fundada em 1928 no Egito por Hasan al-Banna. Núcleo e principal fonte de inspiração para
muitas organizações islâmicas no Egito e em vários outros países árabes, incluindo Síria, Jordâ-
nia, Kuwait, Sudão e Iêmen, além de alguns Estados do norte da África. Emergiu como uma
reação à divisão dos países árabes em esferas de influência pelas potências europeias, à abolição
do califado na Turquia e à influência ocidental na cultura islâmica. Promoveu benevolência,
caridade, desenvolvimento, nacionalismo, independência e reforma social e governamental de
acordo com a obra e o espírito do Islã. As táticas variaram do ativismo e acomodação política
pró-regime à militância e assassinatos e violência contra o regime, da filantropia e da construção
de instituições econômicas à acomodação com partidos políticos da oposição. A Irmandade
Muçulmana também era ativa na arrecadação de fundos para os árabes palestinos que resistem
ao sionismo. Na década de 1940 foi a mais popular e respeitada das forças nacionalistas, lutando
contra o imperialismo britânico, a ocupação militar e o sionismo na Palestina. Seus líderes e
teóricos estão entre as mais influentes figuras políticas egípcias do século XX; O mais famoso
foi Sayyid Qutb, cuja principal preocupação era o uso da jihad contra sociedades ignorantes ou
“pagãs”, tanto ocidentais como seculares. A Irmandade Muçulmana foi inicialmente aliada dos
Oficiais Livres, que derrubaram a monarquia egípcia em 1952, mas foram perseguidos pelo novo
regime, liderado por Gamal Abdel Nasser. Anwar Sadat reabilitou a Irmandade Muçulmana e
buscou seu apoio nos anos 1970, mas se recusou a conceder-lhe status legal incondicional como
um partido político. Na década de 1980, abraçou a não violência e se tornou um movimento de
oposição, aceitando o pluralismo político e a democracia parlamentar; Elementos mais radicais
dentro da organização se separaram. A Irmandade Muçulmana participou e ganhou eleições em

132
IntelectuaIs das áfrIcas

texto The America that I Have Seen, uma crítica aos Estados Unidos
da América a partir do peso do materialismo nessa sociedade. A
permanência dessa imagem sobre o secularismo ocidental é uma
barreira ideológica a ser superada ainda hoje.
Outro tema bastante controverso e que dialoga com as ques-
tões enfrentadas por Chebel na França do início do século XXI é o
uso do véu pelas mulheres muçulmanas. Sem entrar diretamente na
polêmica de gênero que o tema possui, o autor destaca a ausência
de parâmetros religiosos para a obrigatoriedade das mulheres se
cobrirem. Nas palavras de Chebel:

De volta brevemente a um problema que agitou os nossos


contemporâneos, e não apenas na França: o véu. Chamado
hijab, xador ou burca, o véu islâmico (djilbab no Alcorão)
representa um conjunto de realidades históricas e emoções
conflitantes que o impede de ser um elemento de vestuário
neutro como qualquer outro. No início da pregação, o véu
foi recomendado pelo Alcorão como elemento distintivo
do harém profético. (...)

Hoje, para o estabelecimento do Islã em novas áreas que


não eram originalmente muçulmanas, e por causa da ex-
trema politização dessa religião, o véu tornou-se um sinal
ostentatório da adesão ao Islã mais rigoroso, um símbolo
religioso que carrega em torno dele várias ideologias mais
ou menos restritivas.24

várias alianças políticas desde 1984 e tem apelo popular em todas as classes sociais.” “Muslim
Brotherhood in Egypt.” In The Oxford Dictionary of Islam. Ed. John L. Esposito. Oxford Islamic
Studies Online. 2016. http://www.oxfordislamicstudies.com/article/opr/t125/e1637. (Tradução
minha).
24 Revenons très brièvement sur une question qui agite nos contemporains, et pas seulement en France: le voile.
Appelé hidjab, tchador ou burkha, le voile islamique (dit djilbab dans le Coran) représente un ensemble
de réalités historiques et d’affects contradictoires qui l’empêchent d’être un élement vestimentaire neutre
ou semblable à tout les autres. Au début de la prédication, le voile était préconisé par le Coran comme un
élément distinctif du harem prophétique. (...)
Aujoud’hui, à la faceur de l’implantation de l’islam dans de nouvelles régions qui n’étaient pas musulmanes
au départ, et du fait de la politisation extrême de cette religion, le voile est devenu un signe ostentatoire
d’adhésion à l’islam le plus rigoriste, un signe religieux qui charrie autour de lui de nombreuse idéologies
plus ou moins restrictives. » (MALEK CHEBEL, 2004, 81-82). (Tradução minha).

133
IntelectuaIs das áfrIcas

Quando novas regiões do mundo estão sendo alvo do ativismo


político e ideológico do Islã, o véu passa representar a face mais
radical e restritiva dessa fé, já que os sentidos político e religioso
desse signo se fundem, transformando as mulheres em meros ins-
trumentos políticos do radicalismo. Isso seria contrário ao histórico
da civilização islâmica de incentivo à expressão física livre. O véu
seria, portanto, a manifestação mais evidente de que a questão
sexual no Islã se transformou em um domínio masculino, em uma
espécie de controle dos homens sobre os corpos femininos. Para a
França contemporânea, a interpretação de Chebel sobre o uso do
véu se coaduna com a leitura da maioria dos movimentos feministas
ocidentais sobre a questão. O prejuízo teológico a partir dessa prá-
tica para o Islã é imediato, já que na leitura do autor, a fé islâmica
é tradicionalmente sensual e aberta em relação ao amor físico.
A partir de exemplos como esse, Malek Chebel pretende apre-
sentar propostas reais em seu reformismo islâmico. No cerne do
debate está a revisão da negação da ciência e do progresso entre
os muçulmanos, algo plausível para alguém que tem a universidade
francesa como seu principal espaço de luta contra o radicalismo
religioso. Essa seria a nova face do “Islã iluminista”, e a razão, ao
estilo ocidental, assumiria a condição de instrumento com o qual
o muçulmano atual deveria navegar pelo mundo das ideias e da
diferença cultural.

O EROTISMO NO ISLÃ: A CARAVELA DA REFORMA.

A relação entre cultura e sexualidade é o elemento que me-


lhor evidencia a originalidade do trabalho de Malek Chebel, já
que permite a fusão criativa de seu vínculo com a antropologia e
com a psicanálise, mediado pelo Islã. A noção de erotismo árabe-
islâmico relaciona, obrigatoriamente, a tradição religiosa dos
textos produzidos por essa civilização, com uma herança cultural
comum à história do Ocidente: A Antiguidade Clássica. Não por
acaso a questão do Eros se transformou em objeto de interesse

134
IntelectuaIs das áfrIcas

dos religiosos e intelectuais muçulmanos ao longo da história, re-


lacionando esse tipo de conhecimento ao sagrado, ultrapassando,
no Islã, a dimensão carnal do amor entre os homens. Esse é um
fator também encontrado pelos arqueólogos entre os indianos,
mesopotâmicos, bizantinos, e em todo o Oriente Médio antigo,
e por essa razão, dentre os diversos trabalhos de Chebel sobre o
tema, vale destacar duas obras centrais: Encyclopédie de l’amour en
Islam: érotisme, beuaté et sexualité dans le monde árabe, em Perse et
em Turquie, de 1995, e Le Kama-Sutra árabe: 2000 ans de littérature
érotique en Orient, de 2006.
Nessas obras, o Islã clássico defendido pelo autor apresenta a
necessidade de anular qualquer possível contradição entre a sexu-
alidade humana e o discurso divino, o que faz com que a cultura
islâmica se dedique às questões ligadas ao amor em suas diversas
manifestações, sejam elas carnais ou filosóficas. De modo geral,
o amor passa a ser alvo de uma veneração permanente tanto dos
religiosos como dos demais autores árabes e muçulmanos ao longo
do tempo. O exemplo fundamental dessa perspectiva é a presença
do harém como tema filosófico e literário que combina sua expe-
riência sensorial com as manifestações sociais dessa prática.
Na visão europeia, principalmente a partir do século XVIII, o
harém é uma espécie de prisão feminina de escravas que, subme-
tidas à vigilância dos eunucos, transforma-se na versão privada do
despotismo natural encontrado entre os governantes e poderosos
orientais25. Na definição árabe-islâmica, trata-se de uma instituição
social com regras bem definidas, objeto de cobiça dos rivais e lugar
encantado onde o amor é marcado pela cultura do segredo e da
interdição (MALEK CHEBEL, 2006, 8). A partir da própria configu-
ração do termo, o harém é, ao mesmo tempo, um espaço íntimo,
harim, definido pelas noções de “proibido”, haram, e também de
“espaço sagrado”, muharram, bem como de “inviolável/interdito”,
hurma, e tahrim.

25 GROSRICHARD, Alain. A estrutura do Harém: Despotismo asiático no Ocidente clássico. São


Paulo: Editora Brasiliense, 1988. p. 217.

135
IntelectuaIs das áfrIcas

O desdobramento inevitável desse debate é a manutenção da


importância da fidelidade conjugal feminina, que possui um peso
específico na tradição religiosa, e é considerado secundário nos
textos literários. No contexto proibitivo do harém, a mulher exer-
ce sua face ardilosa ao recorrer a uma série de estratagemas que
garantem a vida em um espaço de supressão de liberdades, confe-
rindo às mulheres uma habilidade política e econômica vinculada
à ambiguidade e à trapaça. Assim, para ambos os sexos, o harém
pode ser definido como um grande fantasma, que no interior de
uma sociedade que tem a religião como seu centro gravitacional,
vive no harém a expectativa de um gozo profano em diálogo com
o entendimento islâmico de que o amor carnal é uma espécie de
benção divina, desde que exercido no interior dos padrões morais
do Islã.
Essa mesma relação de permissão negociada confere à literatu-
ra erótica um lugar especial na cultura árabe-islâmica. Por um lado,
haveria a uma escrita erotizada própria das classes altas, conduzida
por seus poetas e cancioneiros, assim como uma literatura popular
presente em produtos culturais orais difundidos por provérbios,
contos, expressões e palavras vernaculares advindas do cotidiano.
Nas palavras de Chebel:

Este outro erotismo, que é o mais truculento, opera em


lugares de má reputação e bordéis. As mulheres árabes,
como um todo, acreditam que esse erotismo explícito é
demasiado obsceno. Obsceno porque muito é dito, explíci-
to! Além disso, longe da sublimação da sociedade ilustrada,
as baixas camadas combatem os demônios da carne, mas,
ocasionalmente, não recusam festins descarados e bem
regados26.

26 « Cet autre érotisme, le plus truculent, opère dans les lieux malfamés et dans les lupanars. Dans leur en-
semble, les femmes arabes estiment que cet érotisme explicite est trop obscène. Obscène parce que trop dit,
explicite! D’ailleursm loin de la sublimation de la société savante, les milieux interlopes livrent bataille aux
démons de la chair mais ne refusent pas, occasionnellement, quelques agapes gouailleuses et bien arrosées.
» Tradução minha. (MALEK CHEBEL, 2006, 12)

136
IntelectuaIs das áfrIcas

Em comum, as formas culturais da sexualidade no Islã consi-


deram que o desejo é parte da condição humana, vinculado a de-
terminado senso do sagrado no interior de uma crença entendida
como superior e acessível a todos os fiéis. Por isso, depois de sua
criação, a interpretação hegemônica do Islã uniu habilmente o
desejo à crença, como manifestação do amor do Criador pela sua
criação. Mas então, o que o Alcorão tem a dizer sobre essas ques-
tões que a moral religiosa costuma atribuir a formas deturpadas do
sagrado? Malek Chebel ressalta que o amor não deve ser encarado
como um objeto da exegese legal ou canônica da religião, porém,
de alguma forma, o tema está presente em um texto sagrado com
pretensões à regulação de grande parte dos aspectos da vida social
de seus seguidores.
Chebel toma como exemplo a Sura27 XII do Alcorão, intitu-
lada “José”. Não há dúvidas de que o texto corânico não possui
um vocabulário sensual, o que deve ser tributado apenas às artes
literárias. Entretanto, a sedução é um tema importante pelo me-
nos na Sura XII. Ao contar a história de José, filho de Jacó, quando
vendido como escravo no Egito, tanto o texto corânico quanto a
tradição judaico-cristã (Gênesis XXXIX) descrevem um episódio em
que José é seduzido pela esposa de seu senhor. Na Bíblia, seu amo
é nomeado como Potifar, enquanto que o Alcorão não registra o
nome desse personagem. Já a esposa adúltera, não é nomeada nos
textos cristão e islâmico, mas é identificada pelo nome de Zuleica
na tradição judaica. Ao não conferir um nome à personagem fe-
minina, a força retórica de seu exemplo recai sobre seu ato, mais
especificamente, sua tentativa de seduzir José.
A presença da sensualidade na citada Sura permite que o tema
moralizado da sexualidade e da traição conjugal ganhe outro tipo
de tratamento literário e até mesmo teológico quando trabalha-
do por poetas e escritores das terras do Islã. Entre os persas, por
exemplo, Nur ad-Din Abd ar-Rahman Jami, também conhecido

27 Nome dado a cada um dos 114 capítulos do texto corânico, ordenadas por tamanho, da maior
para a menos, com exceção da primeira, intitulada al-Fatiha (a abertura) .

137
IntelectuaIs das áfrIcas

como Mawlana Jami, foi um poeta sufi do século XV notabilizado


pela obra Haft Awrang, composta por sete livros de histórias. Um
desses textos se intitula Yusof-o Zulaikha (José e Zuleica), e confere
um tom místico ao desejo de Zuleica por José, já que se José pos-
sui uma beleza irresistível, incorporando o emblema da perfeição
divina, o desejo de Zuleica por ele é a imagem do amor da criatura
pelo Criador.
O tema da atração incontrolável que José exerce sobre as
mulheres está presente em outras versões literárias dessa história
produzida na cultura islâmica, no entanto, o debate sobre o amor
e a sexualidade nas obras do Islã não se resumem apenas a essa
literatura controlada por grandes poetas como Mawlana Jami e
acessível às classes sociais mais abastadas. No campo da literatura
popular, textos dotados de uma linguagem mais vulgar merecem
destaque, ainda que a trivialidade do texto não retire o caráter
complexo, poético e denso daquilo que é discutido nessas obras.
Não cabe aqui analisar pontualmente algumas dessas obras, ain-
da que Malek Chebel seja o tradutor, prefaciador ou preparador
das versões desses escritos publicados em francês. Essas obras
e autores aparecem como verbetes ou como parte de categorias
conceituais trabalhadas por Chebel em sua Encyclopédie de l’amour
em Islam: érotisme, beauté et sexualité dans le monde árabe, en Perse et
en Turquie. Toma-se como exemplo, Ibn Foulaïta e o tema do les-
bianismo, al-Qayrawani e as perversões sexuais, bem como Leão,
o Africano e o travestismo28.

CONCLUSÕES POSSÍVEIS

De forma irrefutável, Malek Chebel deve ser visto como um


grande intelectual africano que trata os tabus culturais do Islã de
28 Ahmed Ibn Foulaïta: escritor árabe que se dedicou à elaboração de textos eróticos inspirados
em obras indianas. A época exata de sua produção é desconhecida, mas sabe-se que faleceu em
1031. al-Qayrawani: erudito da escola de jurisprudência islâmica malikita nascido em Kairouan,
atual Tunísia, e que viveu no século X. O sexo foi um dos temas tratados de forma jurídica por
esse autor. Leão, o Africano, ou Muhammad Ibn Wazzan (seu nome antes da conversão forçada
ao catolicismo no século XVI). Reconhecido como um dos autores mais importantes de obra
que descreve reinos e costumes de povos africanos, inclusive dos aspectos sexuais desses nativos.

138
IntelectuaIs das áfrIcas

modo natural e eloquente. Em uma época em que a religiosidade


islâmica é vista pelo Ocidente de forma obscurantista, Chebel
propõe uma mudança de olhar que se vincula à necessidade de
se encontrar o lugar da racionalidade que tantas vezes pautou a
reflexão dos intelectuais muçulmanos ao longo da história. Os tex-
tos clássicos dessa civilização, como o Livro das mil e uma noites,
passam a ser uma referência despudorada de uma vivencia da fé
que não se limita aos rigores sociais atuais atribuídos aos povos
islâmicos.
O terrorismo internacional, a violência cotidiana exercida por
grupos do ativismo político islâmico, e o excesso de pudor com
que os corpos dos fieis são retratados no mundo contemporâneo
não condizem com a tradição reflexiva de uma cultura acostumada
historicamente ao debate sobre a sexualidade praticada de forma
plena, desde que autorizada pelos cânones religiosos. A saída, por-
tanto, para a recente crise da imagem do Islã no mundo é a reflexão
acadêmica aberta, vivida muito mais pelos intelectuais muçulmanos
que olham para a fé islâmica a partir de espaços periféricos como
a África e a Ásia Central. Para Malek Chebel, o radicalismo é uma
alternativa civilizacional tão passageira quanto a visão que o mundo
construiu dos muçulmanos na atualidade.

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IntelectuaIs das áfrIcas

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141
IntelectuaIs das áfrIcas

FATEMA MERNISSI: UMA CONTESTADORA DO


PATRIARCALISMO NO MUNDO ÁRABE-ISLÂMICO

Isabelle Christine Somma de Castro1

Fatema Mernissi, uma das mais proeminentes intelectuais


africanas até a sua morte, em 2015, desenvolveu uma abordagem
para a questão do feminismo que pode ser estendida a outros ter-
ritórios e sociedades, especialmente os de matriz islâmica, tendo
como referência as problemáticas resgatadas de seu Marrocos de
origem2. A partir dessa experiência local, a intelectual expandiu
a discussão para além das fronteiras de seu país, trazendo não
só seu conhecimento de campo e acadêmico, mas também seu
ativismo a fim de buscar a igualdade de gênero. Dedicou-se a
demonstrar a necessidade de combater o discurso de uma elite
sobre uma propalada inferioridade feminina que, ao contrário do
que é disseminado, não teria, segundo ela, apoio nas escrituras
religiosas. Demonstrou, de forma clara, a força da mulher magre-
bina, africana e muçulmana com seu próprio exemplo ao desafiar
o patriarcalismo global.
Fazendo um paralelo com a afirmação de Clifford Geertz, que
sugeriu que os marroquinos tomam sua identidade emprestada de

1 Doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo (USP) e pesquisadora de pós-
doutorado do Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais (NUPRI-USP).
2 O diacrítico ou vogal curta do idioma árabe que tem o som de “i”, é, muitas vezes, transliterado
usando-se a letra “e”. No próprio website de Mernissi, a grafia com o “e” foi a escolhida para
Fatema. Neste texto, optamos por manter a grafia deste modo e não como Fatima, usado por
editoras do mundo anglófono. As referências bibliográficas, contudo, respeitarão a opção das
editoras.

143
IntelectuaIs das áfrIcas

seu entorno3, Mernissi fez o mesmo em relação à temática com a


qual trabalhou. Encontrou no próprio ambiente doméstico, uma
casa de classe média da cidade de Fez, o ponto de partida para
entender o papel subalterno das mulheres na sociedade árabe-
islâmica. Retirou de sua infância reclusa com outras parentes do
sexo feminino em um harém a pergunta que se tornaria um norte
não somente para seu trabalho acadêmico, mas também para seu
ativismo: por que as mulheres não possuem os mesmos direitos
dos homens?
Em busca das respostas, promoveu o debate em duas dimen-
sões principais. Na primeira delas, questionou o discurso dominan-
te, na medida em que se insurgiu contra a diferenciação entre os
sexos proposta na legislação islâmica, subvertendo a interpretação
tradicional dada a ela. Ainda que a religião conceda privilégios
aos homens, argumentou, não há indicações inquestionáveis nos
textos religiosos que justifiquem uma posição de subordinação às
mulheres. A segunda dimensão empregada pela socióloga foi dar
voz a quem ela se propôs a estudar. Por meio do trabalho de campo
e de sua própria experiência como mulher muçulmana, esmiuçou
costumes e atitudes de suas conterrâneas, sempre questionando
premissas tradicionais com o objetivo de demonstrar que a igual-
dade não é apenas uma necessidade social, mas uma demanda da
religião que se instalou na região há cerca de 14 séculos.
Mernissi foi além de uma abordagem meramente sociológica
ou jurídica sobre o tema. Tornou-se uma espécie de tradutora
intercultural do universo feminino do mundo árabe-islâmico, não
apenas para seus próprios conterrâneos, além de magrebinos e
africanos, mas para aqueles de outras tradições, em especial os
provenientes do Ocidente4. Procurou entender os desafios da
modernidade, entre eles o respeito à liberdade de expressão, o
individualismo e a reconciliação com os poderes coloniais. Movida
3 GEERTZ, Clifford. O saber local. Novos ensaios em antropologia interpretativa. Petrópolis: Editora
Vozes, 1997, p. 102.
4 Interessante notar que em árabe, maghrib significa Ocidente, pois ele situa-se a oeste da Península
Arábica, mais precisamente “lugar onde o sol se põe”.

144
IntelectuaIs das áfrIcas

pela curiosidade de seus colegas europeus e norte-americanos,


especialmente após realizar viagens para promover seus livros,
esforçou-se em desmistificar a imagem da mulher árabe-muçulmana
e os supostos símbolos da subordinação feminina como o harém,
o véu e a própria legislação islâmica.
Fatema Mernissi nasceu na cidade de Fez, na região centro-
norte do Marrocos, no ano de 1940, período em que a região
ainda era um protetorado dividido entre a França e a Espanha.
Integrante de uma família de classe média urbana, frequentou a es-
cola corânica, assim como as demais crianças de lares tradicionais.
Lá aprendeu a língua árabe clássica e os principais fundamentos
do Islã. Ela mesma afirmou que teve “uma boa e sólida educação
islâmica”5, o que se refletiria em seu rigor ao tratar a temática
religiosa. Filha e neta de mulheres iletradas, que não tiveram a
oportunidade de frequentar uma escola, Mernissi fez parte de uma
geração de marroquinas que se beneficiou da abertura promovida
para a educação feminina, pouco antes da independência do Mar-
rocos, ocorrida em 1956. Concluiu a graduação em Ciência Política
na Universidade Mohammed V, considerada a principal do país,
localizada na capital, Rabat, e seguiu para a França, onde trabalhou
por um breve período como jornalista e dedicou-se ao mestrado.
Prosseguiu seus estudos nos Estados Unidos, na Universidade de
Brandeis, onde obteve o título de doutora em Sociologia, em 1973.
Neste período, casou-se com o escritor ganês Ayi Kwei Armah, de
quem viria a se divorciar anos mais tarde6. Ao voltar ao Marrocos,
lecionou disciplinas como Sociologia da Família e Metodologia da
Sociologia na Universidade Mohammed V. Também se tornou a
mais reconhecida entre os pesquisadores do Institut Universitaire
de Recherche Scientifique, centro ligado à universidade7.

5 MERNISSI, Fatema. Sultanes Oubliées. Paris: Editions Albin Michel S.A, 1990, p. 26.
6 FOX, Margalit. Fatema Mernissi, a founder of Islamic Feminism, dies at 75. The New York
Times. Nova York, 9 dez 2015. Acesso em: 1 fev 2016. Disponível em: http://www.nytimes.
com/2015/12/10/world/middleeast/fatema-mernissi-a-founder-of-islamic-feminism-dies-at-75.
html?_r=2
7 RASSAM, Amal. Fatima Mernissi. In: The Oxford Encyclopedia of the Modern Islamic World. New
York: Oxford University Press, 1995, p. 93.

145
IntelectuaIs das áfrIcas

A própria trajetória acadêmica da socióloga marroquina já


demonstra, desde o início, sua principal marca, a busca pela igual-
dade. Mesmo entre mulheres europeias e norte-americanas, estudar
e morar sozinha no exterior nas décadas de 1960 e 1970 não era
algo comum. E esse comportamento ousado se estendeu para
outras esferas de sua vida, em especial para sua obra e ativismo.
Mernissi recusou-se a seguir a tendência de outras contemporâneas
de secularizar a questão de gênero, que acaba por desprezar a im-
portância da contribuição cultural das sociedades tradicionais e da
singularidade da inserção das religiões nesse contexto. Ao mesmo
tempo, demonstrou que a tradição deveria ser melhor discutida
dentro da própria sociedade.

Qualquer homem que acredite que uma muçulmana que


luta por sua dignidade e direito à cidadania estaria necessa-
riamente se excluindo da umma [comunidade de muçulma-
nos] e seria vítima de uma lavagem cerebral da propaganda
ocidental é um homem que não compreende sua própria
herança religiosa, a sua própria identidade cultural.8

Ao contrário de outras proeminentes ativistas feministas, mui-


tas delas do próprio mundo árabe, como a médica egípcia Nawal
el Saadawi9, por exemplo, Mernissi não se afastou da religião para
combater a privação de direitos que muitas sociedades muçul-
manas impõem à metade de seus cidadãos. Ao contrário. Tentou
combater a subordinação feminina usando como arma os próprios
ensinamentos ligados ao Islã, especialmente ao expor exemplos
de mulheres muçulmanas que, assim como ela, se destacaram por
desafiar o mundo patriarcal especialmente no campo da política.
8 Tradução livre da autora para: “Any man who believes that a Muslim woman who fights for her
dignity and right to citizenship excludes herself necessarily from the umma and is a brainwashed
victim of Western propaganda is a man who misunderstands his own religious heritage, his own
cultural identity” (MERNISSI, Fatima. The Veil and the Male Elite. A Feminist Interpretation of
Women’s Rights in Islam. Cambridge, Massachusetts: Perseus Books, 1991,p. viii)
9 Nawal el-Saadawi (1931) é uma psiquiatra e escritora egípcia, mais conhecida pela sua atuação
feminista. Autora premiada de inúmeras obras que tratam da condição da mulher no Egito,
Saadawi chegou a ser presa em 1981, durante o governo Anwar el-Sadat. Devido ao seu ativismo
– ela é contrária ao ensino religioso nas escolas estatais – foi ameaçada de morte no início da
década de 1990, e por isso exilou-se temporariamente nos Estados Unidos.

146
IntelectuaIs das áfrIcas

Em um de seus esforços em apontar a incoerência do discurso


religioso sobre a necessidade de criar um fosso entre ambos os
sexos, sua face acadêmica se uniu ao de ativista. Mernissi defendeu
a candidatura de Benazir Bhutto, primeira mulher a liderar um país
de maioria muçulmana no mundo contemporâneo, ao ser eleita em
1988 para o cargo de primeira-ministra no Paquistão. A socióloga
marroquina alertou os detratores de Bhutto que na história islâmica
contabilizavam-se pelo menos 15 líderes políticas do sexo feminino,
tanto da vertente xiita como da sunita10, fato pouco conhecido pelos
fiéis. Alegou, portanto, que a própria história islâmica não baliza
o discurso radical de que mulheres não podem ocupar cargos de
chefe de Estado ou de governo em um país muçulmano11 – alegação
levantada pela oposição somente após a vitória de Bhutto nas urnas.
A opressão das mulheres muçulmanas não seria um dado espe-
cífico de sua cultura, conclusão que convergiu com o pensamento
da egípcia Saadawi. Mernissi esclarece que não há muita diferença
entre as três grandes religiões de livros revelados: “pois o Islã não é
mais repressivo do que o Judaísmo ou o Cristianismo”12. Saadawi13,
da mesma forma, sempre se mostrou enfática ao afirmar que além
de ser um dado compartilhado entre outras culturas, é também
resultado de conflitos existentes entre classes e gênero. Por outro
lado, enquanto Saadawi defendeu o abandono da religião para
reverter a condição inferior da mulher na sociedade, a socióloga
marroquina trilhou um caminho diferente, ainda mais espinhoso.
Optou por desafiar o establishment religioso em seus próprios
termos, ao acusá-lo de promover uma interpretação equivocada
dos fundamentos do Islã relativos ao direito da família. Preferiu
combater a desigualdade dentro da esfera religiosa, invadindo uma
seara extremamente fechada e masculina.
10 O sunismo e o xiismo são as duas principais correntes do Islã. Os sunitas são maioria e seguem a
Sunnat Annabi (“tradição do Profeta”). O cisma surgiu devido à discordância em relação à sucessão
de Muhammad anos após a sua morte. Os fiéis se dividiram entre os Shi’atu ‘Ali (partidários de
Ali, os xiitas), que defendiam que os líderes deveriam ser familiares do Profeta, e os que eram
favoráveis aos companheiros mais próximos do Profeta (sunitas).
11 MERNISSI, Fatema. Sultanes Oubliées. Paris: Editions Albin Michel S.A, 1990, p. 1-3.
12 MERNISSI, 1991, p. vii.
13 SAADAWI, Nawal el. A Daugther of Isis. London: Zed Books, 1999.

147
IntelectuaIs das áfrIcas

A obra de Mernissi não é previsível e nem linear. Pode ser


dividida em pelo menos duas fases principais. Em seus primeiros
livros e artigos, principalmente aqueles publicados na década de
1970 e 1980, demonstrou uma visão crítica em relação ao papel da
religião na questão de gênero. Durante esse período, sua produção
acadêmica mostrou-se mais calcada não apenas na questão da di-
ferenciação dos sexos, mas também nas divisões sociais. Criticou a
falta de políticas estatais para atacar as desigualdades e denunciou
o impacto delas sobre as mulheres14. Os textos e obras posteriores,
por outro lado, destacam-se por uma maior adesão à legitimidade
religiosa, principalmente por meio de um esforço de realizar uma
nova exegese das principais fontes da jurisprudência islâmica.
Nesta fase, mais duradoura, a socióloga marroquina preferiu ata-
car as bases do discurso religioso, questionando a interpretação
hegemônica ao realizar uma sólida discussão sobre o contexto
em que as revelações foram feitas15. Em ambas as fases, contudo,
houve uma continuidade: ela descartou a necessidade de importar
qualquer outro modelo para dirimir a desigualdade entre homens
e mulheres na sociedade árabe-islâmica da atualidade.
Ao mesmo tempo, Fatema Mernissi não deixou de lado outras
questões candentes para uma estudiosa do mundo árabe e africano.
Abordou o crescente ativismo islâmico e o impacto das TVs a cabo.
Os temas, mais uma vez, partiram de suas próprias interações com
membros de sua família, amigos, pessoas com as quais travava
conversas –muitas vezes reproduzidas em artigos e prefácios de
seus livros acadêmicos –como em Islam and Democracy e The Veil and
the Male Elite– e nas obras voltadas para o público em geral –como
Sonhos de Transgressão e Sheherazade goes West. Sua preocupação
em entender as transformações que ocorriam em seu entorno e
trazer formas de influenciar a sua mudança foram características
constantes em sua atuação como intelectual.

14 RHOUNI, Raja. Secular and Islamic Feminist. Critiques in the Work of Fatima Mernissi. Leiden:
Brill, 2010.
15 Ao conhecer o período, as circunstâncias e motivações as quais cada revelação foi feita ao Profeta
Muhammad, é possível compreender melhor seus significados.

148
IntelectuaIs das áfrIcas

MUITO ALÉM DO VÉU

A principal temática com a qual Fatema Mernissi se compro-


meteu foi, sem dúvida, a que trata da desigualdade feminina no
mundo árabe islâmico. A questão foi explorada com profundidade
em seu primeiro livro, Beyond the Veil: Male-Female Dynamics in a
Muslim Society16 (Além do Véu: dinâmicas masculino-femininas
em uma sociedade muçulmana), lançado em 1975. Nele, Mernissi
questiona como reverter a submissão das mulheres, consideran-
do que a legislação de família ainda é dominada pelos ditames e
tradições da jurisprudência religiosa17, mesmo no Marrocos, onde
os julgamentos ocorrem em tribunais estabelecidos pelo Estado e
não por um corpo de juristas religiosos como acontece em outros
países muçulmanos como a Arábia Saudita.
A obra é fruto de um período em que a sociedade local enfren-
tava novos desafios, ainda presentes, como a maior inserção das
mulheres no sistema educacional e o consequente crescimento da
participação feminina no mercado de trabalho. Questões como a
segregação espacial entre homens e mulheres, planejamento familiar
e sexualidade não poderiam mais se manter estáticas. Para discutir
tais problemáticas, a socióloga realizou trabalho de campo em seu
país a fim de esclarecer a natureza das relações entre ambos os se-
xos. “Essa questão básica nos preocupa a todos e é particularmente
vital para mim, uma mulher vivendo em uma sociedade muçulmana”,
afirmou ela18. A mudança dos tempos é indicada pelas entrevistas
realizadas e pelo material coletado pela socióloga no início da década
de 1970 para sua tese de doutoramento. Mernissi entrevistou cerca
de 100 mulheres e analisou 400 cartas enviadas para um serviço
de aconselhamento administrado pelo governo. Para as mulheres
entrevistadas na casa dos 50 anos, a segregação entre homens e

16 Uma edição revisada da obra foi lançada em 1987, com uma nova introdução, utilizada neste
texto.
17 Em 2004, uma grande modificação foi realizada na legislação da Família no Marrocos, a Muda-
wana. A mudança é discutida na página 156.
18 MERNISSI, Fatima. Beyond the Veil. Male-Female Dynamics in Modern Muslim Society. Revised
Edition. Bloomington: Indiana University Press, 1987, p. 96

149
IntelectuaIs das áfrIcas

mulheres era algo considerado normal, uma parte natural da vida.


Para as entrevistadas de 30 anos, isso era visto como uma opção e
não um fato institucionalizado. Mas, como a própria sociedade não
oferecia modelos aceitáveis para a interação entre os sexos, o encon-
tro entre ambos causava ansiedade. A análise das cartas demonstrou,
segundo a autora, que a maior preocupação entre elas era em relação
à admissibilidade ou não, do ponto de vista religioso, de contatos
mais íntimos com homens19. Apesar de a interação entre ambos os
sexos estar crescendo no Marrocos, a socióloga admitiu que ainda era
um fenômeno incomum nos anos de 1970 e a segregação absoluta
continuava sendo a regra em muitas partes do país.
Mernissi destacou duas dimensões da questão. Uma delas era
evidentemente o fator religioso, que muitas vezes barrava a dis-
cussão. Mas a reversão da subordinação feminina também passava
pela esfera econômica.

As pessoas estão inclinadas a ver a liberação da mulher


como um problema espiritual e não material. Nós vimos que
isso é verdade no caso do Islã, em que mudanças na condi-
ção das mulheres foram vistas pela literatura muçulmana
masculina como envolvendo apenas problemas religiosos.
Muçulmanos argumentam que mudanças na condição
feminina são ataques diretos aos desígnios e às ordens de
Allah. Mas as mudanças no século XX, principalmente em
sociedades socialistas, demonstraram que a liberação é, em
primeiro lugar, uma questão de alocação de recursos. Uma
sociedade que decide liberar as mulheres, não apenas deve
proporcionar empregos a elas, mas também tomar para si
a responsabilidade de fornecer creche e alimentação para
todos os trabalhadores, não importando o sexo.20

19 Ibidem, p. 97 e 99.
20 Tradução livre da autora para: “People tend to perceive women’s liberation as a spiritual and not
a material problem. We have seen this to be true in the case of Islam, where changes in condi-
tions for women were perceived by Muslim male literature as involving solely religious problems.
Muslims argued that changes in women’s conditions were a direct attack on Allah’s realm and
order. But changes in the twentieth century, mainly in socialist societies, have showed that the
liberation is primarily a question of the allocation of resources. A society that decides to liberate
women not only has to provide them with Jobs, but also has to take upon itself the responsibility
for providing childcare and food for all workers regardless of sex” (Ibidem, p. 17 e 33).

150
IntelectuaIs das áfrIcas

Por outro lado, o modelo externo não se mostrava uma al-


ternativa a ser seguida. Mernissi acreditava que a visão ocidental
preconizava uma inferioridade biológica da mulher em relação aos
homens. Segundo ela, no Islã não existe tal crença, mas o contrário.
As mulheres são vistas como “seres poderosos e perigosos”. E, por
isso, as instituições criadas pela religião como o véu, a poligamia,
o repúdio, a segregação sexual, podem ser vistas como estratégias
criadas pelos homens para controlá-las. Em outras palavras: “A
ordem social, então, serve como uma tentativa de subjugar seu
poder e neutralizar seus efeitos desordenados”21. Para mudar esse
contexto, a socióloga acreditava na necessidade de o Estado de-
sempenhar um papel ativo no rompimento da tradição. “O futuro
da dinâmica homem-mulher depende muito da forma com que os
Estados modernos lidam com a readequação dos direitos sexuais
e a reavaliação do status sexual”, afirmou22. Essas mudanças de-
veriam atingir um artigo específico do Código de Status Pessoal
marroquino, o Mudawana, que definia o homem como o único
provedor da família, responsável pelo sustento da esposa e dos
filhos. A mulher, por sua vez, era limitada ao papel de reprodutora
e dona de casa. Mernissi defendeu uma mudança no estatuto, a
fim de contemplar os avanços da sociedade, impulsionadas por
mudanças promovidas pelo próprio Estado.

Os detentores do poder nos países árabes, não importando


sua composição política, estão condenados a promover a
mudança, e eles estão conscientes disso, não importando
o quanto eles alegarem preservar o ‘passado glorioso’
como caminho para a modernidade. ... O problema que as
sociedades árabes enfrentam não é mudar ou não mudar,
mas a velocidade em que vão mudar.23
21 Tradução livre da autora para: “The social order then appears as an attempt to subjugate her
power and neutralize its disruptive effects” (Ibidem, p. 17 e 33).
22 Tradução livre da autora para: “The future of male-female dynamics greatly depends on the way
modern states handle the readjustment of sexual rights and the reassessment of sexual status”
(Ibidem, p. 171).
23 Tradução livre da autora para: “The holders of power in Arab countries, regardless of their po-
litical make-up, are condemned to promote change, and they are aware of this, no matter how
loud their claim to uphold the ‘prestigious past’ as the path to modernity. ... The problem Arab
societies face is not whether or not to change, but how fast they change” (Ibidem, p. 176).

151
IntelectuaIs das áfrIcas

A socióloga especulou que as mudanças no mundo islâmico


serão ainda mais rápidas do que no mundo ocidental. E elas serão
alavancadas pelas mulheres. Segundo Mernissi, as muçulmanas
estão em um diálogo silencioso, mas explosivo, com uma frágil
classe dominante, que não tem como barrar esse processo de
transformação da sociedade. Tal classe deveria perceber rapida-
mente o papel vital das mulheres na alavancagem do crescimento
econômico dos países árabes e abrir espaço para que elas possam
atuar no mundo do trabalho extra doméstico. Mas, se a importância
da atuação feminina não for entendida como um elemento central
em um futuro soberano, a elite estará desencaminhando seus pa-
íses e a si próprios. Ou seja, a manutenção da exclusão feminina
impede, inclusive, o avanço econômico. Tal afirmação se mostra
baseada em evidências concretas: durante o conflito Irã-Iraque, por
exemplo, a entrada de muitas mulheres no mercado de trabalho
foi vital para a manutenção da economia e do esforço de guerra
em ambos os países.

A ELITE MASCULINA

Em Beyond the Veil, Mernissi realizou um ensaio do que viria


a ser seu principal interesse: analisar e refutar o papel relegado à
mulher na jurisprudência islâmica. Em seu livro mais impactante,
Le harem politique. Le Prophète et les femmes24 (O harém político. O
Profeta e suas mulheres), de 1987, foi esse o seu principal método
para derrubar a ideia de que o Islã seria o principal entrave para
que as mulheres atingissem igualdade de direitos. Na obra, Mernissi
parte de novas premissas para conjecturar o porquê de os direitos
femininos serem tão escassos em países de maioria muçulmana. A
religião islâmica é contrária aos direitos da mulher? Seria neces-
sário importar do chamado Ocidente valores como o respeito aos
direitos humanos e à cidadania plena? “Para defender a violação

24 A tradução para o inglês, usada neste capítulo, The Veil and the Male Elite: A Feminist Interpretation
of Islam, foi publicada em 1991 e tem um prefácio especialmente escrito pela própria socióloga
para esta versão.

152
IntelectuaIs das áfrIcas

dos direitos das mulheres, é necessário voltar para as sombras do


passado” 25, afirmou categoricamente.
A importância de analisar os textos religiosos se dá a fim de
verificar o que “todos sabem, mas ninguém realmente pesquisa,
com exceção das autoridades no assunto: os mullahs e os imãs”
26
. A lei islâmica tem como base, além do Alcorão, os hadiths, re-
latos chancelados por especialistas como verdadeiros de ações e
dizeres do Profeta Muhammad. Mernissi dedicou-se à análise dos
mais controversos que tratavam de questões relativas as mulheres.
Ela desafiou as interpretações tradicionais feitas por especialistas,
argumentando que, ao contrário do que parece, a consolidação da
religião “revolucionou o tratamento dado às mulheres com novas
leis”. Sabe-se que a prática do infanticídio feminino, por exemplo,
comum na chamada Jahiliyyah, o período pré-islâmico, foi abolida
com a ascensão do Islã.
A atuação das mulheres no tempo do Profeta e pouco depois
de sua morte é destacada por Mernissi. Duas das esposas de
Muhammad, Aisha e Umm Salama são descritas como mulheres
atuantes, inteligentes e independentes. Aisha, por exemplo, foi
a primeira mulher muçulmana a se lançar e assumir uma carreira
política. Foi ela quem liderou a primeira resistência armada contra
um califa, Ali, o segundo sucessor do profeta, que resultou na Ba-
talha do Camelo, em 65827. Aisha era conhecida pela boa memória
e foi a fonte de centenas de hadiths, mais tarde incorporados pela
jurisprudência islâmica.
Mernissi defende que no período em que Muhammad era vivo,
as mulheres tinham maior liberdade. Mas ele teria sucumbido a
pressões de seus companheiros para diminuir a atuação delas. O
ataque à posição das mulheres teria se solidificado sob o quinto

25 Tradução livre da autora para: “To defend the violation of women’s rights it is necessary to go back into
the shadows of the past” (MERNISSI, Fatima. The Veil and the Male Elite. A Feminist Interpretation
of Women’s Rights in Islam. Cambridge, Massachusetts: Perseus Books, 1991, p. vii).
26 Tradução livre da autora para: “everybody knows but no one really probes, with the exception
of the authorities on the subject: the mullahs and the imams” (Ibidem, p. 2),
27 Ibidem, p. 34.

153
IntelectuaIs das áfrIcas

califa, Mu’awiyah, no início do que define como período absolutista,


quando houve o estabelecimento da sucessão do califado por via
dinástica. Se, de um lado, esse período marcou o desaparecimen-
to do “espírito aristocrático tribal”, por outro, a experiência de
igualdade buscada entre os primeiros muçulmanos e estabelecida
pelo profeta esvaiu-se. As mulheres seriam condenadas a viver com
o hijab, o lenço que encobre os cabelos femininos, um resquício,
segundo ela, da guerra civil travada entre medineneses e mecanos,
ainda quando Muhammad era vivo28 e pela pressão dos próprios
companheiros do Profeta. Ou seja, Fatema Mernissi afirma que os
próprios seguidores do Profeta subverteram e contrariaram seus
esforços de criar igualdade entre os sexos, pressionando-o a colocar
o véu em suas próprias mulheres, por exemplo.
Ao analisar vários hadiths e o contexto em que foram revelados
em seu livro, a socióloga marroquina levanta dúvidas sobre a vali-
dade das interpretações que se sobressaíram na tradição islâmica.
Os especialistas, que formam uma elite masculina, teriam, portanto,
promovido uma interpretação predominantemente patriarcal e
misógina, segundo ela. Ao mesmo tempo, as revelações favoráveis
às mulheres foram pouco divulgadas. Por isso, Mernissi afirma que
não há sustentação jurídica para muitas das deturpações feitas em
relação a direitos básicos das mulheres. “Você encontra no Alcorão
centenas de versos que apoiam os direitos das mulheres de uma
forma ou de outra e somente alguns poucos que não o fazem. Eles
capturaram esses poucos e ignoraram os outros.”29
A socióloga insiste em sua obra que uma leitura mais progres-
sista da religião é o melhor caminho para a resolução do fosso
que separa homens e mulheres. Uma solução externa à religião ou
que viesse de outra matriz cultural não seriam adequadas. Nesse
sentido, foi categórica:

28 Ibidem, p. 191.
29 Tradução livre da autora para: “You find in the Koran hundreds of verses to support women’s
rights in one way or another and only a few that do not. They [male leaders] have seized on those
few and ignored the rest” (Ibidem, p. 2).

154
IntelectuaIs das áfrIcas

Nós, mulheres muçulmanas, podemos andar no mundo


moderno com orgulho, sabendo que a busca por dignidade,
democracia e direitos humanos, pela plena participação
nos assuntos políticos e sociais de nosso país, não advêm
de valores importados do Ocidente, mas são uma parte
verdadeira da tradição muçulmana. Disso eu estou certa
depois de ler os trabalhos dos especialistas mencionados
acima e muitos outros. Eles fornecem evidências para que
eu sinta orgulho de meu passado muçulmano para que eu
me sinta fundamentada ao valorizar as melhores dádivas
da civilização moderna: direitos humanos e a satisfação de
uma cidadania plena.30

Sua abordagem, além de controversa entre os próprios


especialistas em direito islâmico, não esteve longe do dissen-
so mesmo entre os meios feministas e acadêmicos. Uma das
principais críticas que Fatema Mernissi sofreu foi em relação à
própria metodologia que ela utilizou. Questionou-se a validade
de empreender uma nova revisão feminista da jurisprudência,
por reproduzir e, portanto, reforçar o argumento dos conser-
vadores ao defender a premissa de que há uma verdade conti-
da na religião.31 Para Raja Rhouni, professora da Universidade
Chouaib Doukkali, em El Jadida, no Marrocos, sua conterrânea
teria deixado de lado uma oportunidade para repensar “a palavra
divina” propriamente dita, a fim de transcender as limitações
que a religião impõe.

Ao revisar o conceito de ‘Palavra de Deus’ ou de ‘revelação’,


especialistas acadêmicos podem considerar esse andro-
centrismo como histórico e contextualizado em lugar de
eterno e divino. Isso é central para o projeto das feministas
30 Tradução livre da autora para: “We Muslim women can walk into the modern world with pride,
knowing that the quest for dignity, democracy, and human rights, for full participation in the
political and social affairs of our country, stems from no imported Western values, but is a true
part of the Muslim tradition. Of this I am certain, after reading the works of those scholars
mentioned above and many others. They give me evidence to feel proud of my Muslim past, and
to feel justified in valuing the best gifts of modern civilization: human rights and the satisfaction
of full citizenship” (Ibidem, p. 34).
31 ZAIZAFOON, Lamia Ben Youssef. The Production of the Muslim Woman: Negotiating Text, History
and Ideology. Lanham: Lexington Books, 2005, p. 22.

155
IntelectuaIs das áfrIcas

islâmicas que não querem comprometer nem a sua fé nem


o seu ideal de igualdade entre os gêneros.32

É fato que Mernissi tentou conciliar sua fé com seus ideais de


igualdade, mas demonstrando que isso poderia ser possível com um
outro olhar sobre os textos clássicos. A forma com que promoveu
a discussão, nos estritos termos jurídicos da legislação islâmica e
criticando não os dogmas da religião, mas seus intérpretes, poupou-
a dos ataques violentos de ativistas islâmicos e dos tradicionalistas.
Ao mesmo tempo, apesar de criticadas por Mernissi, as próprias
feministas seculares também devem reconhecer o esforço prático
da socióloga em discutir o que elas consideram as posições mais
progressistas. De todo modo, a intelectual marroquina conseguiu
dialogar com os dois extremos do espectro com legitimidade,
mesmo não aderindo a nenhum deles.
O esforço de Fatema Mernissi, reconhecida internacionalmen-
te desde a década de 1990 como uma das grandes especialistas
no debate sobre gênero, resultou em inspiração para que as
marroquinas conseguissem promover uma reforma abrangente
na legislação referente ao código da família, a Mudawana, por
meio de uma campanha para obter um milhão de assinaturas em
199233 - a reforma sairia somente em 2004. O código, que havia
sido instituído em 1956 com base na legislação islâmica, regula
assuntos relativos a casamento, divórcio, custódia de filhos,
poligamia e herança. Entre as principais modificações realizadas
estão a retirada dos dispositivos que tratam da obrigatoriedade
da obediência ao marido e procriação por parte das mulheres
casadas e o estabelecimento de direitos e obrigações recíprocos
entre marido e esposa. A idade para o casamento legal subiu de
15 anos para 18 anos entre as mulheres. Mas apesar de todas es-

32 Tradução livre da autora para: “By revisiting the concept of the ‘Word of God’ or ‘revelation,’
scholars can consider this androcentrism as historical and contextual rather than eternal and
divine. This is central to the project of Islamic feminists who compromise neither their faith nor
the ideal of gender equality” (RHOUNI, op. cit., p. 252.).
33 KEDDIE, Nikki R. Women in the Middle East: Past and Present. Princeton: Princeton University
Press, 2007, p. 145.

156
IntelectuaIs das áfrIcas

sas mudanças positivas, assuntos controversos como a poligamia


foram mantidos34.
Mernissi manteve-se fiel à análise das fontes clássicas, mesmo
ao discutir questões atuais, como a conciliação entre Islã e demo-
cracia, uma questão que se colocou especialmente após a Guerra
do Golfo (1990-1). “Se tivéssemos um entendimento verdadeiro de
nosso passado, nós nos sentiríamos menos alienados pelo Ocidente
e sua democracia”35, afirmou ela. Tal opção foi bastante questionada,
na medida em que, segundo os críticos, requentava discussões an-
teriormente feitas por outros intelectuais, mesmo ocidentais como
Montgomery Watt, sem o devido crédito36. A crítica se refere espe-
cialmente ao livro Islam and Democracy, de 199237, que discorre sobre
uma série de medos que estariam impedindo que o mundo islâmico
superasse seu estado de estagnação atual. Entre esses temores ela
lista a democracia, o livre pensamento, os imãs, o próprio Ocidente.
Na obra, a autora destaca o ataque feito tanto por governos
autoritários como por oposicionistas ligados a movimentos ativistas
islâmicos contra a dimuqratiyya –palavra arabizada para democra-
cia38. Aqueles que controlam as decisões teriam transferido o medo
do Ocidente para a própria ideia de democracia a fim de manter seu
status quo. “Identificar democracia como sendo uma enfermidade
ocidental, enfeitando como um xador do estrangeirismo, é uma
operação estratégica que vale milhões de petrodólares” 39. Tal ope-
ração, contudo, fracassou fragorosamente, como demonstraram os
chamados por democracia nos protestos durante a própria Guerra
do Golfo40 e nas revoltas que varreram o mundo árabe em 2011.
34 HURSH, John. Advancing Women’s Rights Through Islamic Law: the Example of Morocco. In
Berkeley Journal of Gender, Law & Justice. Vol. 27, Issue 2, pp. 252-305. Summer 2012. Acesso em:
12 mar. 2016. Disponível em: http://scholarship.law.berkeley.edu/bglj/vol27/iss2/3, p. 262-3.
35 Tradução livre da autora para: “If we had a true understanding of our past, we would feel less
alienated by the West and its democracy” (MERNISSI, 2002, p. 20).
36 ELMIKAWY, Noha. Review of Islam and Democracy: Fear of the Modern World. In: Islamic Law and
Society. Vol. 2, No 1, Brill, 1995, pp. 105–8. Acesso em: 15 abr 2016. Disponível em: http://www.
jstor.org/stable/3399396, p. 105.
37 A edição usada neste texto é uma versão atualizada de 2002, que tem um novo prefácio.
38 MERNISSI, 2002, p. 54-5.
39 Tradução livre da autora para: “Identifying democracy as a Western malady, decking it out in the
chador of foreignness, is a strategic operation worth millions of petrodollars” (Ibidem, p. 15).
40 Ibidem, p. 16.

157
IntelectuaIs das áfrIcas

O HARÉM E AS FRONTEIRAS

Se, por um lado, Fatema Mernissi esforçou-se em criticar as


bases de dentro de sua própria sociedade, por outro ela advogou
no fórum externo em favor das muçulmanas, no sentido de reverter
a imagem de passividade e subserviência. O trânsito entre dois
mundos, o majoritariamente muçulmano e o majoritariamente
cristão –para não cairmos na dicotomia Oriente/Ocidente–, foi
outra das características mais marcantes de sua obra. E isso não
ocorreu apenas em seus textos, mas também por meio de sua
inserção nos círculos feministas franceses e no mundo acadêmico
norte-americano. A socióloga tornou-se uma destacada tradutora
do mundo islâmico para o mundo judaico-cristão. Em um de seus
mais conhecidos livros, Dreams of Trespass – Tales of a Harem Girlhood,
traduzido para o português como Sonhos de Transgressão: minha vida
de menina em um harém41, a socióloga trata de uma das maiores –
porque não dizer? – curiosidades latentes entre não-muçulmanos:
o harém, a “imagem-símbolo por excelência islâmica”42.
Mernissi explica que há dois tipos de harém. O primeiro, que
ela chama de imperial, teve início com a expansão islâmica sob
o Califado Omíada43 e se notabilizou mais tarde como uma ala
palaciana em que se segregavam esposas e concubinas de sultões
do Império Otomano44. O segundo, o doméstico, reúne famílias
extensas, mesmo com casais monogâmicos, mas mantém a tradi-
ção de isolar as mulheres e permanece usual mesmo após 1909,
41 MERNISSI, Fatima. Sonhos de Transgressão: minha vida de menina num harém. São Paulo: Companhia
das Letras, 1996.
42 SOARES, Marina J. Erótica sem véu. O corpóreo-sexual na sociedade árabe-islâmica clássica (XII-
XII). Dissertação de mestrado. Programa de Língua, Literatura e Cultura Árabe, Faculdade de
Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, 2009, p. 57.
43 O Califado Omíada (661-750) foi o segundo califado islâmico após a morte do Profeta Muham-
mad. Sob este governo, que tinha como líder um califa – sucessor do Profeta Muhammad –, o
território muçulmano se expandiu para muito além da Península Arábica. A capital política foi
transferida de Meca para Damasco.
44 O Império Otomano (1299-1922) surgiu a partir da unificação de grupos originários da Anatólia.
Em 1453, derrubou o Império Bizantino ao conquistar Constantinopla. Seu auge se deu entre
os séculos XVI e XVII, quando seu território chegou a abranger territórios do Leste Europeu,
Oriente Médio, Norte da África, e Cáucaso. Os governantes otomanos foram líderes políticos
do mundo islâmico (sultões), mas muitos também se nomearam califas, título que confere legi-
timidade religiosa.

158
IntelectuaIs das áfrIcas

quando ocorreu a queda do último sultão45. Por muitos séculos,


um harém sensualizado vem povoando desde obras literárias e
artísticas, especialmente telas de pintores românticos, a outras
manifestações do imaginário europeu. A ideia de sensualidade
oriental, incluída na camada de doutrina erguida sobre o Oriente
à qual se refere Edward W. Said, em Orientalismo46, foi um objeto a
ser destrinchado por Mernissi a partir de suas viagens ao exterior. A
socióloga sentiu necessidade de explicar como era esse harém em
que passou sua infância, atendendo à curiosidade especialmente
de jornalistas norte-americanos e europeus sobre o cotidiano de
um harém típico marroquino enquanto divulgava seus livros.

Entretanto, para mim, não apenas a palavra ‘harém’ é um


sinônimo para família como uma instituição, mas também
nunca me ocorreria associá-la com algo jovial. Afinal, a
própria origem da palavra árabe ‘haram’, de onde a palavra
‘harém’ deriva, literalmente, a pecado, a fronteira perigosa
em que a lei sagrada e o prazer colidem. Haram é o que a lei
religiosa proíbe; o oposto é halal, o que é permitido. Mas,
evidentemente, ao atravessar a fronteira para o Ocidente,
a palavra árabe ‘harém’ perdeu sua margem perigosa. Se
não porque os ocidentais a associariam com euforia, com
a ausência de restrições? No harém deles, o sexo não tem
angústia. 47

Sonhos de Transgressão, à primeira vista, é uma autobiografia da


infância da própria escritora em um harém, esse espaço exclusivo
das mulheres. Mas, a intenção da autora foi ser mais didática do

45 Ibidem, p. 44.
46 SAID, Edward W. Orientalismo. O Oriente como invenção do Ocidente. São Paulo: Companhia
das Letras, 2007, p. 277.
47 Tradução livre da autora para: “Yet for me, not only is the word ‘harem’ a synonym for the family
as an institution, but it would also never occur to me to associate it with something jovial. After
all, the very origin of the Arabic word ‘haram,’ from which the word ‘harem’ is derived, literally
refers to sin, the dangerous frontier where sacred law and pleasure collide. Haram is what the
religious law forbids; the opposite is halal, that which is permissible. But evidently, when cross-
ing the frontier to the West, the Arabic word ‘harem’ lost its dangerous edge. Why else would
Westerners associate it with euphoria, with the absence of constraints? In their harem, sex is
anxiety-free” (MERNISSI, Fatima. Sheherazade goes West. Different Cultures, Different Harems.
New York: Washington Square Press, 2001, p.12-3).

159
IntelectuaIs das áfrIcas

que comprometida com sua trajetória. Dividiu o livro em várias his-


tórias que teriam ocorrido nos anos em que morou com sua família
estendida em uma grande casa em Fez. Mas ela avisa: somente o
primeiro capítulo está próximo da realidade. Nele, Fatema Mernissi
trata do que são hudud, que significa em árabe limites ou restri-
ções, e que no livro a autora apresenta como sendo uma “fronteira
sagrada”48. A autora discute brevemente como as fronteiras, sejam
elas as traçadas por franceses e espanhóis no Marrocos, ou pelos
homens em suas casas, são arbitrárias. Não saber quais eram as
fronteiras deixavam-na ansiosa. Por outro lado, saber quais são
esses limites tornou-se um objetivo de vida: “... procurar a fronteira
tornou-se a ocupação de minha vida. E me dá a maior aflição todas
as vezes que não consigo situar a linha geométrica que organiza
minha impotência”49. Provavelmente, trazia o que chamou de ha-
rém interiorizado: “a pessoa, sabendo o que era proibido, trazia
o harém marcado em seu íntimo”50.
O livro também é um pretexto para descrever o engajado papel
das mulheres na luta cotidiana pela felicidade dentro desse espaço
bastante limitado e repleto de regras, o harém. Mulheres, sendo
elas esposas, filhas, avós, sobrinhas, tias aplicam-se na transgressão
das regras, sejam elas a proibição de ouvir o rádio, ou olhar para
os vizinhos do sexo masculino pela varanda. Os limites estavam
colocados e respeitá-los resultaria em harmonia. Provavelmente,
esta era uma alegoria para o papel desempenhado pelas mulheres
marroquinas em sua sociedade: um desejo de avançar o sinal dos
limites impostos pela sociedade patriarcal.

Existe harmonia quando cada grupo respeita os limites


estabelecidos do outro; transgredir esses limites só pode
trazer como consequência angústia e infelicidade. No
entanto, as mulheres tinham um único sonho na cabeça o
tempo todo: transgredir. O mundo além dos portões era
sua obsessão. De manhã até à noite alimentavam fantasias
48 MERNISSI, 1996, p. 9.
49 Ibidem, p. 11.
50 Ibidem, p. 77.

160
IntelectuaIs das áfrIcas

de percorrer as ruas as quais não tinham acesso, enquanto


os cristãos continuavam atravessando o mar, portadores
da morte e do caos.51

O harém serviria para demarcar bem essa fronteira para todos.


No entanto, Mernissi descreve com mais vigor as transgressoras e
os criativos subterfúgios para colocar a transgressão em prática. O
capítulo “O Cavalo de Tamou”52 é dos mais sensíveis por demonstrar
que as mulheres marroquinas têm se insurgido contra a demarcação
de fronteiras, subvertendo a imagem orientalista de passividade.
Recorreu à história de uma mulher que perdeu quase tudo mas
permaneceu lutando. Trata-se da jovem Tamou, que em meados
da década de 20 atravessa sozinha a zona ocupada pelos inimigos
franceses para obter comida e medicamentos para os rebeldes
sitiados no Rif. A região montanhosa localizada na região norte
do território marroquino celebrizou-se por resistir ferozmente às
incursões dos ocupantes coloniais, mesmo depois da queda de
outras partes do Magrebe. A corajosa heroína sofre a perda dos
homens de sua família, o pai, o marido e também os dois filhos
pequenos. Mas luta para salvar os demais e enterrar seus entes com
dignidade, mesmo que isso exija uma longa e perigosa travessia a
cavalo com apenas um rifle espanhol.
A personagem Tamou era berbere, grupo étnico que habita
o Magrebe desde muito antes da chegada dos árabes no século
VII. A diferenciação entre ambos se encontra essencialmente nos
níveis linguístico e jurídico53. Como socióloga, Mernissi não poderia
deixar de abordar a discriminação sofrida por esta minoria, mas
isso ocorreu de forma bastante contida em sua obra acadêmica.
Apesar de responderem por pouco menos da metade da população
marroquina, os berberes não alcançaram o mesmo status que os
árabes possuem. O grupo tem como idioma o amazigh, que também
é língua oficial do país, mas é pouco encontrado nos níveis admi-
51 Ibidem, p. 9. Aqui ela se refere ao colonialismo europeu.
52 Ibidem, p. 64.
53 AIXELÁ, Yolanda. Mujeres en Marruecos. Un análisis desde el parentesco y el género. Barcelona:
Ediciones Bellaterra, 2000, p. 24.

161
IntelectuaIs das áfrIcas

nistrativo e educacional, além de não contar com muitos veículos


de comunicação, uma clara demonstração do papel secundário
relegado ao grupo étnico. Ou seja, apesar de ser uma minoria
bastante significativa dentro do território marroquino atual, os
berberes se veem alienados do Estado moderno. Tal discussão não
foi abraçada por Mernissi, assim como outra ainda mais candente
na sociedade marroquina: a questão saarauí.
Para ela, a divisão entre árabes e berberes durante a domina-
ção colonial foi utilitária, usada para criar um fosso entre ambos a
fim de que a conquista colonial se sucedesse com maior facilidade.
Acreditava que isso teria sido resolvido pelo nacionalismo árabe54.
A autora preferiu ignorar o tema com maior profundidade em sua
obra, não explorando as diferenças que os separam, nem as se-
melhanças que os unem. De qualquer forma, essas tensões ainda
não estão apaziguadas no Marrocos. Mernissi apoiou a adoção
da lei islâmica proposta pelos nacionalistas após a independência
marroquina com o objetivo de unir os árabes e os berberes, que
tinham suas próprias leis tradicionais. Durante o período colonial, a
legislação berbere foi valorizada, o que a socióloga considerou uma
forma de dividir a sociedade. Provavelmente, a mescla de ambas
as leis ou a própria discussão mais ampla sobre o tema tivesse um
impacto mais fecundo sobre os direitos das mulheres, vistos como
mais flexíveis entre a minoria berbere.
Se por um lado não abraçou as chamadas minorias étnicas,
por outro lado participou ativamente de questões como a alfabe-
tização feminina no meio rural. Preferiu dedicar-se à clivagem de
sexos e à relativa à população urbana/rural do que à questão árabe/
berbere. A segregação dos sexos e a própria existência do harém
é mais comum no meio urbano, onde as fronteiras estão mais cla-
ramente demarcadas e são vigiadas, revela a escritora em Sonhos
de Transgressão. Apesar de terem maior liberdade de movimento
no campo, isso não significa que as mulheres tenham ali melhores
condições de vida. Reconhecendo tal fato, a socióloga marroquina
54 MERNISSI, 1987, p, 16.

162
IntelectuaIs das áfrIcas

uniu-se, anos mais tarde, a um grupo de intelectuais para fundar o


movimento La Caravane Civic. O objetivo era aproximar as jovens
do campo de iniciativas que as incentivassem, e as suas famílias
também, a serem alfabetizadas. Por meio da distribuição de livros
e da difusão da informação de que tinham direito à educação, uma
garantia do Estado e incentivado pela própria religião, a socióloga
buscou empoderar suas conterrâneas. Segundo dados de 2006,
pelo menos 54,4% dos marroquinos acima de 10 anos que viviam
no campo não eram alfabetizados, enquanto esse número era de
27,2% nos centros urbanos. Na média nacional, os homens ficam
15,4 pontos à frente das mulheres. E quase a metade da população
feminina do Marrocos acima de 10 anos, ou 46,8% delas, são analfa-
betas, o que demonstra que o fosso ainda existe e continua sendo
grande entre ambos, com desvantagem para o lado feminino55.

REVOLUÇÃO E INFORMAÇÃO

Seguindo a trilha aberta pelo livro Islam and Democracy, Mernis-


si estendeu ainda mais o seu escopo ao voltar-se para um assunto
que considerou chave para entender as novas gerações árabes: o
impacto dos canais via satélite pan-árabes e as novas tecnologias
da informação. A discussão surgiu na esteira do avanço da globa-
lização, em que as comunidades locais e indivíduos teriam suas
vidas afetadas por forças econômicas e culturais. Nos países do
norte da África e do Levante, observou-se a profusão de antenas
parabólicas em lares comuns e a presença de aparelhos de TV em
locais públicos como cafés e restaurantes nas últimas duas déca-
das. Tais canais contrapõem-se às TVs estatais, comuns no mundo
árabe, que divulgam apenas o ponto de vista do regime local. A
socióloga, atenta às tendências nas mudanças comportamentais,
não poderia deixar de perceber e discutir a novidade.

55 UNESCO. Innovative Literacy and Post-literacy Project: Means of Socio-economic Empowerment


and Integration for Women in Morocco. Unesco, 2011. Acesso em: 10 fev 2016. Disponível em:
<http://www.unesco.org/uil/litbase/?menu=12&programme=68>.

163
IntelectuaIs das áfrIcas

Desta vez, contudo, deixou os textos clássicos de lado e


mirou as ruas para o trabalho empírico. Observou que as discus-
sões promovidas em programas de debates, bastante populares
como os do canal Al Jazeera, por exemplo, e nos noticiários
políticos, que não sofriam a mão pesada dos governantes, ao
contrário das TVs locais, promoveriam maior acesso a diferentes
pontos de vista56. Isso, segundo ela, contribuiu para profundas
modificações no diálogo familiar e para o avanço do papel das
mulheres na sociedade árabe. E, com o aumento da circulação de
informações e opiniões diversas, o resultado só poderia ser uma
mudança de paradigma. Ou seja, os debates globais, em especial
os que tangem o mundo de língua árabe, estariam impactando
os costumes das sociedades locais.

Historicamente, somente o rei e seus assessores tinham


informações e mais além disso era tudo rumor. Mas a
tecnologia nos trouxe acesso à informação. Em 1991, eu
comprei uma antena parabólica. Ela trouxe a CNN, mas
era o primeiro ano dos canais de TV por satélite árabes
e, repentinamente, todas as fronteiras entre privado e
público, entre palácio e rua, e todas as outras dicotomias
dissiparam-se. 57

A discussão foi abordada por Mernissi quase duas décadas


antes dos eventos que levaram às revoltas no mundo árabe que
ficaram equivocadamente conhecidas como “Primavera Árabe”58.
56 MERNISSI, Fatima. Al Jazeera’s Secret. Acesso em: 05 abr 2016. Disponível em: < http://www.
mernissi.net/books/articles/cyber_islam_2.html>. O artigo foi originalmente publicado na revista
suíça Weltwoche com o título “Ein starkes Hirn, das denken kann”.
57 Tradução livre da autora para: “Historically, only the king and his advisers had information and
beyond that everything was rumor. But technology brought us access to information. In 1991, I
got a satellite dish. It brought CNN, but it was the first year of the Arab satellites stations, and
suddenly all the boundaries between private and public, between palace and street, and all the
other dichotomies vanished”. (WRIGHT, Robin. Dreams and Shadows: the future of Middle East.
New York: Penguin Books, 2009, p. 359).
58 Dá-se preferência a Revoltas Árabes para designar as manifestações populares que ocorreram
principalmente durante o ano de 2011 em países como Tunísia, Egito, Bahrein, Líbia e Iêmen.
O termo “primavera” desconsidera as especificidades da série de protestos: não há semelhanças
com a Primavera de Praga e não houve grandes mudanças estruturais nem mesmo o desabrochar
de um mundo mais alvissareiro. Além disso, ocorreram especialmente durante o inverno do
Hemisfério Norte.

164
IntelectuaIs das áfrIcas

Os jovens, antecipou, não aceitariam o status quo como seus pais


o fizeram, pois esses haviam sido ensinados a obedecer e a fica-
rem quietos. Os jovens, por sua vez, estavam sendo incentivados,
não pelos professores ou imãs das mesquitas, mas por meio dos
programas de TV a desafiar o poder constituído. Segundo ela, um
mundo árabe mais dinâmico estava sendo erguido com a ajuda de
uma constante mobilidade tanto no espaço físico como mental.
As novas gerações estariam adotando como forma de sobrevi-
vência elementos de culturas diferentes e conciliando opiniões
divergentes59.
A socióloga antecipou uma série de debates que ocorreria
após a autoimolação do jovem vendedor de frutas tunisiano Mo-
hammad Bouazzi, em 17 de dezembro de 2010, sobre o papel das
redes sociais e dos canais árabes via satélite na revolta que sacu-
diu o Norte da África e Oriente Médio. E não somente por estes
veículos terem supostamente auxiliado na deflagração da revolta
em outras partes do mundo árabe, mas também na mobilização
dos participantes, em sua maioria jovens. Tais canais realizaram
uma intensa cobertura ao vivo de todos os acontecimentos dessas
revoltas populares, desafiando o controle prévio imposto pelos
governos. Isso ocorreu especialmente no Egito, onde os meios
de comunicação locais foram censurados ao divulgar informações
sobre os protestos que ocorriam nas ruas.
Mais recentemente, Mernissi inseriu a questão de gênero em
outras searas. Em Journalistes Marocaines: Génération Dialogue (2012),
Mernissi debateu a importância da inserção feminina no jornalismo.
Segundo a socióloga, a entrada da força de trabalho feminina nos
meios de comunicação magrebinos foi uma importante virada,
que se deu de maneira extremamente rápida no século passado.
“A mudança que levou séculos no Ocidente levou somente uma
década no mundo em desenvolvimento por causa dos avanços
tecnológicos”60, afirmou em uma entrevista.
59 MERNISSI, 2002, p. xv.
60 Tradução livre da autora para: “The change that took centuries in the West took only a decade
in the Third World because of technological advances” (WRIGHT, op. cit., p. 359).

165
IntelectuaIs das áfrIcas

O livro é o resultado de um workshop realizado entre a es-


critora e jornalistas marroquinas que escreviam tanto em árabe,
como em francês ou berbere. O objetivo foi tratar dos problemas
da profissão do ponto de vista feminino, com vistas a aumentar e
melhorar a representação feminina na mídia – outro projeto social
da socióloga marroquina. O que demonstra, mais uma vez, sua
preocupação em não apenas estudar e compreender a sociedade
em que estava inserida, mas atuar nela a fim de modificá-la.

CONCLUSÃO

Ao abraçar sua condição de mulher, magrebina e muçulmana,


e apontar a força dessas características, Mernissi reuniu condições
para discutir o papel do gênero em uma sociedade que também
reúne uma herança originária da expulsão forçada da popula-
ção judaica e muçulmana da Península Ibérica no século XVII, e
influências berberes-africanas. A partir da tradicional sociedade
marroquina, examinou os problemas que afligem mulheres de
outros meios tradicionais, especialmente de países muçulmanos,
e delineou as principais questões a serem combatidas e a forma
como combatê-las. Ao mesmo tempo, reconheceu a importância
da mudança, mas defendeu que o caminho para ela está dentro da
sociedade árabe-islâmica e não fora dela.
Fatema Mernissi contou-nos como era um harém por dentro;
desvelou a existência de líderes políticas muçulmanas pouco co-
nhecidas; defendeu que a demanda pela reclusão feminina é uma
exigência de uma elite masculina para conter o poder feminino,
denunciou o discurso de ativistas islâmicos. Contestou as interpre-
tações locais, mas sem se render às práticas estrangeiras. Por isso,
podemos tomar a liberdade de identificá-la como uma Sheherazade
moderna. Afinal, demonstrou um incrível dom de contar belas e
interessantes histórias, não apenas em livros de ficção, mas es-
pecialmente nas introduções de suas obras e artigos acadêmicos,
que trazem suas longas discussões com Karim, o entregador de

166
IntelectuaIs das áfrIcas

jornais que tem diploma de graduação em Economia, tia Halima,


a das histórias macabras, ou o verdureiro, que não acredita que
uma mulher possa ser líder dos muçulmanos. E também por, antes
de tudo, ter colocado à prova, assim como a protagonista de As
Mil e Uma Noites, o domínio patriarcal, com todas as suas forças,
perspicácia e paciência. Demandou um lugar mais igualitário para
as mulheres, sem voltar as costas para o legado da sociedade
árabe-islâmica, valorizando o que ela tem a contribuir para mudar
a desigualdade entre homens e mulheres. Mesmo que isso custasse
desafiar as elites, o establishment religioso e o próprio conheci-
mento tradicional islâmico.

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IntelectuaIs das áfrIcas

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168
IntelectuaIs das áfrIcas

OUSMANE SEMBÈNE E A ÁFRICA TRADUZIDA EM


PALAVRAS E IMAGENS

Sílvio Marcus de Souza Correa1

A produção literária e cinematográfica da Europa costuma


ser tratada pela crítica brasileira com a devida atenção às suas
particularidades nacionais. A literatura de Jean-Paul Sartre e de
Simone de Beauvoir e o cinema de Jacques Tati e de Jean-Luc
Godard são quase como um label made in France. Para o caso da
literatura e do cinema produzidos na África, tem-se menos cuidado
com as clivagens nacionais. A crítica literária e a cinematográfica
tratam, respectivamente, romances e filmes africanos como se não
houvesse fronteiras nacionais. E se alguns críticos atentam para
a dimensão nacional, eventualmente presente na obra de alguns
escritores ou cineastas, não raro, as livrarias classificam os livros
de Chinua Achebe, J. M. Coetzee e Mia Couto como simplesmente
“literatura africana” enquanto que, em outros sítios, filmes de Ous-
mane Sembène, Souleymane Cissé e Youssef Chahine são rotulados
simplesmente como “cinema africano”.
Em relação aos filmes africanos, ressalta-se ainda a sua posição
marginal no mercado internacional da indústria cinematográfica.

1 Professor do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina.


O autor agradece ao Instituto de Estudos Avançados de Paris pela estadia como pesquisador
convidado durante o verão de 2016, período em que foi redigida a primeira versão deste capítulo.
Também gostaria de agradecer Stéphane S. Vieyra pela autorização para publicação da fotografia
do seu pai Paulin S. Vieyra, juntamente com Ousmane Sembène e o cineasta brasileiro Glauber
Rocha (fig. 1). Um agradecimento especial a Gilbert Ndecky pelo auxílio indispensável para
a localização e reprodução do jornal Kaddu e cuja capa do terceiro número ilustra o presente
capítulo (fig. 2).

169
IntelectuaIs das áfrIcas

No Brasil, esses filmes são exibidos, geralmente, fora do circuito


comercial e no âmbito das atividades de instituições culturais como
mostras ou ciclos de “cinema africano”.2 Com as dificuldades de
distribuição, entre outros fatores, os filmes realizados em países
da África dificilmente extrapolam o circuito de um pequeno grupo
de cinéfilos.
Apesar do aumento de mostras e de iniciativas para divulgar
o “cinema africano” em várias capitais brasileiras, ele persiste no
singular.3 É verdade que o festival de Ouagadougou surgiu com o
intuito de reunir uma produção fílmica com características comuns.4
Também a Federação Pan-Africana de Cineastas (FEPACI) foi criada
para promover os filmes realizados na África. Na assim chamada
“literatura africana” ou no propalado “cinema africano”, questões
locais e nacionais são tratadas, assim como temas universais e que
se encontram em seus congêneres de outras partes do mundo.
O tratamento de temas universais na literatura e no cinema
made in Africa faz indagar sobre a validade da designação “africano”
para muitos romances e filmes. A propósito, o que significa esse
adjetivo? O curta metragem Afrique-sur-Seine (1955), inteiramente
filmado em Paris, seria o primeiro filme do “cinema africano” como
pretende Elisabeth Lequeret? E o filme de título babélico Der Leone
Have Sept Cabezas, do cineasta brasileiro Glauber Rocha, seria mais
africano que Afrique-sur-Seine por ter sido filmado inteiramente no
Congo em 1970?
2 As mostras de “cinema africano” têm ocorrido em várias capitais brasileiras nas duas últimas
décadas. Para ficar em três exemplos: a mostra “Novo Olhar do Cinema Africano”, com onze
documentários e sete ficções, realizada pela Embaixada da França no Brasil (Filmes da África
buscam sua visibilidade. Acontece, Folha de São Paulo, 12/6/2005) e a mostra internacional de
cinema “Imagens da África” que reuniu onze filmes da cinematografia africana (Mostra no Rio
exibe africanos recentes. Ilustrada, Folha de São Paulo, 9/9/1996). Importante acontecimento
tem sido o Festival de Cinema Pan-Africano de Salvador. Além das mostras, ciclos de cinema
africano são realizados, geralmente em meio universitário. Em 2015, um ciclo de cinema africano
entrou na programação da TVBrasil. Para a recepção dos filmes africanos no Brasil, ver o artigo
de Mahomed Bamba (2006). Ainda sobre festivais e a recepção e divulgação dos filmes africanos,
ver o capítulo de M. Bamba (2007).
3 Vale lembrar o artigo de Mahomed Bamba (2008) que atenta para a pluralidade da produção
cinematográfica no continente africano.
4 Realizado na primeira quinzena de fevereiro de 1969, o evento viria a ser a primeira edição do
maior festival de cinema da África ocidental, mais conhecido sob a sigla FESPACO (Festival
Pan-africano do Cinema e da Televisão de Ouagadougou).

170
IntelectuaIs das áfrIcas

Em relação ao campo artístico africano, o nome de Ousmane


Sembène (1923-2007) é incontornável, mesmo que a “africanidade”
da sua obra não deixe de ter algumas influências extra-africanas.5
Desde a publicação do seu primeiro livro em 1956 até o lançamento
do seu último filme em 2004, o reconhecimento internacional do
seu trabalho fez de Ousmane Sembène um dos mais importantes
intelectuais africanos do século XX.
Para os organizadores da presente coletânea, o nome de
Ousmane Sembène figura como uma estrela no firmamento da
intelectualidade africana. Segundo o conceito de intelectual que
norteia os trabalhos aqui reunidos, o intelectual é alguém que re-
flete sobre questões e dilemas do seu tempo com base em teorias
e cujo trabalho acadêmico ou artístico tem a capacidade incomum
de contribuir para o conhecimento de determinadas realidades
sociais. Sem o rigor conceitual de uma teoria sociológica, gostaria,
no entanto, de ressaltar que para ser um intelectual deve haver re-
conhecimento social. Esse reconhecimento pode não ser o mesmo
para intelectuais que vivem do seu trabalho, seja este acadêmico
ou artístico, e para aqueles outros cuja atividade intelectual se faz
independentemente de recursos advindos dela mesma.
Ousmane Sembène abraçou a literatura e o cinema como
poucos e, depois de viver quase duas décadas de trabalhos bra-
çais, como pedreiro, mecânico e estivador, dedicou-se à arte de
escrever romances e novelas e de fazer filmes numa época em que
escritor ou cineasta era reconhecido como intelectual e não raro
como maître à penser.
A obra do escritor e cineasta Ousmane Sembène valeu muitas
teses acadêmicas.6 Além delas, inúmeras entrevistas, resenhas e
matérias jornalísticas foram publicadas na imprensa de diversos

5 Entre os críticos de arte, não há consenso quanto aos critérios de “africanidade” de um filme ou
de um romance. Muitos livros publicados na Europa em meados do século passado são, hoje,
considerados “clássicos” da literatura africana, assim como vários filmes com coprodução europeia,
inclusive sem ou com restrita distribuição em países africanos, passam por “cinema africano”.
6 Para ficar em alguns exemplos, ver as teses de Bestman (1972), Moore (1973), Rufa’ï (1983), Sall
(2007), Bourhane (2008).

171
IntelectuaIs das áfrIcas

países. Desse copioso material, a expressão “pai do cinema africa-


no” emerge com frequência. Em alguns trabalhos mais biográficos,
a admiração pela sua trajetória individual chega a ter uma nota de
canto liberal ao self-made man. É verdade que o leitor de Jack London
admirava personagens que logravam forçar o seu próprio destino.7
Nesse sentido, a trajetória do intelectual senegalês resultou, em
grande parte, de certas escolhas suas e feitas em momentos deci-
sivos de sua vida.8
Ousmane Sembène não fez parte de uma intelligentsia no sen-
tido manheimniano, nem foi um intelectual orgânico no sentido
gramsciano. Foi um intelectual que produziu uma obra de grande
valor artístico e heurístico, uma das melhores e mais belas inter-
pretações da África. Como intelectual, conjugou teoria e práxis,
superou aquelas categorias binárias que, geralmente, confinam a
história da África entre o tradicional e o moderno, o comunitário e
o societário, o local e o global, e jamais se deixou convencer pelas
visões reducionistas, como aquelas que viam monocromaticamente
os conflitos e os problemas sociais da África.9
Em consonância com as demais contribuições dessa coletânea,
o presente artigo visa demonstrar a trajetória de um intelectual
africano. Por meio do seu trabalho literário e cinematográfico, Ous-
mane Sembène pensou uma série de problemas africanos. Sua obra
foi pródiga em temas ligados ao passado colonial e aos dilemas da
África contemporânea. Assim como a sua experiência de vida foi
matéria prima para muitos romances, novelas e filmes, Ousmane
Sembène fez da historiografia uma fonte de supina importância
para a sua ficção. Também tratou de questões de uma África con-
temporânea com uma abordagem sociológica acurada. História e
7 Jack London é o pseudônimo do jornalista e escritor californiano John Griffith Chaney (1876-
1916).
8 A noção de “momentos decisivos” aqui empregada deve ser entendida no sentido sociológico
atribuído por Anthony Giddens (2002).
9 Em sua ficção literária ou fílmica, Ousmane Sembène evitou reduzir os conflitos e problemas
sociais africanos à mera exploração do Negro pelo Branco. Para o escritor e cineasta, a exploração
colonial era condicionada por conflito de classe e não de raças. Ao abordar temas do período
pós-colonial, demonstrou como os conflitos sociais não se reduziam a um suposto antagonismo
racial.

172
IntelectuaIs das áfrIcas

sociologia foram duas disciplinas fundamentais ao processo criativo


e artístico da literatura e do cinema de Ousmane Sembène.
O conjunto da sua obra tanto literária quanto cinematográfica
se caracteriza por um diálogo permanente entre o passado e o
presente africanos. A partir de alguns apontamentos biográficos e
outros relacionados à sua longa atividade como escritor e cineasta
e também à sua efêmera experiência como redator-chefe de um
jornal, busco demonstrar a coerência em toda a sua trajetória tanto
em estética quanto em política.

A TRAJETÓRIA DE UM INTELECTUAL

Ousmane Sembène nasceu em janeiro de 1923. Passou a sua


infância na região de Casamança, região senegalesa entre a Gâm-
bia e a Guiné Bissau. Aos quinze anos, impedido de continuar a
sua escolarização, o jovem parece inclinar ao destino social de
um filho de pescador. Enviado para Dacar em 1938 e sob a guarda
de um tio, torna-se auxiliar de pedreiro. Em 1944, aos 21 anos,
Ousmane Sembène é mobilizado como soldado num campo mili-
tar de Dacar, de onde segue para o Níger, no sexto regimento de
artilharia colonial. Em 1946, o ex-soldado entra para o sindicato
dos trabalhadores da construção civil. No mesmo ano, embarca a
bordo do navio Pasteur para a França.10
No post bellum, o jovem senegalês trabalha como estivador no
porto francês de Marselha. Em 1950, ele adere à Confederação Geral
do Trabalho (CGT) e, no ano seguinte, ao Partido Comunista Francês
(PCF). Em 1951, sofre um grave acidente de trabalho. Uma fratura
na coluna vertebral lhe deixa afastado das atividades braçais por
longos meses. Durante a sua convalescença, transcorre uma meta-
morfose. Seu quarto não é mais que um casulo. Inicia a redação do
seu primeiro livro. Seu labor intelectual não se resume à escrita. A
leitura é uma atividade quase diária na vida do imigrante, estivador
e militante. Literatura antilhana, caribenha e afro-americana foram
10 Quando não referida outra fonte, os dados biográficos advêm de Vieyra (2012) e Gadjigo (2013).

173
IntelectuaIs das áfrIcas

algumas das fontes à sua sede de leitura. Livros como Banjo (1929),
do escritor jamaicano Claude Mckay, Native Son (1940), do escritor
afro-americano Richard Wright ou Gouverneurs de la rosée (1944), do
escritor haitiano Jacques Roumain, fizeram parte da cultura literária
de Ousmane Sembène.11 Ainda a leitura de algumas obras de Jack
London fez o estivador perceber a literatura como missão, a arte
de “forçar o destino”, a chance de aprimorar-se através da escrita
e a oportunidade de escrever para escapar da condição miserável12.
Durante a primeira década como imigrante na França, Ousma-
ne Sembène participou de manifestações e greves, por exemplo,
contra as guerras na Indochina e na Argélia. Chegou mesmo a
protestar contra o processo do casal Rosenberg em 1952. Durante
esses anos, teve também a oportunidade de conhecer uma literatu-
ra africana de expressão francesa.13 Mesmo sem ter contato direto
com o meio literário dos escritores africanos radicados na França,
Ousmane Sembène teria lido os textos dessa primeira geração como
Amadou Diagne, Bakary Diallo, Ousmane Socé Diop e Birago Diop.14
Em meados dos séculos XX, a literatura dos escritores afri-
canos e da “diáspora negra” representa um pequeno filão do
mercado editorial francês. Seus romances, ensaios, novelas e
poemas foram publicados por algumas editoras. Entre elas, cabe
destacar a Présence Africaine, cuja revista circulava desde 1947. No
prefácio de Anthologie de la nouvelle poésie nègre et malgache de la
langue française, Jean-Paul Sartre (1949) enfatizou a importância
da négritude enquanto movimento de afirmação identitária para
africanos, afro-caribenhos e afro-americanos e também o quanto
essa literatura era inovadora.

11 Claude Mckay foi também estivador no porto de Marselha (VIEYRA, 2012, p.18). Sobre a influ-
ência do escritor jamaicano no primeiro romance de O. Sembène, ver ainda Murphy (2000).
12 Gadjigo, 2013, p.212-213.
13 Quando o jovem Sembène chegou na França, já havia um pequeno grupo literário de escritores
africanos radicados em Paris. Em termos de cinema, também outros africanos o antecederam
como Youssef Chahine e Paulin Soumanou Vieyra. Este último iria ajudar Ousmane Sembène
para estudar cinema em Moscou. Cabe lembrar que Souleymane Cissé também estudou cinema
em Moscou. Anos depois seria a vez de Abderrahmane Sissako passar pela escola de cinema russa.
14 Gadjigo, 2013, p. 219.

174
IntelectuaIs das áfrIcas

No entanto, um imaginário colonial prodigalizava os parcos


esforços literários em livrar a África e os africanos dos estereóti-
pos e clichês. Ao mesmo tempo, alguns escritores negros faziam
a apologia de um essencialismo negro, fazendo de sua ficção uma
literatura de autodefesa.
Em 1956, ocorre em Paris o primeiro congresso de escrito-
res e artistas negros. Apesar da ausência de alguns nomes como
W.E.B. Du Bois, a presença de Aimé Césaire, Richard Wright, James
Baldwin, Léopold Senghor e Amadou Hampâté Bâ, entre outros,
garantem o sucesso do evento. Mas nem todos os participantes
estiveram satisfeitos com o congresso.
A guerra da Argélia estava em curso. Frantz Fanon participou do
congresso como escritor e autor de Peau noire, masques blancs (1952).
Entretanto, o seu engajamento pela causa argelina impedia afinar o
seu discurso ao diapasão que dava o tom ao primeiro congresso de
escritores e artistas negros e cujo maestro era Alioune Diop, funda-
dor da Présence Africaine. Cabe lembrar que o livro de Frantz Fanon
não foi publicado pela Présence Africaine. Além disso, a editora havia
recusado de publicar o primeiro livro de Ousmane Sembène.15 Le
docker noir foi publicado pelas edições Debresse em 1956.
Não cabe especular sobre um eventual ressentimento pela
recusa de publicação do seu primeiro livro. O fato é que Ousmane
Sembène manteve um certo distanciamento do discurso oficial do
primeiro congresso de escritores e artistas negros. Segundo um
depoimento recolhido por Pierre Haffner, o autor de Le Docker noir
e outros jovens escritores africanos sentiram pouca receptividade
pelo “primeiro time” de escritores e artistas negros.16 Com raras
exceções, este “primeiro time” tocava sob a batuta de Alioune Diop
e afinava seus discursos pelo diapasão da négritude.17
15 GADJIGO, Samba. Ousmane Sembène. Une conscience africaine. Paris: Présence Africaine, 2013,
p.224.
16 HAFFNER, Pierre. Le docker noir, 1985, p.22.
17 Alioune Diop (1910-1980) foi um importante intelectual e político senegalês nos meados do
século XX. Idealizador da revista e da editora Présence Africaine, fundadas respectivamente em
1947 e 1949, Alioune Diop foi um grande promotor, realizador e organizador de várias atividades
e produções científicas, artísticas e culturais sobre a África.

175
IntelectuaIs das áfrIcas

Para alguns como Ousmane Sembène, a negritude tinha um


valor literário, porém escapava-lhe a realidade social dos trabalha-
dores negros. Não tardou para a literatura africana de expressão
francesa ser renovada por uma nova geração de escritores. A
situação dos trabalhadores africanos foi tratada magistralmente
em romances de escritores como Mongo Beti e Ferdinand Oyono,
inclusive publicados pela Présence Africaine. Essa editora publicaria
mais tarde livros de Ousmane Sembène, inclusive faria a reedição
do seu primeiro romance em 1973.
Paralelamente aos primeiros anos de sua carreira de escritor,
a sua militância partidária se intensifica, mas esta última chega ao
fim em 1960. Em 1957, uma seção do Partido Africano pela Inde-
pendência é criada em Marselha e para o qual Ousmane Sembène
passa a militar; no mesmo ano, seu livro Ô pays, mon beau peuple
é publicado pelas edições Dumont. Em 1959, o escritor militante
cria uma seção do Movimento de liberação da Guiné e do Cabo
Verde; no mesmo ano, participa do segundo congresso de escri-
tores e artistas negros em Roma. No ano seguinte, publica o seu
terceiro romance, intitulado Les bouts de bois de Dieu pelas edições
Livre contemporain. Ainda em 1960, renuncia à sua nacionalidade
francesa, deixa o Partido Comunista e outras organizações políticas
em que militava. Doravante, a militância se faria exclusivamente
por meio da sua arte.
Sem abandonar a literatura, Ousmane Sembène lança-se num
novo projeto pessoal e profissional. Em 1961, ele parte para Mos-
cou para estudar cinema. O estágio nos estúdios Gorki da capital
soviética não foi uma escolha de orientação ideológica. Segundo o
seu amigo e cineasta Paulin S. Vieyra, cartas para outras escolas de
cinema no Canadá, nos EUA, na Polônia e na então Checoslováquia
foram também enviadas. Mas a primeira resposta veio da U.R.S.S.18
Desde a independência do Senegal, a intelligentsia do novo
país foi composta por um número expressivo de repatriados.
18 VIEYRA, Paulin Soumanou. Ousmane Sembène cinéaste: Première période, 1962 - 1971. (1ed.
1972) Paris: Présence Africaine, 2012, p. 21.

176
IntelectuaIs das áfrIcas

Muitos deles, como o próprio presidente Léopold Sédar Senghor,


estudaram e/ou trabalharam na França por longos anos. Depois
do estágio em Moscou, Ousmane Sembène visitou alguns países
africanos. De retornou ao seu país natal, associou-se com outros
cineastas e técnicos de cinema em Dacar para criar a Filmes Do-
mirev, uma empresa que se ocuparia da produção e distribuição
dos filmes dos associados.
Na equipe técnica dos seus primeiros filmes, Ousmane Sem-
bène contou, entre outros, com Ibrahima Barro nas funções de as-
sistente (Borom Sarret, Niaye, La Noire de...) e diretor geral (Mandabi,
Taw, Emitaï), Paulin S. Vieyra como diretor de produção (Mandabi,
Taw, Emitaï), Ousmane Sow como diretor adjunto (Emitaï), El Hadj
M’Bow como assistente (Mandabi) e técnico de som (Taw, Emitaï).
Cabe ainda destacar o trabalho técnico do diretor de fotografia e
chefe-operador Georges Caristan.19 Além de várias pessoas que
trabalharam na equipe técnica de seus filmes, não menos impor-
tante foi a participação de alguns atores como Mamadou Gueye
(Mandabi), Christophe N’Doulabia (Mandabi, Taw) e atrizes como
M’Bissine Thérèse Diop (La noire de..., Emitaï) e Fatoumata Coulibaly
(Moolaadé).
Assim, ao contrário da literatura, o trabalho cinematográfico
tinha uma dimensão coletiva. Desde que começou a escrever, Ou-
smane Sembène acreditava no poder de transformação por meio
da literatura. Porém, ele se convenceu de que o cinema tinha um
maior alcance do que a literatura entre aquela gente com quem
simpatizava. Foi mesmo durante a sua estadia em Léopoldville (atual
Kinshasa), que Patrice Lumumba mostrou-lhe a cena cultural da-
quela cidade, na qual o cinema tinha forte apelo popular.20
Mesmo convertido ao cinema, Ousmane Sembène jamais
deixou de escrever. A sua estréia na Présence Africaine não se fez
demorar. Em 1962, é publicado um livro de novelas intitulado

19 Nascido no Vietnã e descendente de uma família da Guiana Francesa, Georges Caristan trabalhou
com Ousmane Sembène em filmes como Niaye, Emitaï, Xala, Ceddo.
20 GADJIGO, Samba. Ousmane Sembène. Une conscience africaine. Paris: Présence Africaine, 2013.

177
IntelectuaIs das áfrIcas

Voltaïque. De retorno a Dacar, trabalha em seu primeiro filme de


curta metragem. Borom Sarret é premiado no festival de Tours em
1963. Em 1964, L’Harmattan é o seu quinto livro, segundo publica-
do pela Présence Africaine.21 Realiza no mesmo ano o filme de curta
metragem Niaye.
Depois do seu primeiro curta metragem, as atividades de
cineasta ocupam Ousmane Sembène cada vez mais. Mesmo que
literatura e cinema correspondam a duas linguagens artísticas
distintas, o escritor autoriza o seu alter ego cineasta a levar para
a tela algumas novelas e romances. Em 1966, La Noire de... foi
exibido na França e no Senegal, onde recebe, respectivamente, o
prêmio Jean Vigo e o grande prêmio do Festival Mundial de Artes
Negras.22 Trata-se do primeiro longa metragem de um cineasta da
África subsaariana.23 La Noire de... foi a primeira experiência de
adaptação de sua literatura ao cinema. O filme foi ainda premiado
em festivais de cinema na Tunísia e na Coréia do Norte.
Em 1967, o cineasta senegalês é membro do júri do festival
de Cannes e no ano seguinte é presidente do júri do festival de
cinema de Cartago. Ainda em 1968, faz o seu segundo filme de
longa metragem e o primeiro colorido. Baseado em sua novela
homóloga, O Mandato havia sido publicado dois anos antes pela
Présence Africaine. O filme recebe o prêmio especial no festival de
cinema de Veneza. Em 1969, Ousmane Sembène realiza alguns
filmes para a televisão francesa e participa da criação da Semana
do Cinema de Ouagadougou e também da Federação Pan-Africana
de Cineastas.
Na década de 1970, a produção literária e cinematográfica
continua a lhe render críticas e prêmios internacionais e o seu

21 Devido a algumas divergências em relação aos anos de publicação de livros e filmes de Ousmane
Sembène, a cronologia adotada foi aquela proposta por Samba Gadjigo (2013).
22 Em artigo sobre o a participação brasileira no Festival Mundial de Artes Negras de Dacar, defendeu-
se a excelência do filme Assalto ao Trem Pagador e que, segundo o Cine-Clube de Dacar, o filme
brasileiro teria merecido o Grande Prêmio ao invés do filme de “um jovem diretor senegalês”.
Afro-Ásia, Revista do CEAO, Salvador, n.2-3,1966, p78.
23 O filme deveria ser de média metragem. Mas houve um acordo para atender o contrato com a
produtora e, por conseguinte, obter os recursos para a realização do filme.

178
IntelectuaIs das áfrIcas

trabalho artístico consolida-se, tanto no campo literário quanto


cinematográfico. Seus filmes de longa metragem como Emitaï
(1971), Xala (1974), Ceddo (1976) são aclamados pela crítica e o
reconhecimento do seu trabalho se desdobra em novos convites
para membro do júri do festival de cinema de Moscou (1975) e
presidente do júri do festival de cinema de Berlim (1977).
A década de 1980 é mais um anel na espiral de sucessos do já
consagrado cineasta. Presidente do júri do festival de cinema de
New Deli e de Ouagadougou em 1981, membro do júri do festival
de cinema de Veneza (1983) e do Rio de Janeiro (1984), Ousmane
Sembène realiza um dos seus mais importantes filmes de longa
metragem em 1988. Camp de Thiaroye recebe muitas premiações e
vem coroar o trabalho de um cineasta de então 65 anos de idade.
Em 1993, o septagenário escritor e cineasta é laureado pela
Presidência da República do Senegal com o Grande Prêmio às
Letras e recebe uma homenagem do Ministério da Cultura do
Burkina-Faso e da FENACI pelos seus 30 anos de cinema. Em 1996,
é publicado o seu último romance: Guelwaar. Curiosamente, o livro
veio à lume quatro anos depois da realização do filme homólogo
de longa metragem. Seus derradeiros filmes de longa metragem
foram Faat Kine (2000) e Moolaadé (2004), sendo o último premiado
em Cannes e Chicago.
Um balanço da produção literária e cinematográfica de Ous-
mane Sembène nas décadas de 1980 e 90 pode dar a impressão
que o cineasta superou o escritor. Mas não faz sentido qualquer
comparação quantitativa entre os seus livros e filmes para uma justa
avaliação do conjunto de sua obra. As dezenas de premiações, de
homenagens e de convites para ser presidente ou membro de júri
foram expressões do reconhecimento internacional ao trabalho
do cineasta Ousmane Sembène. Sua carreira literária não teve a
mesma consagração. Tal diferença não se explica por um domínio
desigual de ambas as linguagens artísticas ou pela distinta capa-
cidade do escritor e do cineasta, mas sim pela própria estrutura

179
IntelectuaIs das áfrIcas

do campo literário e do cinema. Se alguns campos artísticos têm


similaridades, como o da literatura e do cinema, eles têm também
suas particularidades.
No entanto, a adaptação de suas novelas ou romances para o
cinema demonstra o quanto o cineasta foi tributário do escritor.24
Embora a maioria dos seus filmes de longa metragem tenha sido
baseada em seus romances ou novelas, a linguagem cinematográ-
fica tem a sua própria gramática. Ousmane Sembène aprendeu as
regras dessa linguagem artística para fazer dela um instrumento
de libertação e de conscientização numa época de duplo processo
de descolonização e independência no continente africano.

DA IMAGEM-DESPERTADOR

Como foi visto anteriormente, o intelectual militante desen-


volveu duas linguagens artísticas (literatura e cinema) com quase
o mesmo objetivo. Se o escritor acreditava na capacidade trans-
formadora e libertadora da palavra, o cineasta buscava a imagem
despertadora de consciências. Como bem resumiu Paulin Soumanou
Vieyra, “melhor que os discursos políticos ou os textos de jornalis-
tas, os filmes de Sembène trabalham a opinião no sentido de uma
tomada de consciência sobre a realidade africana.”25
Se escrever foi para Ousmane Sembène um processo intelec-
tual mais individual em termos de tomada de consciência e liber-
tação, fazer cinema era mais eficaz para a difusão de sua arte junto
a um público africano. Por intermédio de seus filmes, o cineasta
senegalês articula ficção e realidade, inovando as interpretações
da África com imagens alternativas.26
Para Ousmane Sembène, tanto a palavra quanto a imagem

24 Em sua tese de doutorado, Papa Wongue Mbengue (1982) analisa a estrutura da narrativa literária
e fílmica de Ousmane Sembène.
25 VIEYRA, Paulin Soumanou. Ousmane Sembène cinéaste: Première période, 1962 - 1971. (1ed.
1972) Paris: Présence Africaine, 2012, p. 161.
26 Uma das importantes contribuições de David Murphy (2001) foi superar uma ideia consensual
que reduzia a estética do cinema sembeniano ao realismo social.

180
IntelectuaIs das áfrIcas

deveriam servir à desconstrução do discurso (neo-)colonial que


tanto fez uso de palavras e imagens. Desde os meados do século
XX, quando ainda era um estivador no porto de Marselha, ele cons-
tatara que os livros que encontrava na biblioteca da CGT, de autores
europeus e mesmo africanos, não correspondiam à sua experiência
africana. Escrever foi para ele uma forma de usar as palavras contra
aquelas do discurso colonial, do mito do “bom negro”.
Para o escritor senegalês, a literatura tinha uma missão, ou
seja, fazer os leitores refletir sobre as suas condições de existência
e lhes mostrar que é possível melhorá-las. Escusado é lembrar que
os seus romances têm quase sempre um personagem principal
capaz de refletir sobre a condição humana e de buscar alternati-
vas com impacto social.27 A propósito, os “heróis” e “heroínas” de
Sembène não lutam apenas por si mesmos. Se o individualismo
não tem lugar na literatura e no cinema de Ousmane Sembène, o
indivíduo é fundamental em sua análise do social. O lugar central
do indivíduo em sua obra literária e cinematográfica não significa
uma independência da escolha ou da ação individual em relação
às condicionantes sociais, econômicas e culturais. As questões
de gênero, de religião, de cor ou de classe podem condicionar
o destino dos personagens mas não determiná-lo. Estes podem
forjar o seu destino. Ousmane Sembène faz parte de uma geração
de escritores africanos cujas novelas e romances enfatizam o pro-
tagonismo dos africanos.
Assim como a literatura, o cinema lhe oferecia a oportunidade
de formular um contradiscurso, uma nova linguagem para mostrar
uma outra África, diferente daquela folclórica.28 As imagens de uma
África exótica, estranha aos próprios africanos, era produto de um
imaginário ainda colonial. Além da imprensa periódica ilustrada,
essas imagens eram também veiculadas em cartões postais, foto-
grafias e nos filmes dos meados do século passado. Numa inter-
venção sobre a imagem cinematográfica e a poesia africana, ele

27 Ver nota de Bouba Tabti-Mohammedi, 2014, p.22


28 Ver entrevista de O. Sembène para S. Diallo (1973)

181
IntelectuaIs das áfrIcas

afirmou que os filmes projetados nas telas africanas nada tinham


a ver com os africanos.29 Naquela altura, o seu balanço crítico da
arte cinematográfica era de que, no caso africano, o cinema não
passava de um meio de aculturação.30 Até mesmo certos filmes
“etnográficos”, segundo ele, prestavam um desserviço. Outros,
podiam ser do agrado do público europeu, mas nada ensinavam.31
Contra a alienação cultural, o cinema poderia vir a ser um
instrumento de conscientização, uma forma de espelho da so-
ciedade.32 “Poder rever-se, perceber-se, compreender-se através
do espelho da tela” era o que reclamava Ousmane Sembène em
1964; para isso, era preciso que os africanos tivessem a sua própria
produção cinematográfica. Como bem percebeu Mongo-Mboussa,
“escolhendo o cinema como modo de expressão artística, ele decide
de combater a imagem pela imagem”.33 E nas palavras do próprio
Ousmane Sembène “é por isso que a descolonização mental da
África vai ocorrer somente quando a gente ousar, enfim, mostrar
as suas próprias realidades.”34
A imagem que ele busca construir cinematograficamente é
aquela que desperta. Ao menos, uma parte do seu público alvo,
isto é, o trabalhador africano, carece de imagens reveladoras de
uma realidade encoberta ou distorcida pelo colonialismo. Assim
como Walter Benjamin formulou a transição de uma imagem oní-
rica à imagem dialética, acredito que Ousmane Sembène buscava
superar uma imagem alienada da África e dos africanos por uma
imagem-despertador.35 Dito de outra maneira, o cinema deveria
29 L’image cinematographique et la poésie en Afrique (texto escrito por Sembène para o encontro inter-
nacional de poetas, Berlim, 22-27/09/1964, reproduzido em Vieyra, 2012, p165-173.
30 Posição que também compartilhavam outros cineastas senegaleses como P. Vieyra e Mamadou
Saar. Este último, inclusive, será um dos fundadores de um cineclube em Dacar para promover
alternativa em termos de programação cinematográfica. No Senegal, os cineclubes passam de
quatro em 1955 a oito em 1960 (GOERG, 2015, p.219).
31 Ver entrevista de O. Sembène para Albert Cervoni, 1965, p.5.
32 Ismaïla Diagne (2004) fez uma análise das sociedades africanas nos filmes de Sembène. Para
André Gardies (1989), a metáfora do espelho foi válida para estudar a relação entre cinema e
sociedade na África subsaariana das primeiras décadas de independência das jovens nações.
33 Mongo-Mboussa, 2009, p.71-72.
34 Ver entrevista de O. Sembène para Jeune Afrique (1968) e reproduzida em Vieyra, 2012, p.174-180.
35 A imagem-despertador se inspira no conceito de imagem dialética e, por conseguinte, de imagem
fulgurante de W. Benjamin. Sobre isso, ver Benjamin, W. Passagens. Belo Horizonte: UFMG, 2007.

182
IntelectuaIs das áfrIcas

mostrar imagens para que os espectadores pudessem se reconhecer


nelas. Longe de fazer sonhar, o cinema deveria acordar as pessoas.
Esse modo de despertar não significa para o espectador um mero
retorno à realidade, mas uma superação por meio da arte de um
estado ilusório.
A imagem-despertador foi um recurso empregado sistemati-
camente por Ousmane Sembène e muitas delas têm a ver com a
história da África. Aliás, momentos como a greve dos ferroviários da
linha Dacar-Níger, entre 1947 e 1948, e a revolta dos camponeses
dioula contra o domínio colonial em Casamança, entre 1942 e 1943,
foram temas de seus romances, respectivamente, Les Bouts de bois
de Dieu e Emitaï. Inclusive, este último foi adaptado ao cinema em
1971 e premiado no Festival de Moscou.
A história africana ganha uma nova dimensão em seus filmes. A
imagem-despertador é, geralmente, uma imagem na qual o passado
se faz presente. Cabe ressaltar que Ousmane Sembène não tinha o
propósito de fazer nem obra de historiador nem de cronista. Como
ele mesmo advertiu em seu livro L’Harmattan, as suas personagens
são frutos de sua criação e dos fatos que ele interpreta.
Mesmo que seus personagens sejam suas criações, muitas
delas foram inspiradas em pessoas que ele conheceu ao longo
da vida, como pescador, pedreiro, soldado, imigrante, estivador,
sindicalista, escritor e cineasta. Chaïba, o trabalhador do porto
de Marselha; Mahmoud Fall, o larápio; Souleymane, o zelador da
mesquita; e, Ibrahima Dieng, o muçulmano que tem a vida trans-
tornada depois de receber uma ordem de pagamento, são alguns
exemplos dessa relação entre ficção e realidade.36
Algumas personagens evocam pessoas que tiveram um papel
decisivo durante o colonialismo ou mesmo depois das independên-
cias africanas. Para ficar num exemplo, em Les Bouts de bois de Dieu,

36 Se Chaïba, Mouhmad Fall e Souleymane são as personagens principais de três novelas homólogas
de Voltaïque (1962), Ibrahima Dieng é a personagem principal de Mandat (1966), adaptado ao
cinema em 1968. Sobre este último personagem, Ousmane Sembène afirmou ter se inspirado
de alguém que ele mesmo conheceu.

183
IntelectuaIs das áfrIcas

uma das personagens principais, Ibrahima Bakayoko, foi inspirada


no líder sindical e herói da greve de 1947-48.37 O romance destaca
também o protagonismo das mulheres.38
Em alguns dos seus filmes baseados em fatos passados, outros
nomes foram omitidos ou tiveram a sua importância relativizada.39
Em Emitaï, por exemplo, o cineasta contornou o protagonismo de
Aline Sitoe Diatta que, durante a Segunda Guerra Mundial, teria
liderado uma resistência contra os franceses. Ousmane Sembène
justificou a sua escolha em focar na resistência anticolonial de um
grupo étnico mandinga, os dioula, sem ressaltar o papel de Aline
Sitoe Diatta porque teve dificuldades em separar a legenda em
torno dela e a verdade histórica.40
Apesar de ter realizado várias interpretações de momentos
marcantes da história africana, o seu projeto de fazer um filme
sobre Samori Touré nunca chegou a termo.41 Ele mesmo conside-
rava tal projeto o mais ambicioso de sua carreira. Mas para esse
projeto de realização cinematográfica, Ousmane Sembène conta-
va com financiamento e apoio de outros países, principalmente
aqueles cujo território fizera parte do império Wassoulou à época
de Samori Touré. Para isso, não teve pudores em pedir o apoio
do então presidente do Gabão, Omar Bongo, para autorizar a sua
equipe a gravar no país onde Samori Touré terminou os seus dias de
exílio. O cineasta também expressou a sua gratidão ao presidente
do Senegal, Abdou Diouf, pelo apoio ao projeto e pela interme-
diação direta com outros presidentes africanos.42 Entre outros, o
presidente da Guiné, Ahmed Sékou Touré, havia manifestado o

37 GADJIGO, Samba. Ousmane Sembène. Une conscience africaine. Paris: Présence Africaine, 2013, p.
134.
38 Para uma abordagem de gênero na ficção senegalesa, ver a tese pioneira de Hammond (1976) e
para a imagem feminina na obra sembeniana, ver Rufa’ï (1983). Para uma abordagem de gênero
no caso do romance Les Bouts de bois de Dieu, ver a tese de doutorado de Fanta Sylla (2008).
39 Sobre a reconfiguração do passado africano nos filmes de Sembène, ver o artigo de Mbye Cham
(2012).
40 Ver entrevista de O. Sembène concedida para Guy Hennebelle (1971, p. 20).
41 Samori Touré (1830-1900) foi um líder político, militar e religioso dos malinké. Foi o “arquiteto”
do império mandinga (1852-1882) e protagonista de uma das maiores resistências ao imperialismo
francês na África ocidental nas últimas décadas do século XIX.
42 Ver entrevista de O. Sembène concedida para Alioune T. Dia (1986, p.117).

184
IntelectuaIs das áfrIcas

seu apoio ao projeto cinematográfico de Ousmane Sembène que


também contava com a cantora sul-africana, Myriam Makeba, para
desempenhar o papel da mãe de Samori Touré.43 A produção pres-
cindia ainda de dezenas de atores europeus e milhares de atores
e coadjuvantes africanos.
Escrito em francês, o cenário estava pronto em 1980. O pro-
fessor Djibril Tamsir Niane deveria versar o texto para o malinké.
O filme em malinké teria legendas em francês e inglês. O cineasta
afirmou que a sua pesquisa sobre Samori Touré iniciou em 1962. O
filme teria uma duração de seis horas, com três episódios de duas
horas e com distribuição para França, Inglaterra e Alemanha. Uma
série televisiva com 20 capítulos também fazia parte do projeto,
assim como uma versão de três horas para televisões da Europa.44
Para alguns, pode parecer estranho o fato do cineasta sene-
galês querer tanto fazer um filme sobre Samori Touré, pois ele
expressou uma vez a sua dificuldade, enquanto marxista e ateu, a
tratar da memória e da tradição oral em torno dos supostos poderes
mágicos de Aline Siote Diatta, líder da rebelião contra o domínio
colonial francês na Casamança. Samori Touré fundou um grande
império e resistiu tenazmente à expansão colonial francesa na África
ocidental. No entanto, o Almamy (comandante dos crentes) era um
muçulmano que fundou um Estado teocrático e, posteriormente,
introduziu a Sharia.
Além da motivação pessoal e da fascinação, pois Ousmane
Sembène reconheceu que havia um objetivo para levar para o
ecrã Almamy Samory Touré.45 Para o cineasta, essa história não era
ensinada, pouco sabia-se sobre ela. E como gostava de repetir, “o
cinema pode ser uma espécie de escola noturna”. Por isso, Ous-
mane Sembène queria mostrar como essas pessoas viviam, como

43 Myriam Makeba deixou a África do Sul em 1960. Depois de viver na Inglaterra e nos EUA, ela se
radicou na Guiné na década de 1970, sendo delegada do país junto a ONU na década de 1980.
Com o fim do Apartheid, voltou para a África do Sul em 1990. Sobra a sua indicação para atuar
no filme, ver entrevista de O. Sembène concedida para Alioune T. Dia (1986, p.122).
44 Ver entrevista de O. Sembène concedida para Alioune T. Dia (1986, p.122).
45 Ver entrevista de O. Sembène concedida para Alioune T. Dia (1986, p.118).

185
IntelectuaIs das áfrIcas

eles puderam resistir e como eles morreram. Acreditava no poder


didático do cinema. Considerava também o caráter exemplar que
podia extrair da vida de Samori Touré e de seus seguidores; por
isso, um filme para que todos pudessem conhecer esses homens,
que, sob condições muito difíceis, conseguiram fazer algo extra-
ordinário. “Todo mundo tem que saber o seu passado”.46 Para a
pesquisa sobre Samori Touré e seus companheiros, o cineasta teve a
colaboração do historiador francês Yves Person, autor de uma obra
colossal sobre Samori Touré e publicada pelo Institut fondamental
d’Afrique noire (IFAN), em três tomos, em 1968.
Mas o cineasta não estava apenas preocupado em fazer um
filme histórico sobre Samori Touré. Como em todos os seus filmes,
Ousmane Sembène fazia questões para o passado a partir do seu
presente. E remexer no passado era uma forma de poder vislumbrar
um futuro. Para ele, a unidade política lograda por Samory Touré
poderia ser a base para uma reflexão sobre a unidade africana. Che-
gou mesmo a apontar similaridades entre Samori Touré e Ahmed
Sékou Touré.47 Provavelmente, o filme sobre Samory Touré seria o
mais pan-africanista de sua filmografia.
Ousmane Sembène tinha uma grande admiração por Samori
Touré, um herói do seu panteão pan-africano.48 Como ele mesmo
afirmou, o seu filme poderia ser uma lição de história para o pre-
sente. Nota-se que o cineasta enquadra o seu filme no regime de
historicidade da historia magister vitae. Ao querer realizar um filme
sobre Samori Touré, Ousmane Sembène parece partidário daquela
posição de Tucídides, ou seja, de que a história tenha uma moral
política, por isso, exemplar às gerações futuras.
A interpretação de um passado africano, mais ou menos re-
cente, encontra-se em várias obras do escritor e cineasta Ousmane
Sembène. Da dominação colonial na região da Casamança e da
46 Idem, p.119.
47 Idem, p.121.
48 O professor de literatura africana, Samba Gadjigo (2013, p.53), que frequentou a casa de Sem-
bène, comentou sobre os posters de Patrice Lumumba, Che Guevara, Almicar Cabral, Samori
Touré e Malcom X numa sala que era “um verdadeiro museu de arte africana”.

186
IntelectuaIs das áfrIcas

resistência dos camponeses durante a Segunda Guerra Mundial


(Emitaï) ao massacre de soldados africanos desmobilizados em
1944 (Camp de Thiaroye), Ousmane Sembène interpretou os acon-
tecimentos passados e produziu uma miríade de imagens para
despertar as consciências. Para ele, o real histórico era matéria para
transformar em arte. Arte não apenas como um produto e sim como
um instrumento de ação política.49 Apesar de ter sido criticado
pelo sua interpretação marxista da história, ela não redunda em
dogmatismo. Como ele mesmo declarou: “Eu sou por um cinema
militante. Eu acredito que é preciso realizar filmes que sirvam de
ponto de partida a debates. Mas não cabe a mim de dar soluções
aos problemas que eu coloco”.50

MITOLOGIA, HISTÓRIA E CINEMA

Alguns romances e filmes de Ousmane Sembène têm uma estru-


tura narrativa muito similar. Quase impossível separar o escritor do
cineasta. Ele próprio via a vantagem dessa fusão e esperava que ela
fosse útil para outros escritores, cineastas e/ou cenaristas. Além disso,
literatura e cinema se interpenetram em sua obra. Na novela “Diante
da História”, por exemplo, o cartaz do filme Sansão e Dalila serve a
uma paródia, pois o autor contrasta o pressuposto filme histórico em
cartaz com a real life que se passa na rua, em frente ao cinema.51
Muitas outras novelas de Ousmane Sembène poderiam ter
sido, igualmente, adaptadas ao cinema. Elas evocam imagens que,
se não despertam, ao menos perturbam as consciências. Já o seu
cinema militante persegue esse objetivo de forma mais explícita.
Em termos de narrativa visual, a imagem-despertador se encontra
no âmago do seu trabalho intelectual e artístico. Não obstante, ela
reporta a uma interpretação sobre eventos passados ou recentes da
história da África. Ela acaba por fazer parte de um mito que serve
como prótese no lugar de algo passado e que não existe mais.
49 Ver entrevista de O. Sembène concedida para Guy Hennebelle (1969).
50 Ver entrevista de O. Sembène para a revista Bingo (1969) e reproduzida em Vieyra (2012, p.180-186).
51 Diante da história é a primeira novela de Voltaïque (1962).

187
IntelectuaIs das áfrIcas

Em Emitaï, a imagem-despertador da morte dos camponeses


dioula é um exemplo dessa criação artística e que reporta ao mito
de um mundo perdido, ou melhor, destruído pelo colonialismo. Em
Camp Thiaroye, a cena da morte de dezenas de soldados africanos
é uma denúncia da traição francesa com aqueles que lutaram sob
a bandeira tricolor. Não cabe buscar uma exatidão ou um rigor
na reconstrução histórica dos acontecimentos na literatura ou
no cinema de Ousmane Sembène. A representação fílmica dos
acontecimentos trágicos tanto em Emitaï quanto em Camp Thiaroye
se inscreve numa série de denúncias, mas também de um dever
de memória. Como a figura do griot, o cineasta pode encarnar o
memorialista, cujo dever é fazer lembrar daquilo que os outros
tendem a esquecer.
Se a obra do escritor e do cineasta busca despertar as consciên-
cias, ela também abre as portas para o retorno do recalcado. Aquilo
que foi esquecido ressurge através de suas palavras e imagens. O
efeito demiurgo que a história de Michelet tinha em fazer “ressus-
citar os mortos” encontra uma ressonância na obra sembeniana.
Além dos impactos nefastos do colonialismo, encontra-se na
literatura e no cinema de Ousmane Sembène uma panóplia de
temas que remetem a um passado africano. Em Ceddo, a expansão
do islamismo e do cristianismo na África subsaariana foi tratada
de forma polêmica. A questão dos poderes temporal e religioso
foi abordada com propriedade.52 Embora a visão laica e marxista
do cineasta pudesse dar azo a uma eventual censura, um outro
motivo encontrou a comissão nacional de cinema para não auto-
rizar a exibição do filme. Considerou-se que a palavra título não
correspondia à ortografia. O próprio presidente Léopold S. Senghor
havia manifestado a sua opinião e o cineasta o respondeu em carta
aberta. O debate em torno da ortografia de Ceddo na imprensa na-
cional serviu para discutir sobre a política linguística do Senegal.53
52 Para uma visão geral da crítica religiosa na obra literária de Sembène, ver a tese de doutorado
em literatura africana de Abdoulaye Sall (2007).
53 Sobre o quiproquó em torno de Ceddo, ver entrevista de O. Sembène concedida a Josie Fanon
(1979).

188
IntelectuaIs das áfrIcas

As teses defendidas por Ousmane Sembéne neste filme en-


contraram forte resistência entre os especialistas. Para ficar num
exemplo, Jean Copans reagiu a quatro delas: a fraqueza do poder
local que favoreceu a conquista estrangeira; a débil organização
de certos grupos sociais, como os camponeses, que acabam por
ser traídos pela aristocracia tradicional; o islão militante, sectário,
violento e agressivo; a mulher que encarna uma liderança liberta-
dora.54 Para o antropólogo francês, Ousmane Sembène introduziu
um mito a mais no mercado dos valores libertários ao fazer de um
grupo social a encarnação de um povo testemunha e mártir.55 Cabe
ressaltar que a crítica historiográfica das fontes e a da tradição oral
não fez parte do trabalho do cineasta. E nem era esse o seu obje-
tivo. Se a sua interpretação cinematográfica não corresponde, em
termos espaciais e temporais, às fases do processo de islamização
da África subsaariana, isso não invalida a sua arte. Em Ceddo, a sua
visão crítica em relação às religiões “estrangeira” não atenta para
certos aspectos históricos da islamização da África subsaariana,
bem como enaltece uma tradição africana pré-colonial. Para Jean
Copans, além de cair na armadilha da negritude, o cineasta fez do
Islão uma realidade fantasmagórica. 56
No filme de curta metragem Taw, tem-se uma alegoria pós-
colonial. Uma criança tem um futuro tão incerto quanto a jovem
nação do Senegal. Dez anos depois da independência do Senegal,
Ousmane Sembène questiona o passado recente e o presente de
uma África independente.57 Como afirmou numa entrevista feita
pela viúva de Frantz Fanon, os filmes africanos devem colocar pro-
blemas das sociedades africanas.58 Ao trazer para a tela problemas
das sociedades africanos, o cineasta espera uma tomada coletiva
de consciência.
54 Escusado é lembrar que se o papel de líder de Aline Siote Diatta foi minimizado em Emitaï,
uma mulher liberadora tem papel de destaque em Ceddo. Em outros filmes como Faat Kine e
Moolaade, as mulheres são protagonistas. Na literatura, Sembène já tinha atribuído papel social
de destaque para as mulheres em seu romance Les bouts de bois de Dieu (1960).
55 Copans, 1980, p.848.
56 Copans, 1980, p.851.
57 Sobre a visão do Senegal na obra de Ousmane Sembène ver a tese de Daouda Mar (1984).
58 Ver entrevista de O. Sembène concedida para Josie Fanon (1968, p.116).

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IntelectuaIs das áfrIcas

A imagem-despertador tem um valor didático, pedagógico,


mas também heurístico. Sem fazer uma sociologia da juventude,
Ousmane Sembène mostra uma juventude confrontada com a
condição pós-colonial, de uma liberdade castrada pela falta de
recursos, de emprego, de esperança. Assim como nos filmes Borom
Sarret e Mandabi, em Taw tem-se um indivíduo com dificuldades
para fazer frente às vicissitudes da realidade social. Ao mesmo
tempo, o personagem pode representar um grupo social, etário,
ou mesmo uma nação em busca de dias melhores.
Em Taw, alguns elementos do filme desmistificam a jovem
nação, depois de uma década de independência. Cabe lembrar
que o mito tem uma função reguladora e orientadora. Como
escritor e cineasta, Ousmane Sembène se revoltou contra alguns
mitos, mas, nolens volens, construiu outros. Além da imagem-des-
pertador, podemos encontrar em seus filmes algumas imagens
constitutivas de um mito. A imagem mitológica faz parte da sua
narrativa visual para explicar como um grupo étnico ou social
ou mesmo nacional veio a ser o que é. Dito de outra maneira, o
mito é o relato de uma criação que se atualiza pela sua eficácia
simbólica, sobretudo no que diz respeito à sua gramática para
viver no mundo.
Talvez seja necessário advertir os leitores que o mito não tem
uma conotação negativa ou menor do que o saber histórico. Aliás,
historiadores podem também erigir mitos. Para Thomas Mann
(1929), Totem e Tabu (1913), de Sigmund Freud, é um dos mais
belos mitos escritos no século XX. Em carta para Albert Einstein,
o próprio Freud perguntava se “toda ciência não termina numa
espécie de mitologia?”
O mito evoca, geralmente, uma perda ou uma queda que, por
sua vez, remete a um passado remoto. Essa origem, que muitas
vezes se encontra perdida no tempo e no espaço, é tão necessária
para a organização de nossas vidas tanto no presente quanto para
a preparação delas diante do futuro. Os mitos na obra sembeniana

190
IntelectuaIs das áfrIcas

têm a ver com essa dimensão existencial, com a condição humana


diante do passado, do presente e do futuro.
Em seu filme Niaye, primeira adaptação de uma novela sua, mas
que seria publicada posteriormente, tem-se uma história marcada
por incesto, parricídio e usurpação de poder. Dessa sua novela
africana que trata questões universais que podemos encontrar em
Édipo ou Hamlet, Ousmane Sembène fez o seu primeiro filme com
uma equipe inteiramente africana. Para Vieyra, trata-se do filme de
Sembène que mais ficou preso ao texto original.59 Mas se o filme
aborda questões universais, elas emergem numa comunidade de
um vilarejo africano onde algumas tradições perdem a sua função
de garantir a coesão do grupo e certos interditos são transgredidos.
Como em outras novelas e outros filmes de Ousmane Sembè-
ne, Niaye tem uma componente moral que fundamenta a narrativa.
Sem idealização e sem detração, Ousmane Sembène trabalha com
primor a dimensão humana de cada personagem. Mas apostar
na humanidade não significa penhorar suas taras e falhas. É bem
verdade que Ousmane Sembène tratou mais das taras e falhas dos
colonizadores brancos e das elites africanas do que as eventuais
fraquezas ou pequenezas dos oprimidos. Ao denunciar os opresso-
res e seus lacaios, Ousmane Sembène não faz nenhuma concessão
quanto à cor, à confissão religiosa, à posição social, ao gênero ou
à idade das personagens.
Em Niyae, uma mulher nobre se depara com um mundo que
se desfaz diante dos seus olhos cansados. Depois de fazer a guerra
nas tropas coloniais, seu filho retorna louco ao vilarejo. Sua filha
foi vítima de um crime incestuoso. A mulher se suicida.60 Na voz
de um griot, a moral da história é prenunciada: “A história que eu
vos conto hoje é tão velha quanto o mundo. As instituições mais

59 Vieyra, 2012, p.48. Esse filme não teve uma distribuição comercial. O cenário foi depois retomado
por Sembène e publicado pela Présence Africaine sob o título Véhi Ciosane ou Blanche-Genèse em
1966.
60 O recurso ao suicídio como desfecho trágico, mas também como forma de resistência e defesa
da dignidade foi empregado pelo escritor nigeriano Chinua Achebe em seu clássico Things Fall
Apart (1958).

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IntelectuaIs das áfrIcas

primitivas, como as de nosso tempo, relativamente mais elabo-


radas, a condenam implacavelmente. (...) Pessoalmente, eu não
posso dizer quando começou essa história.” E assevera: “Possas
tu preparar a gênese de nosso mundo novo. Pois é das taras de
um velho mundo, condenado, que nascera este mundo novo tão
esperado, tão sonhado.”

VERSATILIDADE INTELECTUAL

As atividades de pescador, pedreiro e estivador seriam sufi-


cientes para acusar uma trajetória biográfica assaz variada. A dupla
condição de escritor e cineasta indica outrossim a polivalência
artística de Ousmane Sembène. No entanto, a sua versatilidade
intelectual extrapolou essas duas facetas. Desde a sua juventude,
ele militou em várias associações e organizações. De algumas delas,
foi ele mesmo um dos fundadores, como a Federação Pan-africana
de Cineastas.
Como intelectual, o escritor e cineasta Ousmane Sembène
contribuiu para pensar saídas a dilemas nacionais, sem nunca
perder a dimensão pan-africana e mesmo terceiro-mundista de
vários desafios das sociedades pós-coloniais. Assim como discutia
com seu amigo e também cineasta Paulin S. Vieyra sobre o devir
cinematográfico no Senegal, interessava tratar da estética e da
linguagem fílmica do Terceiro-Mundo com cineastas como Glau-
ber Rocha. Nesse sentido, o cinema de Sembène compartilha de
uma estética da resistência que visa romper com a colonialidade
da imagem. Por isso, talvez, o recurso à ancestralidade africana e
ao mito de origem na obra do cineasta senegalês pode ser visto
como uma crítica da imagem eurocêntrica que tanto marcou a
produção cinematográfica ocidental e contra a qual emergiu um
“terceiro cinema”61.

61 Sobre o cinema do Terceiro Mundo ou “terceiro cinema”, ver Ella Shohat e Robert Stam (2006,
59-65).

192
IntelectuaIs das áfrIcas

Figura 1- Paulin S. Vieyra, Glauber Rocha e Ousmane Sembène em frente ao prédio de


Actualités Sénégalaises. © PSVFILMS

Uma vez cineasta reconhecido internacionalmente, Ousmane


Sembène participou de vários eventos dedicados à sétima arte,
proferiu palestras e concedeu inúmeras entrevistas para jornalistas
de vários países. O uso da palavra foi também uma outra forma de
atuação do intelectual. Em diversos fóruns, o discurso do escritor
e cineasta articulou com maestria estética e política.
Uma outra atividade intelectual menos conhecida foi a partici-
pação do escritor e cineasta na imprensa local de Dacar. Ousmane
Sembène se valeu da palavra escrita não somente no campo lite-
rário, mas também no campo jornalístico. Juntamente com o seu
amigo linguista Pathé Diagne, ele fundou o jornal Kaddu, o primeiro
jornal em língua wolof.62 O semanário buscava preencher uma lacuna
na imprensa local. 63 Em Dacar, os jornais em francês e em árabe
tinham por público alvo, a comunidade francesa e sírio-libanesa
respectivamente. Os leitores nacionais eram poucos, em vista da
elevada taxa de analfabetismo entre os senegaleses.

62 No filme Xala (1975) há uma referência ao jornal Kaddu. Inclusive, a secretária da casa de im-
portação do comerciante El Hadji compra um exemplar de um jovem vendedor do jornal.
63 Na capa de Kaddu, abaixo do título, tem-se a seguinte grafia: benn yoon weer wune, o que pode ser
traduzido como “uma vez por semana”.

193
IntelectuaIs das áfrIcas

A publicação de um semanário em língua wolof era um desafio


para os editores. Não obstante, o jornal Kaddu buscava atingir um
público leitor ainda longe do alvo da política linguística oficial
da jovem nação senegalesa. Assim como acontecia no cinema de
Ousmane Sembène, a valorização das línguas populares orientou
a linha editorial de Kaddu.64 Além dos textos em wolof, o semaná-
rio recorreu a linguagem visual, com destaque para desenhos e
histórias em quadrinhos.
Na capa do semanário, o seu título era ilustrado na figura de
um bardo com seu tambor.65 A imagem era composta ainda por
crianças em torno do mensageiro que chegava à aldeia. Com o
seu instrumento, ele anunciava as novas aos aldeões. Destaca-se
nessa ilustração de capa do semanário uma referência a uma forma
tradicional de comunicação na África ocidental. Os editores de
Kaddu acreditavam que a imprensa e a sua linguagem escrita não
deviam se contrapor à comunicação baseada na tradição oral dos
africanos. Aliás, a linguagem imagética foi um recurso importante
do semanário Kaddu.

64 Embora a língua wolof predomine nas páginas do jornal Kaddu, outras línguas populares como
o poular e dioula também podem ser identificadas. Agradeço meu amigo Gilbert Ndecky por
chamar minha atenção para isso.
65 O termo wolof “Kaddu” pode ser traduzido por palavra ou mensagem.

194
IntelectuaIs das áfrIcas

Figura 2- Capa do terceiro número de Kaddu (1972)


editado por Ousmane Sembène e Pathé Diagne

Dos poucos números do semanário que fizeram parte da


coleta na biblioteca da Universidade Cheikh Anta Diop de Dacar,
percebe-se que os editores Sembène e Diagne apostavam nas
histórias em quadrinhos para popularizar certos acontecimentos
de um passado africano.66 Escusado é lembrar que a divulgação de
histórias em quadrinhos foi considerada uma “ameaça cultural”
em meados do século XX. Alguns defensores caturras de uma
literatura nacional criticaram à suposta corrupção dos valores e

66 O recurso às bandas desenhadas não era uma novidade na imprensa local de Dacar. Nas últimas
décadas do colonialismo francês, o jornal Echos d’Afrique noire publicou uma história em quadri-
nhos de autoria de um desenhista parisiense e cujo propósito era traduzir em imagens satíricas
a campanha difamatória que o hebdomadário de Maurice Voisin fazia contra a migração sírio-
libanesa na AOF. Sobre as imagens satíricas do jornal Echos d’Afrique noire e a campanha contra
os “amarelos”, ver Correa (2015).

195
IntelectuaIs das áfrIcas

americanização que se operavam entre os jovens pela leitura de


histórias em quadrinhos.67
No Brasil, o escritor Gilberto Freyre defendeu as histórias em
quadrinhos como uma linguagem moderna e capaz de difundir a
história brasileira, bem como também suas lendas. Entre 1948 e
1951, o escritor brasileiro publicou vários artigos sobre bandas de-
senhadas e nos quais ponderou a propalada aculturação dos jovens
por meio dessa forma de literatura estrangeira.68 Naquela altura,
alguns periódicos nacionais já publicavam bandas desenhadas em
suas páginas, mas havia uma “quase exclusiva americanidade de
motivos, símbolos e personagens.”69 No Rio de Janeiro, um jornal
estaria fazendo, com quadrinhos, “histórias não de bandidos nem
de rufiões mas de grandes homens e até de santos.”70 Cabe ainda
lembrar que o escritor Homero Homem havia iniciado uma cam-
panha de nacionalização da história em quadrinhos.
O zelo nacionalista e moralista reticente à influência americana
em termos de literatura infanto-juvenil, também se fez sentir no
cinema. Na África Ocidental Francesa, filmes americanos foram
alvos da censura da administração colonial. Também líderes de
comunidades cristãs e muçulmanas da AOF se manifestaram contra
a “corrupção de valores” que poderia advir com alguns filmes.71
No período pós-colonial, Ousmane Sembène reconheceu
não apenas o potencial do cinema, mas também das histórias em
quadrinhos para atingir jovens e adultos. Para o escritor e cineasta
senegalês, a banda desenhada era mais uma linguagem moderna
e um recurso visual para contar histórias. Como no cinema, as
67 Esse tema foi tratado com propriedade por Gonçalo Júnior (2004) que mostrou em seu livro A
Guerra dos Gibis que, para além do moralismo ou do nacionalismo de alguns nomes contrários às
histórias em quadrinhos, a censura tinha a ver também com interesses concorrenciais no mercado
editorial brasileiro.
68 Ver, por exemplo, os seguintes artigos publicados na revista O Cruzeiro (Rio de Janeiro): “Histórias
para meninos” (13/11/1948); “Outra vez as histórias em quadrinhos” (5/02/1949); “Histórias
em quadrinhos” (24/06/1950); “A propósito de histórias em quadrinhos” (31/06/1950); “Ainda
as histórias em quadrinhos” (8/07/1950); e, “Histórias em quadrinhos, nacionalismo e interna-
cionalismo” (9/06/1951).
69 Ver Freyre (1979, p.216).
70 Ibidem, p.213.
71 Sobre o cinema colonial na AOF, ver Goerg (2015).

196
IntelectuaIs das áfrIcas

histórias africanas poderiam ser “lidas” em quadrinhos nas páginas


de Kaddu. Apesar da curta experiência jornalística, tem-se com a
chefia editorial do primeiro semanário em wolof mais uma faceta da
versatilidade intelectual do escritor e cineasta Ousmane Sembène.
Como editorialista, a coerência em seus propósitos estéticos, éticos
e políticos foi, uma vez mais, comprovada.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Nos estudos sobre cinema, a forma e o conteúdo das imagens,


a estrutura da narrativa visual, a tomada dos planos, as alegorias e
os vários temas nos filmes de Ousmane Sembène foram tratados em
muitos artigos.72 No campo da literatura, seus romances e novelas
também foram objetos de vários estudos.73 No entanto, uma abor-
dagem interdisciplinar do conjunto de sua obra resta por fazer.74
Da obra sembeniana, procurei destacar a coerência de seus
propósitos e o quanto ela traduz um engajamento por uma toma-
da de consciência. A obra literária e cinematográfica de Ousmane
Sembène foi marcada por uma orientação marxista sem contudo
reduzir os temas tratados a qualquer determinismo. Outrossim, um
passado imanente não significa qualquer determinismo em rela-
ção ao futuro. As escolhas individuais e coletivas sempre tiveram
destaque em sua obra.
Assim como a imagem-despertador, a palavra (escrita e falada)
tem o seu poder de fazer acordar. Embora alguns estudos tenham
destacado a importância das línguas africanas em seus filmes e
relacionado a sua linguagem artística à tradição oral africana, no-
72 Um dos primeiros estudos sobre o cinema de Sembène foi o livro de Paulin S. Vieyra (1972), mas
que aborda somente os primeiros filmes (1962-1971). Uma coletânea sobre o cinema de Sembène
foi organizada por Françoise Pfaff (1995). Um dos mais completos estudos sobre o cinema de
Sembene é o livro de David Murphy (2001), embora não contemple toda a sua cinematografia.
73 Seu primeiro livro (Le Docker noir) é, sem dúvida, o mais estudado, inclusive em estudos de lite-
ratura comparada. Para ficar em quatro exemplos: Freuser (1986), Murphy (2000), Day (2006),
Thomas (2006).
74 Alguns estudos comparativos, como o livro organizado por Sada Niang (1997) e a tese de Hassane
Bourhane (2008), tentaram uma síntese do conjunto da obra de Sembène. A tese de Ahmed
Rufa’ï (1983) seria um outro exemplo de tentativa de síntese da obra sembeniana, porém através
da “imagem da mulher africana”.

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IntelectuaIs das áfrIcas

tadamente dos griots , pouca atenção foi dada às músicas enquanto


componente da estrutura audiovisual e igualmente estética dos
filmes de Ousmane Sembène. 75
Ainda sobre as músicas do cinema sembeniano, vale mencio-
nar alguns compositores, instrumentistas e cantores africanos que
participaram de seus filmes, como Manu Dibango (Ceddo), Samba
Diabara Samb (Xala), Baaba Mall (Gelwaar) e Yandé Codou Sène (Faat
Kiné). Além da plasticidade sonora de seus filmes, a gestualidade
ou a expressão corporal dos seus personagens também carece de
estudos mais aprofundados. Cabe lembrar que Ousmane Sembène
teve sempre um cuidado com gestos e posturas de seus figurinos
para que os mesmos correspondessem às especificidades dos có-
digos culturais africanos. Desse modo, os espectadores africanos
podiam se identificar ainda mais com as personagens dos filmes.
A propósito, o realismo de seus filmes tem certa coerência
com a participação de atores não profissionais e que atuam falan-
do em sua própria língua, mas essa “naturalidade” não é tão fácil
de (re)produzir.76 No caso do Senegal das décadas de 60 e 70, o
analfabetismo e o número reduzido de francófonos justificavam
ainda mais a política linguística que Ousmane Sembène adotara
para a sua produção fílmica. Por questões contratuais, algumas
vezes, seus filmes foram já produzidos com legendas ou mesmo
em duas versões.77
Por fim, chamo atenção para duas utopias que subjazem no
conjunto de sua obra: A utopia de um comunismo primitivo e a
de um comunismo futuro. Ambas orientaram respectivamente
algumas de suas interpretações sobre a África pré-colonial e a
África contemporânea. Assim como a sua produção literária, a obra
cinematográfica de Ousmane Sembène faz parte do seu trabalho
75 Beatriz Leal Riesco (2012) tratou das músicas em dois filmes de O. Sembène, mas sem a devida
profundidade analítica.
76 Ver entrevista de O. Sembène concedida para Kwate Nee Owoo (1989).
77 No caso de Taw, o filme falado em wolof teve legenda em inglês devido às condições contratuais
com a produtora dos EUA (VIEYRA, 2012:122). Para o filme Mandabi houve simultaneamente
uma realização em wolof e outra em francês por causa de imposição contratual. Sobre isso, ver
a entrevista de O. Sembène para Jeune Afrique (1968) e publicada em Vieyra (2012).

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IntelectuaIs das áfrIcas

intelectual em estudar o passado, pensar o presente e projetar o


futuro da África.
Ousmane Sembène interpretou a África com magistral refi-
namento, mesmo quando os recursos para a realização de seus
filmes foram escassos. Sua interpretação dos dilemas e desafios
africanos e a forma como colocava certas questões sempre foram
um convite para refletir e pensar sobre a condição humana. Por
fim, a obra sembeniana traduz o trabalho de um intelectual que
soube articular estética e política tanto para intervir no plano da
ficção quanto da realidade.

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202
IntelectuaIs das áfrIcas

FELA KUTI E O AFROBEAT: ENTRE A


DESCOLONIZAÇÃO ESTÉTICA
E A REINVENÇÃO DA ÁFRICA

Amailton Magno Azevedo1

Este texto pretendeu refletir sobre o legado musical, estético


e político de Fela Anikulapo Kuti no contexto do renascimento
cultural africano, bem como as representações descolonizadas
elaboradas pelo músico. Fela nasceu na Nigéria, no ano de 1938.
Ao longo de sua carreira, até 1997, compôs uma significativa pro-
dução musical que o alçou à cena da música mundial como um
dos mais criativos artistas, ao fundar o estilo musical conhecido
como afrobeat. Para tratar do seu legado organizei o texto em
temas-chave, considerados aqui, reveladores de seu pensamento:
a África de Fela; o afrobeat no contexto do Atlântico Negro; Fela,
a dança e o corpo negro, Fela: o revolucionário e as questões de
gênero e “Zombie”: uma pedrada no poder.
Analisando a partir da margem brasileira do Atlântico Negro2,
percebe-se que Fela foi uma figura vital na atualização do diálogo
intercultural e na reelaboração dos signos e símbolos africanos na
cultura negra mundial. A história de Fela e da música afrobeat tem
se transformado em referência estética e política no contexto da
música popular negra do lado de cá da margem atlântica. Sobre-
tudo, após o lançamento do livro “Fela. Esta puta vida”, de Carlos
1 Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo – PUC/SP. Pós-doutor pela Univer-
sidade do Texas e Universidade de Coimbra.
2 Ver em GILROY, Paul. O Atlântico Negro: Modernidade e dupla consciência, São Paulo, Rio de
Janeiro, 34/Universidade Cândido Mendes – Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001.

203
IntelectuaIs das áfrIcas

Moore, na edição portuguesa, em 2011, vinte nove anos após a


primeira edição original. Ao público brasileiro, em particular ao
público negro, este livro, que pode ser considerado a primeira
referência na historiografia sobre Fela e o afrobeat, permitiu re-
pensar o legado do músico no contexto da música popular negra
e urbana na segunda metade do século XX. Ambos, configuram-se
como expressões concretas da narrativa que compõe, em parte, a
história da descolonização e da independência africana. Além da
comentada referência a Carlos Moore, uma intensa e elaborada
crítica teórica e musical em torno da obra de Fela se fez. Entre as
quais pode-se considerar “Afrobeat! Fela and the Imagined Continent”,
de Sola Olorunyomi, “Arrest the Music! Fela and his Rebel Art and Poli-
tics”, de Tejumola Olaniyan e “Fela: The Life of an African Musical Icon”,
de Michael E. Veal. Textos que ampliaram a análise e consolidaram
uma historiografia sobre o músico.
A crítica cultural e historiográfica tem sido categórica ao afir-
mar que sob o prisma da cultura, sobretudo, ao que tange as artes
populares, a África conquistou, parcialmente, sua independência.
Se a África viveu no contexto da era pós-colonial, o que se deno-
mina, nos planos social e econômico, de “décadas perdidas”3, a
vibração cultural das artes negras reposicionou o continente numa
dimensão de vitalidade e pujança. Deve-se evidentemente pensar
essa exuberância no contexto das lutas de resistência cultural,
onde as estéticas negras e africanas encontram refúgio, seja pela
persistência das práticas ancestrais como oralidade, culto a an-
cestrais, artes do corpo, musicalidades, máscaras; bem como pela
emergência de novas linguagens artísticas como cinema, literatura
livresca, pintura e outras artes.
Sem ser otimista demais, mas sempre recusando o pessimismo
autodestrutivo, considero o relativo renascimento cultural africano
como um importante legado deixado para os povos negros do mun-
do no seu processo de construção de autoestima e de identidade.

3 Ver em MAHAMA, John Dramani. Meu Primeiro Golpe de Estado e outras histórias reais das décadas
perdidas da África, São Paulo: Geração Editorial, 2014.

204
IntelectuaIs das áfrIcas

Carlos Moore, já afirmou que ser otimista não significa alienação,


mas uma forma de repelir a marginalização total.4
Ao olhar em retrospectiva a vida de Fela, constata-se que sua
obra musical estava inserida nessa dinâmica de reinvenção da África
sob o prisma da descolonização e imersa no contexto do renas-
cimento. Nesta tarefa de reinvenção, Fela construiu sua visão de
mundo ancorada em valores considerados vitais no seu processo
de crítica à colonização e aos fracassos do pós-independência:
liberdade, solidariedade, humanismo; sem deixar de ser crítico ao
racismo, à ganância, à guerra, à hipocrisia.5 Na sua visão, também
foi um homem que confrontou e questionou os sistemas de ver-
dade colonialistas, bem como, o puritanismo das elites africanas
cristãs e islâmicas, apegadas ao poder, à violência e à corrupção.6
Sua coragem vislumbrava outra África, que não apenas superasse
as heranças da colonização, mas as frustrações do período pós-
colonial.

A ÁFRICA DE FELA KUTI: ENTRE A COLONIZAÇÃO, A INDEPEN-


DÊNCIA E O RENASCIMENTO CULTURAL

A África que Fela viveu está contextualizada em dois períodos


cruciais da sua História contemporânea: o colonial e o pós-colonial.
Desde o seu nascimento, em 1938, até o ano de seu falecimento,
em 1997, Fela Kuti, pode testemunhar essas duas experiências
distintas. A primeira, amarga, sombria e devastadora, a segunda,
que nos seus ideais vislumbrava um tempo de esperança, reergui-
mento e renascimento.
De um modo geral a historiografia pós-colonial africana, tem
sido mordaz na crítica tanto do período colonial como da África
pós-independente. Os estudos africanos de tradição marxista, após
a década de 50, desmontaram a versão colonial, a favor de uma nova
inflexão interpretativa, que buscava não só oferecer um passado de
4 Ver MOORE, Carlos. Fela. Esta Puta Vida, Belo Horizonte: Nandyala, 2011.
5 MOORE, Carlos. Fela. Esta Puta Vida, Belo Horizonte: Nandyala, 2011, p. 20 e 21.
6 Ibidem, p. 15

205
IntelectuaIs das áfrIcas

glórias, bem como projetar um futuro de esperança por meio da


conquista da independência. No entanto, nessa inflexão, se cons-
truiu uma versão triunfante sobre o presente e o passado africano.
A historiografia sobre a África pós-colonial alerta para esse perigo.
Não há uma África sublime e impecável, seja no ontem como na atu-
alidade. Escapar desse perigo significa produzir um ponto de fuga a
uma versão idílica. A historiografia afirma que a África transitou de
uma esperança utópica de renascimento com a meta narrativa da
independência para uma realidade de frustrações e desencantos.7
Apesar das frustrações do pós-independência, a África conti-
nua sendo aquilo que Gilberto Gil chama de “terra fundante, terra
matriz, terra onde se encravam as raízes corporais e álmicas da
humanidade, reconhecido berço de todos nós”8. É na África que
“a civilização humana tem ido buscar imensas riquezas materiais
e simbólicas para construir sua grande obra”, mesmo sabendo que
ali também se encontram os mais injustiçados na história mundial9.
De qualquer maneira, a África de Fela continua sendo um longo
intervalo de tempo e espaço onde a pujança estética por meio das
artes e música popular continua a desafiar visões sombrias que
apostam no seu desaparecimento, bem como fazem renascer no-
vas formas culturais resistentes à recolonização mental e cultural.
Se Gil afirma ser a África a terra onde a civilização humana deseja
encontrar riquezas materiais e simbólicas, é porque vibra uma
experiência artística, tida pela crítica cultural como a nova vida no
pós-independência. Por meio delas, formas de emancipação, reer-
guimento e inovação estética se projetam na contemporaneidade
tendo a África como o centro de gravidade emergente.
A reinvenção da África sob o prisma do renascimento e inde-
pendência produziu um ponto de fuga ancorada em sua própria
História.
7 MBEMBE, Achille. Sair da Grande Noite: Ensaio sobre a África descolonizada, Luanda: Angola:
Edições Mulemba, Mangualde: Portugal: Edições Pedago, 2014, p. 200.
8 Gilberto Gil. Ver em MOORE, Carlos. Fela. Esta Puta Vida, Belo Horizonte: Nandyala, 2011, p.
13.
9 Ibidem.

206
IntelectuaIs das áfrIcas

Se a ideologia do “renascimento africano” conheceu fluxos


e refluxos, as independências libertaram definitivamente
sem dúvida, no domínio da cultura, as forças criadoras das
sociedades africanas que já nada poderia conter, mesmo
no tempo dos despotismos dos partidos-Estados-nações10

Libertar forças criadoras significava refletir sobre o papel


assumido por artistas que buscaram liberdade, autonomia e cria-
tividade. Não seria exagero afirmar que as artes africanas neste
contexto produziram ineditismos estéticos em diferentes domínios:
literatura, cinema, poesia, teatro e música. Cabe assinalar que essa
produção ficou sob o domínio de elites intelectuais preocupadas
em inventar uma linguagem anticolonial.
Sob o prisma das culturas populares, “as sociedades africanas
aparecem como um terreno fecundo de experimentações perma-
nentes e de invenções mais ou menos espontâneas e mais ou menos
duradouras”.11 Sobre esse aspecto Ki-Zerbo, teceu reflexões brilhan-
tes quando afirmava haver na África potencialidades em diferentes
níveis: do letrado ao oral e popular; mas também na dimensão das
sociabilidades africanas, com sua “economia solidária”, com a “arte
do diálogo”, do saber ouvir, do “cuidado com os mais fracos”, da
relação equilibrada com o ambiente, “da relação com o amor, a
saúde, a morte, a gestão dos conflitos e com os antepassados”. 12
Mas nem por isso a renascença cultural, pode ser entendida
como um processo acabado. É nesse sentido que Elikia M´Bokolo
ao refletir sobre este tema interroga seu alcance e significado13.
Uma interrogação que requer diferentes respostas na medida que
a vida cultural do continente é dessemelhante e descoincidente e
a insegurança social se impõe como experiência trágica aos mais
necessitados.
10 M`BOKOLO, Elikia. África Negra: História e Civilizações – do século XIX aos nossos dias, Portugal:
Edições Colibri, 2007, p. 582.
11 M`BOKOLO, Elikia. África Negra: História e Civilizações – do século XIX aos nossos dias, Portugal:
Edições Colibri, 2007, p. 597.
12 KI-ZERBO, Joseph. Para Quando África? Rio de Janeiro: Pallas, 2006, p. 158.
13 M`BOKOLO, Elikia. África Negra: História e Civilizações – do século XIX aos nossos dias. Portugal:
Edições Colibri, 2007, p. 586.

207
IntelectuaIs das áfrIcas

Do ponto de vista político a renascença africana esteve sin-


tonizada com os ideais do pan-africanismo. Teoria que buscava
estruturar naquele momento, uma ideia de África como pátria dos
africanos e uma identidade assentada na geografia, na raça e na
tradição. O pan-africanismo no período da independência buscou
estabelecer um projeto político em torno da unidade africana.
Desse modo pressupunha a construção de um sentimento de
pertencimento e solidariedade que buscava fortalecer a África no
cenário global.
A concepção de Fela coadunava-se com esse projeto tendo
como referência o ganês Kwame Nkrumah, o congolês Patrice Lu-
mumba e os afro-diaspóricos Marcus Garvey, W.E.B Du Bois e Mal-
com X. 14 Do ponto de vista teórico a visão de Fela foi influenciada
diretamente pela perspectiva revisionista da afrocentricidade. Tal
tendência teórica considerava a África como berço da anterioridade
humana e o Egito uma civilização clássica negro-africana que contri-
bui não só para desenvolver o continente, mas também a civilização
ocidental. Os autores da afrocentricidade e dos estudos egípcios
como Dr. Ben-Jochanan, George James, Martin Bernal, Molefi Kete
Asante e Cheik Anta Diop, definiam uma nova visão sobre a Áfri-
ca deslocada da visão colonial eurocêntrica.15 A partir da década
de 1980, o pan-africanismo de Fela foi pautado por questões de
ordem religiosa e mística, exprimindo uma visão transcendental e
essencialista da identidade e tradições africanas.16Desse modo sua
inflexão direcionou-se para uma perspectiva nativista sem se fechar,
no entanto, para as relações transculturais, como as entabuladas
com a diáspora negra por meio da música e ideias políticas.

14 OLORUNYOMI, Sola. Afrobeat! Fela and the Imagined Continent. Eritréia: Africa World Press, p.
202.
15 VEAL, Michael E. Fela: The Life and times of na African Musican Icon. Philadelphia: Temple Uni-
versity Press, 2000, p. 249.
16 VEAL, Michael E. Fela: The Life and times of na African Musican Icon. Philadelphia: Temple Uni-
versity Press, 2000, p. 246.

208
IntelectuaIs das áfrIcas

O AFRO BEAT NO CONTEXTO DO ATLÂNTICO NEGRO: ANTINO-


MIAS DA MODERNIDADE

Se o Ocidente se espalhou pelo mundo forçando silêncios


de memórias, paradoxalmente formas culturais extraocidentais, a
exemplo das memórias rítmicas do negro africano, também se inter-
nacionalizaram e produziram bricolagens de linguagens em todas
as fronteiras do espaço Atlântico. Aí reside, por meio do processo
de bricolagens, a possibilidade de conceber o afrobeat como uma
música africana urbana e internacional, criada no contexto africano/
nigeriano em diálogo com os produtos culturais afrodiaspóricos.
A formação das musicalidades urbanas na África do Oeste
fez-se em contato com as musicalidades das diásporas negras do
Atlântico. Desde os anos 20, encontra-se vestígios de memórias
sônicas ligadas ao jazz, às músicas e ritmos do Brasil e Caribe
ecoando nas bandas de lá.17
Essas conexões guardam também um rastro de memórias rít-
micas entre Brasil e Nigéria desde a década de 30 do século XIX,
quando os retornados brasileiros se estabeleceram em Lagos e
consolidaram o brazilian quarter nos distritos de Popo Aguda, Popo
Maro e Portuguese Town. Os iorubás e criolos nascidos no Brasil
formaram uma comunidade e contribuíram significavamente na
culinária, arquitetura e musicalidades. Os retornados levaram suas
memórias musicais como careta, bumba-meu-boi, festa do Bonfim
além de instrumentos como o pandeiro. Há também a memória
de tambores (bane, sinéga e samba) dos retornados que impacta-
ram na formação de danças e estilos musicais como o asikó e o
jújù music.18 As musicalidades dos negros brasileiros retornados
impactaram também na formação de outros estilos.

17 WATERMAN, Christopher A. Aṣíkò, Sákárà and Palmwine: Popular Music And Social Identity In
Inter-War Lagos, Nigeria, Urban Anthropology and Studies of Cultural Systems and World Eco-
nomic Development, Vol. 17, No. 2/3, Black Folks In Cities Here and There: Changing Patterns
of Domination anf Respose (SUMMER-FALL, 1988, pp. 229-258).
18 Ibidem.

209
IntelectuaIs das áfrIcas

A região do oeste africano recebeu influência de formas


ocidentais populares incidindo na elaboração de ritmos locais.
O surgimento do estilo musical high-life, pode ser considerado
exemplo desse diálogo. Aig-Imoukhuede afirma ter sido esse estilo
“uma expressão musical comum no oeste africano, cujas formas
ocidentais populares foram fundidas com música de entretenimen-
to tradicional”.19 No contexto nigeriano, Fela Kuti, se inseriu no
universo do highlife, num período anterior ao seu envolvimento
com o afrobeat. Um estilo musical urbano que se tornou expressão
musical no contexto da África do Oeste, desde o final do século
XIX, especificamente na região fanti.
M`Bokolo afirma que o highlife se desenvolveu sob,

a influência das músicas estrangeiras (marchas militares,


canções de marinheiros e cantos populares europeus, hinos
religiosos, etc.); a existência de uma clientela, a burguesia
negra e mestiça aculturada cujo nome e gênero da vida
foram imediatamente associados a essa música (high life
significa “alta roda” e, por último, o facto de a assimilação
das influências estrangeiras ter transitado por intermedi-
ários culturais negros, em especial os Kru da Libéria, que
estavam instalados em grande número nos portos e tinham
grande reputação quer como marinheiros quer como gui-
tarristas, e os negros das Américas.20

No final dos anos de 1950, ainda sob a égide do high-life, Fela


formou sua primeira banda, o Koola Lobitos, coincidindo com sua
estadia em Londres quando estudava música, após o abandono
do curso de medicina. Em 1969, viajou aos EUA onde passou a
ter contato com as ideias do nacionalismo negro americano. Após
conhecer e namorar Sandra Isidore, uma ativista do movimento
negro dos EUA, se inseriu no contexto de luta política e racial. Foi
Sandra quem o introduziu às ideias políticas de Malcom X, apre-
19 “a musical expression common to West Africa in which western popular forms got fused with
tradicional entertainment music”. FRANK, Aig-Imoukhuede. Contemporary Culture. In:Lagos,
ed. by A. B. Aderibigbe, 1990, p. 214.
20 Ibidem.

210
IntelectuaIs das áfrIcas

sentando-lhe a autobiografia do líder negro. Ligou-se também ao


vocabulário musical do jazz e da soul music; o que lhe provocaram
novas questões do ponto de vista musical. Sua concepção musical,
desenvolvida com o highlife, estava ancorada numa visão despo-
litizada e romântica. Até então, seu olhar voltado para compor e
cantar temas que tratavam de “chuva”, “amor” e outros conteúdos
ligados à diversão se transforma radicalmente.21
A visão de Fela se “cristalizou num período em que os povos
negros da África, Caribe e das Américas estavam estabelecendo uma
aliança política, cultural, artística e pessoal sem precedentes”.22
Aliança que durante as décadas de 1950 e 1960 possibilitou forjar
o nacionalismo africano e caribenho e a luta pelos direitos civis nos
EUA como força política. Esse movimento se desdobra na década
seguinte, internacionalizando a narrativa do “black power”.23 Di-
reitos civis, descolonização e independência tornaram-se os temas
centrais da luta negra na segunda metade do século XX.
Nos EUA, em particular, o músico travou relações diaspóricas
que contribuíram na preparação do afrobeat; incorporando estilos
musicais, instrumentos e ideias inspiradas no discurso do nacio-
nalismo negro dos EUA. A admiração de Fela por Malcom X e à
música negra dos EUA contribuiu significativamente na configura-
ção estética e política do afrobeat.

Isso foi em 1970, 1971 e 1972. Em todo caso, minha cabeça


ainda tava cheia com todo o lance americano: Panteras
Negras... Malcom X... racismo... os horrores que vivi lá...
Sandra... Cara, até hoje continuo pensando naquela mulher!
Que mulher maravilhosa.24

21 MOORE, Carlos. Fela. Esta Puta Vida, Belo Horizonte: Nandyala, 2011, p. 87.
22 VEAL, Michael E. Fela: The Life and times of na African Musican Icon. Philadelphia: Temple Uni-
versity Press, 2000, p.247. “Fela´s vision crystallized in an era in which black people from Africa,
the Caribbean, and the Americas were forming unprecedented political, cultural, artistic and
personal alliances”.
23 VEAL, Michael E. Fela: The Life and times of na African Musican Icon. Philadelphia: Temple Uni-
versity Press, 2000, p. 247.
24 MOORE, Carlos. Fela. Esta Puta Vida. Belo Horizonte: Nandyala, 2011, p. 123.

211
IntelectuaIs das áfrIcas

Após essa experiência, ele modifica sua forma de pensar. Nasce


em Fela uma nova consciência sobre si, os negros e a África. Sua
visão colonizada e apolítica foi cedendo lugar para uma atitude mais
combativa, descolonizada e ativista. Nessa transição, a mudança
foi transformadora. Foi a partir de então que o músico reelabora
suas referências levando-o a articular o estilo afrobeat, como uma
música carregada de temas elogiosos à África, à negritude, à cultura
iorubá entre outros temas, bem como assumindo uma postura po-
lítica crítica às heranças da colonização e do autoritarismo político
africano. Desde então, seu discurso com as bandas Nigéria 70,
África 70 e Egypt 80 adquiriu o tom político e contestador. Pode-se
também considerar que “os elementos africanos no afrobeat foram
formados dentro de uma interação inter-cultural em curso entre
África e a Diáspora” 25, influenciando na elaboração do estilo e na
articulação da africanidade de Fela.
Do ponto de vista estético o afrobeat se configurou como uma
musicalidade dançante e provocadora daquilo que Carlos Moore
designa como um estado de transe.26 Uma experiência estética
intensa e vibrante e um modo de compreender a África fora dos
clichês, que a associam, quando olhada sob o prisma da música,
como o continente dos “ritmos frenéticos, tonalidade jubilosa e
a instrumentação colorida”.27 Para além desses clichês o afrobeat
guarda uma musicalidade intrínseca que lhe é devida e própria da
história de Fela que foi filho da África, da Nigéria e dos iorubás.
Não há nada de jubiloso ou frenético nesse estilo que veicule uma
alegria vazia. Ao contrário, há um descontentamento explícito na
forma e no conteúdo do estilo.
Inspirada na vida dos injustiçados, do gueto e contra as insti-
tuições do status quo, o afrobeat surgiu da necessidade de recom-
posição da História da África, do seu renascimento, da superação
25 VEAL, Michael E. Fela: The Life and times of na African Musican Icon. Philadelphia: Temple
University Press, 2000, p. 247. “the african elements in afrobeat have been fashioned within an
ongoing cross-cultural interaction between africa and the diaspora’.
26 MOORE, Carlos. Fela. Esta Puta Vida. Belo Horizonte: Nandyala, 2011, p. 17.
27 MONGA, Célestin. Niilismo e Negritude: As artes de viver na África; tradução Estela dos Santos
Abreu. São Paulo: Martins Fontes, 2010, p. 85.

212
IntelectuaIs das áfrIcas

do passado colonialista e do esquecimento no pós-independência.


Produto misto do cruzamento de “Funk, Jazz, Salsa e Calipso com
Juju, Highlife e os padrões percussivos africanos”, o afrobeat tornou-
se, segundo Fela Kuti, na música clássica africana.28 Alcançando uma
dimensão global o estilo se transformou em “música internacional”
dentro do “ciclo popular cosmopolita e cosmopolítico da segunda
metade do século XX”.29
Do ponto de vista político o afrobeat tornou-se, via música,
em uma ação política para criticar as injustiças sociais. Do ponto
de vista social, se transformou em música popular desde os anos
70. Para Michael E. Veal, sua popularidade refletia uma ressonân-
cia social com amplo impacto entre os jovens africanos, desde a
Nigéria, como em outras cidades africanas como Dakar, Douala e
Acra. Para os jovens, expressava um estilo urbano, contemporâ-
neo e cosmopolita. Uma música que oferecia tanto prazer como
modo de protesto simbólico às permanências residuais da cultura
colonial. Jovens, intelectuais, estudantes e rebeldes urbanos viam
no afro-beat uma expressão política pró-negra.30 Desse modo,
segundo Olorunyomi, o afrobeat não pode ser reduzido apenas a
um ritmo ou prazer musical, mas também a uma prática cultural e
política31. Para o público oferecia uma forma dissidente ao clima de
conformidade das elites, bem como um ponto de fuga aos clichês
da era nacionalista. A retórica de Fela pró-negra atraia inclusive
setores políticos com inclinações marxistas que desprezavam as
convenções estabelecidas.32
Para Fela, tais posturas foram vividas, sobretudo, nos espaços
da Kalakuta e Africa Shrine- enclaves onde o músico podia expres-
sar essa atitude. No enclave da Kalakuta, dividida em I, II e III, os
sonhos assentados em vida comunitária puderam ser realizados.

28 MOORE, Carlos. Fela. Esta Puta Vida. Belo Horizonte: Nandyala, 2011, p. 24.
29 Gilberto Gil. Ver em MOORE, Carlos. Fela. Esta Puta Vida. Belo Horizonte: Nandyala, 2011, p. 13.
30 VEAL, Michael E. Fela: The Life and times of na African Musican Icon. Philadelphia: Temple Uni-
versity Press, 2000, p. 125.
31 OLORUNYOMI, Sola. Afrobeat! Fela and the Imagined Continent. Eritréia: Africa World Press, p. 173.
32 VEAL, Michael E. Fela: The Life and times of na African Musican Icon. Philadelphia: Temple Uni-
versity Press, 2000, p. 125.

213
IntelectuaIs das áfrIcas

Ali Fela, convivia com suas mulheres, filhos, músicos, amigos,


dançarinos e staff de domésticos oriundos não só da Nigéria,
mas de Gana, Togo, Guiné Equatorial e República Democrática do
Congo, além de negros da diáspora33. A prática musical, política
e de convivência em torno da Kalakuta I, II e III, configurava uma
mini-república sendo partilhada por todos os membros. Pode-se
considerar que esse modo de viver de Fela compunha também a
estética e a política do afrobeat.
Quanto à dimensão da indústria e a tecnologia de massa, o afro-
beat não pode ser considerado uma “culinária” sonora, tampouco
música codificada “para consumo passivo”.34 Entre o lamento e a
rebeldia, Fela fez do afrobeat um instrumento crítico da pilhagem da
África. Por meio desse estilo, recompôs uma tradição ancestral na
construção de uma possível comunidade global.35 Desejou encarar
“a dimensão trágica da África”, “dilacerada pela contradição entre
negar uma herança de submissão e afirmar um novo destino”36,
como assim, sugerem o repertório das letras.
Simbolicamente as letras transformavam-se em “pedras atira-
das nas classes dominantes”.37 Nelas revelam-se a orientação ideo-
lógica e política de crítica ao Estado pós-colonial, de repulsa ao im-
perialismo euro-americano e de apoio aos ideais pan-africanistas.38
O afroabeat situa-se também dentro dos novos produtos cul-
turais africanos forjados no diálogo intercultural, configurando
o que a crítica cultural e musical denomina de cosmopolitismo
nativista.39 Uma articulação transcultural entre diferentes saberes
e valores negros da diáspora e da África. Fela soube tecer de modo
brilhante as linguagens rítmicas, sonoras, visuais locais e internacio-
33 OLORUNYOMI, Sola. Afrobeat! Fela and the Imagined Continent. Eritréia: Africa World Press, p. 182.
34 OLANIYAN, Tejumola. Arrest the Music! Fela and his Rebel Art and Politics. USA: Indiana University
Press, 2004, p. 108.
35 Gilberto Gil. Ver em MOORE, Carlos. Fela. Esta Puta Vida. Belo Horizonte: Nandyala, 2011, p. 13.
36 Gilberto Gil. Ver em MOORE, Carlos. Fela. Esta Puta Vida. Belo Horizonte: Nandyala, 2011, p. 13.
37 MOORE, Carlos. Fela. Esta Puta Vida. Belo Horizonte: Nandyala, 2011, p. 24.
38 OLANIYAN, Tejumola. Arrest the Music! Fela and his Rebel Art and Politics. USA: Indiana University
Press, 2004, p. 125 e 158.
39 OLANIYAN, Tejumola. Arrest the Music! Fela and his Rebel Art and Politics. USA: Indiana University
Press, 2004, p. 158.

214
IntelectuaIs das áfrIcas

nais. Mesmo afirmando um nativismo inflexível, buscando sempre


defender o que entendia como autênticas instituições africanas,
sempre manteve paradoxalmente uma paixão pelo transnacional
e global.40 Essas articulações, compunham aquilo que Tejumola
Olaniyam afirma ser a antinomia central da ideologia de Fela: o
nativismo e o universalismo. Mas, essa antinomia em Fela não
despreza o passado africano, a cultura iorubana, tampouco faz
um elogio cego de um cosmopolitismo assentado na modernidade
ocidental como o paradigma a ser seguido. Seu cosmopolitismo
nativista situa-se numa inflexão onde a África é concebida como
centro da perspectiva felaniana.
Fluxos e Refluxos de movimentos sônicos nas duas margens
do Atlântico Negro e entre as diásporas negras promovendo novos
encontros e conexões. Reestabelecimento de injunções culturais
concretas e configuração de mapas musicais; bem como a forma-
ção de identidades negras cosmopolitas. Comunicações rítmicas e
melódicas que se complementavam e se expandiam em todos os
sentidos do Atlântico de modo circular, giratório e policêntrico.
Sob a égide dos intercâmbios culturais negros, configurou-se
a modernidade negra como uma antinomia da modernidade eu-
ropeia. Não se trata de uma cópia da modernidade branca (canto
operístico, enquadramentos harmônicos definíveis). Evidente que
a ideia de antinomia negra, deve ser entendida como uma descoin-
cidência estética e cultural que se fez no diálogo não apenas com
os signos afro-diaspóricos, mas também com linguagens extra-
africanas. Antinomia negra que se fez e penetrou inclusive o espaço
eurocidental. Desse modo, modernidade negra se configurou como
saberes impregnados de signos e símbolos do mundo africano e
do mundo Atlântico.
No campo musical, os saberes produzidos fortaleceram as
memórias em torno da dança e do canto; tendo sempre o corpo
como suporte da preservação de patrimônios históricos e culturais.

40 Ibidem.

215
IntelectuaIs das áfrIcas

As novas injunções musicais do Atlântico redimensionaram tradi-


ções das duas margens do Atlântico negro, atualizando referências
estéticas. Desse modo, os ritmos afro foram reelaborados como
produtos da antinomia negra, desafiando os enquadramentos das
narrativas coloniais e forjando resistências.
O canto de Fela Kuti é exemplo dessa manifestação de resistência.
Uma forma de cantar menos polida e mais sensorial e visceral. Não há
um polimento na interpretação e de definição perfeita do canto, nem
mesmo a busca de uma excelência da voz. Não há em Fela, a influ-
ência operística na forma de cantar. É improviso, é canto anasalado,
é um canto negro. Gilberto Gil fala dessa maneira de cantar em que
se busca uma “excelência da alma, numa emissão mais natural, mais
malemolente, mais negra mesmo”41.

Uma forma anasalada, gutural, mais onomatopaica e convul-


siva no sentido de que veicula necessariamente uma energia
do corpo inteiro. Não é uma forma de cantar buscada no
refinamento, no falsete do bel canto, na ascese branca.
Canta o corpo todo passando pela garganta, sacode a voz,
sacode as palavras, tudo. É a escola negra.42

O despojamento, no qual Fela se apoiava para cantar, revela,


além de domínio da voz, um conceito vocal coincidente com aqui-
lo que Gil afirma. Essa escola se conectou ao asfalto, à cidade, às
tecnologias digitais da informação musical e na cultura musical
urbana. Esse jeito negro de cantar constituiu uma particularidade
estética que lhe é intrínseca à sua história e cultura, mas também
pela incorporação de elementos culturais alheios.

FELA, A DANÇA E O CORPO NEGRO

O movimento corporal de Fela constata aquilo que a crítica


musical afirma a respeito da dança e música ao sul do Saara: que o

41 Ver em Revista de Cultura Vozes. Petrópolis: Vozes, ano 71, n. 9, nov./ 1977.
42 Ibidem.

216
IntelectuaIs das áfrIcas

corpo negro manifesta uma estética particular e específica, definida


por movimentos sinestésicos e policêntricos. Essas são as caracte-
rísticas com validade pan-africana. “É o movimento que distingue a
África negra do resto do mundo”.43 Ao sul do Saara “os movimentos
de dança parecem sair de várias partes do corpo independentes
entre si”.44 Preserva uma atitude corporal designada de colapso;
como uma exclusividade estética negra, bem como a persistência
da memória ancoradas na execução sígnica do corpo negro.
Cabe também conceber a função que a música tem neste con-
texto estético. Assim como a dança possui esse traço específico
de movimento e policentralidade, a música ao sul Saara dispõe da
polirritmia como um dos seus aspectos peculiares. Assim como
evidencia-se uma postura corporal policêntrica, tem-se uma atitude
musical polirrítmica.
Havia também em Fela um gesto político onde transformava
o próprio corpo, os de seus músicos e dançarinas em texto com
mensagens culturais. Danças, pinturas corporais, roupas e perfor-
mances com tambores expressavam o orgulho de pertencimento
africano. Essa dimensão visual fazia parte de um conceito que
extrapolava o campo musical para o campo imagético do artista.

O agudo senso dramático de Fela foi abundante fonte de


visualidade em sua música. Ele também utilizou ampla-
mente sua cultura tradicional Yorubá, com suas expressivas
escultura, teatro, música, roupa, e consequentemente sua
linguagem.45

Desta forma, a dimensão estética do afrobeat, tinha em dife-


rentes linguagens um espaço de representação, ancorado evidente-
mente, na teatralidade do corpo negro. Nele, Fela pôde expressar

43 KUBIK, Gerhard. Música e Dança ao Sul do Sahará. Oxford: Cultural Atlas of Africa, 1981, p. 2.
44 Ibidem.
45 “Fela`s acute sense of the dramatic was the source of much of the visuality of his music. He
also lavishly drew from his Yoruba cultural tradition, with its very expressive sculpture, theatre,
music, clothing, and so on, and its language”. OLANIYAN, Tejumola. Arrest the Music! Fela and
his Rebel Art and Politics, USA: Indiana University Press, 2004, p. 124..

217
IntelectuaIs das áfrIcas

uma exuberância orgulhosa e uma atitude desembaraçada e ex-


pansiva. A postura rebelde e narcísica do músico e suas dançarinas
realçava a defesa dos valores culturais e da identidade iorubanos/
nigerianos/africanos. A abundância excessiva do movimento cor-
poral, a exuberância rítmica, a vivacidade das pinturas corporais
e a vitalidade da dança revigoravam uma independência cultural.
Não seria exagero afirmar que o corpo negro de Fela significava
uma forma de resistência aos traumas herdados dos séculos de
escravidão e colonização; bem como de transgressão à ditadura
nigeriana no pós-independência que o torturou física e psicolo-
gicamente ao longo da sua carreia. Nenhum desses três sistemas
de verdades, foram capazes de fazer sucumbir a estética corporal
do músico. Deve-se reconhecer este espaço “como portador de
conhecimento”46, arte e memória histórica.
A performance corporal de Fela desempenhava, segundo
Olorunyomi, a criação de um espaço cultural de liberdade; bem
como a dissipação de medos, dúvidas e inibições, tanto do ponto
de vista político como moral.47 Inspirando-se em elementos esté-
ticos de artistas africanos como Werewere Linking, Wole Soyinka,
bem como à figuras míticas como Ogum e ancestrais como Shaka
Zulu, o músico forjou uma política do corpo impregnada de signos
e símbolos de diferentes regiões da África.48

FELA: O REVOLUCIONÁRIO E AS RELAÇÕES DE GÊNERO

Não há adjetivo que consiga traduzir o legado de Fela. Ele foi


perspicaz, inventivo, intenso e revolucionário. Conectou sua música
e imagem sempre em diálogo com o universo iorubá e os valores
desta cultura. Sua perspicácia, pode ser associada a cosmovisão io-
rubana. Neste contexto, estar sempre atento com o mundo ao redor
46 RAMOS-SILVA, Luciane. Imagens Latentes: civilização, charme e outras epidermes do Senegal.
In: O Menelick 2 ato, São Caetano do Sul: Mandelacrew comunicação e fotografia, out/nov/
dez-2015, p. 36.
47 OLORUNYOMI, Sola. Afrobeat! Fela and the Imagined Continent. Eritréia: Africa World Press,
p. 173.
48 OLORUNYOMI, Sola. Afrobeat! Fela and the Imagined Continent. Eritréia: Africa World Press,
p. 204 e 205.

218
IntelectuaIs das áfrIcas

exprime inteligência, civilidade e sofisticação.49 Este mesmo homem


astuto que deixou um legado artístico posicionando-o como um dos
ícones da música negra contemporânea e um inconformado com
a ordem colonial e pós-independência, foi também um homem de
visão estreita quando se tratava das relações de gênero:

O que eu penso sobre as mulheres em geral é um assunto


que exige um colóquio. Mulheres? Mmmmmm! Olha, no
início, eu tinha medo delas. Começou assim. Mais tarde, o
medo passou à compreensão. O que eu sei a respeito das
mulheres? Primeiro, que elas gostam que a gente durma
com elas. Elas gostam que você obrigue elas a fazer coisas
pra você. Elas são como o Diabo, naquele livro idiota, a
Bíblia: elas gostam de te testar, pra se safar com alguma
coisa. Se você deixa elas se darem bem uma vez, você tá
frito. Mas se você não deixa elas se safarem, aí elas param.50

O homem, tido como o músico revolucionário, criativo e críti-


co das questões que tratavam da esfera do poder, esbarrava numa
visão torpe quando refletia sobre o universo feminino. Dizia ele,
acreditar na superioridade masculina e na obrigação da mulher
em se conformar com sua inferioridade física. Para Fela, a mulher
era frágil, passiva e submissa, pois havia, segundo o músico, uma
ordem “natural” que não podia ser alterada, cabendo ao homem
dominar e à mulher obedecer.51
Essa visão definia um projeto de revolução e independência
voltados apenas para a libertação masculina. “É impossível ter ao
menos uma curta familiaridade com a visão de Fela e sobre suas
práticas de relação de gênero e não considerá-lo um incorrigível
machista.”52 Sua postura obtusa não coincidia com os discursos de
49 OLANIYAN, Tejumola. Arrest the Music! Fela and his Rebel Art and Politics. USA: Indiana University
Press, 2004, p. 156.
50 MOORE, Carlos. Fela. Esta Puta Vida, Belo Horizonte: Nandyala, 2011, p. 254.
51 MOORE, Carlos. Fela. Esta Puta Vida, Belo Horizonte: Nandyala, 2011, p. 254 e 255. VEAL,
Michael E. Fela: The Life and times of na African Musican Icon. Philadelphia: Temple University
Press, 2000, p. 244.
52 “It is impossible to have even a cursory familiarity with Fela`s views on and practices of gender
relations and not consider him an incorrigible sexist”. OLANIYAN, Tejumola. Arrest the Music!
Fela and his Rebel Art and Politics. USA: Indiana University Press, 2004, p. 112.

219
IntelectuaIs das áfrIcas

libertação da África. A postura machista passou a ser reavaliada


por Fela na segunda metade dos anos 80, quando se dizia contrá-
rio ao controle ou posse de uma mulher. Um “gesto atípico para
alguém que defendia tantos pontos de vista patriarcais”53. Uma
atitude ambígua dentro da república felaniana. Ambígua porque
Fela abria seu mundo para mulheres que o procuravam buscando
um novo estilo de vida ancorado nos valores da Kalakuta. Nas re-
lações vividas Fela considerava suas esposas como rainhas54. Essa
postura situa Fela dentro de uma tradição filosófica simbolizada
pela generosidade como “a forma mais elevada de moralidade nos
termos tradicionais Iorubá”.55
O machismo latente na narrativa dominante da descolonização
e independência não foi uma prática isolada de Fela. O poder do falo
se manteve associado ao poder político, religioso, econômico, mili-
tar e educacional. Configura aquilo que Achille Mbembe denomina
de potentado sexual.56Desse modo a postura patriarcal do poder
na África, não permitiu a emergência de novas e outras narrativas
históricas que ficaram sufocadas na macro-narrativa da descoloniza-
ção e independência. As vinte e sete mulheres de Fela não tiveram
ainda uma história contada de modo exaustivo, apesar dos relatos
registrados no livro de Carlos Moore. Suas biografias representam
uma diversidade de experiências que não foram contempladas pelo
discurso nacionalista. Elas e outras histórias alheias ao poder político
e do falo, não encontram espaços de representação.
As vinte e sete mulheres que se relacionaram com Fela, constituem
identidades dissonantes no interior do discurso do Terceiro Mundo.
Representam grupos minoritários ausentes, silenciados e esquecidos.57
Suas narrativas revelam uma polifonia de vozes e múltiplas verdades
53 MOORE, Carlos. Fela. Esta Puta Vida. Belo Horizonte: Nandyala, 2011, p. 321.
54 OLORUNYOMI, Sola. Afrobeat! Fela and the Imagined Continent. Eritréia: Africa World Press,
p. 183.
55 THOMPSON, Robert Farris. Flash of the Spirit: Arte e Filosofia africana e afro-americana, São
Paulo: Museu Afro Brasil, 2011, p.30.
56 MBEMBE, Achille. Sair da Grande Noite: Ensaio sobre a África descolonizada. Luanda: Angola:
Edições Mulemba, Mangualde. Portugal: Edições Pedago, 2014, p. 175 e 176.
57 SHOHAT, Ella ; STAM, Robert. Crítica da Imagem Eurocêntrica. São Paulo: Cosac Naify, 2006,
p. 404.

220
IntelectuaIs das áfrIcas

africanas, bem como experiências pessoais e coletivas obscurecidas


pela idiotice do discurso colonial e pelo poder pós-colonial. São essas
vinte e sete e tantas outras histórias que podem revelar outras Áfricas
e outras formas de reinventar a ideia de África.

“ZOMBIE”: UMA PEDRADA NO PODER

Não será possível neste texto fazer uma reflexão sobre a vasta
produção discográfica de Fela. Desse modo, atenho-me a tratar
do disco “Zombie”, gravado em 1976, o qual possui uma história
particular dentro da obra músico. “Zombie” transformou-se numa
metáfora de como o poder militar na Nigéria era violento e de-
vastador. As letras expressavam uma encorpada crítica ao governo
ditatorial da época.
Entre janeiro e fevereiro de 1977, a Nigéria sediou o II Festival
Mundial de Artes Negras – FESTAC, tendo convidado artistas de
todo mundo; entre os quais estavam Gilberto Gil, Steve Wonder,
entre outros. Recusando a participar do Festival por discordar dos
métodos e do conteúdo ideológico da ditadura nigeriana, Fela
organizou seu contra-FESTAC na República Kakakuta - como assim
chamava sua residência na época. Passou a denunciar na imprensa
os métodos duvidosos de organização do Festival; bem como or-
ganizou seus shows, conversou com artistas e tornava conhecido
o autoritarismo do regime.
Após o término do FESTAC, a República Kalakuta foi cruelmen-
te atacada. Durante a invasão, mil soldados envolvidos na operação,
estupraram várias mulheres de Fela, feriram sua mãe, destruíram
seus acervos pessoais de vídeo, áudio e instrumentos musicais e o
próprio músico foi torturado e preso. As críticas explícitas no disco
“Zombie” somadas às denúncias durante o Festival provocaram
a ira do general e presidente Olusegun Obasango que ordenou
a destruição da República. Os dois discos posteriores, “Sorrow,
Tears and Blood” e “Unknown Soldiers” retrataram a incursão e
suas consequências.

221
IntelectuaIs das áfrIcas

Em “Zombie”, além das letras incisivas, havia também um


encarte bastante provocador. Nele, o músico encara de frente as
forças militares, munido de sua “arma” muito temida pelo governo:
o microfone. As palavras cantadas por Fela transformavam-se em
“balas” que atingiam dimensão moral e ética da elite política e sua
figura maior: Olusegun Obasango.
Nos encartes dos discos de Fela, havia sempre uma preocu-
pação com o aspecto gráfico e o design. Neles se expressava uma
atitude pedagógica em estabelecer diálogo com público para se
relacionar e operar um entendimento da consciência do afrobeat,
a exemplo do encarte de Zombie. Tejumola Olaniyan, afirma ser
essa uma questão não periférica no trabalho do músico, onde a
crítica política e consciência do afro-beat eram retratados nesses
trabalhos gráficos:

...eu gostaria de sugerir que os artistas gráficos e designers


de capa de álbuns de Fela ao longo dos anos, que clara-
mente responderam a expressão dos desejos de Fela, mas
também - e talvez esse mais significativo para a própria
música, produziu um corpo de trabalho que desempenhou
uma função significativa na forma de percepção pública e
consciência do afrobeat. 58

Havia um interesse em difundir a orientação ideológica de crí-


tica ao Estado pós-colonial. O afrobeat assim como outras músicas
urbanas da África, nasceu no contexto da cultura de massas, mas se
transformou numa música de resistência aos poderes instituídos e
entabulou um diálogo com a sociedade. Não à toa, que Fela foi um
músico popular e querido na Nigéria e no continente. A geração de
sua época evocava sua música como uma forma de compreender
as esferas do poder e sua forma de atuar; bem como perceber o
descontentamento veiculado pelo músico.
58 “I would like to suggest that the graphic artists and designers of Fela`s album covers over the years,
who clearly responded to Fela`s express wishes but also, and perhaps this is more significant, to
the music itself, produced a body of work that played a significant role in shaping public percep-
tions and consciousness of afrobeat”OLANIYAN, Tejumola. Arrest the Music! Fela and his Rebel
Art and Politics. USA: Indiana University Press, 2004, p. 125.

222
IntelectuaIs das áfrIcas

A letra “Zombie”, é um excelente meio de perceber a men-


sagem do afrobeat. Nela, Fela tece uma crítica irônica e perspicaz
de como a força policial era uma máquina de matar e um meio de
forjar, pelo método repressivo, uma obediência cega.

Diga-me para ir direto


A joro, jara, joro
Sem pausa, sem emprego, sem sentido
A joro, jara, joro
Diga-me para ir matar
A joro, jara, joro
Sem pausa, sem emprego, sem sentido
A joro, jara, joro
Diga-me para ir extinguir
A joro, jara, joro
Sem pausa, sem emprego, sem sentido

Matar e extinguir sem sentido pela vontade de poder. E o alvo


dessa maquinaria de guerra eram os africanos desempoderados.
Aqueles que detinham alguma força de crítica eram perseguidos
para servir de exemplo. Assim foram as prisões de Fela. Os métodos
violentos para reprimir o músico e sua equipe eram a manifestação
concreta de “Zombie” agir. Na esteira do que falávamos sobre o
potentado do poder, a relação entre Fela e o poder revela o modo
como uma prática autoritária era cultivada; atuando de modo a
ameaçar a integridade física das pessoas.

As elites do poder desde as independências resistiram ha-


bilmente à pressão das forças da oposição e puderam impor
unilateralmente os limites à abertura política. Tratou-se de
conter o impulso protestatório, caso necessário com uma
repressão ora dissimulada, ora expeditiva, brutal e imode-
rada (encarceramentos, fuzilamentos, licenciamento dos
oponentes, instauração de medidas de urgência, censura
de imprensa, diversas formas de coerção econômica).59

59 MBEMBE, Achille. Sair da Grande Noite: Ensaio sobre a África descolonizada; tradução Narrativa
Traçada, Luanda: Angola: Edições Mulemba, Mangualde. Portugal: Edições Pedago, 2014, p. 158.

223
IntelectuaIs das áfrIcas

Ocorre que essas elites também continuam sendo patrocinadas


por instituições ocidentais, contribuindo para a violência política e
a perpetuação da exclusão social e econômica, como afirma Toyin
Falola:

Os que vociferam críticas a dirigentes africanos corruptos


devem vociferar mais alto condenando seus bancos e suas
empresas que recebem dinheiro roubado. Os que empres-
tam dinheiro aos líderes, sabendo que eles são corruptos,
que desviam e roubam uma parte dos empréstimos e
depositam o dinheiro em contas bancárias de países es-
trangeiros, não deveriam prejudicar milhões de pessoas
pobres e inocentes que não participam destas transações
duvidosas.60

Fela enquadra-se em quase todas as questões observadas


sobre o poder no período autoritário. Sempre clamou por demo-
cracia, desejou ser candidato a presidente da república; sem, no
entanto, ter conseguido o direito de disputar eleições. Desejou
justiça e felicidade para a África, mesmo sabendo das dificuldades
enfrentadas com prisões e torturas.
Se no bojo da conquista da independência nas décadas de
60 e 70, a retórica de emancipação, de transformação social e de
anti-imperialismo dava o tom da luta política, na fase seguinte, o
inimigo agora eram os que questionam o modelo que se consolida-
va. Durante toda a sua vida, Fela foi sempre um incômodo ao poder
na Nigéria, por isso, também um inimigo a ser sempre combatido.
A violência perpetrada através dos tempos impregnou as atitu-
des do homem negro ainda encapsulado, parcialmente, na máscara
branca da qual refletiu Frantz Fanon.61 No entanto, apesar desse
trauma herdado, a repressão sofrida por Fela não foi praticada pela
colonização e sim por um poder negro. A luta política de Fela estava
mergulhada, sobretudo, no contexto político da sua época. Fela,
60 FERREIRA, Roquinaldo e BITTENCOURT, Marcelo (entrevistadores). “A trajetória de um
intelectual africano”. Entrevista com Toyin Falola. Tempo nº 20, pp. 177-186.
61 Ver em FANON, Frantz. Pele Negra, Máscaras Brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.

224
IntelectuaIs das áfrIcas

sua mãe e suas mulheres sentiram a infelicidade de pesar sobre ele


e elas, não apenas atitudes violentas herdadas da colonização, mas
também do próprio ambiente político da Nigéria independente.
A perseguição política e a prisão sofrida pelo músico não ces-
saram após o episódio da invasão. Elas continuaram ao longo da
década de 80 e 90, mas a experiência da destruição de Kalakuta,
foi além de emblemática, talvez a mais traumática. Ele jamais es-
queceu os acontecimentos advindos daquela invasão, quando suas
mulheres foram violadas e sua mãe vindo a falecer após o ataque.
Carregou por toda vida essa amarga lembrança. Sua coragem
em confrontar a ditadura de Olusegun Obasango, não cessou com
o lançamento do disco, mas no desfecho da morte de sua mãe,
quando deixou o caixão em frente à residência do ditador, como
uma forma de resposta ao ato praticado.
Nas duas décadas seguintes ao ocorrido, transformou-se num
homem solitário, desconfiado e sisudo. Sua introspeção como um
comportamento adotado após os traumas das incontáveis prisões
fizeram dele um homem deprimido e ensimesmado.62 Passou a re-
correr a práticas de misticismo, como uma forma de autoproteção,
mas comprometeu, segundo Moore, um tratamento mais adequado
a Aids, doença que o acompanhou nos anos finais de sua vida.
Em depoimento à TV Catalonian, em 1987, Fela afirmava ser
a África o centro de gravidade da nova História mundial. Tal de-
claração incide na ideia de reeducar a percepção da Humanidade
sobre essa questão. Desse modo, elaborou uma identidade pessoal
ancorada nos signos e símbolos do universo iorubano; bem como
projetou uma imagem negra “artistizada” e cosmopolita, que im-
pregnou o imaginário de toda África e do mundo.

Documentação
62 MOORE, Carlos. Fela. Esta Puta Vida, tradução Bruno Madeira. Belo Horizonte: Nandyala, 2011,
p. 327.

225
IntelectuaIs das áfrIcas

Discografia consultada

Zombie. Cocunute/ Creole / Mercury, (1976).


Sorrow, Tears and Blood. Kalakuta, (1978).
Unknown Soldier, Phonodisk / Uno Melodic, 1979.

Documentários, entrevistas e shows consultados

Fela Kuti em Berlim, 1978.


Fela Kuti, Music is Weapon, Sthephane Tchall-GadJieff e Jean Jacques
Flori, 1982.
Fela Kuti, Live and Vibrant in New York City, Edward Jaheed Ashely, 1980.
Fela Kuti entrevista para Tv Catalunha, 1987.
Finding Fela, Alex Gibney, 2014.

REFERÊNCIAS

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Mobilization. Los Angeles: UCCLA Latin American Center Publications/
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227
IntelectuaIs das áfrIcas

WOLE SOYINKA. TRAVESSIAS ENTRE MUNDOS


E EPISTEMES

Divanize Carbonieri1

Wole Soyinka, cujo nome completo é Akinwande Oluwole


Soyinka, nasceu em 1934 em Abeokuta, uma cidade de maioria
iorubá no sudoeste da Nigéria, na época, um protetorado britânico.
Mas teve provavelmente uma experiência diferente daquela vivida
pela maior parte das crianças de sua região. Soyinka morava com
seus pais em Aké, um bairro de sua cidade natal em que havia a
missão protestante e a igreja de Saint Peters. Além de ser um sacer-
dote anglicano, seu pai dirigia a escola primária da missão, onde
o próprio Soyinka estudou, alfabetizando-se em inglês. A mãe de
Soyinka também descendia de uma família de ministros anglicanos
nigerianos, que já haviam assimilado muito da cultura europeia
trazida pelos colonizadores.
Ao analisar as memórias infantis de Soyinka presentes em Aké:
the years of childhood (1981), Eliana Lourenço de Lima Reis descreve o
espaço de seu núcleo familiar como um enclave de cultura europeia
e religião cristã circundado por uma populosa cidade iorubá ainda
num momento intermediário da colonização britânica. Porém, os
muros da missão, ainda que altos, parecem ter sido um tanto po-
rosos, já que havia uma certa mistura entre as línguas, costumes e
crenças locais e aqueles aprendidos com os colonizadores. Assim
1 Professora-adjunta do Departamento de Letras e do Programa de Pós-Graduação em Estudos
de Linguagem da Universidade Federal de Mato Grosso. Doutora em Estudos Linguísticos
e Literários em Inglês pela Universidade de São Paulo. Coordenadora do grupo de pesquisa
LAALID - Literaturas Africanas e Afrodescendentes de Língua Inglesa na Diáspora.

229
IntelectuaIs das áfrIcas

era “o território de Eniola Soyinka, chamada pelo filho de ‘the


Wild Christian’ (“a Cristã Extremada”), que conseguia conciliar sua
exaltada fé cristã com crenças antigas, representando uma visão
de mundo sincrética, um mundo cristão que ainda não abandonou
as matrizes nativas”.2 O fato de a mãe de Soyinka, identificada por
ele como uma cristã fervorosa, não ter abandonado totalmente as
crenças nativas parece indicar o exercício de um cristianismo mais
inclusivo e diferenciado em relação àquele encontrado, no mesmo
período, numa cidade do interior da Inglaterra, por exemplo. Esse
universo híbrido marcou a formação básica de Soyinka, e seus ecos
podem ser sentidos na construção posterior de seu projeto crítico
e artístico.
Depois de seus estudos iniciais, Soyinka mudou-se para Ibadan,
onde frequentou o Government College e, em seguida, a University
College. Na Universidade de Leeds, na Inglaterra, concluiu seus
estudos em literatura inglesa e iniciou sua carreira de escritor. A
sua educação formal e o seu desenvolvimento intelectual se deram,
portanto, predominantemente na língua inglesa e de acordo com
as epistemologias ocidentais. A sabedoria nativa iorubá, por sua
vez, foi apresentada a ele no contato com as pessoas no ambiente
familiar e em sua cidade natal. Porém, Soyinka não se resignou
a essa situação e realizou, na universidade, extensas pesquisas a
respeito da cultura e do pensamento africano. Na verdade, ele se
esforçou para construir um conhecimento acadêmico, literário e po-
lítico em língua inglesa a partir da cosmologia e mitologia iorubás.
Nesse sentido, é possível vislumbrar a trajetória de Soyinka
como uma tentativa de vencer o pensamento ocidental abissal,
classificado assim por Boaventura de Sousa Santos, por estabelecer
um abismo, uma linha divisória radical, entre os seus pressupostos
e as epistemologias que se encontram “do outro lado da linha”.
A visibilidade do pensamento abissal se “assenta na invisibilidade
de formas de conhecimento que não [se] encaixam em nenhuma

2 REIS, Eliana L. de L. Pós-colonialismo, identidade e mestiçagem cultural: A literatura de Wole Soyinka.


Rio de Janeiro: Relume-Dumará; Salvador: Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1999, p. 43.

230
IntelectuaIs das áfrIcas

destas formas de conhecer” e que compõem os “conhecimentos


populares, leigos, plebeus, camponeses ou indígenas do outro lado
da linha”.3 Atravessando essas separações, Soyinka estabelece, de
fato, um pensamento pós-abissal, fundamentado no que Santos
chama de “copresença radical”, que “significa que práticas e agen-
tes de ambos os lados da linha são contemporâneos em termos
igualitários”.4 Assim, não existe conhecimento mais atrasado ou
mais avançado, tradicional e moderno. Todos os conhecimentos
devem ser entendidos como simultâneos e igualmente relevantes
para que o abismo seja superado.
De acordo com Reis, “o discurso de Soyinka parte de uma
perspectiva dupla: ele fala de dentro de sua cultura, mas também de
fora, como alguém que não pertence totalmente àquele mundo”.5
Ocupando esse espaço entre mundos, ele se torna um “cosmopolita
vernacular”, conceito elaborado por Homi Bhabha para designar
as pessoas que realizam a tradução entre culturas, “renegociando
tradições a partir de uma posição em que a ‘localidade’ insiste em
seus próprios termos, ao mesmo tempo em que entra em amplas
conversações [trans]nacionais e societais”.6 Esse é o lócus de enun-
ciação de grande parte dos escritores pós-coloniais contemporâ-
neos, que normalmente são formados em universidades ocidentais
ou de molde ocidental e que buscam estabelecer um diálogo entre
suas culturas de origem e o que absorveram em sua educação.
No termo pós-colonialidade, o sufixo “pós” não se refere a uma
superação da colonialidade. O colonialismo histórico, que consti-
tuiu a ocupação e o estabelecimento de aparatos administrativos
em outros territórios por potências europeias, encerrou-se com as
emancipações políticas dos países que foram colonizados. A colo-
nialidade, porém, implica a continuidade das formas de dominação
3 SANTOS, Boaventura de S. Para além do pensamento abissal: Das linhas globais a uma ecologia
de saberes. In: SANTOS, Boaventura de S.; MENESES, Maria P. (Org.). Epistemologias do sul. São
Paulo: Cortez, 2010, p. 33.
4 Ibidem, p. 53.
5 REIS, Eliana L de L., op. cit., p. 39, grifos no original.
6 BHABHA, Homi. The vernacular cosmopolitan. In: DENNIS, Ferdinand; KHAN, Naseem
(Org.). Voices of the crossing: The impact of Britain in writers from Asia, the Caribbean, and Africa.
London: Serpent’s Tail, 2000, p. 139, tradução nossa.

231
IntelectuaIs das áfrIcas

de alguns grupos sobre outros no presente. Aníbal Quijano identifica


que o eixo principal da colonialidade é a noção de raça, que tem a
sua origem no período colonial, mas não se extingue com ele.7 Para
Quijano, a colonização das Américas e, posteriormente, de outras
partes do mundo pelos europeus instituiu a divisão da população
mundial em raças que foram hierarquizadas numa estrutura de poder
que ainda permanece. Às raças consideradas inferiores são atribuídas
as formas de trabalho pior remuneradas e desprestigiadas, assim
como, no passado, a servidão e a escravização foram designadas a
índios e negros. Ramón Grosfoguel estende o eixo da colonialidade
de Quijano de modo a abranger outras estruturas de poder, além da
raça: “um homem/europeu/capitalista/militar/cristão/patriarcal/bran-
co/heterossexual chegou às Américas e estabeleceu simultaneamente
no tempo e no espaço diversas hierarquias globais entrelaçadas”.8 De
acordo com a sua visão, então, a colonialidade envolve hierarquias
econômicas e raciais, mas também espirituais, culturais, de gênero
e de orientação sexual.
Assim, podemos talvez entender a pós-colonialidade como um
momento em que os processos de colonialidade continuam a ope-
rar, porém, sendo sistematicamente investigados e questionados
pelos escritores, artistas e intelectuais, em busca de uma descoloni-
zação ou descolonialidade em relação a essas hierarquias. Trata-se
também de um contexto em que as pessoas e grupos oriundos das
ex-colônias encontram-se, em suas terras ou na diáspora, em uma
situação de hibridização, em que ocorrem constantes negociações
e traduções culturais, tendo como resultado novos posicionamen-
tos e formas de existência. Soyinka pode ser classificado como
um autor pós-colonial porque faz parte de um contexto assim.
7 QUIJANO, Aníbal. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina. In: LANDER,
Edgardo (Org.). A colonialidade do saber: Eurocentrismo e ciências sociais – perspectivas latino-
americanas. Colección Sur Sur, CLACSO, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina,
setembro 2005, pp. 107- 130. O conceito de raça de Quijano nada tem a ver com a biologia; é
antes “uma construção mental que expressa a experiência da dominação colonial e que desde
então permeia as dimensões mais importantes do poder mundial, incluindo sua racionalidade
específica, o eurocentrismo” (p. 107).
8 GROSFOGUEL, Ramón. Decolonizing post-colonial studies and paradigms of political-economy:
transmodernity, decolonial thinking, and global coloniality. In:Transmodernity: Journal of peripheral
cultural production of the luso-hispanic world, 1(1), 2011, p. 8, tradução nossa.

232
IntelectuaIs das áfrIcas

Além de sua formação híbrida, ele também questionou a noção


de inferiorização dos saberes africanos, estabelecendo-os como
paradigmas para pensar a cultura, a arte e a política.
Apesar do reconhecimento que suas obras e seu trabalho
acadêmico foram gradativamente conquistando no exterior, a
carreira de Soyinka sofreu alguns percalços na Nigéria. Primeiro,
ele foi preso em 1967 porque, durante a Guerra de Biafra, não
adotou unicamente a perspectiva do governo federal, tentando, ao
contrário, negociar um acordo de paz entre as partes beligerantes.
Permaneceu cerca de dois anos na prisão e, depois de sua liber-
tação, manteve o posicionamento crítico em relação aos regimes
ditatoriais que acometiam a Nigéria e grande parte da África. Em
1986, tornou-se o primeiro africano a receber o prêmio Nobel de
literatura. Mas essa importante premiação não impediu que fosse
perseguido uma segunda vez, durante a ditadura do general Sani
Abacha, o que o obrigou a deixar o país nos anos 90. Apenas ao
final da mesma década, quando se iniciou um processo de rede-
mocratização, Soyinka voltou para a Nigéria. Contudo, consolidou
sua atuação como professor universitário e escritor no exterior e,
atualmente, vive nos Estados Unidos.
A produção de Soyinka é bastante extensa e diversificada. Ele
já escreveu poemas, contos, romances, peças de teatro, memórias,
ensaios. Como é impossível acompanhar o desenvolvimento de seu
projeto intelectual e literário em todos esses textos, selecionamos
alguns poucos exemplos que nos pareceram mais significativos
e didáticos nos campos da poesia, do romance, do ensaio e do
teatro. O propósito é apresentar os principais posicionamentos
de Soyinka aos leitores ainda não familiarizados com a sua obra,
no que se refere à construção da poética, às concepções em torno
do fazer artístico e do papel do artista e ao entendimento da arte
dramática. Não existe, contudo, nenhuma intenção de esgotar a
discussão a respeito desses pontos de interesse. Ao contrário, a
ideia é oferecer um substrato que possa sustentar investigações
posteriores.

233
IntelectuaIs das áfrIcas

UMA POÉTICA ABICU

Talvez possamos iniciar aproximando a poética de Soyinka


do fenômeno do abicu. O abicu é uma figura comum na cultura
iorubá. Na verdade, crianças-espírito são conhecidas em diversas
sociedades tradicionais da África. Quando uma mulher passa por
abortos consecutivos ou vê seus filhos morrerem uns atrás dos
outros ainda na infância, os iorubás consideram que ela está so-
frendo a ação de um abicu, um espírito que não quer permanecer
na Terra e que, na primeira oportunidade, retorna para o mundo
espiritual de onde veio. Soyinka dedicou um poema ao abicu, mas
não foi o único autor a tratar desse tema. Na verdade, esse é um
motivo recorrente em obras literárias africanas, às vezes com um
nome diferente dado pelo grupo étnico em que ocorre.
No romance Things fall apart (1958) de Chinua Achebe, por
exemplo, a filha favorita do protagonista Okonkwo, Ezinma, é uma
ogbanje, conceito equivalente na língua ibo a abicu e que pode ser
definido da seguinte maneira:

[...] um indivíduo que passa por um círculo contínuo de


nascimento e morte como resultado de um juramento
primitivo (iyi uwa: juramento de mundo) feito no mundo
dos espíritos na presença do criador e que se estende para
o mundo dos vivos. Acredita-se que o juramento é uma
obrigação para a pessoa que o fez: o indivíduo tem que
viver de uma maneira particular por toda a curta extensão
de sua vida. O objeto do juramento é ocultado da vista
das pessoas comuns e é normalmente enterrado sob uma
grande árvore, na palma da mão da pessoa ou em outros
lugares impressionantes.9

No livro de Achebe, a ligação de Ezinma com o outro mundo


é quebrada justamente quando encontram o seu iyi uwa ou objeto

9 OKONJI, M. Ogbolu apud MADUKA, Chidi. African religious beliefs in literary imagination:
Ogbanje and abiku in Chinua Achebe, J. P. Clark and Wole Soyinka. In: Journal of Commonwealth
literature, v. 22.1, 1987, p. 18, tradução nossa.

234
IntelectuaIs das áfrIcas

de juramento num ritual conduzido por um sacerdote. A partir


desse momento, ela deixa de ser uma ogbanje e passa a se desen-
volver como uma menina normal até chegar à idade adulta. Para
Chidi Maduka, ao retratar tal situação, Achebe estaria escolhendo
a ordem em detrimento do caos, que estava personificado na
criança-espírito, com a reintegração completa de Ezinma à vida
da comunidade.10
Assim como o romance de Achebe, “Abiku” (1965) de John
Pepper Clark-Bekederemo pode servir de um significativo contra-
ponto ao poema de Soyinka. Já nos primeiros versos se enfatiza
a principal característica do abicu, suas idas e vindas constantes:
“Coming and going these several seasons,/Do stay out on the baobab
tree,/Follow where you please your kindred spirits/If indoors is not enough
for you”.11 Nesse caso, o eu-lírico, que pode ser, por exemplo, o pai
da criança, parece não querer contrariar o abicu, a quem se dirige,
e que provavelmente acabou de nascer, deixando a ele a escolha
entre viver ou ir-se embora mais uma vez na companhia de outros
espíritos. Em seguida, há a descrição da casa da família através de
elementos que revelam a sua condição miserável de existência:
um telhado de palha trançada por onde entra água na estação
chuvosa; buracos por onde se enfiam morcegos e corujas; paredes
de bambu que, durante o harmattan12, secam tanto que só servem
para alimentar o fogo com que se defuma o peixe. Porém, a voz
poética prossegue: “Still, it’s been the healthy stock/To several fingers,
to many more will be/Who reach the sun”.13 Então, o abicu não deve se

10 MADUKA, Chidi. African religious beliefs in literary imagination: ogbanje and abiku in Chinua
Achebe, J. P. Clark and Wole Soyinka. In:Journal of Commonwealth literature, v. 22.1, 1987, pp.
17-30, tradução nossa
11 CLARK-BEKEDEREMO, John. Abiku. In: CLARK-BEKEDEREMO, John. The poems. 1958-1998.
Ann Abor: University of Michigan, 2002, p. 6. Publicado inicialmente no livro A reed in the tide
(1965). “Vindo e indo por essas várias estações,/Fique do lado de fora em cima do baobá,/Siga
até onde quiser seus espíritos companheiros/Se essa casa não for o bastante para você”. Optamos
por deixar os trechos das obras literárias no original, apresentando uma tradução simplificada
nas notas de rodapé para auxiliar os leitores a compreenderem seu conteúdo. Em relação aos
textos teóricos, decidimos traduzi-los diretamente no corpo do texto.
12 O harmattan é um vento oriundo do deserto do Saara que atinge a África ocidental durante
alguns meses do ano (aproximadamente de dezembro a março), trazendo a estiagem.
13 “Ainda assim, tem sido o abrigo saudável/para vários membros, e será para muitos mais/Que
chegaram à luz do sol”.

235
IntelectuaIs das áfrIcas

preocupar com as condições precárias da moradia porque, apesar


delas, muitos sobreviveram ali, e ele também poderá sobreviver.
A partir daí, o eu-lírico suplica ao abicu que permaneça: “No
longer then bestride the threshold/But step in and stay”.14 E o argumento
principal utilizado é o cansaço do corpo da mãe, provavelmente
por já ter passado por diversos partos de natimortos, e o leite inu-
tilizado em seus seios que poderia alimentar muitas bocas. Assim,
há a tentativa de seduzir o abicu e demovê-lo do plano de partir
novamente, buscando despertar ou estimular nele o afeto pela
mãe ou pelo menos a solidariedade em relação ao seu sofrimento.
Maduka ainda alarga o escopo do eu-lírico no poema de
Clark-Bekederemo, afirmando que é, na verdade, uma espécie de
porta-voz da humanidade que busca convencer o abicu a escolher
a esfera dos humanos. No nível macro, a residência ainda pode
ser vista como o próprio mundo dos vivos, no qual se experi-
menta evidentemente uma série de dificuldades e sofrimentos.
Os humanos muitas vezes não nascem em situações favoráveis,
mas mesmo assim são capazes de ter uma vida plena. De acordo
com Ato Quayson, está implícita, nesse poema, a noção de que a
atitude correta e um tom gentil e suplicante podem fazer com que
o abicu decida ficar.15 Esses procedimentos refletem os rituais que
são realizados para evitar que o abicu seja bem-sucedido em seu
plano de retornar para o outro mundo. Para Quayson, transparece
no poema a ideia que toma forma nos rituais: a de que é possível
agradar o abicu para que ele interrompa seu processo cíclico. Nesse
sentido, a ênfase é colocada sobre os humanos, que, tomadas as
devidas providências, seriam capazes de controlar o fenômeno
do abicu, restabelecendo a ordem ameaçada pela sua sistemática
recusa de completar o ciclo completo da vida.
No poema homônimo de Soyinka, está representada uma no-
ção totalmente diferente. O eu-lírico é ninguém menos do que o

14 “Não saia mais pela porta/Mas entre e fique”.


15 QUAYSON, Ato. Strategic transformations in Nigerian writing. Oxford: James Currey, 2002.

236
IntelectuaIs das áfrIcas

próprio abicu: “I am Abiku, calling for the first/And repeatead time”.16


Assim, o caráter cíclico do abicu é enfatizado por ele mesmo, que
está chamando pela primeira vez, provavelmente porque acabou de
nascer, mas já tendo realizado o mesmo chamado vezes sem conta,
nas inúmeras ocasiões em que nasceu e morreu. Então, essa que
parece ser uma contradição só não o é porque faz parte da nature-
za do abicu recomeçar infinitamente. O seu tom não tem nada de
súplica; é com escárnio e zombaria que ele se refere aos esforços
dos adultos para que permaneça na Terra. Nada pode aprisioná-lo
ou mesmo convencê-lo a fazer algo que não queira: “In vain your
bangles cast/Charmed circles at my feet/[...] Must I weep for goats and
cowries/For palm oil and sprinkled ash?/Yams do no sprout amulets/To
earth Abiku’s limbs”.17 Todos os rituais e oferendas, repetidamente
executados pelos humanos, são inúteis para convencê-lo a aban-
donar sua existência errante.
O abicu ainda ressalta seu aspecto misterioso e revela que é a
morte o que ele deseja: “I am the squirrel teeth, cracked/The riddle of
the palm. Remember/This, and dig me deeper still into/The god’s swollen
foot”.18 Nesse caso, é revelado que o abicu não tem como sobrevi-
ver nesse mundo, assim como o esquilo não tem como sobreviver
com seus dentes avariados. E isso é um mistério relacionado ao
seu destino, que está traçado na palma de sua mão. Tudo o que as
outras pessoas fizerem para mantê-lo vivo, na verdade, só servirá
para assegurar-lhe ainda mais a morte. Ele anseia verdadeiramente
pelo mundo que deixou para trás ao nascer: “The way I came, where/
The ground is wet with mourning/White dew suckles flesh-birds/Evening
befriends the spider, trapping/Flies in wind-froth”.19 Parece ser um ter-
ritório mágico em que se dão ocorrências incomuns no mundo dos

16 SOYINKA, Wole. Abiku. In: SOYINKA, Wole. Idanre and other poems. London: Methuen &
Company Limited, 1967, p. 28. “Eu sou Abicu, chamando pela primeira/E repetida vez”.
17 “Em vão seus braceletes lançam/Círculos encantados em meus pés/[...] Devo chorar por cabras e
búzios/Por vinho de palma e cinza aspergida/Inhames não brotam como amuletos/Para aterrar
os membros do Abicu”.
18 “Eu sou os dentes do esquilo, rachados/O mistério da palma da mão. Lembrem-se/Disso e me
enterrem ainda mais profundo no pé inchado do deus”.
19 “O lugar de onde venho, onde/O chão está molhado de pranto/O orvalho branco alimenta aves
de rapina/A noite faz amizade com a aranha, prendendo/Moscas na espuma do vento”.

237
IntelectuaIs das áfrIcas

vivos. O abicu quer voltar para lá, não importa o que exista ou se
faça na Terra: “[...] Mother! I will be the/Supplicant snake coiled on the
doorstep/Yours the killing cry”.20 Nem mesmo a dor da mãe é capaz
de demovê-lo; ele será para ela como uma cobra sorrateira que dá
o bote e morde quando menos se espera, injetando na vítima um
veneno letal. Se a mãe esperava obter alegria com seu nascimento,
isso é um aviso de que ele só trará tristeza.
Para Quayson, ao contrário do que ocorria no romance de
Achebe e no poema de Clark-Bekederemo, nos versos de Soyinka,
existe a noção de que o ser humano está diante de algo que não
pode controlar racionalmente. O que prevalece é o ponto de vista
do mundo dos espíritos, de onde provém o abicu, e os rituais re-
alizados pelos seres humanos são vistos de uma forma que põe a
descoberto a sua inutilidade. Em outras palavras, fundamental na
perspectiva de Soyinka “é a tentativa de localizar a consciência orga-
nizadora do artefato literário na esfera do mundo dos espíritos”.21
Além disso, o abicu é antes de tudo alguém que não se rende, é
um rebelde por natureza. E talvez não seja por acaso que Soyinka
tenha escrito esse poema quando se encontrava preso. Muito
mais do que uma criatura específica, o abicu representaria, no ser
humano, o ímpeto de resistir à opressão, o anseio por liberdade
que se encontra em todas as pessoas.
Assim, escolhemos a figura do abicu para representar a poética
de Soyinka, uma poética baseada no paradigma da travessia entre
mundos realizada pelo abicu. Na cosmologia iorubá, a realidade
está dividida em três esferas: o mundo dos não-nascidos, o mundo
dos mortos ou ancestrais e o mundo dos vivos. Apesar de serem
diferentes, esses mundos não se encontram totalmente separados,
havendo espaços de intersecção entre eles. O que existe é uma
simultaneidade entre os três mundos, que coexistem em franca
proximidade uns com os outros, permitindo que vivos e espíritos
possam transitar entre eles. Tal transição ocorre nos extremos da

20 “Mãe! Eu serei a/Cobra enrolada na soleira da porta/O seu, o grito da morte”.


21 QUAYSON, Ato, op. cit., p. 124, tradução nossa.

238
IntelectuaIs das áfrIcas

vida - nascimento e morte - e também durante os rituais, em que a


travessia é encenada e experimentada. Soyinka menciona inclusive
uma quarta esfera, que corresponderia ao contínuo de transição
entre as outras instâncias e em que ocorreria a transmutação do
abstrato em matéria e vice-versa.22
A poética abicu fundamenta-se, dessa forma, na valorização do
espiritual sobre o terreno. Soyinka não parece desejar o retorno à
ordem de uma existência humana sem sobressaltos nem o caráter
pacificado das pessoas que se resignam a cumprir, sem interrup-
ção, uma trajetória sem sentido entre o nascimento e a morte. Ao
contrário, o que ele imprime em seu poema é a necessidade de se
rebelar contra as limitações impostas à criatividade e à liberdade.
E a coragem para se rebelar parece vir do conhecimento de que o
mundo dos vivos é apenas uma das esferas da existência humana.
Portanto, não haveria razão para se conformar a uma situação in-
satisfatória ou desesperadora. O ser humano seria bem maior do
que quaisquer grilhões que ousem prendê-lo numa vida menor do
que os seus anseios.
A travessia implícita na poética de Soyinka não se refere apenas
às jornadas entre os mundos da cultura iorubá. Reis considera que
Soyinka apresenta, na verdade, uma “poética da relação”, ou seja,
uma construção literária que pressupõe a “consciência de que as
culturas estão em permanente contato umas com as outras e de que
é possível uma negociação das relações de poder entre sistemas
culturais diferentes”.23 Para ela, a produção artística de Soyinka seria
“construída no espaço liminar/intersticial das culturas”.24 A poética
da relação já se desenhava, por exemplo, num dos primeiros poe-
mas publicados por Soyinka, “The telephone conversation” (1963).25

22 SOYINKA, Wole. Myth, literature and the African world. Cambridge: Cambridge University Press;
Canto, 1990.
23 REIS, Eliana L. de L., op. cit., p. 149.
24 Ibidem, p. 150.
25 SOYINKA, Wole. The telephone conversation. In: ASOMBA, Benjamin O. The heritage of black
literature. Lagos: Pumark Nigeria Limited, 2001. Publicado inicialmente em 1963.

239
IntelectuaIs das áfrIcas

O poema, como o título sugere, é uma conversa pelo telefone


entre uma mulher que tem um imóvel para alugar e um candidato a
inquilino. No início, parece ser um negócio atrativo para o homem:
“The price seemed reasonable, location/Indifferent./The landlady swore
she lived/Off premises”.26 Com esse começo, já sabemos que se trata
de alguém que não pode gastar muito e, talvez por isso mesmo,
não pretende ser muito seletivo no que se refere à localização
do imóvel. Também parece ser alguém que vê com bons olhos o
fato de não ter que conviver com a senhoria no local. Seria ape-
nas por desejar privacidade ou haveria outro motivo? A resposta
para essa pergunta talvez esteja no que vem a seguir: “‘Madam,’ I
warned,/‘I hate a wasted journey - I am African’”.27 Por alguma razão,
o candidato a inquilino sente que é necessário avisar a senhoria de
que é africano, alertando-a que detesta perder a viagem, ou seja,
dando-lhe a chance de dizer por telefone se a sua procedência -
na verdade, a cor de sua pele - seria um impeditivo para fechar o
contrato de aluguel.
O que se produz após a sua afirmação é o silêncio, incômodo
num aparelho inventado para transmitir a voz das pessoas e pos-
sibilitar sua conversação. Silêncio ao telefone é frequentemente
um sinal de que a pessoa com quem se fala está pensando no que
dizer, talvez por choque ou confusão. Mas logo a interação é rei-
niciada: “‘HOW DARK?’... I had not misheard... ‘ARE YOU LIGHT/OR
VERY DARK?’ Button B, Button A”.28 Assim, o homem estava certo
em suas apreensões. A cor da pele é realmente importante para a
senhoria, a ponto de permitir que ela lhe faça uma pergunta tão
invasiva, esperando que ele possa responder como quem escolhe
entre duas simples opções. Antes de responder, ele percorre com
o olhar o cenário que tem diante de si: “Red booth. Red pillar box.
Red double-tiered/Omnibus squelching tar”.29 Escapando momentane-
26 “O preço parecia razoável, a localização/Indiferente./A senhoria jurou que vivia/Fora do imóvel”.
27 “‘Senhora’, eu avisei./‘Detesto perder a viagem - sou africano’”.
28 “‘O QUÃO ESCURO?’... Eu não tinha ouvido errado... ‘VOCÊ É CLARO/OU MUITO
ESCURO?’ Botão B, Botão A”.
29 “Cabine telefônica vermelha. Caixa de correio cilíndrica vermelha. Ônibus de dois andares/
Vermelho esmagando o asfalto”.

240
IntelectuaIs das áfrIcas

amente de responder à senhoria a respeito de sua própria cor, o


candidato a inquilino parece se concentrar justamente em pontos
de cor na paisagem urbana. A cabine telefônica, a caixa de correio
e o ônibus de dois andares são todos vermelhos. Vermelha tam-
bém é a cor do sangue, presente e de igual coloração em todas
as pessoas, não importa se negras ou brancas, muito escuras ou
claras. Tais elementos coloridos do entorno identificam de maneira
praticamente inconfundível a cidade em que está se dando a con-
versação por telefone: Londres.
Então, conseguimos um quadro mais completo da situação.
Um homem africano e negro está telefonando para uma mulher,
provavelmente branca e inglesa, na tentativa de alugar um quarto
ou apartamento em Londres. Depois de ouvir ainda mais uma
vez a mesma pergunta, ele responde: “‘West African sepia’ - and as
afterthought,/‘Down in my passport’”.30 A identificação do tom de
pele é dada por um nome conhecido principalmente por artistas
e fotógrafos: “sépia”, uma palavra incomum em conversações co-
tidianas e desconhecida da maioria das pessoas. Talvez a escolha
do vocábulo indique o desejo de buscar opções mais criativas para
descrever a cor das pessoas, escapando dos binarismos “branco ou
negro”, “claro ou escuro”. O fato de a tonalidade aparecer ligada
a uma determinada procedência geográfica sugere, por sua vez, a
ênfase da coloração “sépia” como característica de uma pessoa que
nasceu na África Ocidental (está até inscrita em seu passaporte), em
oposição às cores encontradas em Londres, seja nos objetos, seja
nas pessoas. A senhoria revela realmente desconhecer o significado
do termo: “‘WHAT’S THAT?’ conceding,/‘I DON’T KNOW WHAT THAT
IS.’ ‘Like brunette.’ ‘THAT’S DARK, ISN’T IT?’”.31 De qualquer forma,
ela entende que talvez ele seja “escuro demais” para se tornar um
possível inquilino.
Percebendo isso, o homem dá a seguinte resposta:

30 “‘Sépia da África Ocidental’ - e como um adendo/‘Escrito no meu passaporte’”.


31 “‘O QUE É ISSO?’ confessando,/‘EU NÃO SEI O QUE É ISSO’. ‘É como moreno’. ‘ISSO É
ESCURO, NÃO É?’”

241
IntelectuaIs das áfrIcas

‘Facially, I am brunette, but, madam, you should see


The rest of me. Palm of my hand, soles of my feet
Are a peroxide blond. Friction, caused -
Foolishly, madam, - by sitting down, has turned
My bottom raven black - One moment, madam’ - sensing
Her receive rearing on the thunderclap
About my ears - ‘Madam,’ I pleaded, ‘wouldn’t you rather
See for yourself?’32

Nessa réplica, está contida a ideia de que é infrutífero tentar


definir a cor das pessoas, já que todas elas têm partes corporais
de diversos matizes. O que realmente define que uma pessoa seja
“escura” e outra “clara” não é algo natural, algo contido apenas
no corpo, mas uma convenção cultural e social baseada em este-
reótipos e noções de inferiorização de uns grupos humanos em
relação a outros. Nessa conversa por telefone, estabelece-se uma
interação entre pessoas de nacionalidades distintas, oriundas de
nações com histórias diferentes de colonização. A Inglaterra tem o
seu passado como metrópole colonial de inúmeros países africanos,
e a exploração que desempenhou nesses territórios foi decisiva para
que muitos deles não conseguissem alcançar um desenvolvimento
ao menos razoável após suas emancipações políticas. Então, a an-
tiga metrópole precisa se haver agora com esse legado de miséria
ao receber, em seu solo, muitos africanos expatriados, que, por
uma razão ou outra, são obrigados a deixar suas origens e buscar
melhores condições de vida nos países mais desenvolvidos. Será
que a Inglaterra e outras potências europeias não estão fazendo
como a senhoria ao telefone, recusando-se a receber (e conhecer)
pessoas que lhe foram úteis no passado e de quem proveio grande
parte de sua riqueza?
O candidato a inquilino do poema, por sua vez, representa
todos esses imigrantes vindos das ex-colônias que têm que negociar
32 “‘Na face, eu sou moreno, mas, senhora, você deveria ver/O resto de mim. A palma da minha
mão, a sola dos meus pés/São de um loiro oxidado. A fricção, causada -/Bobagem, senhora, - por
ficar sentado, tornou/Meu traseiro preto como um corvo - Um momento, senhora, - sentindo/
Que o telefone dela voltava para o gancho/Sobre as minhas orelhas - ‘Senhora’, eu roguei, ‘não
gostaria/De ver por si mesma?’”

242
IntelectuaIs das áfrIcas

significados entre seus valores culturais nativos e a cultura do país


anfitrião. Para Bhabha (1990), “nós estamos sempre negociando
em qualquer situação de oposição ou antagonismo político”.33 É a
negociação que faz surgir novos posicionamentos, pois ela nada
mais é do um expediente de tradução cultural:

[...] a tradução é também um modo de imitar, mas num


sentido travesso, questionador - imitar um original de tal
forma que a sua anterioridade não seja reforçada, mas
em virtude do simples fato de que ele pode ser simulado,
copiado, transferido, transformado, tornado um simula-
cro e assim por diante: o “original” nunca está completo
ou terminado em si mesmo. O “originário” está sempre
aberto à tradução, de forma que nunca se pode dizer que
ele tenha um momento anterior totalizante de ser ou de
significar - uma essência. O que isso realmente significa é
que as culturas são apenas constituídas em relação àquela
alteridade interna a sua própria atividade formadora de
símbolos que as torna estruturas descentradas - através
desse deslocamento ou liminaridade abre-se a possibilidade
de se articularem práticas e prioridades culturais diferentes
e até incomensuráveis.34

A poética de Soyinka está impregnada de tradução cultural. Por


isso se pode chamá-la de uma “poética da relação”, como quer Reis.
Não é apenas o africano aspirante a inquilino que está posicionado
entre dois mundos e precisa traduzir valores para sobreviver na
grande metrópole. O poeta Soyinka também necessita estabele-
cer uma ponte entre o veículo que escolheu para dar forma a sua
capacidade criadora, ou seja, a língua inglesa, e o ponto de vista
africano/iorubá que decidiu plasmar em seus versos. A imitação
travessa, nesse caso, consiste em empregar a língua que foi im-
posta com a colonização, sua forma escrita e os gêneros literários
da tradição ocidental e transformá-los de acordo com os próprios

33 BHABHA, Homi. The third space. In: RUTHERFORD, J. (ed.). Identity, community, difference.
London: Lawrence & Wishart, 1990, p. 216, tradução nossa.
34 Ibidem, pp. 209-10, tradução nossa.

243
IntelectuaIs das áfrIcas

interesses estéticos e políticos. A imitação travessa não coloca o


escritor pós-colonial numa situação de desvantagem em relação
aos “originais” da cultura ocidental. Ela permite, ao contrário, que
ele produza algo realmente novo, algo que surge da negociação e
da tradução cultural entre suas diferentes afiliações.
Os mitos e as epistemologias da cultura iorubá não aparecem,
contudo, apenas como conteúdo na construção poética de Soyinka.
Eles dão forma, na verdade, aos seus posicionamentos estéticos
e políticos. O seu modo de pensar o fazer artístico e o papel do
artista na sociedade é bastante influenciado pelo pensamento
nativo. Ao analisar a coletânea Idanre and other poems (1967) de
Soyinka, Kayode ‘Niyi Afolayan, por exemplo, parte da noção de
que há uma relação entre a poética de Soyinka e o mito em torno
da divindade Ogum.35 Mas antes de prosseguir na explanação desse
argumento, talvez seja mais producente discutir como esse deus
aparece na narrativa de um de seus romances como um paradigma
de atitude artística.

OGUM E O PARADIGMA DO ARTISTA

A ação em The interpreters (1965), um dos romances de Soyinka,


se desenvolve em torno de um grupo de intelectuais nigerianos
que retornaram de viagens de estudos na Europa ou nos Estados
Unidos e que agora se desdobram entre Lagos, na época, a capital
da Nigéria, e Ibadan, cidade universitária a poucos quilômetros dali.
Como o título indica, eles desempenham a função de verdadeiros
intérpretes entre a cultura ocidental, que assimilaram em sua edu-
cação, e a cultura nativa africana. Mas é uma tradução marcada por
niilismo e decepção. A desilusão se dá principalmente em relação à
elite nativa que chegou ao poder após a descolonização do país e
que se revelou tão ou mais nefasta do que os antigos colonizadores.

35 AFOLAYAN, Kayode ‘N. Mythology, aesthetics and social vision in Wole Soyinka’s Idanre. In:
The performer-ilorin. Journal of the performing arts, v. 12, 2010, pp. 187-199.

244
IntelectuaIs das áfrIcas

O niilismo dos personagens se reflete na corrente filosófica que


foi criada por Sagoe, o jornalista do grupo, e chamada de Voidancy:

Voidancy remains the one true philosophy of the true


Egoist. For definition, ladies and gentlemen, let this suffice.
Voidancy is not a movement of protest, but it protests: it
is non-revolutionary, but it revolts. Voidancy – shall we say
– is the unknown quantity. Voidancy is the last uncharted
mine of creative energies, in its paradox lies the kernel
of creative liturgy – in release is birth. I am no Messiah,
and yet I cannot help but feel that I was born to fulfill this
role, for in the congenital nature of my ailment lay the first
imitations of my martyrdom and inevitable apotheosis. I
was born, with an emotional stomach. If I was angry, my
stomach revolted; if I was hungry it rioted; if I was rebuked,
it reacted; and when I was frustrated, it was routed. It ran
with an anxiety, clammed up with tension, it was suspicious
in examinations, and unpredictable in love.36

Como se pode constatar a partir dessa definição, a Voidancy é


uma concepção totalmente desesperançada de pensamento porque
se baseia na ideia de que a única revolta possível é aquela implícita
no movimento natural de excreção dos intestinos. O estômago e
o intestino são vistos como órgãos que reagem natural e correta-
mente aos estímulos externos, aos acontecimentos. Num universo
de apatia e resignação, eles são os únicos sistemas que continuam
em atividade e demonstram que algo não vai bem.
Robert Fraser classifica como narrativas de dissidência interna
aquelas escritas nos países que foram um dia colonizados num
36 SOYINKA, Wole. The interpreters. London: Fontana; Collin, 1973a (1965). “A Voidancy permanece
sendo a única verdadeira filosofia do Egotista. Para uma definição, senhoras e senhores, isso basta.
A Voidancy não é um movimento de protesto, mas protesta: é não revolucionária, mas se revolta.
A Voidancy - digamos - é a quantidade desconhecida. A Voidancy é a última mina inexplorada de
energias criativas, em seu paradoxo reside o cerne da liturgia criativa - ao ser eliminada, nasce.
Não sou nenhum Messias, e ainda assim não posso evitar a sensação de que nasci para ocupar
esse papel, pois na natureza congênita de minha doença encontram-se as primeiras imitações de
meu martírio e inevitável apoteose. Eu nasci com um estômago emocional. Se ficava zangado,
meu estômago revolvia; se ficava com fome, ele entrava em tumulto; se era repreendido, ele reagia;
e, quando ficava frustrado, ele ficava confuso. Ele se agitava na ansiedade, se fechava na tensão,
ficava desconfiado nos exames e imprevisível no amor”.

245
IntelectuaIs das áfrIcas

período após as suas independências, num momento em que já


existe a desilusão em relação ao nacionalismo que serviu como
veículo para a emancipação.37 São narrativas que questionam as
consequências do colonialismo, mas também os resultados dos
movimentos nativos de resistência depois que eles chegaram ao
poder. Não parece haver em The interpreters nenhuma solução pronta
ou fácil para a Nigéria. Os personagens são tomados por dúvidas
e incertezas, sem que tenham estratégias de ação definidas ou
perspectivas claras de futuro. O nacionalismo, que havia alimentado
protagonistas de narrativas anteriores, agora se tornou problemá-
tico, porque não respondeu às expectativas dos africanos. Casos de
corrupção, golpes, guerras étnicas, desmandos e estabelecimento
de regimes ditatoriais foram alguns dos “feitos” dos governantes
nativos que haviam lutado sob a bandeira da unificação nacional
e se beneficiado de seus resultados.
Os jovens intérpretes do romance não podem mais se conduzir
pelos ditames da ordem ancestral nativa, já que se distanciaram
bastante dela no presente, nem podem se deixar levar apenas por
uma concepção de mundo ocidental e moderna, porque isso tam-
bém não se encaixa na realidade contemporânea da Nigéria, que,
ainda que já bastante ocidentalizada, não é ocidental da mesma
forma que os países mais desenvolvidos do mundo. O que eles
fazem é se mover entre uma coisa e outra ininterruptamente, sem
elaborar nenhum programa efetivo de transformação política. Os
representantes da velha geração, principalmente os membros dessa
elite governante corrupta, estão numa situação ainda pior: são re-
tratados como figuras patéticas e amorais, em marcado contraste
com esses jovens idealistas e de moral elevada.
Os deuses ou orixás iorubás aparecem retratados, nessa
narrativa, fundamentalmente na pintura que o jovem Kola está
produzindo sobre eles. Ele utiliza seus próprios amigos, alguns
dos personagens centrais do romance, como modelos para dar

37 FRASER, Robert. Lifting the sentence: A poetics of postcolonial fiction. Manchester; New York:
Manchester University Press, 2000.

246
IntelectuaIs das áfrIcas

forma humana a essas entidades divinas. Contudo, eles não podem


admirar a imagem antes que esteja pronta, pois Kola teme que
fiquem insatisfeitos com o modo como estão sendo representados
e, assim, atrapalhem a sua disposição para terminar o trabalho.
Kola e sua atividade como pintor sinalizam a importância que a
figura e o fazer do artista adquirem nessa obra. Simon Gikandi,
por exemplo, afirma que:

[e]m The interpreters, o artista é uma figura prometéica


que se levanta contra a autoridade de Zeus com cultura,
inteligência e justiça, mas além dessa função, real ou
imaginária, o personagem de Soyinka é uma criatura mo-
dernista lutando contra os impulsos conflitantes dentro
dele e as demandas de sua situação sócio-histórica. Nesse
aspecto, questões de escolha e apostasia são centrais para
o desenlace desse personagem: ele acredita, contra todas
as evidências existentes, que escolheu levar a vida de um
apóstata; mas a sociedade, o fator corruptor, frustra a
busca do protagonista pela totalidade e a sua ilusão de
livre arbítrio.38

O conceito de apostasia identificado por Gikandi se relaciona


ao niilismo e à concepção filosófica da Voidancy, que vimos antes.
Apostasia vem do grego apóstasis e significa “estar longe de”.
Foi uma conceituação usada, em contextos religiosos, quando
alguém se afastava da fé ou de suas práticas. No sentido que
Gikandi pretende imprimir ao termo, provavelmente se refere ao
afastamento do artista em relação a uma sociedade corrompida,
a qual não tem mais esperança de reformar. Kola, por exemplo,
se tranca em seu estúdio por dias e dias na tentativa de produzir
uma obra que não parece ter conexão imediata com o presente
da Nigéria, mas que faz alusão a seu passado cultural ancestral.
Até mesmo nas poucas vezes em que busca a companhia de
seus amigos em clubes noturnos, Kola prefere se ausentar da
conversação e imergir em seus desenhos do entorno, como, por
38 GIKANDI, Simon. Reading the African novel. London: James Currey, 1988, p. 98, tradução nossa.

247
IntelectuaIs das áfrIcas

exemplo, na ocasião em que retrata em guardanapos de papel,


uma mulher que dançava:

Egbo took the offending drawing from Kola and examined


it, Kola merely saying ‘I was bored with her, as if this was
enough to explain why he had planted a goitre on the
woman’s neck and encased her feet in Wellington boot
canoes or perhaps it was a platypus. Only then did Egbo
see the original herself, alone on the dance floor. None
of them, except obviously, Kola and Sekoni, had seen her
take possession of the emptied floor. She had no partner,
being wholly self-sufficient. She was immense. She would
stand out anywhere, dominating. She filled the floor with
her body, dismissing her surroundings with a natural air
of superfluity. And she moved slowly, intensely, wrapped
in the song and the rhythm of the rain.39

Talvez esse trecho sirva de paradigma para o papel do artista


examinado no romance. Kola e Sekoni (também artista) parecem
dispersos e alheios ao que está sendo conversado pelos outros in-
tegrantes do grupo. No entanto, estão mais abertos para perceber
as sutilezas do que acontece a sua volta. Eles são os primeiros que
notam a mulher que está dançando. A dança que ela executa, com
seus movimentos fluidos e intensos, traz a imagem de uma vitali-
dade que esses jovens intelectuais parecem ter perdido. Enquanto
ela dança sem ser notada pela maioria deles, eles estão falando
nostalgicamente sobre o passado ou mesmo cochilando. Só a per-
cebem por meio da observação de seus artistas, a partir da qual
voltam seus olhos para ela. A mulher está vestindo uma espécie
de roupa tradicional, na qual existem bordados étnicos que são

39 SOYINKA, Wole, op. cit., 1973a, p. 20. “Egbo tomou o desenho ofensivo das mãos de Kola e
o examinou. Kola apenas disse ‘Eu estava incomodado por ela, como se isso fosse o suficiente
para explicar por que ele havia plantado um bócio no pescoço da mulher e calçado seus pés
em botas de borracha Wellington ou talvez fossem as nadadeiras de um ornitorrinco. Só então
Egbo viu o próprio original, sozinha na pista de dança. Nenhum deles, exceto, obviamente, Kola
e Sekoni, a haviam visto tomar conta da pista vazia. Ela não tinha parceiro, sendo totalmente
autossuficiente. Era imensa. Podia se sobressair em qualquer lugar, dominadora. Ela enchia a
pista com seu corpo, ignorando o que estava a sua volta com um ar natural de plenitude. E se
movia lentamente, intensamente, envolta na música e no ritmo da chuva”.

248
IntelectuaIs das áfrIcas

chamados de owolebi, palavra que passa a ser usada por Egbo para
designá-la. De certa forma, essa palavra africana, a indumentária
e os gestos quase ritualísticos da dançarina a constroem como
um sujeito que, na visão de Egbo e provavelmente na dos outros
também, encarna o “caráter africano”:

‘Still!’ Egbo bellowed. ‘Still! O Still that passeth all unders-


tanding. Transcendental stillness of the distanced godhead!
The maid of Sango after possession is still. A bed after im-
passionated loving is still. Still! From the deep vast centre
of love - still?’
‘D-d-do what you lllike,’ Sekoni said. ‘She is a b-b-beautiful
woman.’
‘Is that all you can say?’
Egbo began. ‘Before you, the exultation of the Black Imma-
nent, and all you say is...’40

Egbo identifica na mulher que dança imagens do numinoso: a


quietude transcendental da divindade, uma sacerdotisa de Xangô
e a personificação do Negro Imanente. Com isso, ele a retira do
simples cotidiano e a insere na esfera do divino e das ideias essen-
ciais. O que seria esse Negro Imanente, além de uma abstração de
um suposto caráter essencial do ser negro? Os jovens intelectuais
protagonistas já estão distanciados do que parece ser o reservatório
de energia transcendental da cultura africana nativa. A mulher lhes
serve, então, de inspiração para que tentem entrar em contato com
essa fonte cultural e a empreguem em suas atividades. Os artistas,
como os primeiros a localizar esse fenômeno e a chamar a atenção
dos outros para ele, têm principalmente a função de traduzir essa
energia criativa em suas produções artísticas. Os protagonistas de
Soyinka são homens para quem um retorno completo à tradição
não é mais possível nem desejável, pois eles têm a missão de sair
40 Ibidem, p. 22. “‘Quietude!’ - Egbo gritou. ‘Quietude! Ó, Quietude que ultrapassa todo o entendi-
mento. Quietude transcendental da distante divindade! A virgem de Xangô depois da possessão
fica em quietude. Uma cama depois do amor apaixonado fica em quietude. Quietude! Do centro
vasto do amor - quietude?’ ‘F-f-faça o que qqquiser’ - Sekoni disse. ‘Ela é uma b-b-bela mulher’.
‘É tudo o que você tem a dizer?’ - Egbo recomeçou. ‘Diante de você, o Negro Imanente, e tudo
o que você diz é...’”

249
IntelectuaIs das áfrIcas

da inércia e construir, na Nigéria, uma nova e moderna nação. Dessa


forma, o manancial representado pelo legado cultural ancestral é,
como acontece em muitos romances africanos do período, asso-
ciado à figura da mulher, que não aparece como uma agente de
fato a efetuar mudanças, mas que teria o papel de gerar a futura
geração resultante da negociação entre o antigo e o novo.
Kola não parece estar à altura da tarefa que Soyinka designa
aos artistas de seu país. O desenho que registra da mulher não faz
jus a tudo o que ela pode e deve significar. Sekoni, ao contrário,
surge como uma consciência artística mais iluminada e enxerga na
mulher específica que todos têm diante dos olhos nada menos do
que a personificação do feminino essencial: “a woman is the D-d-
dome of love, sh-she is the D-d-dome of Religion”.41 Sekoni acaba sen-
do delineado como um indivíduo diferente dos demais, tanto por
ser mais “espiritual” quanto pela própria gagueira - representada,
na escrita, por Soyinka por meio da repetição das letras iniciais
das palavras. Mais adiante, verificaremos que é ele quem melhor
desempenhará o papel de artista inspirado e extático que Soyinka
pressupõe ser necessário para o desabrochar de uma nova cultura
e de uma nova arte.
Kola se esforça para ativar esse potencial de energia da cultura
ancestral. Seu quadro pretende ser uma representação dos orixás
na atualidade, e ele elege alguns de seus amigos para posar como
modelos. Egbo empresta seus traços para Ogum, senhor da guer-
ra e essência da masculinidade como princípio diretivo dos seres
humanos e de sua interferência precisa na natureza. Já o ameri-
cano Joe Golder é pintado na tela como Erinlé, divindade muito
bela e de caráter andrógino. O pastor albino Lazarus, que garante
ter ressuscitado do mundo dos mortos, cede suas feições para
Oxumaré, hábil em conseguir de outras divindades o que deseja
e precisa para enriquecer. Mas o retrato é uma via de mão dupla:
se os deuses do quadro recebem os rostos dos personagens, eles
também podem ser vistos nos atributos que cada uma das figuras
41 Ibidem, p. 24. “Uma mulher é o S-s-santuário do amor, ela é o S-s-santuário da Religião”.

250
IntelectuaIs das áfrIcas

ficcionais ostenta durante a narrativa. As inúmeras conquistas


amorosas de Egbo, por exemplo, espelham as de Ogum. Golder,
embora não tenha uma aparência andrógina, é o único homossexual
do romance. E Lazarus deseja construir uma igreja e converter o
maior número de pessoas para obter delas benefícios financeiros.
Porém, a pintura, quando finalizada, parece decepcionante, e Egbo
não se furta de dizer isso:

‘My friend has very uneven talents. Look at that thing he


has made of me for instance, a damned bloodthirsty maniac
from some maximum security zoo. Is that supposed to be
me? Or even Ogun, which I presume it represents?’
‘What is wrong with it?’
‘It is an unspired distortion, that is what is wrong with it.
He has taken one single myth, Ogun at his drunkest, losing
his sense of recognition and slaughtering his own men in
battle; and he has frozen him at the height of carnage’.42

Sekoni, por outro lado, produz uma escultura que é mais


bem-sucedida em traduzir em elementos estéticos as qualidades
espirituais que Kola tanto buscou:

Sekoni began sculpting almost as soon as he returned.


His first carving, a frenzied act of wood, he called ‘The
Wrestler’. He had not asked Bandele or anyone to sit for
him, but the face and the form of the central figure, a
protagonist in pilgrim’s robes, was unmistakably Bandele.
Taut sinews, nearly agonizing in excess tension, a bunched
python caught at the instant of eating out, the balance of
strangulation before release, it was all elasticity and strain.
And the rest, like the act of his creation which took him
an entire month and over, was frenzy and desperation, as
if time stood in his way. [...]

42 Ibidem, pp. 234-5. “‘Meu amigo tem talentos muito irregulares. Olhe para a coisa que ele fez a
partir de mim, por exemplo, um maldito maníaco sanguinolento saído de algum zoológico de
segurança máxima. Isso devia ser eu? Ou mesmo Ogum, a quem presumo que representa?’ ‘O que
há de errado com isso?’ ‘É uma distorção vulgar, é o que há de errado com isso. Ele tomou um
único mito, Ogum no ápice da embriaguez, perdendo seu senso de reconhecimento e matando
seus próprios homens na batalha, e o congelou no auge da carnificina’”.

251
IntelectuaIs das áfrIcas

And Kola found that he was indeed jealous. Unless ‘The


Wrestler’ was one of those single once-in-a-life coordina-
tions of experience and record, Sekoni was an artist who
had waited long to find himself but had done so finally, and
left no room for doubt.43

O trabalho de Sekoni parece ter resultado de uma intensa


inspiração divina em contraposição à tela de Kola, que, apesar de
todos os seus esforços, não possui a mesma excelência. A obra de
Sekoni foi executada, de fato, num verdadeiro frenesi ou transe,
semelhante a um ritual de possessão presente nas religiões de
origem iorubá, em que os orixás tomam emprestado dos humanos
os seus corpos para festejar na Terra. Sekoni também não neces-
sitou de modelos para dar forma à escultura, mas ainda assim ela
apresenta grande semelhança com Bandele, mostrando o humano
como um canal para a divindade. “O Lutador” parece ser também
uma imagem do deus Ogum. Sendo “toda elasticidade e força”,
ela reúne inconfundivelmente os atributos da divindade guerreira,
justamente a mais viril em todo o panteão iorubá. E aqui chegamos
novamente ao paradigma de Ogum, identificado por Afolayan na
poética de Soyinka em Idanre and other poems.
Não apenas a estátua produzida por Sekoni faz referência a
Ogum como o próprio Sekoni, em seu procedimento artístico,
espelha a criatividade certeira do deus. Ogum é um dos paradig-
mas de artista divino elencado por Soyinka em Myth, literature
and the African world (1990). Ele nos informa que Ogum pode ser
considerado também o senhor das estradas, pois abriu com sua
espada pela primeira vez o caminho entre o mundo dos deuses e
43 Ibidem, pp. 99-100. “Sekoni começou a esculpir quase tão logo retornou. Sua primeira obra
entalhada, um ato frenético realizado na madeira, ele chamou de ‘O Lutador’. Não havia pedido
que Bandele ou qualquer outro posasse para ele, mas o rosto e a forma da figura central, um
protagonista em trajes de peregrino, era inconfundivelmente Bandele. Tendões esticados, quase
arrebentando de tanta tensão, uma serpente inchada, pega no instante de devorar a presa, o
equilíbrio do estrangulamento antes da soltura, era toda elasticidade e força. E o resto, como o
ato de sua criação que levou um mês para ficar pronta, era frenesi e desespero, como se o tempo
o estivesse atrapalhando. [...] E Kola descobriu que estava realmente com inveja. A menos que ‘O
Lutador’ fosse uma daquelas combinações únicas na vida entre experiência e memória, Sekoni era
um artista que havia esperado muito para se encontrar, mas que o havia feito tão definitivamente
que não deixava lugar para dúvidas”.

252
IntelectuaIs das áfrIcas

o dos seres humanos. Para Soyinka, isso demonstra o caráter geo-


cêntrico da crença iorubá, já que partiu dos deuses a iniciativa de
encontrar os humanos, em busca de satisfação para o seu desejo
de completude, unindo novamente o humano ao divino. O caminho
entre os mundos aberto por Ogum se concretizou na abertura da
sabedoria de Ifá, composta pelos textos sagrados dos iorubás. Isso
fez com que Ogum também representasse o instinto da busca pelo
conhecimento: “um atributo que o coloca à parte como a única
divindade que ‘buscou o caminho’ e utilizou os recursos da ciência
para abrir uma passagem através do caos primordial para a reunião
dos deuses com o homem”.44
Ogum pode ser entendido como um artista porque ele é o
primeiro ferreiro, o primeiro a forjar suas armas a partir do metal.
A espada que utiliza para atravessar a distância que separa os mun-
dos foi produzida por ele. Assim, além de ser aquele que inaugura
as jornadas entre o mundo das divindades e o dos humanos e o
caminho do conhecimento, Ogum também representa o espírito
criativo da humanidade, principalmente na produção de ferramen-
tas para interferir na natureza:

Armado com o primeiro instrumento técnico, que havia


forjado a partir do ferro extraído do ventre das monta-
nhas, ele abriu a floresta primordial, mergulhou através do
abismo e clamou para que os outros o seguissem. Por esse
feito, os deuses lhe ofereceram uma coroa, convidando-o
para ser o rei deles. Ogum recusou. A sociedade humana
iria cometer o mesmo erro e mostrar-se suficientemente
persistente para demovê-lo de sua recusa sabiamente
pensada. Ao chegar à Terra, as várias divindades tomaram
os seus caminhos, observando e inspecionando. Ogum,
em suas andanças, chegou à cidade de Ire, onde foi bem
recebido, mais tarde retribuindo a hospitalidade quando a
ajudou contra um inimigo. Como sinal de gratidão, foi lhe
oferecido o trono de Ire. Ele declinou e se retirou para as
montanhas, onde viveu em solidão, caçando e cultivando

44 SOYINKA, Wole, op. cit, 1990, p. 27, tradução nossa.

253
IntelectuaIs das áfrIcas

a terra. Inúmeras vezes foi importunado pelos anciãos de


Ire até que finalmente aceitou.45

De acordo com Soyinka, Ogum liderou os habitantes de Ire


em diversas guerras, ajudando-os a conquistar vitória atrás de
vitória. Contudo, um dia ele se embebedou com o vinho de palma
deixado por Exu, o deus travesso que gosta de brincar com os
outros deuses e com as pessoas de carne e osso. Nesse mesmo
dia, ele se envolveu em mais uma batalha do povo de Ire em que
a carnificina foi ainda maior do que o habitual. Mas algo não saiu
como de costume: “para o deus embriagado, amigos e inimigos se
confundiram; ele se voltou sobre os seus homens e os matou. Essa
era a possibilidade que o havia assombrado desde o início e que o
fez hesitar em aceitar o papel de rei dos homens”.46 Então, Ogum
não é apenas um criador, mas também um destruidor. Nele, estão
concentradas as energias inventivas e de luta dos seres humanos,
mas também seus impulsos destrutivos, caso se deixem levar pelo
descontrole.
O outro paradigma de artista examinado por Soyinka no
mesmo ensaio é Oxalá, que seria o deus que modelou as primei-
ras formas humanas a partir do barro para que a maior de todas
as divindades do panteão iorubá, Olodumaré, insuflasse nelas o
sopro da vida. A partir de então, Oxalá continuaria esculpindo os
corpos das pessoas que vão nascer, quando elas ainda estão no
útero materno. A história contada por Soyinka a respeito desse
deus se assemelha àquela de Ogum, pois Oxalá também se embria-
gou de vinho de palma e, sob o efeito dessa bebida, seus “dedos
de artesão deslizaram erradamente e ele moldou os aleijados, os
albinos e os cegos”.47 A diferença entre seu ato de excesso e o
da divindade guerreira é que, mesmo em sua embriaguez, Oxalá
continuou produzindo formas vivas, provavelmente com maior
criatividade, porque modelou corpos humanos diferentes daqueles
45 Ibidem, pp. 28-9, tradução nossa.
46 Ibidem, p. 29, tradução nossa.
47 Ibidem, p. 15, tradução nossa.

254
IntelectuaIs das áfrIcas

que tinham sido suas primeiras criações. Ogum, como vimos, não
criou nada quando estava alcoolizado, apenas destruiu e matou o
que estava vivo.
Soyinka também relata que, depois de cometer tal deslize,
Oxalá se retirou para o reino de Xangô, o orixá da justiça, onde
permaneceu preso. Enquanto esteve na prisão, o equilíbrio do uni-
verso foi prejudicado porque, ainda de acordo com Soyinka, quem
assumiu o controle único do mundo foi Ogum, o que significa que
as forças destrutivas prevaleceram sobre as criativas. As crianças e
os animais morreram nos ventres de suas mães e as plantas secaram
por falta de chuva. Então, a “[c]omplementaridade e o equilíbrio são
destruídos. Oxalá é o deus que transforma o sangue em crianças;
e Ogum é o deus que transforma crianças em sangue”.48
Apesar da complementaridade estabelecida pelos poderes
das duas divindades, Soyinka escolhe Ogum como o modelo de
postura artística a ser defendido em sua produção literária. Para
ele, Oxalá apresenta as qualidades de acomodação dos indivíduos
e das sociedades como um todo: paciência, resignação ao sofri-
mento, passividade, enfim todas as atitudes necessárias para a paz,
ou melhor, para a submissão pacificada. Por outro lado, Ogum,
em virtude de sua assertividade e de sua interferência na ordem
existente, parece mais atraente para Soyinka. Segundo Isidore
Okpewho, Soyinka enxerga em Ogum a energia de ação necessária
para que as sociedades sejam transformadas e avancem para a sua
autorrealização.49 E o artista seria aquele capaz de incorporar os
atributos dessa divindade e conduzir o povo para a liberdade e a
mudança.
Para Okpewho, a energia de Ogum é canalizada por Soyinka em
seus personagens artistas, sendo que aquele que mais se aproximar
da personalidade do deus deve apresentar um equilíbrio entre ele-
mentos destrutivos e criativos. Em The interpreters, Sekoni é capaz
de esculpir uma obra inspirada e de grande qualidade estética, mas
48 Ibidem, p. 19, tradução nossa.
49 OKPEWHO, Isidore. Myth in Africa. Cambridge: Cambridge University Press, 1983.

255
IntelectuaIs das áfrIcas

ele também morre na narrativa, o que destrói, portanto, a possi-


bilidade de continuar criando. Nesse caso, para aquele momento
particular da Nigéria, Soyinka não parece vislumbrar muita possibi-
lidade de ação para seus artistas e intelectuais. Contudo, é verdade
que os amigos de Sekoni sobrevivem a sua morte e tentam resistir à
estagnação, organizando uma exposição em sua homenagem, com
a sua escultura e o quadro de Kola, além de um concerto musical
executado por Golder. Dessa forma, todas as artes estão reunidas
nesse evento, e um carneiro é sacrificado num ritual tradicional.
O sacrifício do animal espelha o sacrifício do próprio Sekoni, que
assume seu caráter prometéico de artista, ao ser imolado depois
de conceder a todos a fagulha divina da inspiração.
Afolayan afirma que, em Idanre and other poems, Soyinka em-
prega o mito de Ogum de maneira diferenciada:

A mitopoética de Soyinka deve estar em variação com as


versões populares ou “autênticas” do mito de Ogum. Por
exemplo, retomando a leitura de E. B. Idowu em Olodu-
mare: god in Yoruba belief (1962, pp. 57-106), Ogum é um
dos “ministros de Olodumaré”, cuja designação cósmica,
capacidade e influência não são superiores às dos outros
“ministros” da suprema divindade Olodumaré. Na categori-
zação hierárquica, Ogum não é superior nem subserviente a
Oxalá e Exu. Do mesmo modo, Ogum não é um subalterno
nem um superior, em status hierárquico, de Orisa nla e
Orunmilá, que são vistos, respectivamente, como repre-
sentantes de Olodumaré em assuntos de funções criativas
ou executivas e onisciência e sabedoria.50

Dessa forma, a seleção de Ogum por Soyinka não é causada


por uma suposta superioridade do deus em relação aos outros (in-
cluindo Oxalá), mas se trata de uma escolha deliberada que indica
a função que ele deseja dar à figura do artista em suas obras. De
acordo com Opekwho, entre a diretividade de Ogum e a resignação
tranquila de Oxalá, Soyinka volta sua simpatia para a primeira. Para
50 AFOLAYAN, Kayode ‘N., op. cit., p. 190, tradução nossa.

256
IntelectuaIs das áfrIcas

Soyinka, o futuro da humanidade está nas mãos daquela divindade


capaz de “correr todos os riscos, quebrar todas as barreiras e cau-
sar algum dano no processo de criar uma nova ordem”.51 Então, o
artista deve reunir em si aspectos de ordem estética ou criativa e
também política, buscando simultaneamente criar novas formas e
transformar a sociedade.

O TEATRO RITUAL

Além de estabelecer um paradigma de artista, em Myth, lite-


rature and the African world, Soyinka também discute a importância
dos deuses para o teatro:

Eles [os deuses] são representados no teatro pelos ritos


de passagem dos deuses-heróis, uma projeção do conflito
do homem com forças que desafiam os seus esforços para
se harmonizar com seu ambiente físico, social e psíquico.
O drama do deus-herói é uma expressão conveniente;
eles são deuses inquestionavelmente, mas seus papéis
simbólicos são identificados pelo homem como o de um
aventureiro intermediário, de um explorador nos territó-
rios da “essência-ideal”, cujas margens o homem contorna
medrosamente.52

Assim, o teatro ritual envolvendo os deuses é significativo para


os seres humanos por colocá-los em contato com um mundo cujos
contornos eles podem apenas adivinhar. O teatro teria a função de
reconectar o humano com uma totalidade perdida, e os deuses-
personagens ou deuses-heróis, como quer Soyinka, assumiriam
papéis simbólicos dos embates da humanidade com o divino.
Para Soyinka, o palco do teatro ritual representa o espaço
ctônico, que funciona como um depósito de energias criativas e
destrutivas, e os representantes dos seres humanos que são os
deuses-heróis são aqueles que vão abrir fendas através das quais
51 OPEKWHO, Isidore, op. cit., p. 194, tradução nossa.
52 SOYINKA, Wole, op. cit., 1990, p. 1, tradução nossa.

257
IntelectuaIs das áfrIcas

essas energias ganham vazão. A importância da terra, do mundo


subterrâneo, não é, dessa forma, ignorada por Soyinka, que afirma
que ela só sumiu da metafísica europeia por influência da tradição
platônica e principalmente cristã. Segundo ele, os gregos antigos,
por exemplo, não negligenciavam esse aspecto, e muitos dos seus
deuses, como Perséfone, Dionísio e Demeter, tinham um caráter
eminentemente terreno.

Portanto, os homens da antiguidade asiática e europeia,


assim como os africanos, existiam numa totalidade cós-
mica, possuíam uma consciência de que o seu próprio ser
terreno, a sua apreensão de si ancorada na gravidade, era
inseparável do fenômeno cósmico inteiro.53

O que surgiu, com a visão de mundo judaico-cristã, foi uma


verdadeira transferência da terra para o céu. As divindades (ou a
divindade no singular) passaram a ser entidades celestes. E os eu-
ropeus se esqueceram, em grande parte, dos deuses e heróis que
abriram brechas do mundo ctônico para o mundo dos humanos.

Então, onde anteriormente os ritos de exploração do reino


ctônico, de nascimento e renascimento, de regresso e en-
trada eram possíveis a partir de quaisquer uns dos vários
reinos de existência para os outros, para ou em nome de
qualquer ser - ancestral, vivo ou não-nascido -, o homem
agora restringia a sua visão da existência ao circuito hierár-
quico acima da terra. O teatro ritual, ou seja, o teatro como
uma força de purificação, ligação, comunidade, recriação,
desaparece ou é invalidado durante tais períodos ou dentro
das culturas que sobrevivem apenas pelo estreitamento da
brecha cósmica.54

No teatro ritual, seria encenada a religação do humano com


o divino que ocorre por meio justamente do aspecto terreno,
ctônico. Sem a terra, na visão de Soyinka, não pode haver nasci-
53 Ibidem, p. 3, tradução nossa.
54 Ibidem, pp. 4-5, tradução nossa.

258
IntelectuaIs das áfrIcas

mento e renascimento nem travessia entre os mundos dos vivos,


dos ancestrais e dos não-nascidos. A ligação desses reinos não
é dada por um movimento de cima para baixo ou de baixo para
cima, mas por diversas passagens horizontais entre eles, que coe-
xistem um ao lado do outro ou mesmo em justaposição. O palco
condensa, então, todas essas possibilidades de movimento, e os
atores, interpretando os deuses-heróis, dão corpo aos dramas fun-
damentais do ser humano. Portanto, é possível pensar que, assim
como o teatro grego antigo, o teatro ritual dos deuses, tal como é
explicitado por Soyinka, se baseia na sua capacidade de produzir
catarse no público.
Soyinka entende que, tanto na tragédia grega quanto no teatro
ritual, os deuses-heróis cometem erros. Isso significa que essas duas
manifestações dramáticas giram em torno da falha trágica de seus
protagonistas e no quanto ela pode despertar a identificação do
público para a purificação de suas emoções. Porém, haveria impor-
tantes diferenças no que concerne à punição dos deuses em cada
uma. No caso dos deuses gregos, as penalidades “invariavelmente
acontecem apenas quando a ofensa leva à usurpação dos protegidos
mortais de uma outra divindade e quando essa divindade é mais
forte ou apela efetivamente ao Pai Zeus”.55 No caso das divindades
iorubás, para Soyinka, elas são sempre submetidas a alguma puni-
ção como uma forma de compensar a humanidade por seus erros.
Na peça A dance of the forests, escrita para celebrar a indepen-
dência da Nigéria em 1960, a figura do deus Ogum surge novamente
para dar forma à visão mítica, estética e política de Soyinka. Assim
como The interpreters, A dance of the forests está marcada pela de-
cepção. Num momento em que deveria haver euforia pelo início de
uma nova nação, liberta de seus colonizadores, o que existe é uma
ênfase na amarga reavaliação do passado e de suas continuidades
no presente. Seu caráter de desilusão se dá principalmente pela
constatação de que os erros cometidos no passado pela coletivi-
dade não serviram de lições para que o presente da jovem nação
55 Ibidem, p. 14, tradução nossa.

259
IntelectuaIs das áfrIcas

nigeriana fosse mais acertado. Assim, a ideia expressa é a de que


o fim da dominação estrangeira não significa necessariamente que
as coisas serão melhores porque os próprios africanos têm que
se haver com a responsabilidade de suas falhas no passado para
construir uma realidade mais justa na atualidade.
O cenário da peça é uma cidade iorubá que, em séculos
passados, foi governada pelo imperador Mata Kharibu. Tudo se
inicia quando um grupo de habitantes invoca a presença de seus
ancestrais para tomar parte numa festividade, a “Reunião de Todas
as Tribos”. Eles esperavam que o Rei da Floresta (Forest Head), que
é a sua suprema divindade, lhes enviasse figuras de grande valor
moral e nobreza que tivessem realizado feitos excelentes quando
vivos. Porém, o deus Aroni, com a permissão do Rei da Floresta,
manda, ao invés disso, os espíritos perturbados do Homem Morto
(Dead Man) e da Mulher Morta (Dead Woman), que, na verdade, são
vítimas desse “passado glorioso” que retornam para confrontar
os descendentes de seus malfeitores. Os herdeiros vivos desse
legado maldito são principalmente Rola (Madame Tartaruga), uma
prostituta no presente e uma mulher volúvel no passado; Adenebi,
no presente, um conselheiro da cidade e, anteriormente, o histo-
riador da corte; e Demoke, o entalhador, que, em sua outra vida,
foi o poeta da corte.
Na cultura iorubá, entende-se que os vivos são reencarnações
de seus ancestrais. Portanto, não há diferença entre os ancestrais
de uma pessoa e ela mesma. Feitos grandiosos de ancestrais no
passado refletem uma vida dignificada no presente. O contrário
também é verdadeiro: um passado vergonhoso se estende para o
presente, e as más ações dos ancestrais são responsabilidade de
seus filhos, netos e bisnetos.
No início, os personagens dos mortos tentam se aproximar
dos vivos que lhes fizeram mal em reencarnações anteriores, em
busca de ajuda para obter a reparação pelo seu sofrimento:

260
IntelectuaIs das áfrIcas

DEAD MAN: Will you take my case, sir?


[Adenebi starts, stares, and runs off.]
DEAD MAN [shaking his head]: I thought we were expected.
DEAD WOMAN: This is the place.
DEAD MAN: ... Unless of course I came up too soon. It is
such a long time and such a long way.
DEAD WOMAN: No one to meet me. I know this is the place.
[...]
[Demoke enters. He is tearing along.]
DEAD WOMAN: Will you take my case?
DEMOKE [stops]: Can’t you see? I am in a hurry.
DEAD WOMAN: But you stopped. Will you not take my
case?
DEMOKE: When you see a man hurrying, he has got a load
on his back. Do you think I live emptily that I will take
another’s cause for pay or mercy?56

O Homem Morto e a Mulher Morta oferecem seus “casos” aos


vivos, assim como os réus esperam encontrar advogados que os
defendam nos tribunais. Mas a reação dos mortais é a negligência
e o desprezo. Ainda que tenham eles mesmos desejado a presença
de seus mortos, os vivos não estão dispostos a lhes dar ouvidos.
Não parece ter sido fácil para esses espíritos retornar depois de
um “tempo tão longo” e de “uma distância tão longa”. Mas estão
seguros de estarem no lugar certo, no mesmo local em que sofre-
ram injustiças, prontos para o ajuste de contas necessário para um
verdadeiro recomeço. No trecho acima, a fala final de Demoke é
ainda significativa porque ele dá a entender que está muito ocupa-
do para assumir o caso de outra pessoa, seja por pagamento, seja
por comiseração. Porém, o que ele não sabe é que não se trata do

56 SOYINKA, Wole. Collected plays. Volume 1. Oxford: Oxford University Press, 1973b, p. 8.
“HOMEM MORTO: Você aceita o meu caso, senhor? [Adenebi se assusta, encara o Homem
Morto e sai correndo.] HOMEM MORTO [sacudindo a cabeça]: Pensei que éramos esperados.
MULHER MORTA: Esse é o lugar. HOMEM MORTO: ... A menos, é claro, que eu tenha vindo
cedo demais. Faz tanto tempo e é uma distância tão grande! MULHER MORTA: Ninguém para
me receber. Sei que esse é o lugar. [...] [Demoke entra. Ele está apressado.] MULHER MORTA:
Você aceita o meu caso? DEMOKE [para]: Você não vê? Estou com pressa. MULHER MORTA:
Mas você parou. Você não aceita o meu caso? DEMOKE: Quando você vir um homem correndo,
saiba que ele tem um fardo nas costas. Você acha que vivo à toa e posso pegar o caso de outra
pessoa por dinheiro ou piedade?”

261
IntelectuaIs das áfrIcas

caso de outra pessoa, mas o dele mesmo, que agora precisa ser
enfrentado.
Cada um dos três protagonistas comete malfeitos no presente.
Demoke, que sofre de acrofobia, assassina seu aprendiz Oremole
motivado pela inveja, justamente porque o rapaz consegue escalar
grandes alturas. Assim, atrai para si a animosidade do deus Oro
(associado à punição e à morte), já que Oremole era devoto dessa
divindade. Mais tarde a ira divina contra Demoke se intensifica
porque ele decide entalhar um totem numa árvore sagrada (araba),
que é protegida por Eshuoro, uma das formas assumidas por Oro
(o nome é, na verdade, uma mistura de Exu e Oro). Rola/Madame
Tartaruga também é responsável, na atualidade, pela morte de dois
de seus amantes. Adenebi aceita suborno para autorizar que um
caminhão viaje acima de sua capacidade máxima de passageiros, o
que acaba causando um acidente em que sessenta e cinco pessoas
morrem carbonizadas. A esse respeito, ele é cobrado por Obaneji,
que é a forma humana tomada pelo Rei da Floresta para lembrar
aos personagens suas responsabilidades:

OBANEJI: Before I tell you, I must let you know the history
of the lorry. When it was built, someone looked at it, and
decided that it would only take forty men. But the owner
took it to the council... now, my friend, this is something
for you to investigate. One of your office workers took a
bribe. A real substantial bribe. And he changed the capacity
to seventy.
[...]
OBANEJI: You see, I want to close my files on this particular
lorry – the Incinerator. And my records won’t be complete
unless I have the name of the man who did it – you know,
the one who took the bribe. Do you think you can help
me there?
ADENEBI: Since you are so clever and so knowledgeable,
why don’t you find that out yourself?
OBANEJI: Please… it is only for the sake of records…
ADENEBI: Then to hell with your records. Have you no

262
IntelectuaIs das áfrIcas

feeling for those who died? Are you just an insensitive,


inhuman block?57

Adenebi é tão responsável pela morte das pessoas quanto o


dono do caminhão, pois ao aceitar a propina colocou a vida delas
em risco. Mas ele não está disposto a assumir sua culpa. Ao invés
disso, prefere acusar Obaneji de ser insensível ao drama dos que
morreram por estar tocando nesse assunto. Mas evidentemente
a intenção de Obaneji é outra: ele pretende despertar a consciên-
cia de Adenebi em relação à consequência de seus atos, o que se
mostra um esforço em vão.
Apenas na segunda parte da peça, revelam-se, para os perso-
nagens e o público, os feitos do passado de cada um. Isso ocorre
por meio de “uma peça dentro da peça”, na qual se recria a corte
de Mata Kharibu oitocentos anos antes e se desenrola a ação das
antigas reencarnações dos personagens. O Homem Morto foi um
soldado do imperador que se recusou a participar de uma guerra
que julgava injusta. A Mulher Morta era a sua esposa grávida. A
guerra havia lhe parecido fútil porque foi ocasionada pelo desejo do
imperador pela esposa de um outro rei, justamente Madame Tarta-
ruga/Rola, que não se mostrou fiel ao marido. Portanto, não havia
nada de nobre em torno das razões do conflito. Se a inconstância
de Madame Tartaruga exerceu papel fundamental no desenrolar
da ação, Adenebi, como historiador da corte, não alertou a popu-
lação para o caráter sem sentido da guerra, tendo, ao contrário,
exaltado suas supostas qualidades para imprimir glória ao império,
o que acarretou a morte de muitos soldados. Demoke, que era o

57 Ibidem, p. 18. “OBANEJI: Antes que eu lhe diga, preciso lhe contar a história do caminhão.
Quando foi construído, alguém olhou para ele e decidiu que só poderia carregar quarenta homens.
Mas o dono levou isso para o conselho... ora, meu amigo, isso é algo que você deve investigar.
Um de seus colegas de escritório aceitou suborno. Um suborno realmente substancial. E mudou
a capacidade para setenta passageiros. [...] OBANEJI: Veja, eu quero arquivar o caso sobre esse
caminhão em particular - o Incinerador. E os meus registros não estarão completos até que eu
tenha o nome do homem que fez isso - você sabe, o que aceitou o suborno. Acha que pode me
ajudar nisso? ADENEBI: Já que você é tão esperto e instruído, por que não descobre por si
mesmo? OBANEJI: Por favor... é apenas para os registros... ADENEBI: Então, para o inferno
com seus registros. Você não tem sentimentos pelos que morreram? Você é só um bloco de pedra
desumano e insensível?”

263
IntelectuaIs das áfrIcas

poeta da corte, também não empregou sua poesia para denunciar


a injustiça da guerra. Todos tiveram, consequentemente, a sua
responsabilidade no que se abateu sobre o soldado e sua mulher.
A recusa do soldado parecia perigosa ao status quo porque
era a primeira vez que um subordinado naquele reino seguia sua
própria consciência e não as ordens arbitrárias de seus superiores.
O perigo que seu gesto representava era ainda maior porque ele
era visto como um líder por outros soldados. Ele foi, então, punido
com a emasculação e vendido como escravo, e sua mulher morreu
antes de dar à luz a criança que esperava.
Contudo, os crimes anteriores dos protagonistas não são
apenas esses. Em sua vida pregressa, Demoke matou um poeta
principiante ao empurrá-lo do telhado do palácio. Rola/Madame
Tartaruga, no passado, também esteve envolvida na morte de
outros homens. Adenebi aceitou suborno para legitimar a venda
dos soldados rebelados como escravos, o que também acarretou o
sofrimento de muitas pessoas. No presente, eles estariam repetindo
os mesmos erros do passado. Para interromper o círculo vicioso,
eles têm que aprender a lição. O Rei da Floresta (Obaneji) deseja
que aprendam por meio da conscientização e do reconhecimento
das próprias falhas, sendo capazes de construir um futuro melhor.
Oro, por sua vez, pretende puni-los da forma mais rigorosa pos-
sível, de preferência com a destruição e a morte. Vida e morte,
construção e destruição são os temas que estão, portanto, na base
da peça de Soyinka.
Contudo, Demoke é o único que parece encontrar alguma redenção.
Como é um artista, um entalhador, ele é um protegido do deus
Ogum. No processo de entalhar o totem, ele é inclusive tomado
pela divindade:

DEMOKE: [...] and I


Demoke, sat on the shoulders of the tree,
My spirit set free and singing, my hands,
My father’s hands possessed by demons of blood

264
IntelectuaIs das áfrIcas

And I carved three days and nights till tools


Were blunted, and these hands, my father’s hands
Swelled big as the tree-trunk. Down I came
But Ogun touched me at the forge, and I slept
Weary at his feet.58

Mais uma vez o ato da criação artística é comparado a um


transe ou possessão por um deus. Demoke enxerga em suas mãos
as mãos de seu pai, o próprio Ogum. Ele se vê apenas como um
canal para a energia criativa da divindade. Essa é provavelmente
a visão de Soyinka a respeito do procedimento correto para os
artistas: colocar-se à disposição de Ogum e entender que é dele
que vem a excelência da criação. É da divindade guerreira também
que vem o impulso de luta para transformar a realidade.
No final da peça, quando os habitantes da cidade estão dançan-
do em volta do totem que Demoke entalhou, Oro/Eshuoro o obriga
a escalar a escultura, segurando na cabeça uma cesta sacrificial.
Demoke tem a chance de enfrentar seu medo paralisante de altura
enquanto carrega o fardo de suas responsabilidades representado
pelo cesto que tem que equilibrar nessa difícil escalada. Eshuoro
põe fogo no totem e Demoke começa a cair até ser salvo por Ogum,
seu protetor. Ogum, assim, se apresenta como uma divindade mais
forte do que Oro. O ímpeto da criação vence a morte e a punição.
O artista não deve paralisar suas ações pelo medo de ser punido
pelas forças restritivas e autoritárias de sua sociedade.
Esse episódio ainda torna Demoke mais capaz de enfrentar as
dificuldades. Ele socorre, por exemplo, a Mulher Morta, cujo filho
havia permanecido oito séculos em seu útero. O Rei da Floresta
havia ordenado que era hora do bebê finalmente nascer. Mas ele
nasce apenas como uma Meia-Criança (Half-Child). Nascida de uma
mulher morta, tal criança não poderia estar, de fato, completamente
58 Ibidem, p. 27. “DEMOKE: [...] e eu,/ Demoke, me sentei nos ombros da árvore,/ Meu espírito
livre e cantando, minhas mãos,/ As mãos de meu pai, possuídas por demônios de sangue./ E eu
entalhei durante três dias e três noites até que as ferramentas/ Ficaram cegas, e essas mãos, as
mãos de meu pai,/ Ficaram inchadas como um tronco de árvore. Desci,/ Mas Ogum me tocou
na forja, e eu dormi/Exausto aos seus pés”.

265
IntelectuaIs das áfrIcas

viva. Nesse sentido, a Meia-Criança é mais uma imagem de abicu, a


figura espiritual que marca a poética de Soyinka. Ela é disputada,
no desfecho da peça, por Oro (destruição) e Ogum (criação). Num
determinado momento, Eshuoro a tem nas mãos, mas Demoke
consegue apanhá-la. Parecem ser duas as opções que tem diante de
si para o destino da Meia-Criança: permitir que continue no mundo
dos vivos ou entregá-la de volta para sua mãe morta. Por compai-
xão, Demoke devolve a criança para a mãe, que a levará mais uma
vez ao mundo dos espíritos, a partir de onde ela poderá renascer
e renascer infinitamente. Mas, apesar do ato de humanidade de
Demoke, isso significa que ela será para sempre um abicu, presa
num ciclo interminável de vida e morte.
É possível enxergar no abicu uma alegoria da Nigéria recém-
independente, uma entidade política mal-encarnada e fragmentada
como a Meia-Criança. Nesse caso, a própria dança na floresta re-
presentaria as comemorações em torno da independência. Porém,
para que haja um novo começo para a nação, é preciso fazer como
os personagens da peça: enfrentar os erros do passado. Será que
todos os nigerianos serão capazes de reconhecê-los e aprender
com eles? Soyinka parece estar demonstrando que o legado
ancestral não pode ser visto apenas como glorioso. Os reinos io-
rubás também têm um histórico de violência, conquista, guerras
fraticidas e até de escravização de seus próprios membros, como
a história do Homem Morto bem revela. Se esses comportamentos
destrutivos continuarem no presente, a construção da nova nação
não se efetuará. A responsabilidade do destino nacional é vista,
então, a partir de dentro da coletividade e não atribuída apenas
aos ex-colonizadores.
Contudo, o abicu parece ser mais do que uma imagem de na-
ção. Como Demoke o entrega finalmente para a esfera dos mortos,
o seu gesto pode parecer a princípio uma escolha pela destruição
em detrimento da criação. Porém, é possível compreender o abicu
como o próprio espírito humano, condenado a nascer e morrer em
momentos e situações sobre os quais não tem controle. Como a

266
IntelectuaIs das áfrIcas

ideia da reencarnação está na base da cultura iorubá, estaríamos


todos submetidos a ir e voltar diversas vezes, enfrentando muitas
formas de sofrimento e podendo aprender com nossos erros e
acertos. A escolha de Demoke celebra a nossa humanidade, a nossa
capacidade inata de criar e alterar a realidade a partir de nossas
dificuldades e angústias. Para Soyinka, o artista desempenharia,
assim, o papel de despertar, em seus conterrâneos, seus impulsos
criativos e de transformação.

OUTRAS CONSIDERAÇÕES

O fato de haver um fundamento cultural nativo nos escritos


de Soyinka não significa que ele se identifique, por exemplo, com
os princípios defendidos pelos teóricos da Negritude, movimento
de valorização da identidade negra e africana surgido na década
de 1930 que impulsionou, anos mais tarde, os movimentos nacio-
nalistas que conquistaram a independência das nações africanas.
Os principais expoentes da Negritude foram o martiniquense Aimé
Césaire e o senegalense Léopold Sédar Senghor, que começaram a
divulgar suas ideias quando ambos estudavam em Paris e reuniam
a sua volta vários estudantes africanos. Tal lócus de enunciação fez
com que os ideais da Negritude penetrassem mais intensamente nas
ex-colônias francesas na África e encontrassem mais resistência em
países com um histórico de colonização britânica, como a Nigéria.
Dois parecem ser os pontos mais relevantes na concepção
da Negritude. O primeiro se ancora “na exaltação da identidade
coletiva negra e na revalorização das tradições africanas, vistas
como a expressão legítima da ‘alma negra’ ainda intocada pelas
influências externas”.59 O segundo ponto se refere ao emprego de
expressões e termos de conotação a princípio negativa, usados
pelos discursos colonialistas, por exemplo, para desqualificar
os negros e os africanos, resignificando-os de forma a torná-los
motivos de orgulho racial e cultural. Um exemplo desse último

59 REIS, Eliana L. de L., op. cit., p. 112.

267
IntelectuaIs das áfrIcas

caso parece ser a famosa frase de Senghor, “[a] emoção é negra,


a ração helena”.60 A intenção é conferir uma carga positiva a algo
que foi enunciado de forma pejorativa, mas de qualquer forma
são reforçados os estereótipos que sempre associaram os negros
à irracionalidade, ao passo que os brancos seriam vistos como os
únicos detentores da razão. Ambos os aspectos têm em comum a
concepção de que existe uma essência africana que se diferencia
de uma essência europeia.
Soyinka também parece reconhecer a existência de uma es-
sência africana ou de um reservatório de energia ancestral, como
vimos em The interpreters. Porém, mesmo nesse exemplo, os perso-
nagens do romance, que haviam se constituído como identidades
híbridas no espaço intervalar entre a cultura nativa e a ocidental,
não podem acessar esse manancial diretamente. E, na verdade,
isso não parece ser algo negativo, já que seu papel como homens
africanos contemporâneos não seria retornar a um passado origi-
nal e mítico, mas avançar em direção à construção de uma nação
nigeriana contemporânea, em que a ocidentalização coexista com
a manifestação de elementos culturais locais. Quem surge, no
romance, como o canal direto para essa fonte é a figura feminina.
Soyinka reproduz, nesse sentido, uma visão estática a respeito das
mulheres, como se elas não tivessem um papel efetivo na mudança
de suas sociedades, mas apenas servissem de ligação, para os ho-
mens, com a tradição e a natureza. Elas podem recarregá-los, assim
como a terra proporciona alimento aos seres vivos, mas, enquanto
sujeitos agentes, o seu papel é praticamente nulo, a não ser como
as amantes e mães da nova geração de homens indispensáveis para
o desenvolvimento nacional.
Mary Ebun Modupe Kolawole, ainda que reconheça que, em
algumas peças de Soyinka, as mulheres têm mais potencialidade
de ação, afirma que:

60 SENGHOR, Léopold apud REIS, Eliana L. de L., op. cit., p. 112.

268
IntelectuaIs das áfrIcas

[m]uitos estereótipos femininos convencionais são reitera-


dos nos romances de Soyinka. Seu retrato das mulheres não
é totalmente negativo, uma vez que ele evita as representa-
ções populares de indivíduos tímidos, servis e derrotados,
verdadeiras mulas de carga num mundo “feito por homens”.
Contudo, essas mulheres são ou marginalizadas ou super-
idealizadas, carentes de um sentimento de realização. Seus
heróis homens são frequentemente retratados como o leão
que demonstra sua coragem e vitalidade, poderoso, prestes
a saltar sobre a fêmea, que é um símbolo de beleza, uma
jóia a ser possuída a todo custo.61

Não é à toa, portanto, que o paradigma de atitude artística


escolhido por Soyinka seja Ogum, a divindade mais viril do panteão
iorubá. O artista, seguindo o exemplo mítico de Ogum, também
pode adentrar o depósito de valores ancestrais, mas deve fazê-lo
justamente como o deus, que transita entre os mundos com o uso
de sua espada cortante. A entrada do artista nessa esfera deve
ter precisão e força, capturando aquilo que lhe for útil para o seu
trabalho, realizado no presente, na intersecção entre o antigo e o
novo. O artista tem a função de realizar a releitura do tradicional
a partir do moderno e do moderno a partir do tradicional. Nego-
ciando assim, ele não assume uma posição de inércia, como as
mulheres retratadas, mas, bem ao contrário, torna-se um exemplo
de agência e criatividade masculina a inspirar outros homens.
Soyinka criticou a ênfase da Negritude em estereótipos que
confirmassem o suposto caráter primitivo e menos intelectua-
lizado dos negros. Um de seus mais importantes experimentos
foi justamente tecer discussões de alta elaboração intelectual a
respeito de aspectos culturais africanos, estabelecendo-os como
paradigmas de compreensão de manifestações estéticas e políticas
contemporâneas. Recusou a ideia de que a contribuição africana
se restringia ao folclore ou à arte tradicional do passado. Trouxe
as epistemologias iorubás para o presente e as relacionou com
61 KOLAWOLE, Mary E. M. Womanism and African consciousness. Trenton: African World Press,
1997, p. 97, tradução nossa.

269
IntelectuaIs das áfrIcas

outros conhecimentos africanos e também ocidentais, atravessan-


do o precipício do pensamento abissal. Para Reis, “[c]omo Ogum,
Soyinka se faz e trabalha na passagem, na transição, no ‘espaço
cultural intersticial’ [...], na ‘liminaridade’ ou ‘inscrição dupla’, na
‘dimensão inter-nacional’ da cultura”.62 Tal é o cerne de sua poética
e de seu pensamento abicu.

REFERÊNCIAS

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[1958].
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62 REIS, Eliana L. de L., op. cit., p. 98, grifos no original.

270
IntelectuaIs das áfrIcas

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ciências sociais – perspectivas latino-americanas. Colección Sur Sur,
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REIS, Eliana L. de L. Pós-colonialismo, identidade e mestiçagem cultural: a
literatura de Wole Soyinka. Rio de Janeiro: Relume-Dumará; Salvador:
Fundação Cultural do Estado da Bahia, 1999.
SANTOS, Boaventura de S. Para além do pensamento abissal: das linhas
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MENESES, Maria P. (Org.). Epistemologias do sul. São Paulo: Cortez,
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SOYINKA, Wole. Idanre and other poems. London: Methuen & Company
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__________. Collected plays. Volume 1. Oxford: Oxford University Press,
1973b.
__________. Myth, literature and the African world. Cambridge: Cambridge
University Press; Canto, 1990.

271
IntelectuaIs das áfrIcas

UANHENGA XITU: DO ANCESTRAL AO MODERNO,


E VICE-VERSA

Washington Santos Nascimento1

Prendeste-me
Ai, prendeste-me
Porque gritei viva Angola
Quando um dia voltar
Terei na cabeça uma grinalda de mussequenha
Na mão direita rabo de leão
Na mão esquerda rabo de onça
Nos pés alparcatas de pele de elefante
E andarei pela rua gritando
Liberdade, Liberdade, Liberdade
E... e...
Com todo fôlego gritarei bem alto:
Viva Angola.
(Uanhenga Xitu, Tarrafal, 1963).2

Este capítulo tem por propósito fazer uma análise da obra do


intelectual angolano Uanhenga Xitu, destacando diferentes aspec-
tos de sua atuação literária e política. Ele pode ser percebido como
um intelectual em constante trânsito (tanto cultural, como espa-
cial), produzido nos entre - lugares da situação colonial. Uanhenga
Xitu dialogou com a tradição e a modernidade em sua produção,

1 Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo (USP). Professor adjunto da Uni-
versidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Email: washingtonprof@gmail.com
2 UANHENGA XITU. Mungo. Os sobreviventes da máquina colonial depõem... Luanda: Editorial
Nzila, Coleção Letras Angolanas 5, 2002, p. 37

273
IntelectuaIs das áfrIcas

objetivando conhecer e problematizar a história de seu país. Teve


um papel importante na resistência ao colonialismo português em
Angola, na construção do Estado pós-independência e no processo
de descolonização do conhecimento, mesmo utilizando a escrita
europeia para isso3.
Como intelectual, teve a capacidade de dar corpo a uma
mensagem para (e também por) um público específico, aquele de
origem kimbundu. Contribuiu para isso o fato de ter feito grande
parte de sua formação no continente, mas, também, de ter per-
tencido a diferentes movimentos político-literários que visavam à
valorização da sociedade e da história local, ou, nas palavras dos
participantes, “angolanizar Angola”4.
Esse movimento e os intelectuais ligados a ele cumpriram um
papel importante, em um contexto no qual a história de Angola,
produzida pelos próprios angolanos, ainda estava pouco ou não
escrita. Em Os sobreviventes da máquina colonial depõem de 1980, no
qual denuncia as relações de trabalho extremamente precárias e
violentas da Angola colonial, Uanhenga Xitu revalida e reforça a
importância da história para a verdadeira independência de Angola:
“Vamos fazer a nossa história, corrijam-nos, mas não duvidem da
nossa história quando não sabem”5. Este seria o primeiro passo
para a verdadeira transformação social e política esperada por
todos aqueles que imaginavam uma Angola realmente emancipada.
Por meio de suas obras literárias e manifestações políticas, ele
foi também um mediador cultural entre os universos kimbundu,
citadino luandense e europeu, transitando entre o papel de “mais

3 Uanhenga Xitu em quimbundo significa “O Poder é Odiado”. Xitu, portanto, não é um so-
brenome, e, sim, um nome, não fazendo sentido reduzir a referência a ele como sendo apenas
Xitu, o que seria comum no Brasil.
4 Ana Lopes de Sá (2004) diz ser difícil (e incorreto) considerar Uanhenga Xitu como sendo
participante de um movimento ou período literário fixo e preciso, diante de seus trânsitos
e variações ao longo do tempo. “De qualquer forma, e perspectivando a produção literária
angolana num macro período designado como ‘época da nacionalidade’, é claramente nos
seus propósitos, nele que UX se insere” (SÁ, 2005, p.60). SÁ, Ana Lopes. A Confluência do
tradicional e do moderno na obra de Uanhenga Xitu. Luanda: UEA, Práxis, 2004.
5 UANHENGA XITU. Mungo. Os sobreviventes da máquina colonial depõem... Luanda: Editorial
Nzila, Coleção Letras Angolanas 5, 2002, p. 36.

274
IntelectuaIs das áfrIcas

velho”, escritor, cientista social e político, perfazendo um jogo de


exclusões (um escritor que não se dizia político) e complementa-
ridades (um “mais velho” que é também um escritor) em um jogo
contínuo entre o ancestral e o moderno.

APONTAMENTOS BIOGRÁFICOS

Nascido em 29 de agosto de 1924 na sanzala (“aldeia”) de Nganga


Zuze em Calomboloca, concelho de Catete, região de Ícolo e Bengo,
interior de Angola, a, aproximadamente, 80 km da capital, Uanhenga
Xitu era filho de André Gaspar Mendes de Carvalho e Luísa Miguel
Fernandes. Por conta da própria situação colonial, recebeu, também,
o nome de português de Agostinho André Mendes de Carvalho.
Seu pai era um escriturário, ou seja, um funcionário admi-
nistrativo colonial que fazia documentos e correspondências
formais a mando de algum administrador local. Com a introdução
da máquina de escrever, eles passaram a ser conhecidos também
como datilógrafos. Muitas vezes esses escriturários/datilógrafos
foram intermediários entre as populações locais e as autoridades
coloniais. Assim sendo, André Mendes de Carvalho pertencia a
uma pequena elite letrada de Catete, podendo, então, propiciar
ao filho, Uanhenga Xitu, os estudos em uma missão metodista
naquela região, partindo posteriormente para Luanda onde viria
a se tornar um auxiliar de enfermagem e, mais tarde, enfermeiro.
Em decorrência do exercício profissional, aproximou-se das
realidades angolanas para além da capital, tendo trabalhado em
Cabinda, Dinge, Dondo, Cuanza Norte, Bié, Huíla, Benguela e
Bailundo, estabelecendo contato com a realidade da opressão
metropolitana e a necessidade de construir alternativas àquela
dominação.
Mas é em Luanda que começou a sua atividade mais direta de
resistência ao colonialismo europeu, organizando reuniões, distri-
buindo panfletos e fazendo parte do “Grupo dos enfermeiros” e

275
IntelectuaIs das áfrIcas

do clube de futebol “Espalha brasas”, que, usando como desculpa


questões ligadas à saúde e ao futebol, discutiam estratégias para
levar Angola à independência. Em decorrência disso, foi preso no
dia 29 de março de 1959 pela Polícia Política do Estado Colonial
(PIDE/DGS)6, sendo um dos membros do chamado “Processo dos
507”. Na época com 35 anos, já estava casado com Maria Antônio
Jorge de Carvalho e tinha 11 filhos8.
Cumpriu parte da pena entre 1962 e 1970, na prisão do Tarra-
fal, em Cabo Verde, onde começou a escrever e teve contato com
outros escritores, como Antônio Jacinto e Luandino Vieira, além de
companheiros, como Calazans Duarte e Hélder Neto, que o influen-
ciaram a escrever9. Membro do Movimento Popular de Libertação
de Angola (MPLA) desde o início, foi, durante muitos anos, uma de
suas principais referências, pertencendo ao grupo que ficou conhe-
cido como “Grupo do Catete”, do qual também fez parte Agostinho
Neto. Com Neto, mas também com o antigo presidente de Angola,
José Eduardo dos Santos, compartilhava outro elo importante: todos
vinham de famílias metodistas10. No pós-independência, assumiu
diferentes postos no governo angolano, foi comissário provincial de
Luanda, ministro da Saúde, embaixador em Berlim Leste e Varsóvia
e deputado pelo MPLA – último cargo político.
6 Querela definitiva no primeiro processo, 18 de dezembro de 1959 In: MEDINA, Maria do Carmo.
Angola: processos políticos da luta pela independência. ed. Coimbra: Almedina, 2013, p.194-196.
7 Segundo Anabela Cunha (2011), “O “Processo dos 50” é a designação que se atribui à prisão e
julgamento de um grupo de nacionalistas que, insatisfeitos com o domínio colonial português,
decidiram empreender clandestinamente acções que conduzissem à independência de Angola.
Deste processo fizeram parte indivíduos negros, mestiços e brancos, europeus e africanos, que
estavam envolvidos na luta por uma mesma causa – a independência de Angola. CUNHA,
Anabela. “Processo dos 50”: memórias da luta clandestina pela independência de Angola »,
Revista Angolana de Sociologia, 8 | 2011, 87-96.
8 Mendes de Carvalho/Xitu teve filhos fora do casamento, todos reconhecidos por ele ainda em
vida.
9 Como destaca em entrevista dada a Michel Laban, em muitos momentos a linguagem de
Luandino Vieira tenta se aproximar da do “quimbundo do Mendes de Carvalho”. LABAN,
Michel et alli. Luandino José Luandino Vieira e a sua obra (estudos, testemunhos, entrevistas).
Lisboa: Edições 70, 1980.
10 VENÂNCIO, José Carlos. Uanhenga Xitu: O Homem, O Político, e o Escritor. Uma Referên-
cia Obrigatória para a Construção da Nação em Angola. Revista Crítica de Ciências Sociais.
Número 33, 1981, p.219-220. Estas ligações são ainda mais profundas, pois, segundo relatos
de seus familiares dados a nós e a Nathalia Siqueira quando de nossa visita em junho de 2018
à Fundação Uanhenga Xitu, teria sido na casa do Mendes de Carvalho que José Eduardo dos
Santos teria sido efetivamente escolhido como sucessor de Agostinho Neto.

276
IntelectuaIs das áfrIcas

Uanhenga Xitu começou a escrever em 1945, com 21 anos de


idade. Entretanto, apenas em 1974 conseguiu editar as primeiras
obras11. O conto Mestre Tamoda, escrito quando esteve preso no
Tarrafal, Cabo-Verde (1962-1970), foi um dos primeiros a ser pu-
blicado, no ano de 1974, pelos Cadernos Capricórnio, no Lobito12.
Apesar de não ser um escritor profissional, deixou uma vasta
produção em forma de contos: Mestre Tamoda (1974), Bola com
Feitiço (1974), Vozes na Sanzala (Kahitu); romances: Manana (1974),
Maka na Sanzala (1979), Sobreviventes da Máquina Colonial Depõem...
(1980) e Discursos do Mestre Tamoda (1984); discursos: O Meu Discurso
(1974); e uma obra híbrida onde mistura autobiografia, romance
e ensaios: O Ministro (1990) e, por fim, Cultos Especiais (1997), uma
mistura de discursos e conto.
Suas obras são marcadas por diferentes formas e suportes, in-
tercalando, muitas vezes em um mesmo texto, dedicatórias, prosa,
poesia, discursos, notícias de jornais, linguagem teatral, evidencian-
do a intertextualidade e o hibridismo, como marcas de sua escrita.
Como um escritor engajado, muito de sua produção escrita
deve-se ao político, deputado, ministro e embaixador Mendes de
Carvalho (nome pelo qual é mais conhecido em Angola), que se
“aproveitou” do papel de “mais velho” construído por ele, para,
também, fazer o jogo tradição-modernidade e, assim, transportar
para a cena política moderna um tipo de discurso baseado no peso e
no respeito dados pela senioridade13. Por outro lado, como escritor
ele conseguia ainda mais se afastar das amarras do político Mendes
de Carvalho, possibilitando-lhe escrever um livro profundamente
crítico da política angolana, como é O Ministro.
11 Segundo depoimento dado por ele a Michel Laban (1991). Entrevista In: LABAN, Michel.
Angola: Encontro com escritores. Porto: Fundação Eng. António de Almeida, 1991
12 CINATTI, Ruy. Os poemas do itinerário angolano. Cadernos Capricórnio, Lobito, 1974. 43 p.
13 Esta é uma discussão feita ainda no auge da atuação política de Mendes de Carvalho por José
Carlos Venâncio. Segundo ele, o então embaixador transportava, para a cena diplomática,
a retórica dos mais velhos, dos anciãos da sociedade tradicional, conseguindo desta forma
muitas vezes se posicionar diferente dos órgãos superiores de seu partido. VENÂNCIO, José
Carlos. Uanhenga Xitu: O Homem, O Político, e O Escritor. Uma Referência Obrigatória para
a Construção da Nação em Angola. Revista Crítica de Ciências Sociais. Número 33, 1981,
p.222.

277
IntelectuaIs das áfrIcas

Em 2012, dois anos antes de falecer, ao receber o título de


Doutor Honoris Causa pela Universidade Metodista de Angola (UMA),
disse que considerava essa obra ainda muito atual e pertinente.
Por outro lado, aconselhou os jovens a confiar no trabalho feito
pelo presidente Eduardo dos Santos. Como se vê, o escritor e o
político se complementaram (e se distanciaram) até o fim da vida.

O ESCRITOR: DESCOLONIZAÇÃO LITERÁRIA E CRÍTICA SOCIAL

Compreendi que o escritor pode ajudar a sociedade,


ensinando, alertando, advertindo, denunciando, aconse-
lhando14.

A descolonização literária promovida por Uanhenga Xitu foi


muito mais um processo do que um projeto, apesar disso a crítica às
técnicas romanescas, à escrita e às estratégias discursivas europeias
estão presentes em suas diferentes obras e nos “pronunciamentos”
que quase sempre fazia na apresentação de seus livros. Por isso,
ele gostava de dizer que não era um escritor, mas um “apanhador
de dados”, que não escrevia livros como se fazia na Europa, mas,
sim, “livrários”. Ele fez, no período colonial, aquilo que ganhou
forma e centralidade como projeto somente no pós-independência
em grande parte dos países africanos15.
Ora longe de mim saber que um dia viria a ser escritor...
Porque eu não reunia aquelas qualidades acadêmicas. Eu
escrevia alguma coisa e guardava comigo, mas longe de
mim pensar que algum dia pudesse mandar publicar. Não
obstante, as pessoas também nunca nos encorajaram dizen-

14 UANHENGA XITU. O Ministro. Luanda: União dos Escritores Angolanos. 199, p. 39.
15 Segundo Cristina Freitas (2005), “A descolonização literária tem sido, de modo geral, o
projecto da escrita ficcional pós-colonial. No mundo das letras africanas, Chinua Achebe (Ni-
géria), Ahmadou Kourouma (Costa do Marfim) e Mia Couto (Moçambique) têm questionado
técnicas romanescas, discursos e estratégias discursivas ocidentais a partir de uma posição
privilegiada entre dois mundos” (FREITAS, 2005, p.7). Ainda segundo ela, “[...] as literaturas
africanas modernas se afirmaram como entidades autónomas das literaturas ocidentais e, mais
especificamente, que um romance africano difere de um romance ocidental tanto a nível da sua
dimensão ética e sócio-histórica como das convenções estéticas que o enformam” (FREITAS,
2005, p.9). FREITAS, Cristina Ferreira Pinto M. de. O processo de descolonização literária em
África - os casos de Chinua Achebe, Ahmadou Kourouma e Mia Couto. Tese de Doutorado em
Literatura. Faculdade de Letras da Universidade do Porto: Porto, 2005.

278
IntelectuaIs das áfrIcas

do: isso é bom, ou não presta, etc. Vivia-se num ambiente


em que a pureza da língua era respeitada com todas as suas
categorias gramaticais... E além disso não havia editora que
publicasse, no nosso tempo, qualquer trabalho que não
apresentasse aquela exigência na altura16.

Efetivamente suas obras nunca tiveram a “pureza da língua”


ou todas as “categorias gramaticais” do cânone europeu. Sua afi-
liação era outra: pertencia a uma linhagem antiga de “escriturários
da sanzala”, pois, além do pai, desde finais do século XIX, havia
do lado paterno parentes responsáveis por escrever cartas para as
pessoas enviarem a parentes distantes ou fazer requerimentos, ou
seja, reivindicações para as autoridades coloniais17.
Anos mais tarde, como aluno da escola missionária, pôde
desenvolver essas habilidades, tendo acesso ao universo dos escri-
tores portugueses, como Camilo Castelo Branco, Júlio Dinis e Eça
de Queirós, e depois, já fora da escola, dos escritores brasileiros18.
Segundo ele, foi o também escritor António Jacinto que o teria
apresentado uma obra, a qual disse que não deu muito valor, só
depois veria a importância daquele trabalho19. Não diz Uanhenga
Xitu qual autor seria esse, acreditamos que tenha sido Jorge Ama-
do20. Além de Antonio Jacinto, ele cita Luandino Vieira como aquele
que mais o incentivou a escrever, sobretudo em decorrência do
contato que tivera com ele no Tarrafal21. Jacinto e Luandino viriam
a compor, juntamente com Uanhenga Xitu e outros, a geração de
escritores responsáveis pelo movimento “Vamos discutir Angola”,
além da revista “Mensagem” e “Cultura”.

16 UANHENGA XITU. Entrevista In: LABAN, Michel. Angola: encontro com escritores. Porto:
Fundação Eng. António de Almeida, 1991, p. 113.
17 Ibidem.
18 Ibidem.
19 Ibidem.
20 O que estamos fazendo é uma suposição com base em outras entrevistas dadas por Xitu ao longo
de sua vida. Como por exemplo na entrevista que dera a Agência Angola Press no ano de 2001.
http://m.portalangop.co.ao/angola/pt_pt/mobile/noticias/sociedade/2001/7/32/,c95e91de-
408a-4f03-a2a8-84394de6035d.html?version=mobile
21 Ibidem.

279
IntelectuaIs das áfrIcas

Sobre o tempo que passara na cadeia, não o romantiza, ape-


nas ressalta que tinha mais tempo e a escrita servia para pôr suas
ideias em ordem. Segundo ele, o processo de escrita na cadeia
“[...] foi uma das amigas íntimas e fiel do meu longo cativeiro [...]
constituíram, para mim, a base íntima, pessoal, dando-me forças
para resistir, resistir até a liberdade”22. Assim, ao dedicar-se à es-
crita, voltava ao passado, às brincadeiras infantis, ao contato com
a natureza (física e mítica), retornava ao mundo tradicional e às
suas raízes. Era uma forma de manter a sanidade naquele contexto
extremamente difícil23.
Uanhenga Xitu afirma que, durante o período em que passou
na cadeia, “[...] começava a pensar nos tempos da minha terra.
Naquilo que eu tinha vivido e naquilo que eu tinha escutado da
boca dos meus “mais velhos”24. Sua fala assume a dimensão de uma
memória social do grupo de origem, uma “urgência do recordar”
para superar a “inevitabilidade do esquecer” em um período de
forte contato e mudança por conta da presença portuguesa25.
Alguns de seus textos, como Mestre Tamoda, Kahitu, Manana,
foram fruto da memória social dos AkwaKimbundu, podendo ser
entendidos como oraturas (literatura oral), ou seja, produtos de
um acervo de histórias trazidas da tradição oral e registradas em
forma da escrita. Por exemplo, Kahitu fazia parte das histórias que
se “contavam no antigamente”, uma forma de enaltecer uma divin-
dade, em um contexto no qual as “imposições das igrejas” já faziam

22 UANHENGA XITU. Entrevista. In: CRISTÓVÃO, Aguinaldo Cristóvão e CORI, Isaquiel.


Pessoas com quem conversar. Angola, UEA, 2004, p.65.
23 É importante também destacar, como salienta Simone Conceição (2010), que Uanhenga Xitu
compartilhava das ideias de um grupo de intelectuais angolanos que, a partir da década de 1950,
começaram a retomar a mãe África em sua produção literária, demarcando assim características
éticas, políticas e culturais tradicionais abaladas pelo colonialismo. CONCEIÇÃO, Simone. A
escrita desobediente das memórias póstumas de Uanhenga Xitu Mestrado em Letras. Universidade
Federal Fluminense, UFF, 2010.
24 UANHENGA XITU. Depoimento do escritor ao JL - Jornal de Letras Artes e Ideias em Lisboa
aos12 de Agosto de 1998, sob o título: Histórias de mais velho republicado em Jornal O chá,
Número 9 - 2ª série | Ano 2 - Fevereiro / Março 2014, página 18.
25 FONSECA, Maria Nazareth Soares. Literatura e “Arquivos da Memória”: Negociação e Dis-
persão dos Sentidos. In: SECCO, Carmem Tindó; SALGADO, Maria Teresa; JORGE, Silvio
Renato (Org.). África, Escritas Literárias. Rio de Janeiro: Editora UFRJ; Angola: Editora UEA,
2010

280
IntelectuaIs das áfrIcas

parte do cenário, afinal era preciso saber “de onde nós viemos antes
da igreja e da luta entre a igreja e a nossa população”26. Trata-se de
uma “maka”, ou seja, uma história verdadeira (ou reputada como
tal), mas que tem um final instrutivo e útil27.
De produção literária vasta, ele foi um dos responsáveis por um
processo que, como já dissemos, visava “angolanizar” a literatura
angolana, com a incorporação não só de novos suportes literários,
como a Maka, mas também através da escrita em kimbundu (sobretudo
aquele falado na região de Icolo e Bengo) do umbundo e ibinda (ou
“fiote”). Na apresentação de Manana (1974), ele afirma que aquele
“livrário”, não teria “[...] português caro, não. Português do liceu, não.
Do Dr., não. Do funcionário, não. De escritório, não. Só tem mesmo
português d’agente mesmo, lá do bairro, lá da sanzala, lá do quimbo”28.
Suas obras literárias apresentam diversidade de temas, mas
têm como eixo os trânsitos entre tradição e modernidade, rural
e urbano (cujo símbolo maior é Mestre Tamoda, sua obra mais co-
nhecida). Denuncia com ironia, mas também com assertividade, o
colonialismo português, o racismo e as segregações da sociedade
colonial (como fez em Os sobreviventes da Máquina Colonial depõem...)
e do pós-independência (a exemplo de O ministro)
Tamoda, seu personagem mais importante, aparece em duas
obras. Rita Chaves (2010) considera-o como um dos mais expressi-
vos da literatura angolana29. É através dele, um “falso assimilado”,
que, com ironia, o escritor tece críticas à situação colonial prin-
cipalmente a partir da segunda metade do século XX, quando a
política de assimilação colonial estava em franco desenvolvimento,
mostrando não só a assimilação a partir de um novo eixo, produ-
zida no entre - lugares e dando origem a novas subjetivações e
26 UANHENGA XITU. Entrevista In: CRISTÓVÃO, Aguinaldo Cristóvão e CORI, Isaquiel.
Pessoas com quem conversar. Angola, UEA, 2004, p. 217.
27 Macedo e Chaves (2007) baseando-se na classificação de Héli Chatelain divide as oraturas
em seis classes: Mi-sosSo, Maka, La-Lunda ou Mi-Sendu, Ji-Sabu, Mi-Imbu e Ji-Nongo.
MACEDO, Tania e CHAVES, Rita . Literaturas de língua portuguesa - Marcos e Marcas -
Angola. 1. ed. São Paulo: Arte & Ciência, 2007.
28 UANHENGA XITU. Manana. Lisboa: Edições 70, 1978, p.14.
29 CHAVES, Rita. Uanhenga Xitu: mundos em confronto de uma terra chamada Angola. Mulemba.
Rio de Janeiro, v.1, n. 2, pp. 118-128, jan/jul 2010.

281
IntelectuaIs das áfrIcas

novas linguagens, mas também a falácia de que os europeus eram


“civilizados”.
Através desse personagem, Uanhenga Xitu evidencia a lingua-
gem como forma de libertação do povo angolano. No “português
de Tamoda”, dicionário era o ndunda. Para outras palavras do por-
tuguês, também eram feitas modificações no quimbundo. “Nessa
transição eventualmente algumas palavras não caíam bem. Ao
dizer que o muchacho era muchachada, na língua local soava como
muxaxala que, em quimbundo, significa “sulco nadegueiro ou via
retal30”, gerando fúria dos angolanos locais ao ouvirem seus filhos
pronunciarem essa nova palavra. Mas a fúria maior vinha da pro-
fessora que ensinava o português formal de Portugal. Utilizava-se
de castigos físicos para que seus alunos se esquecessem do “por-
tuguês de Tamoda” e se concentrassem na “verdadeira” língua. Na
professora, vê-se a dominação do colonizador, que desconsiderava
qualquer diferença regional no que se refere à linguagem.
Nesse conto, Uanhenga Xitu mostra que ser assimilado é poder
ascender a postos na administração colonial, mas com ganhos ínfi-
mos, fazendo com que eles trocassem os seus sapatos e capacetes
por comida, a mandioca. Esta crítica persiste em outras obras, a
exemplo de Manana, na qual podemos ver Filito, um assimilado
que estudara no Liceu, mas que preferira a carpintaria e, contra a
vontade dos pais, inicia o seu oficio com tio Chico, para quem o
mundo dos “civilizados” não traria muitos frutos:

Aprende ofício, sobrinho! Este é arte. Não deixa pessoa


pedir esmola. Teu pai anda aí com mania de liceu, ianhi?
4ª classe, chega bem. Depois aprende arte. Uma data de
gente que anda aí com liceu, mas com mania de funcioná-
rio, são calutêiros. Não pagam as obras que a gente faz.
Alguns matam as famílias com fome. A vida deles é só ter
sapato engraxado e camisa limpo. Mas em casa só comem
farinha com açúcar31.

30 UANHENGA XITU. Mestre Tamoda e outros contos. Luanda. Edições Maianga.2004


31 UANHENGA XITU. Manana. Lisboa: Edições 70, 1978, p. 28.

282
IntelectuaIs das áfrIcas

Além da crítica à assimilação, outros temas recorrentes em suas


obras são o racismo e as discriminações, como na obra Os discursos
do Mestre Tamoda (1984), onde, na análise do “casamento” do preto
Marajá com a branca Arlete, Xitu expõe as fissuras e o racismo
daquela sociedade colonial, reproduzida também pelos próprios
nativos, representados por Josefa, uma espécie de governanta da
casa. Nascida em Angola e “muito portuguesona”, já servira em
casas de “governadores de bancos, de senhores doutores” e que
dizia “Eu que sou Josefa não aceito um preto, e mais do mato?!...
Eh, eh, eh, você mesmo menina Arlete, metida com esta gente
atrevida do mato?”32.
A fala da personagem evidencia as clivagens existentes na
própria sociedade local, quando parte de um dos seus segmentos
(representado pela Josefa) absorve o discurso do colonizador. Por
outro lado, revela as diferentes formas de organização social na
Angola colonial e a construção da ideia de uma sociedade “civili-
zada” (portuguesa) e outra “selvagem” (nativa).
O livro termina com o impedimento definitivo de Marajá e
Arlete se casarem por parte dos pais desta, mesmo assim os mais
jovens, durante o carnaval (espaço de subversão da ordem) dos
anos 1940 ou 1950, encenam teatralmente o casamento dos dois.
Xitu passa assim a mensagem de que uma nova Luanda (e Angola)
mais justa e democrática deveria ser construída pela juventude,
com a união entre brancos e negros, urbanos e rurais.
O racismo é, também, o tema central de um dos poucos en-
saios escrito por ele e que faz parte da obra O ministro. Segundo
Uanhenga Xitu o racismo constituiria uma “calamidade universal”
que afetaria povos de todas as partes do globo, sobretudo por ser
o fenômeno que se adaptava a diferentes circunstâncias (e espa-
ços ) e quase sempre era manipulado pelos políticos africanos em
suas disputas internas: “Os políticos aprenderam a utilizá-lo ora
para resolver problemas do momento, ora para agravá-los. Tudo

32 UANHENGA XITU. Os discursos do “mestre” Tamoda. Op. Cit... p. 129.

283
IntelectuaIs das áfrIcas

dependia dos objetivos a atingir e dos argumentos a utilizar. E, no


fim de contas, todos eram racistas e, ao mesmo tempo, ninguém
o era”33. Por esta razão o tema dos mestiços (e das mestiçagens)
seja tão relevante em suas produções, mesmo nas literárias como
vimos em Os discursos do mestre Tamoda ou em Mungo: os sobreviventes
da maquina colonial depõem. Uanhenga Xitu entendia a mestiçagem
como inevitável e defendia o importante papel que os mestiços
deveriam assumir na sociedade e na política angolana, como uma
forma de superação do racismo.
Como é possível perceber, inegavelmente toda a produção lite-
rária de Xitu é essencialmente política. Não por acaso, sua primeira
obra chamada O meu discurso, de 1974, é fruto de um pronuncia-
mento dado logo após os acontecimentos de 25 de Abril de 1974
em Portugal, a “Revolução dos Cravos”. Trata-se na verdade de um
escrito político onde ele se posiciona a favor de transformações
necessárias na então colônia. Esta dimensão é ainda mais explícita
em duas obras, Mungo: os sobreviventes da máquina colonial depõem,
originalmente publicado em 1980 e revisto em 2002 e O ministro, de
1989, onde sua verve de analista político aparece com mais força.
Em Mungo, através da história da relação entre o colono José
das Quintas e a mulher negra Luciana, ele denuncia as relações de
trabalho extremamente precárias e violentas da Angola colonial,
propiciada pelo serviço por contrato. Já O ministro, uma espécie de
autobiografia, é um livro profundamente crítico aos políticos “adula-
dores”, que se afastam do povo. Neste livro ele deixa evidente tam-
bém a crítica social em torno do papel das mulheres nas sociedades
africanas. Em um diálogo com a irmã, mostra, através da fala dela,
que as mulheres deveriam ter mais direitos, sobretudo as viúvas:

- A OMA e todas as sociedades das mulheres deveriam-vos


pôr na linha. Admite-se lá, por exemplo, uma senhora nova,
bonita, viva eternamente, por capricho e lei dos homens,
sem poder arranjar outro marido?... [...] são vocês mesmo,

33 UANHENGA XITU. O ministro. Luanda, União dos Escritores Angolanos, 1990, p. 228.

284
IntelectuaIs das áfrIcas

homens egoístas... leis para mulheres e nenhumas contra


os homens, hein?! Emancipação da mulher e igualdade de
direitos, mas é de funil34.

Uanhenga Xitu narra as histórias por um prisma de protagonis-


tas homens, como em O Ministro, que é também seu alter ego, mas
que não o impede de construir mulheres fortes e autônomas, como
Saki, de Vozes da Sanzala (Kahitu), a mais independente das mulheres
da Sanzala (aldeia); Arlete, de Os discursos do Mestre Tamoda, que se
jogaria nas pedras, caso preciso fosse, para defender seus interesses
e vontades; ou, ainda, Mafuta de Maka na Sanzala (Mafuta), cheia
de energia, mocidade e força. Manana, personagem da obra de
mesmo nome, é uma mulher que se impõe e cria estratégias para
se proteger de homens casados, inventando estar noiva “[...] já sou
noiva. Não tarda muito que o meu garoto apareça aí”35. Que se de-
fende em situações em que acredita estar sendo enganada, “Oooh!
vai à merda”. Nesta obra, Uanhenga Xitu ressalta a importância
das mulheres mais velhas. São elas que dão os caminhos a serem
seguidos, resolvem desentendimentos, mantêm o lar funcionando
e defendem o respeito às antigas tradições e ao sagrado36.
Apesar de poder transparecer, ele não traz uma relação de
antagonismo entre mulher x homem, mas de complementaridade
em uma situação que envolve diferentes papéis sociais e a necessi-
dade de direitos iguais. Segundo Marilúcia Ramos (2008), a forma
como Uanhenga Xitu constrói a mulher angolana “[...] permite ao
leitor que a “veja” no “palco” em movimento o tempo todo, como
personagem ativa em seu grupo, que atua na manutenção de tra-
dições milenares, passando de mãe para filha conhecimentos que
unem gerações futuras a uma origem ancestral”37.
34 Idem, p. 23
35 UANHENGA XITU. Manana. Lisboa: Edições 70, 1988, p.49.
36 Depois da publicação da primeira edição deste capitulo no livro “Intelectuais das Áfricas”
(2018), organizei uma edição crítica do romance “Manana” do Uanhenga Xitu no qual explorei
com maior profundidade a centralidade do feminino em suas obras. Algumas destas reflexões
foram incorporadas neste novo capítulo revisto. NASCIMENTO, Washington Santos. Uma
história sobre mulheres? Aproximações a Uanhenga Xitu e Manana In: UANHENGA XITU.
Manana. Edição crítica. Jundiai, Paco Editorial, 2019.
37 RAMOS, Marilúcia. O Feminino na obra de Uanhenga Xitu. Polissema, 2008, p. 16.

285
IntelectuaIs das áfrIcas

DO ANCESTRAL AO MODERNO E VICE-VERSA

Fui ouvindo contar as histórias do passado, das guerras,


e como é que eles faziam... Então geralmente entra o
sobrenatural, o feitiço... Eu assisti a muitas cerimônias,
registradas, que ainda não revelei nos meus livros [...] tive
que obedecer algumas obrigações só pra saber o que havia
de fato, não me deixaram levar papel nem lápis e acabei
por não ver nada. Quer dizer, eu queria saber o que existia
nesta forma de viver dos meus antepassados38.

Em grande parte das obras de Uanhenga Xitu, há um grande


esforço para traduzir ao leitor aspectos do universo mítico reli-
gioso kimbundu. Esta preocupação se insere no processo de (re)
descoberta da história de Angola, para além da influência europeia,
entretanto sem negá-la.
Em Vozes na Sanzala e Maka na Sanzala, ele mostra como o
contato dos seres humanos com os gênios da natureza ou mesmo
com aqueles que estão em outro plano provocam uma reação do
espaço natural, evidenciando a interação entre a dimensão visível
e invisível do mundo, que nos ajuda a pensar não só no universo
simbólico kimbundu, mas, também, no africano. Percebe-se um
mundo complexo e interligado, onde diferentes dimensões do
visível e do invisível entrelaçam-se e se complementam.
Em todas as suas obras, se percebe as imbricações do angola-
no (e africano) com o mundo do sobrenatural, do invisível-visível,
tanto no campo, quanto na cidade. Mesmo na luta anticolonial,
lembra que métodos derivados das tradições africanas “[...] foram
utilizados para psicologicamente encorajar os guerrilheiros que,
em 04 de fevereiro de 1961, começaram a luta armada de liberta-
ção de Angola39”.

38 UANHENGA XITU. Entrevista In: LABAN, Michel. Angola: encontro com escritores. Porto:
Fundação Eng. António de Almeida, 1991, p..115-116.
39 UANHENGA XITU. Entrevista In: LABAN, Michel. Angola: encontro com escritores. Porto:
Fundação Eng. António de Almeida, 1991, p. 120.

286
IntelectuaIs das áfrIcas

Indagado diversas vezes se acreditava nos quimbandas e nos


feitiços, ele respondeu que os quimbandas eram imprescindíveis
em diferentes lugares, sobretudo naqueles aonde os médicos não
chegavam ou mesmo não poderiam atuar em determinadas dimen-
sões da enfermidade de uma pessoa. Em relação ao feitiço: “[...]
não acredito no feitiço, mas eu acredito nas pessoas que acreditam
no feitiço”40.
Uanhenga Xitu foi também um dos principais pesquisadores
sobre divindades religiosas tradicionais, sobretudo aquelas ligadas
aos kimbundu41. Em seus livros, é possível perceber a descrição de
“gênios da natureza” como as kiandas, kiximbi e kitutas. Kianda
(plural ianda) era a nomenclatura do gênio presente na região do
rio Cuanza, que banha a cidade de Luanda. À medida que o rio
entra no interior de Angola, ela recebe a denominação de Kituta
e Kiximbi, este último um termo mais antigo e pouco usual no
século XX. A leitura de Vozes na Sanzala sugere a existência dessa
distinção, que não é só uma questão de nomenclatura, mas de tipos
de organização social: de um lado uma sociedade de pescadores
(às voltas com o mar e kiandas) e, de outro, agricultores (com os
rios, lagos e kitutas)42.
A descrição física das kiandas e kitutas feita por Uanhenga
Xitu nas diferentes obras não se afasta de outras representações
de “sereias” no continente africano e mesmo no espaço diaspórico,
onde ela recebe outros nomes como Yemanjá, Janaína, Mãe-d´água
e nos sugere que, em meados do século XX, a influência das re-
presentações europeias (no caso específico, uma sereia) já tinha
sido incorporada e tomada para si, como pertencente também do
40 UANHENGA XITU. Entrevista In: LABAN, Michel. Angola: encontro com escritores. Porto:
Fundação Eng. António de Almeida, 1991, p. 121.
41 Além de Uanhenga Xitu, Oscar Ribas também foi um dos mais importantes estudiosos sobre
o universo tradicional de Angola, vale a pena destacar a obra “Temas da Vida Angolana”. RI-
BAS, Oscar. Temas da vida angolana e suas incidências: aspectos sociais e culturais. Luanda
: Edições Chá de Caxinde, 2002.
42 Em um artigo anterior (2017) fiz uma reflexão sobre como Uanhenga Xitu retrata este universo
kimbundu através da análise de sua obra Kahitu. Algumas destas reflexões foram também
incorporadas neste capítulo. NASCIMENTO, Washington Santos. Universo mítico-religioso
Kimbundu e trânsitos culturais em Uanhenga Xitu. Revista Brasileira de Ciências Sociais (online),
v. 32, p. 1-14, 2017.

287
IntelectuaIs das áfrIcas

imaginário dos Kimbundu, ou seja, aquilo que, em um primeiro mo-


mento, era uma forma de tradução, torna-se, então, um elemento
novo e local, através de um trânsito e hibridização entre elementos
ancestrais e representações modernas. Em algumas obras, ele as-
socia essa divindade à cor branca, por exemplo no livro Os discursos
do mestre Tamoda (1984). Uanhenga Xitu relata a história de José
Maquita, “preto, beçula”, que morava em Portugal desde pequeno
e, ao voltar para Angola, trouxe a esposa e a apresentou aos pais no
interior. Assustados com a cor da mulher, os progenitores fugiram,
dizendo que o filho lhes havia trazido uma kianda.
O Kimbanda (ou Quimbanda em português), outro personagem
angolano que constantemente aparece em suas obras, é o respon-
sável pelos processos de cura, por isso conhecia as propriedades
e aplicações das plantas. Como se acreditava que os males tinham
sempre causas sobrenaturais, tais como enfeitiçamento, vingança,
contrariedade, o kimbanda faz uso da adivinhação como parte de
seu diagnóstico. Por outro lado, tem um caráter duplo, podendo,
em alguns casos, assumir um papel de feiticeiro e, assim, fazer uso
da magia para matar ou mesmo atrapalhar a vida de uma pessoa.
É um personagem central em diferentes obras de Uanhenga Xitu,
destacadamente em Maka na Sanzala” (1979). Construído a partir
das suas memórias e experiências pessoais, mesmo sob estrutu-
ração e convenções próprias de uma obra literária, oferece-nos
um rico painel dos procedimentos de duas quimbandas no auxílio
a um parto difícil. A primeira, denominada apenas como “velha
quimbanda”, ao encontrar com a mulher em trabalho de parto:

Fazia das suas mãos kixakatu. Os dedos da mão direita


passava-os na palma da mão esquerda, como quem estives-
se a afiar uma navalha. Deslizava-os com uma destreza de
impressionar. Dessa sua perícia mágica saíam uns estalidos
singulares. De vez em quando tirava de uma pasta de couro
uns pós brancos que atirava para trás e para a frente de si,
ao mesmo tempo que monologava umas preces43.

43 UANHENGA XITU. Maka na sanzala. Lisboa: Edições 70. 1979, p. 21

288
IntelectuaIs das áfrIcas

A outra quimbanda (Kasexi), a mais importante da região e a


única que, ao tocar os guizos, fazia os moribundos abrirem seus
olhos ou mexerem os lábios, chega para terminar de auxiliar no
parto. Uanhenga Xitu assim descreve as suas ações:

De repente a velha quimbanda, num movimento diabóli-


co, urrou e buibuilou, mexendo-se convulsivamente, ao
mesmo tempo que sacudia os sinos que lhe pendiam dos
paramentos. E esteve neste delírio por longos minutos [...]
Nada mais aconselhou senão tirar uns pós mágicos da sua
bolsa. E deitou uma pitada de pós na língua da Mulemba.
Da mesma forma “sacou” um boião de onde tirou uns
pós e fez uns riscos cabalísticos em volta da cabeça e da
cintura do bebê44.

O kimbanda poderia assumir o papel de feiticeiro, mas o tra-


balho era diferente. Na obra Os discursos do Mestre Tamoda (1984),
a portuguesa Dona Amélia gostaria de separar sua filha do “preto”
Marajá, por isso pede a seu cozinheiro para procurar um kimban-
da. Depois de voltar do primeiro contato com este, perguntou o
funcionário à sua senhora se era para “virar o coração da menina”
ou “matar o rapaz no feitiço”45. Já os kilambas eram os intérpre-
tes das kitutas, o único que podia conversar com elas, tratar das
enfermidades ocasionadas por esses gênios da natureza, usando,
para isso também, a adivinhação como diagnóstico. Foi a kituta ou
não? Se foi a kituta, por que foi? Em Vozes na Sanzala, Xitu define
kilamba como sendo ligado às “sereias”, responsáveis por tratar
e curar as doenças relacionadas com ela e, eventualmente, pela
consagração dos sobas em cerimônias de coroação. Eles já nasciam
predestinados, trazendo do ventre da mãe um sinal característico
que somente os entendidos sabem reconhecer nos primeiros dias
do seu nascimento. Além disso, era consagrado (“feito”) de forma
diferente dos kimbandas, tendo ritos específicos para isso.

44 UANHENGA XITU. Os discursos do Mestre Tamoda. São Paulo, INL. 1984, p.132.
45 PAREDES, Margarida. Deolinda Rodrigues, da Família Metodista à Família MPLA, o Papel
da Cultura na Política. Cadernos de Estudos Africanos, 20, p. 11-26, 2010.

289
IntelectuaIs das áfrIcas

Como as sereias, os Kilambas poderiam ficar embaixo da água


até um mês. Tal qual Uanhenga Xitu, Oscar Ribas (2002) afirma que
normalmente um kilamba tinha alguma deformação física, mas que
somente um Kimbanda poderia revelar a esta pessoa se ela seria
ou não um Kilamba. Assim podemos ao menos supor que Kahitu
um dia poderia ter-se tornado um kilamba.
Em análises sobre o interior angolano, estes personagens
emergem em meio à presença das missões religiosas cristãs, evi-
denciando um difícil, porém existente diálogo estre estas duas
matrizes. Se, por um lado, católicos e protestantes compartilhavam
a mesma visão de que o africano deveria ser salvo pelos cristãos
e de que o que havia antes da chegada dos europeus não passava
de “crendices” ou “selvageria”, por outro eles poderiam ser uma
resposta às grandes inquietações do encontro e desencontro co-
lonial46.
Sua última obra, Cultos Especiais, retoma o tema da comple-
mentaridade entre o universo dito “tradicional” e a modernidade
europeia em um espaço profundamente misturado: “Késua dos
missionários Robert Shields, João Wengats Viollet Krandel, Alpha
Miller e de outros. [...] do soba Bangu, uma das maiores autori-
dades tradicionais com poder e autoridade real na mão”47. Nas
situações de dificuldades, os moradores se afastavam da Igreja e
buscavam os saberes do quimbanda, fazendo com que a própria
igreja protestante aprendesse que seria necessário incorporar em
seus ritos determinadas práticas ancestrais, permitindo a realização
dos “cultos especiais”, título do conto, para, finalmente, conseguir
se afirmar diante daquela população. Nesta obra, Uanhenga Xitu
demonstra o jogo existente naquela sociedade, no qual o ancestral
interfere no moderno, e vice-versa.

46 UANHENGA XITU. Cultos especiais. Luanda: Ponto Um/Intergráfica, 1997, p.21.


47 Luanda é um espaço comumente retratado na ficção angolana, sobretudo porque a literatura nasce
associada ao processo de urbanização. Rita Chaves (2005) chama atenção que o repertório literário
produzido a partir dos anos 1960, época de consolidação da ficção angolana (e também da escrita
de Xitu), ocorre nas ruas de Luanda, “[...] cenário preferencial das histórias”. (Chaves, 2005: 78).
CHAVES, R. A geografia da memória na ficção angolana In: CHAVES, R. Angola e Moçam-
bique - experiência colonial e territórios literários. 1. ed. Cotia: Ateliê, 2005.

290
IntelectuaIs das áfrIcas

PENSAR A CIDADE E SUAS TRANSFORMAÇÕES

Apesar de ter se dedicado prioritariamente às questões do


interior angolano, há também, em Uanhenga Xitu, um pensar sobre
as cidades angolanas e mais propriamente sobre Luanda, palco de
alguma de suas narrativas, como Manana (1978), que se desenvolve
entre o Alto do Maianga e os Musseques Rangel e Catambor48. Mes-
mo nas obras que se passam em outros espaços, Luanda é quase
sempre um ausente-presente, ou seja, uma referência constante.
Assim não podemos pensar, nas obras dele, apenas a oposição urba-
no x rural, pois o rural está dentro do urbano, e o urbano também
faz parte do rural, da mesma forma que o ancestral e o moderno
se confundem de tal forma que acabam por criar uma nova cidade.
Grande parte de seu conhecimento de Luanda se deu porque,
apesar de se dizer “do mato”, Uanhenga Xitu efetivamente viveu
a maior parte de sua vida na capital de Angola, onde chegou em
finais da década de 1940 para estudar na mesma escola da Missão
Evangélica de seu primo, Adriano Sebastião, o que mostra a exis-
tência de laços de parentesco fortes que facilitavam esses trânsitos
internos.
O pensar sobre a cidade emerge com mais força na obra Os
discursos do Mestre Tamoda, onde há uma interessante reflexão sobre
Luanda dos anos 1940 e 1950. Naquele momento a chegada em
grande quantidade de portugueses, em decorrência de uma nova
política portuguesa de ocupação de suas colônias, provocou um
redesenho urbano com a expulsão dos angolanos das zonas cen-
trais para as zonas periféricas49. Por outro lado, criou uma cidade
carnavalizada, subversiva, misturada... símbolo de uma Angola a
ser construída.

48 Um dos mais significativos sobre as migrações de portugueses para suas colônias na África foi
o desenvolvido por Claudia Castelo (2007), já as transformações de Luanda é analisada por
Fernando Mourão (2006) CASTELO, Cláudia. Passagens para África. O Povoamento de Angola
e Moçambique com Naturais da Metrópole, Porto, Edições Afrontamento, 2007 e MOURÃO,
Fernando Augusto Albuquerque. Continuidades e descontinuidades de um processo colonial através de
uma leitura de Luanda. São Paulo: terceira margem, 2006.
49 Ibidem, p. 137-138)

291
IntelectuaIs das áfrIcas

Luanda também é registrada por Uanhenga Xitu como um lu-


gar de trânsitos, onde o porto tinha uma centralidade importante,
sobretudo por conta da conexão férrea com a região de Malanje,
ligando o interior (um interior próximo, é bem verdade) com o
litoral, servindo de escoadouro das mercadorias (Tamoda, por
exemplo, vem da região de Malanje para vender ovos e limões no
porto), mas, sobretudo, um local de trocas e trânsitos.
A instalação do porto de Luanda, o aumento da atividade co-
mercial, a abertura de estradas que conectariam a capital a lugares
mais afastados foram fortes atrativos para as populações interioranas.
A construção de redes de parentesco que traziam para Luanda os
membros de sua família extensa do interior facilitaram esses trânsi-
tos. Mas, além disso, possibilitavam a criação de uma nova cidade,
marcada por uma série de misturas e mestiçagens, onde o tradicional
e o moderno se misturavam em um contínuo difícil de se discernir.
Trata-se de uma cidade com um enquadramento muito próprio,
não é europeia, tampouco africana, é Luanda. Uma cidade que se
descortina pelas andanças dos personagens, evidenciando frontei-
ras móveis e borradas, zonas de contato e espaços híbridos. É a
Luanda das peixeiras e quitandeiras, que saíam com cestos de peixe
na cabeça e que gritavam pelas ruas “- maleèè, maçambula-malam-
buda... makoa-makoa, mbinjièè, está fresco, fresquinho-uuu...” ou
“[...] laranja-laranja, laranjinha doce-doceééé... tangerina-tangerina
boa”50. A reclamarem das senhoras que barganhavam os preços, a
misturar a cidade colonial com a cidade africana.
Um espaço com uma forte tensão e movimentação política,
como provam as articulações para a soltura do protagonista Marajá
de Os discursos..., causando medo nas autoridades locais, “[...] as
entidades policiais ficavam alarmadas com o que parecia uma prisão
normal, banal, transformar-se num grupo organizado político ou
reacionário que poderia servir a juventude para um fim obscuro”51.

50 Ibidem, p. 123
51 UANHENGA XITU. Os discursos do “mestre” tamoda. Luanda, Angola: União dos Escritores
Angolanos, INALD. 1984, p.30.

292
IntelectuaIs das áfrIcas

Esta cidade também formava novos indivíduos, marcada por


outras ideias e formas de sociabilidade e um conhecimento dife-
rente que era buscado, sobretudo pelas gerações mais novas, como
fez o personagem Tamoda, que era chamado de “mestre” pelos
mais jovens do interior por ter adquirido tais conhecimentos na
capital e ter inventado uma linguagem nova, indecifrável para os
portugueses e angolanos, mas um elemento de força nas disputas
coloniais.
Por fim, Luanda era onde um tipo de saber “moderno” estava
instituído, um saber diferente, nem melhor, nem pior do que os
saberes ditos “tradicionais”. Diante do debate entre um padre e
um pastor do interior sobre quantas orações havia em determinado
parágrafo, Tamoda resolve ir a Luanda, onde consultaria seu amigo
Rui, “explicador das primeiras letras”, aluno do sexto ano do Liceu
Salvador Correia, mas que já dava aula no colégio do Ferrão. Luanda
surge assim como o lugar onde o saber europeu estava instituído
e reproduzido com o Liceu Salvador Correia, o mais importante
de Luanda. E onde a palavra final poderia enfim ser dita. Rui pro-
meteu dar um retorno e, melhor ainda, daria o retorno como uma
“resposta preparada à máquina”52.
É esta Luanda, lugar do saber, do progresso que emerge das
páginas do Uanhenga Xitu, por um lado, mas, por outro, um lugar
de misturas, onde os saberes do interior se faziam presentes, uma
grande mescla cultural, um espaço híbrido, em constante trânsito,
como bem personificam as quitandeiras descritas por ele, mas
também lugar da segregação e das discriminações de diferentes
ordens. O olhar de Uanhenga Xitu nos ajuda a compreender as
cidades africanas como lugares multifacetados e híbridos, espaços
de trânsitos e resistências, nem modernas, nem tradicionais.

52 LOPES DE SÁ, Ana. A confluência do tradicional e do moderno na Obra de Uanhenga Xitu. Luanda:
UEA, 2009.

293
IntelectuaIs das áfrIcas

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O que marca o pensamento de Uanhenga Xitu é a conflu-


ência do tradicional e do moderno, parafraseando Ana Lopes de
Sá (2009)฀. Mas poderíamos ir além: ele cria elementos novos,
híbridos, representantes daquela sociedade formada depois da
chegada dos europeus. Nas tensões entre o nome tradicional
quimbundo Manana e os nomes portugueses e “de santa” Ana e
Mariana, Uanhenga Xitu revela o embate e a complementaridade
entre o “antigo” (“tradicional”) e o novo (“moderno”). De igual
forma, Tamoda, uma corruptela de Tá na Moda, a moda europeia,
diga-se, junto a Mestre, fundamental naquela sociedade, onde
as relações de senioridades são mais importantes do que as de
idade. E a igreja protestante, que incorpora em seu repertório
determinados “cultos especiais” secularmente presentes na região,
torna-se, desta forma, uma igreja nova? Todos esses são exemplos
de que, para Uanhenga Xitu, não é só uma relação de confluência
do tradicional e do moderno, é a criação de uma nova sociedade,
cidades e um novo homem.
Seus estudos sobre o universo mítico-religioso Kimbundu
evidenciam que a ciência representa apenas uma, entre várias
formas de conhecimento relevantes. Da mesma forma, o que era
“tradicional” precisava desse novo para se reinventar, recriar e se
manter vivo. Há neste sentido um esforço de Uanhenga Xitu em
compreender as mudanças modernas, construindo um discurso
elástico, híbrido, que capture e forme elementos novos, traduzindo
e ressignificando-os.
Como um artesão irônico em um cenário de profundas fissuras
e questionamentos da ordem social, Uanhenga Xitu costura e entre-
laça os mundos caídos com a nova ordem vigente, que traz não só
concepções religiosas e sociais distintas, mas também a violência
da dominação colonial. E é como resposta a esta violência que
ele se propõe pôr um “porta-voz”, e aqui as aspas, pois ele estava
mais para um “mais velho”, dos saberes e tradições kimbundu, mas

294
IntelectuaIs das áfrIcas

também de uma fala literária verdadeiramente angolana, que ele


não sabia ao certo qual seria, mas sabia o que não seria.
E é justamente esta fala literária, uanhenguiana, que, a nos-
so ver, é uma de suas principais contribuições como intelectual.
Trata-se de um texto polifônico, com leituras distintas e diversas
possíveis, muitos dos quais apenas os iniciados em determinada
cultura (sobretudo Kimbundu) ou em determinadas geografias (em
torno de Luanda e Icolo-Bengo) conseguem ler todos os signifi-
cados do texto. Por outro lado são textos universais que falam de
simbolismos e matérias compreensíveis em diferentes culturas e
espaços, sobretudo pelo esforço de tradução que faz, navegando
do ancestral ao moderno e do moderno ao ancestral.

REFERÊNCIAS

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IntelectuaIs das áfrIcas

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297
IntelectuaIs das áfrIcas

MIA COUTO: O INTELECTUAL E SUAS ESCOLHAS

Tania Macêdo1

Perguntam-me muitas vezes: «Optaste ficar moçambicano,


ficar lá?» Não optei ficar lá, não optei ser. A vida optou
por mim. Sem que soubesse, desde menino estava sendo
preparado para ser parte daquela coisa.
Mia Couto em entrevista a Anabela Mota Ribeiro

Se a inocência está banida das relações coloniais, conforme


muito bem aponta Albert Memmi em seu Retrato do colonizado
precedido pelo retrato do colonizador, as escolhas feitas neste es-
paço/tempo da colonização também são decisivas e conscientes,
na medida em que, segundo o mesmo autor, “(...) o fato colonial
não é uma pura idéia: conjunto de situações vividas, recusá-lo é o
subtrair-se fisicamente a essas situações ou permanecer e lutar a
fim de transformá-las.2
A constatação de Memmi estabelece o quadro de referência
sobre a trajetória do escritor moçambicano Mia Couto que tra-
çaremos brevemente, já que a sua atuação como intelectual e os
caminhos que decidiu trilhar estão profundamente vinculados à
situação e história de seu país. Ainda que na epígrafe acima, fruto
de uma declaração em entrevista dada à jornalista Anabela Ribeiro,
o autor afirme que “a vida optou por mim”, veremos que o fato
de ter nascido e vivido toda a sua vida em Moçambique em um
1 Universidade de São Paulo, Professora Titular em Literaturas Africanas.
2 MEMMI, Albert. Retrato do colonizado precedido pelo retrato do colonizador. 3. ed. Rio de Janeiro:
Paz e Terra, 1977, p. 16.

299
IntelectuaIs das áfrIcas

período particularmente sensível da história de seu país fez com


que se tornasse testemunha e escolhesse ser ator privilegiado das
profundas mudanças de sua terra em razão das escolhas realizadas.
Ou seja, o movimento que anima este texto prende-se ao objetivo
de flagrar as agendas que mobilizam um intelectual africano que
viveu sob o colonialismo, acompanhou – atuando decisivamente –
a transição e a independência de seu país e mantém uma atitude
crítica em toda a sua trajetória intelectual e artística. Vale dizer,
alguém para quem a elaboração de ideias e a reflexão (mesmo que
a partir de metáforas) fornecem os meios para compreender e atuar
sobre os fenômenos políticos.
Nessa exposição o foco de interesse incidirá, sobretudo na
figura do artífice da palavra – o jornalista e o escritor – deixando
à sombra o ecologista Mia Couto, já que ele mesmo se definiria
em uma intervenção no I Encontro de Biólogos da Comunidade
dos Países de Língua Portuguesa (CPLP) da seguinte maneira: “Sou
um biólogo, mas não moro na biologia. Estou na biologia como
um visitante, com a alma errando pelos domínios da literatura.” 3

O INTELECTUAL BRANCO NO MUNDO COLONIAL AFRICANO

De ascendência portuguesa, um dos três filhos do escritor


Fernando Couto e nascido no período colonial, em 1955, Mia Couto
viveu, como ele mesmo refere, a Europa dentro de casa e a África
na rua, a partir das brincadeiras com seus colegas negros nas ruas
da cidade de Beira, onde passou a infância, conforme diria em
entrevista a Celina Martins:

A Beira era uma cidade muito particular porque existia


esse estigma de divisão racial, se calhar era o lugar de
Moçambique onde essa hierarquia espacial por raças era
mais evidente. Segundo, a Beira era um pântano e essa
arrumação espacial não foi plenamente conseguida (...)
3 COUTO, Mia. O estorinhador Mia Couto. A poética da diversidade. Entrevista a Célia Martins,
realizada a 22 de maio de 2002. Revista Brasil. http://revistabrasil.org/revista/artigos/celina3.
html Acesso em: 26 abril de 2016, p. 113.

300
IntelectuaIs das áfrIcas

E por circunstâncias da minha vida vivi nessa margem ,


os outros estavam do outro lado da rua: os indianos, os
pretos, os mulatos e chineses.4

No mundo de interdições e menosprezo de que são alvo os


“indianos, pretos, mulatos e chineses”, as opções são bastante
diminuídas, ao contrário da outra margem, em que os privilégios
e oportunidades sobejam. A passagem quase impossível de um
mundo a outro, dar-se-ia a partir da adesão do mundo “da Europa”
à África da rua.
Uma das maneiras possíveis dessa travessia seria a partir da
Universidade, lugar do saber que possibilitaria demonstrar como
“gerar desenvolvimento econômico e estabilidade política, disse-
minar conhecimento e formar profissionais”, segundo uma visão
dos anos 1970 em África explicitada por Toyin Falola.5
Em um período conturbado de Moçambique, em que as redes
de resistência ao colonialismo português se adensaram, os caminhos
que António Emílio Leite Couto escolheu percorrer levaram-no a
abandonar o curso de Medicina que iniciara na então Lourenço
Marques, para dedicar-se à ação política, como afirma no texto que
acompanhou o programa da peça Vinte e zinco, encenada na come-
moração do 25 de abril e posteriormente publicado em Pensatempos:

Em Março de 1974, eu era um jornalista trabalhando como


estagiário num vespertino em Maputo. Militava em grupos
clandestinos de apoio à Frente de Libertação e foi-me
pedido que abandonasse os meus estudos universitários
para trabalhar num jornal da capital. Era preciso “infiltrar”
(assim se dizia) com quadros moçambicanos os órgãos de
informação que estavam nas mãos dos portugueses. Um
mês depois de iniciar o meu estágio sucedeu o 25 de Abril. 6

4 Idem
5 BITTENCOURT, Marcelo; FERREIRA, Roquinaldo. A trajetória de um intelectual africa-
no. Tempo.[On-line] Niterói: UFF, 2006, v. 10, n. 20, p. 164-173.
6 COUTO, Mia. Pensatempos. 2 ed. Lisboa: Caminho, 2005, p. 10.

301
IntelectuaIs das áfrIcas

O JORNALISMO, UMA OPÇÃO IDEOLÓGICA

Em meio às profundas mudanças que se preparava nos anos


1970, o jovem branco elege o mundo do colonizado negro e irá
lutar para a extinção da situação colonial, optando por integrar-se
às fileiras do trabalho clandestino da FRELIMO (Frente de Libertação
de Moçambique). Sem fazer parte da luta armada, foi, contudo um
quadro importante na cidade e no jornalismo no momento em que
há o acirramento das disputas por posições em razão da iminente
partida dos portugueses.
Com a independência de Moçambique a 25 de junho do ano
seguinte, Mia Couto é chamado pelo novo governo a desempenhar
as funções de Diretor da Agência de Informação de Moçambique
(AIM). Assim, com apenas 20 anos, ele não apenas realiza um “jor-
nalismo engajado, a serviço da revolução”, com grande dedicação,
conforme ele mesmo afirmaria posteriormente, como também
estará na gerência da informação veiculada em seu país e, nesse
sentido, atuará em um órgão que também poderia ser visto como o
de Relações Públicas da FRELIMO. Após essa tarefa, a partir de 1979
e até 1981, foi diretor da revista semanal Tempo e posteriormente
do jornal Notícias de Maputo, de 1981 a 1985.
A passagem de quase dez anos pelo jornalismo é importante
na trajetória de Mia Couto, na medida em o envolvimento político e
de compromisso com o país e com o partido, a partir da palavra, é
explícito. Tratava-se do período de consolidação da independência
- e dos numerosos embates que a situação acarretou -, mas também
da construção da nação e de uma metanarração da vitória7 e da
construção do socialismo.
Apesar da desconfiança, no seio do próprio partido, quanto
a quadros que não fossem oriundos diretamente da guerrilha, os
7 (...) a Frelimo, após a independência de Moçambique e enquanto movimento vitorioso, construiu
uma metanarrativa do acto de vitória – a luta de libertação – metanarrativa essa que cumpriu
o importante e duplo papel de fortalecer a identidade nacional moçambicana e de legitimar o
seu poder no decorrer da década e meia de regime socialista que se seguiu à independência.
(BORGES COELHO, 2005)

302
IntelectuaIs das áfrIcas

militantes da cidade, os “intelectuais”, foram incorporados ao mo-


vimento de instalação de uma opção socialista em Moçambique,
de forma que uma reflexão intelectual e a prática acabaram por ser
quase simultâneas. Na arena das forças em jogo – a necessidade de
fortalecimento da identidade nacional, as tensões quanto à implan-
tação de uma nova ordem social e econômica e consolidação do
poder (apenas para citarmos algumas) - a imprensa reveste-se de
grande importância e, dentre as publicações avulta, sem dúvida, a
revista Tempo, da qual Mia Couto foi Diretor e que alguns historia-
dores consideram a “maior escola de jornalismo em Moçambique”,
já que por essa publicação passaram

[...] nomes que forjaram e influenciaram em grande parte a


forma de fazer jornalismo no país. Desses grandes obreiros
constam colossos como Rui Cartaxana, Ricardo Rangel,
Areosa Pena, Kok Nam, Albino Magaia, Calane da Silva,
Carlos Cardoso, Mia Couto, Mendes de Oliveira, Fernando
Manuel, Naíta Ussene, entre outros. 8

A única revista moçambicana que circulava em todo o país e


no exterior, Tempo chegou a ter uma tiragem excepcional para os
anos 1980, com cerca de 40 mil exemplares por semana. Embora
fazendo parte do esforço de constituição de uma nacionalidade
dirigida pelo partido que apelava à igualdade ao esbater das di-
ferenças regionais e culturais9, a revista não deixou de expressar
fissuras nos discursos hegemônicos do partido FRELIMO.
Nessa direção, a referência ao conteúdo veiculado em algumas
das seções fixas da Revista propicia iluminar aspectos que estavam
obscurecidos pela retórica oficial. Ainda que não se constituam em
uma resistência efetiva frente às diretrizes governamentais, vale
apontar as brechas que se abriam no discurso do Partido e que
8 Jornal A Verdade, 2010-on line. http://www.verdade.co.mz/verdade-online/35-
themadefundo/10671-revista-tempo-40-anos-depois-uma-parte-da-historia-que-se-perde. Acesso
em: fevereiro de 2016.
9 “Matar a tribo para construir a nação” (MACHEL, 1974, p. 39) – uma das frases de ordem em
voga no período revolucionário – refletia este projeto, que gerou um Moçambique cuja identidade
política está refém do reconhecer das suas múltiplas identidades.

303
IntelectuaIs das áfrIcas

reputamos importantes e, de certa maneira, propiciadas por uma


direção menos dogmática do periódico. Veja-se, por exemplo, a
Seção de Entrevistas, em que há uma espécie de cânone da memó-
ria, a partir de que os mais importantes nomes do Partido e da luta
armada têm ali voz. Nomes históricos da Frelimo são apresentados,
como Marcelino dos Santos, ou então as mulheres guerrilheiras,
como Filomena Lijkune. A partir dessas vozes é possível identificar
algumas das tensões e embates no interior de uma metanarrativa da
vitória sobre o colonialismo, na medida em que em algumas vezes a
“memória política” do partido tropeça na palavra dos entrevistados,
que apresentam versões pouco ortodoxas de alguns aspectos da
luta. Dentre as várias questões, cite-se a da emancipação feminina
e a incorporação das mulheres na guerra de libertação, na medida
em que os depoimentos exibem a diferença entre o que se cons-
tituiu como a versão oficial e as questões efetivas do terreno.10
Uma outra seção em que as questões do cotidiano muitas vezes
ganharam relevo se chocando contra o discurso do Partido é a
na Seção de Cartas, pois o país oficial cede lugar, nos textos que
falam do dia-a-dia encaminhados à Revista, às agruras do povo e
questionamentos bastante incômodos à classe dirigente. Haveria
ainda outros assuntos a citar, mas preferimos nos ater, mesmo que
brevemente, a um assunto delicado (sob a perspectiva do Partido)
que visitou as páginas da Revista Tempo – ao tempo da direção de
Mia Couto: a feitiçaria, já que as práticas tradicionais eram conside-
radas como obscurantismo. É interessante pensar como a questão
é tratada no periódico, na medida em que não poderia fazer parte
de um editorial ou artigo de fundo. Dessa forma, a abordagem se
dá a partir da Seção de Cartas, que propiciará um debate bastante
amplo sobre o assunto e que se encaminha de uma forma curiosa,
pois acaba por contrapor o curandeirismo à feitiçaria e, assim, deixa
à margem uma condenação in extremis das práticas tradicionais.

10 A respeito, veja-se a dissertação de Mestrado de Jacimara Souza Santana, intitulada Mulher e


notícias: Os discursos sobre as mulheres de Moçambique na Revista Tempo (1975-1985),especialmente o
capítulo 3, defendida no Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal da
Bahia, em 2006.

304
IntelectuaIs das áfrIcas

Como se pode aquilatar, a revista Tempo, no período sob a


direção de Mia Couto, mesmo sendo a porta-voz do Partido Fre-
limo, não se vinculou estreitamente à sua voz, propiciando que
assuntos delicados e importantes à sociedade moçambicana de
então obtivessem alguma discussão em suas páginas. O pequeno
intervalo que se constituía entre as orientações oficiais e os es-
paços de discussão, entretanto, seria muito reduzido. Impôs-se,
portanto, um interregno na prática jornalística e a dedicação a
novos centros de interesse.
Em entrevista a Anabela Mota Ribeiro, a nova fase em sua vida,
quando abandonou a militância é assim analisada:

Aconteceram coisas que me traumatizaram. Como amigos


meus serem presos. De repente, e sem entendermos por
que, nos tornámos vítimas do poder que defendíamos.
O que era traumático era a falta de lógica disso tudo.
Pretendia-se um socialismo parecido com o soviético, o
chinês, qualquer outro; mas Moçambique nunca foi capaz
de criar um sistema, fosse ele qual fosse.11

O afastamento das diretrizes partidárias, por razões diversas,


como a prisão de seu amigo Carlos Cardoso, por exemplo, leva o
escritor a abandonar a militância, abtrindo uma nova etapa em sua
vida, sem, contudo deixar à margem a escrita e Moçambique. O
seu primeiro livro de poesia, Raiz de orvalho, publicado em 1983,
permite uma leitura em que as opções de Mia Couto se explicitam.
E aqui não há como não recorrermos a Edward Said, quando
este aborda a relação do intelectual com o poder:

Ao sublinhar o papel do intelectual como um outsider, te-


nho tido em mente o quão impotente nos sentimos tantas
vezes diante de uma rede esmagadoramente poderosa de
autoridades sociais – os meios de comunicação, os gover-
nos, as corporações etc. – que afastam as possibilidades de
11 COUTO, Mia. Entrevista a Ana Mota Ribeiro. http://anabelamotaribeiro.pt/22008.html. Acesso
em: 22 de maio 2016.

305
IntelectuaIs das áfrIcas

realizar qualquer mudança. Não pertencer deliberadamente


a essa autoridade significa, em muitos sentidos, não ser
capaz de efetuar mudanças diretas e, infelizmente, ser às
vezes relegado ao papel de uma testemunha que confirma
um horror que, de outra maneira, não seria registrado.12

Ainda que não consideremos Mia Couto, a partir do seu


afastamento das funções jornalísticas e partidárias exatamente
como um outsider, ou apenas uma testemunha, já que sua figura
pública de escritor permitiu um papel socialmente reconhecido,
a sua capacidade de “efetuar mudanças diretas” ou de atuação foi
diminuída sobremaneira.

A LITERATURA TAMBÉM COMO UM EXERCÍCIO DE ESCOLHA

A opção literária, assim como a volta aos bancos escolares


para estudar Biologia na Universidade Eduardo Mondlane, não
significaram para Mia Couto a renúncia ao seu papel de intelectual
militante. Como bem assinala o geógrafo brasileiro Milton Santos,
“Quando os intelectuais renunciam a esse dever - sejam quais
forem as circunstâncias -um manto de trevas acaba por cobrir a
vida social, uma vez que o debate possível torna-se, por natureza,
falso”.13
Sua escolha foi encontrar uma nova tribuna, a do escritor, que
lhe permitiria articular o fazer artístico à crítica, como se pode
aquilatar a partir de seu primeiro livro publicado, Raiz de orvalho,
em 1993.
Vale referir que antes ainda dessa primeira publicação, os seus
poemas veiculados na Revista Tempo já indiciavam uma demarca-
ção da poesia de exaltação e do Partido, de “recusa de soluções
estéticas de efeito fácil, conduzindo a uma expressão de lirismo

12 SAID, Edward W. Representação do Intelectual: As Conferências Reiht de 1993. São Paulo: Com-
panhia das Letras, 2005.p. 16.
13 SANTOS, Milton. O intelectual anônimo. Expresso Vida: São Francisco do Sul. Junho 2001, ano
2, número 73, p. 2.

306
IntelectuaIs das áfrIcas

contido”, diferenciando-se, pois, da “tendência geral de sobrevalo-


rização da temática de exaltação”14. Ou seja, na contramão de uma
poesia de temática nacionalista que celebrava a pátria, denunciava
os males do colonialismo e exaltava a revolução, os poemas de
Mia Couto exibiam uma nova subjetividade15, uma inovação no
plano da expressão, em que o fingimento poético e a busca de um
rigor estético se faziam presentes. Sob esse particular, não causa
espécie que o autor integre a antologia A palavra é lume aceso, de
1980, que se contrapunha, de certa maneira, a outras antologias,
cujos títulos são bastante sugestivos: Poesia de combate (1, 2 e 3,
publicadas em datas diversas)16.
Se a independência e a construção de um jovem país, como
foi o caso de Moçambique, mobilizam todas as potencialidades
de seus intelectuais, não se pode deixar à margem que uma das
tarefas que se impõe ao escritor, mesmo em um ambiente de
grande efervescência como é o de constituição de uma literatura
como instituição nacional, é o trabalho artístico, de maneira que
a realidade seja transmutada pelo discurso. Em outras palavras,
tomar consciência “da relação arbitrária e deformante que o traba-
lho artístico estabelece com a realidade, mesmo quando pretende
observá-la e transpô-la rigorosamente, pois a mimese é sempre
uma forma de poiese17 .
Assim, o absurdo da guerra, as dificuldades do país e a crítica
ao momento somam-se, no primeiro livro de Mia Couto, à indaga-
ção de uma identidade que se constrói a partir do combate:
14 MENDONÇA, Fátima. Literatura moçambicana a história e as escritas. Maputo: Faculdade e Letras
e Núcleo Editorial da Universidade Eduardo Mondlane, 1988, p. 60.
15 Francisco Noa afirmará que essa nova subjetividade “assenta não exclusivamente na questionação
interior, na temática amorosa ou na relação do sujeito com o mundo, mas, muito particularmente
na exploração da ambiguidade, da ironia, […] da obliquidade referencial, do elemento subver-
sivo, da metáfora enquanto distanciamento do real, da metonímia que, pelo contrário, garante
a contiguidade com o mundo. Trata-se enfim de um lirismo emancipado e particularmente
enriquecedor por não traduzir o fechamento do sujeito sobre si próprio. (NOA, 2008, p. 43).
16 Da primeira antologia denominada Poesia de combate, de 1971, houve uma 2ªedição, intitu-
lada Poesia de combate 1 pelo Departamento de Trabalho Ideológico da FRELIMO (em 1979).
Mas já houvera Poesia de combate 2, em 1977. O terceiro volume, Poesia de Combate 3, foi
publicado em 1980.
17 CANDIDO, Antonio. Literatura e sociedade. 9 ed. Revista pelo autor. Rio de Janeiro: Ouro sobre
o Azul Editora, 2006, p. 21.

307
IntelectuaIs das áfrIcas

Identidade

Preciso ser um outro


para ser eu mesmo

Sou grão de rocha


Sou o vento que a desgasta

Sou pólen sem inseto

Sou areia sustentando


O sexo das árvores

Existo onde me desconheço


Aguardando pelo meu passado
Ansiando a esperança do futuro

No mundo que combato


Morro
No mundo por que luto
Nasço.18

Em um mundo à revelia em que a dissolução e a esterilidade


constituem o sujeito, o poema aponta que a luta (contra o insti-
tuído, mas também pelas crenças e escolhas) constitui uma das
únicas formas de construção do futuro.
Será, todavia posteriormente, na prosa, que o nome do es-
critor Mia Couto tornar-se-á conhecido internacionalmente. Em
seus romances e contos temos o intelectual africano engajado
em questões como a nacionalidade, a devastação da guerra e a
denúncia das condições do subalterno – sobretudo as mulheres, os
velhos e as crianças que se transformam em temas centrais em sua
ficção. Interessa destacar, entretanto, que a temática não submerge
a estética e, portanto, a forma como as estórias são narradas, com
apurada elaboração formal, estabelecem profunda vinculação ao
conteúdo ali expresso.
18 COUTO, Mia. Raiz de orvalho e outros poemas. Lisboa: Caminho, 2014, p. 13.

308
IntelectuaIs das áfrIcas

E o que se depreende da escrita de Mia Couto são “páginas


de terra” (para lembrarmos as palavras finais de seu primeiro ro-
mance, Terra sonâmbula): a escrita de e sobre Moçambique. Para
além do conteúdo, a linguagem dos textos, plena de poesia e
neologismos, aponta para o abalo dos códigos do leitor, pois ele
tem de decodificar palavras que lhe são desconhecidas, gerar novos
significados e, a partir desse deslocamento, o discurso adquire um
caráter desestabilizador, ao mesmo tempo em que aponta para
formas de efabulação africanas: a forte presença da oralidade, a
remissão às formas dos contos tradicionais, bem como a presença
do aparentemente insólito.
Se na forma breve do conto encontra-se a condensação que
melhor permite a poeticidade do relato e o final por vezes surpre-
endente, o autor moçambicano a utiliza de forma extremamente
competente, explorando o território do imaginário de seu país, a
construção de situações aparentemente insólitas e personagens
plenas de humanidade, mas marginais à sociedade de consumo
desenfreado. A respeito, afirma com propriedade Rita Chaves:

A ligação com a margem e os espaços de fronteira também


pautam a escrita de Mia Couto, todavia seu projeto parece
norteado por uma proposta que recusa-se a privilegiar
qualquer região ou setor. A sensação é de que essencial
é abraçar todo o país, participando dessa aventura de
transferir para o imaginário a invenção de Moçambique
que seus conterrâneos vão implementando. A urgência da
noção de totalidade talvez possa ser entendida como uma
estratégia para enfrentar a fragmentação vista como força
ameaçadora. O país é novo e traz na sua memória muito
acesas as marcas das tantas divisões que a experiência co-
lonial alimentou e a dureza dos conflitos que se sucederam
à independência fez fomentar.19

19 CHAVES, Rita, CAVACAS, Fernanda, MACEDO, Tania. (Org). Mia Couto: Um convite à
diferença. São Paulo: Humanitas, 2013, p. 141.

309
IntelectuaIs das áfrIcas

A heterogeneidade dos contos de Mia Couto realiza-se so-


bretudo na galeria de seus personagens e nos acontecimentos da
trama, constituindo um mundo em que o hinterland moçambicano
ganha a prevalência20. Não se trata, conforme bem aponta Cha-
ves, de dar preponderância ao norte ou ao centro do país, como
preferem alguns escritores, mas sim de construir uma cartografia
dos pesadelos e sonhos em que ganham destaque os devaneios,
os mitos e ritos, mas também a guerra e as assimetrias em função
do gênero e das posições sociais.
Ao convocar o universo multifacetado dos sofrimentos e
esperanças dos moçambicanos, Mia Couto mais uma vez faz uma
escolha: agora por uma literatura que passa ao largo do exótico e
do lúdico, para mergulhar suas raízes nas maneiras de ser e estar
dos seus compatriotas. Por essa razão, não é possível concordar
com uma parcela considerável da crítica literária – não raro euro-
péia - que esvazia o conteúdo político dos textos a fim de enfatizar
o insólito e o “indubitavelmente africano” dos mesmos em uma
operação simplificadora que retira do universo inquietante e hu-
mano de Couto as suas contradições.
Se grande parte dos contos apresenta situações inusitadas e
desfechos inesperados para uma lógica rigorosamente cartesiana,
uma das maneiras de pensar esses fenômenos seria recorrer a uma
grade de valores e crenças não européias em que as estórias de Mia
Couto mergulham, mas ao mesmo tempo inscrevê-los no quadro
de uma escrita que usa igualmente uma língua e referências euro-
péias. E, a um mundo em que os espíritos existem, pois a crença
nos mesmos é real para muitos moçambicanos, o leitor talvez deva
guardar uma posição ambígua, em que o seu próprio conjunto
20 O livro Pensageiro frequente (2010) congrega as crônicas escritas para a revista de bordo intitulada
Índico, das Linhas Aéreas Moçambicanas e, segundo Lola Geraldes Xavier, seria “uma forma de
viajar por Moçambique menos conhecido. (...) para além da Beira (cinco textos) e de Maputo
(três textos), Mia Couto faz um convite ao leitor para conhecer o Norte de Moçambique e as
suas baleias; a biodiversidade de Machangulo, perto de Maputo; a costa de Cabo Delgado, no
norte; o interior; Tete; Inhambane; a ilha de Bazaruto; o litoral moçambicano e a relação do país
com o Índico”. (XAVIER, 2010, p. 147-148). XAVIER, Lola Geraldes. Crónicas de Mia Couto:
o entregênero. Em torno do hibridismo genológico. In: Forma Breve. Aveiro: Departamento de
Línguas e Culturas da Universidade de Aveiro, 2010.

310
IntelectuaIs das áfrIcas

de crenças possa ser abalado, ao invés de apenas caracterizas as


estórias como fantásticas e exoticamente “africanas”.
Não raro a mesma situação é econtrada na crítica sobre os
romances do autor, na medida em que a representação do mundo
ali presente, graças ao próprio gênero narrativo, propicia um maior
número de situações metaforizadas. Lembre-se, a respeito, que o
romance, a forma mais flexível dos gêneros literários, com bem
assinala Georg Luckács, (...) “não assimila a realidade numa reali-
dade calcificada, mas antes, por ser capaz de imitar na sua própria
forma, o conteúdo esquivo do mundo, adapta-se à desarmonia
e a transcreve como elemento formal.”21 Ou seja, transmutando
situações, espaço e tempo em linguagem literária, nem por isso o
romance deixa à margem a “desarmonia” do mundo. Quando se
trata de Mia Couto, essa desarmonia encontra-se, por exemplo,
na tensão entre a tradição e os novos tempos, apresentada sob a
forma de um quase romance policial, em A varanda do frangipani
(1996) ou o absurdo da presença dos capacetes azuis da ONU em
territórios africanos, especialmente Moçambique (O último voo do
flamingo, 2000), ou ainda a intensa opressão feminina em A con-
fissão da leoa (2012). Isso apenas para citarmos alguns exemplos
de temáticas preponderantes em seus romances citados, dentre
outras que pulsam nesses textos.
Pode-se afirmar que a maneira poética de abordar a dolorosa
realidade moçambicana é um dos traços distintivos da escrita de Mia
Couto e estava presente já na primeira narrativa longa do autor, Terra
sonâmbula (1992). Ali, o horror da guerra entre a RENAMO (Resistên-
cia Nacional Moçambicana) e o governo da FRELIMO é o tema que
percorre todo o relato, sem que se ausentem, todavia, a crítica às
autoridades do governo, a difícil relação entre as crenças ancestrais
e a modernização dos costumes (como a prática de eliminar um dos
gêmeos logo ao nascimento) ou a metalinguística articulação entre
a escrita e a oralidade, tão cara aos escritores africanos.

21 LUCKÁCS, Georg. A teoria do romance. Um ensaio histórico-filosófico sobre a grande épica. São
Paulo: Duas Cidades; Editora 34, 2000, p. 223-224.

311
IntelectuaIs das áfrIcas

O que queremos realçar é que a trajetória artística de Mia


Couto não o afasta do papel do intelectual africano participante,
ou seja, daquele que especialmente reflete, discute e atua sobre
as questões que percorrem a vida de seu país, especialmente as
formas de inscrição do poder. Em outras palavras, para usarmos as
reflexões de Achille Mbembe, entende e não se furta a denunciar
as situações em que

o poder (que não é necessariamente o poder estatal), faz


referência contínua e invoca a exceção, a urgência e uma
noção “ficcionalizada” de inimigo. [Situações em que o
poder] trabalha também para produzir esta mesma exceção,
urgência e inimigos ficcionalizados.22

É pois contra os inimigos construídos e os estados de exceção


que propiciam a violência, que os textos de Mia Couto também
se erigem ao colocarem no centro da cena literária as tensões e
irresoluções do cotidiano, assim como ao elevarem a protagonistas
aqueles que são desprezados e colocados à margem pelos poderes
constituídos.
Para usarmos as palavras do próprio autor proferidas na cidade
do Cabo, em 2002, quando lhe foi atribuído o Prêmio Internacional
dos 12 Melhores romances de África por Terra sonâmbula,

(...) qual é a responsabilidade do escritor para com a demo-


cracia e com os direitos humanos? É toda. Porque o com-
promisso maior do escritor é com a verdade e a liberdade.
Para combater pela verdade o escritor usa uma inverdade:
a literatura. Mas é uma mentira que não mente.23

22 MBEMBE, Achille. Necropolítica, seguido de Sobre o governo privado indireto. Barcelona: Editorial
Melusina, 2006, p. 21.
23 COUTO, Mia. Pensatempos. 2 ed. Lisboa: Caminho, 2005, p. 59.

312
IntelectuaIs das áfrIcas

O JORNALISMO, NOVAMENTE

Se a literatura tornou-se a grande forma de expressão de Mia


Couto nos últimos vinte anos, o texto jornalístico, contudo, não
foi abandonado. Escrevendo para jornais de Portugal e de Mo-
çambique, além de ter textos publicados em periódicos de outros
países, o escritor manteve uma colaboração contínua com órgãos
de imprensa e, em 2003 surpreende seu público com o volume O
país do queixa andar (2003) ao reunir em livro 53 das crônicas pu-
blicadas durante os anos 1980 e 1990 nas colunas “Queixatório”
e “Imaginadâncias” do jornal Domingo, de Moçambique; dois anos
depois, quando se comemoravam os trinta anos da independência
de seu país, publicou pela editora Njira, de Maputo, o livro Pensa-
tempos: textos de opinião, que seria complementado, em 2009, por
E se Obama fosse africano? e outras interinvenções, publicado pela
mesmo editora. As três coletâneas reproduzem textos veiculados
inicialmente em jornais, mas também recolhem comunicações
realizadas por Mia Couto em eventos culturais e científicos de
que participou.
O caráter dos textos, em sua maioria crônicas que constituem
comentários sobre acontecimentos da atualidade, propicia que seu
leitor se aproxime do cotidiano narrado a partir de uma aparente
distensão do assunto e de sua linguagem, mas, como aponta o
crítico Antonio Candido, esse tipo de narrativa curta

Na sua despretensão, humaniza; e esta humanização lhe


permite, como compensação sorrateira, recuperar com a
outra mão uma certa profundidade de significado e um cer-
to acabamento de forma, que de repente podem fazer dela
uma inesperada embora discreta candidata à perfeição.24

Artefato literário que pode beirar a perfeição, a crônica pos-


suiria, pois, a possibilidade de humanizar o seu leitor, quando ao
24 CANDIDO, Antonio et alii. A crônica: O gênero, sua fixação e suas transformações no Brasil.
Campinas: UNICAMP; Rio de Janeiro: Fundação Casa de Rui Barbosa, 1992, p. 13.

313
IntelectuaIs das áfrIcas

comentar o fato cotidiano, o levaria a refletir sobre os aconteci-


mentos e sobre a própria linguagem, como se pode aquilatar em O
país do queixa-andar, em que os textos trazem o sinete da elaborada
prosa do autor, e iniciando com a fórmula “era uma vez”, instauram
uma atmosfera de relato exemplar, como em “A porta”:

Era uma vez uma porta que, em Moçambique, abria para


Moçambique.
Junto da porta havia um porteiro. Chegou um indiano
moçambicano e pediu para passar. O porteiro escutou
vozes dizendo:
– Não abras! Essa gente tem mania que passa à frente!
E a porta não foi aberta.25

Outras personagens de Moçambique se acercam do porteiro,


mas, assim como o homem moçambicano de origem indiana, um
branco, um negro do sul do país e um mestiço têm negada a sua
entrada. Por fim, se acerca um “(...) estrangeiro, mandando em
inglês, com a carteira cheia de dinheiro” e que não solicita sua
entrada; antes, compra-a: “

Comprou a porta, comprou o porteiro e meteu a chave


no bolso.
Depois, nunca mais nenhum moçambicano passou por
aquela porta que, em tempos, se abria de Moçambique
para Moçambique. 26

A exemplaridade do relato chega facilmente ao leitor: enquanto


a questão das etnias, das cores e origens dos moçambicanos foram
fatores de divisão sobre a nacionalidade, o país estará exposto à
voracidade estrangeira. Assim como em “A porta”, no livro de 2003,
a presença inquietante da ameaça vinda do exterior é uma das linhas
de força dos textos, como se pode aquilatar também em “O homem
que desconseguiu roubar”, cujo primeiro parágrafo nos informa:

25 COUTO, Mia. O país do queixa-andar. Maputo: Ndjira, 2003, p. 36.


26 Idem p. 37.

314
IntelectuaIs das áfrIcas

Era uma vez um homem que queria roubar o seu país. O


seu plano, era o seguinte: começaria pela província mais
pequena e ia avançando para as maiores. Quando dessem
conta, o país já não existia. Já ele o tinha vendido no mer-
cado internacional, onde se vendem países ao desbarato.27

O homem falha em seu intento e entende, ao final, que os


políticos nacionais, os quais pretensamente obtêm sucesso no mes-
mo objetivo que ele, na verdade são ultrapassados pelos “grandes
senhores”, que conseguem fazer do país um vazio. Assim, a cena
que vê na televisão, ao término da crônica, é exemplar:

Até que, de repente, aconteceu um facto extraordinário - o


chão do estúdio televisivo ruiu. Entrevistados e entrevista-
dores sumiram repentinamente num abismo. Para o nosso
telespectador só havia uma explicação: os grandes senhores
tinham tirando tanto país que, por baixo deles, já só havia
um enorme buraco.... 28

As reflexões que levam às crônicas de O país do queixa-andar


refletem um momento da história dos intelectuais africanos em
que se questiona uma visão de vitimização do continente. O autor,
como se pode depreender dos textos citados, não se deixa tragar
pela miragem da culpabilização do Outro pelos males africanos, na
medida em que em suas crônicas a ação de destruição é perpetrada
pelos próprios africanos que transformam em mercadoria a sua
identidade (as vozes que impedem os moçambicanos de ultrapassa-
rem a porta que lhes franqueariam o seu pertencimento, e acabam
por entregarem-na ao estrangeiro em “A porta”, ou o africano que
desejava roubar o seu país e vendê-lo no mercado internacional
em “O homem que desconseguiu roubar”).
Nesse sentido, o autor escapa de uma armadilha ideológica
que concebe o africano apenas como a vítima passiva de uma
conspiração internacional, conforme assinala Mbembe:
27 Idem, p.40.
28 Idem, p. 41.

315
IntelectuaIs das áfrIcas

A diversidade e a desordem do mundo, assim como o


caráter, em aberto, das possibilidades históricas, foram
reduzidos a um ciclo espasmódico e imutável, que infini-
tamente se repete de acordo com uma conspiração sempre
fomentada por forças que estão acima do alcance dos afri-
canos. A própria existência é expressa, quase sempre, como
vacilante. Em última análise, considerava-se o africano
como apenas um sujeito castrado, o passivo instrumento
de gozo do outro. 29

Será, entretanto, nos livros de intervenção publicados poste-


riormente, que o pensamento crítico de Mia Couto e sua concep-
ção quanto ao papel do intelectual tornar-se-ão mais precisos. A
respeito, veja-se a “Nota introdutória – O guardador de rios”, de E
se Obama fosse africano? E outras interinvenções: “Tal como o anterior
Pensatempos, este não é um livro de ficção. Os textos que aqui se
reúnem cumprem a missão de intervenção social que a mim mesmo
me incumbo como cidadão e como escritor.” 30
A perspectiva de um intelectual compromissado com o seu
país e seu continente, expressa-se aqui com clareza e norteia os
textos congregados no volume.
Tratando de variados assuntos, E se Obama fosse africano cons-
titui um conjunto de 16 textos que discute assuntos diversos,
mas guarda uma mesma direção: analisar e discutir os problemas
moçambicanos e africanos sem complacência por nenhum dos
estamentos da sociedade do país. Exemplar, sob esse aspecto,
é “Os sete sapatos sujos” uma oração de sapiência (Aula Magna
Inaugural) pronunciada no ISCTEM (Instituto Superior de Ciências
e Tecnologia de Moçambique), em Maputo, no início do ano letivo
de 2005. Nesse texto, amplamente reproduzido na rede mundial
de computadores antes de integrar o livro, Couto propõe-se a fa-
lar do futuro de Moçambique fazendo uma espécie de balanço de
atitudes negativas e como a sua erradicação propiciaria a entrada
29 MBEMBE, Achille. As formas africanas de auto-inscrição. Revista de Estudos Afro-asiáticos. Salvador:
Centro de estudos afro-asiáticos da Universidade Federal da Bahia, 2001, Ano 23, nº 1, p.193.
30 COUTO, Mia. E se Obama fosse africano? E outras interinvenções. Lisboa: Caminho, 2009, p. 10.

316
IntelectuaIs das áfrIcas

definitiva do seu país na modernidade. Para essa discussão, escolhe


uma metáfora para abordar o assunto a que se propõe: “À porta da
modernidade precisamos de nos descalçar. Eu contei sete sapatos
sujos que necessitamos deixar na soleira da porta dos tempos no-
vos.” Ou seja, o autor propõe refletir sobre impasses da sociedade
moçambicana a fim de possibilitar uma transformação da mesma.
O primeiro “sapato” escolhido, ou seja, uma perspectiva inicial
que orientaria a ação, é exatamente a questão da vitimização. Diz
o autor a respeito:

O primeiro sapato: a ideia que os culpados são sempre os


outros e nós somos sempre vítimas. Nós já conhecemos
esse discurso. A culpa já foi da guerra, do colonialismo,
do capitalismo, do apartheid, enfim , de tudo e de todos.
Menos nossa. É verdade que os outros tiveram a sua dose de
culpa no nosso sofrimento. Mas parte da responsabilidade
sempre morou dentro de casa.31

Os demais “sapatos” arrolados pelo autor são: a falta de uma


ética do trabalho (“A ideia de que o sucesso não nasce do trabalho”);
a confusão entre crítica e falta de lealdade (“O preconceito de quem
critica é um inimigo”); o amor ao espetáculo (“A ideia que mudar
as palavras muda a realidade”); a ostentação (“A vergonha de ser
pobre e o culto das aparências”); a injustiça social, especialmente
contra os menos favorecidos – mulheres, doentes e crianças (“A
passividade perante a injustiça”).
Os temas são tratados como sintomas da situação de seu país,
sendo que alguns deles já haviam sido objeto de outros textos,
como a questão do trabalho. Sem citar que essa é uma herança
do colonialismo, em que os valores do trabalho em geral eram
desprezados em função da mão-de-obra barata do colonizado,
Mia Couto em “Os sete sapatos sujos” afirma: “Nunca ou quase
nunca se vê o êxito como resultado do esforço, do trabalho como
um investimento a longo prazo.” Como consequência, “a ideia de
31 COUTO, Mia. E se Obama fosse africano? E outras interinvenções. Lisboa: Caminho, 2009, p. 14.

317
IntelectuaIs das áfrIcas

que África pode produzir arte, ciência e pensamento é estranha


mesmo para muitos africanos”.
Ao falar do trabalho como uma ética, Mia Couto tangencia uma
outra preocupação de grande parte dos intelectuais africanos, de
Hountondji a Mbembe, passando por M’Bokolo e Mudimbe, que é
a produção do conhecimento dos africanos: de uma ciência oriunda
do continente, e não de um saber sobre o continente, produzido
na Europa.
A respeito, a posição de Hountondji é bastante precisa, situ-
ando o fenômeno em sua historicidade, ao afirmar:

A globalização não afeta somente a economia, ela afeta


também os domínios do saber. Ao contrário da crença po-
pular, a globalização não é recente, mas remonta, no que
concerne à África Negra, à época de sua integração brutal
ao mercado internacional por intermédio do tráfico negrei-
ro, isto é, ao século XVII pelo menos. E, contrariamente a
outras idéias feitas, ela não resultou, no Terceiro Mundo,
na “modernização” das economias e outras atividades co-
nexas, mas, sobretudo, teve por efeito anexá-las àquelas
do Ocidente, torná-las satélites, periféricas. As estruturas
de pesquisa abertas aqui e distantes das metrópoles, e es-
pecialmente na África, não envolvem qualquer autonomia
real, nenhuma apropriação, nenhum domínio real, mas
permanecem postos periféricos ao serviço de acumulação
do centro do sistema32.

32 Tradução nossa de: La mondialisation n’affecte donc pas seulement l’économie, ele affecte
aussi le domaine du savoir. Or, contrairement à une idée reçue, cette mondialisation ne date
pas d’hier mais remonte, pour ce qui concerne l’Afrique noire, à l’époque de son intégration
brutale au marché mondial à travers la traite négrière, c’est-à-dire au XVIIe siècle au moins. Et
contrairement à une autre idée reçue, elle n’a pas seulement eu pour effet, dans le Tiers-Monde,
de «moderniser» les économies et autres activités connexes, elle a surtout eu pour effet de les
annexer à celles de l’Occident, donc de les satelliser, de les rendre périphériques. Les structures
de recherche ouvertes ici et là hors des métropoles, et singulièrement en Afrique, n’entraînent
aucune réelle autonomisation, aucune appropriation, aucun apprivoisement effectif de l’activité
scientifique, mais restent des postes périphériques au service de l’accumulation du savoir au centre
du système

318
IntelectuaIs das áfrIcas

O filósofo marfinense alia a economia às várias esferas do


conhecimento e situa a questão da produção científica e filosófica
à História, indicando que o colonialismo e a dominação são moto-
res importantes para a fraca produção econômica e intelectual do
continente africano e dos países periféricos em geral.
Parece-nos que, ao tangenciar o assunto, Mia Couto tem um
endereço certo para a sua crítica: colocar a nu a forma de agir e
pensar da elite – e da classe política – moçambicanas sem, no
entanto, afastar-se sobremaneira do pensamento de Houtdhouji,
quando afirma: “Vale a pena debatermos, sim, se não podemos
reforçar uma visão mais produtiva e que aponte para uma atitude
mais ativa e interventiva sobre o curso da História.” 33
As críticas ao poder político e econômico de Moçambique são,
aliás, recorrentes em seus textos, e está presente na crônica que ana-
lisamos, no “Quinto sapato: A vergonha de ser pobre e o culto das
aparências, em que há a seguinte afirmação: “Criou-se a ideia de que
o estatuto do cidadão nasce dos sinais que o diferenciam dos mais
pobres”34. Mas apresenta-se também em Pensatempos no texto “Receita
para um jet-set nacional” (O essencial é parecer rico. Entre parecer
e ser vai menos que um passo, a diferença entre um tropeço e uma
trapaça.” – p. 27), em “Pobres dos nossos ricos” (“Os nossos novos-
ricos (que nem sabem explicar a proveniência dos seus dinheiros) já
se tomam a si mesmos como suplentes, ansiosos pelo seu turno de
pilhagem do país.” – p. 25) e no tocante “Não bastam palavras”, men-
sagem proferida na cerimônia fúnebre de Carlos Cardoso, jornalista
e amigo de Mia Couto assassinado a 22 de abril de 2000.
A denúncia mais direta da classe política, contudo, estará
presente no texto “E se Obama fosse africano”, publicado original-
mente em novembro de 2008 no jornal moçambicano Savana, e que
“viralizou”, isto é, espalhou-se rapidamente pela rede mundial de
computadores, possibilitando a leitura por uma grande quantidade
de pessoas de todo o mundo.
33 COUTO, Mia. E se Obama fosse africano? E outras interinvenções. Lisboa: Caminho, 2009 p. 36.
34 Idem, p. 41-42.

319
IntelectuaIs das áfrIcas

A partir das questões apresentadas pelo escritor camaronês


Patrice Nganang, Mia Couto denunciará os males da governança
não apenas de Moçambique, mas de todo o continente africano.
A começar, afirma que se Obama fosse africano e candidato a
uma presidência africana, provavelmente não tomaria posse, pois
o seu antecessor se eternizaria no poder, ou então, sendo um
candidato de oposição, seria preso e agredido fisicamente. Pros-
segue lembrando que o fato de o presidente norte-americano ser
descendente de um estrangeiro nos Estados Unidos, o levaria, se
estivesse na África, a ser barrado por leis restritivas “que fecham
as portas da presidência a filhos de estrangeiros e a descendentes
de imigrantes.” 35
A reflexão sobre os óbices que o primeiro presidente negro
da história dos Estados Unidos da América enfrentaria se apresen-
tasse sua candidatura em um país africano deflagra a denúncia do
autoritarismo e da truculência das elites do continente, o que o
autor deixa explícito ao final do texto: “Fique igualmente claro:
todos estes entraves a um Obama africano não seriam impostos
pelo povo, mas pelos donos do poder, por elites que fazem da
governação fonte de enriquecimento sem escrúpulos”. 36
O texto, contudo, vai além, já que, de certa maneira, projeta
questões que iriam mergulhar oito anos depois Moçambique em
um estado à beira de uma nova guerra civil:

Se ganhasse as eleições, Obama teria provavelmente que


sentar-se à mesa de negociações e partilhar o poder com o
derrotado, num processo negocial degradante que mostra
que, em certos países africanos, o perdedor pode negociar
aquilo que parece sagrado – a vontade do povo expressa
nos votos. 37

Como se sabe, essa foi uma das componentes das dificuldades

35 Idem, p. 212.
36 Idem, p. 213.
37 Idem, 2009, p. 213.

320
IntelectuaIs das áfrIcas

que o governo de Felipe Nyusi, da FRELIMO, iria enfrentar após


as eleições presidências de 2014, já que o candidato derrotado,
Afonso Dhlakama fez questão de partilhar o poder e reiniciou um
movimento militar a fim de começar a governar à força as províncias
onde obteve a maioria nas eleições gerais.

UMA HISTÓRIA SEM FIM

A partir do percurso de Mia Couto que traçamos a largas


pinceladas, procuramos identificar caminhos que pode trilhar o
intelectual africano hoje, na medida em que as escolhas por ele
realizadas são sempre escolhas socialmente marcadas.
Sob o colonialismo e sua opressão a grande maioria dos
intelectuais africanos toma partido e desenha no horizonte de
expectativas a Independência de seu país e, para tal, mobiliza os
seus saberes e atua decisivamente nos movimentos de libertação,
como forma de derrotar o colonialismo e o atraso. Nesse movi-
mento, ganham relevo as ideias nacionalistas e as ideologias da
alteridade africana, desenhando-se um cenário utópico em que
se coloca como possível ultrapassar as assimetrias entre ricos e
pobres, elites e povo, governantes e governados.
A autonomia política, quer de Moçambique, quer da maioria
dos países africanos, não trouxe a esperada libertação econômica e
social. Ao contrário, o rol de novos problemas que mais tarde irão
se agravar, incluiu o alastramento de ditaduras civis ou militares
seguidas de estagnação econômica. No caso das independências
concedidas pelas potências colonizadoras, o quadro é também
avassalador, conforme aponta Boubacar Boris Diop em artigo pu-
blicado on-line:

Vistas com clareza, as independências outorgadas pelas


antigas potências coloniais foram quase sempre indepen-
dentes da vontade dos povos africanos. Depois de terem
assassinado Lumumba e de terem instalado solidamente

321
IntelectuaIs das áfrIcas

Mobutu no poder, é possível que a Bélgica e a América se


declarem inocentes das décadas de desastre que resultaram
da sua acção no Congo? O mesmo se pode dizer de França
que, nas palavras de Edgar Faure, só deixou a África “para
aí permanecer melhor”. 38

Diante do quadro devastador não foram poucos os intelectuais


que submergiram ao afropessimismo ou escolheram o caminho da
diáspora, seja ela literal, isto é, optar pela alocação fora de seu país,
ou posicionaram-se como outsider, de acordo com Said, conforme
já aludido. Mia Couto preferiu a segunda opção e, permanecendo
em Moçambique, preferiu afastar-se do poder e, na senda do que
afirma Adorno citado pelo autor de Representações do intelectual,
habitar na escrita, sabendo que “faria parte da moralidade não se
sentir em casa em sua própria casa” 39
A literatura torna-se, pois, a casa de Mia Couto o que não o
impede de ver o texto literário como uma tensão entre a “verda-
de” e a ficção que deve estar a serviço dos direitos humanos e da
democracia. Sob esse particular, aproximar-se-ia da posição do
escritor nigeriano Wole Soyinka em seu discurso como membro
do júri do prêmio Casa de Las Américas, em Cuba, no ano de 2001,
quando afirma existirem “somente duas amplas categorias de
cultura: a que lisonjeia e sustem o poder, e a cultura herege, que
o critica e desafia”. 40
A respeito, Eliane Reis acrescenta:

Soyinka chama a atenção para o papel que, em sua opinião,


artistas e intelectuais são chamados a cumprir na socie-
dade contemporânea: atuar como forças de resistência
a qualquer tentativa de se limitar a liberdade e a justiça

38 DIOP, Boubacard Boris. Por os nossos imaginários a dialogar... Site Buala, 2011. http://www.
buala.org/pt/mukanda/por-os-nossos-imaginarios-a-dialogar. Acesso em: 10 de fevereiro de 2016.
39 SAID, Edward W. Representação do Intelectual: As Conferências Reiht de 1993. São Paulo: Com-
panhia das Letras, 2005, p. 42.
40 Nossa tradução para: De modo que encontramos que, al fin y al cabo, hay sólo dos amplias ca-
tegorías de cultura: la cultura que lisonjea y sostiene el poder y la cultura “hereje” que lo critica
y desafía. SOYINKA, 2003.

322
IntelectuaIs das áfrIcas

não apenas em seus respectivos países, mas em qualquer


lugar em que governos procurem promover algum tipo de
arbitrariedade ou censura. 41

Segundo entendemos, essa é a senda percorrida por Mia Couto


como escritor e intelectual africano ao longo de sua trajetória, na
medida em que, grande leitor da realidade, escreve-a cotidiana-
mente, escolhendo o lado em que se posiciona.
A respeito, vale lembrar as suas palavras proferidas no 16º Con-
gresso de Leitura do Brasil (COLE), realizado em Campinas, em 2007:

A palavra “ler” vem do latim legere e queria dizer “esco-


lher”. Era isso que faziam os antigos romanos quando, por
exemplo, selecionavam entre os grãos de cereais. A raiz
etimológica está bem patente no nosso “eleger”. Ora, o
drama é que hoje estamos deixando de escolher. Estamos
deixando de ler no sentido da raiz da palavra. Cada vez
mais somos escolhidos, cada vez mais somos objeto de
apelos que nos convertem em números, em estatísticas
de mercado. 42

Separando o trigo do joio, isto é, “lendo” a realidade de seu


país e do continente africano e elegendo uma agenda em que a
autonomia real, econômica e política desses espaços são o objetivo
principal, a trajetória de Mia Couto, que apresentamos brevemen-
te, permite que possamos refletir sobre os modos de intervenção
dos intelectuais africanos em nossos dias. Em um momento em
que os conflitos regionais recrudescem, como no Sudão do Sul
e em Moçambique, em que a intervenção econômica externa é
marcante, mas em contrapartida comunidades econômicas regio-
nais se fortalecem, é necessário que a discussão e novos pontos
de referência se estabeleçam e, sob esse aspecto, as escolhas do
intelectual sejam presentes.

41 REIS, Eliana Lourenço de Lima. Os escritores africanos e o Prêmio Nobel. Revista Gragoatá.
Niterói: Universidade Federal Fluminense, número 19, 2005, p. 19.
42 COUTO, 2009, p. 103.

323
IntelectuaIs das áfrIcas

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IntelectuaIs das áfrIcas

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325
IntelectuaIs das áfrIcas

CHIMAMANDA NGOZI ADICHIE:


CONTORNOS FEMINISTAS E DE SOLIDARIEDADE EM
UMA AUTORA CONTEMPORÂNEA

Izabel de Fatima Brandão1

PRIMEIRO OLHAR SOBRE ADICHIE: A INTELECTUAL FEMINISTA


FALA DE SI

“[...] decidi me definir como ‘feminista feliz’”.


Chimamanda Ngozi Adichie2

O vasto continente africano fala muitas línguas, entre elas a


inglesa, imposta durante o processo de colonização. As histórias
contadas no interior de cada país do continente aprenderam tam-
bém a usar, como Caliban, a língua do colonizador, para, conforme
a personagem de Shakespeare, resistir. Assim é que o estudo das
chamadas literaturas de língua inglesa teve o seu foco deslocado
dos países hegemônicos para aqueles cujas histórias carregam
marcas culturais que significam muito para a humanidade como
um todo. Da mesma forma, deslocar o foco de estudo das “grandes
narrativas” para outras, ainda pouco visíveis no contexto social e
da cultura, como a literatura de autoria feminina, significa poder
ouvir outras vozes contar histórias diferentes, ainda que possam
tratar de assuntos e temas conhecidos.3 É nesse sentido que esco-
1 Doutorado em English Literature (Ph.D.) pela University of Sheffield, Inglaterra (1991). Professora
titular da Universidade Federal de Alagoas.
2 ADICHIE, Chimamanda Ngozie. Sejamos todos feministas. Tradução de Christina Baum. São
Paulo: Swartz, 2014, p. 13.
3 O feminismo como crítica da cultura tem tratado da descentralização das chamadas grandes nar-
rativas no sentido da inclusão das literaturas não hegemônica. Cf. Claudia de Lima Costa (1996).

327
IntelectuaIs das áfrIcas

lhi como foco a escritora nigeriana radicada nos Estados Unidos,


Chimamanda Ngozi Adichie.
Meu interesse por autoras de origem africana não é novo,
pois já tive a oportunidade de pesquisar outras, como é o caso
da sul-africana Bessie Head.4 A literatura de Adichie atraiu meu
olhar, primeiramente, por ela ter se tornado um fenômeno literário
que explodiu nesses últimos anos. A escritora foi agraciada com
muitos prêmios importantes do contexto literário internacional
e indicada como uma das vinte melhores autoras com menos
de quarenta anos.5 Sua obra já foi traduzida para mais de trinta
línguas, incluindo a portuguesa. No Brasil, seus romances Purple
Hibiscus e Americanah, além de seu mais conhecido discurso, “We
Should All Be Feminists”, foram traduzidos. Suas obras, por ordem
de publicação, são: Purple Hibiscus, 2003; Half of a Yellow Sun, 2006;
The Thing around Your Neck, 2009; Americanah, 2013, e We Should All
Be Feminists, 2014. Duas outras obras podem ser, ainda, listadas:
uma peça de teatro, de 1998, For the Love of Biafra, e Dear Ijeawele,
or A Feminist Manifesto in Fifteen Suggestions, 2017.6
O fenômeno Adichie explica-se tanto pela qualidade e força de
sua voz que tem lhe concedido tantos prêmios por seus impactantes
Cf. também Terry Eagleton (2003) que fala sobre a morte das grandes narrativas como um foco
do pós-modernismo que defende e celebra o pluralismo, a descontinuidade e a heterogeneidade.
4 Cf “Dimensões políticas e afetivas em Maru, da escritora sul-africana Bessie Head” (BRANDÃO,
2009). Bessie Head nasceu em 1937, em Pietermaritzburg, na África do Sul. Sua mãe era branca e
rica; seu pai oriundo dos Zulus, trabalhava como cavalariço da família. Com o desaparecimento
do pai, a mãe foi internada num hospício, onde cometeu suicídio. Bessie Head foi dada em
adoção. Com a herança materna pode estudar, tendo se tornado professora e jornalista. Casou-se
em 1962 com Harold Head, de quem teve um filho. Na década de 1960 exilou-se em Botswana,
onde viveu como refugiada até conquistar a cidadania daquele país, em 1979. Morreu em 17 de
abril de 1986. Cf. Charlotte Brunner (1993) para outros dados sobre a escritora. Cf. também
<www.thuto.org./bhead/html/owners/ownerhtm>, um dos sites sobre a escritora sul-africana.
Escreveu, entre outros, os romances When Rain Clouds Gather (1969), Maru (1971), A Question
of Power (1973), este último de natureza autobiográfica. Escreveu também contos, publicados na
antologia The Collector of Treasures (1977). Em 1981 publicou Serowe, Village of the Rain Wind. Seu
reconhecimento como escritora chegou tarde.
5 Entre os prêmios recebidos por Adichie estão: Orange Prize, por Half of a Yellow Sun, em 2007;
National Book Critic’s Award; Commonwealth Writer’s Prize /Wright Legacy Award. Recebeu
também bolsa da MacArthur Foundation Fellowship.
6 As traduções para o português foram: Hibisco roxo (2011); Meio sol amarelo (2008); Americanah (2014),
para a Companhia das Letras, e A coisa à volta de teu pescoço (2012), para a editora portuguesa
Don Quixote. Os dois últimos títulos, que podem ser traduzidos como “Por amor ao Biafra” e
“Querida Ijeawele, ou um manifesto feminista em quinze sugestões”, também não têm tradução
para o português.

328
IntelectuaIs das áfrIcas

livros, quanto por suas declarações feministas, de gênero, sobre


literatura, cujo alcance político tem sido enorme. Recentemente
recusou-se a receber um importante prêmio feminista em razão de
uma objeção feita a um pedido por quem a indicou: que dissesse da
influência de uma feminista de origem ocidental (cujo nome ela não
declinou7) em sua vida. Tudo isso a tem revelado como “o exemplo
perfeito da voz da escritora africana contemporânea”, conforme
afirma Natália Telega-Soares,8 em pesquisa recente sobre a escritora
nigeriana. É também considerada como parte da nova geração de
autores/as da chamada “diáspora nigeriana”,9 que corresponde à
“terceira geração de escritores nigerianos”,10 herdeiros de Chinua
Achebe e Wole Soyinka.
O pensamento assumidamente feminista de Adichie é con-
tundente: atrai, agrega, choca, mas, sobretudo, encanta pela sua
força, senso de humor e também pela forte identidade com suas
origens africanas, nigerianas, embora já esteja nos Estados Unidos
desde 1996. Aos 19 anos, estudou, na Universidade da Filadélfia, em
Drexel; depois, transferiu-se para a Universidade de Connecticut;
foi, posteriormente, para Baltimore estudar Creative Writing, na
Universidade de Johns Hopkins. Fez ainda mestrado em literatura
africana, na Universidade de Yale.
O que nos interessa da sua biografia são os dados da sua
formação. Nascida em Enugu, cresceu na cidade universitária de
Nsukka, sudeste da Nigéria. Seu pai, James Nwoye Adichie, é pro-
fessor universitário; a mãe, Grace Ifeoma, administradora. Com
uma família de classe média, teve acesso à uma formação cultural
ampla, que certamente lhe pôde oferecer um caminho aberto a
muitas coisas. Adichie tece, numa fala para um programa de tele-
visão “Ted Talks”, sobre “The danger of a single story” (O perigo
7 Cf. discurso proferido por Adichie na “2015 Weslesley College Commencement Speaker”: <https://
www.youtube.com/watch?v=RcehZ3CjedU>, acessado em 12/05/2016.
8 TELEGA-SOARES, Natália. ‘E ouviram-se as vozes de mulheres africanas...’ O feminismo africano
e a escrita de Chimamanda Ngozi Adichie. Diss. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas,
Universidade de Nova Lisboa, 2014, p. 3.
9 NUNES, Alyxandra Gomes Nunes. Chimamanda Ngozi Adichie: Trajetória intelectual e projeto
literário. Revista Africa, vol.3, n.5, 2016, p. 200.
10 Idem, p.201.

329
IntelectuaIs das áfrIcas

de uma única história11), comentários sobre sua própria história e


sobre o que pensa a respeito da construção de estereótipos, que
é possível observar na sua ficção, conforme será ilustrado mais
adiante. Um desses comentários é sobre suas primeiras aventuras
na escrita e de suas personagens:

[...] Todas as minhas personagens eram brancas de olhos


azuis. Brincavam na neve; comiam maçãs e falavam muito
sobre o tempo; em como era maravilhoso o sol ter apa-
recido. Isso, apesar do fato de eu morar na Nigéria; de
nunca ter saído da Nigéria. Não tínhamos neve; comíamos
mangas. E nunca falávamos sobre o tempo, porque não
era necessário [...].12

Considero que essa fala de Adichie aproxima sua experiência


oriunda da colonização, à de Grace Nichols, escritora e poeta ca-
ribenha com a qual também venho trabalhando há alguns anos.13
Nichols expressa esse mesmo raciocínio, em uma entrevista da
década de 1990 para o jornal inglês The Guardian. Conta a cari-
benha que uma de suas sobrinhas, ao ser solicitada pela escola a
escrever uma redação sobre sua família, descreveu a mãe como
alguém de cabelos loiros, saída de um conto de fada.14 Esse pro-
blema é recorrente não apenas na literatura das autoras negras ou
afrodescendentes. A identificação com heróis e heroínas brancas
faz parte de um processo de negação que ainda nos atordoa. No
caso de Adichie, ela fala que ao descobrir a literatura de seu país,
ou do seu continente – refere-se à literatura de Chinua Achebe e
Camara Laye – passou a compreender melhor o universo de onde

11 A entrevista tem uma transcrição em português de Érica Rodrigues e Belucio Hibara, no


site: https://www.ted.com/talks/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story/
transcript?language=pt-br> acessado em 10/04/2016 e disponível no Youtube.
12 Cf. <http://www.ted.com/talks/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story>. Embora
o texto da fala da autora tenha sido traduzido nesse site, fiz alterações que considerei necessárias.
Todas as traduções neste ensaio, exceto quando indicado, são de minha inteira responsabilidade.
13 Cf. Brandão (1998; 2006; 2008; 2009; 2010), entre outros. BRANDÃO, Izabel. Decolonizing
Ghosts: Gender, the Body and Violence in Whole of a Morning Sky, by Grace Nichols. In Anglistica
– an Interdisciplinary Journal. Nº: The Phantom in the Opera. Org. por DI FILLIPIS, Simonetta
e DEL VILLANO, Bianca. Università degli Studi di Napoli L’Orientale, v. 12, n. 1 2008.
14 Entrevista ao jornal The Guardian, 16/10/1991.

330
IntelectuaIs das áfrIcas

vinha e a escrever sobre coisas que “reconhecia”, algo que a salvou


de “ter apenas uma história”, do perigo da criação de estereóti-
pos, que pretendo retomar mais adiante. Nesse sentido, ela fala
sobre um tema de relevância para as mulheres negras, o cabelo
afro, crucial na firmação da sua identidade e que Adichie considera
como um tema de natureza política, conforme disse em entrevista
a Jon Snow, para o Channel 4 News inglês, em 10/4/2013.15 Essa
temática tem importância fundamental no romance Americanah, cuja
narrativa central, que intercala outras narrativas, acontece, majo-
ritariamente, no interior de um salão de beleza (Salão de Tranças
Africanas Mariama), nos Estados Unidos, onde a protagonista da
história, Ifemelu, enquanto tem seus cabelos trançados por Aisha
(outra africana, imigrante como ela), rememora – problematiza é
uma melhor palavra – seu passado entre esse país e a Nigéria, e
projeta seu futuro, de retorno à Africa, no contexto da diáspora.16
A escritora nigeriana aponta para outras nuances da sua
formação, cuja importância na construção de um perfil para nós
leitoras brasileiras vem à tona. Ela conta, por exemplo, que quan-
do se mudou para os Estados Unidos, sua colega de quarto, na
Universidade da Filadélfia, não conhecia nada sobre a África e o
sentimento dela em relação à jovem nigeriana foi de “pena con-
descendente”, porque tudo o que se sabe sobre a África é que lá
há muita gente pobre. Essa mesma história é contada de diversas
maneiras, o que acaba por se tornar uma forma de “verdade”, na
qual é conveniente acreditar. Esse tema é abordado em “The Thing
around Your Neck”, que dá título à sua coletânea de contos. Na visão
da escritora, esta parece ser uma raiz de onde se podem construir
estereótipos abusivos sobre determinado povo.
15 Cf. o artigo “Alisando nosso cabelo” de bell hooks. <<http://www.geledes.org.br/alisando-o-nosso-
cabelo-por-bell-hooks/#axzz3Dy7FWaYo>>. Acessao em: 22 de setembro de 2015. Este texto fala
sobre as questões raciais, de autoestima, entre outras, quando se trata do cabelo das mulheres
negras que se associa ao pensamento de Adichie sobre o contexto político dessa discussão.
16 O tema da consciência diaspórica foi tratado na dissertação de mestrado intitulada “Trançando
histórias, tecendo trajetórias: a consciência diaspórica em Americanah, de Chimamanda Adichie”,
de Eliza de Souza Silva de Araújo, defendida em 20/02/2017, na UFPB-JP, no Programa de Pós-
graduação em Letras, em relação ao romance Americanah e uma das problematizações feitas no
trabalho foi sobre o espaço do salão de beleza. Tive o prazer de integrar a sua banca de defesa.
Cf. referências completas ao final deste capítulo.

331
IntelectuaIs das áfrIcas

Nesse sentido, o pensamento de Adichie enquanto intelectual


e feminista não se separa da ficcionista que, de certo modo, produz
uma narrativa que pode ser posta no contexto de ativismo, con-
siderando que a ficção é o seu campo de ação principal, onde ela
escreve politicamente, fazendo uso do que se tornou conhecido
como “agência”, “a habilidade de agir ou realizar uma ação”.17 Eliza
de Souza S. Araújo considera que a voz da escritora “reverbera a
voz de muitos imigrantes africanos – de seu grupo”18:

As pautas progressistas de Adichie marcam um lado impor-


tante de sua personalidade, que influencia sua escrita: a
preocupação com a discussão de assuntos que a sociedade
costuma ignorar ou silenciar, especialmente dentro de
grandes temáticas como raça e gênero.19

O argumento de Adichie explicita que a identidade africana


não é única; que essa se constrói na medida de todo um continente
e não apenas de um único país. Nesse sentido, a escritora fala de
uma invenção colonial sobre a África, cujos estereótipos criados são
perigosos pelo tipo de consequências que pode gerar. Há, nesse
continente, muitas catástrofes, mas há também outras histórias.
Tal é o resultado de se contar uma única história, que “rouba as
pessoas de sua dignidade”.
Em entrevista concedida à BBC News, ao programa “Hard
Talk”, com Steven Sackur, em 5/6/2014, Adichie responde a diversas
provocações do jornalista em relação às questões feministas – assu-
midamente, lugar de sua fala –, mas seu argumento problematiza a
diversidade, mesmo dentro de seu próprio país. São diferenças que
precisam ser respeitadas, ainda que isso não signifique uma cisão na
identidade nigeriana. Uma das questões que comenta nesta entre-
17 Tradução de “the ability to act or perform an action” (ASHCROFT, GRIFFITHS; TIFFIN, 2000,
p.6). ASHCROFT, Bill; GRIFFITHS, Gareth; TIFFIN, Helen (Orgs.). Key Concepts in Post-Colonial
Studies. Routledge: London and New York, 2000.
18 ARAÚJO, Eliza de Souza S. “Trançando histórias, tecendo trajetórias: A consciência diaspórica em
Americanah, de Chimamanda Adichie”. 20/02/2017. 97p. Dissertação. UFPB-JP: Programa de
Pós-graduação em Letras, 2017, p. 11.
19 Idem, p.14.

332
IntelectuaIs das áfrIcas

vista, diz respeito, por exemplo, à mutilação genital das mulheres,


comum em certas etnias, mas não na sua, a ibo, especificamente.
Sendo tal procedimento parte da cultura, as mulheres nigerianas
seriam capazes de recusar esse procedimento?, pergunta-lhe o
jornalista. Em resposta, Adichie afirma que a cultura muda; sua
preservação não implica a exclusão das mulheres. Pelo contrário.
Essa consciência sobre a possibilidade de mudança cultural indica
o seu engajamento político.
A escrita de Adichie celebra, nas mulheres, “suas forças e
capacidades”,20 seguindo a recomendação da também nigeriana
feminista Chikwenye Ogunyemi, em 1985, às escritoras africanas.
A crítica literária, no entanto, tem sido míope em sua categori-
zação da escritora como “nigeriana, feminista, negra e até afro-
americana”. Tal classificação é redutora e não faz jus à definição
da própria Adichie sobre sua identidade: considera-se “cidadã
nigeriana, mas que tem status de residente permanente nos Estados
Unidos”. Diz mais: “Tornar-se negro na América é uma escolha [que
deve] considerar as complicações dessa identidade [...]; há também
uma escolha política a ser feita [...]. Escolhi me identificar com a
negritude na America”.21
Em relação às suas narrativas, Adichie define-se como uma
contadora de histórias, que ouve, absorve e reconta, à sua ma-
neira.22 Em entrevista ao programa “BBC Culture: Chimamanda
Ngozi Discusses Her Career”, que foi ao ar em 24/12/2013, ao ser
perguntada sobre os discursos políticos possíveis na ficção, mas
não na realidade, a escritora responde com muita segurança e
maturidade, sobre ser, acima de tudo, uma grande observadora,
20 TELEGA-SOARES, Natália. ‘E ouviram-se as vozes de mulheres africanas...’ O feminismo africano
e a escrita de Chimamanda Ngozi Adichie. Diss. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas,
Universidade de Nova Lisboa, 2014, p.3.
21 Cf. entrevista de Adichie disponível em: < http://hub.jhu.edu/2017/02/09/chimamanda-adichie-
fas-hopkins/>. Acesso em: 27/02/2017.
22 A brasileira Conceição Evaristo em seu Insubmissas lágrimas de mulheres (2011, p.10) diz algo seme-
lhante: “Gosto de ouvir [...] Ouço muito. Da voz outra, faço a minha, as histórias também[...].
Ao registrar estas histórias, continuo no premeditado ato de traçar uma escrevivência”. Esse traço
comum às duas escritoras mostra que o ato de escrever ficção traduz-se no “viver” pela via da pena
a história do outro como sua. O conceito de “escrevivência” defendido por Evaristo como parte
de sua pauta de escritora pode também ser aplicado à percepção de Adichie sobre sua escrita.

333
IntelectuaIs das áfrIcas

“[...]como sou escritora, sempre me senti a um passo atrás de tudo,


observando. Sempre observo[...]. Sou uma observadora atenta”.23
Essa qualidade de observação que parece tão natural para a escri-
tora, é, possivelmente, o que levou Chinua Achebe a dizer, nesta
reflexão bastante citada da autora: “[...]aqui está uma escritora que
nasceu com o dom dos contadores de histórias de antigamente”,
presente na contracapa de seu segundo romance, Half of a Yellow
Sun, na edição de 2007, publicado pela Harper Perennial.
Ser contadora de histórias, apenas, não basta. Adichie tam-
bém se coloca no lugar de pesquisadora para que o que vai contar
tenha um contexto histórico no qual o/a leitor/a possa acreditar.
O jornal The New York Times reconhece que, mesmo considerando
que a escritora use a história de Half of a Yellow Sun para alavancar
o presente, “ela é uma contadora de histórias e não uma [guerreira
da] cruzada”.24 Entretanto, nessa narrativa a autora usou mais do
que a sua veia de contadora de histórias. O romance que fala das
gêmeas Olanna e Kainene, filhas da elite ibo, trata dos três anos
da Guerra do Biafra, na década de 1960; dos massacres e violências
cometidos, envolvendo forças muçulmanas do norte, em conflito
com cristãos ibos do sul. Para a tessitura desse romance, sua pes-
quisa buscou testemunhos das informações sobre a guerra civil em
livros, confirmando o que “tinha em sua memória [para] compor
cada uma das personagens e os diferentes planos da narrativa”.25
Essa busca de pesquisar sobre a cultura e as tradições da Nigéria
fazem da escritora uma observadora atenta e que consegue ligar
“sua visão do feminismo africano e a lealdade para com os valores
e tradições africanas”.26
Essa referência também serve para os seus contos, nos quais
cabe não apenas o uso do inglês como língua oficial da Nigéria,
mas também o chamado “pidgin English” que incorpora o creole e
23 Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=NHE_CQOAE98>. Acesso em: 27/02/2017.
24 Cf. < http://www.nytimes.com/2006/10/01/books/review/Nixon.t.html>. Acesso em: 3/3/2017.
25 Nunes (2016, p.206).
26 TELEGA-SOARES, Natália. ‘E ouviram-se as vozes de mulheres africanas...’ O feminismo africano
e a escrita de Chimamanda Ngozi Adichie. Diss. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas,
Universidade de Nova Lisboa, 2014, p.73..

334
IntelectuaIs das áfrIcas

que é língua franca no país, o haussá e o ibo, essa última associada


à sua etnia do sul da Nigéria. A etnia haussá está relacionada ao
norte do país, parte que tem uma população muçulmana, vinculada
ao islamismo. Um dos contos escolhidos para ilustrar uma dessas
histórias narradas pela escritora trata de duas etnias, de vinculações
religiosas diferentes, uma cristã e outra muçulmana. A análise de
“A Private Experience” (“Uma experiência particular”) apontará a
percepção de Adichie em relação ao aprendizado positivo que pode
ser travado entre essas etnias, cujos conflitos não deveriam servir
de base para o afastamento entre as pessoas. “The Shivering” (“O
arrepio”) é outro conto que caminha nessa mesma linha, pois trata
de duas personagens imigrantes, Ukamaka e Chineku, morando
nos Estados Unidos. Ambas são também de religiões, sexo e etnias
diferentes, com experiências completamente diversas, mas que se
encontram numa situação adversa e que constroem uma amizade
cuja base caminha num fio de navalha. Adichie conduz essa nar-
rativa na mesma e chocante simplicidade da outra, desvelando,
aos poucos, a profundidade das diferenças entre as duas pessoas
e mostrando que a construção do afeto independe de qualquer
diferença, seja ela de que natureza for.
A questão religiosa é ainda tema de outros contos do livro,
como é o caso de “The Headstrong Historian” (“A historiadora
impetuosa”), que trata de choques e rupturas entre as tradições
seculares do país e as imposições da educação católica fomentada
pelos missionários estrangeiros, aos filhos de famílias nigerianas,
entre elas, a de Nwangba, protagonista do conto. Nesse confli-
to importa que a autora deixe em aberto questões que podem
provocar polêmicas, ou seja, aquelas “[...] que envolvem crenças
antigas, presságios, ou maldições, como se desejasse, por meio de
sua literatura, respeitar a cultura de seu povo, sem julgá-la primi-
tiva ou inferior”.27 A essa percepção, pode ainda ser acrescentado
que, nesse sentido, o pensamento de Adichie tem abertura para
a problematização de questões tão importantes para os povos
27 BRAGA, Cláudio, “Sobrevivendo em zonas de desconforto: as mulheres de Chimamanda Adichie
em The Thing around Your Neck”. Resenha. Revista de Letras 4.1, Braga, 2011, p.60.

335
IntelectuaIs das áfrIcas

africanos e também para o Ocidente. É mais uma evidência da sua


ficção como lugar de agência política.
Esse contexto que tão fortemente marca a carreira da escritora
faz dela uma ativista, conforme já apontado. Sua percepção diferen-
ciada da África, dos países que a compõem, e, mais especificamente,
da Nigéria, das suas diferentes histórias, leva Adichie a defender
como seu projeto literário “reescrever a história da Nigéria”.28 A
noção de história única perde-se com as múltiplas visões sobre
a realidade retraduzidas através das narrativas ficcionais tecidas
pela escritora.
Gradativamente, Adichie tem crescido também como objeto
de estudo na academia. Sua obra tem sido estudada mundo afora,
inclusive no Brasil, e a fortuna crítica sobre ela está sendo cons-
truída. A produção acadêmica brasileira é ainda esparsa, mas não
demorará a crescer, devido ao grande interesse que a escritora
tem despertado no âmbito dos estudos literários dos programas
de pós-graduação em literatura no país. Em 2013, na Universidade
Federal de São João Del Rey, por exemplo, a dissertação “Gênero
e nação na ficção de Chimamanda Ngozi Adichie”, de Roberta
Mara Resende, foi defendida. Em Caxias do Sul, em 2015, a pes-
quisadora Liane Schneider, da Universidade Federal da Paraíba, em
seu “Quatro olhos sobre Americanah: a partir de onde o texto de
Adichie fala e para quem?”, apresentado durante o VII Seminário
Internacional/ XVI Seminário Nacional Mulher e Literatura, na mesa
redonda “Mulheres e Literaturas no Contexto Pós-Colonial”, falou
sobre a tradução de Julia Romeu, para a Companhia das Letras,
do romance Americanah, da escritora nigeriana, especialmente to-
cando na estranha escolha tradutória de certas expressões como
“mulata”, “mestiço” e “crioula”, algo considerado pela pesquisa-
dora como tradução domesticadora, que é quando o/a tradutor/a
escolhe certas palavras para tornar o conteúdo mais palatável para
o público. Algumas dessas expressões têm conotações racistas. O

28 NUNES, Alyxandra Gomes Nunes. Chimamanda Ngozi Adichie: Trajetória intelectual e projeto
literário. Revista Africa, vol.3, n.5, 2016, p. 200.

336
IntelectuaIs das áfrIcas

interesse pela escritora nigeriana dentro da academia brasileira


indica, certamente, que ela veio para ficar.29

SEGUNDO OLHAR SOBRE ADICHIE: A CONTADORA DE HISTÓ-


RIAS FALA AO OUTRO EM SUA FICÇÃO

Olho para o mundo com olhos da Nigéria [...] Acredito


tanto em histórias e no poder que elas têm [...]. Como sou
escritora, sempre me senti a um passo atrás de tudo, ob-
servando tudo [...]. E de certa forma o mundo é este lugar
muito interessante e eu estou sempre, constantemente,
observando.30
Chimamanda Ngozi Adichie.

Na conferência de 2012, “To Instruct and Delight: a Case for


Realist Literature”, para a Commonwealth Foundation, Adichie fala
sobre o sentido de escrever, a partir da sul-africana Bessie Head,
a quem chama de autora feminista. Head, ao ser perguntada: “Por
que você escreve?, sua resposta foi: ‘Estou construindo uma escada
para as estrelas e tenho a autoridade de levar toda a humanidade
comigo. É por isso que escrevo.’”
Como observadora do mundo, a escritora nigeriana faz dele
o seu objeto de trabalho e é nessa direção que sua ficção funciona
como um campo de ação, conforme já apontado anteriormente,
onde escreve sobre aquilo que acredita. Considerando que o espaço
de um ensaio como este é demasiado curto para um aprofunda-
mento adequado em relação à obra ficcional da escritora como um
todo, pretendo tecer considerações sobre o único livro de contos de
Adichie, The Thing around Your Neck (2009), que aborda o universo de
mulheres africanas. Segundo a escritora afirma em entrevista para o
programa “The Right to Tell your Story”, do Louisianna Channel, em
29 O artigo referido foi publicado em 2016, na Revista da ANPOLL, com o mesmo título do trabalho
apresentado em 2015, em colaboração com Eliza de Souza Silva Araújo (v. 1, n. 41, Florianópolis,
julho/dezembro, 2016, p.159-171). Cf. outras referências sobre Adichie na academia ao final deste
capítulo.
30 Cf. a entrevista realizada com a escritora, em 24/12/2013, no programa “BBC Culture Writer
Chimamanda Ngozi Adichie discusses her career”. Disponível em: <<https://www.youtube.com/
watch?v=NHE_CQOAE98>> Acesso em: 27/02/2017.

337
IntelectuaIs das áfrIcas

3/9/2013, escreve sem buscar especificamente nenhuma temática.


Em outra entrevista para Jim Foster, no programa “Conversations on
the Coast”, quando do lançamento do livro em 2009, Adichie fala
que não escreve necessariamente sobre sua experiência. Escreve,
afirma, sobre a experiência de pessoas outras, as quais teve acesso
“Sou uma observadora atenta”.31
Os 12 contos desse livro, embora tenham um fio condutor, não
tratam necessariamente de um único tema. Para Claudio Braga, a
coletânea trata de uma multiplicidade de temas, ordenada em dois
grupos de histórias que se passam na Nigéria e nos Estados Unidos.
Mas aqui é preciso acrescentar que há uma narrativa que se passa
na África do Sul (“Jumping Monkey Hill”, ou algo como “O salto
sobre Monkey Hill”, em português) e reúne personagens de vários
países do continente africano, além de convidados estrangeiros
europeus e outros de origem africana que moram na Europa. Assim,
é mais adequado situar os contos em dois países do continente
africano e em um da América do Norte. Esse conto em particular
trata de uma questão que interessa de perto ao projeto literário
da escritora, que é a formação de novos/as autores/as na Nigéria,
através da organização de workshops com jovens autores.32 Nesse
conto, uma jovem escritora nigeriana, Ujunna, junta-se a vários
escritores e escritoras de países da África (África do Sul, Tanzânia,
Uganda, Zimbábue, Quênia, Senegal) e assistentes europeus (Ingla-
terra), em uma oficina de escritores em residência, voltada para a
premiação de melhor história produzida nesse lugar da Cidade do
Cabo. A história trabalha questões de raça/etnia, de gênero, mas
também lida com situações-limite que convidam à reflexão sobre
as experiências individuais nesse tipo de encontro, das propos-
tas subliminares para favores sexuais em troca de respostas no
31 Cf Entrevista com Jim Foster: “’On the Coast’: Chimamanda Ngozi Adichie, The Thing Around
Your Neck”. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=uQJNMtMQ_1g>. Acesso em:
27/02/2017.
32 Esse projeto, segundo Nunes (2016, p. 200), vem sendo declarado em entrevistas e palestras
concedidas por Adichie, e busca a realização de “um programa ambicioso por uma equipe de
jovens escritores da Nigéria e do Quênia ao organizar workshops extensos para futuros novos
escritores na Nigéria e com eles debater profundamente o pensamento do escritor na sociedade
contemporânea”.

338
IntelectuaIs das áfrIcas

concurso, além de mostrar o processo criativo da jovem escritora


nigeriana, com sua história contada dentro da outra. Isso ilustra
uma forma de ação política de Adichie, sem que essa ação caia no
contexto de “literatura engajada” comum, capaz de amarrar o texto
literário num contexto mais ideológico do que artístico. No caso
de Adichie, é, como já colocado, uma forma de agência política,
de interferência na realidade.
No tocante às mulheres ficcionais da escritora, na sua ficção
curta, Braga argumenta que:

Nkem, Chinaza, Chika e Nwambga são algumas entre as


várias mulheres de Adichie que capturam a atenção do leitor
em The Thing around Your Neck. Seja nos Estados Unidos
ou na Nigéria, Adichie as coloca sempre de frente com
outras mulheres, conferindo a cada uma as propriedades
de um espelho que permite ir além da autocontemplação,
pois cada mulher, ao se ver na outra, acaba se vendo
outra, descobrindo que não há apenas uma, mas várias
dentro de si. A transformação pessoal é enriquecida pelas
situações também em movimento, que as fazem negociar
transições entre uma zona de desconforto para outra não
menos desconfortável, circunstâncias que dão um caráter
extremamente realista às narrativas da coletânea.33

A necessidade de se ver no outro é um dos componentes mais


importantes das histórias narradas nesta coletânea de contos. E
mesmo considerando que as temáticas não são necessariamente
as mesmas, uma é recorrente: a opressão, localizada em várias
frentes: família, profissão, gênero, religião, raça/etnia e a política.
Os contos de Adichie têm uma força impactante para nós lei-
toras e não é, simplesmente, por seguirem a lógica de que contos
para serem “bons” têm que ser lidos de um fôlego só, conforme reza
a teoria.34 Isso ocorre também pela habilidade da autora nigeriana
em lidar, entre outras coisas, com o contexto da violência diluído
33 Braga (2011, p.61-62).
34 Cf. Pasco (1994) em artigo que discute a visão de Chekhov sobre o conto como gênero.

339
IntelectuaIs das áfrIcas

em narrativas comoventes, cujas histórias abordam objetivamente


o ambiente africano da Nigéria, mas esse lugar é universalizado,
quando imaginamos sociedades que passaram por governos au-
toritários e cujos cidadãos sofreram experiências ditatoriais. Em
“Cell One”, primeiro conto da coletânea, por exemplo, Adichie
nos ensina que a violência simbólica35 pode começar no contexto
doméstico, quando pais e mães negligenciam o olhar sobre os
filhos e, por vezes, mobilizados por uma suposta proteção afeti-
va, encobrem a educação de pequenos marginais em suas casas
e, naturalmente, a reverberação dessa comovente história vai se
dar na violência dos governos autoritários, como a ditadura do
General Abacha, presidente da Nigéria entre 1993 e 1998, e de
tantas outras conhecidas pelo/a leitor/a, inclusive a brasileira. O
teor de violência desse conto é de uma força esmagadora e real,
que podemos associar à literatura da mineira Conceição Evaristo;
da mesma forma, o contexto da solidariedade familiar, em outros
contos desta coletânea, é muito tocante.
Outro conto de forte impacto emocional nesse fascinante li-
vro chama-se “The American Embassy” e trata da experiência sem
par de uma mulher jovem, casada com um jornalista, cuja verve
política em meio à ditadura de Abacha, leva-o a ter que fugir do
país dentro do capô de um carro para o país vizinho, o Benin, e
deixar a mulher e o filho, de quatro anos, à mercê dos soldados e
torturadores do governo. Sua identidade é apenas demarcada como
a “mãe de Ugonna”. Esses soldados cometem uma série de abusos
(inclusive sexuais) na casa da família e acabam matando a criança
na frente na mãe, deixando-a no desespero dessa e das tantas
perdas que isso representa em sua vida. Toda a narrativa se passa
em flashback, enquanto a mãe está na fila da Embaixada America-
na, aguardando atendimento, em busca de um visto de refugiada
35 O conceito de violência simbólica é de Bourdieu (1989). Rita Schmidt (2006, p.766, nota) o
explicita a partir da percepção de que “toda ação na esfera humana é interessada em direção a
elementos materiais ou simbólicos”. E nessa direção, a cultura é capital pelas diferentes formas
que se utiliza para oprimir. No caso de “A Private Experience”, a violência física ocasionada pelas
questões políticas e étnico/raciais que envolvem as diferenças religiosas, oprime a todos os lados,
sem distinção de credo.

340
IntelectuaIs das áfrIcas

política. Com um final aberto, a narrativa mostra um contexto de


situação-limite em que pessoas como essa mãe são humilhadas,
desautorizadas e desacreditadas diante de autoridades como as da
Embaixada Americana. Essa fila onde a mãe de Ugonna percorre o
seu passado recente mostra um espaço heterotópico de proporções
diferentes de outras histórias dessa coletânea. Aqui a personagem
encontra-se não apenas num entre-lugar, mas num não-lugar onde
sua identidade de mãe já perdida, politiza-se, e sua recusa em
repetir sua história para o agente atrás do vidro revela que nem
sempre as escolhas devem estar amarradas à perda da dignidade.
Não falar nada diante dessa autoridade que poderia liberar a sua
saída da Nigéria, levando-a a sua liberdade e reencontro com o
marido nos Estados Unidos, significa, entre outras coisas, resistir
à própria configuração ditatorial de seu país. É uma das leituras
possíveis dessa trama política escrita por Adichie nessa empreitada
de reescrita da história nigeriana.
As histórias de The Thing around Your Neck tratam de homens e
mulheres, jovens e adultos, novos e velhos, em situações as mais
diversas, mas que, fundamentalmente, tratam de questões culturais
e identitárias localizadas não apenas no contexto do ambiente afri-
cano, mas também relacionados à diáspora africana, especialmente
da Nigéria, para os Estados Unidos. Tratam também de questões
que envolvem a política étnico-racial e religiosa, além das de gê-
nero, que podem muitas vezes escapar a um olhar desatento. São
narrativas que trazem a coerção da violenta realidade mesclada
com o refinado toque de delicadeza que mostra a existência do
humano em nós.
Levando em consideração todas essas questões focadas no
sentido da agência política mobilizadora da intelectual feminista,
mas, sobretudo da contadora de histórias nigeriana Chimamanda
Ngozi Adichie, foi que decidi aprofundar essa perspectiva através da
análise de “A Private Experience”, conto que trata de um inesperado
encontro entre duas mulheres, em meio a um tumulto provocado
por um conflito político-religioso envolvendo muçulmanos do nor-

341
IntelectuaIs das áfrIcas

te e cristãos do sul, em um mercado de Kano, cidade do norte da


Nigéria, de maioria muçulmana. Quero abordar esse conto a partir
do conceito de heterotopia foucautiano, uma vez que a história
cria no ambiente de um pequeno armazém abandonado, uma es-
pécie de ilha heterotópica, que salvaguarda as duas mulheres da
violência exterior.
A noção de heterotopia para Foucault mostra a oposição entre
um lugar real e outro irreal, relacionado à utopia. É preciso, por
isso, compreender que espaços/lugares quando constituídos, têm
uma natureza que extrapola o geográfico, sofrendo, portanto, uma
interferência do simbólico.36 No espaço heterotópico podem sur-
gir limiares fronteiriços, que funcionam como pontes mediadoras
entre esses lugares. Para Foucault, o que melhor representa esse
espaço é o espelho, território fronteiriço que mostra o ser onde
ele não existe.37 Esse espaço é também antropológico e pode ser
visto como um “não-lugar”,38 porque aí nem identidade, relação,
ou história pode ser garantida, dada a sua função provisória. A
narrativa de “A Private Experience” pode ser lida a partir desse
viés teórico foucaultiano.
Se considerarmos a criação de estereótipos, o conto escolhido
está aí situado. Adichie fala a esse respeito em sua conferência
“The danger of a single story”:

[...] essas histórias fazem-me quem eu sou. Contudo, insistir


somente nelas é superficializar minha experiência e negli-
genciar as muitas outras histórias que me formaram. Uma
história única cria estereótipos e o problema com estereóti-
36 Já tratei do tema da heterotopia em outros ensaios. Cf. “Dimensões políticas e afetivas do conceito
de espaço/lugar: reflexões a partir de textos literários do século XX”, publicado na Revista Latino
Americana de Geografia e Gênero (Ponta Grossa, v.2, nº2, p.100-107, ago/dez, 2011) que trata de
autoras brasileiras e estrangeiras; cf. também “Lugares heterotópicos e a constituição de corpos
fronteiriços e identidades transitórias na narrativa de autoras contemporâneas”, em Espaço e
gênero na literatura brasileira contemporânea, organizado por Regina Dalcastagnè (2015). A questão
conceitual aqui reflete a discussão já realizada nesses outros trabalhos, com acréscimos.
37 FOUCAULT, Michel. “1984: Outros Espaços”. In: ______. Estética: Literatura e Pintura, Música
e Cinema. Organizacão e selecão de textos: Manoel Barros da Motta. Tradução Inês Autran
Dourado Barbosa. Rio deJaneiro: Forense Universitária, 2009.
38 AUGÉ, Marc. Não-Lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade. Campinas:
Papirus, 1994, p. 52.

342
IntelectuaIs das áfrIcas

pos não é que sejam mentira, mas que sejam incompletos.


Eles fazem uma história tornar-se a única história.
É claro que a África é um continente repleto de catástro-
fes. Há as enormes, como as terríveis violações no Congo.
E há as que deprimem, como o fato de 5000 pessoas
candidatarem-se a uma vaga de emprego na Nigéria.
Mas há outras histórias que não são sobre catástrofes.
E é muito importante, é igualmente importante, falar
sobre elas.39

Estereótipos podem provocar inúmeros problemas e a maioria


deles acontece porque antecipamos ideias sobre o outro, criando
o que se pode tornar uma espécie de sombra do real. Para Jung,
a sombra representa tudo o que temos de negativo, mas que pro-
jetamos no outro, no nosso vizinho. Assim é que o outro se torna
o inimigo; que pode passar de vítima a vitimizador; de oprimido
a opressor. A provocação disso está na incapacidade humana de
tolerância. A história está cheia de exemplos que ilustram esse
ponto, sendo o mais recente os terríveis conflitos e embates causa-
dos pelo fluxo de imigração síria, especialmente para o continente
europeu, causador de todos os transtornos de intolerância étnico/
racial e religiosa, sem falar na violência de gênero.
Naturalmente, todo tipo de intolerância pode construir
estereótipos capazes de conduzir à violência. Cabe-nos ler essa
construção como parte da necessidade da sociedade de criar
bodes expiatórios para suas próprias mazelas e é nesse contexto
que a história do conto de Adichie surge como uma narrativa que
podemos definir como uma espécie de ilha que salvaguarda a
possibilidade de construção de algo diferente para o psiquismo.
A ficção não tem o poder de mudar a realidade, mas leitoras/es
podem observar que é possível a construção de algo diferente,
positivo para as pessoas. Essa talvez seja a grande lição expressa
pelo pensamento em ação da escritora nigeriana.

39 Cf. <http://www.ted.com/talks/chimamanda_adichie_the_danger_of_a_single_story>. Acesso


em: 2015.

343
IntelectuaIs das áfrIcas

Esse conto fala de duas mulheres que em meio aos conflitos


políticos, étnicos e religiosos na cidade de Kano, norte da Nigéria,
em um mercado público, fogem e conseguem esconder-se num pe-
queno armazém abandonado, enquanto os confrontos acontecem
do lado de fora. Tudo aconteceu porque um cristão ibo passou por
cima de um livro sagrado do Alcorão e os muçulmanos haussá não
gostaram do que viram:

[Chika] descobrirá que tudo começou no estaciona-


mento, quando um homem passou por cima de uma
cópia do livro sagrado do Alcorão que estava na lateral
da via; um homem que por acaso era ibo e cristão. Os
homens que estavam por ali, homens que passavam
o dia jogando damas; homens que por acaso eram
muçulmanos, o arrancaram de dentro da camionete
pick-up, cortaram-lhe a cabeça com um golpe de fa-
cão, carregando-a para o mercado e convocando os
outros para se juntarem a eles; o infiel havia profanado
o Livro Sagrado (p.46).40

Todo o movimento das duas mulheres é para dentro, de saída


do público para o privado, possibilitado pelo lugar, descrito como
deserto e menor do que o closet de uma das personagens, Chika. A
outra mulher, mais velha, mãe de cinco filhos, um ainda amamen-
tando, é vendedora de cebolas no mercado e muçulmana. A outra
é estudante de medicina, de classe alta e cristã. Aqui Adichie já
estabelece as bases da narrativa em que gênero – são duas mulheres
–, raça/etnia – uma é ibo, do sul da Nigéria, e a outra é haussá, norte
do país –, e classe social – uma rica e a outra pobre –, constituem o
universo narrativo. Toda essa caracterização aparece na descrição
da bolsa da cristã, um produto de grife adquirido na Europa, e da
saia jeans e uma camiseta com a estátua da liberdade usadas por

40 “[Chika] will find out that it all started at the motor park, when a man drove over a copy of the
Holy Koran that lay on the roadside, a man who happened to be Igbo and Christian. The men
nearby, men who sat around all day playing draughts, men who happened to be Muslim, pulled
him out of his pickup truck, cut his head off with one flash of a machete, and carried it to the
market, asking others to join in; the infidel had desecrated the Holy Book.”

344
IntelectuaIs das áfrIcas

Chika. A muçulmana veste-se com roupas e lenços baratos. Essas


conexões que, à primeira vista, afastam as duas mulheres, indicam
apenas a aparência fugidia das coisas.
O espaço insular, pequeno e empoeirado, onde as duas mu-
lheres se abrigam é um espaço heterotópico, no sentido de seu
acolhimento de duas pessoas que, em outras circunstâncias, jamais
teriam sequer trocado olhares. O espelhamento entre elas dá-se na
oposição de classe social, de etnia/raça e de religião, mas isso, ao
invés de afastá-las, aproxima-as e o que Adichie nos mostra é que,
nesse espaço de abrigo, as diferenças são dissolvidas na necessida-
de que ambas têm de se proteger do contexto de hostilidade que
está do lado de fora, apenas sugerido pela pequena janela fechada
do armazém abandonado.
Lá fora, os muçulmanos estão em confronto com os cristãos,
matando-se uns aos outros com machado, paus e pedras, em nome
da intolerância; e mascarados pela suposta busca de liberdade e
independência durante um processo ditatorial. Esses dois grupos
étnicos são parte da constituição identitária do país: “Chika saberá
que enquanto ela e a mulher conversam, muçulmanos haussá estão
abatendo cristãos ibos com machados e atirando pedras neles”.41
A autora coloca o viés político da narrativa na voz da irmã de
Chika, Nnedi, estudante de Ciências Políticas e ativista, possivel-
mente morta durante os conflitos, mas que explica o que ocorre
como algo “[...que] não acontece num vácuo; que religião e etnia
são sempre politizadas porque o governante está a salvo se os
famintos governados estão se matando uns aos outros” (p.48).42.
O que acontece com essas duas pessoas de etnias diferen-
tes, presas nesse lugar fechado, não é a repetição dos conflitos;
tampouco a intolerância faz parte desse encontro. Adichie mostra
que é possível uma convivência pacífica entre os diferentes: logo

41 “Chika will learn that as she and the woman are speaking, Hause Muslims are hacking down
Igbo Christians with machetes, clubbing them with stones”
42 “[that] do no happen in a vaccuum, that religion and ethnicity are often politicized because the
ruler is safe if the hungry ruled ar killing one another”.

345
IntelectuaIs das áfrIcas

no início é a muçulmana quem ajuda Chika a entrar pela janela do


armazém; é também ela que estende o chador no chão empoeirado
para que ambas se sentem num lugar limpo.
A narrativa mostra a possibilidade de um encontro solidário em
meio ao conflito sangrento, conforme aprendemos durante a leitu-
ra. O peso da violência é mais que simbólico. Mas o que interessa
aqui é a conexão projetada pela autora diante de duas etnias que
se matam no país. A estrutura narrativa é revelada à medida em que
o sofrimento das duas mulheres, marcadas por tantas diferenças,
é mostrado às leitoras. É revelada também através desse encontro
solidário, nessa espécie de ilha que subverte a ideologia opressora
de povos de crenças diferentes. A mulher muçulmana é carinhosa
com a cristã e sua atitude acolhedora, segura e protetora. Chika,
em sua juventude, demonstra insegurança diante de tudo. Sua força
vinha da irmã, Nnedi, perdida no conflito e provavelmente morta
em meio à confusão. A muçulmana também teve perdas, possivel-
mente relacionada à filha Halima (única nomeada de sua prole).
É relevante que o encontro entre as duas ocorra também a
partir da integração do corpo e do conhecimento de ambas. A mu-
çulmana tem cinco filhos e um ainda está amamentando. O estar
longe desse filho, que ainda é um bebê em fase de aleitamento,
provavelmente leva os seios da mãe a arderem. É quando ela se
desnuda e fala sobre o que sente:

“Meu seio arde como pimenta”, diz a mulher.


“Como?”
“Meu seio arde como pimenta”.
Antes que Chika possa digerir a bolha de ar na garganta
e dizer qualquer coisa, a mulher tira a blusa e desabotoa
o colchete frontal do velho sutiã preto. Tira o dinheiro,
notas de dez – e vinte, dobradas dentro do sutiã, antes de
libertar os seios (p.49).43

43 “’My nipple is burning like pepper,’ the woman says. ‘What?’ ‘My nipple is burning like pepper.’
Before Chika can swallow the bubble of surprise in her throat and say anything, the woman
pulls up her blouse and unhooks the front clasp of a worn black bra. She brings out the money,
ten –and twenty-naira notes, folded inside her bra, before freeing her full breasts[…].”

346
IntelectuaIs das áfrIcas

Tudo que se imagina saber das muçulmanas cabe na bolha de


surpresa presa na garganta da personagem cristã e que expressa
também a nossa surpresa como leitoras. Como é que pode uma mu-
çulmana agir de modo tão liberal, diante de uma pessoa estranha?
E aqui cabe apenas dizer que a muçulmana age de acordo com a
sua formação: está diante de outra mulher, por que se esconderia?
Chika assume o papel de alguém que já viu algo semelhante na
faculdade, mas para criar o laço afetivo, inventa uma mentira e fala
de sua mãe que também teve cinco filhos e o mesmo problema –
rachadura no seio – depois do quinto filho. A verdade, contudo, é
outra: ela e Nnedi são as únicas filhas e o seu referencial não é da
família; é da faculdade de medicina onde estuda e do estágio de
pediatria que começara na semana anterior. Ensina que a muçulma-
na precisa usar loção após amamentar e é quando cria a história da
própria mãe e do seu quinto filho: “Ela quase nunca mente, mas das
vezes que mente, há sempre um objetivo por detrás da mentira. E se
pergunta qual seria o propósito dessa de agora, da necessidade de
criar um passado ficcional semelhante ao da mulher” (p.50).44 Essa
referência à mentira torna-se relevante, porque aparece também
em outras histórias de Adichie, entre elas, no romance Americanah,
quando Ifemelu mente à cabelereira sobre sua vida.
No conto, é quando a mulher chora, num momento único de
ternura e privacidade no meio de cenas tão trágicas que acontecem
do lado de fora: “O choro da mulher é íntimo, como se ela estives-
se fazendo um ritual necessário que não envolve mais ninguém”
(p.51).45 Outra cena também mostra o teor de privacidade das
atitudes da muçulmana, que é quando ela se prepara para rezar:
compõe-se, lava as mãos e ajoelha-se num outro ritual que apenas
aquelas pessoas que conhecem a fé no Islã respeitam: “É como as
lágrimas da mulher, uma experiência íntima, e [Chika] deseja sair
do armazém. Ou que ela, também, pudesse rezar, pudesse acredi-

44 “She hardly ever lies, but the few times she does, there is always a purpose behind the lie. She
wonders the purpose this lie serves, this need to draw on a fictional past similar to the woman’s”.
45 “The woman’s crying is private, as though she is carrying out a necessary ritual that involves no
one else”.

347
IntelectuaIs das áfrIcas

tar em um deus, ver uma presença onisciente ali no ar azedo do


armazém” (p.53).46 Essas são atitudes culturais que desconstroem
os estereótipos aos quais estamos habituados a olhar o outro.47
Essas duas mulheres tão diferentes que se encontram em coisas tão
pequenas, mas que demarcam a possibilidade de podermos olhar
esse outro de modo mais aberto e menos coberto de pré-conceções.
A heterotopia do armazém pode, nesse caso, ter criado um espaço
de ilusão, incompatível com a realidade exterior. Entretanto, é nesse
espaço ilusório que as diferenças se diluem e ambas são acolhidas
diante de uma situação de conflito.
Há muito mais por descobrir nesta rica história de Adichie.
Sua técnica narrativa, por exemplo, traça idas e vindas a respeito
do pensamento de Chika, e a leitora desatenta pode deixar passar
importantes detalhes. O foco temporal da história é o presente,
mas toda ela é entremeada de interferências da narradora que nos
deixam antever o que acontecerá após o fim dos conflitos, especial-
mente voltadas para Chika. Essas antecipações podem ser pensadas
como projeções talvez irônicas de um futuro cheio de imprecisões.
O uso do condicional permite essas ilações, que merecem um maior
aprofundamento, limitado pelo espaço desta breve análise: Chika
e a muçulmana permanecem o tempo todo dentro do pequeno
armazém abandonado. Suas trocas se dão nesse espaço. Enquanto
as cenas acontecem, elas são intermediadas por referências do que
acontecerá no futuro, permeado pelo aprendizado de Chika em
relação ao outro, representado pela mulher muçulmana:

46 “It is like the woman’s tears, a private experience, and [Chika] wishes that she could leave the
store. Or that she, too, could pray, could believe in a god, see an omniscient presence in the stale
air of the store”.
47 A questão da religião é recorrente na obra da escritora. Essa temática reverbera também no
romance Purple Hibiscus, pois Adichie queria escrever sobre o assunto, conforme aponta em
entrevista ao Louisianna Channel (“Chimamanda Ngozi Adichie: The right to tell your story”),
em 3/9/2013. Foi educada como católica e com o passar do tempo compreendeu que as pessoas
acabam se tornando rígidas em suas crenças religiosas. No conto “The Shivering” há um encontro
religioso entre as personagens e, desta vez, o acolhimento é através de Padre Patrick, numa igreja
católica, frequentada pela protagonista Ukamaka, em Princeton, nos Estados Unidos, que leva
o amigo nigeriano, protestante e gay, Chineku, para, ali, buscar um pouco de paz diante da sua
condição de imigrante ilegal, em vias de ser deportado.

348
IntelectuaIs das áfrIcas

1. A intolerância religiosa demarcada pela violência entre as duas etnias,


conforme já citado anteriormente.48

2. A visão da morte nos necrotérios e busca pelos vivos nos jornais e


mercados:

Mais tarde Chika vasculhará os necrotérios dos hospitais


procurando por Nnedi; irá aos escritórios dos jornais
agarrada na foto das duas tirada em um casamento na
semana passada [...]. Pregará cópias da foto nas paredes
do mercado [...] Ela não encontrará Nnedi. Nunca mais
encontrará Nnedi (p.47).49

3. O arrependimento de ter ido com a irmã ao mercado da cidade e a


reflexão sobre o outro:

Mais tarde, quando Chika desejar não ter ido de taxi com
Nnedi ao mercado apenas para ver um pouquinho da cidade
velha de Kano [...], ela vai também desejar que a filha da
mulher, Halima, tivesse ficado doente, cansada, ou com
preguiça, naquela manhã (p.51).50

4. O como o conhecer da fé religiosa do outro pode mudar o sentimento


de intolerância:

Mais tarde, a família mandará celebrar missas e mais missas


para que Nnedi seja encontrada sã e salva; mas nunca para
que sua alma descanse em paz. E Chika vai pensar sobre
essa mulher, rezando com a cabeça encostada no chão em-
poeirado, e vai mudar de ideia sobre dizer à sua mãe que
gastar com missas é um desperdício de dinheiro [...] (p.52).51

48 O fragmento original já foi citado anteriormente.


49 “Later, Chika will comb the hospital mortuaries looking for Nnedi; she will go to the newspaper
offices clutching the photo of herself and Nnedi taken at a wedding just the week before… She
will tape copies of the photo on the walls of the market… She will not find Nnedi. She will never
find Nnedi.”
50 “Later, when Chika will wish that she and Nnedi had not decided to take a taxi to the market
just to see a little of the ancient city of Kano…, she will wish also that the woman’s daughter,
Halima, had been sick or tired or lazy that morning […]”.
51 “Later, the family will offer Masses over and over for Nnedi to be found safe, though never for
the repose of Nnedi’s soul. And Chika will think about this woman, praying with her head to
the dust floor, and she will change her mind about telling her mother that offering Masses is a
waste of money[…]”.

349
IntelectuaIs das áfrIcas

5. A visão da realidade traduzida pelos estragos e pelas mortes expostas


na rua e a versão “limpa” e “higienizada” dos fatos:

Mais tarde quando Chika e sua tia saírem procurando Nnedi


por Kano, com um policial sentado no banco da frente do
carro com ar-condicionado da tia, ela verá outros corpos,
muitos queimados deitados ao longo das laterais da rua
[...]. Ela vai olhar para apenas um corpo, nu, duro, de ca-
beça voltada para o chão, e ela vai entender que não dá
para dizer se o homem parcialmente queimado é ibo ou
haussá, cristão ou muçulmano, só de olhar para o corpo
carbonizado. E vai ouvir a rádio BBC falar do número de
mortes e dos confrontos – religiosos com insinuações de
tensão étnica”, é o que dirá a voz. E ela vai jogar o rádio na
parede e uma raiva louca vai transpassá-la do como tudo
foi empacotado e higienizado para caber em tão poucas
palavras, todos aqueles corpos [...]. (p.53-54)52

Mais tarde, Chika lerá no Guardian que ‘os falantes mu-


çulmanos reacionários haussá do norte têm uma história
de violência contra os não muçulmanos; e no meio de sua
dor, vai parar e se lembrar que examinou os mamilos de
uma mulher haussá e muçulmana e sentiu a sua suavidade
(p.55).53

6. A dor do outro que se torna sua: “Mais tarde, ao caminhar para casa,
pegará uma pedra manchada de cobre do sangue seco e segurará o ma-
cabro souvenir em seu peito [...]”.54

52 “Later, when Chika and her aunt go searching throughout Kano, a policeman in the front seat
of her aunt’s air-conditioned car, she will see other bodies, many burned, lying lengthwise along
the sides of the street… She will look at only one of the corpses, naked, stiff, facedown, and it
will strike her that she cannot tell if the partially burned man is Igbo or Hausa, Christian or
Muslim, from looking at that charred flesh. She will listen to BBC radio and hear the accounts
of the deaths and the riots – “religious with undertones of ethnic tension” the voice will say.
And she will fling the radio to the wall and a fierce rage will run through her at how it has all
been packaged and sanitized and made to fit into so few words, all those bodies […]”.
53 “Later, Chika will read in The Guardian that “the reactionary Hausa-speaking Muslim in the
North have a story of violence against non-Muslims, and in the middle of her grief she will stop
to remember that she examined the nipples and experienced the gentleness of a woman who is
Hausa and Muslim”.
54 “Later, as she walks home, she will pick up a stone stained the copper of dried blood and hold
the ghoulish souvenir to her chest…”.

350
IntelectuaIs das áfrIcas

Esses extratos do conto indicam a ruptura do estereótipo com


o conhecimento do que o outro pode ser, quando não existem
barreiras que apresentem os conflitos de forma acirrada. Chika e a
muçulmana jamais serão as mesmas após esse episódio que destitui
os seres de suas identidades religiosas, de classe e de raça/etnia
e, ao depô-las, mostram-se apenas como seres humanos, frágeis
que são diante de uma realidade assustadora que poucas alterna-
tivas apresentam para aqueles que, como as duas mulheres dessa
comovente história de Chimamanda Ngozi Adichie, experienciam
a possibilidade de mudança, de esperança e de solidariedade.
Essa é a chocante simplicidade da verdade trazida pela escritora
nigeriana que transforma em ação política a literatura que escreve
e dissemina pelo mundo.

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IntelectuaIs das áfrIcas

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354
IntelectuaIs das áfrIcas

PEPETELA: ENTRE A SORDIDEZ DAS PRÁTICAS


E A SEDUTORA UTOPIA

Silvio de Almeida Carvalho Filho1

Os escritos de Pepetela, um dos mais importantes intelectuais


angolanos da atualidade, tornaram-se um dos caminhos para me-
lhor conhecer bocados da história de Angola na segunda metade
do século XX e início do XXI. Com uma obra literária relevante,
traduzida em vários idiomas, produziu romances, textos acadê-
micos, entrevistas e crônicas jornalísticas, todos interrogando
visceralmente as grandes questões econômicoas, sociais, políticas
e culturais, as relações entre os grupos sociais e as ideologias em
confronto em sua terra natal. Por sua posição à esquerda, produziu
uma estética que problematizou o social ao propor uma utopia a
ser concretizada ou ao denunciar a sua traição.2
Neste capítulo, seria insano pretender dar conta do mosaico de
temas tratados nas obras de Pepetela, por isso preferimos examinar
textos sobre os quais a nossa investigação tem se debruçado nos
últimos tempos e nos quais salta aos olhos a importância agônica
de suas críticas a algumas práticas instauradas no período do par-

1 Professor da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) e da Universidade do Estado do


Rio de Janeiro (UERJ).
2 Entendemos como uma posição política de esquerda toda aquela que está preocupada não com
uma igualdade absoluta, negadora da diversidade humana, mas com uma igualdade em termos
sociais, portanto com a quebra de desigualdades sociais, com a emancipação dos indivíduos
das limitações impostas pelos privilégios socialmente construídos de raça, classe e gênero etc.
Portanto, esquerda não é um conceito absoluto, havendo um espectro de esquerdas de acordo
com a exigência de uma maior ou menor intensidade de igualdade em uma categoria do social
(BOBBIO, 1995, p. 19-20, 79, 81, 89, 95, 103, 105,110).

355
IntelectuaIs das áfrIcas

tido único e após a opção pela sociedade de mercado em Angola.3


Assim, caro leitor, convidamos-te a percorrer conosco as razões
das angústias de Pepetela em relação a essas realidades. Todavia,
como falar de suas inquietações, sem, ao menos, te apresentar
sinopticamente como se engendrou esse intelectual?

UMA BREVE ANAMNESE DA TRAJETÓRIA

Pepetela nasceu em 1941 ao sul de Angola, na cidade de


Benguela, em uma família pequeno-burguesa, sob o nome Artur
Carlos Maurício Pestana dos Santos. Sendo branco, em um país
majoritariamente negro, sempre afirmou a sua angolanidade não
apenas por estar a sua família, pelo ramo materno, em Angola
desde 1849, como, também, por ter sido guerrilheiro na luta pela
independência, não abandonando a terra como fez a maior parte
dos portugueses e descendentes. Ademais, sempre repudiou os
racismos em Angola, como manifestou no livro O cão e os caluandas,
onde os cachorros, ao guardarem as casas dos colonos portugueses,
“mordiam os negros, rosnavam nos mulatos, lambiam as mãos dos
brancos” ou portavam “o vírus do ódio ao negro, da desconfiança
ao mulato, do respeito ao branco”.4 Essas citações são indícios do
que sempre advogou: o ideal de uma nação plurirracial e igualitária
para Angola.
Pepetela participou, desde adolescente, do meio intelectual
benguelense, sorvendo o nacionalismo, já presente na poesia de
Aires de Almeida Santos, as preocupações sociais da literatura bra-
sileira, em particular, das obras de Jorge Amado. Ainda mui jovem,
encantou-se com a leitura de um livro de Proudhon e, mais tarde,
tomou contato com o pensamento de Marx e seus seguidores, por
3 Entre os seus livros, os que mais analisamos ultimamente estão Muana Puó (1978), Yaka (1984),
O Cão e os Caluandas (1985), O desejo de Kianda (1995) e Predadores (2008).
4 PEPETELA. O cão e os Caluandas. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 1985, p. 32-33, contra-
capa; , KORWIN-KOWALEWSKA, Anna. O “Cão e os Calús” de Pepetela: o papel dos símbolos
no processo das interações sociais. s.n.t. (mimeo), p. 1; LABAN, Michel. Angola. Encontro com
Escritores. Porto: Fundação Engenheiro Antônio de Almeida, s. d.(a), v. 2, p. 778; PEPETELA.
Curriculum Vitae. Anexo de mensagem pessoal recebida por silvioacf@gmail.com em 01 set. 2008c.;
PEPETELA. Mensagem pessoal recebida por silvioacf@gmail.com em 17 de julho de 2013c.

356
IntelectuaIs das áfrIcas

isso as ideias anarquistas e as marxistas sempre lhe foram caras.


Partindo para estudar em Lisboa em 1958, frequentou, até 1962,
a Casa dos Estudantes do Império, celeiro de grande parte da ju-
ventude independentista das colônias portuguesas. No último ano,
publicou, pela primeira vez, alguns contos, assim como, fugindo
do serviço militar nas tropas portuguesas engajadas na guerra
colonial, aderiu à luta pela independência de seu país dentro do
Movimento pela Libertação de Angola (MPLA). Como membro do
MPLA, partiu para Argélia em 1963, onde estudou Sociologia, sub-
sidiado por bolsa de estudos fornecida pelo governo desse país,
onde permaneceu até 1969.
Em Argel, participou do Centro de Estudos Angolanos aí
sediado, sendo um dos autores da História de Angola, editada em
1965, que contava a narrativa histórica pela óptica não colonialista.
Nesse mesmo Centro, Pepetela escreveu os diálogos da história em
quadrinhos intitulada Contra Escravidão: Pela Liberdade, concebida e
desenhada por Henrique Abranches e, provavelmente, com auxílio
de Adolfo Maria, executivo do Centro, quanto aos trabalhos de
tipografia. Publicada em 1967, foi muito divulgada e apreciada
entre os guerrilheiros e nas escolas mantidas pelo MPLA, tanto nas
matas quanto em suas bases de guerrilha. Considerada a primeira
história em quadrinhos angolana, com uma capa simples, não
ilustrada, foi reeditada em setembro de 1974 em Portugal, após
a “Revolução dos Cravos”. Como na primeira edição, permanceu
sem indicação dos autores, mas ganhou uma capa que ostentava a
bandeira do MPLA, manifestando a autoria institucional da obra.5
Em 1969, Pepetela retomou a sua verve literária, escrevendo em
Argel seu primeiro livro, Muana Puó, somente publicado em 1978.6

5 CASSIAU-HAURIE, Christophe e SÁ, Leonardo de. Il y a 10 ans décédait Henrique Abranches. El


Watan. Le quotidien indépendent, ano 24, n. 7294, 6 de outubro de 2014, Argel, p.12.; BOLÉO,
João Paulo Paiva. A BD e o 25 de abril. Um outro olhar. Camões. Revista de Letras e Culturas
Lusófonas, Lisboa, Instituto Camões, n. 5, p. 103- 112, abr.-jun. 1999, p. p. 106; https://www.
youtube.com/watch?v=BjAQxSXAmU8; PEPETELA. Mensagem recebida por silvioacf@gmail.
com em 16 de agosto de 2017d.P p. p. 106e os seus militantes,
6 PEPETELA. Pepetela. Entrevista. [23 de Nov. de 2008b.] Entrevistador: Silvio de Almeida
Carvalho Filho. Rio de Janeiro: UFRJ/UERJ (fita magnética e transcrição)

357
IntelectuaIs das áfrIcas

Nesse mesmo ano, já em Angola, atuou como dirigente e guer-


rilheiro do MPLA, mas, mantendo a vocação intelectual, exerceu
atividades na formação política e pedagógica de guerrilheiros e
das populações das áreas ocupadas. Na guerrilha, em Cabinda, um
guerrilheiro ambundo interpelou-o para que assumisse um nome de
guerra, sugerindo “Pepetela”, tradução do sobrenome Pestana para
quimbundo.7 Esse codinome, considerado por Artur mais “bonito e
sonoro” que o seu sobrenome em português, foi adotado para sua
vida pessoal e literária, revelando o lugar de onde se posicionava e
a partir do qual queria falar: o de um revolucionário nacionalista.8
Tendo sido capturado pelo prazer de questionar os contextos
históricos por meio da ficção, não deixou de escrever romances
enquanto participava da luta armada, entre eles, destacam-se
Mayombe, redigido durante a noite, entre 1970 e 1971, em Cabin-
da; As Aventuras de Ngunga, elaborado em 1972 na Frente Leste,
mimeografado em 1973 para ser texto de apoio nas escolas das
regiões controladas pelo MPLA.
Ocupou, em 1975, o cargo de diretor do Departamento de
Orientação Política do MPLA, setor importante em uma organização
que pretendia criar nova mentalidade política entre os militantes.
Suas habilidades de dirigente fizeram-no membro do Estado-Maior
da Frente Centro das Forças Armadas Populares de Libertação de
Angola (FAPLA). Ante a demanda de quadros nas frentes guer-
rilheiras, assumiu as funções de comandante, empreendendo a
resistência à invasão sul-africana. Nessa altura, com uma grave
hepatite, regressou a Luanda em novembro de 1975, no momento
da independência do país. Recuperado, deixou as Forças Armadas,
foi para Lubango dar aulas. Com uma apreciável produção literária,
tornou-se um dos membros fundadores da União dos Escritores
Angolanos. Voltando, em fins de 1976, à capital, que se tornou
seu local de residência e o seu mais importante topos literário,
foi nomeado vice-ministro da Educação, função governamental
7 Os akwa kimbundu são a segunda maior etnia em Angola, ocupando primordialmente as províncias
de Luanda, Bengo, Malange, Kuanza Norte e nordeste do Kuanza Sul. Sua língua é o quimbundo.
8 PEPETELA. Mensagem recebida por silvioacf@gmail.com em 03 dez. 2009.

358
IntelectuaIs das áfrIcas

abandonada em 1982, juntamente com todo o desejo de exercer


cargos político-partidários.9 Esses anos no governo não foram um
período frutífero em termos literários, pois não conseguiu escre-
ver obras de grande monta, no entanto logrou publicar um dos
mais importantes marcos de sua produção, elaborado durante a
guerrilha: Mayombe (1980).
Após afastar-se do governo em 1982, a carreira como inte-
lectual tornou-se cada vez mais produtiva, publicando artigos em
periódicos, livros didáticos e de sociologia urbana, afirmando-se,
gradativamente, como o mais importante literato angolano da
contemporaneidade, em virtude da editoração de vinte e quatro
livros de literatura, alguns extremamente renomados, editados
entre 1973 e 2014, nos quais delineou criticamente o retrato de
sua época. Em decorrência da qualidade da produção literária,
recebeu vários prêmios nacionais e internacionais.10
Entre os anos de 1983 e 2008, lecionou Sociologia Geral e
Sociologia Urbana na Faculdade de Arquitetura da Universidade
Agostinho Neto, em Luanda, tornando-se titular dessa disciplina
em 1995. Na área estritamente profissional, Pepetela desempenhou,
de 2003 a 2007, a presidência da Assembleia Geral da Sociedade
Angolana de Sociólogos.11
9 LABAN, s.d.(a), op. cit. , v. 1, p. 96, v. 2, 775-777, 780-782; RIAÚZOVA, Helena. Dez anos de Lite-
ratura Angolana. Ensaio sobre a moderna literatura angolana. 1975-1985. Luanda, UEA/ Lisboa,
Edições 70, 1987, p. 40; PEPETELA. Mensagem recebida por silvioacf@gmail.com em 10 de abril
de 2017b; PEPETELA. Pepetela. Op. cit. [23 de Nov. de 2008b.]; CENTRO de Investigação para Tec-
nologias Intelectuais. Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
Disponível: http://www.citi.pt/cultura/literatura/romance/pepetela/politica.html Acesso: 28
de fevereiro de 2011.
10 Recebeu, em Angola, o Prêmio Nacional de Literatura, em1981 e em 1985 e o Prêmio Nacional
de Cultura e Artes em 2002. Por parte de Portugal e Brasil, a ele foi conferido, em 1997, além
do Prêmio Camões, um dos mais renomados e desejados pelos escritores que professam a língua
portuguesa.O Brasil reconheceu seu talento por meio de premiações, em 1993, com o Prêmio
Especial dos Críticos Literários de São Paulo e, em 2003, outorgando-lhe a Ordem do Rio Branco
no grau de Oficial, categoria concedida a professores universitários e a escritores, aos quais o
Governo Brasileiro queira homenagear por suas atuações. Foi agraciado em 2007 com o Prêmio
Internacional da Associação de Escritores Galegos. Ainda em 1999, ganhou o Prêmio Prince Claus
da Holanda, concedido anualmente a pessoas e organizações na África, Ásia, América Latina
e Caribe por suas notáveis realizações no campo da cultura e do desenvolvimento social. E, foi
agraciado em 2007 com o Prêmio Internacional da Associação de Escritores Galegos.
11 Livros publicados por PEPETELA: As aventuras de Ngunga. Lisboa: Edições 70, [s.d.]. São Paulo:
Ática, 1986. (1ª ed. em 1977); Muana Puó. Lisboa: Edições 70, 1978; A Corda: peça num acto e
doze cenas. Luanda: UEA, 1978; Mayombe. São Paulo: Ática, 1982. (1ª ed. em 1980); A revolta da

359
IntelectuaIs das áfrIcas

Participou de várias organizações culturais angolanas, nelas


exercendo, às vezes, cargos de direção.12 Em 2007, como resulta-
do de sua importância como intelectual que discutia as grandes
questões angolanas, foi nomeado, pelo governo, Embaixador da
Boa Vontade para a Desminagem e Apoio às Vítimas de Minas, em
busca de soluções para um dos maiores problemas sociais que
afligiam a população angolana.
Considerava o MPLA, na fase inicial, muito mais que um parti-
do; considerava-o uma tradição de luta, uma representação política,
um campo cultural e de pensamento “que influenciou decisivamen-
te a cultura angolana atual”. Antes de defini-lo como um partido,
compreendia-o como uma frente que agrupava diversas tendências
políticas de centro e de esquerda, ou, mesmo, de centro-esquerda.
Pensava, então, que o MPLA poderia permanecer como frente única
de três ou quatro partidos “conforme as sensibilidades”, sendo,
um desses, marxista-leninista, que congregaria “a maioria, sob a
liderança de Agostinho Neto”. Teve, então, a veleidade de propor
essa concepção aos militantes a ele mais próximos, mas, perceben-
do que a ideia era somente sua, não tendo, portanto, sustentação
dentro do Movimento, acompanhou a tendência marxista-leninista
hegemônica, situando-se no núcleo dirigente do MPLA, quando
esse se tornou um partido único, em 1977. Nesse momento, não
casa dos ídolos. Lisboa: Edições 70, 1980; Yaka. São Paulo: Ática, 1984; O cão e os caluandas. Lisboa:
Publicações Dom Quixote, 1985; Luegi. Porto: Edições Asa/ União dos Escritores Angolanos,
1989; Luandando (estudo histórico-sociológico de Luanda). Porto:Elf-Aquitaine Angola, 1990;
O desejo de Kianda. Lisboa: Dom Quixote, 1995; Parábola do Cágado Velho. Lisboa: Dom Quixote,
1996, A gloriosa família. Lisboa: Dom Quixote, 1998, A geração da utopia. Rio de Janeiro: Nova
Fronteira, 2000, A montanha da água lilás, fábula para todas as idades. Lisboa: Dom Quixote,
2000, Jaime Bunda, o agente secreto. Lisboa: Dom Quixote, 2000, Jaime Bunda e a morte do
americano. Lisboa: Dom Quixote, 2003, Predadores. Lisboa: Dom Quixote, 2005, O terrorista de
Berkeley, Califórnia. Lisboa: Dom Quixote, 2007, O quase fim do mundo. Lisboa: Dom Quixote,
2008, Contos de Morte. Luanda: Edições Chá de Caxinde, 2008, O planalto e a estepe. Lisboa:
Dom Quixote, 2009, Crónicas com Fundo de Guerra. Luanda: Edições Chá de Caxinde, 2011,
Crónicas sem Guerra. Luanda: Edições Chá de Caxinde, 2011, Ao sul, o Sombreiro. Lisboa: LeYa,
2011, O Tímido e as Mulheres. São Paulo: LeYa, 2016; Se o Passado não Tivesse Asas. LeYa. 2016; Sua
Excelência, de Corpo Presente. Alfragide (Portugal), Dom Quixote, 2018.
12 Exerceu, entre 1984 e 1992, a função de Presidente de sua Assembleia Geral e de Secretário das
Relações Exteriores da União dos Escritores Angolanos e, entre 1998 e 2001, sendo novamente
Presidente da Assembleia Geral. Participou de organizações não governamentais, como da
Associação Cultural Chá de Caxinde, da qual foi Presidente da Assembleia Geral entre 1998 e
2008. Essa instituição, dona de uma editora, promovia teatro e literatura, assim como atividades
culturais em geral.

360
IntelectuaIs das áfrIcas

se sentia confortável em sair dessa agremiação política assim for-


matada, o que poderia ser visto como uma ruptura com o MPLA.
No MPLA participou de alguns de momentos difíceis, como a
repressão à Revolta Nitista, em 1977, experiência que reacendeu,
em seu foro íntimo, a desconfiança das estruturas partidárias.
Incomodava-o ter de, repetidamente, ir às reuniões da célula do
partido no Ministério da Educação, onde trabalhava, dizendo, para
si mesmo: “quando era criança obrigavam-me a ir à missa, agora
me obrigam a ir à reunião da célula do partido. É a mesma coisa!”
Para ele, as discussões eram pobres e repetitivas, por esse moti-
vo arrumava, sempre que fosse possível, uma desculpa para não
frequentá-las. Suportou essa atuação partidária durante cinco anos,
até 1982. Dessa época em diante, passou a lidar primordialmente
com os costumes e o modus operandi do campo literário, para que,
com a especificidade e a autoridade adquirida, pudesse analisar
mais livremente a política e a sociedade do que quando exercia
cargos no MPLA. Até então, em vários momentos, fora mais um
político que literato, mas, subjazendo esse aspecto, aflorou ma-
gistralmente o escritor, intervindo no campo político-social com
as armas da literatura, não mais com as partidárias.13
Muitos de seus escritos são o eco, às vezes metafórico, da
opinião de setores populares contra os privilégios e erros do grupo
dirigente do MPLA. Ao longo de sua trajetória, passou a perceber
que a maior parte da ala crítica dessa agremiação, muitas vezes,
quando atingia as cúpulas do poder partidário, acomodava-se à
linha oficialmente estabelecida, sem rupturas. Todavia, seu pontuar
discordante em relação às práticas políticas acentuou-se com a per-
da de influência dos teóricos marxistas junto ao governo angolano
em meados da década de 1980, evidenciada pelo afastamento de
Lúcio Lara, a segunda pessoa mais importante do partido, do Bureau

13 LABAN, op. cit,, s.d.(a), v. 2, p. 774; PEPETELA, op. cit, 23 de Nov. de 2008b,: PEPETELA. Op.
01 set. 2008c; HODGES, Tony. Angola. Do Afro-Estalinismo ao Capitalismo Selvagem. Cascais:
Principia, 2003, p. 79; VIDAL, Nuno. The Angolan Regime and the Move to Multiparty Politics
In: CHABAL, Patrick & VIDAL, Nuno (Edit). Angola. Tem Wright of History. London: Hurst
& Company. 2007. p. 124-174, p. 141.

361
IntelectuaIs das áfrIcas

Político em 1985, com o qual Pepetela mantinha afinidades. Outro


fator importante para o afastamento do MPLA foi a consolidação
de um staff mais ligado ao presidente José Eduardo dos Santos e
mais afeito à sociedade de mercado, desde o II Congresso do MPLA
(1985), substituindo os mais à esquerda.14
Sua literatura confirma que o MPLA, em face das ameaças ex-
ternas e internas, constituiu-se um regime autoritário, tornando-se
um partido-estado que concentrava todo o poder em suas mãos.
A capacidade de crítica às práticas sociais e políticas angolanas
encontra-se presente em O Cão e os Caluandas, escrito entre 1978 e
1984, publicado em 1985, quando estava em gradativa retirada das
fileiras partidárias e governamentais. Essa opinião não constituía
uma idiossincrasia, já que esse romance encontrava-se articulado
com a primeira onda de textos literários satíricos ao “socialismo
angolano”, cujos autores também pertenciam ao partido: Quem me
dera ser onda, de Manuel Rui (1982), Mbanza do Miranda, de Arnaldo
Santos (1985), e Nas barbas do Bando, de David Mestre (1985).15 Além
desses livros, sobressai-se, naquele momento, a crítica de Manuel
dos Santos Lima, autor já totalmente cindido com o MPLA, que
publicara Os Anões e os Mendigos (1984) em Portugal. Até o apareci-
mento das obras citadas, a crítica social voltava-se primordialmente
para a sociedade colonial, considerada como uma estrutura que
se desejava eliminar.
Com o abandono dos ideais socialistas pela cúpula gover-
namental e com a contínua expansão da corrupção e do autori-
tarismo, seu juízo vai se tornando cada vez mais mordaz, como
testemunham os livros A Geração da Utopia (1992), O Desejo de
Kianda (1995) e Predadores (2005). Esses dois últimos indiciam que
o autoritarismo continuou mesmo depois da abertura ao multipar-
tidarismo e à sociedade de mercado. Pepetela não poupou críticas
aos partidos opositores ao MPLA, em especial à União Nacional para
14 PEPETELA. Mensagem recebida por silvioacf@gmail.com em 18 de março de 2017a; PEPETELA,
op. cit, 23 de Nov. de 2008b,:
15 PEPETELA. Predadores. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2008, p. 18, 40; HODGES. Op. cit., 2003,
p. 67, 78-9.

362
IntelectuaIs das áfrIcas

a Independência Total de Angola (UNITA), durante todo o período


da guerra civil angolana, entre 1975 e 2002. Afinal, esta, também,
exercia, nos territórios que controlava, formas ainda mais violen-
tas de autoritarismo. Por mais que fosse crítico ao MPLA, esteve
sempre conectado culturalmente e, mesmo, ideologicamente a
essa organização, portanto, mais acremente censurador da UNITA
ou da FNLA.16
Uma grande parte de suas obras realizou uma denúncia de
traição à nação parcialmente estruturada à nação programada,
não visando elidir a proposta socialista, mas fazer retificações,
eliminando os desvios de percurso. Pepetela retratou, a partir de
O Cão e os Caluandas (1985), o que se confidenciava quando velhos
militantes encontravam-se: a dor de uma desilusão.

HIATOS ENTRE TEORIAS E PRÁTICAS NO REGIME SOCIALISTA


ANGOLANO

A ideia de uma Revolução Socialista era tomada por Pepetela


como uma utopia não alienante, pois clamava pela transformação
do quotidiano. Em 1969, ainda um guerrilheiro, Pepetela afirmava,
em Muana Puó, que "o que importa é mudar a ovalidade do mundo,
sem dele fugir". A rebeldia supunha realizar transformações pro-
fundas das estruturas econômicas e sociais para formar o “homem
novo”. Essa forma de ver a utopia permaneceu uma constante
no pensamento do intelectual. Nessa perspectiva, o processo de
independência em Angola não terminava com a mera separação
política do território em relação a Portugal. Supunha um governo
dos trabalhadores que conduziria o Estado: “que maravilhoso será
o mundo quando os que constroem comandarem!”17 Essa utopia
apresentava-se, por exemplo, no enredo de Yaka, escrito em 1983,
recorrendo-se ao anarquismo, caro a Pepetela, nas asserções de
Acácio, personagem contestador, consciência crítica da sociedade,
tal como pretendia ser o seu criador:
16 PEPETELA. A Corda: Peça num acto e doze cenas. Luanda: UEA, 1978, p. 56, 55, 170
17 PEPETELA. Yaka. São Paulo: Ática, 1984, p. 53, 131.

363
IntelectuaIs das áfrIcas

“A propriedade suja, emporcalhada, torna os homens piores


que bichos. A propriedade é o roubo, dizia Proudhon, é
isso. Mas é mais. Basta a miragem da propriedade para um
homem decente se tornar prepotente, um tirano”.

Ou, ainda: “O mal era a propriedade […] mesmo pequena


tornava o indivíduo escravo dela”.18
Em Muana Puó, propalava a utopia comunista de dar a cada
um de acordo com as suas necessidades fundamentais, evitando
a acumulação por uns em detrimento de outros. Tinha consci-
ência de que as pessoas na sociedade em gestação formaram-se
nos valores capitalistas, para os quais vencer na vida equivalia
a conseguir bens inatingíveis para a maior parte da população.
Para mudar essa concepção, tornava-se imprescindível realizar a
“proletarização” dos pensamentos e dos hábitos, libertando o
ser humano de todas as suas escravidões históricas, tornando-o
mais solidário.19
O Estado angolano, em várias de suas obras, aparecia, às ve-
zes, como uma gama de “princípios ocultos”, que se apresentava
“nas manifestações da ordem pública”, assim como nas coisas mais
banais do quotidiano, exercendo violência física e simbólica. Essa
ordem pública não era apenas a repressão, ela supunha o consen-
timento por consenso de práticas tomadas como “naturais”.20 Em
Predadores, por exemplo, apresenta-nos o Estado-Partido sendo
chamado por meio de símbolos e autoridade a se intrometer nas
coisas mais prosaicas do dia a dia, até nas mais reservadas relações
familiares. Em 1978, o personagem Caposso, temendo pedir a mão
da namorada, vestiu a “camisola vermelha do Jota”, apelido da Ju-
ventude do Movimento Popular de Libertação de Angola (JMPLA),
para facilitar a aquiescência do “futuro sogro”, um coordenador de
célula partidária do MPLA. Em compensação, este, ao saber que a
filha engravidara, pressionou a favor do casamento, apelando ao
18 PEPETELA. A Corda: Peça num acto e doze cenas. Luanda: UEA, 1978, p. 108-9, 115, 108.
19 PEPETELA. Predadores. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2008a, p. 160-1, 167.
20 PEPETELA. Yaka. São Paulo: Ática, 1984, p. 258; cf. Id., 1982, p. 119-20, 130, 141, 173-4.

364
IntelectuaIs das áfrIcas

poder partidário para fazer valer a sua vontade: “A mão do partido


é pesada”.21
Desde o início da década de 1970, em Mayombe, não hesitou
em denunciar parcelas dos guerrilheiros do MPLA, que tinham
uma visão dogmática do marxismo, transformado em um psita-
cismo doutrinário de conceitos, muitas vezes não dialógicos com
os acontecimentos quotidianos angolanos, portanto, geradora de
classificações e análises esquemáticas dos fenômenos. Esqueciam
que, sendo outra a realidade do país, o produto da análise dialética
podia naturalmente diferir e indicar práticas inovadoras em relação
às tradicionalmente adotadas. Certificava, nessa obra, aquilo que
reapresentaria, treze anos depois, ao escrever Yaka, de que “as
teorias nascem da prática dos povos”: outro modo de dizer que
elas devem ser extraídas da realidade objetiva, comprovadas ou
reestruturadas em confronto com a mesma.22
Detectou, no início da década de 1970, que certos quadros do
MPLA na guerrilha, fugindo “a uma análise profunda dos fatos”, apli-
cavam uma série de rótulos àqueles que não tinham “exatamente
a mesma opinião”. Para Pepetela, esse esquematismo e rotulismo
eram “o resultado duma preguiça intelectual… ou falta de cultura”,
predominante em vários guerrilheiros.23
Dez anos depois da independência, em O Cão e os Caluandas,
falava com um tom mais irônico sobre o processo de implantação
do socialismo. O Estado angolano, ao se declarar “socialista”, ape-
sar dos intentos nessa direção, utilizou essa qualificação de forma
leviana nos discursos, o que, muitas vezes, repercutiu em vários
textos literários da primeira década da independência, quando nem
sempre as práticas condiziam estritamente com o adjetivo. Ora,
um Estado não se define apenas pelos parâmetros ideológicos, mas
pela natureza concreta das relações sociais existentes em seu seio.
Afirmava que a absorção da propaganda ideológica homogeneizava

21 PEPETELA. Mayombe. São Paulo: Ática, 1982, p. 119-2, 175.


22 PEPETELA, O Desejo de Kianda. Lisboa, Dom Quixote, 1995, p. 11.
23 PEPETELA. O Desejo de Kianda. Lisboa, Dom Quixote, 1995, p.11.

365
IntelectuaIs das áfrIcas

os enunciados de forma superficial, sem estimular um pensamento


socialista autêntico e criativo, sendo um desserviço à concretização
de uma nação realmente proletária.
Pepetela foi um crítico do hiato entre a narração e a prática
durante o regime de partido único, daí ironizar a utilização dos
jargões socialistas para dar maior autoridade às assertivas, assim
como admoestou a postura de certos setores do MPLA, que se
diziam marxistas, “embora muitos suspeitassem não passar de
propaganda”.฀ Frequentemente, naquele momento, transferia-se
constante e analogicamente um termo político de seu sentido
estrito com significado lato para o vocabulário prosaico do quo-
tidiano. Por esse motivo, Pepetela denunciava os fingimentos das
falas, mais preocupadas com os rótulos socializantes do que com o
conteúdo, satirizando o excessivo uso de vocativos e pronomes de
tratamento típicos de uma sociedade socialista, quando as práticas
demonstravam o reverso do prescrito pelo ideal marxista.
Satírico em relação à fragilidade intelectual de certos mili-
tantes do MPLA no pós-independência, o narrador em Predadores
explicava a dificuldade e a pouca motivação de ativistas das cama-
das subalternas e pouco instruídas em discutir as longas e, para
eles, “complicadas” teses para a preparação do Primeiro Congres-
so do MPLA, que iriam transformá-lo de movimento em partido
marxista-lenista, em dezembro 1977, sendo mais fácil aprová-las
“sem emendas” e sem discussão. Todavia, nesse evento político,
a classe operária, da qual os militantes citados faziam parte, foi
declarada como líder do processo de socialização.24฀ À luz dessa
escolha messiânica, esse enredo, em Predadores, expunha contra-
dições entre o que era teorizado para essa classe social e o que,
na prática, ocorria com a atuação de vários de seus membros não
interessados ou sem competências intelectuais para discutir os
documentos preparatórios de um Congresso pejados de marxismo-
leninismo.O narrador de Predadores expressou profunda ironia em
relação ao Movimento de Retificação do MPLA, instituído naquele
24 PEPETELA. O Desejo de Kianda. Lisboa, Dom Quixote, 1995, p.11.

366
IntelectuaIs das áfrIcas

Primeiro Congresso. O procedimento da Retificação, liderado por


Lúcio Lara, membro do Bureau Político e Secretário do Departamen-
to “Organização” do Comitê Central, e iniciado em 4 de fevereiro
de 1978, nasceu da necessidade da cúpula do partido de purificar
os seus quadros, verificando quais dos antigos militantes aceitariam
a nova ideologia, evitando, assim, os futuros fracionismos, como
a pungente revolta nitista de 27 de maio de 1977. Pepetela deu,
como participante desse evento, aval não apenas à Retificação, mas,
também, ao surgimento de um partido marxista-leninista. Alegou,
em 2014, que, em 1977, não tinha intenção de vir a integrar esse
tipo de organização partidária e que poderia ser o momento de
se “desligar da política”, o que, contudo, não fez. Indiciou, assim,
que não se sentia bem inserido naquelas atuações políticas, toda-
via, delas participou. Achava ter sido “um erro” criar esse tipo de
partido único marxista-leninista, mas estava cônscio de que sua
postura não teria vez na direção do MPLA de então.25
Pepetela, como vice-ministro da pasta, participou da Mesa
de Retificação do Ministério de Educação, junto com o ministro
Ambrósio Lukoki e com o diretor do Departamento de Massas
do MPLA, Agostinho Mendes de Carvalho (Uanhenga Xitu). Logo,
esteve na presidência das “assembleias em que os trabalhadores
do Ministério se avaliavam, decidindo quem devia ou não entrar
para o Partido, por votação”. Para ele, o método da Retificação, a
princípio, parecia “interessante”, mas as práticas revelavam, muitas
vezes, o contrário. Portanto, provavelmente, após seu gradativo
distanciar da cúpula do partido, enquadrou melhor a intocabilidade
dos que presidiram aquela Mesa, adquirindo consciência de que
esses ficaram “automaticamente [...] membros do Partido, sem
avaliação!” Isso indiciava que, naquele momento, Pepetela era tido
como integrante do núcleo exemplar do Partido, confiável e fiel
à direção de Agostinho Neto. Afinal, estivera ao lado desse, em
momentos tão difíceis, como o da revolta nitista. O Movimento
de Retificação gerou uma série de purgas no partido, inclusive nas
25 PEPETELA. Predadores. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2008a, p.156.

367
IntelectuaIs das áfrIcas

organizações voltadas para as massas, tais como a Juventude do


Movimento Popular de Libertação de Angola (JMPLA), transforman-
do a ampla frente do MPLA em um pequeno partido de vanguarda,
com uma redução em torno de 70% do número de militantes. Em
suma, a repressão ao nitismo, o Primeiro Congresso e a Retificação
permitiram a transformação do movimento em um partido que se
pretendia monolítico.26
A microanálise desse intelectual focalizou certos militantes
a vivenciarem, superficialmente, o ideal inicial desse processo de
retificação partidária, preocupando-se sempre em tirar proveito
escuso das mudanças políticas. Para Pepetela, a Retificação em
determinados locais realizou-se com rigor, mas, em outros, houve
“alguns jogos sujos, próprios das lutas pelo poder, mesmo o mais
pequeno poder”. Segundo ele, no local de trabalho, muitos obs-
tavam a participação no corpo partidário de “um candidato mere-
cedor” por ser esse “exigente” e porque, se fosse aprovado para
o partido único, poderia ser “promovido no serviço”, passando a
comandá-los. Houve subordinados que aprovaram “um chefe inca-
paz” para a organização partidária, para não serem depois exigidos
nos seus empregos.27 Nesse aspecto, seu posicionamento tinha
afinidades com as futuras asserções, em 4 de fevereiro de 1980,
do recém-presidente José Eduardo dos Santos, ao afirmar que os
“oportunistas” conseguiram durante a Retificação “obter o cartão
de membro do Partido” para auferirem “vantagens e privilégios
no aparelho do Estado”. O Presidente Santos declarava que, após
conquistarem tal identidade, alguns descuraram da assiduidade
nas reuniões das células partidárias ou que operários abandonaram
as classes de alfabetização, por já se considerarem integrantes da
“classe dirigente”. Essas práticas assinalavam uma “mentalidade
pequeno-burguesa” e “não revolucionária”, ameaçando a “pureza
ideológica do partido”.28
26 CARVALHO FILHO, Silvio de Almeida. Angola: Nação e Literatura (1975-1985). Tese (Doutorado
em História). Departamento de História da Faculdade de Filosofia e Letras e Ciências Humanas
da Universidade de São Paulo. São Paulo, 1994. 2 v. p. 581.
27 PEPETELA. Mensagem recebida por silvioacf@gmail.com em 07 de maio de 2013b.
28 SANTOS, Arnaldo. Na Mbanza do Miranda. Luanda: INALD, 1984.

368
IntelectuaIs das áfrIcas

Logo após a independência, textos publicados nos jornais


locais criticavam aqueles que, tendo compactuado com as estrutu-
ras capitalistas e com os agentes da repressão colonial, adotaram
o discurso revolucionário, ingressando no governo e no partido
com o fito de manter o poder ou prestígio social, não estando,
portanto, dispostos a implementar convictamente a política socia-
lista propalada pelo MPLA. Muitos burocratas foram denunciados
como revolucionários de última hora, apanhando a “boleia na
revolução”. Esses, denominados, em Yaka, de “oportunistas”, bem
se diferenciavam dos arrependidos, descritos mais tarde em O Cão
e os Caluandas, que, tendo servido ao colonialismo, tornaram-se
conscientes do erro, guardando um sentimento de culpabilidade
por tê-lo cometido.29
Em Predadores, ironizava a ambiguidade das trajetórias de
muitos revolucionários angolanos, que desembocaram em posições
capitalistas e antiéticas. Afirmou que muitos dos tidos como socia-
listas iriam viver mais empenhados com as vantagens que o novo
regime pudesse oferecer-lhes do que em cumprir algum abnegado
objetivo revolucionário. Alguns estavam mais interessados em se
apossar dos bens deixados pelos portugueses em fuga do país do
que preocupados com a implantação do socialismo. Estavam, por
conseguinte, mais aflitos em assegurar o gozo de uma propriedade
privada para si que coletivizá-la. Transvestiam atitudes voltadas
aos ganhos privados em ações nacionalistas ou aparentemente
solidárias, revelando apego dissimulado à propriedade privada
e aos privilégios sob uma capa de revolucionarismo de cunho
socializante.30
Irritou-se também com aqueles que procuravam, por meio
de todos os trâmites, inscrever-se, no pós-independência, no
MPLA, pois apenas queriam, com isso, obter vantagens em uma
sociedade governada por esse Movimento. Satirizou os que
29 PEPETELA. Yaka. São Paulo: Ática, 1984. p. 255; Id., 1985, p. 25-6; RUI, 1984b, p. 51; CAR-
NEIRO, 1976, p. 7.
30 PEPETELA. Predadores. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2008a, p. 127, 131-2; PINHEIRO, 2011,
p.18.

369
IntelectuaIs das áfrIcas

assumiam uma postura “proletária” por ser adequada ao novo


ideal político, ou seja, todo oportunismo mimético do “auten-
ticamente socialista”, que retratava, na realidade, um tacanho
anseio pequeno-burguês.31 Quer dizer, em Angola, proliferava,
sob o regime nascido de uma guerrilha, a invenção das tradições
revolucionárias nas trajetórias pessoais, pois davam prestígio aos
indivíduos em uma fase política cheia de exaltação às posturas
de esquerda. Portanto, Pepetela, denunciava ter havido, muitas
vezes, um revolucionarismo mais nominal que substancial. Esse
fato patenteava-se na auréola revolucionária da maioria dos
nomes dos filhos de Caposso, protagonista de Predadores: por
exemplo, deu o nome Djamila à filha mais velha, provavelmente
porque muitos revolucionários passaram pela Argélia, onde esse
nome era comum. Basta lembrar que duas heroínas da luta de
libertação argelina, de sobrenomes Bouhired e Boupacha32, por-
tavam esse apelido. Aos meninos, Caposso deu os nomes russos
de Ivan e Yuri, como faziam “vários camaradas” vindos “da luta
de libertação” em uma fase de “exacerbado sovietismo”: afinal,
a URSS sempre estivera ao lado do MPLA.33
Pepetela satirizou aqueles que, não tendo uma participação
na luta da independência, inventavam um codinome revolucionário
apenas para ter prestígio político. Vladimiro Caposso forjou para si
esse nome por ser uma “adaptação portuguesa de Vladimir Ilitch
Lenine”, líder da Revolução Soviética. Quando perguntado por um
militante do MPLA como a administração colonial aceitara registrá-
lo, teve de mentir, respondendo que, por ter esse nome, nunca
tivera registro civil, vivendo na clandestinidade. Em seu mimetismo
falsificador, passou a assinar VC, lembrando “a Vitória é Certa”,
principal lema do MPLA desde a guerrilha, inspiradora não só do
“nome do jornal do movimento”, mas, também, do da base do

31 PEPETELA. Predadores. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2008a, p. 133, 135-6. .


32 Djamila Bouhired e Djamila Bouhired foram duas jovens que participaram na luta pela indepen-
dência da Argélia, sendo presas e torturadas. Tornaram-se símbolos da participação feminina
nesse processo de descolonização.
33 PEPETELA. Predadores. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2008a p. 73

370
IntelectuaIs das áfrIcas

MPLA na Zâmbia”34, em meados da década de 196035, cujas iniciais


eram pronunciadas “em inglês” e “sempre no masculino, o Vici”36.
A atuação camaleônica de Caposso, que escondia o real leit-
motiv – fazer glória no período socialista –, fê-lo tornar o pai um
revolucionário, e, sendo este enfermeiro, ressaltava o frequente
caráter contestador dessa categoria profissional no declínio do
período colonial. Nascido em Calulo, no Cuanza-Sul, mudou a
naturalidade, registrando-se como tendo sido parido na aldeia de
Caxicane no Catete, pois lá nascera Agostinho Neto. No Catete,
havia uma grande população escolarizada, berço, portanto, de
várias famílias angolanas de renome. Essa área engendrara desde
1921 oposicionistas ao regime colonial, quando os camponeses
locais revoltaram-se contra o trabalho forçado, os castigos cor-
porais, os baixos salários e a confiscação de terra dos africanos,
sofrendo, por essas atitudes, prisões, banimentos e deportações.
O Catete, no início da década de 1960, continuava sendo uma área
de revolta anticolonial latente e afeita aos grupos organizados
pró-independência.37 Nos momentos iniciais do MPLA, na área
ambundo, havia animosidade entre dois subgrupos, os catetenses,
habitantes da parte oeste, perto da costa, inclinados ao MPLA, e
os malanjinos, do interior, simpáticos à FNLA.38 Esse fato deu fama
aos primeiros de serem muito nacionalistas, inclusive porque vários
assumiram uma defesa incondicional da política e das ações de
34 PEPETELA. Predadores. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2008a, p. 134, 139, 35; (PEPETELA, s.d.).
35 MPLA,2008, p.75. Obs: A Base ViCi havia sido uma antiga quinta, situada a 25 km de Lusaka
transformada em sede da Direção Político-Militar do MPLA, em especial da III Região Político
Militar do Movimento, a Frente Leste, era um “acampamento militar, depósito de armamento e
roupa e comida, escritórios” (PEPETELA, 2014a; MPLA, 2008, p.75, 78), Nasceu intimamente
ligada aos serviços de Rádio e Telecomunicações (SRT), “importantes como meio estratégico em
qualquer guerra”, para dar resposta à instalação de um Centro Supra-Regional de Telecomunica-
ções (CSRT), “local relativamente secreto para instalação de uma unidade potente, centralizadora
de toda a rede nacional de comunicações […] fora do alcance dos meios de retaliação do inimigo”,
funcionando, portanto, “junto da Direção do Movimento”, importante para o Comando da
Frente Leste (MPLA, 2008, p. 75, 77,). “Quanto houve o acordo de paz e a mudança da Direção
para Luanda em 1974, foi tudo desativado e o campo entregue” às “autoridades zambianas”
(PEPETELA, 2014a).
36 PEPETELA. Predadores. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2008a, p.139.
37 PEPETELA, 2008a, p.73, 134-5, 137;
38 Os Ambundos, Ambundu, Mbundu ou Akwa Kimbundu são o segundo grupo étnico que vive
em Angola na região da capital Luanda e nas províncias do Bengo, Kwanza Norte, Malange e
nordeste do Kwanza Sul.

371
IntelectuaIs das áfrIcas

Agostinho Neto dentro do Movimento, sendo vistos como “ho-


mens do Presidente”39, aqueles “que mandam no país”. Por isso,
Caposso propalou ter vindo ao mundo lá, e seu cartão de membro
do MPLA confirmava essa naturalidade, mas, depois, por volta de
fins de 1975, arrependeu-se dessa astúcia, porque ela lhe gerou
“contrariedades”, pois percebeu que os catetenses, por serem tão
poucos, quase sempre se conheciam, sendo mais difícil manter a
sua inverdade: seus eleitos conterrâneos, não encontrando a “raiz
de sua família”, consideravam-no “um impostor”. Para piorar a sua
situação, quando foi pedir a mão de sua futura esposa, descobriu
que os possíveis sogros eram malanjinos e, como tais, não viam
bem os catetenses. Após a morte de Neto, em 1979, arrependeu-
se, mais uma vez, de ter assumido essa naturalidade, pois havia a
fama de que os de Catete “têm mania que são espertos” e “julgam
que nasceram para mandar neste país”, o que lhe poderia gerar
animosidades. O seu nome Vladimiro serviu até para seu futuro
sogro mofar dele, afirmando que se Lênin “soubesse a quem dão
agora o nome dele… ” 40 Dessa forma, o escritor ironizava a uti-
lização superficial e oportunista de nomes, jargões, palavras de
ordem de origem nacionalista ou socialista para realidades que
nada tinham a ver com essa.
A crítica à ineficiência da burocracia, que tanto preocupara o
Comitê Central do MPLA em meados de 1982, apareceu em O Cão e
os Caluandas e retornou em O Desejo de Kianda, publicado em 1995.
Pepetela mofava do funcionalismo estatal ou partidário por não
trabalhar o bastante e que, “em nome do interesse geral”, desper-
diçava “meios e mobilizava estruturas” por “pequenas questões
do dia-a-dia”. Por isso, vários setores da população lembravam-
se, com o passar do tempo, dos lados positivos da eficiência da
administração portuguesa quando comparada com o desleixo da
burocracia angolana. Pepetela confrontava os excessos de reuni-

39 PINTO, Marcelo Bittencourt Ivair. “Estamos juntos!” O MPLA e a luta anticolonial (1961-1974). Lu-
anda: Kilombelombe, 2008, p. 339; SCHUBERT, 1999, p. 408-9; PEPETELA, 2008a, p. 136.
40 PEPETELA. Predadores. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2008a. p. 36, 73-5, 87, 136, 162, 164, 167,
171.

372
IntelectuaIs das áfrIcas

ões e de discursos, assim como a grande capacidade de apenas


teorizar com pouco resultado prático desses esforços: era o mal
da “reunite”. Tal era a morosidade da burocracia, na tomada de
resoluções, que essas só ficavam prontas quando delas não mais
se necessitava.41 Este descalabro chocava-se com o ideal de dedi-
cada racionalidade na administração esperada por Pepetela em um
Estado que se queria socialista.
Na passagem da década de 1970 para a de 1980, Pepetela
auscultava o desencanto, mesmo que secreto, de alguns burocratas
de mentalidade pequeno-burguesa com o princípio de dar “todo
o poder à classe operária”.42 Esses julgavam- se acima do controle
popular e isentos de prestar esclarecimentos sobre os seus atos,
mesmo quando sobre eles pesassem algum dolo ou falta. Quando
alguma petição lhes desagradava, atravancavam o processo, fazen-
do-o mofar nas gavetas. O poder burocrático era invisível, porém
poderoso e autoritário. Em Angola, a partir de suas constatações,
já estava a se cumprir, infelizmente, a profecia weberiana de que
o movimento socialista tinha maiores probabilidades de produzir
uma “ditadura do funcionário” do que a “do proletariado”. A crítica
de Pepetela implicitamente compactuava com a conjectura de que
a dominação de uma vanguarda burocrata ameaçaria o direciona-
mento socialista do Estado.43
Nesse sentido, Pepetela entrevia a existência de um repúdio
popular velado a esse tipo de autoritarismo, mais claramente
visível para os atentos às pessoas que desligavam a televisão
ante a imagem de um personagem do governo ou do partido. As
práticas da burocracia geravam uma rejeição popular não apenas
aos burocratas, mas ao “socialismo” tal como se instituía. Essas
críticas literárias, sinalizando o desencanto com a condução da
coisa pública, devem ser verossímeis, na medida em que eram

41 PEPETELA,1985, p. 46-9, 21, 45-7, 131-8; Id., 1995 p. 9; PEPETELA, 2017a; SANTOS, A., 1984,
p. 15, 14, 18; AFRICA, 1986, p. 37.
42 PEPETELA, 1985, p. 48.
43 PEPETELA, 1985, p. 48, 20-1, 46; AFRICA, 1986, p. 35; RUI, 1984, p. 21; KORWIN-KOWA-
LEWSKA, s.n.t. p. 8; SANTOS, A.,1984, p. 17.

373
IntelectuaIs das áfrIcas

provenientes não de inimigos do sistema socialista, mas de um


escritor ligado ao MPLA.44 A nação socialista imaginada pelo MPLA
estava gradativamente desandando em um burocratismo despótico,
corrupto e nepotista.
Pepetela nunca poupou aqueles que, dentro do MPLA, se
aburguesaram. No início da década de 1970, ainda na guerrilha,
ele antevira a dificuldade dos intelectuais libertarem-se dos vícios
burgueses. Fato mais tarde comprovado, quando o Comitê Central
do MPLA admitia em 1977 que certos setores da pequena burgue-
sia, não sinceramente vinculados ao socialismo, aproveitando-se
da falta crônica de quadros dentro do MPLA, exacerbada pelas
perdas durante a Revolta Nitista, tentavam aumentar seus privilé-
gios, apoderando-se dos cargos de liderança no aparelho estatal e
partidário. Assim, elementos da pequena-burguesia alfabetizada,
tais como comerciantes, proprietários de firmas de pesca e funcio-
nários públicos, conseguiram ser admitidos nas estruturas locais
do MPLA. Muitos desses novos burocratas foram denunciados
como revolucionários de última hora. De tal forma, a mentalidade
burguesa instaurava-se no funcionalismo estatal e partidário que,
naquele ano, Lúcio Lara advertia a burocracia para não adotar uma
atitude superior de caráter burguês frente aos operários e campo-
neses com baixa escolaridade. Em meados de 1978, Lara admitiu
que uma parte da pequena burguesia letrada, essencialmente bu-
rocrática, detinha as rédeas do poder, desejando afirmar-se como
uma classe dirigente.45
Na primeira metade da década 1980, Pepetela foi um dos
poucos intelectuais que questionaram se o regime angolano po-
deria tornar-se instrumento de dominação de uma burocracia,
na verdade, uma vanguarda pequeno-burguesa encapsulada num
regime que afirmava almejar o socialismo. Crítico da permanência
da mentalidade autoritária naqueles a quem cabiam as funções
diretivas nas unidades produtivas, atestava o distanciamento dos

44 PEPETELA1985, p. 46-9.
45 PEPETELA. Mayombe. São Paulo: Ática, 1982, p. 83; LARA, 1978, p. XIII.

374
IntelectuaIs das áfrIcas

interesses entre planejadores da produção e os operários diretos


que a realizavam. Enxergava um aflorar da mentalidade pequeno-
burguesa, que transmudava o processo de “socialização” numa
mera troca de “senhores”, substituindo os colonizadores pela nova
pequena burguesia ascendente. Ridicularizou os intelectuais ou
pretensos que, numa Angola desejante do socialismo, achavam
desmerecedor, para si, o trabalho manual ou a atividade bélica em
defesa do regime frente aos ataques da UNITA. Considerava todos
esses acontecimentos, pedagogicamente, maléficos à divulgação
dos ideais socialistas entre as massas.46
A despeito de a imprensa oficial afirmar que não havia privilé-
gios para a pequena- burguesia, Pepetela, entre 1978 e 1984, estava
consciente da existência de privilégios. Nesse período, condenava
a ostentação de vantagens peculiares ao colonialismo por parte de
autoridades nacionais e dos diretores de fábricas estatais, assim
como regalias, no setor habitacional, usufruídas por altos funcioná-
rios partidários e governamentais. Questionou o acesso exclusivo
desfrutado por esses às lojas especiais, mais bem abastecidas, até
de produtos estrangeiros, cujos similares, nas “Lojas do Povo”,
eram de pior qualidade, escassos ou inexistentes. Dessa forma,
expressou os ressentimentos da população pobre consciente de
que a burocracia não era afetada pelas mesmas carências. Essas
vantagens da burocracia surgiram muito cedo, após a implantação
do regime socialista, por isso Pepetela concebeu literariamente,
três anos após a independência, a regalia de um diretor no Minis-
tério do Trabalho em ter motorista privado para levá-lo de casa
para o trabalho, e vice-versa. A avidez de alguns ex-revolucionários
com o seu próprio enriquecimento era enquadrada por ele como
uma antinomia aos ideais socialistas.47 Afinal, numa sociedade na
qual se pretendia construir o socialismo, escandalizava-se com a
permanência da autoridade como distinção nos privilégios, já que

46 PEPETELA, 1985, p. 12, 24, 44, 113-5; LABAN, s.d.(a), p. 176; MATA, 1990, p.8.
47 PEPETELA, 1985, p. 44, 108, 112, 115, 144; PEPETELA, 2008a, p. 154; MATA, 1990, p. 8;
PERES, 1979, p. 2; MELO, 1985, p. 46; EXPRESS INTERNACIONAL, 7/11/1981, p. v. ;
LABAN, s.d.(a), p. 176; SOMERVILLE,1986, p. 60-1; EXPRESSO, 10/9/1983, p. 34.

375
IntelectuaIs das áfrIcas

isso feria o desejo de igualdade social. A nação socialista igualitá-


ria, imaginada em vários de seus textos literários, amargava a sua
não concreção.
Na África Subsaariana, houve uma forte tendência para a es-
truturação de uma política clientelista: Angola não escapou disso.
Logo, após a emancipação, os líderes revolucionários

conseguiram praticamente o monopólio dos em-


pregos estatais e defenderam a sua posição não só
dirigindo o Exército e a Política, mas também conser-
vando no aparelho burocrático posições e salários,
por vezes redundantes, para si próprios e para as
suas clientelas.48

Pepetela condenou o patrimonialismo angolano, não tolerando


que a burocracia, consagrando o pistolão, reservasse, de forma pri-
vilegiada, primeiro a si, a seus amigos e parentes, os bens escassos
nesta sociedade subdesenvolvida e sofrida pelos efeitos da guerra.
No início da década de 1990, dizia que a obtenção de uma moradia
era, muitas vezes, um privilégio conseguido principalmente por
meio de conhecimentos dentro da burocracia estatal ou partidária.49
Deplorou a obtenção de cargos públicos não de acordo com
a competência, mas por meio das afinidades pessoais com líderes
políticos, partidários ou administrativos. Portanto, fez-nos perceber
que ainda não se solidificara em Angola uma noção de cidadania,
que liga o indivíduo diretamente ao Estado, acima e além dos la-
ços de parentesco, comunidade ou facção. Mostrou que o grupo
governante, ao atribuir recursos às suas redes de clientela, manti-
nha uma coesão social sustentadora de si. Era comum que chefes
de unidades econômicas ou administrativas fossem pressionados

48 BIRMINGHAM, 1995 apud HODGES, Tony. Angola. Do Afro-Estalinismo ao CapitalismSelva-


gem. Cascais: Principia, 2003, p. 67.
49 BAYART, Jean-François, ELLIS, Stephen; HIBOU, Béatrice. De l’Etat klepctocrate à l’État
malfaiteur? In: BAYART, Jean-François, ELLIS, Stephen; HIBOU, Béatrice. La criminalisation de
l’ État en Afrique. Bruxelas: Éditions Complexe, 1997 p. 21; GABIZO & THIRIOT, 2009, p. 33;
PEPETELA1985, p. 19-20; Id., 1995, p. 9.

376
IntelectuaIs das áfrIcas

por pessoas influentes para admitirem e conservarem nos serviços


públicos os apadrinhados por elas. Esse tipo de recrutamento do
servidor público estimulava os abusos de poder na medida em
que tornava o emprego público uma prebenda, ou seja, algo a
ser explorado como um recurso privado. Pepetela revelou que o
Estado angolano fora capturado por uma burocracia corrupta, que
o fazia funcionar em seu proveito, o que não concorria para a boa
gestão pública.50
Quando o personagem de Predadores, Vladimiro Caposso, nas
eleições de 1992, referendou aqueles do MPLA que facilitaram o seu
enriquecimento, estava consciente de que os votos naqueles que
“rezavam pela mesma cartilha” fortaleceriam as redes clientelistas.
A cédula eleitoral podia fazer parte de uma barganha, do “toma-
lá-dá-cá”. Os fatos criticados por Pepetela permitem indiciar que
o Estado Moderno, que objetiva separar minimamente o público
do privado, não estava plenamente institucionalizado em Angola,
pois, às vezes, obedecia-se mais a vontades de pessoas influentes
do que a regras legais e impessoais. O clientelismo, denunciado
desde 1978, quando começara a escrever O Cão e os Caluandas, foi
referendado por cientistas sociais, como Nuno Vidal em 2006, que
demonstram que a estrutura política angolana, independente do
modelo político formal, seja ele socialista monopartidário ou capi-
talista multipartidário, servia-se da lógica patrimonial-clientelista.51
Ao analisar literariamente as relações entre o público e privado
em sua sociedade, Pepetela permitiu-nos pensar que seu país sofreu
processos semelhantes aos ocorridos em vários Estados africanos
e que o Estado Moderno weberiano não estava, então, plenamente
constituído em Angola, pois, para Weber, esse deveria estabelecer
separações entre a esfera pública e privada, não se coadunando
com o patrimonialismo. Ora, no patrimonialismo, ocorre justa-
mente o contrário: a imbricação entre essas duas esferas, entre
50 PEPETELA, 1995, p. 9; TSHIYEMBE, 2014, p. 15; CHABAL & DALOZ, 1999, p. 6-7; JOURDE,
2009, p. 51.
51 PEPETELA, 2008a, p.40; CHABAL & DALOZ, 1999, p. 7; JOURDE, 2009, p. 44; VIDAL,2006,
p. 12 apud ANTUNES, 2009, p. 12.

377
IntelectuaIs das áfrIcas

as posições do poder e as de acumulação. Dito de outra forma,


existe a convicção que os detentores do poder político possuem
alguma propriedade sobre os recursos coletivos que administram,
facilitando uma criminalização das práticas de poder geradora de
uma cleptocracia, sustentada por uma economia de “pilhagem” da
riqueza pública: em suma, forma-se o Estado Predador.52
Dessa concretude, várias obras de Pepetela oferecem-nos irô-
nicos testemunhos, inclusive com o título do livro Predadores.53 Em
sua tessitura literária, todas essas práticas criaram prevaricadores,
autocratas, lutas agônicas, a miúdo violentas contra os oposi-
tores, ou propiciando a cooptação venal desses, demonstrando
que a corrupção estava constantemente presente nas ações dos
agentes estatais. Para exemplificar, após 1987, passou a detectar
“esquemas” de aliciamento dentro do aparelho burocrático ou
no gerenciamento das fábricas. Portanto, pertencer ao aparelho
do Partido-Estado abria caminhos para vencer as dificuldades,
podendo a burocracia obter bens alimentícios, vestimentas e ele-
trodomésticos de forma mais farta e barata, sem enfrentar filas,
numa sociedade em crise com bens escassos e racionados. Traçou
uma série de expedientes possíveis de ocorrer no dia a dia, tais
como o de um burocrata, conseguindo gratuita e semanalmente
duas caixas de cerveja, em troca da rápida permissão para um
empregado de uma cervejaria enviar mensalmente dinheiro para
sua mãe em Portugal. Para Pepetela, esses engenhos nasceram
quando mal alvorecia a independência, desse modo inventou
um fiscal que multou, em novembro de 1975, um dono de uma
loja por estar o seu alvará caduco e, ao mesmo tempo, sugeriu
a obtenção do documento por meio de “corrupção ou jogo de
influências”. Além disso, entre fins da década de 1970 e o início da
de 1980, denunciou a permissão para lojas particulares venderem
52 Esse fenômeno será analisado pelos conceitos de neo-patrimonialismo de Médard, de “política
do ventre” de Bayard ou o prebendalismo de Joseph (GABIZO & THIRIOT, 2009, p. 27, 33).
53 ; JOURDE Cederia. Les griles d’ analyse de la politique africaine: La problématique de l’État.
In: GABIZO, Mamoudou & THIRIOT, Celine (dir.). Le politique em Afrique. État des débat set
pistes de recherche. Paris: Éditions Karthala, 2009. p. 44, 46; CHABAL & DALOZ, 1999, p. 5;
BAYART, ELIS, HIBOU, 1997, p. 26; CHABAL & DALOZ, 1999, p.5; BAYART, 1997a, p. 10;
PESTANA, 2004, p. 4;

378
IntelectuaIs das áfrIcas

acima do tabelamento legal a troco da corrupção de fiscais. Não


deixou de reportar a ilegal utilização privada de equipamentos
do Estado, tais como a de veículos de repartições públicas, por
parcela da burocracia para si, para os seus amigos ou apadrinha-
dos. Os baixos salários de setores da burocracia estimulavam, de
acordo com o escritor, que pequenos funcionários aumentassem
os seus rendimentos trabalhando em outras atividades, deixando
o serviço público em falta. Denunciava que membros da buro-
cracia puderam abiscoitar, em uma instituição pública, um local
gratuito e dinheiro para subvencionar alguns gastos para uma
festa particular, assim como notificou que muitos bens adquiridos
por organizações públicas eram apropriados privadamente pelos
que nelas ocupavam cargos. Asseverava ser possível um burocrata,
a troco de propina, declarar bens e equipamentos públicos como
irremediavelmente estragados para vendê-los a preços baixíssi-
mos para amigos. Imaginou um membro da JMPLA a receber, em
1978, por intermédio dessa organização, cimento das fábricas
estatais a preços bonificados e até a cessão de um pedreiro de
baixo custo para reformar sua loja particular, transformando-a
em uma casa para a sua nova família. Vladimir Caposso, também
contando com um telefonema da cúpula daquela organização,
conseguiu registrar sem dificuldades como sua propriedade a
loja abandonada pelo seu ex-patrão, um retornado português.
Pepetela ironizou também a viagem ao exterior de uma burocra-
ta, a título de interesse público, mas que, na realidade, servira a
negócios particulares e a turismo pessoal.54
Tal era o alto grau de venalidade que Pepetela qualificou o siste-
ma que se tentava implantar de “socialismo esquemático”. Os mais
conscienciosos socialistas questionavam-se como poderiam chamar
de representantes dos operários estes novos burocratas angolanos. O
fenômeno do “socialismo esquemático” já fora atentado por outros

54 BAYART, ELIS, HIBOU, 1997, p. 19-22; BAYART, 1997, p. 9; PEPETELA, 1985, p. 13, 19-20,
23, 81-2, 84, 115, 151; Id., 1995, p. 12-3;Id. , 2008a, p. 145, 168-171; EXPRESSO, 10/9/1983,
p. 32 e 34; EXPRESS INTERNACIONAL, 7/11/1981, p. V; nte poCHABAL & DALOZ, 1999,
p.6-7.

379
IntelectuaIs das áfrIcas

marxistas que denunciaram a tendência da burocracia tomar o bem


público, controlado pelo Estado, como sua propriedade privada.55
Desse modo, apesar de não ser proprietária dos meios de criação
da riqueza social, tornava-se a grande usufrutuária dessa. Portanto,
as elites angolanas, originadas frequentemente do funcionalismo
público ou de pequeno comércio, apoderando-se do Estado, visaram,
por meio desse, a sua reprodução como camada social.
Profetizando a situação acima historiada, o narrador de Pre-
dadores, ao testemunhar no tempo diegético de 1974, um ano
antes da independência de Angola, o estabelecimento em Luanda
das organizações políticas do MPLA vindas do exílio, aproveitou,
então, o ensejo para vaticinar o que o autor, tristemente, já sabia,
ao escrever o livro, publicado em 2005: “esse MPLA nunca fará
revolução proletária”.56 Manifestava, assim, uma frustração de
uma utopia não realizada, luto pungente na trajetória de Pepetela.
Entretanto, não só os poderosos, mas também elementos
provenientes de diversas hierarquias sociais, de acordo com
os seus meios e poderes, usufruíam dos proveitos advindos do
suborno. Pepetela atestou que, por volta de 1995, a decisão de
vender aos inquilinos os alojamentos confiscados depois da in-
dependência, desde que não possuíssem outra propriedade, foi
burlada por muitos, já que dispunham de outras, muitas vezes,
em nome de membro de sua família. Dessa forma, alguns pude-
ram comprar mais de um imóvel. Encenava guardas de trânsito,
em Luanda, por volta de 1992, que, frequentemente, paravam
os carros, objetivando encontrar algum erro na documentação,
com o propósito de ganhar uma “gasosa”.57 Em suma, a crimina-
lização do Estado não era somente uma prerrogativa dos altos
cargos, mas até os barnabés dela participaram, e introduziu-se
na cultura quotidiana.

55 PEPETELA, 1985, p. 20; HEGEDÜS, 1988, p. 40-41.


56 PEPETELA, 2008a, p. 96; INAUGURADA, 19/08/2006; ANGOLA, 20-6-2001.
57 PEPETELA, 2008a, p. 39; Id., 1995, p. 60; BAYART, 1997a, p. 13. Obs: Gasosa nome dado à
pequena propina.

380
IntelectuaIs das áfrIcas

NOVO?! QUE NOVO?!

Com a opção do regime angolano por uma sociedade de mer-


cado e pluripartidária, muitas das práticas políticas do período do
partido único perseveraram. O Estado clientelista, patrimonialista
e personalista angolano era um sistema autorreprodutivo, capaz de
utilizar elementos da sua estrutura para se produzir a si a partir de
si mesmo. Aquelas práticas demonstravam que o Estado angolano
sofreu demandas, alterações e contradições variáveis ao longo da
história, mas que determinados conteúdos e direções desses pro-
cessos foram determinados pela própria cultura política de forma
a garantir a sua (re)produção e viabilidade.58
Pepetela teceu uma constante crítica à ineficiente administração
das empresas estatais no início da década de 1990, obrigando o Estado
a injetar-lhes constantemente subsídios “para evitar a falência”.59 Isso
faz-nos compreender que “a lógica do serviço de Estado” angolano
era “resolutamente particularista e personalizada – longe das nor-
mas burocráticas […] da maioria das sociedades ocidentais”.60 Seus
discursos elucidam as maneiras utilizadas por indivíduos, grupos ou
comunidades em gerir soluções e amealhar recursos de forma perso-
nalizada, verticalizada e arbitrária por meio de uma política e de uma
economia onde as regras formais são desrespeitadas, onde inexistem
adequados mecanismos de responsabilização, de prestação de contas e
de transparência. O exercício do poder político em Angola continuava
não emancipado do domínio das disputas localizadas e personaliza-
das. As situações examinadas pelo escritor levam-nos a inferir que o
Estado angolano não alcançara plenamente a institucionalização, só
existente com o surgimento de um serviço público com grande grau de
liberdade em relação às pressões de interesses particulares, havendo,
portanto, fragilidade das instituições estatais formais.61
58 ANTUNES, Gomes Catarina. De como o poder se produz: Angola e as suas transições. (Tese) Dou-
toradoemSociologia.FaculdadedeEconomia.UniversidadedeCoimbra.Coimbra,2009, p. 13- 4.
59 PEPETELA,1995, p. 30.
60 CHABAL, Patrick & DALOZ, Jean-Pascal. Africa works: disorder as political instrument. London:
The International African Institute / James Currey / Indiana University Press, 1999, p. 7, 33.
61 HODGES, Tony. Angola. Do Afro-Estalinismo ao Capitalismo Selvagem. Cascais: Principia, 2003,
p. 74; CHABAL&DALOZ, 1999, p. xix, 1, 4, 5; GABIZO & THIRIOT, 2009, p. 3; JOURDE,

381
IntelectuaIs das áfrIcas

A partir da leitura de obras, tais como O Cão e os Caluandas


(1985), A Geração da Utopia (1992), O Desejo de Kianda (1995) e Pre-
dadores (2005), percebemos que essa aparente desordem e o alto
grau de ineficiência governamental ou administrativa eram resul-
tados de cálculos racionais de interesse dos setores que ocupavam
o governo. Em vista disso, desordem não manifesta aqui irraciona-
lidade. Em geral, a ação política situava-se mais no personalizado,
no informal, no não codificado e no não policiado, revelando uma
condição que só oferecia oportunidades para aqueles que sabiam
como operar o sistema. Numa política de desordem, a habilidade
de limitar a incerteza é um recurso valioso. O conhecimento e o
controle da informação são críticos em sociedades constituídas
desordenadamente.62
O autoritarismo em vários Estados da África Subsaariana
permaneceu após a transição do partido único para o multipar-
tidarismo, ocorrida em geral entre o fim da década de 1970 e o
início da de 1990, porque a democratização plena foi fraudada
por elites autoritárias ao abrigo de eleições concorrenciais. Por
conseguinte, a aparente mudança deu origem a regimes pouco
democráticos, assistindo-se assim a reprodução do autoritarismo
pós-colonial. E, em Angola, não foi diferente. As obras O Desejo de
Kianda e Predadores expressam como essa mudança foi, em grande
parte, uma falácia, pois indiciam não haver em Angola uma concreta
democracia, ou seja, não existiam sinais de um autêntico exercício
de soberania do povo, nem distinção entre o governo e a oposição
com efetiva possibilidade de se alternarem no poder. Para haver
uma democracia, o sistema político teria de estar internamente
diferenciado em governo, o produtor de decisões executivas, e
oposição, que a ele se contrapõe, sendo “dois subsistemas, em
que um é o ambiente do outro”.63

2009, p. 43-4.
62 JOURDE, 2009, p. 44, . 47; CHABAL&DALOZ, 1999, p.xix, 1.
63 BAYART, Jean-François. Présentation. In: BAYART, Jean-François, ELLIS, Stephen; HIBOU,
Béatrice. La criminalisation de l’ État em Afrique. Bruxelas: Éditions Complexe, 1997, p. 21-2;
LUHMANN, 1999, p.131 apud ANTUNES, 2009, p. 16, ANTUNES, 2009, p. 18.

382
IntelectuaIs das áfrIcas

Apesar da transição para uma economia de mercado, iniciada


em 1985, e do abandono formal do marxismo-leninismo no Ter-
ceiro Congresso do MPLA, em 1991, as práticas patrimonialistas
eram tão fortes que persistiram.64 Logo após, essa transformação
foi ilustrada pelos personagens de O Desejo de Kianda, ao eviden-
ciarem a fragilidade dos ideais socialistas entre membros da classe
burocrática, da qual se devia esperar maior apego a esses valores.
Pepetela testemunhou, nesse novo período, a intensificação
do processo de apropriação, a preços irrisórios, dos bens e serviços
públicos pela burocracia para as suas empresas privadas, o apro-
veitamento dos conhecimentos adquiridos por esse estamento na
gestão da coisa pública para obter vantagens nos empreendimen-
tos particulares. Em sua opinião, grande parte da nova burguesia,
emergente em Angola na década de 1990, provinha dos antigos
burocratas do partido ou do Estado, apesar de alguns deles ini-
cialmente ainda terem pruridos em ser classificados como “capi-
talistas”. Agora, já não se via nenhuma incompatibilidade entre o
exercício de cargos no aparelho estatal e o empreendedorismo na
economia de mercado. Em suma, a acumulação inicial de capital,
realizada por esse germe de burguesia nacional, fez-se então pela
apropriação de parcelas do patrimônio estatal e do conhecimento
adquirido na administração pública.65
Ao contar, em Predadores, que, na carreata política do MPLA
para as eleições multipartidárias de setembro de 1992, havia maior
presença de carros estatais que privados, denunciava a continuida-
de da privatização do público, exemplificada na íntima confusão
entre o que pertencia a esse partido e ao Estado, mesmo sob o
regime multipartidário.66 Em vista disso, indiciava que o MPLA
prosseguia, mesmo sob o multipartidarismo, um Estado-partido
na prática.

64 WHEELER & PELISSIER, 2009, p. 383; MESSIANT, 2007, p. 97; HODGES, 2003, p. 83.
65 PEPETELA. O Desejo de Kianda. Lisboa, Dom Quixote, 1995, p. 20-1, 26, 23-5.
66 PEPETELA. Predadores. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2008, p. 15-16; GABIZO & THIRIOT,
2009, p. 24.

383
IntelectuaIs das áfrIcas

Desde o início da implantação do capitalismo em Angola,


Pepetela denunciava enormes expatriações ilegais de grandes
capitais, realizadas por setores da burguesia, inclusive, para para-
ísos fiscais, facilitada pelos altos escalões do Banco Nacional de
Angola. As saídas financeiras eram efetuadas por uma mistura de
adulteração de faturas comerciais, subornos e transferências dire-
tas por pessoas ricas, auxiliadas por bancários especialistas nesses
trâmites que, por sua vez, também enriqueciam como aqueles para
os quais prestavam serviço. Nesse sentido, nada mais fez Pepetela
que, literariamente, delatar essa evasão apontada por David Sogge,
como correspondente a 216% do PIB registrado de Angola, entre
1985-2004, constituindo um dos piores casos de hemorragia finan-
ceira da África Subsaariana. Assim, testemunhou, com os exemplos
“ficcionais”, o que aparece de forma desabrida no Indicador de
Percepções de Corrupção da ONG Transparency International, que
classifica os países em função dos níveis de corrupção percebidos
no setor público, por meio de inquéritos realizados com especialis-
tas e homens de negócios. Nesse índice, em 2010, Angola aparece
como um dos países mais corruptos da África, depois da Somália,
do antigo Sudão, do Chade e de Burundi.67
No período de transição para o capitalismo, Pepetela percebeu
que os vínculos clientelísticos desmoralizavam as autoridades do
quadro administrativo das empresas estatais remanescentes. Por
esse motivo, criou um personagem, um funcionário absenteísta em
seu trabalho, que intimidava o diretor de sua repartição para não
demiti-lo, porque sendo aquele marido de uma componente do
Comitê Central, e o diretor ligado a um ministro, também membro
desse organismo, poderia sua esposa pressionar o ministro por
qualquer atitude tomada pelo diretor contra o seu marido.68
O clientelismo não continuou apenas na esfera pública; ele
emergiu também nas empresas privadas entre patrões e empre-
gados, estando geralmente estruturado em torno de favores con-
67 PEPETELA. Predadores. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2008, p.30, 32, 35-6; SOGGE, 2009, p.
9; POESCHL & RIBEIRO, 2010, p. 4; TRANSPARENCY, 2010, p. 14
68 PEPETELA. O Desejo de Kianda. Lisboa, Dom Quixote, 1995, p. 30.

384
IntelectuaIs das áfrIcas

cedidos e de cumplicidades em malversações. Ante isso, Pepetela


permitiu que o protagonista de Predadores, Vladimiro Caposso,
pensasse que o personagem “José Matias era homem seu, [pois]
fora buscar à rua e ao desespero […] com medo de ir para a guerra”
– algo comum a todo jovem angolano então – tendo-o livrado “da
tropa” e lhe dado trabalho, envolvendo-o em negócios escusos.
Em vista disso, tinha certeza de que Matias não o trairia: caso o
incriminasse, Vladimiro acusá-lo-ia de cúmplice. Semelhantemente
a outro personagem, um funcionário do Banco Nacional de Angola,
que se enriquecia com as remessas ilegais para o exterior de seus
poderosos clientes, sabendo que, se algum mal ocorresse-lhe por
acobertar essas ações, esses o defenderiam “com unhas e dentes”.69
Ao conceber as artimanhas de Vladimiro Caposso, Pepetela
denunciava as infrações que setores de uma burguesia emergente,
ligada ao MPLA, cometiam porque se achavam “acima de qualquer
suspeita” para as divisões policiais do país, demonstrando um sen-
tido de impunidade que percorria vários estratos sociais ligados
ao poder. Assim, Caposso afirmava que, como político, tivera de
ter visibilidade, mas que, então, com “os negócios” preferia “andar
mais na sombra”. Essa obscuridade nas ações empresariais consti-
tuía uma metáfora para a permanência das práticas de corrupção.
A tolerância a esse tipo de crime explicava-se, quando tomamos
ciência de que, em 2007, um ano antes da publicação dessa obra,
a transparência orçamental de Angola era uma das mais baixas no
mundo. Havia a falta de perspicuidade por ser a proposta gover-
namental de orçamento não debatida publicamente, inexistindo,
portanto, qualquer reconciliação entre as rubricas da despesa orça-
mentada e a sua execução, assim como não eram feitos relatórios
de auditoria às prestações de contas.70
A Lei da Alta Autoridade Contra a Corrupção, de 1996, ainda
não fora levada à prática doze anos depois, quando Predadores fora
publicado, assim como o Tribunal de Contas de Angola, a instituição

69 PEPETELA. Predadores. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2008, p. 19, 37.


70 Idem, p. 20, 90; ISAKSEN; AMUNDSEN; WIIG, 2007, p. viii-ix

385
IntelectuaIs das áfrIcas

suprema de auditoria, só em 2001 começara a funcionar, mas, até


então, não produzira qualquer relatório de auditoria, investigação
ou recomendação que fosse de conhecimento público.71 Ora, se
em países em que existem leis e órgãos fiscalizadores, a corrupção
tenta sempre driblar e se reproduzir, imaginemos a impunidade
quando não há entidades estatais plenamente instauradas para
exercer a função fiscalizadora. A desorganização que Pepetela
assinalava possuía uma racionalidade: facilitar a impunidade dos
infratores.
O escritor ficcionou a ascensão de uma elite abastada parale-
lamente ao empobrecimento da maioria da população. De fato, a
desigualdade em Angola cresceu de forma assustadora: a despesa
mensal do decil mais rico das famílias era, em 1995, doze vezes
superior à dos mais pobres e, em 2000-2001, dados apontavam que
o decil mais rico gastava vinte e sete vezes mais que o mais pobre.
Percebendo qualitativamente essa e outras realidades, difundia a
sua indignação com o enriquecimento fácil e, muitas vezes, ilícito,
maldizendo grandes e pequenos indícios de ostentação desses
novos ricos: desde as suntuosas casas adquiridas, até o consumo
de caríssimos uísques. Ao descrever as joias do protagonista Ca-
posso – o cordão grosso e a cruz de “mais de seis centímetros de
comprimento” em ouro, comprados na Europa – criticava, portan-
to, não apenas a ostentação de quem estava a tentar incorporar
o habitus da alta classe, mas também a caricatura daquele que
não absorvera a real distinção peculiar a esse estrato social.72 Em
Predadores, espicaçava o “mau gosto” de um arrivista, pois o gosto
“é a expressão distintiva de uma posição privilegiada no espaço
social”, “que serve de base para se classificar a si mesmo e pelo
qual se é classificado”.73 Parodiava a elite angolana emergente
esforçando-se a qualquer preço para se diferenciar do populacho,
71 ISAKSEN, Jan, AMUNDSEN, Inge e WIIG, Arne. Orçamento, Estado e Povo. Processo de Orça-
mento, Sociedade Civil e Transparência em Angola. Bergen (Noruega): Chr. MichelsenInstitute,
2007 , p. viii e 50. .
72 PEPETELA. Predadores. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2008, p. 78.
73 BOURDIEU, Pierre. A Distinção: Crítica social do julgamento. São Paulo: Edusp; Porto Alegre:
Zouk, 2007, p. 56.

386
IntelectuaIs das áfrIcas

por isso, em seus restaurantes, deliciava-se com pratos interna-


cionais, recusando “os funjes, cabidelas ou kisakas da tradição”.74
Esse juízo de Pepetela não constituía uma acre opinião de um
intelectual acutilado, porque até o Conjunto Ngonguenha, rappers
de Luanda, ante a jactância dos ricos, assegurava que, simultane-
amente, “tem vontade de rir e de chorar”, pois a cada novo rico,
mais pobres surgirão.75

DESPEDIR PARA FICAR

Caro leitor, voltamos para nos despedir e concluir sobre al-


guns pontos mais significativos ventilados neste capítulo. Uma das
abordagens que seguimos foi demonstrar que a literatura é uma
fonte de saber crucial sobre o social e que um literato torna-se um
intelectual indispensável para entender determinados momentos
da sociedade e da política do país.
Pepetela é um douto preocupado, em toda a obra, com a
conformação que a nação angolana foi ou iria tomar, pois desde
criança frequentou círculos nacionalistas do país, assim como a
luta revolucionária pela libertação de sua terra marcou sua práxis
na juventude e na maturidade, deixando timbres indeléveis em
seu pensamento. Destarte, a sua literatura nasceu e permaneceu
sempre engajada em ideais anarquistas e socialistas, hibridizando,
em uma só pessoa, doutrinas irmãs, mas nem sempre concordes.
Pouco se fala que os seus textos possuem explicitamente uma
compulsão atenta para com o igualitarismo e uma diegese solidária
com os oprimidos.
As necessidades ideológicas e afetivas levaram-no a estar
presente nas esferas do poder da nascente nação, participando de
acontecimentos agônicos que fraturaram fraticidamente a pátria,

74 O funge é uma massa cozida feita de farinha de milho, enquanto cabidela significa um frango
cozido com o seu sangue. Na kisaka, usa-se de folha de mandioca refogada com dendê e amen-
doim.
75 PEPETELA. Predadores. Rio de Janeiro: Língua Geral, 2008a, p. 88, 92; HODGES, 2003, p. 65;
LANÇA, 2010.

387
IntelectuaIs das áfrIcas

como a Revolta Nitista de 1977, durante a qual estava no poder,


contra o qual essa insurgência voltara-se. Sobre sua atuação nesse
evento, teve de responder aos nitistas sobreviventes, nem que
fosse quase trinta anos depois de decorrido o episódio, sobre o
qual não parece ter muita vontade de discorrer. Esse fato constitui
um não dito neste capítulo, pois ele transvazaria em muito o seu
escopo e o limite de páginas a ele permitido. É uma indicação que
realizamos para que o leitor percorra um caminho de investigação.
E isso o fazemos cientes de que, desse modo, rompemos com as
boas regras para conclusões de textos científicos. Mas, assim,
estamos sendo, por outro lado, fiéis aos discursos, literário e his-
tórico, pois esses servem igualmente para denunciar as faltas e as
oclusões de sentido.
A convivência de Pepetela com o poder partidário foi-lhe
internamente difícil, mesmo que isso possa não ter vindo tão pu-
blica e constantemente à tona. Em todo caso, o afastamento da
organização partidária fez-lhe bem, fundamentalmente para sua
libido literária, expressa na grande produtividade questionadora
de livros, artigos e entrevistas.
Como um bom intelectual, possui um pensamento desesta-
bilizador dos dogmatismos, sempre preocupado com o cio entre
a teoria e a prática e atento as hiâncias entre o dito e o feito. Isso
se exacerba na observação do prosaico angolano, por meio da
qual ojerizou os oportunismos camaleônicos ambicionadores de
vantagens a quaisquer custos. O burocratismo sempre açulou a
sua crítica, na medida em que portador, ora de ineficiência, ora
de autoritarismo e mesmo de locupletação, mas, também, de uma
insolente impunidade. Seu socialismo fê-lo estar na atalaia de
defesa do bem público contra as apropriações ilícitas realizadas
pelos escusos interesses mormente das elites, mas, também, dos
homens ordinários.
Personagens e intrigas de alguns de seus livros expõem os li-
mites do processo de democratização e de como elites autoritárias

388
IntelectuaIs das áfrIcas

atravessam incólumes e solidamente alocadas em seus privilégios,


ao longo de diversos processos eleitorais, que aureolam de demo-
cráticos os senhores.
Suas análises fazem-nos perceber que mudam as ideologias e
mesmos os regimes, mas certas práticas pegajosamente persistem,
desafiando as temporalidades, eternizando-se nas permanências
de determinada cultura política. Tudo se transforma, mas, parado-
xalmente, “tudo como dantes no quartel de Abrantes”!
Em suma, caro leitor, que este capítulo estimule a ti a iniciar
ou a avançar nas leituras de um admirável contador de estórias, que
nos faz pensar a história de seu povo e de seu país e a estimular
comparativamente que pensemos a nossa que estamos alhures e,
às vezes, a distância. Boas leituras de Pepetela!

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395
IntelectuaIs das áfrIcas

AMÍLCAR CABRAL. CONSTRUÇÃO DA NAÇÃO


E MODERNIZAÇÃO DA CULTURA

Fábio Baqueiro Figueiredo1

No premiado filme Nha fala (Minha voz), o cineasta guineense


Flora Gomes faz atravessar a narrativa por dois personagens que,
continuamente e sem sucesso, vagam por Bissau carregando a
pesada cabeça de Amílcar Cabral esculpida em bronze, à procura
do lugar certo para colocá-la. A metáfora exprime exemplarmente
os dilemas que envolvem hoje, na Guiné-Bissau tanto quanto em
Cabo Verde, avaliar o legado histórico e a significância política
contemporânea desse intelectual e nacionalista que, ao ser mor-
to às vésperas de realizar a missão que se autoatribuíra décadas
antes, a de obter a independência para a formação binacional que
unia os dois países, transitou para o estatuto de herói civilizador
e de pai de duas nações – dessa maneira abrindo, até quase ao
infinito, as possibilidades de apropriação e reapropriação, por uma
enorme gama de agendas e agentes políticos, de seus discursos,
textos e ditos.
De um lado, os herdeiros oficiais de Amílcar Cabral promo-
vem celebrações circunspectas de sua memória, lamentando, de
passagem, o desconhecimento das novas gerações sobre a his-
tória heroica da libertação de que se reconhecem partícipes. De
outro, novos atores sociais, tanto fora quanto dentro dos circuitos
1 Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira. Doutor em Estudos Étnicos
e Africanos pela Universidade Federal da Bahia. Uma versão anterior desse texto, originalmente
parte de minha tese de doutorado, foi apresentada no III Simpósio Internacional Amílcar Cabral
na Cidade da Praia, em janeiro de 2013.

397
IntelectuaIs das áfrIcas

político-partidários, denunciam todo tipo de desvios, traições e


negações de seus feitos, seus projetos de nação e sua visão do fu-
turo para as sociedades independentes da Guiné-Bissau e de Cabo
Verde. Na maior parte das vezes, essas disputas se orientam para
variações táticas ou estratégicas de um conjunto de agendas que,
no geral, se afiguram como emancipacionistas e voltadas para um
processo modernizador o qual assume o âmbito do nacional como
enquadramento identitário. Mas a figura quase mitológica de Cabral
não deixa de estar presente também nos movimentos discursivos
que buscam promover especificidades étnicas do passado mais
ou menos remoto, as quais por vezes têm servido, especialmente
na Guiné, como plataforma política para um conjunto variado de
pretendentes ao controle do Estado, ou de setores dele.
Amílcar Cabral, o homem, nasceu em Bafatá, leste da Guiné-
Bissau, em 1924, filho de dois cabo-verdianos.2 Seu pai, Juvenal
Cabral, era um professor primário que emigrara para a Guiné em
busca de trabalho em 1911, um percurso razoavelmente corriquei-
ro para cabo-verdianos com algum nível de instrução. Em termos
administrativos, Cabo Verde estava já bem integrado ao império
português e dispunha de um Seminário Católico em São Nicolau
que também dispensava o ensino liceal a quem não tivesse vocação
para o sacerdócio, por anuidades acessíveis às classes remediadas
do arquipélago. Na Guiné, por outro lado, os portugueses ainda
estavam lutando para consolidar a dominação territorial para além
2 Há três biografias de Amílcar Cabral, de onde foram retirados os dados apresentados aqui.
A primeira foi escrita pelo intelectual e nacionalista angolano Mário Pinto de Andrade (AN-
DRADE, Mário Pinto de, Amílcar Cabral: essai de biographie historique, Paris: François Maspero,
1980); a segunda pelo acadêmico britânico Patrick Chabal (CHABAL, Patrick, Amilcar Cabral:
revolutionary leadership and people’s war, London: C. Hurst, 2002 [1983]); e a mais recente pelo
jornalista angolano António Tomás (TOMÁS, António, O fazedor de utopias: uma biografia de
Amílcar Cabral, 2. ed. Lisboa: Tinta-da-China, 2008 [2007]) que tem o mérito de ser a primeira
disponível em português e de atentar para a produção acumulada nos últimos trinta anos. As
hipóteses sobre o assassinato de Cabral foram inventariadas e analisadas pelo jornalista português
José Pedro Castanheira (CASTANHEIRA, José Pedro, Quem mandou matar Amílcar Cabral?, Lisboa:
Relógio d’Água, 1995). Não seria possível enumerar o conjunto disperso de referências a Cabral
e depoimentos publicados por pessoas envolvidas nas independências das colônias portuguesas,
mas vale a pena destacar as memórias de Aristides Pereira (PEREIRA, Aristides, Uma luta, um
partido, dois países: Guiné-Bissau — Cabo Verde, Lisboa: Notícias, 2002; LOPES, José Vicente,
Aristides Pereira: minha vida nossa história, Praia: Spleen, 2012). Há diversos documentos pro-
duzidos e acumulados pelo próprio Amílcar Cabral disponíveis em Portugal, Casa Comum (PT
CC), Arquivo Amílcar Cabral.

398
IntelectuaIs das áfrIcas

das praças costeiras que controlavam há séculos, enfrentando a


resistência militar prolongada de vários grupos nativos. As “campa-
nhas de pacificação”, para usar os termos da historiografia colonial,
duraram de 1882 e 1935.3 A inexistência de um liceu na Guiné até
a década de 1950 foi o principal motivo pelo qual a implantação
da administração colonial portuguesa no interior dependeu de
mão de obra cabo-verdiana, que ocupava muitos dos postos ad-
ministrativos e também os escalões intermediários das empresas
privadas envolvidas na economia colonial.
Também Amílcar Cabral deveu sua formação inicial às estru-
turas escolares instaladas em Cabo Verde, para onde emigrou em
1932, junto com a família. Na Guiné, a maioria da população era
encaminhada para a escola indígena, que impunha aos africanos um
ensino profissionalizante de no máximo quatro anos, chamado de
“rudimentar”. Quem tivesse a sorte de ser considerado “civilizado”
pela administração poderia obter uma matrícula na escola primária.
Em Cabo Verde, ao contrário, todos podiam frequentar a escola
primária oficial, e os mais bem avaliados enveredavam pelo ensino
liceal. Amílcar Cabral cumpriu essas primeiras etapas de sua vida
escolar no arquipélago. Em 1945, após terminar o sétimo ano do
liceu, obteve, por concurso, uma bolsa para o Instituto Superior de
Agronomia em Lisboa. Cabral era o único negro de sua turma de
220 ingressantes, mas não demorou para que encontrasse outros
africanos cursando o ensino superior na metrópole, vindos prin-
cipalmente de Angola, mas também de Cabo Verde e São Tomé, e
mais raramente de Moçambique. Brancos, negros e mestiços, alguns
vinham com recursos das próprias famílias (como Mário Pinto de
Andrade), outros financiados por bolsas de estudo de organismos
coloniais (como o próprio Cabral) ou de missões religiosas (como
Agostinho Neto).
Esse encontro dava-se num conjunto de espaços que estavam
sendo abertos a fórceps na conservadora sociedade metropolitana

3 PÉLISSIER, René, História da Guiné: portugueses e africanos na Senegâmbia (1841-1936), Lisboa:


Estampa, 1989.

399
IntelectuaIs das áfrIcas

como resultado da vitória aliada na II Guerra Mundial e da gene-


ralização internacional de um consenso nacional-democrático.
Inicialmente, no Movimento de Unidade Democrática (MUD), ani-
mado por comunistas, mas reunindo gente de um amplo espectro
político (liberais, católicos progressistas, socialistas) e expressan-
do demandas sociais há muito reprimidas dos setores urbanos
médios portugueses. A seção juvenil do movimento (MUD-J) era
especialmente ativa nas universidades, e atraiu para sua órbita
muitos dos estudantes africanos, especialmente cônscios do sig-
nificado prático das limitações impostas pela ditadura salazarista
às colônias africanas. Depois, na Casa dos Estudantes do Império
(CEI), fundada em 1946 por estudantes angolanos ligados por
laços familiares à administração colonial superior, a partir de uma
Casa dos Estudantes de Angola estabelecida dois anos antes. A
CEI oferecia acomodação e alimentação a um certo número de
estudantes, mas muitos outros passavam por ali diariamente, con-
formando muito rapidamente um ponto focal de encontros, trocas
de informações e debates entre estudantes de vários quadrantes
do “ultramar”. A orientação inicial, oficialista, não conseguiu se
manter à frente dos destinos da Casa, derrotada logo na primeira
eleição pelos estudantes com passagem pelo MUD-J, numa chapa
que tinha o angolano Acácio Cruz à cabeça e Amílcar Cabral como
vice-presidente, e que reforçou o papel da instituição como espaço
dinamizador de debates sobre a realidade colonial. Finalmente, o
que ficou conhecido como Centro de Estudos Africanos mas que,
num registro menos preocupado com institucionalizar a história
do nacionalismo, eram antes as “tertúlias em casa da Tia Andreza”.
Esses encontros informais reuniam um núcleo permanente, sob a
liderança intelectual de Mário Pinto de Andrade e Amílcar Cabral,
e uma assistência flutuante mas interessada em discussões que
não podiam ser travadas de forma pública, mas referenciavam os
diversos movimentos culturais e políticos negros que vinham se
estruturando como uma rede polimorfa nos vários espaços atlânti-
cos, da Renascença do Harlem à négritude francófona, e induziam

400
IntelectuaIs das áfrIcas

inelutavelmente em direção à ideia da independência.4


O período formativo em Lisboa ligou de forma estreita Amíl-
car Cabral a alguns dos futuros líderes nacionalistas de Angola,
Moçambique e São Tomé, e por esta via, à história comum do
desenvolvimento do nacionalismo nas colônias portuguesas. Ao
mesmo tempo, significou a incorporação em seu pensamento de
uma orientação nacionalista explícita e de um conjunto difuso de
ideias mestras que circulavam por Américas, Europa e África através
das redes pan-africanistas. Essas ideias, que conformaram parte
das raízes intelectuais do nacionalismo africano como um todo,
incluíam uma concepção da África e dos africanos calcada na noção
de raça como elemento civilizatório e também muito influenciada
pela etnografia diletante “bem intencionada” de gente como Léo
Frobenius, Marcel Griaule e Maurice Delafosse. Ao mesmo tempo,
a atenção a certas categorias marxistas, como classe e regime de
propriedade da terra, muito raramente mobilizadas pelo conjunto
dos nacionalistas africanos, foram uma herança que tanto Cabral
quanto seus colegas de criptonacionalismo carregaram de sua
aproximação com o MUD-J e os comunistas portugueses.5
Entre fins da década de 1940 e o ano de 1960, entretanto, as
histórias individuais dos membros desse núcleo intelectual e po-
lítico de Lisboa se separam. Espalhados pelo mundo, por vontade
própria ou por imposição da repressão estatal, manterão uma in-
tensa correspondência e se agruparão no Movimento Anticolonial
(MAC), organização com escassos resultados práticos. Em janeiro
de 1960, passarão à criação efetiva de movimentos nacionalis-
tas em cada uma das colônias, articulados por uma organização
unitária – inicialmente, a Frente Revolucionária Africana para a
Independência Nacional (FRAIN), logo substituída pela Conferência
4 MATEUS, Dalila Cabrita, A luta pela independência: a formação das elites fundadoras da FRELIMO,
MPLA e PAIGC, Mem Martins: Inquérito, 1999. Sobre a fundação da CEI, há uma diversos e
conflitantes relatos. Um bom ponto de partida para a pesquisa é FARIA, António, Linha estreita
da liberdade: a Casa dos Estudantes do Império, Lisboa: Colibri, 1997.
5 MATEUS, A luta pela independência; FIGUEIREDO, Fábio Baqueiro, Vozes da África - conteúdos
e continentes: raízes intelectuais do nacionalismo africano das independências, in: OLIVEIRA,
Gledson Ribeiro de; RAMOS, Jeannette Filomeno Pouchain; OKOUDOWA, Bruno (Orgs.),
Cá e acolá: experiências e debates multiculturais, Fortaleza: EdUFC, 2013, p. 178–201.

401
IntelectuaIs das áfrIcas

das Organizações Nacionalistas das Colônias Portuguesas (CONCP).


Nesse meio tempo, Amílcar Cabral levou uma vida dupla: na pena
do revolucionário Abel Djassi, publicava duras críticas ao governo
ditatorial português e sua recusa em negociar a independência de
suas colônias nos órgãos de esquerda da imprensa internacional;
na pele do engenheiro agrônomo Amílcar Cabral, foi nomeado
Diretor Adjunto dos Serviços Agrícolas e Florestais da Guiné.
Nesta condição, realizou em 1953 um minucioso recenseamento
da produção agrícola do país e de seus diversos grupos populacio-
nais. Voltando a Lisboa em 1955, trabalhou num departamento de
defesa fitossanitária e prestou serviços para diversas companhias
privadas em estudos agronômicos na Guiné e em Angola. Suas
estadias na Guiné lhe permitiram conhecer finalmente o país onde
nascera e de onde havia saído muito criança. Em Bissau, congre-
gou em torno de si um grupo formado principalmente por uma
minoria ativa de funcionários cabo-verdianos simpáticos à ideia
da independência, buscando conectar-se também aos guineenses
“assimilados” politicamente ativos, na tentativa de construir uma
plataforma política comum; no interior, teve contato com a realida-
de da maioria camponesa da população, investigou suas demandas
comuns e tomou nota de suas especificidades sociais, exercitando
maneiras de fazer entender no chão do país a agenda nacionalista
que propunha encampar.6
Em janeiro de 1960, Cabral abandonou a cobertura que seu
trabalho como agrônomo propiciava e viajou a Tunes para participar
da II Conferência Pan-africana, reunindo-se mais uma vez com seus
antigos colegas de Lisboa. Era um movimento que vinha sendo pla-
nejado desde o ano anterior pelo MAC e que visava abrir escritórios
oficiais das organizações nacionalistas nos países africanos já inde-
pendentes. O primeiro ponto de apoio, aproveitado inicialmente
pelos angolanos mas logo a seguir por cabo-verdianos e guineenses,
foi Conacri, na ex-colônia francesa da Guiné. A essa altura, Cabral
já se havia imposto como líder da organização nacionalista que se
6 TOMÁS, O fazedor de utopias, p. 83–112.

402
IntelectuaIs das áfrIcas

ia montando – a qual, conforme sua orientação e contando com


a caução do nacionalista guineense Rafael Barbosa, seria formada
indistintamente por guineenses e cabo-verdianos, e teria como
objetivo a obtenção da independência conjunta dos dois territórios.
A luta armada, entretanto, conduzida pelo Partido Africano para a
Independência da Guiné e de Cabo Verde (PAIGC), desenvolveu-se
exclusivamente no território da Guiné-Bissau, a partir de bases na
vizinha Guiné-Conacri, iniciando-se em 1963.7 A 24 de setembro
de 1973, de posse da maior parte do território guineense, o PAIGC
declarou unilateralmente a independência, acelerando com isso a
queda da ditadura portuguesa. Amílcar Cabral, entretanto, não viu
esse dia para o qual trabalhara boa parte da vida.8 Fora assassinado
em 20 de janeiro daquele ano, em Conacri, por guerrilheiros de seu
próprio partido, em circunstâncias nunca totalmente esclarecidas.
A versão oficial aponta para a polícia secreta portuguesa e para o
governador da Guiné, mais tarde presidente de Portugal, o gene-
ral António de Spínola, responsáveis por uma série de atentados
anteriores. Outros afirmam que tudo não passou de um acerto
de contas entre guineenses e cabo-verdianos no seio do partido,
7 Aparentemente, chegou a haver um plano de implantação da guerrilha em Cabo Verde, mas este
nunca se concretizou. As características geográficas não ajudavam: a pequena dimensão de cada
uma das ilhas e a distância entre elas tornavam a movimentação de contingentes de guerrilheiros
muito facilmente identificável pelas forças armadas portuguesas, e a consolidação de “zonas
libertadas” articuladas entre si, muito improvável. Além disso, a distância entre o arquipélago e
o continente dificultava enormemente o reabastecimento de material bélico e outros recursos,
que dependeriam sempre de arriscadas operações de desembarque a partir das bases na Guiné-
Conacri.
8 Cabo Verde obteve a independência em 5 de julho de 1975; estabelecendo uma união binacio-
nal com a Guiné-Bissau que durou até 14 de novembro de 1980. Sobre o processo mais amplo
da luta de libertação e da conquista da independência na Guiné-Bissau, ver LOPES, Carlos,
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étnica (1959-1994), Doutorado em Ciências Sociais, Universidade Federal da Bahia, Salvador,
2013. Sobre o processo de descolonização do ponto de vista português, ver MACQUEEN, Nor-
rie, A descolonização da África portuguesa: a revolução metropolitana e a dissolução do império,
Mem Martins: Inquérito, 1998; cf. PINTO, António Costa, O fim do Império português: a cena
internacional, a guerra colonial, e a descolonização, 1961-1975, Lisboa: Horizonte, 2001.

403
IntelectuaIs das áfrIcas

derivado das diferenças muito marcantes de acesso aos postos


superiores que os dois grupos tinham, por conta da formação es-
colar. Outros ainda especulam sobre a participação do presidente
da Guiné-Conacri, Ahmed Sékou Touré, e seu suposto projeto de
anexar a Guiné-Bissau ao território de seu próprio país.9
Durante sua carreira de nacionalista em tempo integral, Amílcar
Cabral permaneceu inconteste como o líder intelectual do processo
político e militar guineense, e como referência para o pensamento
nacionalista africano como um todo.10 Sobre muitos dos problemas
candentes enfrentados pelos jovens países africanos no processo
de obtenção da independência e também na estruturação de um
Estado que já não fosse apenas instrumento de uma dominação
econômica e política externa, Cabral deu uma contribuição teórica
original e, na maior parte das vezes, mais coerente e estruturada
que outros intelectuais africanos diretamente envolvidos na polí-
tica. Sem desmerecer sua argúcia intelectual, é preciso notar que
ele tinha a vantagem de poder refletir a posteriori sobre situações
concretas experimentadas no imediato pós-independência pelos
demais países africanos, a maioria dos quais obteve o autogoverno
entre 1958 e 1965. Nesse sentido, os conteúdos empíricos dos
dilemas e os resultados sociais e econômicos das muitas escolhas
difíceis que tiveram de ser tomadas nesses anos pelos líderes
nacionalistas africanos puderam ser observados com contornos
mais nítidos.
Como se vê, a tarefa de apresentar a contribuição intelectual
de alguém como Amílcar Cabral é um passeio através de um campo

9 CASTANHEIRA, Quem mandou matar Amílcar Cabral?; TOMÁS, O fazedor de utopias, p. 265–285.
10 Nos meios acadêmicos, o reconhecimento da importância do pensamento de Cabral no contexto
do nacionalismo africano ocorreu, principalmente, após seu desaparecimento. No prestigioso
Journal of Modern African Studies, por exemplo, apenas um trabalho foi publicado enquanto Cabral
vivia: CHILCOTE, Ronald H., The political thought of Amílcar Cabral, The Journal of Modern
African Studies, v. 6, n. 3, p. 373–388, 1968. O artigo, aliás, começa por apresentá-lo como “um
intelectual revolucionário pouco conhecido”. Após sua morte, o interesse parece ter-se ampliado
significativamente. Ver BLACKEY, Robert, Fanon and Cabral: a contrast in theories of revolution
for Africa, The Journal of Modern African Studies, v. 12, n. 2, p. 191–209, 1974; BIENEN, Henry,
State and revolution: the work of Amílcar Cabral, The Journal of Modern African Studies, v. 15,
n. 4, p. 555–568, 1977; e CHABAL, Patrick, The social and political thought of Amílcar Cabral:
a reassessment, The Journal of Modern African Studies, v. 19, n. 1, p. 31–56, 1981.

404
IntelectuaIs das áfrIcas

minado. Da mesma forma, qualquer tentativa de esgotar as relações


entre sua vida e sua obra, ou de abordar a totalidade do seu pensa-
mento em relação à construção da nação e do Estado na situação
colonial africana, revela-se uma tarefa excessiva e provavelmente
pretensiosa em excesso. Este capítulo proporá um percurso ana-
lítico mais modesto, embora não menos relevante. Interessa aqui
analisar o pensamento de Amílcar Cabral em relação à etnicidade
e à diversidade étnica no interior das fronteiras herdadas da colo-
nização na África, especificamente no que se refere à Guiné-Bissau.
Nesse percurso, considerações tangenciais sobre o significado da
raça e da classe para a construção da nação na África fatalmente
incidirão sobre a análise.
Essa escolha não é fortuita, obviamente. O “problema do tri-
balismo”, como ficou conhecido nos manuais de Ciência Política
e de Sociologia do Desenvolvimento das décadas de 1960 a 1980,
era um dos mais difíceis de equacionar no contexto africano das
independências. Em termos teóricos, partia-se do pressuposto que
a diversidade étnica encontrada dentro das fronteiras dos países
saídos da colonização era, em si, um obstáculo à implantação de
um Estado racional-democrático, uma vez que as etnias, suposta-
mente, não apenas odiavam-se atavicamente umas às outras como
nutriam internamente valores incompatíveis com a instituição da
modernidade.11 Essa concepção teórica estava ancorada numa
filosofia política eurocêntrica e evolucionista, segundo a qual a
etnia era o substituto incompleto e insuficiente da nação, conce-

11 Um exemplo entre muitos: “as grandes unidades étnicas estão unidas por características culturais
que também as distinguem nitidamente de grupos vizinhos. (...) O exclusivismo étnico proporciona
uma base prévia para movimentos políticos separatistas. (…) Ademais, torna-se difícil estimular
lealdades étnicas sem implicar a aceitação de valores tribais como o nepotismo. A eficiência de
qualquer organização moderna tende a ser debilitada se as colocações são atribuídas com base
na afiliação étnica em vez da capacidade” LLOYD, Peter Cutt, Africa in social change: changing
traditional societies in the modern world, Harmondsworth: Penguin, 1967, p. 302. Questionamen-
tos sobre a relação mecânica entre características culturais, etnicidade e comportamento político
começaram a surgir ainda na década de 1960, mas demoraram a ser ouvidos pelo público mais
amplo: MERCIER, Paul, On the meaning of “tribalism” in Black Africa, in: VAN DEN BERGHE,
Pierre L. (Org.), Africa: social problems of change and conflict, San Francisco: Chandler, 1965,
p. 483–501; APTHORPE, Raymond, Does Tribalism really matter?, Transition, n. 37, p. 18–22,
1968; MAFEJE, Archie, The ideology of “tribalism”, The Journal of Modern African Studies,
v. 9, n. 2, p. 253–261, 1971.

405
IntelectuaIs das áfrIcas

bida segundo os modelos da Europa ocidental e valorizada como


o objetivo último da história humana.12
Mas ocorre que, em termos identitários, a “tribo” era, para a
maior parte dos nacionalistas africanos, o locus de uma tradição
continental cujo desenvolvimento civilizacional havia sido inter-
rompido pela dominação europeia e agora deveria ser retomado.
De uma forma muito geral, o nacionalismo africano foi fortemente
marcado pela “tese comunitária”, a qual, baseando-se no corpus
etnográfico europeu, afirmava como os fundamentos axiológicos da
civilização negro-africana valores como um humanismo coletivista
que não admitia o individualismo. A “comunidade” em que esses
valores teriam sido gestados e vivenciados ao longo de milhares
de anos era, segundo essa concepção, a tribo.13
Por outro lado, em termos propriamente políticos, a tribo era
uma fonte inesgotável de problemas práticos. Projetos nacionais
foram desde o início questionados por poderes regionais muitas
vezes vinculados às “autoridades tradicionais” – quer fossem as
herdeiras das classes dominantes pré-coloniais, mantidas no âmbito
de regimes de “associação” ou “dominação indireta”, substitutas
subservientes impostas pela administração colonial quando as ve-
lhas classes dominantes eram por demais recalcitrantes, ou mesmo
invenções de administradores especialmente conscienciosos de
12 Para uma crítica teórica abrangente, ver CHATTERJEE, Partha, Nationalist thought and the colonial
world: a derivative discourse?, 2. ed. Minneapolis: University of Minnesota, 1995, cap. 1–2.
13 Um dos exemplos mais bem acabados é o conjunto difuso de proposições a que o nacionalista
e intelectual senegalês Léopold Senghor batizou de “socialismo africano”, o núcleo das quais
pode ser lido em SENGHOR, Léopold Sédar, O caminho africano do socialismo, in: Um cami-
nho do socialismo, Rio de Janeiro, São Paulo: Record, 1965, p. 78–112. Para abordagens críticas
contemporâneas: CHARLES, Bernard, Le socialisme africain: mythes et réalités, Revue Française
de Science Politique, v. 15, n. 5, p. 856–884, 1965; SKURNIK, Walter A. E., Léopold Sédar
Senghor and African Socialism, The Journal of Modern African Studies, v. 3, n. 3, p. 349–369,
1965; SPRINZAK, Ehud, African traditional Socialism — a semantic analysis of political ideology,
The Journal of Modern African Studies, v. 11, n. 4, p. 629–647, 1973. Reavaliações teóricas mais
recentes, preocupadas com a incidência de pressupostos sobre etnia e raça para a construção do
conhecimento e para a imaginação política africana foram encampadas por AMSELLE, Jean-Loup;
M’BOKOLO, Elikia (Orgs.), Au coeur de l’ethnie: ethnies, tribalisme et Etat em Afrique, Paris: La
Découverte, 1985; MUDIMBE, Valentin Y., The invention of Africa: gnosis, philosophy, and the
order of knowledge, Bloomington: Indiana University, 1988; APPIAH, Kwame Anthony, Na casa
de meu pai: a África na Filosofia da Cultura, Rio de Janeiro: Contraponto, 1997; e MBEMBE,
Achille, As formas africanas de auto-inscrição, Estudos Afro-Asiáticos, v. 23, n. 1, p. 171–209, 2001,
entre outros.

406
IntelectuaIs das áfrIcas

fazer coincidir a teoria de África que haviam aprendido na escola


colonial e a realidade do terreno.14 Esses interesses regionais, que
apelavam para a etnia como plataforma de mobilização política, fo-
ram exaustivamente aproveitados pelas antigas potências coloniais
como forma tanto de retardar a independência quanto de garantir
a prevalência de seus interesses econômicos e estratégicos no novo
regime em processo de constituição. A crise do Congo, desatava
imediatamente após a independência, demonstrou cabalmente aos
nacionalistas africanos a absoluta falta de escrúpulos das potências
ocidentais em promover secessões de províncias, intervenções
militares estrangeiras, golpes de Estado e assassinatos políticos,
bem como a facilidade com que os interesses regionais em cada
território podiam embarcar nesse tipo de aventura.15 A partir daí,
ironicamente, a tese comunitária foi mais e mais reforçada. Os
líderes africanos tenderam a lançar mão da tribo do passado para
colocar em cheque a tribo do presente – referendando a necessi-
dade existencial de uma união de toda a sociedade, corporificada
no partido governante, e reduzindo cada vez mais os espaços para
o dissenso político, até a implantação do regime de partido único,
que se tornou em pouco tempo a forma preferencial de organização
política em todo o continente.16
Em virtude do processo de sacralização experimentado pela
figura de Amílcar Cabral, tornou-se comum atribuir retrospecti-
vamente a ele a defesa de um multiculturalismo estrito e da pre-
servação da diversidade cultural étnica enquanto tal. A leitura de
14 AFIGBO, Adiele Eberechukuwa, Repercussões sociais da dominação colonial: novas estruturas
sociais, in: África sob dominação colonial: 1880-1935, 2. Brasília: Unesco, 2010, p. 567–589;
BETTS, Raymond F., A dominação europeia: métodos e instituições, in: BOAHEN, Albert
Adu (Org.), A África sob dominação colonial: 1880-1935, 2. ed. rev. Brasília: UNESCO, 2010,
p. 353–375; AMSELLE; M’BOKOLO (Orgs.), Au coeur de l’ethnie; ver ainda STANILAND,
Martin, The rhetoric of centre-periphery relations, The Journal of Modern African Studies, v. 6, n. 4,
p. 617–636, 1968.
15 GIBBS, David N., The United Nations, international peacekeeping and the question of “impartia-
lity”: revisiting the Congo operation of 1960, The Journal of Modern African Studies, v. 38, n. 3,
p. 359–382, 2000; NWAUBANI, Ebere, Eisenhower, Nkrumah and the Congo Crisis, Journal
of Contemporary History, v. 36, n. 4, p. 599–622, 2001; WITTE, Ludo de, The assassination of
Lumumba, 2. ed. New York: Verso, 2002.
16 SILVEIRA, Onésimo. África ao sul do Sahara: sistemas de partidos e ideologias de socialismos,
Lisboa: África Debate, 2004; ver ainda BENOT, Yves, Ideologias das independências africanas,
Luanda: INALD, 1981.

407
IntelectuaIs das áfrIcas

seus próprios textos não permite referendar essa posição. Como


veremos, Cabral estava mais próximo do conjunto do nacionalis-
mo africano do que se acredita hoje em termos das orientações
fundamentais da tarefa intelectual e política que tinha diante de
si – obviamente, o nacionalismo africano não era um conjunto
monolítico, e Cabral tomou posições específicas, muitas vezes
minoritárias, sobre uma série de debates que tinham implicações
políticas práticas para a luta de libertação na Guiné-Bissau, para
o sistema interafricano e para a relação da África com o resto
do mundo. Um desses diferendos recai precisamente sobre a
relevância da classe nas sociedades africanas do passado e do
presente, e de sua relação com a etnicidade e suas estruturas
políticas “tradicionais”: o pensamento de Cabral apresenta uma
discordância com alguns dos pressupostos da tese comunitária,
sem abandonar entretanto um certo evolucionismo implícito no
projeto modernizador que embasava o nacionalismo africano
como um todo – não obstante as onipresentes referências à
tradição.
É preciso dizer desde já que a análise que será desenvolvida
a seguir não tem a pretensão de cotejar o pensamento de Cabral
com a realidade da luta pela independência na Guiné ou em Cabo
Verde. Longe de querer avaliar o quanto as análises que Cabral
desenvolveu eram mais ou menos adequadas à realidade que ele
enfrentava, interessa observar as formas pelas quais ele mobili-
zava a noção de etnia: o que acreditava que uma etnia fosse, de
que maneira se referia a características percebidas como étnicas,
e como esperava modificar essas características, em favor de uma
consciência de unidade nacional. Em outras palavras, a preocu-
pação aqui se resumirá a analisar, no nível do discurso, a maneira
pela qual Cabral entendia a etnicidade dentro das fronteiras do
futuro Estado nacional na África e suas implicações para o projeto
nacionalista.

408
IntelectuaIs das áfrIcas

FIGURAÇÕES E DESFIGURAÇÕES DA ETNICIDADE NA GUINÉ-BISSAU

Antes de prosseguir, cabe uma observação sobre as fontes. Boa


parte do material produzido por Cabral durante a luta de libertação
foi publicado logo após o fim da ditadura portuguesa, por iniciativa
do Partido Africano da Independência da Guiné e de Cabo Verde
(PAIGC), numa compilação em dois volumes lançada em 1974. Em
1977, surgiu uma nova obra em dois volumes, organizada por Mário
Pinto de Andrade, incluindo materiais produzidos na adolescência
de Cabral e durante seus anos como engenheiro agrônomo. A partir
de 1983, diversos textos foram novamente publicados em pequenos
fascículos, pelo PAIGC, na forma de uma coleção intitulada Cabral
ka muri (“Cabral não morreu”).17 Esses materiais contêm docu-
mentos e relatórios do partido, além de discursos e palestras — a
maior parte dos quais era dirigida a uma audiência escolarizada e
frequentemente estrangeira. Mas há, também, situações em que
Cabral falava para seus próprios correligionários. Nesses casos,
ele era extremamente didático e usava uma linguagem bastante
coloquial, evitando o jargão das Ciências Sociais que mobilizava
em outras ocasiões; mas, ao mesmo tempo, era menos cuidadoso
em esconder os problemas vividos pelo PAIGC, revelando mais das
questões internas ao partido. Em textos dirigidos a um público
acadêmico, por exemplo em uma conferência a ser lida em uma
reunião da Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ci-
ência e a Cultura (Unesco), pode-se perceber que Cabral procurava
elaborar seus argumentos de maneira mais refinada e aprofundada,
retomando temas enunciados anteriormente para desenvolvê-los
de forma mais cuidadosa. E, embora seja necessário lembrar que
esses textos não compunham um sistema filosófico inerentemente
coerente, mas eram os instrumentos da ação política de um líder
17 CABRAL, Amílcar, Textos Amílcar Cabral, Lisboa: Nova Aurora, 1974; Obras escolhidas de Amíl-
car Cabral, Lisboa: Seara Nova, 1977; Cabral ka muri, Portugal: Departamento de Informação,
Propaganda e Cultura do Comité Central do PAIGC, 1983. Parte dos originais utilizados por
Mário Pinto de Andrade para preparar a coletânea publicada em 1977 (a única a incluir textos
da juventude e alguns dos frutos de seu trabalho como agrônomo) estão disponíveis em PT CC,
Arquivo Mário Pinto de Andrade, Lutas de Libertação, Investigação e Textos, Amílcar Cabral,
Textos de Amílcar Cabral.

409
IntelectuaIs das áfrIcas

nacionalista (e portanto sujeitos às conveniências do momento


e sobredeterminados por objetivos táticos variáveis), é possível
perceber no conjunto um esforço de teorização razoavelmente
estruturado, que busca a construção de modelos gerais de cons-
trução do Estado e da nação na África baseados na análise empírica
e nos esforços prévios, teóricos e práticos, de outros intelectuais
e nacionalistas.
Nesses conjuntos de textos, mas especialmente nos relatórios
anuais do PAIGC, podem ser identificadas três técnicas discursivas
a que Cabral recorre sistematicamente para enunciar e ultrapas-
sar o “prolema étnico” no âmbito do movimento de libertação. A
proposta, aqui, é analisar essas técnicas e tentar seguir o rastro de
suas implicações teóricas.
A primeira técnica é o uso extensivo do plural para se referir
aos habitantes do território da Guiné. A Proclamação da Acção Direta
do PAIGC, anunciada em Conacri, em 1961, é um ótimo exemplo:

CONSIDERANDO a firme vontade dos nossos povos de se


libertarem do jugo colonial, quaisquer que sejam os meios
necessários;
CONSIDERANDO que esta libertação deve ser realizada
urgentemente, e que os nossos povos estão prontos a
realizá-la;
CONSIDERANDO as condições particularmente difíceis que
defrontam os nossos povos na luta contra o colonialismo
português (...)
O PARTIDO AFRICANO DA INDEPENDÊNCIA (…)
REAFIRMA a vontade dos nossos povos de procurar a todo
o momento, por via de negociação, uma solução pacífica
do conflito que os opõe ao governo português, de acordo
com o seu direito inalienável à autodeterminação e à in-
dependência nacional.18
18 CABRAL, Obras escolhidas, v. 2, p. 35–36. Apesar de esta proclamação ter sido feita em agosto
de 1961, a guerra na Guiné-Bissau só começaria um ano e meio mais tarde, em 23 de janeiro de
1963, com o ataque ao quartel português de Tite. Tratava-se possivelmente de aproveitar a atenção
despertada na opinião pública internacional pela guerra em Angola, iniciada entre fevereiro e
março de 1961, além de pressionar os apoiadores regionais (Guiné-Conacri, Gana e Marrocos)
a fornecerem os meios práticos para os enfrentamentos militares — especificamente, armas.

410
IntelectuaIs das áfrIcas

O termo “nossos povos”, de fato, assume em distintos textos


de Cabral significados diferentes. Algumas vezes, é uma forma de
referenciar como um único sujeito textual o conjunto dos habi-
tantes da Guiné e de Cabo Verde. De fato, o PAIGC reivindicava a
independência de ambas as colônias sob um único Estado nacio-
nal, mas não podia postular consistentemente que a população
da Guiné e a de Cabo Verde conformavam um único povo, em
virtude de seus desenvolvimentos históricos e culturais terem
sido expressivamente distintos. Num artigo publicado, em 1962,
na revista francesa Partisans, por exemplo, ele afirma que: “o nosso
problema fundamental consiste em resolver a contradição principal
entre o interesse dos nossos povos e os interesses dos colonia-
listas portugueses”.19 E ainda que: “a libertação dos nossos países
depende principalmente da acção de nossos próprios povos, da
sua unidade, da sua capacidade de organização e de preparação
para a luta”.20
Com efeito, Cabral fala muitas vezes, nessas ocasiões, tam-
bém de “nossos países”, por vezes estendendo o significante para
incluir todos os habitantes dos territórios africanos sob domina-
ção portuguesa ou vivendo sob regimes de segregação racial: “os
povos da África do Sul, assim como os dos nossos próprios países,
de Angola, de Moçambique e das outras colónias portuguesas,
continuam a ser submetidos à mais violenta exploração e à mais
bárbara repressão colonial”.21
Mas, muitas vezes, “nossos povos” — ou, alternativamente,
“nossas populações” — será também utilizado preferencialmente
na maior parte das referências de Cabral à totalidade dos habitan-
tes da Guiné-Bissau em particular. Por um lado, o termo afirma a
multiplicidade das sociedades contidas no território colonial e
acena com uma solução nacional que preserve, em alguma medi-
da, as identidades particulares. Por outro, é também uma fórmula
genérica e abstrata no interior da qual as especificidades reais, as
19 CABRAL, Textos, v. 1, p. 15.
20 CABRAL, Obras escolhidas, v. 1, p. 18.
21 CABRAL, Textos, v. 1, p. 14.

411
IntelectuaIs das áfrIcas

tensões e as oposições internas pudessem ser diluídas. Daí, apesar


de reconhecida como uma composição de identidades particulares
condensadas na fórmula “nossos povos”, a totalidade da população
guineense dever reivindicar não múltiplos, mas apenas um único
direito nacional à independência e à autodeterminação. Essa plu-
ralidade abstrata era uma das possibilidades que se apresentava
aos nacionalistas africanos de resolver o impasse entre o ideal da
filosofia política europeia do “povo” homogêneo que tem direito
à soberania sobre seu “próprio” Estado-Nação e a realidade prática
multiétnica dos territórios coloniais dentro de cujas fronteiras se
buscava a emancipação política.
Alguns exemplos serão suficientes para ilustrar esse recurso
discursivo. No relatório sobre a situação da luta, preparado em
janeiro de 1970, Cabral considera que:
tendo em conta o facto de as populações controlarem em geral
o funcionamento dos diferentes serviços administrativos e sociais
em desenvolvimento, podemos afirmar que foram dados passos
importantes para que o nosso povo tome cada vez mais parte na
gestão da sua vida.22
No mesmo relatório, podemos observar a utilização da forma
alternativa “nossas populações”, a respeito da Guiné:
No plano político, as tentativas do inimigo visando dividir as
forças patrióticas, criar confusão entre as populações e no seio do
nosso Partido, assim como as manobras demagógicas cujo fim é
convencer o nosso povo de que já é independente com a indepen-
dência de Portugal, foram igualmente votadas à derrota.23
E, da mesma maneira, com respeito a Cabo Verde:

Nas ilhas de Cabo Verde, os colonialistas portugueses,


alarmados pelos progressos realizados pelo nosso Partido
no ano de 1967, reforçaram o seu aparelho repressivo
22 CABRAL, Cabral ka muri, v. 20, p. 11; tb. publicado em CABRAL, Obras escolhidas, v. 2, p.
69–75.
23 CABRAL, Cabral ka muri, v. 20, p. 20–21.

412
IntelectuaIs das áfrIcas

e desencadearam uma vasta operação contra as forças


nacionalistas. (…) Estas medidas repressivas mais não fi-
zeram que polarizar a atenção das populações para a luta,
desmascarar a verdadeira face do colonialismo português
no arquipélago, reforçar o ódio e a consciência política dos
patriotas no âmbito da unidade necessária, sob a direcção
do nosso Partido.24

Os exemplos podem ser multiplicados quase até o infinito.


Uma observação importante é que em dois dos exemplos citados
(e de forma consistente em virtualmente todos os textos analisa-
dos) há ocorrências da forma singular “nosso povo” no mesmo
parágrafo ou até na mesma frase em que aparece a forma plural
“nossas populações”. Geralmente, a forma singular é enunciada
após a forma plural, substituindo-a. O terceiro exemplo não provê
um termo no singular para substituir a forma plural, mas de fato
termina conclamando a “unidade necessária, sob a direcção do
nosso Partido”. Esse desenvolvimento interno do enunciado refaz,
no nível do discurso, o processo que Cabral buscava levar a cabo
no nível da política real: o amálgama das identidades particulares
em uma consciência nacional.
Poderia ser argumentado que o termo “populações” estaria
sendo usado como sinônimo de “aldeias” ou “povoações”, como
ocorre por vezes no interior de Portugal e em Moçambique e An-
gola. Não parece ser o caso. Amílcar Cabral fala muitas vezes dos
povoados rurais da Guiné, mas utiliza para isso o termo nativo
tabanka ou sua tradução portuguesa, “aldeia”. Em uma entrevista
concedida à revista Anticolonialismo em 1971, por exemplo, a dis-
tinção entre os dois termos fica explicitada, quando Cabral acusa
as forças portuguesas de “tentativas de assaltos terroristas contra
as populações das regiões libertadas durante os quais tentam não
só matar o máximo de gente que podem, mas também matar o
gado, queimar as tabankas ou aldeias e também tentar queimar as

24 Ibid., v. 18, p. 21–22; também publicado em CABRAL, Obras escolhidas, v. 2, p. 45–60.

413
IntelectuaIs das áfrIcas

nossas produções agrícolas, as nossas colheitas”.25 Nessa mesma


entrevista, Cabral utiliza “populações” para falar de contingentes
urbanos: “os ataques a Bissau e Bafatá, onde estão concentradas
hoje em dia a maior parte das populações dos centros urbanos
(…) mostram claramente às populações africanas desses centros
urbanos e também aos próprios colonos que o inimigo já não pode
mais assegurar a sua tranquilidade”.26
Num artigo publicado na revista cubana Tricontinental, em
1969, podemos observar o recurso a “populações” como sinônimo
de “grupos étnicos”. Cabral revisa a permanente resistência das
“populações costeiras: os Manjacos, os Papeis, sobretudo, na zona
que constitui hoje a ilha de Bissau; os Balantas, um pouco mais no
interior, os Fulas, os Mandingas e praticamente todas as popula-
ções do país”. E remata: “não se passou, por assim dizer, um só dia
em que não houvesse um confronto entre as nossas gentes e os
Portugueses”.27 Esse uso de “nossas gentes”, aliás, aproxima-se do
que observei acima quanto a “nossos povos”. De fato, Cabral havia
já utilizado o termo “povos ou tribos” para se referir a balantas,
manjacos, papeis, fulas, mandingas e outros, em seu Recenseamento
agrícola da Guiné de 1953.28
A segunda técnica discursiva para lidar com as identidades
étnicas é a abordagem regional. Dado impossível de negar, o mo-
vimento de libertação não tinha o mesmo sucesso em todas as
partes da Guiné — em outras palavras, nem todas as populações
apoiavam o PAIGC da mesma maneira, e algumas chegavam mesmo
a ser hostis à organização anticolonial. Cabral, entretanto, se recusa
a explicar esse fato simplesmente em termos de diferentes atitudes

25 CABRAL, Textos, v. 1, p. 109.


26 Ibid., v. 1, p. 110.
27 Ibid., v. 1, p. 81–82.
28 CABRAL, Obras escolhidas, v. 1, p. 33–43. Em alguns poucos textos é possível observar a utili-
zação de todos esses termos exclusivamente no singular: “meu país”, “nosso povo” e
“a população”, englobando Guiné e Cabo Verde. É o caso de duas entrevistas, uma publicada
em 1969 na revista Tricontinental, e outra concedida a Valentim Borisov em dezembro de 1972 e
aparentemente não publicada na época (CABRAL, Textos, v. 1, p. 57–78, 155–157) Mesmo que
não se trate, como é possível, de problemas de tradução, essas raras ocorrências não invalidam
o argumento aqui apresentado.

414
IntelectuaIs das áfrIcas

étnicas, preferindo falar das especificidades das distintas regiões


do país. Obviamente, ele reconhecia a existência de diferentes
populações, com diferentes histórias, características culturais e
organizações sociopolíticas que compunham a maioria demográfica
em cada uma dessas regiões; no entanto, a inconstância das reali-
zações do PAIGC ao longo do território seria mais o resultado do
desempenho desigual de seus próprios quadros político-militares
que uma questão de rivalidades interétnicas. Assim, ao analisar a
evolução da luta de libertação, Cabral com frequência celebrava os
êxitos e censurava as derrotas (algo um tanto mais raro, e apenas
visível nos documentos produzidos para consumo interno, como
a Conferência de Quadros) em termos da própria organização ou
desorganização partidária, privilegiando a regionalização estabe-
lecida pela estratégia político-militar sobre os rótulos étnicos e
suas correspondências territoriais.
Resumindo as principais realizações do PAIGC em 1964, por
exemplo, Cabral sublinhava:
vitórias importantes levadas a efeito pelos nossos combaten-
tes, nomeadamente na região do Gabu (feudo de certos chefes tra-
dicionais até então favoráveis aos portugueses), Boé (zona principal
dos jazigos de bauxite do Sudoeste do país presentemente quase
totalmente controlada pelas nossas forças), Cachungo (a Oeste do
país, onde a população manjaca, enquadrada pelo Partido, esperava
de há muito o desencadear da luta armada), S. Domingos e regiões
contíguas, ao longo da fronteira Norte.29
A abordagem regional pode também ser vinculada ao debate
internacional sobre como liderar uma revolução no terceiro mundo.
Em meados dos anos de 1960, alguns modelos estratégicos de guer-
ra de libertação vinham emergindo e competiam com outros mais
antigos: Vietnã, Argélia e Cuba passavam a oferecer novos exemplos
que passavam a ser estudados ao lado dos casos clássicos soviético
29 CABRAL, Cabral ka muri, v. 17, p. 13; também publicado em CABRAL, Obras escolhidas, v. 2,
p. 41–44. De forma semelhante, ele relata, referindo-se ao ano de 1966, a incapacidade dos
portugueses de cobrarem impostos “nas zonas em litígio ou parcialmente libertadas”. CABRAL,
Obras escolhidas, v. 2, p. 50.

415
IntelectuaIs das áfrIcas

e chinês. Seguramente, para além da preocupação com a adequação


tática ou estratégica ao terreno, havia uma questão geopolítica sub-
jacente: a balança de poder e influência no âmbito do próprio mundo
comunista, e a tentativa dos países que buscavam destruir o modelo
colonial com de criar uma esfera possível de “não-alinhamento” sem
se tornarem satélites de uma das duas grandes potências comunistas.
As expressões regionais, especialmente o termo “zonas libertadas”,
demonstram uma interessante identificação com o “foquismo”
cubano, embora esteja além do escopo deste trabalho estabelecer
quais modelos revolucionários foram incorporados, e em que me-
dida, pelo movimento de libertação na Guiné-Bissau. Em todo caso,
a defesa da especificidade do processo histórico local como guia
da revolução (e a consequente recusa em enunciar a filiação a um
modelo) apontam na direção da busca de uma margem de manobra
mais ampla que aquela que a União Soviética concedia aos países
da Europa oriental, por exemplo.30
O terceiro procedimento discursivo envolvido no problema
da etnicidade, e provavelmente o mais importante, também esta-
va ligado à política internacional e aos inconstantes apoios que o
PAIGC lutava para assegurar. Ao mesmo tempo, esse procedimento
representou uma opção política de vulto para o próprio curso da
luta no terreno: para Cabral, a noção analítica de etnicidade deveria
estar submetida hierarquicamente aos procedimentos da análise de
classe. Como já foi notado, essa opção distanciava também Cabral
da maior parte dos nacionalistas africanos, que, ancorados na tese
comunitária, minimizavam a existência de classes nas sociedades afri-
canas de seus dias, atribuindo ao nacionalismo precisamente a tarefa
de impedir a sua emergência e dessa forma garantir a transposição

30 O alinhamento de movimentos de libertação específicos com o campo comunista mundial também


não deve ser considerado prova cabal de uma suposta ideologia comunista de seus líderes. Na
maior parte das vezes, o recurso a apoios técnicos, militares e financeiros dos países comunistas
não era tanto uma opção ideológica mas uma contingência derivada do próprio funcionamento
do sistema atlântico, que unia firmemente Estados Unidos e as potências coloniais europeias, e
de onde só se podia esperar uma ferrenha oposição nos casos em que o processo de descoloni-
zação fugia ao controle dos antigos mestres, e o movimento nacionalista passava a representar
uma ameaça à preservação no pós-independência dos interesses econômicos ou estratégicos
metropolitanos.

416
IntelectuaIs das áfrIcas

incólume do humanismo coletivista que supostamente caracterizava


a civilização africana, desde a tribo do passado até a nação do futuro.
Uma das primeiras tarefas a serem executadas por Amílcar Ca-
bral, entendida como pré-requisito à eclosão de uma rebelião armada
bem-sucedida, foi uma análise de classe da Guiné e de Cabo Verde.
Essa análise está fracionada em diferentes textos, que demonstram
entretanto um esforço amplo e uma preocupação sistemática. Em
primeiro lugar, Cabral traça uma linha divisória entre as cidades e as
áreas rurais, o que se adequava aos cânones das Ciências Sociais da
época, tanto no campo marxista, em que se elaboravam as primeiras
formulações da teoria da dependência, quanto no campo liberal, que
se aferrava aos refrões mais antiquados do desenvolvimentismo.
Importa aqui perceber que, no pensamento de Cabral, à etnicidade
só é dado ter um papel relevante no âmbito das zonas rurais — uma
restrição espacial que corresponde ao jogo de dualidades implicadas
pelo universo conceitual da modernização.
Não será possível aqui tratar da análise de classes que Cabral
faz das zonas urbanas, onde a etnicidade desaparece do discurso.
Em vez disso, vamos privilegiar os amplos espaços rurais e suas
diversas populações. Em 1964, os militantes comunistas e anticolo-
nialistas italianos puderam ouvir, no Centro Frantz Fanon de Milão,
o retrato que Cabral faz da estrutura social da Guiné:

no campo, encontramos, por um lado, o grupo que conside-


ramos como semifeudal, representado pelos Fulas e, por ou-
tro lado, o dos Balantas, que chamaremos sociedade “sem
Estado”. Existem diferentes situações intermediárias entre
estes dois grupos étnicos extremos. Desta forma, existe
entre os animistas — no seio dos quais se encontra uma
coincidência entre semifeudalismo e islamismo e nenhuma
organização de Estado — um grupo étnico, os Manjacos,
que, aquando da chegada dos portugueses, já mantinha
relações que se poderiam classificar como feudais.31

31 CABRAL, Cabral ka muri, v. 7, p. 3; também publicado em CABRAL, Textos, v. 1, p. 23–36; e


CABRAL, Obras escolhidas, v. 1, p. 101–107.

417
IntelectuaIs das áfrIcas

Cabral poderia ter dito, sem mentir, que, enquanto a popula-


ção balanta apoiou o PAIGC sem reservas e desde a primeira hora,
os grupos fulas mantinham uma significativa suspeita em relação
ao movimento de libertação, o qual tinha enorme dificuldade em
penetrar em seus territórios de forma a estabelecer uma rede lo-
gística e uma guerrilha eficiente. Isso tornou-se um sério problema
para a organização nacionalista, na medida em que a administração
colonial portuguesa tentava tirar vantagem da dificuldade que tinha
o PAIGC para deitar raízes nessa área. Ao mesmo tempo, fricções
étnicas no interior dos destacamentos guerrilheiros foram razoa-
velmente frequentes, pelo menos até 1964.32
Entretanto, um deslizamento interessante ocorre no nível do
discurso nacionalista: fulas e balantas não são apresentados como
casos particulares, mas como encarnações de tipos analíticos.
Espera-se que representem os extremos de uma gama de possibi-
lidades de formações sociais. Os manjacos são chamados a ocupar
uma posição intermediária, também como um exemplo. O espec-
tro tem uma direção, que vai do mais simples ao mais complexo.
Diferentemente dos balantas, os fulas estão divididos em classes:
chefes, nobres e instituições religiosas formam os estratos superio-
res, artesãos e mercadores (dioulas) ocupam posições intermédias,
e os camponeses constituem a classe mais baixa e explorada.33
As posições de cada um desdes grupos étnicos em face do
movimento de libertação são portanto analisadas em termos de
sua composição de classe. É isso que permite explicar a adesão
ao regime colonial dos principais chefes fulas e dos que lhes são
próximos. Derivando sua legitimidade de uma ordem anterior im-
posta pela conquista, esse grupo ligou seu destino ao dos novos
conquistadores ainda no final do século XIX, conservando muito de
suas prerrogativas sociais dentro de um modelo de administração
indireta. Quanto às demais classes da sociedade fula, Cabral previa
32 Denúncias de fuzilamentos envolvendo rivalidades étnicas foram ouvidas no Congresso do
PAIGC em Cassacá, em 1964, segundo CASTANHEIRA, Quem mandou matar Amílcar Cabral?,
p. 46–47.
33 CABRAL, Cabral ka muri, v. 7, p. 4–5.

418
IntelectuaIs das áfrIcas

que os artesãos, uma vez que estavam diretamente ligados aos


chefes e eram extremamente dependentes deles em termos de sua
subsistência e reprodução social, encarariam a organização nacio-
nalista com muita reticência. Por outro lado, os dioulas poderiam
ser facilmente convertidos em aliados do PAIGC se compensações
adequadas fossem oferecidas. Dos camponeses era esperado que
se unissem ao movimento de libertação, uma vez que estariam
naturalmente insatisfeitos com sua exploração econômica, sobre
a qual se sustentava tanto a dominação colonial quanto as chefias
“tradicionais”.34
Por sua vez, a prontidão com que os balantas apoiaram o
levante, e mesmo se engajaram na luta, pode ser explicada pelos
efeitos de sua organização sociopolítica sobre o campo religioso e
sobre a própria aceitação da administração colonial – sobre impo-
sições socioculturais exógenas de modo mais abrangente. Cabral
via nos balantas uma sociedade “sem-Estado” composta quase
exclusivamente por camponeses, não propriamente islâmica, “mas
antes islamizada”, ou seja, ainda “muito impregnada de concep-
ções animistas”. Essa estrutura mais horizontal de classes estaria
relacionada com o fato de que a resistência inicial à implantação do
colonialismo foi muito mais forte entre os balantas em comparação
aos outros grupos étnicos da Guiné. Também a ressalva enfatizada
por Cabral sobre o caráter “islamizado” mais que “islâmico” da
sociedade balanta aponta para um fator importante de resistência
cultural, diretamente derivado da estrutura de classes.35
A opção teórica de Cabral por reconhecer a existência de clas-
ses entre as sociedades africanos do passado e do presente, e por
ressaltar seus efeitos, aproximava-o teoricamente de um quadro
de análise marxista, como mostra o uso do termo “feudal” para
caracterizar determinadas estruturas sociais. Ao mesmo tempo,
era preciso que esse quadro de análise, desenvolvido com base na
história europeia, pudesse dar conta das realidades africanas. Isso

34 Ibid., v. 7, p. 5-6.
35 Ibid., v. 7, p. 6.

419
IntelectuaIs das áfrIcas

o impelia, por vezes, a levar os conceitos correntes da empobrecida


doxa marxista de então a seus limites empíricos e mesmo a aban-
doná-los, caso sua capacidade heurística se mostrasse insuficiente.
Havia também uma clara preocupação com a audiência. Quando
os ativistas do Centro Franz Fanon em 1964 são substituídos pelos
militantes do PAIGC reunidos na Conferência dos Quadros em 1969,
a linguagem assume mudanças substanciais:
Mas podemos perguntar: a que tipo de sociedade pertence
a sociedade Balanta? Está talvez na fase de desagregação do
comunismo primitivo, mas muito longe deste. (…) Talvez seja a
desagregação na sua última fase — mas muito influenciada, nos
últimos sessenta ou oitenta anos, pela dominação colonial. (…)
E a sociedade Fula? À primeira vista, assemelha-se a uma
sociedade feudal com chefes, senhores, gente sob as suas ordens,
com grupos profissionais que o feudalismo da Europa chamava
corporações, com gente que trabalha a terra e que na Europa se
chamavam servos. (…) No feudalismo, [entretanto,] os senhores
são donos da terra; existe a propriedade privada; na sociedade Fula
não existe a propriedade privada. Em princípio, a terra pertence a
toda a população e, na melhor das hipóteses, à tabanca. (…)
Ora, este tipo de sociedade em que a superestrutura se asse-
melha à do feudalismo, enquanto, a nível da infra-estrutura, não
existe propriedade privada de terra, mas sim, como princípio ide-
alista, a propriedade colectiva da terra, não tem uma designação
precisa. Há quem lhe chame semifeudalismo, o que não quer dizer
nada — além de estabelecer uma comparação com a Europa. Outros
chamam-lhe modo de produção asiático; mas há dúvidas quanto a
uma designação adequada. Trata-se de uma situação diferente. É
mais importante conhecer exactamente a natureza desta sociedade
do que rotulá-la.36
Cabral ressalta a inadequação dos rótulos marxistas clássicos
para proceder a uma análise das sociedades guineenses, ao mesmo
36 Ibid., v. 7, p. 24–25; também publicado em CABRAL, Obras escolhidas, v. 1, p. 111–116.

420
IntelectuaIs das áfrIcas

tempo em que a estrutura principal de sua análise, a subordinação


da etnicidade à classe, e da cultura à estratificação social, permane-
ce. Conforme ele afirma em uma linguagem mais erudita, em uma
palestra lida in absentia em uma reunião de peritos sobre noções
de raça, identidade e dignidade, reunida em Paris em 1972 sob os
auspícios da Unesco:

É evidente que a multiplicidade de categorias sociais, em


especial de etnias, torna mais complexa a definição do papel
da cultura no movimento de libertação. Mas esta complexi-
dade não pode nem deve diminuir a importância decisiva,
no desenvolvimento desse movimento, do carácter de classe
da cultura, muito mais sensível nas categorias urbanas e nas
sociedades rurais de estrutura vertical (Estado), mas que não
deve deixar de ser tomada em consideração mesmo nos
casos em que o fenômeno de classe surge ainda no estado
embrionário. A experiência demonstra que, perante as ne-
cessidades de uma opção política exigida pela contestação
do domínio estrangeiro, as categorias privilegiadas, na sua
maioria, colocam os seus interesses imediatos de classe
acima dos interesses do grupo ou da sociedade, contra as
aspirações das massas populares.37

Assim como a maior parte dos demais nacionalistas africanos,


e conforme o pensamento modernizador cuja hegemonia sobre
o campo do nacionalismo torna-se tão patente a essa altura da
análise, Cabral via nas lealdades étnicas um empecilho à condução
da luta anticolonial e ao exercício do poder do futuro Estado inde-
pendente. Mas, divergindo deles, levava o combate à etnicidade
um passo à frente, assumindo que uma dominância do étnico na
teoria social aplicada às realidades africanas não fazia mais que
sustentar os esforços coloniais ou neocoloniais. Nesse sentido,
Cabral percebia o que julgava ser uma contradição inexorável im-
plicada na etnização como dado necessário de qualquer política
colonial na África.
37 CABRAL, Cabral ka muri, v. 10, p. 20; publicado também em CABRAL, Textos, p. 1, 127–139;
e CABRAL, Obras escolhidas, v. 1, p. 234–247.

421
IntelectuaIs das áfrIcas

Por um lado, as exigências da montagem de uma operação


colonial lucrativa implicavam uma enorme pressão sobre a força de
trabalho africana e sobre as formas locais de produção de subsis-
tência, que precisavam ser induzidas e modificadas no sentido de
se adequarem às atividades econômicas coloniais, fossem primárias
(como a produção obrigatória de determinadas commodities, e a
disponibilização de mão de obra em grande quantidade e baixo
custo para empreendimentos agrários e mineiros controlados por
europeus), fossem de apoio (o trabalho nos transportes, nos portos,
na abertura e manutenção de estradas, nos baixos escalões das
firmas de comércio exterior, armazéns e bancos, nas forças poli-
ciais etc.). As políticas administrativas destinadas a desarticular os
modos de vida africanos eram acompanhadas ainda pela mitologia
supremacista europeia, que precisava qualificar as culturas africa-
nas como bárbaras, irracionais e arcaicas diante da sua própria, de
modo a convalidar a necessidade moral da dominação.
Por outro, a viabilidade do domínio europeu na África, siste-
maticamente carente de recursos financeiros e humanos, dependia
de dividir e manter divididas as populações que habitavam o ter-
ritório de cada uma das colônias. Para isso, tinha-se que recorrer
a políticas que reforçassem em cada grupo étnico determinados
marcadores identitários, na forma de manifestações culturais e
religiosas, formas de organização social e mesmo o sistema de
valores que justificava as hierarquias sociais e modos de vida –
de modo a manter vivas as fronteiras étnicas e aguçar o sentido
de pertencimento, enquadrando dessa forma a maior parte das
disputas sociais num âmbito de conflitos e querelas entre etnias,
mais que em relação à administração colonial. Essas políticas de
reforço identitário eram ainda mais necessárias nas regiões em que
estava instalado um regime de dominação indireta, uma vez que
isso demandava a manutenção da legitimidade das classes africanas
dirigentes, de onde saiam os “chefes tradicionais” com quem lida-
vam os europeus, diante das populações a eles submetidas. Dessa
forma, a política colonial em relação à cultura e à etnicidade, para

422
IntelectuaIs das áfrIcas

Cabral, balançava-se numa contradição estrutural entre dissolução


da etnicidade e perseguição da cultura africana, por um lado, e
aguçamento das diferenças e fronteiras étnicas e defesa das classes
dominantes africanas em cada grupo étnico.38
Uma vez deslanchado o processo nacionalista, tendia a ganhar
fôlego a promoção contínua políticas étnicas de contrainsurgên-
cia. Já em 1962, Cabral denunciava, em uma entrevista à revista
Partisans, uma série de ações pontuais tomadas pela administração
portuguesa para aliciar uma parte da população, em reforço da
diretriz imperial que impunha dividir para reinar. Elas incluíam a
concessão de bolsas de estudos para determinados indivíduos, o
convite a “chefes tradicionais” para visitas a Portugal, e a criação
de programas de rádio especialmente voltados para os “indígenas”
(provavelmente veiculado em línguas africanas). A instauração
desse conjunto de iniciativas aparentemente simpáticas não fazia
receder, obviamente, a tradicional “repressão policial e armada”. O
objetivo último dessa amálgama de incentivos positivos e negativos
seria a “criação de dissidências e de querelas entre os diferentes
grupos étnicos”.39
Cabral afirmava sempre que tais políticas haviam falhado ou
se destinavam ao fracasso, em virtude da mobilização política das
massas guiadas pelo PAIGC. Por exemplo, em 1966, a organização
nacionalista garantia ter feito malograr “as manobras políticas dos
colonialistas portugueses que tentavam dividir as forças patrióticas
ou mistificar a opinião nacional e mundial”. Através da combinação
de ação política e ação armada, o PAIGC teria colocado uma série
de obstáculos à “actividade colaboracionista de certos chefes tra-
dicionais, (…) neutralizando assim os efeitos destrutivos de sua
atitude em certas camadas da população”.40

38 CABRAL, Cabral ka muri, v. 10, p. 15. A posição de Cabral sobre a característica colonial das
chefias “tradicionais” africanas, e seu caráter de classe, aproxima-o de Ahmed Sékou Touré. Depois
de deposto por um golpe de Estado em 1965, Kwame Nkrumah também viria a concordar com
essa posição.
39 CABRAL, Textos, v. 1, p. 19.
40 CABRAL, Cabral ka muri, v. 18, p. 4.

423
IntelectuaIs das áfrIcas

Não poderia ser outra a forma de enunciar e equacionar o


acontecido, ou a mobilização social ampla que era certamente o
objetivo desse tipo de discurso não seria jamais alcançada. Mas é
relevante que, mesmo ao lidar com oponentes internos, a recusa
de Amílcar Cabral a elaborar uma abordagem etnicizante perma-
neça: ele vai sempre preferir fórmulas mais abstratas, tais como
o largamente utilizado “certos chefes tradicionais”, em vez de se
referir a eles como chefes fulas, por exemplo. Uma divisão relativa
a classe, mais do que a etnia, será considerada como crucial, à
medida que o avanço do movimento nacionalista no terreno fosse
solapando o apoio social antes experimentado pela chefaria em
sua própria casa: “abandonados pelas populações” que suposta-
mente lhes deviam obediência, “os chefes tradicionais traidores à
nação são hoje objecto de desconfiança das autoridades coloniais,
não escondendo o seu medo e as suas dúvidas face ao progresso
da nossa luta”. No limite, a incapacidade dos chefes de garantir
a pax colonial nos territórios sob sua jurisdição podia resultar na
sua simples destituição pelas autoridades portuguesas, ou mesmo
sua prisão.41
De acordo com Cabral, as políticas portuguesas se mantinham
inalteradas dois anos depois, embora seu alcance tivesse se re-
duzido consideravelmente, face aos avanços militares do PAIGC.
Segundo o relatório de 1968, o controle de Portugal sobre o ter-
ritório estava restrito aos centros urbanos e às zonas do interior
em que podiam agir “por intermédio de certos chefes tradicionais
(certos sectores de circunscrições administrativas de Bafatá, Gabu,
Canchungo e as ilhas de Bissau e Bolama)”.42
Entretanto, precisamente em 1968 o esforço etnicizante
da administração portuguesa ganhou mais importância, após a
instalação do general António de Spínola como governador da

41 Ibid., v. 18, p. 13. O relatório de 1966 parece deixar claro que, longe de querer erigir os “chefes
tradicionais” em inimigos do nacionalismo per se, o objetivo de Cabral era constrangê-los a apoiar,
ou pelo menos a não atrapalhar, as atividades militares e de logística do PAIGC no terreno
42 Ibid., v. 18, p. 30; os relatórios de 1966 e 1968 citados foram publicados juntos em CABRAL,
Obras escolhidas, v. 2, p. 45–60.

424
IntelectuaIs das áfrIcas

Guiné. A nova autoridade colonial prontamente compreendeu


que uma vitória militar metropolitana não seria alcançada naquele
território. Embora não tivesse em nenhum momento abandonado
as operações militares, Spínola passou a insistir mais no que cha-
mava de medidas “políticas”.43 Uma vez que percebia a etnicidade
tanto quanto a raça como uma possível fonte de problemas para
o movimento de libertação, esforçou-se por reforçar e aprofundar
as divergências que percebia haver entre cabo-verdianos e guine-
enses no seio do PAIGC, e as particularidades étnicas na população
como um todo. A criação de um “Congresso das etnias”, a cargo
de algumas funções políticas restritas na colônia, foi talvez a mais
ambiciosa dessas medidas. Cabral se refere a ela em seu relatório
sobre a evolução da luta de libertação em 1971:

O seu objectivo é o de conquistar alguns dos nossos irmãos


com postos de régulos e honrarias, mas é sobretudo o de
destruir a consciência e a unidade nacional que o nosso
Partido e a luta já criaram. Realizando os chamados “con-
gressos” das etnias, e prometendo que cada etnia terá o seu
próprio chefe, os colonialistas pretendem atiçar de novo
os sentimentos tribais que já extinguimos, querem sabotar
desde agora as possibilidades duma harmoniosa existência
nacional para o nosso povo, na independência que — estão
fartos de o saber — vamos com toda a certeza conquistar.
Fingindo querer dar uma autoridade política às populações
que controlam ainda, através de alguns chefes, o que que-
rem é preparar terreno para novos conflitos entre as etnias,
para que os balantas não se entendam com os manjacos,
os fulas com os papéis, para que se crie a confusão entre
nós, tornando assim impossível a vida da nação africana
que estamos a construir.44

Se a heterogeneidade no interior das fronteiras coloniais podia


ser diluída por meio do uso sistemático das formas plurais “nossos
43 CASTANHEIRA, Quem mandou matar Amílcar Cabral?, p. 61–66; TOMÁS, O fazedor de utopias,
p. 202–204 et passim.
44 CABRAL, Cabral ka muri, v. 21, p. 14; também publicado em CABRAL, Obras escolhidas, v. 2,
p. 77–99.

425
IntelectuaIs das áfrIcas

povos” ou “nossas populações”, e se a abordagem das dificuldades


e avanços da luta anticolonial no terreno podia ser apreendida em
termos de uma regionalização de fundo político-militar em vez de
uma territorialidade étnica, a precedência das estruturas de classe
sobre as diferenças étnicas como fatores explicativos, e o escalona-
mento dos diferentes grupos populacionais guineenses do campo
ao longo de um espectro abstrato de formações sociais possíveis,
permitiam explicar a desigual adesão ao movimento nacionalista
escapando à lógica etnicizante que era vista como a tônica da
administração colonial, em termos táticos mas também por força
da própria lógica da colonização europeia na África, em sua de-
pendência de classes dirigentes “tradicionais”. Essas três técnicas
discursivas apontam para uma apropriação teórica específica no
campo do nacionalismo africano, mas não esgotam o pensamento
de Cabral sobre a etnicidade. De fato, resta abordar o que seria
para ele a tarefa principal do nacionalismo: a transformação de
“nossas populações” em “nosso povo” — ou, em outros termos, a
extinção dos “sentimentos tribais”, condição de possibilidade de
uma “harmoniosa existência nacional”.

DA ETNIA À NAÇÃO

Com efeito, embora Amílcar Cabral se recusasse a conceder


à etnicidade um papel determinante ou mesmo preponderante
em suas formulações teóricas, ele escreveu longamente sobre ela,
em termos de sua superação. Nessa empreitada, estava em linha
com o conjunto do nacionalismo africano, que buscava equacionar
esse mesmo problema em uma grande variedade de contextos
empíricos, apelando para distintas formulações. Para Cabral, a
ultrapassagem das barreiras de base étnica à construção de uma
identidade nacional amplamente compartilhada era, num certo sen-
tido, função da própria realidade: à medida que se experimentavam
as contradições opressivas da dominação estrangeira, passava-se a
perceber a necessidade de sobrepujar as divisões internas, quase

426
IntelectuaIs das áfrIcas

sempre estimuladas pela prática da administração colonial, e de


se levantar em prol da unidade nacional. O racismo que embasava
todo o edifício colonial teria dado aos africanos “a consciência de
si mesmos” para além das divisões étnicas.45 Seria essa identifi-
cação (negativa) em termos de raça que permitiria uma primeira
“tomada de consciência” coletiva, que se projetava em direção às
fronteiras do território colonial e por extensão a uma nação puta-
tiva, em algum ponto do futuro. A experiência compartilhada do
colonialismo criava, por assim dizer, uma nova realidade e novas
possibilidades de identificação, que, uma vez instaurada a luta de
libertação, passavam a convergir para o projeto nacionalista e para
a organização que o representava. Desse movimento se esperava
uma ampla disseminação, mesmo através das divisões mais cruciais
de classe, o que levaria a uma “agudização” de contradições, para
usar a linguagem marxista então em voga, numa retroalimentação
permanente.
No limite, a ampliação progressiva da adesão dos vários grupos
populacionais ao nacionalismo chegaria ao ponto de fazer com que
mesmo aquelas camadas mais diretamente vinculadas ao domínio
colonial vislumbrassem afinal a inevitabilidade da independência.
Esse era o contexto teórico do relatório escrito por Cabral em
1968, no qual ele afirma que muitos “chefes tradicionais” já hesi-
tavam em sua defesa do status quo, e começavam mesmo a entrar
em conflito com a administração colonial, ao ver seu prestígio ruir
face à deserção continuada de seus antigos súditos. De forma se-
melhante, Cabral anota a deserção de soldados africanos das forças
portuguesas e seu posterior alistamento na guerrilha.46
Mas a transformação das identidades étnicas em uma cons-
ciência nacional não era percebido de forma alguma um processo
que pudesse ser confiado ao seu próprio desenvolvimento interno.
Ela precisava ser politicamente produzida. A construção de um
sentimento nacional era, inclusive, o objetivo político primário do

45 CABRAL, Obras escolhidas, v. 1, p. 104.


46 CABRAL, Cabral ka muri, v. 18, p. 31–32.

427
IntelectuaIs das áfrIcas

PAIGC, segundo explica Cabral durante o Seminário de Quadros


em 1969:

A primeira condição para a resistência política, camaradas,


é unir as pessoas. (…) Unir, criar a pouco e pouco a consci-
ência nacional, porque nós partimos de um ponto em que
não tínhamos uma consciência nacional, em que tanto pela
nossa história como pelo trabalho dos tugas [portugueses],
estávamos divididos em grupos. Civilizados e indígenas,
gentes do mato, balantas, papéis, manjacos, mandingas,
etc., etc. O nosso primeiro trabalho é criar num certo
número da nossa gente a consciência nacional, a ideia da
unidade nacional, tanto na Guiné como em Cabo Verde.47

Num de seus textos mais acadêmicos (a conferência lida na


reunião da Unesco, em 1972), as preocupações de Cabral relativas à
etnicidade podem ser mais propriamente compreendidas. Ao abor-
dar o papel da cultura no âmbito dos movimentos de libertação,
ele chegará a argumentar que as identidades culturais específicas
conformam, elas mesmas, as bases da luta anticolonial. Enunciando
formalmente algo que já havia sido sugerido por Sékou Touré, Ca-
bral diverge da maior parte dos demais líderes africanos, que defen-
diam a ideia de que um renascimento cultural era um pré-requisito
do nacionalismo moderno no mundo colonial. Ao contrário, ele
afirma que onde quer que esse renascimento exista, ele se restringe
a uma categoria social extremamente estreita, quase sempre uma
pequena burguesia nacional frustrada com os parcos resultados
políticos, sociais e econômicos de seus esforços assimilacionistas
em relação à cultura metropolitana. Para a grande maioria dos
habitantes do continente, especialmente os que vivem no campo,
não pode haver a necessidade de um renascimento cultural ou de
um “retorno às fontes” uma vez que tais fontes, representadas por
suas próprias culturas, nunca haviam sido abandonadas, ainda que
47 Ibid., v. 12, p. 7–8; tb. disponível em: CABRAL, Obras escolhidas, v. 2, p. 133–242. É importante
notar que Cabral inclui a etnicidade como uma das linhas internas de divisão do povo guineen-
se entre outras, ressaltando também distinções estatutárias da sociedade colonial (indígenas e
civilizados) e uma forte oposição rural-urbano (“gentes do mato”).

428
IntelectuaIs das áfrIcas

tivessem sido influenciadas em maior ou menor grau pelas tenta-


tivas de imposição da cultura europeia dominante.48
O tribalismo, de forma semelhante, seria para Cabral não uma
derivação das identidades étnicas enquanto tal, mas um produto
direto do oportunismo político de membros dessa mesma cama-
da (na maioria das vezes urbana) que propagava o “renascimento
cultural”. Numa entrevista para a revista Tricontinental, publicada
em 1969, ele questionava a concepção amplamente difundida
da natureza conflituosa da tribo, ressaltando que a tendência
historicamente predominante entre os africanos era o entendi-
mento mútuo através das fronteiras étnicas, e não a hostilidade.
O tribalismo seria, não a expressão de um arcaísmo generalizado
e característico, mas a ferramenta política, muito moderna, de
“indivíduos que estiveram nas universidades europeias e que fre-
quentaram os cafés de Bruxelas, de Paris, de Lisboa ou de outras
capitais”. Longe de serem os representantes de um grupo com
cuja cultura se identificavam e lutavam para defender, estavam
existencialmente apartados da vida cotidiana, do significado das
práticas culturais, e, principalmente, dos problemas reais do seu
povo. Na sua prática “tribalista”, segundo Cabral, “recorreram a
razões que não existam já na mentalidade dos nossos povos, para
tentar realizar o seu objectivo oportunista, os seus fins políticos,
a sua ambição de comando e de dominação política”. Poderíamos
concluir, seguindo o raciocínio até suas implicações finais, que o
tribalismo num certo sentido produz ele próprio – a partir de um
ambiente exógeno, urbano e impregnado do saber europeu sobre
a África – a cultura rural, tribal e tradicional que afirma representar
diante do Estado em construção, e em disputa, na passagem para
a independência.49
Mas, se o tribalismo não é um dado intrínseco da etnicidade,
e sim o produto moderno de uma apropriação de identidades
coloniais por agentes políticos que estão muito longe da tradi-

48 CABRAL, Cabral ka muri, v. 10, p. 6–10.


49 CABRAL, Textos, v. 1, p. 71.

429
IntelectuaIs das áfrIcas

ção, nem por isso as etnias devem ser preservadas tais como se
verificam no presente. Antes, o que Amílcar Cabral parece propor
é a engenharia de uma dimensão nacional da cultura. A meta po-
lítica de trazer à luz uma consciência nacional envolve, segundo
ele, um trabalho seletivo sobre as culturas (étnicas) existentes no
território da colônia, que serão usadas como matérias-primas. Uma
seleção racional e conscientemente dirigida, de modo a proteger
os conteúdos “positivos” (como sinônimo de “progressivos”) das
culturas base e generalizá-los:
Na apreciação do papel da cultura no movimento de liberta-
ção, é conveniente não esquecer que a cultura, como resultante e
determinante da história, comporta elementos essenciais e secun-
dários, forças e fraquezas, aspectos positivos e negativos, factores
de progresso ou mesmo de regressão — em suma, contradições
e mesmo conflitos. Seja qual for a complexidade desse panorama
cultural, o movimento de libertação tem necessidade de nele lo-
calizar e definir os dados contraditórios para preservar os valores
positivos, efectuar a confluência desses valores no sentido da luta
e no âmbito de uma nova dimensão — a dimensão nacional.50
Essa “confluência” é invocada de forma a impulsionar o pro-
gresso, assim como a luta anticolonial — como o caminho para o
progresso. É também um procedimento necessário para reconciliar
o anticolonialismo (em última instância uma negação das alegações
civilizacionais da filosofia da história ocidental) e o Estado-Nação
(a forma clássica e ideal do corpo político para a filosofia política
deste mesmo ocidente). A necessidade da correlata noção ocidental
de racionalidade é, dessa maneira igualmente, proclamada: a ra-
zão moderna é chamada a julgar cada uma das práticas culturais e
decidir seu destino futuro integrando a cultura nacional ou sendo
atirada à lata de lixo da história. Se a “unidade política e moral das
categorias sociais” que comporiam afinal o povo da nova nação
tinha de ser forjada através das fronteiras étnicas existentes, era
necessário extinguir progressivamente os “vestígios da mentali-
50 CABRAL, Cabral ka muri, v. 10, p. 20–21.

430
IntelectuaIs das áfrIcas

dade tribal e feudal”, assim como abolir “regras” e “tabus sociais


e religiosos incompatíveis com o carácter racional e nacional da
luta de libertação”.51 Bem observado, não se trata tanto dos ele-
mentos culturais quanto das configurações sociais e políticas no
âmbito das quais esses elementos ganhavam significado. Isso era
especialmente válido para as sociedades mais hierarquizadas (“feu-
dais” ou “semifeudais”), cuja estrutura a colonização havia de certa
forma fossilizado pelo recurso à dominação indireta, impedindo
ou atrasando sua evolução endógena.
Outro ponto relevante é que, apesar da patente hegemonia te-
órica do campo simbólico da modernização sobre seu pensamento
sobre o assunto, Cabral não apresenta o caminho de uma etnici-
dade “atrasada” em direção a uma nação “progressista” como um
processo de mão única. Ao contrário, essa transformação envolve
uma dialética muito específica: se há uma corrente que se origina na
cultura e flui em direção à luta, por outro lado uma outra corrente
parte da própria luta em direção à cultura. Essa influência recíproca
se reflete, particularmente, na qualidade das diversas categorias
sociais envolvidas na luta de libertação, ressaltando-se a interação
entre os quadros dirigentes da organização nacionalista, quase
todos de origem urbana e integrantes da “pequena burguesia” ou
do grupo de “assalariados”, e as “massas populares” rurais e cam-
ponesas que compõem a quase totalidade da população do país em
construção. Ambos ganham indistintamente “maior conhecimento
das realidades do país, libertação de complexos e preconceitos de
classe, alargamento do universo no qual evoluem, destruição das
barreiras étnicas, reforço da consciência política, integração no
país e no mundo, etc”.52
É esse movimento dialético que permite a Amílcar Cabral re-
conciliar as especificidades culturais dos diferentes grupos étnicos
com as reivindicações de legitimidade no âmbito do sistema de
Estados-Nação para uma única entidade política comportando a

51 Ibid., v. 10, p. 21.


52 Ibid.

431
IntelectuaIs das áfrIcas

Guiné e Cabo Verde: ambos emergem, combinados na forma de


um estado multicultural, como a síntese das contradições entre
a diversidade cultural (étnica e de classe) e a luta de libertação.
Conforme o próprio Cabral resume:

No seio da sociedade indígena, as influências da luta


reflectem-se nos resultados multilaterais das realizações
acima mencionadas, assim como no desenvolvimento e/
ou sobre a consolidação da consciência nacional. A acção
confluente do movimento de libertação no plano cultural
leva à criação de uma lenta mas sólida unidade cultural,
de natureza simbiótica, correspondente à unidade moral
e política necessária à dinâmica da luta. Com a ruptura do
hermetismo de grupo, a agressividade de carácter racial
(tribal ou étnico) tende a desaparecer progressivamente
para dar lugar à compreensão, à solidariedade e ao respeito
mútuo entre os diversos sectores horizontais da socieda-
de, unidos e identificados na luta e num destino comum
face ao inimigo estrangeiro (…). Constata-se igualmente
um reforço da identidade de grupo e um correspondente
avivar da dignidade. Esses factores em nada prejudicam a
estruturação e o movimento do conjunto social no sentido
de um avanço harmonioso e em função de novas coorde-
nadas históricas — as da dimensão nacional — de que só
uma acção política intensiva e eficaz, elemento essencial
da luta, pode definir a trajectória e os limites e garantir a
continuidade.53

Nunca é demais ressaltar que essa nova dimensão, muito


embora fosse considerada uma necessidade histórica, só podia
segundo Cabral ser trazida à luz por um trabalho político cons-
ciente e racional, através da ação do partido sobre a cultura, de
forma a garantir que a evolução fosse feita no âmbito do quadro
modernizador desejável, e que se criassem as próprias condições
para sua continuidade. Nem de longe se trata de admitir qualquer
“direito à diferença cultural” em si, mas de produzir uma nova

53 Ibid., v. 10, p. 21–22.

432
IntelectuaIs das áfrIcas

cultura compósita, de abrangência territorial igual à do Estado,


através da generalização estimulada de componentes internos de
proveniência diversa.54 Uma vantagem adicional dessa proposta é
ela não exigir, como em outras formulações, “matar a tribo para
fazer nascer a nação”. Ao contrário, o reconhecimento em cada
grupo de que também participava e contribuía com aspectos da cul-
tura nacional era um reforço tanto das identidades étnicas quanto
do sentimento de pertença à nova nação. As identidades étnicas e
a identidade nacional podiam conviver em diferentes dimensões,
desde que as primeiras fossem expurgadas de seus elementos
“regressivos”, potencialmente incompatíveis com o Estado-nação
moderno, por um trabalho consequente de engenharia cultural.
Em resumo, o nacionalismo de Cabral buscava resolver, no
nível do discurso, a contradição, compartilhada pelos nacionalis-
mos africanos de modo geral, implicada na necessidade de anco-
rar uma reivindicação política unitária em uma multiplicidade de
fontes culturais de legitimidade. Nesse campo, a originalidade de
Amílcar Cabral consiste no fato de que ele consegue afirmar uma
certa legitimidade para as culturas “étnicas” da Guiné, e ao mesmo
tempo reivindicar um único estado nacional, por conceber as di-
ferentes etnias (entendidas como uma composição de sociedades
e culturas) como operandos algébricos em uma equação que tem
como resultado a consciência nacional. Essa transformação é ne-
cessariamente equiparável ao processo de modernização — essa
operação ideal da filosofia da história e da teoria política ocidentais.
Amílcar Cabral define o lugar de seu PAIGC nesse processo como
a força política a qual, continuamente emergindo da cultura, tem
como objetivo, através de um trabalho seletivo executado sobre a
própria cultura, dar à luz o moderno Estado-nação numa condição
colonial e africana.

54 Esse princípio de política cultural sobreviveu a Amílcar Cabral e manteve-se enquanto o PAIGC
conservou o estatuto de partido único, conduzindo a uma forte “integração nacional por baixo”,
apesar da persistência de tensões políticas que recorrem a dimensões étnicas, conforme KOHL,
Christoph, Integração nacional “por baixo”: a contribuição do associativismo em Guiné-Bissau,
Revista Anthropológicas, v. 22, n. 2, 2013.

433
IntelectuaIs das áfrIcas

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Portugal, Casa Comum (PT CC)
Arquivo Amílcar Cabral
http://casacomum.org/cc/arquivos?set=e_2617

Arquivo Mário Pinto de Andrade,


Lutas de Libertação, Investigação e Textos, Amílcar Cabral, Textos
de Amílcar Cabral
http://casacomum.org/cc/arquivos?set=e_3944#!e_4296

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436
IntelectuaIs das áfrIcas

A ATUALIDADE DE FRANTZ FANON: ACERCA DA


CONFIGURAÇÃO COLONIALISTA

Muryatan S. Barbosa1

Hoje qualquer formando em Ciências Humanas tem a obriga-


ção de ao menos ter ouvido falar de Frantz Fanon (1925-1961), o
célebre psiquiatra, teórico e revolucionário martiniquense. Mas
isto não foi sempre assim. Sua fama internacional demorou para
se consolidar. E no Brasil, em verdade, ainda está longe disto.
Frantz Omar Fanon nasceu em 1925 na Martinica, então
colônia francesa. Em 1944, se voluntariou para lutar contra o
nazi-fascismo durante a 2ª. Guerra Mundial. Em 1948, chegou a
Lyon, França, para estudar medicina e psiquiatria. Lá, desenvolveu
grande interesse pela Filosofia de viés existencialista. Aproximou-
se também de grupos universitários de estudantes africanos e
caribenhos, que se formaram em Lyon e Paris à época. Entre 1953
e 1956 foi Diretor do Departamento de Psiquiatria no Hospital de
Blida-Joinville, na Argélia, onde viu o nascimento da guerra anti-
colonialista. Em 1956 demitiu-se, integrando-se formalmente a
Frente de Libertação Argelina (F.L.N.), tendo se tornado membro
ativo desta organização até sua morte prematura por leucemia aos
36 anos, em 1961.
Durante as décadas 1960-1970, Fanon ficou conhecido como
um autor anticolonialista, por sua referida adesão à FLN e a publi-
1 Doutor em História Social e Professor Adjunto do Bacharelado em Ciências Humanas e do
Bacharelado em Relações Internacionais - Centro de Engenharia, Modelagem e Ciências Sociais
Aplicadas – Universidade Federal do ABC.

437
IntelectuaIs das áfrIcas

cação do livro Condenados da terra (1961). Uma imagem que ficou


cristalizada no belo prefácio de Jean-Paul Sartre ao referido livro.
Poucos à época o viam como um teórico que tivesse potencial para
tornar-se um clássico do pensamento social do século XX.
Isto mudou desde então. Hoje, a trajetória e o pensamento
de Frantz Fanon é um objeto de estudo multidisciplinar. E não se
trata apenas de trabalho acadêmico, pois suas ideias continuam
vivas também nos movimentos sociais e políticos nos E.U.A, Itália,
França, Palestina, Caribe, Brasil2 e África do Sul. Este amplo mo-
vimento de leituras e releituras de Fanon é bastante complexo e
não será aqui detalhado. Mas faz-se necessário uma breve síntese,
para que o leitor entenda o lugar deste ensaio3.
Grosso modo, pode-se dividir a história intelectual destes
trabalhos sobre Fanon em quatro blocos4. O primeiro destes é uma
fase predominante entre 1960 e 1970, marcado pelas leituras dele
como um autor/ativista anticolonialista ou “terceiro mundista”,
influenciado pelo marxismo e pelo existencialismo. A questão
maior aí seria sua análise dos sujeitos revolucionários no caso
argelino (campesinato, lumpen proletariado) e a práxis libertadora
anticolonial (J. P. Sartre [1961], Albert Memmi [1973], Jack Woddis
[1972], Cedric Robinson [1993], Ato Sekyi-Otu [1996], Peter Worsley
[1969], Renate Zahar [1974], Emmanuel Hansen [1977], Immanuel
Wallerstein [2009] entre outros)

2 GUIMARÃES, Antonio Sérgio. A recepção de Fanon no Brasil e a identidade negra. Novos estudos
CEBRAP. São Paulo no. 81, Julho de 2008; SILVA, Mário Augusto Medeiros da. Frantz Fanon e
o ativismo político-cultural negro no Brasil: 1960/1980. Estudos históricos. Rio Janeiro, vol.26, no.
52, Jul/Dez, 2013.
3 Este ensaio foi escrito visando uma breve contribuição a este debate atual. Portanto, ele não se
debruçará sobre questões gerais que justificariam a importância do seu pensamento de um modo
geral. Sobre isto há farta bibliografia internacional que o leitor poderá pesquisar. Em português,
também, já possuímos alguns textos sobre o assunto, que vem sendo renovado com a contribui-
ção de pesquisadores, como Thiago Sapede (Racismo e dominação Psíquica em Frantz Fanon.
Sankofa, v. 4, n. 8 (2011); Deivison Mendes Faustino (Colonialismo, racismo e luta de classes: a
atualidade de Frantz Fanon. In: Anais do V Simpósio Internacional Lutas Sociais na América Latina
“Revoluções nas Américas: passado, presente e futuro, 10 a 13/09/2013. No site: http://www.
uel.br/grupo-pesquisa/gepal/v16_deivison_GI.pdf; visitado em 10/05/2016); Walter Günther
Rodrigues Lippold. O pensamento anticolonial de Frantz Fanon e a Guerra de Independência
da Argélia. Monographia, Porto Alegre, n. 1, 2005.
4 Tipologia inspirada em Lewis GORDON (2015: 3-4).

438
IntelectuaIs das áfrIcas

Uma segunda abordagem de estudos biográficos sobre Fanon,


marcante nos anos 1970 e recentemente retomada (Peter Geismar
[1971], David Caute [1970], Irene Gendzier [1974], Patrick Ehlen
[2001], David Macey [2000], Alice Cherki [2006]).
Um terceiro bloco, marcante entre os anos 1980 e 1990,
que analisava o suposto pioneirismo de Fanon como autor “pós-
colonial” ou de “Estudos Culturais”. Isso, devido à sua ênfase na
inter-relação entre cultura e poder, e sua visão não essencialista das
identidades (Edward Said [1993], Homi Bhabha [1996; 1998], Henry
Louis Gates Jr. [1991], Neil Lazarus [1999], Anthony Alessandrini
[1999], Achille Mbembe [2001]).
Por fim, uma quarta vertente mais contemporânea, pós-ano
2000, que visa desenvolver e atualizar o pensamento de Fanon em
suas próprias bases e de forma imanente (Jane Gordon, Alejandro
Oto [2003], Reiland Rabaka [2011], Lewis Gordon [1995; 2015], Nigel
Gibson [2003], Silvia Wynter [1999], Deivison M. Faustino [2015]
e outros). Entre estes, vários intelectuais reunidos em torno da
Associação Caribenha de Filosofia e na Fundação Frantz Fanon, que
é dirigida por uma das filhas do ativista martiniquense, a socióloga
Mireille Fanon-Mendés-France.
Esta abordagem vê-se como parte integrante deste último
grupo. E busca fazê-lo com uma contribuição específica, trazendo
uma análise da ideia de “configuração colonialista”, que salvo
melhor juízo ainda não foi tratado nesta vasta bibliografia citada.
O autor se refere explicitamente ao termo no artigo “Argélia face a
face com os torturadores franceses” (1957, El Moudjahid); republicado
em “Por uma revolução africana” (1964). Por ele, Fanon buscava
entender a reprodução da posição de superioridade de “povos
conquistadores” sobre seus “conquistados”. Um fenômeno que se
inicia com o colonialismo, mas vai para além dele.
Para adentrar neste debate, vamos iniciar este texto retoman-
do, de forma sucinta e particular, o contexto intelectual em que
esta ideia veio à tona, quando o autor refletia sobre certos parale-

439
IntelectuaIs das áfrIcas

lismos entre as sociedades coloniais e as racistas (não colonizadas


ou pós-coloniais), na década de 1950.

O PARALELISMO ENTRE SOCIEDADES COLONIAIS E RACISTAS

O conjunto de ensaios que formam a obra de Fanon são quatro


livros - Pele negra, máscaras brancas (1952), O IV ano da Revolução
argelina (1958), Condenados da Terra (1961), Por uma revolução africana
(1964, póstumo, reunindo escritos entre 1956-1960) - e uma dezena
de artigos, sendo alguns de comentários políticos (não presentes no
livro de 1964) e outros especializados em psiquiatria, ainda pouco
explorados pelos comentaristas. Esta obra possui uma temática
cambiante, que se inicia com a discussão das relações étnico-raciais
entre negros e brancos - Pele negra, máscaras brancas (1952) - e
termina com a projeção dos movimentos de descolonização na
África como lutas de Libertação, em Condenados da Terra (1961). São
apenas dez anos de vasta produção teórica, interrompidos com a
morte prematura do autor, aos trinta e seis anos.
Um tema que se julga do maior interesse nesta obra, mas que
mereceu pouco destaque anterior é o paralelismo que este fazia
entre as sociedades coloniais e aquelas racistas, não colonizadas
ou pós-coloniais. Sobretudo, em relação aos fenômenos culturais
derivados da experiência dos colonizados, em geral, e das popu-
lações negras nas Américas, em particular. Há diversas passagens
neste sentido. Por exemplo, nos Condenados da terra (1961), o autor
refere-se ao jazz estadunidense em certa passagem:

São os colonialistas que se fazem os defensores do estilo


indígena. Lembramo-nos perfeitamente – e esse exemplo
reveste uma certa importância, porque não se trata exata-
mente de uma realidade colonial, das reações dos especia-
listas brancos em jazz quando, depois da Segunda Guerra
Mundial, cristalizaram-se de modo estável novos estilos,
como o be-bop. É que o jazz deve ser apenas a nostalgia
rouca e desesperada de um velho negro preso entre cinco

440
IntelectuaIs das áfrIcas

uísques, sua própria maldição e o ódio racista dos bran-


cos. A partir do momento em que o negro se apreende e
apreende o mundo diferentemente, faz nascer a esperança
e impõem recuo ao universo racista, é claro que o seu
trompete abandona o abafador e sua voz fica vibrante. Os
novos estilos em matéria de jazz não nasceram apenas da
concorrência econômica. Sem dúvida alguma, está aqui uma
das consequências da derrota, inevitável embora lenta, do
universo sulista dos Estados Unidos. E não é utópico supor
que em cinquenta anos a categoria jazz-grito soluçado
de um pobre negro maldito será defendida apenas pelos
brancos, fiéis à imagem congelada de um tipo de relações,
de uma forma de negritude5.

Colocações como esta de Fanon devem ser explicadas também


em seu contexto, na medida do possível. Nos anos 1950, em parti-
cular, havia um debate internacional sobre possíveis paralelismos
entre a questão colonial e a questão racial. Em particular, se a re-
ferência comparativa nas Américas eram as populações indígenas
em certos países latino-americanos (México, Bolívia, Peru) ou a
população negra nos E.U.A, na época, vivendo sobre separatismo
legal entre “raças”. A situação destes países seria de “colonialismo
interno”? “Semicolonial”? Ou se tratava de uma algo essencial-
mente diferente? Era um debate acadêmico, mas também político.
Em muitos momentos, inclusive, este tema tornava-se polêmi-
co entre os próprios ativistas negros. Assim foi, por exemplo, no I
Congresso dos Escritores e Artistas Negros, em 1956 (em que Fanon
esteve presente), quando Aimé Césaire fez uma crítica à condição
“semicolonial”, em que viveriam os negros estadunidenses6. O
comentário foi mal visto por alguns presentes. E o poeta foi alvo
de críticas ásperas de alguns intelectuais negros estadunidenses,
que diziam que tal termo lhes era estranho e inaceitável.

5 FANON, Frantz. Os condenados da terra. Juiz de Fora: Editora UFJF, 2005, p. 278. Em verdade,
esta passagem faz parte de um texto de 1958, que foi a comunicação (Fundamentos recíprocos da
cultura nacional e das lutas de libertação) do autor ao II Congresso dos Escritores e Artistas Negros,
em Roma.
6 CÉSAIRE, Aimé. Culture and colonization. Présence Africaine. Nos. 8,9,10. Jun./Nov, 1956.

441
IntelectuaIs das áfrIcas

Atento para este debate de época, Fanon, na frase citada,


originalmente redigida para o II Congresso dos Escritores e Artis-
tas Negros, em 1958, dizia que o exemplo citado (jazz nos E.U.A.)
seria “importante” porque não se tratava ali “exatamente de uma
“realidade colonial”. Como entender então esta colocação e está
problemática desde um enfoque fanoniano?
Fanon foi um dos intelectuais/ativistas dos anos 1950 e 1960
que deu maior importância à cultura no plano da luta anticolonial.
Algo talvez só comparável a Amílcar Cabral na mesma época. Para
o psiquiatra martiniquense, a cultura era a alma viva de um povo.
Sua práxis coletiva. Daí que, para ele, ao adentrar na luta nacional,
anticolonialista, o povo também transformaria sua cultura autóc-
tone numa nova cultura, cuja característica seria a vivacidade e a
mescla de práticas locais e em certa medida europeias. Sobre isto,
inclusive, ele escreveu um livro em particular: O IV da revolução
argelina (1958). Indo além, nos Condenados da terra (1961; capítulo
IV: Desventuras da consciência nacional) ele defendeu que a exis-
tência desta nova cultura, enquanto práxis popular, é que deveria
corporificar o partido revolucionário. Sem isto, este poderia repro-
duzir uma posição elitista e potencialmente neocolonial, ainda que
nacional no nível discursivo. Quanto mais esta práxis continuasse
viva, mais o povo conseguiria transformar a sociedade presente
(colonial) e futura (pós-colonial).
A partir desta perspectiva pode-se analisar novamente a ci-
tação do autor. Neste sentido, o jazz poderia ser entendido como
uma práxis de luta do negro estadunidense visando a superação
do universo racista daquele país. Sua velocidade, sua mobilidade
seriam, pois, marcas desta praxiologia que estaria sendo construída
por ele enquanto povo – e a frase tem algo de profético dado o
Movimento dos Direitos Civis na década de 1960. Ou seja, a impor-
tância do exemplo, para Fanon, é que ele aponta para o paralelismo
do contexto colonial com o contexto racista estadunidense, que
ele no caso pretendia destacar.

442
IntelectuaIs das áfrIcas

Trata-se, em verdade, de um tema caro a Fanon, sobre o qual


ele refletiu e durante toda sua trajetória intelectual e política. Esta
não era uma questão secundária para ele, e pode-se imaginar o
porquê. Em primeiro lugar, por ser um homem negro, indisfarça-
velmente negro, num mundo racista. Em segundo lugar, por sua
formação em psiquiatria. Em terceiro lugar, por sua formação e
trajetória cosmopolita: Martinica, França, Argélia, Tunísia; além
de viagens rápidas por URSS, Itália, Egito, Marrocos, E.U.A., Mali,
Senegal etc.
A primeira vez que aquele autor fez referência a este paralelis-
mo foi em sua tese – negada - de conclusão do Curso de Medicina
em Lyon, na França: Pele negra, máscaras brancas (1951). Para os que
não conhecem o livro, pode-se dizer, sumariamente, que se trata
de um estudo “psico-filosófico” acerca da dinâmica das relações
entre brancos e negros à sua época. Sua tese essencial é de que esta
seria caracterizada como um duplo narcisismo: o branco escravo
de sua brancura, o negro escravo de sua negrura.
É sabido que, por sua abertura de conteúdo e temática (lin-
guagem, filosofia, psiquiatria, sociologia), assim como por sua
característica poética, o livro pode ser lido de formas diversas.
Algo que fica evidente na famosa interpretação de Homi Bhabha
sobre ele7. Mas não resta dúvida que uma grande novidade deste
livro específico de Fanon é que nele o racismo não é visto como
algo específico de certas sociedades, como se costumava analisar
à época. Em particular, em relação às coloniais e/ou às anglófonas
(E.U.A., Austrália, Grã-Bretanha, África do Sul). Ali, o autor exa-
mina o racismo dos franceses. E, observando-o de perto (em sua
vivência) e abstratamente chega à conclusão de que na verdade
existe uma essência racista, que pode se apresentar na aparência
de formas diversas.
Isto ocorre, segundo nosso autor, porque os processos de
racialização são sistêmicos. Eles prenderiam tanto negros quanto
7 Neste particular, ver, entre outros: BARBOSA, Muryatan S. Homi Bhabha leitor de Frantz Fanon:
Acerca da prerrogativa pós-colonial. Revista Crítica Histórica, v. 2, p. 217-231, 2012.

443
IntelectuaIs das áfrIcas

brancos em uma lógica binária e maniqueísta. Algo que, do ponto


de vista estrutural, permitiria a naturalização da inferioridade de
uns (negros) em relação a outros (brancos). Mas que traria conse-
quências psiquiátricas das mais variadas.
Em sua posição sentida de superioridade, o branco não precisa
do reconhecimento alheio para a formulação do seu Eu. O negro,
para ele, não é exatamente um ser inferior. É um não-Ser8. Daí a
conclusão de Gordon de que, para Fanon, o racismo nega a dialética
do Eu e do Outro, que seria base da vida ética. A consequência
lógica disto é que contra ele todo processo de desumanização é
aceitável9.
Mas ao fazer esta crítica, Fanon não busca legitimar um exa-
me a-histórico da questão. O racismo é fruto do colonialismo, e
é assim que ele o entende. Daí que ele diga que as derivações
psicológicas do racismo deveriam ser entendidas tendo em conta
a subalternização econômica de alguns povos sob outros. Em suas
próprias palavras:

A análise que propomos é psicológica. No entanto, julga-


mos que a verdadeira desalienação do negro supõe uma
súbita tomada de consciência das realidades econômicas
e sociais. Se há um complexo de inferioridade, este surge
após um processo duplo: econômico, inicialmente; em
seguida, pela interiorização, ou melhor, epidermização
dessa inferioridade10.

Ao se observar tal afirmação, vê-se que o autor se aproxima


de uma abordagem sistêmica da questão étnico-racial. Seria uma
interpretação marxista desta temática? Não há elementos para tal
afirmação. Mas vale afirmar que ao longo do livro veem-se pou-
quíssimas citações de Marx, mas muitas de Hegel e de Nietzche.
Por outro lado, há uma questão contextual que merece destaque.

8 FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008, p. 26.
9 GORDON, Lewis. Prefácio. In: Pele negra, máscaras brancas. Salvador: EDUFBA, 2008, p. 16.
10 Frantz Fanon. op. cit. 2008, p. 28.

444
IntelectuaIs das áfrIcas

Em 1952, o Partido Comunista Francês (PCF) ainda possuía uma


posição dúbia quanto a questão colonial francesa, sem defender
abertamente a necessidade das descolonizações africanas. Uma
posição que levará a desfiliação de vários intelectuais negros à
época deste partido, como A. Césaire em 195611.
Evidentemente, estes fatos não significam que Fanon, assim
como outros intelectuais negros e africanos da época, estivessem
se desvinculando do marxismo. Mas eles estavam, sem dúvida, se
desligando do PCF e de sua interpretação oficial do marxismo. É
uma conjuntura importante para explicar a ebulição da intelec-
tualidade negra – africana e diaspórica - na década de 1950. Esta
marcou a trajetória de ativistas negros de esquerda da época, que
eram também pan-africanistas, como Cheikh Anta Diop, Aimé
Césaire, Alioune Diop, Mamadou Dia, Joseph Ki-Zerbo e próprio
Frantz Fanon12.

A CHAMADA CONFIGURAÇÃO COLONIALISTA

Depois de Pele negra... a trajetória de Fanon foi se tornando


cada vez mais conturbada. Entre 1953 e 1956, trabalhou no Hos-
pital de Blida-Joiville na Argélia. Foi uma experiência dramática,
que lhe mostrou os limites do trabalho psiquiátrico num país em
convulsão social. Em especial, após o início da Guerra de Libertação
comandada pela FLN, em 1954. O dilema era total. Como integrar
os indivíduos à “normalidade”, se está “normalidade” era o colo-
nialismo e a guerra? O que significava ser psiquiatra neste cenário?

Não levamos a ingenuidade até o ponto de acreditar que os


apelos à razão ou ao respeito pelo homem possam mudar
a realidade. Para o preto que trabalha nas plantações de
cana em Robert (Martinica) só há uma solução, a luta. E essa

11 AIMÉ CESAIRÉ. Carta aberta à Maurice Thorez.Também em 1956, e talvez não por acaso, é o
livro clássico de George Padmore, importante líder pan-africanista da época: “Comunismo ou
pan-africanismo?”.
12 Neste sentido, como recorda Deivison M. Faustino (2015), vale citar a constatação do próprio
Fanon à época (1952), na conclusão de Pele Negra, máscaras brancas:

445
IntelectuaIs das áfrIcas

luta, ele a empreenderá e a conduzirá não após uma análise


marxista ou idealista, mas porque, simplesmente, ele só
poderá conceber sua existência através de um combate
contra a exploração, a miséria e a fome. (FANON, Apud
FAUSTINO, op. cit 2008, p. 222).

Conforme a guerra se desenvolvia a situação se tornou cada


vez mais tensa. Fanon começou então a tratar cada vez mais de
pacientes – colonialistas e colonizados – que tinham passado por
processos de violência extrema, como vítimas ou algozes. Em par-
ticular, torturados e torturadores, cada vez mais comuns, dada a
insanidade da contra insurgência francesa. Não havia meio termo
possível. Em 1956, escreveu uma carta pública, demitindo-se13.
Este era o fim de um ciclo e o início de outro: aquele do Fanon
revolucionário. Por um lado, sua atitude o tornou uma pessoa mais
confiável aos quadros diretivos da FLN. Por outro, na prática, sua
atitude o afastou das relações com a maior parte da esquerda fran-
cesa à época, que hipocritamente não se posicionava abertamente
contra o colonialismo daquele país14. Era caminho sem volta. E,
desde então, o psiquiatra martiniquense buscou só manter relações
pessoais com os que tinham o mesmo compromisso político que
ele, ou que poderiam ser importantes para divulgar a revolução
argelina no exterior.
Em 1957, Fanon se integrou de vez a FLN, como Ministro da
Informação e representante do Governo Provisório Argelino no
Exterior, desde a Tunísia. Neste período, entre 1958 e 1959, ele
esteve muito próximo à liderança de Ben Khedda e de Saad Da-
lheb, que foram posteriormente secundarizados na FLN pelo grupo
hegemônico do primeiro presidente argelino (1962): Ben Bella15.
Uma das funções que Fanon exerceu com mais afinco nestes anos
foi editar o jornal El Moudjahid, que se tornou o principal meio de
13 FANON, Frantz. Letter to the Resident Minister. In: FANON, F. Toward the african revolution:
Political essays. New York: Grove Press, 1994.
14 FANON, Frantz. French Intellectuals and Democrats and the Algerian Revolution. In: Idem,
Ibidem, 1994.
15 CAUTE, David. Fanon. Collection Modern Masters. London: Fonata/Collins, 1970, p. 54.

446
IntelectuaIs das áfrIcas

divulgação da FLN no exterior. Mas na medida em que ele ia se


integrando à organização, outras obrigações apareciam. Colocava-
se, por exemplo, a necessidade de posicionar-se sobre questões
internas do partido e do futuro da revolução argelina. É a partir
deste contexto que cabe analisar a maior parte dos seus escritos
entre 1956 e 1961.
O primeiro texto desta época que merece destaque é Racismo e
cultura (1956), escrito pelo autor para o I Congresso dos Escritores
e Artistas Negros, em Paris, 1956. O fato de o autor falar sobre
esta temática num Congresso tão importante já merece atenção
em si16. Afinal, vê-se que mesmo após se aproximar da FLN, esta
continua sendo uma questão primordial para ele.
Este ensaio de Fanon é seminal. Nele, o autor inicia defenden-
do uma questão primordial: o racismo deve ser entendido desde
uma abordagem sistêmica e histórica. Ele é parte integrante de uma
condição de “hierarquização sistemática, perseguida de maneira
implacável”17, visando um trabalho de “escravização econômica”
ou “mesmo biológica”, de um grupo populacional sobre outro. Em
outros termos: “o racismo é um elemento de um conjunto mais
vasto: a opressão sistematizada de um povo”18. Ele não é um todo,
“mas o elemento mais visível (...) e mais grosseiro de uma estrutura
dada”19. Ele é a “norma” desta sociedade e desta cultura, que busca
inferiorizar e desumanizar povos subalternizados20.
Na medida em que, geralmente, vê-se em Fanon “apenas”
um autor/ativista anticolonialista, tende-se a ler seus textos neste
sentido. O racismo, neste sentido, seria próprio de uma situação
16 Em fins da década de 1950, ocorreram dois importantes Congressos que uniram intelectuais
de destaque da África e da diáspora africana nas Américas. Trata-se do I (Paris, 1956) e do II
(Roma, 1958) Congresso dos Escritores e Artistas Negros. A ambição dos eventos era defender
os interesses das nações africanas e o enriquecimento da solidariedade internacional do povo
negro. Os organizadores foram a Sociedade Africana de Cultura e a revista Présence Africaine, a
principal revista do mundo negro-africano no século XX.
17 FANON, Frantz. Racismo e cultura. In: SANCHES, Manuela R. (Org.). Malhas que os impérios
tecem: Textos anticoloniais, contextos pós-coloniais. Lugar da História. Lisboa: Edições 70, 2012,
p. 273.
18 Idem, ibidem, p. 275.
19 Idem, ibidem, p. 274.
20 Idem, ibidem, p. 281.

447
IntelectuaIs das áfrIcas

colonial, por isto entendendo à dominação colonial de um país


(metrópole) sobre outro (colônia). Mas o autor está dizendo mais
do que isto. O que ele está afirmando é que o racismo é próprio de
um processo de opressão, de desumanização e de hierarquização
sistêmica “num sistema determinado”21. O colonialismo é certa-
mente uma forma desta dominação, mas não a única. Daí porque
o autor cita novamente a situação estadunidense como exemplo
desta. Trata-se de uma generalidade que expressa a universalidade
de um sistema:

“Diz-se corretamente que o racismo é uma chaga da huma-


nidade. Mas é preciso que não nos contentemos com essa
frase. É preciso procurar incansavelmente as repercussões
do racismo em todos os níveis de sociabilidade (...).
Para voltar à América, o racismo obceca e vicia a cultura
americana. E esta gangrena dialética é exacerbada pela
tomada de consciência e pela vontade de luta de milhões
de negros e judeus visados por esse racismo (...)
O racismo avoluma e desfigura o rosto da cultura que o
pratica. A literatura, as artes plásticas, as canções para
costureirinhas, os provérbios, os hábitos, os patterns,
quer se proponham fazer-lhe o processo ou banalizá-lo,
restituem o racismo (...)
O racismo entra pelos olhos dentro, precisamente, porque
se insere num conjunto caracterizado: o da exploração
desavergonhada de um grupo de homens por outro que
chegou a um estádio de desenvolvimento técnico superior.
É por isso que, na maioria das vezes, a opressão militar e
econômica precede, possibilita e legitima o racismo “22.

Para Fanon, não existem graus de racismo23. O racismo que


lincha e o que exotiza tem o mesmo fundamento e funcionalidade.
E onde não se vê o racismo tão explícito é porque “o rigor do siste-
ma torna supérflua a afirmação cotidiana de uma superioridade”24.
21 Idem, ibidem, p. 282.
22 Idem, ibidem, p. 278.
23 Idem, ibidem, p. 282.
24 Idem, ibidem, p. 278.

448
IntelectuaIs das áfrIcas

Duas outras características do racismo são levantadas pelo


autor. A primeira é que, na medida em que é parte integrante de
um processo maior de desumanização – objetiva e subjetiva – o
racismo tem grande capacidade de introjeção e naturalização. Ele
é a normada sociedade. E, por conta disto, tanto racistas quanto
os grupos racializados (negativamente) tendem a se orientar por
sua simbologia. Mas vale dizer, no caso do último grupo, isto não é
propriamente uma escolha, visto que sua existência própria como
grupo cultural lhe é sistematicamente negada. O segundo é que,
para ser funcional, o racismo precisa estar sempre se remodelan-
do. Em certos períodos da história, podia-se justificar o racismo
com argumentos biológicos. No entanto, na medida em que as
sociedades estão cada vez mais em contato e em inter-relação, tais
argumentos precisam ser sofisticados. E a partir deste momento,
o racismo tende a se reproduzir por justificativas supostamente
culturais e/ou psicológicas atribuídas aos grupos inferiorizados.
É o momento da aculturação ou da assimilação. Tal mudança não
implica necessariamente uma evolução da humanidade, mas uma
readequação25.
Esta dinâmica não se limita ao elemento racista, pois ela inclui
também o grupo inferiorizado. Em particular, seus intelectuais.
Na medida em que percebe as falácias do racismo, os intelectuais
deste grupo buscam revalorizar suas próprias tradições e culturas.
Tornam-se rebeldes. Buscam a “verdade” das realizações dos seus
povos, falsificadas pelos dominadores. Para Fanon, este pode ser
o início da participação deles na luta-anticolonial, como uma luta
de libertação26.
A partir de tal análise, vale então retomar a questão anterior,
do paralelismo entre sociedades coloniais e racistas. Neste ponto,
a argumentação de Fanon é peremptória. Para ele, ambas as socie-
dades são fruto de um mesmo processo de subjugação de alguns
grupos populacionais sobre outros. Em verdade, como visto, o

25 Idem, ibidem, pp. 278-282.


26 Idem, ibidem, pp. 282-285.

449
IntelectuaIs das áfrIcas

autor utiliza termos diversos para descrever este fato: exploração,


hierarquização, inferiorização, opressão, desumanização. Mas o
importante é que ele vê tais termos como cambiantes, pois seriam
partes de um mesmo processo de dominação, que possuiria um
mesmo caráter estrutural, num sistema determinado, que nasce
com o colonialismo, mas não morre com ele.
Um ano após ter escrito Racismo e cultura, Fanon volta a esta
temática em certos ensaios do El Moudjahid. O que melhor sintetiza
a posição do autor à época é o de uma configuração colonialista,
que ele traz no ensaio “Argélia face a face com os torturadores fran-
ceses”. Trata-se de um texto originalmente publicado no jornal em
Setembro de 1957, tendo sido republicado em “Por uma revolução
africana” (1964).
Neste ensaio, Fanon trata especificamente do tema da tortura,
que o vinha angustiado desde seu trabalho psiquiátrico na Argélia.
O artigo se opõe àqueles que, por ingenuidade ou cinismo, acre-
ditavam que a tortura da polícia e das tropas francesas na Argélia
era um problema pontual. Exceções, como diziam os “democratas”
e “liberais” franceses à época.
Em oposição a tal interpretação, neste ensaio, ele defende que
a tortura, longe de ser uma exceção, seria a regra de uma configu-
ração colonialista, que seria estruturada pela dominação policial,
pelo racismo sistemático e por um processo de desumanização
racionalmente perseguido. Em suas palavras:

A Revolução Argelina busca sem dúvida restaurar seus


direitos à existência nacional. Isso, obviamente, testemu-
nha à vontade do povo. Mas o interesse e o valor da nossa
Revolução residem na mensagem de que ela é portadora.
As práticas verdadeiramente monstruosas que apareceram
desde 1 de Novembro de 1954, são surpreendentes espe-
cialmente por causa da extensão em que elas se tornaram
generalizadas. Na realidade, a atitude das tropas francesas
na Argélia se encaixa em um padrão de dominação policial,
de racismo sistemático e de desumanização racionalmen-

450
IntelectuaIs das áfrIcas

te perseguida. A tortura é inerente a toda configuração


colonialista27.

Ou seja, conforme a colocação acima, a tortura não é a regra


do colonialismo, mas de algo maior: a configuração colonialista28.
E isto fica evidente na forma como Fanon completa a frase citada:

A revolução argelina, ao propor a libertação do território


nacional, é voltada tanto para a morte desta configuração
quanto a criação de uma nova sociedade. A independên-
cia da Argélia não é apenas o fim do colonialismo, mas o
desaparecimento, nesta parte do mundo, de um germe de
gangrena e de uma fonte de epidemia.29.

27 Em inglês:
The Algerian Revolution does of course restore its rights to national existence. It does of course
testify to the people’s will. But the interest and the value of our Revolution reside in the message
of which it is the bearer.
The truly monstrous practices that have appeared since November 1, 1954, are surprising espe-
cially because of the extent to which they have become generalized ... In reality, the attitude of
the French troops in Algeria fits into a pattern of police domination, of systematic racism, of
dehumanization rationally pursued. Torture is inherent in the whole colonialist configuration.
(FANON, F. op. cit., 1994, p. 64).
28 O termo utilizado por Fanon em francês é “ensemble colonialiste”. Mantivemos o termo “con-
figuração colonialista”, utilizado pelo tradutor da versão inglesa de 1994 (Haakon Chevalier),
por acharmos que ele traduz bem este sentido original, em francês. Segue a citação original em
francês:
Les pratiques authentiquement monstrueuses qui sont apparues depuis le 1er novembre 1954
étonnent surtout par leur généralisation... En réalité, l’attitude des troupes françaises en Algérie
se situe dans une structure de domination policière, de racisme systématique, de déshumanisation
poursuivie de façon rationnelle. La torture est inhérente à l’ensemble colonialiste. (FANON, F.
Pour la révolution africaine, 2001, p. 74-75.).
29 Em nossa opinião, a tradutora da edição portuguesa da obra (Em defesa da Revolução africana,
1980), Isabel Pascoal, errou ao caracterizar o termo “ensemble colonialiste” por “todo colonialista”,
conforme pode-se observar abaixo:
[...] A tortura é inerente ao todo colonialista.
A Revolução Argelina, propondo-se a libertação do território nacional, visa não somente a
morte deste conjunto, como a elaboração de uma nova sociedade (...) (FANON, F. Em defesa da
revolução africana, 1980, p. 71).
Ao fazê-lo desta forma, inclusive, ela não captou a riqueza da frase seguinte, em que Fanon diz
que o objetivo da revolução argelina não seria apenas promover a independência. Para ele, não se
trata, tão somente, de destruir o “todo colonialista”. Trata-se de destruir à estrutura colonialista
– a configuração colonialista - que se consolida com o colonialismo, mas que continua a existir
para além dele.
Em inglês:
The Algerian Revolution, by proposing the liberation of the national territory, is aimed both at
the death of this configuration and at the creation of a new society. The independence of Algeria
is not only the end of colonialism, but the disappearance, in this part of the world, of a gangrene
germ and of a source of epidemic. (FANON, F. op. cit., 1994, p. 64).

451
IntelectuaIs das áfrIcas

Vale repetir, para o autor, a tarefa maior da Revolução Argelina,


que ele defendia, não seria “apenas” derrotar o colonialismo. Mas
destruir tal configuração colonialista que, portanto, por lógica,
deveria ser entendida como algo maior que o colonialismo.
As palavras do autor são bem colocadas30. Enquanto fe-
nômeno sistêmico, para o autor, a tortura tinha um papel fun-
damental no colonialismo, porque este não podia existir sem
a possibilidade de violência contra o colonizado, por danos
físicos, violações e massacres. Mas, vale repetir, o colonialismo
(dominação político-administrativa de um país sobre outro) é
apenas uma forma da configuração colonialista. E, para deixar
isto evidente, ele afirma em seguida: “A tortura é uma expressão
e um meio da relação entre conquistadores-conquistados”31.
Em suma, algo cuja origem foi o colonialismo, mas que existe
para além deste. É parte de uma estrutura contínua de relações
sócio-psíquicas.
A tortura, portanto, é parte integrante da violência necessária
à reprodução da configuração colonialista. E, portanto, do compor-
tamento perverso que a perpetua. Em particular, do tipo sádico,
que sente prazer em infligir “dor” ao Outro32. É a lógica do sistema
que favorece a psicopatia, que passa a ser vista como normalidade
e, inclusive, como mérito.

DESCOLONIZANDO

Este termo, configuração colonialista, parece importante para


sumarizar o paralelismo entre as sociedades racistas (não coloniza-
das ou pós-coloniais) e as sociedades coloniais, que Fanon buscou
entender durante sua trajetória intelectual e política. Ao longo
30 Na verdade, tratava-se de um esforço coletivo da equipe do El Moudjahid, como mostrou a secretária
de Fanon à época, Alice Cherki, em sua biografia do autor. Este trabalho coletivo minimizava a
probabilidade de erros e intepretações dúbias. Ver: Alice Cherki. Fanon: A portrait, 2006, p. 151.
31 FANON, Frantz. op. cit, 1994, p. 66.
32 Daí que Fanon fale da importância do estupro nesta estrutura colonial. O estupro é, eminente-
mente, um ato sádico. Ele permite a realização de uma vontade contra a Outra. Quanto mais dor
ele conseguir causar em sua vítima, mais prazer o estuprador terá no seu ato. Ver: Idem, ibidem,
1994, p. 72.

452
IntelectuaIs das áfrIcas

deste ensaio, fez-se referências a passagens dos livros e ensaios


do autor que apontam para este sentido, entre 1952 e 1957.
Mas uma observação faz-se oportuna. Se esta ideia possui
tal centralidade, porque o termo configuração colonialista, por
exemplo, não foi utilizado explicitamente na obra maior de Fa-
non: Os condenados da terra (1961)? Esta é a uma pergunta difícil
de responder. Em diversas passagens dos Condenados... o autor faz
referências comparativas entre países e sociedades do chamado
“Terceiro Mundo”. Ou seja, suas análises comparativas continuam
sendo importantes. Por exemplo, atento aos perigos do neoco-
lonialismo, que já estava presente na África em 1961, Fanon cita
criticamente o caso latino-americano, pós-independências nacio-
nais. Vale a pena citar:

No seu aspecto decadente, a burguesia nacional (no período


pós-independente) será consideravelmente ajudada pelas
burguesias ocidentais, que se apresentam como turistas
amantes do exotismo, de caça, de cassinos. A burguesia
nacional organiza centros de férias e de repouso, tempo-
radas de prazer para a burguesia ocidental. Essa atividade
tomará o nome de turismo e será assimilada a uma in-
dústria nacional. Se quisermos uma prova dessa eventual
transformação dos elementos da burguesia ex-colonizada
em organizadores de festas para a burguesia ocidental,
vale a pena evocar o que aconteceu com a América Latina.
Os cassinos de Havana, do México, as praias do Rio, as
meninas brasileiras, as meninas mexicanas, as mestiças
de treze anos, Acapulco, Copacabana, são estigmas dessa
depravação da burguesia nacional. Porque não tem ideias,
porque está encerrada em si mesma, separada do povo,
minada por sua incapacidade congênita para pensar no
conjunto dos problemas em função da totalidade da na-
ção, a burguesia nacional assumirá o papel de gerente de
empresas do Ocidente e praticamente converterá seu país
em lupanar da Europa.33

33 FANON, Frantz. op. cit. 2005, pp. 182-183 .

453
IntelectuaIs das áfrIcas

Para o autor, nos Condenados..., o caso latino-americano era um


ótimo exemplo de falsas descolonizações, que lhe interessava cri-
ticar à época. Neste caso, vale a pena citar alguns dados históricos
para situar o leitor. Escrito em 1961, os Condenados visava refletir,
essencialmente, sobre os dilemas das descolonizações africanas,
em um momento crucial da história política do continente. Isto
porque, após décadas de luta anticolonial, os movimentos de li-
bertação nacional caminhavam firmemente para conseguir o que
aparentemente buscavam: as independências nacionais. Isto era
especialmente verdadeiro para a África Ocidental, inglesa e francó-
fona. Pois, desde 1957, após a independência de Gana, iniciaram-se
negociações concretas entres as duas metrópoles – Inglaterra e
França – e as elites dos movimentos nacionais africanos para con-
trolar tal processo de libertação, que se tornava inevitável.
Estas negociações, muitas vezes secretas, é que perturbavam
líderes revolucionários da luta anticolonialista, como Fanon e
muitos outros à época. Ademais, nos casos em que havia grandes
interesses materiais nas colônias ou que as populações brancas
eram numerosas, tal abertura não existia. E, neste momento, a
luta armada era a única saída, como no caso da África portuguesa,
Argélia, Rodésia, África do Sul e outros. Em suma, havia uma gap
que dificultava a formação de uma frente africana anticolonialista.
Nos casos em que as lideranças africanas conseguiram negociar e
fazer avançar suas lutas nacionais, mais laços elas tendiam a manter
com as antigas metrópoles. Daí a crítica ao neocolonialismo de
alguns. E vale lembrar que a França “concedeu” as independências
nacionais de dezesseis países da África Ocidental, em 1960. Por
outro lado, onde não havia esta negociação, mais o fosso entre as
duas partes aumentava, fortificando as disputas ideológicas e os
conflitos armados ao gosto próprio da Guerra Fria34.
34 Havia aí também uma questão geracional. Nas colônias francesas e inglesas, em particular, na
África Ocidental, as elites africanas tinham tido uma possibilidade um pouco maior de ascensão
social e instrução formal, que não ocorria em outras regiões da África subsaariana. E elas souberam
se aproveitar da luta antifascista e da ascensão da hegemonia estadunidense, no pós-Guerra, para
conseguir condições mais favoráveis das metrópoles. Era a geração do Entre guerras, que inclu-
sive tinha feito sua formação intelectual e política nas metrópoles, em Londres ou Paris. Sem o
mesmo espaço de interação, formada no início da ascensão europeia (década de 1950), a geração

454
IntelectuaIs das áfrIcas

Como revolucionário que era, formado na luta anticolonialista


argelina, Fanon não admitia compromissos com as antigas metró-
poles. Para ele, existiam as falsas descolonizações, negociadas com
as antigas metrópoles, e as verdadeiras descolonizações, conquis-
tadas pela luta popular. O livro Condenados... foi escrito e editado
visando esta luta político-ideológica. Era preciso esclarecer para
a esquerda internacional e para as elites africanas (sobretudo as
que se recusavam a apoiar a causa argelina), que a luta armada ali
não era uma escolha entre outras. Ela era a única possível diante
da determinação dos franceses em ali ficar recorrendo à violência
para isto. Para Fanon, a luta armada era um mal necessário para a
descolonização da Argélia.
É neste sentido que se pode esclarecer certas dúvidas que
se possa ter numa leitura atenta dos Condenandos... Ao buscar le-
gitimar uma posição anticolonialista revolucionária, Fanon e seu
editor, François Maspero35, tomaram decisões radicais. A primeira
foi convidar Sartre para fazer o Prefácio. Mais do que isto, aceitar
o texto, pois ele distorcia o texto original, ao destacar exagera-
damente a defesa da violência anticolonial. De uma forma ou de
outra, era um modo de tornar a causa que o livro defendia mais
conhecida internacionalmente, o que de fato ocorreu. A segunda foi
incluir como subcapítulo o texto “Fundamentos recíprocos da cultura
nacional e das lutas de libertação”, que na verdade foi escrito pelo
autor como comunicação ao II Congresso dos Escritores e Artistas
Negros (1958). Por último, e mais importante, foram ali reunidas
(Capítulo V: Guerra colonial e distúrbios mentais), algumas notas de
análise que o médico psicanalista Frantz Fanon tinha guardado do
seu trabalho na Tunísia e Argélia.

do pós-Guerra não tinha as mesmas facilidades. Ademais, o exemplo vitorioso do Vietnã (1954),
China (1949) e Cuba (1959) era muito forte, mostrando que a alternativa socialista era possível.
Para estes, não se tratava mais, “tão somente”, de conquistar as independências nacionais, mas
de construir uma alternativa civilizacional, que em geral era visto como uma construção própria
do socialismo. Daí a famosa frase de Fanon, em sua comunicação ao II Congresso dos Escritores
e Artistas Negros: “No interior de uma relativa opacidade, cada geração deve descobrir a sua
missão, cumpri-la ou traí-la”. FANON, Frantz. op. cit., 2005, p. 239.
35 Supondo que Fanon tenha participado da edição do livro.

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Os que conhecem os Condenados... percebem claramente que


a inclusão de tais notas é estranha ao livro. Do ponto de vista de
um editor, elas poderiam estar, no máximo, como anexos. Além
do que, em verdade, são notas avulsas, que apesar dos comentá-
rios esparsos posteriores do autor, não formam um texto coeso.
Aparentemente, portanto, elas mais atrapalham uma primeira
leitura do livro do que ajudam, pois não se entende ainda qual a
importância que elas teriam para o argumento central do autor.
Ademais, ao final das notas, de cerca de oitenta páginas, entra a
famosa conclusão do livro que, com o perdão da linguagem colo-
quial, ali, parece, “cai de paraquedas”.
É impossível que Maspero, já famoso editor à época, não te-
nha notado o incomodo que seria a inclusão destas notas no livro.
Provavelmente, Fanon as queria lá, embora não tenha tido tempo
hábil para analisá-las como gostaria. Maspero aceitou tal posição
dele. Afinal, vale lembrar, foi um livro escrito nos últimos meses
de vida autor, que morreria de leucemia em fins de 1961. Mas por
que Fanon as queria lá?
Aqui cabem algumas ilações. A resposta mais óbvia é que o
autor queria publicitar os horrores que estavam acontecendo na
Argélia. Em particular, por conta do “trabalho” de contra insur-
gência, que para ele em grande parte explicavam a violência do
colonizado, tido por “terrorista” e “irracional” pelos seus detra-
tores. Mas ousa-se outra hipótese. Defende-se aqui que tais notas
foram ali incluídas porque eram parte de um projeto de estudos
maior do autor, que ele sabia que não poderia concluir por estar
doente de leucemia. Neste ele pretendia explorar, do ponto de
vista psicanalítico, as consequências humanas da reprodução de
sistemas de desumanização como o colonialismo. Daí que, preven-
do as objeções a esta parte da obra, o autor tenha deixado escrito
nos Condenados:

Abordamos aqui o problema dos distúrbios mentais origi-


nados na guerra de libertação nacional travadas pelo povo

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IntelectuaIs das áfrIcas

argelino. Talvez se julguem inoportunas e singularmente


deslocadas neste livro estas notas de psiquiatria. Mas nada
podemos fazer.36

Na medida em que o alvo primordial de Fanon, nos Condena-


dos..., era o sistema colonial - em particular aquele defendido pelos
franceses na Argélia -, se entende porque ele não tenha retomado
os paralelos que vinha pensando anteriormente, entre diferentes
sistemas de desumanização, como os coloniais e racistas. Trazer
esta comparação num livro de denuncia seria perigoso, pois poderia
deslegitimar seu ponto primordial: aquele de que era a violência
perpetrada pelo colonialismo que explicaria (e de certa forma
legitimaria) a violência do colonizado.
Entretanto, do ponto de vista lógico, como vimos, não havia
nenhuma impossibilidade teórica para que Fanon não se retoma
ali suas análises comparativas entre sociedades coloniais e racistas
(não colonizadas ou pós-coloniais). Pelo contrário, se o tivesse feito,
teria sido a culminação de um esforço intelectual de pelo menos
uma década. Por outro lado, fazê-lo, seria pedir que o psiquiatra
martiniquense colocasse seus interesses teóricos e profissionais
acima dos políticos. E isso é algo que ele não faria, quanto mais
após aderir a Revolução Argelina.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O momento histórico hoje é outro. De certo modo, tal momen-


to continua buscando respostas para certas questões que Fanon já
haviam se perguntado teoricamente na década de 1950, mas que
não teve tempo de resolver por completo. Os Condenados é um livro
belíssimo. Ele é uma resposta possível para as questões políticas que
se colocavam de forma candente para o autor, no início de 1960. Mas
ele não é a resposta final para os dilemas teóricos que formaram o
intelectual Frantz Fanon, em toda sua amplitude e grandeza.

36 Idem, ibidem, p. 287.

457
IntelectuaIs das áfrIcas

Na retomada deste pensamento, defende-se que a reflexão


sobre a ideia de uma configuração colonialista é essencial, pois
foi ela quem sintetizou melhor sua tentativa de pensar compa-
rativamente sobre sociedades aparentemente diferentes a partir
de uma mesma essência: a relação conquistador-conquistado. O
que implicaria dominação militar (policial), racismo sistemático e
desumanização racionalmente perseguida. E em que a tortura é a
regra do sistema, e não a exceção37.
É importante ater-se a esta ideia de conquista aí presente, pois
é ela que, em última instância, fundamenta as análises comparativas
e os paralelismos que Fanon ousou pensar. Em suma, independen-
temente de serem sociedades coloniais, racistas, neocoloniais,
subdesenvolvidas (latino-americanas), as sociedades analisadas pelo
autor são sociedades formadas e reproduzidas por um processo de
conquista, em que alguns grupos populacionais submetem outros,
assim criando formas de manter e naturalizar sua dominação no
tempo. Este sistema se mantém pela desumanização de suas víti-
mas, por um processo que inclui exploração (trabalho e biológica)
e dominação (objetiva e subjetiva, ou seja, despersonalização).
Obviamente, as formas de manutenção deste sistema mudam
historicamente. A polícia faz hoje o papel que a força militar extre-
ma fazia anteriormente. O racismo de hoje tende a ser implícito, en-
quanto que o de outrora era explícito. A hierarquização de culturas
aparece como uma forma de relativismo cultural. Mas na essência
estas e outras formas de exploração e dominação tem a mesma
finalidade: manter uma configuração colonialista. Sumariamente,
a reprodução da posição de superioridade de “povos conquista-
dores” sobre seus “conquistados”. E, vale lembrar, entendendo a
centralidade deste problema é que Fanon disse que o objetivo da
revolução argelina não era “apenas” conquistar a independência
nacional, mas destruir tal configuração colonialista.

37 FANON, Frantz. op. cit. 1994, p. 64.

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IntelectuaIs das áfrIcas

O fato de o autor utilizar termos distintos visando definir tal


situação histórica de conquista (exploração, hierarquização, inferio-
rização, opressão, desumanização, dominação, despersonalização
etc) revela suas dificuldades em definir precisamente o que buscava
analisar. Algo comum a todo pensador pioneiro. Mas revela também
sua genialidade, ao buscar entender as múltiplas determinações
e consequências que tal realidade impõe à humanidade: ontem,
hoje e futuramente.
Sem dúvida, cabe refletir se o termo configuração colonialista
consegue abarcar toda a diversidade e complexidade deste fenô-
meno mundial. É um debate em aberto, tanto do ponto de vista
teórico, quanto político. Mas penso que está reflexão instiga um
público mais amplo a entender a atualidade do pensamento de
Frantz Fanon. E por que este psicanalista martiniquense, morto
aos trinta e seis anos, merece ser visto e lido como um clássico
do século XX.

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461
IntelectuaIs das áfrIcas

PALAVRAS FINAIS

Silvio de Almeida Carvalho Filho


Washington Santos Nascimento

Os intelectuais das Áfricas transpassaram as fronteiras do con-


tinente e se tornaram, de certa forma, ícones de uma estrutura de
pensamento que dialoga/diverge com a produção de conhecimento
hegemônica, mas a transpassam, por isso recebem a denominação
de pós-coloniais e decolonais, em muitos casos.
Intelectuais, como Achille Mbembe e Chimamanda Adichie,
são lidos, seus textos e vídeos tornaram-se virais nas redes sociais
e são recuperados politicamente como aqueles que podem trazer
perspectivas epistêmicas e novas políticas. Já outros, como Franz
Fanon e Amílcar Cabral, ainda continuam referências, mesmo depois
de anos de suas publicações. Eles atuaram, ora como mediadores,
ora como tradutores de questões colocadas em seu contexto social,
como Mernissi, que é percebida como uma tradutora intercultural
do universo feminino do mundo árabe-islâmico. Também foram
intelectuais que, como qualquer ser humano, carregaram em si
uma série de contradições, como a perspectiva “patriarcal” adotada
por Fela Kuti, em um contexto em que ele mesmo contestava a
ordem social vigente.
A inexistência de sistemas de ensino público e universal de
escolarização formal, por parte das metrópoles ou mesmo dos
Estados recém-independentes, fez com que grande número de
intelectuais africanos estudasse em escolas missionárias, tanto
protestantes, quanto católicas. Para citar alguns exemplos, Achile

463
IntelectuaIs das áfrIcas

Mbembe frequentou o estabelecimento missionário de Otélé, nos


Camarões, enquanto Soyinka era filho de um sacerdote anglicano
que dirigia a escola primária da missão em Aké, um bairro de
Abeokuta, Nigéria. Já Uanhenga Xitu instruiu-se na escola metodista
de Icolo-Bengo, Angola.

AS INFLUÊNCIAS EXTERNAS

Para aqueles que tiveram a oportunidade de sair do continen-


te para dar continuidade aos estudos, as metrópoles europeias
parecem ter sido o destino mais comum. Malek Chebel, depois
de iniciar os estudos na Universidade Ain el Bey, em Constantine
(Argélia), foi para Paris, onde se dedicou ao campo das ciências
sociais e da psicanálise. Ousmane Sembène viveu como imigrante
na França, realizando parte de sua formação nesse país, como
também Valentim Mundimbe.
Entretanto, outros espaços foram importantes, como Lisboa,
para onde foi Amílcar Cabral, a antiga União Soviética, no caso
específico, Moscou, local onde Ousmane Sembène dirigiu-se para
aprender sobre cinema no ano de 1961. Outros centros universitá-
rios também emergiram, como os norte-americanos, que se cons-
tituem novo locus de produção de pensamento. Foi na América do
Norte, por exemplo, que o filósofo congolês Mudimbe e a escritora
nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie radicaram-se.
Um grande número desses intelectuais fez parte do processo
de “fuga de cérebros”, ocorrido entre os anos de 1980-1990, quan-
do africanos deslocaram-se do continente para regiões europeias
ou norte-americanas. Por conta de suas trajetórias formativas, a
translocalidade parece ser um traço dos diferentes intelectuais
analisados no livro, ou seja, oferecem, em seus escritos e refle-
xões, questões que estão além das fronteiras do continente. Neste
sentido, trouxeram para o continente africano ponderações cons-
truídas à luz das matrizes europeias em contraste com formas de
raciocínio endógenas.

464
IntelectuaIs das áfrIcas

Quase todos eles, por exemplo, elaboraram, em algum mo-


mento da existência, reflexões sobre o conceito de nação, a forma
como essa ordenação de base europeia poderia ser adequada (ou
não) ao continente africano, como lidar com as questões das fron-
teiras móveis e borradas, como incluir a diversidade de grupos
sociais em uma identidade nacional, o papel das mulheres nessa
nação. Estas, entre outras, foram questões continuamente coloca-
das por esses intelectuais, que se forjaram sobretudo no período
pós-independência.
O movimentos Pan-africanista e da Negritude parecem ter
sido aqueles que mais influenciaram suas produções. Fela Kuti, por
exemplo, tinha como referência os pan-africanistas Kwame Nkru-
mah, Patrice Lumumba, Marcus Garvey, W.E.B Du Bois e Malcom
X. Entretanto, concordamos com Severino Ngoenha, quando diz
que, em linhas gerais, tais construções ideológicas, como também
de outros movimentos africanos, têm em comum a defesa da hu-
manidade negada ao povo negro e africano, reabilitando, dessa
forma, sua história1.
As influências davam-se mesmo quanto esses intelectuais
criticavam as posições políticas desses movimentos, fato exem-
plificado na crítica assertiva que faz Woly Soyinka em relação à
Negritude, ou até certo desencanto apresentado por Pepetela com
o Pan-Africanismo. Nessa mesma linha, podemos dizer sobre Franz
Fanon: muitos dos intelectuais africanos, parafraseando Mbembe,
esforçaram-se para pensar, “com e contra Fanon”, uma ausência
presente em boa parte da produção intelectual de matriz africana
sobretudo naquela construída após as lutas de independência.
Podemos imaginar duas razões para tamanho peso, a primeira se
deve ao fato de ter sido um intelectual orgânico, que se embrenhou
nas dinâmicas (e políticas) internas do continente; a segunda por
ter sido um intelectual universal, cujos temas e debates motivaram
reflexões na Europa, América e África.

1 NGOENHA, Severino Elias. Das Independências às liberdades: filosofia africana. Prior Velho.
Edições Paulinas, 2014.

465
IntelectuaIs das áfrIcas

Mas há outros diálogos significativos, ilustradas pelo impacto


de Michel Foucault sobre as obras de Valentim Mundimbe e Achile
Mbembe e da escola filosófica francesa sobre Paulin Hountondji
ou, ainda, o marxismo na produção de Ousmane Sembène e Pe-
petela. Entretanto não se trata de simples adequação das bases
filosóficas europeias ao continente africano. A ruptura com o
pré-estabelecido, elemento comum nessas diferentes escolas, é
o ponto de partida pelo qual muitos dos intelectuais das Áfricas
construiram o seu eixo argumentativo. Além disso, se apropriaram
dos acúmulos intelectuais desses pensadores, como dos conceitos
de arqueologia do saber de Foucault, ressignificada por Mundimbe
em seus estudos ou, ainda, do conceito de biopoder, desse mesmo
pensador, que foi aprofundado por Mbembe em suas formulações
sobre a necropolítica.
Partindo de Foucault, Mudimbe vai analisar, sobretudo em A
invenção da África (2013) e A Ideia de África (2013), os discursos de
grau zero em relação ao continente (discursos primários, normati-
zadores), levando em consideração que os discursos (de grau zero)
produzidos pelos próprios africanos foram silenciados2. Mbembe
dialoga com Foucault, quando este analisa como o direito soberano
de matar e os mecanismos de biopoder estão inscritos na forma
como funcionam todos os Estados modernos, e em que o racismo
é uma tecnologia destinada a permitir o exercício do biopoder3.
Apesar dos pontos de divergências entre Fanon e Foucault, como
o silêncio deste em relação à dimensão colonial do poder gover-
namental, há convergências entre eles, sobretudo a centralidade
das discussões em torno do corpo e poder e suas implicações nos
campos político e intelectual contemporâneos4. É justamente nes-
2 MUDIMBE, Valentim Y. MUDIMBE, Valentim A ideia de África. Lisboa: Edições Pedago; Luanda:
Edições Mulemba, 2013 e MUDIMBE, Valentim. Y. A invenção de África. Gnose, Filosofia e a
Ordem do Conhecimento. Luanda: Edições Mulemba; Mangualde (Portugal): Edições Pedago,
2013.
3 MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção, política da morte. N-1
edições, 2018.
4 CUNHA, Olívia Maria Gomes da. Reflexões sobre biopoder e pós-colonialismo: relendo Fanon
e Foucault. Mana, Rio de Janeiro, v. 8, n. 1, p. 149-163, Apr. 2002. GILROY, Paul. Against Race
- Imagining Political Culture beyond the Color Line. Cambridge: Harvard University Press/
Belknap, 2000.

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IntelectuaIs das áfrIcas

sas discussões que Mbembe encontra com as formulações desses


dois intelectuais estrangeiros, que foram fundamentais para os
intelectuais das Áfricas.

AS ATUAÇÕES INTERNAS

Mesmo tendo feito suas formações quase sempre em univer-


sidades europeias, as universidades africanas de Ibadan (Nigéria),
Dar Es Salaam (Tanzânia), Makerere (Uganda) e Escola de Dakar
(atual Universidade Cheikh Anta Diop de Dakar no Senegal) tiveram,
enquanto escola acadêmica, um papel de liderança no processo de
descolonização da história da África e impactaram a atuação de
muitos dos intelectuais presentes neste livro. Sobretudo aqueles
como Paulin Hountondji, que atuou por muitos anos na Universi-
dade Nacional do Benin, ou mesmo Achille Mbembe, que continua
formulando reflexões, cujo ponto de partida é a Universidade de
Witwatersrand, em Joanesburgo, África do Sul.
O engajamento também é uma das características comuns aos
intelectuais africanos, atuando em grande parte na luta anticolonial
e nas estruturas dos novos Estados africanos recém-independentes,
ou seja, foram pensadores que não se esconderam. Assim, Soyinka
foi preso em 1967 porque, durante a Guerra de Biafra, não adotou
unilateralmente a perspectiva do governo nigeriano; tentou, ao
contrário, negociar um acordo de paz entre as partes em guerra,
permanecendo por isso na prisão por dois anos. Mbembe e Adichie
promoveram outro tipo de engajamento, aquele gerado através
das redes sociais, em torno de temas, como o fim do humanismo
e os perigos de uma história única5. A luta em torno do direito das
mulheres e da necessidade de terem um maior protagonismo no
continente parece ter sido, no tempo contemporâneo, o tema que
SCOTT, David. Refashioning Futures Criticism after Postcoloniality. Princeton: Princeton
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5 MBEMBE, Achile. A era do humanismo está terminando. Disponível em: http://www.ihu.unisi-
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2019.

467
IntelectuaIs das áfrIcas

mais tem chamado a atenção para o engajamento, sobretudo das


intelectuais africanas, como vimos no caso da Mernissi e Adichie
analisadas neste livro.
De diferentes formas e maneiras, o engajamento e a discus-
são sobre o colonial (e pós-colonial) transparecem nos intelectuais
abordados neste livro. As razões para isso se devem a diferentes
ordens. Primeiro, porque esses autores são produtos coloniais; ou
seja, souberam usar a escrita e o universo de valores trazidos pelos
colonizadores, subvertendo-os e criando suas próprias variações
ou construções, como fica bem explícito nos escritos de Uanhenga
Xitu; segundo, pelo fato de que o colonialismo e a colonialidade
marcaram profundamente a história do continente africano no
período em que nasceram e produziram parte de suas obras. Ine-
gavelmente, refletiram sobre diferentes dimensões do seu tempo
nas suas produções, mesmo nas situações em que defendiam a
necessidade de superar as memórias e marcas do passado colonial,
como faz, por exemplo, Mbembe.

A CONSTRUÇÃO DE NOVAS PERSPECTIVAS: PARA ALÉM DA


“TRADIÇÃO”

Em linhas gerais, os trabalhos escritos por esses intelectuais


partem de uma crítica aos modelos de produção hegemônicos,
coloniais ou islâmicos, para então formular contornos próprios e
problemáticas originais – não apenas acadêmicas, mas, também,
estéticas, cinematográficas, musicais –, construindo, em grande
parte, obras não previsíveis e tampouco lineares. Buscando romper,
apesar de nem sempre conseguirem, com as categoriais binárias
recorrentes na história do continente africano (modernidade x
tradição; comunitário x global, entre outras), visaram ao que po-
deríamos chamar de “despertar das consciências” em relação à
questão colonial e a um desconforto-desconstrução em relação a
persistências da colonialidade ainda no século XXI.

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IntelectuaIs das áfrIcas

Se o colonialismo desapareceu como forma de dominação


política estrangeira, a colonialidade permanece como um traço vivo
nas sociedades africanas do século XXI. Como ir além das categorias
coloniais de etnia e tribo? Como desmontar etnônimos que foram
frutos de visões racistas e deturpadas do período colonial e que
ainda se fazem presentes no tempo presente? Até que ponto a
ressignificação desses nomes por conta de um processo histórico
recente ainda não traz elementos da colonialidade? São perguntas
com as quais os diferentes intelectuais das Áfricas se depararam ao
longo de suas produções, e, mais propriamente em Angola, esse foi
um desafio assumido, sobretudo, mesmo que não de forma direta,
na literatura construída por Pepetela e Uanhenga Xitu.
Ainda nesta seara, temos o tema recorrente da tradição como
um elemento da colonialidade presente nos tempos recentes. A
ideia de tradição voltada ao passado, que imobiliza e condiciona o
futuro dos africanos, tem sido objeto de crítica desses diferentes
intelectuais. Como nos lembra Amadou Hampaté Bâ, a tradição
no continente africano é viva e vivida, como uma experiência atu-
al de forma quase intemporal6. Nesse sentido, Mernissi procurou
demonstrar como a tradição deveria ser mais bem discutida na
sociedade islâmica, usando, para tanto, os próprios ensinamentos
ligados ao Islã, para combater a privação de direitos que grupos
no poder impõem à metade dos cidadãos, particularmente as
mulheres.
A falsa oposição estabelecida entre “tradição africana” e
“modernidade europeia” tem sido também permanentemente
questionada. Mudimbe, por exemplo, afirma que esta oposição
é um modelo externo executado no Ocidente, que impõe regras
exógenas ao continente, desconsiderando as realidades africanas.
Segundo ele, a Europa submeteu o mundo à sua memória.

6 BA, Amadou Hampâté. Tradição Viva In. História geral da África, I: Metodologia e pré-história da
África / editado por Joseph Ki -Zerbo. – 2.ed. rev. – Brasília: UNESCO, 2010. _____. Amkoullel,
o menino fula. São Paulo: Palas Athena: Acervo África, 2013.

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IntelectuaIs das áfrIcas

Já Malek Chebel chama a atenção para a fronteira porosa entre


tradição e modernidade, e Uanhenga Xitu faz o jogo tradição-
modernidade e assim transporta, para a cena política moderna, um
tipo de discurso baseado no peso e respeito dados pela ancestra-
lidade, evidenciando as relações de complementaridade e o jogo
feito pelos africanos entres essas categorias, móveis e elásticas,
mas que são apresentadas como estáticas pelo discurso colonial.
Wole Soyinka questiona a tradição e a modernidade europeia (e
cosmopolita), mas não as rejeita; propõe valorização das culturas do
continente africano sem a negação de quaisquer influências. Em suas
obras, seus protagonistas não desejam (nem mesmo seria possível) um
retorno completo à tradição africana, ancestral, pois eles têm o desafio
de sair da inércia e construir uma nova e moderna nação nigeriana. Mia
Couto, indo em outro sentido, evidencia as tensões entre a tradição
e os novos tempos, como se vê em suas obras A varanda do frangipani
(1996), O último voo do flamingo (2000) e A confissão da leoa (2012).

A BUSCA PELAS IDENTIDADES AFRICANAS

Os intelectuais das Áfricas partiram das identidades locais


para conceber uma ideia de africano (e de identidade africana)
não como algo fixo, imutável, como um “produto biológico”, mas
como um indivíduo diverso e plural, conectado com as questões
regionais, sobretudo pensando e teorizando sobre processos mais
abrangentes, estabelecendo uma “africanidade” em diálogo/recusa/
arranjo com diferentes matrizes extra-africanas.
Estas identidades (como todas as outras) são, sobretudo
construções políticas e plurais. Para entendê-las é preciso ouvir
o que os africanos falam. Como nos lembra Jean-Marc Ela (2011),
os africanos são mais falados do que falam e, mesmo aqueles que
falam, interiorizam o discurso colonial, usando o seu repertório de
ideias, conceitos e palavras7. Romper com esse repertório e cons-

7 ELA, Jean-Marc. Restituir a história às sociedades africanas, promover as Ciências Sociais na


África. Lisboa: Mangualde (Portugal); Luanda (Angola): Edições Pedago; Edições Mulemba, 2011.

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IntelectuaIs das áfrIcas

truir uma perspectiva descolonizada de conhecimento foi (e ainda


é) uma frente de resistência epistemológica muito significativa
para os intelectuais das Áfricas. Por fim, é possível perceber nesses
intelectuais certo otimismo, um olhar para um novo futuro que, se
não reconciliado com o passado, ao menos para além deste. Um
futuro para além dos mitos e essencialismos em torno do africano
e da africana, um futuro a vir, a se construir.

REFERÊNCIAS

CHIMAMANDA Adichie. Os perigos de uma história única. Disponível em


https://www.youtube.com/watch?v=EC-bh1YARsc. Acesso em 14 de
Outubro de 2019.
CUNHA, Olívia Maria Gomes da. Reflexões sobre biopoder e pós-
colonialismo: relendo Fanon e Foucault. Mana, Rio de Janeiro , v. 8,
n. 1, p. 149-163, Apr. 2002.
ELA, Jean-Marc. Restituir a história às sociedades africanas, promover
as Ciências Sociais na África. Lisboa: Mangualde (Portugal); Luanda
(Angola): Edições Pedago; Edições Mulemba, 2011.
HAMPATE BA, Amadou. A Tradição Viva In. História Geral da África I:
Metodologia e pré-história da África / editado por Joseph Ki -Zerbo.
– 2.ed. rev. – Brasília : UNESCO, 2010.
_____. Amkoullel, o menino fula. São Paulo: Palas Athena: Acervo África,
2013.
GILROY, Paul. Against Race - Imagining Political Culture beyond the Color
Line. Cambridge: Harvard University Press/Belknap, 2000.
MBEMBE, Achille. Necropolítica: biopoder, soberania, estado de exceção,
política da morte. N-1 edições, 2018.
_____. A era do humanismo está terminando. Disponível em: http://www.ihu.
unisinos.br/186-noticias/noticias-2017/564255-achille-mbembe-a-era-
do-humanismo-esta-terminando. Acesso em 14 de Outubro de 2019.
MUDIMBE, Valentim Y. MUDIMBE, Valentim A ideia de África. Lisboa:
Edições Pedago; Luanda: Edições Mulemba, 2013.
_____. A invenção de África. Gnose, Filosofia e a Ordem do Conhecimento.
Luanda : Edições Mulemba; Mangualde (Portugal): Edições Pedago,
2013.
NGOENHA, Severino Elias. Das Independências às liberdades: filosofia
africana. Prior Velho. Edições Paulinas, 2014.
SCOTT, David. Refashioning Futures - Criticism after Postcoloniality.
Princeton: Princeton University Press, 1999.

471
IntelectuaIs das áfrIcas

SOBRE OS ORGANIZADORES E AUTORES

Silvio de Almeida Carvalho Filho


Pós-Doutor pelo Centro de Estudos Africanos do ISCTE (Lisboa) em 2010,
Doutor em História pela Universidade de São Paulo (1994). Professor
Associado IV da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ). Tem ex-
periência em História da África, assim como na área de História Moderna
e Contemporânea, atuando principalmente nos seguintes temas: África,
Angola, História e Literatura, Intelectuais. Diferenças e Desigualdades
Sociais. Autor do livro “Angola: História, Nação e Literatura (1975-1985)”
publicado pela Editora Prismas (2016).

Washington Santos Nascimento


Doutor em História Social pela Universidade de São Paulo - USP (2013).
Professor adjunto da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Tem
experiência na área de História da África, assim como pesquisas e publi-
cações sobre escravidão, populações negras e racismo no sertão baiano.
Atualmente tem dado ênfase a História da África, atuando principalmente
nos seguintes temas: Angola, Luanda, memória, literatura, assimilados,
intelectuais. É organizador dos livros “Etnicidades e trânsitos: estudos
sobre Bahia e Luanda” pelo PPGREC/UESB – Áfricas (UERJ-UFRJ), “Áfricas:
política, sociedade e cultura” publicado pelas Edições Áfricas (2016) e
“Odeere: formação docente, linguagens visuais e legado africano no
sudoeste baiano” pelas Edições UESB (2014).

473
IntelectuaIs das áfrIcas

AUTORES

Amailton Magno Azevedo


Doutorado em História pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
(2006) e Pós-doutorado pela Universidade do Texas em Austin (2011).
Professor da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2000). Tem
experiência na área de História, com ênfase em História da África e do
Brasil, atuando principalmente nos seguintes temas: ensino de História
da África, culturas negras no Brasil, culturas africanas na Diáspora, mu-
sicalidades, oralidade e juventude negra. Tem publicado diversos artigos
com a temática relacionada à música e a memória da Diáspora negra no
Brasil. Autor de “Quintais e Arranha-Céus: as micro-áfricas em São Paulo”
publicado pela Olho d´Água (2016).

Divanize Carbonieri
Doutora em Estudos Linguísticos e Literários em Inglês pela Universida-
de de São Paulo e professora-adjunta do Departamento de Letras e do
Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagem da Universidade
Federal de Mato Grosso. É autora de A compensação da imobilidade
em Nuruddin Farah (EdUFMT, 2013), sendo uma das organizadoras de
Práticas de multiletramentos e letramento crítico: novos sentidos para
a sala de aula de línguas (Pontes, 2016), Estudos sobre gênero: identida-
des, discurso e educação. Homenagem a João W. Nery (Pontes, 2017) e
Perspectivas críticas no ensino de línguas: novos sentidos para a escola
(Pontes, 2017).

Fábio Baqueiro Figueiredo


Doutorado em Estudos Étnicos e Africanos pela Universidade Federal da
Bahia (2012). É professor da Universidade da Integração Internacional da
Lusofonia Afro-brasileira. Vem dedicando-se à área de História da África,
com ênfase na segunda metade do século XX, e nas questões teóricas
mais gerais envolvendo o conhecimento acadêmico sobre espaços não
ocidentais e suas implicações políticas e sociais contemporâneas. Um
dos autores do livro “História da África” públicado pelo Programa A Cor
da Bahia, FFCH/UFBA (2013).

474
IntelectuaIs das áfrIcas

Isabelle Christine Somma de Castro


Doutora em História Social pela USP. Atualmente é bolsista Fapesp de
pós-doutorado pelo Departamento de Ciência Política e pesquisadora do
Núcleo de Pesquisas em Relações Internacionais (Nupri) da USP. É uma
das organizadoras dos livros “Atlas do Universo. Barcelona” publicadoo
pelo Editorial Sol90 (2005) e “As Grandes Conquistas da Humanidade”
pela Klick Editora (2003).

Itamar Pereira de Aguiar


Doutorado em Ciências Sociais pela Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo (2007) e Pós Doutorado pela UNESP- Campus de Marília-SP. Professor
Titular da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia. Atua nas áreas de
Filosofia e Antropologia, principalmente, nos seguintes temas: filosofia,
imagem, imaginário, educação, cinema, religião e cultura de resistência. É
um dos autores de “Remanso, uma comunidade mágico religiosa” publicado
pela UEFS Editora (2016) e Educação e Religião pela editora Alínea (2012).

Izabel de Fatima de Oliveira Brandao


Possui graduação em Letras -Inglês pela Universidade Federal da Paraíba
(1980), mestrado em Letras (Inglês e Literatura Correspondente) pela
Universidade Federal de Santa Catarina (1985) e doutorado em English
Literature (Ph.D.) pela University of Sheffield, Inglaterra (1991). Atual-
mente é professora titular da Universidade Federal de Alagoas

Jose Rivair Macedo


Doutorado em História Social pela Faculdade de Filosofia, Letras e
Ciências Humanas da USP (1993). Atualmente é Professor Titular no
Departamento de História da UFRGS. Tem experiência na Área de Histó-
ria, com ênfase em História das Sociedades Africanas Antigas, atuando
principalmente nos seguintes temas: formações sociais man mandinga e
songai (séculos XIII-XVI); tendências de abordagem da africanologia. É um
dos autores do “Dicionário de História da África” publicado pela Editora
Autêntica (2017) e “O pensamento africano no século XX” pela Outras
Expressões (2016) e autor de História da África pela Editora Contexto
(2013) dentre outros.

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IntelectuaIs das áfrIcas

Murilo Sebe Bon Meihy


Doutorado em Estudos Árabes pela Universidade de São Paulo (2013).
Atualmente é Professor Adjunto de História Contemporânea da Universi-
dade Federal do Rio de Janeiro. Tem experiência na área de História, com
ênfase em História Moderna e Contemporânea, atuando principalmente
nos seguintes temas: Oriente Médio, África, Orientalismo, Pós-colonia-
lismo, Vocabulário político árabe, e árabes no Brasil. Autor de “Leão, o
Africano: a África e o Renascimento vistos por um árabe” publicado pela
Ateliê Editorial (2017), “Os libaneses” pela Editora Contexto em 2016 e
“As Mil e Uma Noites Mal Dormidas: a formação da República Islâmica
do Irã” pela Usina das Letras (2010), além de ser um dos organizadores
de História da África Contemporânea pela Pallas (2013)

Muryatan Santana Barbosa


Doutor e Pós-Doutor em História da África, pela Faculdade de Filosofia,
Letras e Ciências Humanas (FFLCH) da Universidade de São Paulo (USP).
Foi pesquisador visitante na Universidade de Harvard (2010) e consultor
da UNESCO-Brasil para o Programa Brasil-África: histórias cruzadas (2011-
2012). Trabalha atualmente com temáticas relativas ao Pan-africanismo,
Regionalismos Africanos e Sul Global. É Professor Adjunto do Bachare-
lado em Ciências Humanas e do Bacharelado em Relações Internacionais
da Universidade Federal do ABC (CECS-UFABC). Entre suas publicações
estão Guerreiro Ramos e o personalismo negro (Paco Editorial, 2015) e,
em coautoria, Síntese da Coleção História Geral da África (UNESCO/MEC/
UFSCAR, 2013).

Regiane Augusto de Mattos


Doutorado em História Social pela Universidade de São Paulo. É pro-
fessora de História da África do Departamento de História da Pontifícia
Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio). Tem experiência na
área de História, com ênfase em História da África, mais especificamente
África Oriental, História de Moçambique e das conexões culturais no
espaço do Oceano Índico, Islamismo. É autora dos livros “As dimensões
da resistência em Angoche. Da expansão política do sultanato à política
colonialista portuguesa no norte de Moçambique (1842-1910)” publicado

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IntelectuaIs das áfrIcas

pela Alameda (2015) e “História e Cultura Afro-Brasileira” pela Contexto


(2007), além de organizar os livros “Áfricas: histórias, identidades e nar-
rativas” pela Prismas (2016), dentre outros.

Renato Noguera
Professor do Departamento de Educação e Sociedade (DES), do Progra-
ma de Pós-Graduação em Filosofia, do Programa de Pós-Graduação em
Educação, Contextos Contemporâneos e Demandas Populares (PPGEduc)
e do Programa de Pós-Graduação em Filosofia (PPGFil) da Universidade
Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), pesquisador do Laboratório de
Estudos Afro-Brasileiros e Indígenas (Leafro), e, do Laboratório Práxis
Filosófica de Análise e Produção de Recursos Didáticos e Paradidáticos
para o Ensino de Filosofia (Práxis Filosófica) da UFRRJ, Noguera coordena
o Grupo de Pesquisa Afroperspectivas, Saberes e Interseções (Afrosin),
doutor em Filosofia pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).

Sílvio Marcus de Souza Correa


Doutor pela Westfälische-Wilhelms-Universität Münster (Alemanha), fez
estágios de pós-doutorado na Université du Québec à Rimouski (UQAR)
e no Institut national de la recherche scientifique (INRS) no Canadá. Foi
pesquisador visitante no Instituto de Investigação Científica Tropical
(IICT) de Lisboa (verão 2013) e no Instituto de Estudos Avançados de Paris
(2013-2014). Desde 2009 é professor de história da África na Universidade
Federal de Santa Catarina (UFSC). Nos últimos anos, esteve em missão
de trabalho na Namíbia (2012), Senegal (2014), em Angola (2015) e no
Togo (2017). Suas pesquisas mais recentes tratam da história visual do
colonialismo. É um dos autores de “Nossa África” publicado pela editora
Oitos (2016) e “Bioses africanas no Brasil” pela Casa Aberta (2012).

Tania Celestino de Macêdo


Professora Titular em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa da Uni-
versidade de São Paulo. Atua nos cursos de Graduação e Pós-Graduação
da mesma Universidade. É Diretora do Centro de Estudos Africanos da
USP. Tem livros e capítulos de livros bem como artigos publicados no
Brasil, em países da Europa e da África. Dentre eles destacam-se: Luanda,

477
IntelectuaIs das áfrIcas

cidade e literatura (2008) e Angola e Brasil: estudos comparados (2002).


Co-organizou também vários livros, entre os quais Mia Couto: um con-
vite à diferença (2013), A kinda e a misanga – encontros brasileiros com
a literatura angolana (2007) e Portanto...Pepetela (2010) .

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IntelectuaIs das áfrIcas

SOBRE A IMAGEM DA CAPA

Juliana Ribeiro da Silva Bevilacqua1

A fotografia foi feita em 2012, na Village Artisanal, em Coto-


nou, Benim. O local, conhecido na cidade por vender estatuetas e
máscaras de diferentes povos do continente africano para turistas,
reúne lojas de propriedade quase exclusiva de comerciantes mu-
çulmanos. Transitar nesse espaço significa, portanto, escutar as
muitas conversas em árabe e desviar dos tapetes cuidadosamente
dispostos em direção a Meca.
Em meio aos tapetes coloridos me chamou a atenção um me-
nino solitário que parecia ocupar o seu tempo à escrita enquanto
o seu pai administrava o comércio. A sua concentração e dedicação
foram interrompidas pelo meu pedido de permissão para algumas
fotos. Com um sorriso tímido ele acenou positivamente com a
cabeça. O seu nome eu não me recordo. O menino no tapete foi
apenas uma das muitas crianças que me encantaram no Benim.

1 Possui graduação em História pela Universidade de São Paulo, mestrado e doutorado em História
Social também pela Universidade de São Paulo. É autora do livro Homens de Ferro. Os ferreiros na
África central no século XIX (Alameda /FAPESP, 2011) e co-autora do livro África em Artes (São
Paulo: Museu Afro Brasil, 2015).

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