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PARA ALÉM D\ IDENTIDADE
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:. Fluxos, movimen~$,......,.
e trânsitos
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Luiz Paulo da Moita Lopes
Liliana Cabral Bastos
Organizadores
.

PARA AlEM DA IDENTIDADE


HUXOS, MOVIMENTOS ETRÂNSITOS
LUIZ PAULO DA MOITA LOPES
LILIANA CABRAL BASTOS
0 RGANJ ZA DORES

PARA AlÉM DA IDENTIDADE


FlUXOS, MOVIMENTOS ETRÂNSITOS
UNIVERSJDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS

Rmi::w Ronaldo Clélío Campolina Diniz


Vicr-Rr.rn::iii.A Rocksane de Carvalho Norcon

EDITORA UFMG
DiKEroR Wander Melo Miranda
~ ~ LttícW !fraga
Vicr-Ü!RfTOaA Sih-·ana Cóser
UEPG

CO!"SELHO EDITORIAL
Wander Meto Miranda (presidence)
Flávio de Lemos Carsalade
HeloW Maria Murgel Starling
Márcio Gomes Soares
Maria das GtaÇllS Santa Bárbara
Maria Helena Damasceno e Silva Megale
Paulo Sérgio Lacerda Beirão Belo Horizonte
Silvana Cóser
Editora l.'F!\IG
2010
e 2010, Os autores
e 2010, Editora UFMG SUMÁRIO
E.<te lhm ou parte dele não pode ser reprodul!ido por qu;1lquer meio sem autorii;1~,,1o
escrita do Editor.

Para além dll identidade: tluxos, movimentos e trJn~itos /Luiz Paulo


P.lll
da Moita Lopes, Liliana C'.abral Bastos, organi1~dores. - Belo liorizonte : Editora APRESENTAÇÃO 7
UFMG, lOlQ Luiz Paulo da Moita Lopes
319 p. : il. - <Humani1as) Llliana Cabral Bastos
Coletânea de lrabalhos apresentados no li Símpôsio Nacional Discur.'>o,
lden1idade e Scxio:'Wde, realizado no Rio de janeiro em 2006. INTRODUÇÃO
Inclui bibl.iografm. A EXPERIÊNCIA IDENTITÁRIA NA LÓGICA DOS FLUXOS
ISBN: 978-85-7041-853-1 Uma lente para se compreender a vida socíal 9
Luiz Paulo da Moita Lopes
L Sociologia - ~. 2. Linguistirn. 3- Idemidade S<Kial. r. Moita lopes, Ltltana Cabral Bastos
Luiz Paulo da. li. Bastos, liliana C'.abraL Ili. Simpósio Nacional Dbcurso, Identi-
dade e Sociedide (2. : 2006 : Rio de Janeiro, RJ) IV. Série. CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA
NA ÓTICA DA TRANSDIFERENÇA 25
CDD: 301 Heídrun Kríeger Olínto
crn:: 516
JANELAS INDISCRETAS 49
Etabonda pela DITTI - Setor de Tratamento da Informação da Biblioteca
Cniversicária da l!ThlG
Eneida Maria de Souza

REDES DE MEMÓRIA E HISTÓRIA


Este lino recebeu apoio do Programa de Pós-graduação em Linguística Apli-
NA BAIXADA FLUMINENSE
cada da l'FRJ e do programa de Pós-graduação em Letras da PUC-Río.
Práticas discursivas, processos de configuração
e reconfiguração das identidades s<x:iais 61
DIRETORA DA COLEÇÀO Heloisa !\faria Murgel Starling Ana Lucia S. Enne
ASSISTÊ~CIA EDITORIAL Eliane Sousa e Euclídia Macedo
EOJTOR.AÇÃO DE TEXTO Maria do Carmo Leite Ribeiro TEMPO, ESPAÇO E
RE\lSÀO E NOR\fALIZAÇÀO Danivia Wolff IDENTIDADE EM NARRATIVAS DE IMIGRAÇÀO 85
RE\lSÀO DE PROVAS Nathalia Campos Anna de Fina
PROJETO GR..\FICO Glória Campos - ManE(á
FOR.\iATAÇÀO E CAPA Diêgo Oliveira POLÍTICAS DE AÇÃO AFIRI'vfATIVA
PRODUÇ.\O GR..\FJCA Warren Marilac Discurso, identidade e inclusão social 107
Anna Elisabetb Ba/occo
EDITOR.\ UFMG

Av. António Carlos, 6.627 -Ala dirt:íta da Biblioteca Centrnl - té1Teo IDENTIDADE E (IN)DEFINIÇÃO LINC:iUÍSTICA
Campus Pampulha - 31270-901 - Belo Horizonte/MG Galego e/ou português 129
Te!.: + 55 31 3409-4650 Fax: + 55 31 3409-4768 Xoán Carlos Lagares
~·ww .edítora.ufmg.br cdítorn@ufmg.br
IDENTIDADES EM EXCLUSÃO
As personagens femininas de Tony Morrisson e Maya Angelou 15 l
Cláudia Maria Ceneviva Nip,ro

MARGINALIDADE, .
Exdusão e identidade auroral
Karl Erick Scbollbammer
167
APRESENTAÇAO
DO IITERÁRlO AO IDENITTÁRIO
Espaço e tempo nas representações da Amazônia ribeirinha 181
Edir Augusto Dias Pereira

VIAJANTES PÓS-MODERNOS H 203


Guacira Lopes Louro Este livro é constituído por trabalhos selecionados entre 111
artigos submetidos para publicação dentre os 334 trabalhos
apresentados no II Simpósio Nacional Discurso, Identidade e
SEXO E PODER NAS TRAMAS PÓS(?)IDENTITÁRIAS
Sociedade, coorganizado pelos Programas de Pós-graduação em
Reflexões sobre a prostituição masculina 215 Linguística Aplicada da UFRJ e de Letras da PUC-Rio, com apoio
Henrique Caetano Nardi da Capes e Faperj. Tal evento teve grande repercussão não só
pelo interesse que a temática das identidades desperta no mundo
El';TRE DISCURSOS, JEITOS E GESTOS acadêmico e fora dele atualmente, mas também pela singularidade
Peiformance de gênero e sexualidade de sua natureza multi e transdisciplinar. Ainda que na academia
no mercado erótico de travestis e cross-dressers 235 e nas agências de pesquisa frequentemente se reconheçam a
Leandro de Oliveira necessidade e a relevância de epistemologias que atravessem
várias áreas do conhecimento, os limites dos departamentos
TD..Tl.JALIDADE DA ODADE CONTEMPORÂNEA universitários e das associações científicas normalmente não
1\A EXPERIÊNCIA HOMOERÓTICA possibilitam espaços para trocas entre áreas do conhecimento e
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Marcelo Santana Ferreira
nem fomentam percursos de investigação de tal natureza, o que
vem explicar o interesse Jespertaclo pela proposta do evento.
A Dr~~\fICA DOS (RE)POSIOONAMENTOS DE SEXUALIDADE A problemática ela identidade continua atr.tin<lo, neste início
f_:\f PRATICAS DE LETRAMENTO ESCOLAR de milênio, um grande número de pesquisadores, em um mundo
Entre oscilações e dese5tabilizações sutis que se repensa continuamente, provavelmente como efeito das
283
Branca Falabella Fabrício sociedades altamente reflexivas em que estamos situados. Vivemos
Luiz Paulo da Moita Lopes sob um leque de possibilidades identitárias que questionam
muitas das histórias que nos contaram sobre quem poderíamos
ser e que se constituem agora como projetos contingenciais sobre
quem podemos ser, levando a incerk?.as, imbgac;ües e questiona-
SOBRE OS AUTORES
315 mentos cotidianos. Paralelanwme a práticas sociais que defendem
políticas de identidades, defrontamo-nos hoje com configurJ.~·ôes
pós-identitárias, apontando novas formas de sociabilidade, que LUIZ PAULO DA MOITA LOPES
constituem, em muitos círculos, o gra.nde projeto políríco contem- LILJANA CABRAL BASTOS
porâneo. Não é de se estranhar, portanto, que tal temática faça
parte da agenda de pesquisa de praticamente todas as áreas de
conhecimento nas Ciências Humanas e Sociais: da Linguística
ao Design, da Geogr.tfia à Administração, da Literatura à Saúde
Coletiva, confom1e evidenciado no evento e neste livro.
Este volume, especificamente, contém artigos de pesquisadores
INTRODUÇÃO
que atuam nas áreas de Linguística Aplicada, Linguística, Litern-
tura, Sociologia, Psicologia, Antropologia, Educação e Geografia, AEXPERIÊNCIA IDENTITÁRIA
mas cuja pesquisa - não somente pela temática enfocada mas
também pelo tratarnento transdisciplinar do objeto de investigação
- é de interesse para o amplo espectro das Ciências Sociais e
NA lÓGICA DOS FlUXOS
Humanas. Mais importante do que a área de filiação dos autores
é a pesquisa que realizam e os insigbts que esta produz. Espe-
UMA lENTE PARA SE COMPREENDER AVIDA SOCIAl
ramos que um livro dessa natureza possa ser útil para fomentar
a produção de conhecimento transdisciplinar, uma das grandes
metas das agendas contemporlneas de pesquisa. Este volume
apresenta reflexões que tratam da questão da identidade sob a Nossa existência hoje está marcada por uma tenebrosa sensação
de sobrevivência, de viver nas fronteiras do "presente", para as
lógica do trânsito, da fronteira ou dos entrelugares.
quais não parece haver nenhum nome adequado (. ..) Encontramo-
Somos gratos pelo apoio de nossas universidades, dos programas -nos no momento de trànsito em que espaço e tempo se cruzam
aos quais estamos filiados, da Capes e da Faperj, que pos.sibilitaram para produzir figuras complexas de diferença e identidade,
a realização do evento. Em especial, queremos agradecer a Lucía passado e presente, interior e exterior. inclusão e exclusão{. .. )
Isso porque há uma sensação de desorientação, um distúrbio de
Pacheco de Oliveira (PUC-Rio), Branca Falabella Fabrício (UFRJ), direção no "além": um movimento exploratório incessante. que
lnes Kayon de Miller (PUC-Rio), Miriarn Brito Correa Nunes o termo francês au-de/á capta tão bem - aqui e lá, de tcxlos os
'LTRJ), Maria do Carmo Leite de Oliveira (PUC-Rio), Maria da lados, forl/da, para lá e para cá, para frente e para td.s.
Gr<iÇ4 Dias Pereira (PUC-Rio), Ana Paula Kiffer (PUC-Rio), Roberto Homi K. Bbahba
Ferreira da Rocha (UFRJ) e Alexandre Montaury (PUC-Rio), pelo
apoio na organização do evento. Também não podemos deixar
dt- expressar nossos agradecimentos aos 58 membros da comissão
cíemífíca multidisciplinar que levou a efeito o trabalho de arbitrar De perspectivas teóricas diferenres, com enfoques transdisci-
os re~umos submetidos ao evento. A escolha final dos artigos plinares e com objetos de estudo diversificados sobre as práticas
mdu1dos neste volume é, porém, nossa. identitárias, os capítulos que constituem este livro se apoiam em
visões sobre a vicia social que desejam questionar posiçôes fincadas
Os organizadores em binarismos fechados, homogeneizados e bem delineados
sobre quem somos. O livro, portanto, ambiciona refletir sobre a
vida social com base em um projeto teórico que almeja apontar
alternativas para compreendê-la, ao mesmo tempo que sin:ilíza
novas configura~·ões sobre quem somos ou podemos ser.

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Tal projeto escapa da ótica do "somos isto ou aquilo" (homens fronteira, que parece ser mais adequada ao mundo de barreiras
ou mulheres, brancos ou negros, heterossexuais ou homosse- e limites porosos em que vivemos. Esse convite, que tamhém
xuais etc.), que se apoia na ideia de que há somente dois únicos é feito neste volume, ecoa o pedido de Keamey 0998, p. 368),
lugJ.res tyJ.ra se ocupar no mundo social, com diferenças bem quando fala da "necessidade ética de imaginar de modo dife-
marcadas e detenninadas entre eles, e com um único espaço rente", produzindo outras maneiras de se pensar, que fogem de
entre os dois que os demarca. Tal visão abandona a ótica da estradas epistemológicas já atravessadas. Trata-se, portanto, de
identidade (a da mesmidade ou do igual ao mesmo em oposiçà o uma convocação para ir além, em que
à outridade/alteridade, portanto), prestigiando uma lógica
que, ao de~vJ.lorizar os tradicionais binarismos identitários bem (...) ~além" significa distância espacial, marca um progresso,
delimitados, procura sentido nos espaços opacos, nos meandros promete o futuro; no entanto, [as] sugestôes para ultrapassar a
pouco claros, nas fronteiras em que as ideias, as pessoas e as barreira ou o limite - o próprio ato de ir além - são incognicíveis,
cultur.i.s em fluxo se entrecruzam e se misturam. Lança, desse irrepresentáveis, sem um retorno ao "presente~, que no processo
modo, um olhar para além da identidade, colocando sob foco 0 de repetição toma-se desconhecido e deslocado. 3
que não tem nome, ou seja, o que nào está incluído nos lugares
polarizados disponíveis. Não é de se estranhar, portanto, que os capítulos coloquem
sob análise processos de hibridação, de ambivalência e de
Ou, como diz Skliar:
ambiguidade, entre outros, nos quais o privado e o público, o
masculino e o feminino, o imigrante e o entrevistador, variedades
(..J os inomináveis são os que não são nem isto nem aquilo.
Aquilo que não se presta ao jogo da oposição nem de sua lógica.
linguísticas hegemônicas e não hegemónicas, atores centrais e
Aquilo que deixa a ordem sem efeito, que a desordena. Os marginais, o heterossexual e o homossexual, o br.mco e o negro,
inomináveis fragilizam todo conhecimento, toda determinação. a lógica monocultura! e a multicultural, o texto e o hipertexto, o
São, por isso mesmo, a indetenninação, o adiamento do conhe- memorialista e o historiador, a periferia e a tecnologia etc. estejam
cimento, o deixar para depois - e sempre para depois - toda em um movimento de confluências e misturas.
classificação, toda definição, toda catalogação. 1 Colocar o pé, por assim dizer, nos dois lados de tais birra-
rismos ao mesmo tempo é colaborar na construção de uma
Ou ainda, como pergunta o mesmo autor:
epistemologia que, ao prestigiar a fronteira ou o fluxo entre os
( ... ) acaso todo o humano está aprisionado numa relação de
dois polos, oferece uma lente alternativa para compreender a
exdusão/indusão? É toda voz, todo corpo, cada gesto, cada olhar, vida social em trânsito, em movimento ou nos entrelugares. Tal
todo espaço e todo tempo exclusão e/ou inclusão? Não é este metáfora parece dar conta, mais adequadamente, dos modos por
binômio uma fonna perversa de olhar, de representar-se e agir no meio dos quais nos situamos cada vez mais nas práticas sociais,
mundo e, também, um modo de esconder/obscurecer o híbrido já que este é um mundo dos fluxos, como diz Appadurai 0996).
o inclassificável, o indetenninável, o ambíguo, o ambivalente e: É um mundo "caracterizado por objetos em movimento. lque]
enfun. a contradiçâo?2 incluem ideias e ideologias, pessoas e mercadorias, imagens e
mensagens, tecnologias e técnicas".~
Somos: de opinião de que tal íntravisào pode fornecer caminhos Isso não quer dizer, por outro lado, que em outros momentos
outros ~ara a co~preemão da vida social ao formular uma epis-
da história, os movimentos, os tdnsitos, os fluxos nào fo,,,sem
temologia alternativa que gera objetos de estudo diferentes e outras
constitutivos de quem somos, já que '"existir' seria existir sempre
interpretações e compreensões. O que se propõe é um convite a
em movimento, em meio a oscila<,:ôes entre continuidaJes e
pensar diferente, semelhante àquele que nos faz Mignolo (2000),
rupturas". 5 No entanto, tal devir ficou mais exacerbado e muito
no contexto específico da teorização pós-colonial, quando nos
mais facilmente identificável nas pr:itic1s em que vivemos. devido
exorta a caminhar pelo que chama de uma epistemologia de
aos avanços tecnológicos (mklijticos e outros), que pos,-.;ibilítam a
10
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compressão do espaço e a rapidez do tempo, assim como os conse-
(. .. )a cozinha é a metáfora da própria exbtên<.:ia, po!.s <listin-
quentes deslocamentos, muitas vezes sem que seja necessário
ue-nos uma certa capacidade de viver na transformaçao, nurru
sair de casa, por meio dos discursos que as telas dos computa dores,
{X)r exemplo, nos trazem. A exarc."ebaçào dos fluxos idcntit<\rios
!obili<la<le que não é só geográfica mai; total. ( ... )~ ~ozính<i .é
0 lugar da ín.stabili<lade, da procura, das soluçôes cnat1vas mais
timbém se tomou mais visível devido a políticas e epistemo- imprevistas. Por isso se desarruma tantas vezes, porque vive
logias contestatórias de visões homogeneizadoras de nossas nessa latência de recomposição. Na cozinha, torna-se claro que
sociabilídades - evidentes em movimentos sociais e teorizaçôes a transformação que damos às coisas reflete aquela que acontece
pós-coloniais, feministas, queer, antirracistas etc. -, surgidas em no interior de nós.7
um mundo que faz a crítica aos ideais da modernidade de
progresso, cientificidade e racionalidade, que apagavam o corpo Como consequência do enfoque deste volume em uma lógica
e sua história. do fluxo identitário, para além da identidade, vale ressaltar que
Essas óticas têm nos aproximado cada vez mais de outras a rtigos aqui publicados nos apresentam a um instrumental
os
teórico-analítico e metodológico inovador que poss1'b'I· 1 1ta o
narrativas sobre quem podemos ser, trazendo questionamentos
sobre os limites alteritários para dentro de nossas casas, aumen- empreendimento da pesquisa de modo respo~sivo à mobilidade
tando e desafiando nossos repertórios de sentidos, bem como 'd titária ou ao mundo dos fluxos contemporaneos. Tal caracte-
1 en I' ·
provocando incertezas, desequilíbrios e ambiguidades em parn- rística torna possível considerar se os percursos teórico:ana 1t1C~)S
digmas binários e (X)lares sobre como estar na vida social, e nos e metodológicos de investigação, elencados nos capttul.os, sao
colocando, assim, na fronteira, no fluxo e em um contínuo devir. apropriados às óticas de fluxo com as quais pretendem dialogar.
Por outro lado, tal \isào não acarreta a compreensão de que as Convidamos os leitores a se envolverem nesse percurso nas
referências identitárias biruí.rias tenham deixado de existir: 6 muitas páginas seguintes, nas quais passamos a delinear os argumentos
são as reações essencialistas (algumas raivosas!) que persistem, principais dos vários capítulos.
apesar dos movimentos de desestabilização das tradicionais
polaridades identitárias encontráveis em toda parte.
Este volume colabora, especialmente, com a desconstrução
DESFIANDO A TRAMA DOS CAPÍTIJLOS
de 'iseles essencialistas sobre nossas sociabilidades, não somente
pela desessencializaçào de compreensões homogeneizadoras e No Capítulo 1, Heidrnm Krieger Olinto discute a qu~stào da
binarizadas da vida social, mas, principalmente, por meio da identidade do texto literário à luz das novas configuraçoes que
focali.z.ação teórica que constrói objetos de estudo nos entrelu- vêm tomando na rede digital, as quais requerem teorizações alter-
gares dos binarismos, ao colocar sob escrutínio os fluxos. Assim nativas para compreendê-lo. Seu ponto de partida é, desse m:)~io,
fazendo, cria novos tópicos de investigação e prestigia o trânsito a necessidade de reteorizá-lo. Sugere para tal o constmto teonco
identitário, que parece estar muito mais próximo de como, de fato, de transdiferença que tem sido aventado para compreender os
vivemos nossas práticas sociais, nos compondo e recompondo processos de hibridação identitária que experim.entamos. Ar~u~
continuamente nos discursos a que, incessantemente, nos vincu- menta que situar a identidade na égide da transdiferença co'.1sr.mu
lamos e dos quais nos desatrelamos. Talvez seja útil metaforizar a um ganho epistêmico singular par..i avançar para além ~los lnrntes
exístl-ncia como uma cozinha, como o faz, na verdade, Tolentino de compreensões binárias, ao ressalrar processos hílmc~o~ _ou de
(2007) - uma comparação pouco comum e talvez inesperada em fronteiras culturais (inter, trans e multiculturais), poss1h1li1ando
um texto acadêmico, mas que bem ilustra nosso contínuo tomar-se. lidar com a complexidade da contemporaneidade. Olinro ar.c~nta
Conforme ele diz, que o construto da transdiforença não é a1x:n.as uma me·ta·fo~1
ambígua e pouco esclarecedora. mas que de lato torna v1s1n~1s
espaços opacos que o construco da dik·rl·nça e.limina, com ~l'.ª
lógica do "isto ou aquilo". A klgica tb !r:tnsdik·rença presHg1a
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15
a ambivalência e a instabilidade da performance na fronteira e, identitários em uma região tradicionalmente estigmatizada do país
portanto, do vir a ser, o que por sua vez só existe a partir de como lugar de pobreza, violência etc. A análise mostra a comple-
posições explícitas de diferença. Ao concluir, discute a relevância xidade de tais posicionamentos, principalmente à luz da lógica
de tu instrumental teórico para dialogar com o status contingente dicotômica inicial da amora, que opunha os memorialistas Clígados
do sistema literário no mundo digital e no das multimedialidades a uma ordem discursiva maL<> tradicional, a dos institutos históricos
(um mundo trans), ao enfocar a questão da autoria clisrersa, e a sua história oficial) aos historiadores (agentes oriundos da
smnpling, linearidade textual, c.itegorias da história da literatura, universidade, que, em geral, procuram operar na construção de
multimodalidade, literatura perfonnática etc. uma crítica sobre o passado). Seu argumento é de que o trabalho
Eneida Maria de Souza, no Capítulo 2, nos convida a pensar no campo desafiou tal bipolarização ao indicar a complexidade
sobre como a esfera privada e a esfera pública se confundem dos significados (primeiramente entendidos somente como diver-
em nossos tempos, os quais são cada vez mais vividos sem tal gentes) em que tais agentes estavam envolvidos ao mostrar os
dístin\."'àO. Tal separação, um ideal da vida moderna e seus anseios fluxos de interação entre os participantes, o que deslocou sua
de construção da democracia por meio da representação e de visão inicial. Em especial, a autora ressalta o projeto político de
participação no espaço público, é desmantelada em uma socíe- construção de novas identidades positivas para a Baixada como
dade midiatizada que mostra tudo (ou quase tudo) para todos. A constitutivo dos dois grupos de agentes, ao passo que discursos
privacidade dos famosos (e mesmo a dos não tão famosos!) está divergentes também estão em ação. O que mostra, entào, são
disponível para quem se dispuser a alcançar o controle-remoto as fronteiras discursivas múltiplas e fluidas que constituem seus
ou o teclado do computador. Souza mostra como o famoso livro posicionamentos identitários, continuamente em construção nas
de Debord, A sociedade do espetáculo, escrito nos anos de l %0, práticas discursivas.
foi profético em relação ao mundo no qual vivemos: estamos Anna de Fina, no Capítulo 4, estuda narrativas de imigrantes
ou na rela em que o espetáculo é veiculado ou do outro lado mexicanos sem documentação para os Estados Unidos. Especifi-
como espectadores. No entanto, ela argumenta que a crítica d~ camente, focaliza como estes constroem o tempo e o espaço ao
Debord deixa de fazer sentido em um mundo de hibridismos que narrarem seus deslocamentos na fronteira nas práticas discursi-
mesclam o público e o privado e no qual, portanto, tais esferas vas em que se defrontam com seus entrevistadores. O foco
se interpenetram, Propõe que a sociedade do espetáculo deva é colocado no elemento estrutural de orientação, que, segundo
ser considerada como lugar de pensar novas sociabilidades e Labov e Waletzky (1967), é usado para orientar o interlocutor em
d~ redesenhar as subjetividades, no qual as pessoas possam se relação aos personagens, ao lugar e ao tempo em que a narrativa
remve~tar ao atravessarem as fronteiras porosas entre o publico transcorre, fornecendo um pano de fundo e dirigindo o ouvinte.
e o pnvado. A aurora conclui relatando vários ensaios sobre Para a autora, a orientação, no entanto, se faz em função dos
cultura, que dialogam com o quadro do mundo contemporâneo participantes da prática discursiva, das contingências relatadas
traçado, e argumentando que a sociedade do espetáculo não na narrativa e da história que é contada, constituindo-se, assim,
deve ~ compreendida somente como espaço de manipulação em um elemento de grande variabilidade. Tendo em vista o fato
pelas 1m:ig~, mas também como espaço em que a vida social de que as narrativas na fronteira são caracterizadas por desloca-
se const1tu1 de modo fluido.
mentos e desorientação, a orientação é um momento narrativo
1\"~ Capítulo 3, Ana Lucia S. Enne volta-se para o estudo das em que participantes negociam os significados da experiência
relaç~. encre memória, discurso e a construção de identidades narrada. A análise mostra que a orientação tende a ser vaga,
~dois tipos de agentes da Baixada Fluminense, os quais ela deno- necessitando os narrddores da colaboração dos interl(KUtores no
mi~ memorialistas e historiadores. O trabalho se fundamenta em narrar; os participantes, em geral, se envolvem no detalhamento
analises de entrevistas com tais agemes bem como do material da orientação, que deixa de servir como pano de fundo e passa a
que publícaram de modo a d' . . ser o foco central do narr..1.r, e o controle d< l narrador em relação à
' compreen er seus pos1c1onamentos

14
orienta\'ào depende de sua própria experiência de deslocamento território estão em tensão com como as falas nas fronteiras estão
(a pé, a nado erc.). Isto demonstr.i, por um lado, que a estruturn organizadas, fazendo conflitar, entre outros aspectos, diferença,
da história não pcxie ser compreendida em separado das contin- marcas sociais, valores simbólicos, identidades políticas, identi-
gências contextuais da pr.itic.i narrativa (quem são os narradores dades linguísticas e práticas linguísticas. Tais fatores desafiam a
e para quem narram), o que salienta a natureza construída da própria definição de como uma língua se diferencia de outra na
orienraçJ.o e a importância de se obse1var tal carncterística na fronteira: fruto da imaginação teórica do linguista ou do consenso
análise de narrativas de grupos marginalizados, nas quais o narrar construído por falantes? Lagares corrobora a visão crucial de que
não está separ.ado de quem são na vida social. o conceito de língua como categoria homogênea é produto da
Anna E1izabeth Ba1occo, no Capítulo 5, focaliza as políticas construção política do Estado-nação e seus interesses de unificar
de <h!;'ào afimmtiva na universidade no que se refere a como os uma língua em um território específico. Por outro lado, discute
chamados cotistas constroem discursivamente suas identidades. também como a construção do conhecimento metalinguístíco
Para canto, analisa um corpus de narrativas escritas por tais alunos por meio da elaboração de gramáticas e dicionários teve papel
os ~uais foram convidados a narrar sua entrnda na universidade: central no estabelecimento de limites rígidos entre as línguas,
ª:'un como suas expectativas. O objetivo foi estudar seus posi- controlando as variações e constituindo tal tecnologia como pres-
cionamentos com base no quadro teórico da Análise Crítica do crição. A seguir, problematiza as relações históricas da fronteira
~iscurso, notada.mente com apoio nas categorias de avaliação na linguístico-política do galego com o português e com o castelhano
linguagem. O pressuposto é que a avaliação linguística fornece na definição do galego como língua ou dialeto, tanto do ponto de
mei~ ~:identificar os discursos a que estão vinculados, o que vista da linguística histórica, quanto das manifestações políticas e
poss1b1hta compreender posições identitárias. Filiando-se ao da percepção dos próprios falantes. O que a análise ressalta é a
realismo críti~o, a. autora argumenta que, embora não rejeite multiplicidade de visões e a heterogeneidade de interesses que
a na_rureza d1SCurs1va do mundo exterior, entende que não é subjazem à delimitação de uma língua, enfatizando especialmente
possivel n:~ar. a e~istência do mundo material, sob pena de se como a criação de fronteiras nacionais exerce influência primordial
a~r a v1sao idealisra de um socioconstrucionismo exagerado. A no que os falantes constroem como a língua que falam.
análise' ao associar as marcas linguJStlcas , · d e avaliação às condições Cláudia Maria Ceneviva Nigro, no Capítulo 7, estuda as perso-
contextuais
. de produção d t'd
e sen 1 o, reve 1a tanto o uso que os nagens femininas ele Toni Morrison e de Maya Angelou, não no
Cütlstas
. . fazem
. de discurs os d o senso comum sobre a qualidade sentido da crítica feminista tradicional, que procuraria estabelecer
da uruversidade ' como també m como se co1ocam discursivamente . a essência do que existe de feminino em tais personagens, mas
frente
. aos problemas
. m t · · d . .
a ena1s e seu cottd1ano. Mostra, aínda, sim com a finalidade ele mostrar que no mundo contempor:.lneo
c~m~ seus discursos incorporam modos do fazer discursivo aca- de que as autoras falam não há lugar para essências de qualquer
demJCo, constituindo-se ass· . ., .
im como a 1unos urnvers1tanos. Tal nanireza. Argumenta que a escrita feminina das escritoras não
processo
_ . é indicador das con t.mgenc1as soc10-h1storicas em que
à • , • • ,
busca articular o sofrimento da raça negra e do gênero feminino.
estao situados bem como de , . ~ . Ao contrário, busca focalizar o sofrimento cotidiano de cada um
à • ' sua propna agencia em tais circuns-
tancias como sui'eitos qu de nós, escapando das amarras que nos fazem ser só '·isto ou
.. . . . e constroem um percurso específico
relam-o a seus direitos na sociedade brasileif'J. aquilo", ao nos colocarem em categorias identitárias delimitadas,
No Capítulo 6' Xo'an C·ar los Lagares problematiza a relação uma vez que o que se deseja ser pode ser projetado, negociado.
entre as fronteiras pol't' . . , . · perseguido e construído. Não h<í espaço na escrita das duas
. . _ 1 icas e as 1mgu1st1cas na imlefiniçào/
defm1çao do que co ta · autorns para cristalizar o que somos. Nigro se posiciona, 1xxtanto,
. . n como ga1ego e/ou português. Seu ponto
de pamda na discussão é . 'do com b ase na· noção de que bem distante da ideia da existência de uma feminilidade fixa,
constrm
as demarcações de pod . ,. que transparece na escrita de mullwres (para mulheres!) uma
· eres po11t1co-administratívos sobre o
vez que, como bem indica, tal escrira pode ser produzida por

16
hom<:ns heterossexuais, gays e lésbicas. A análise das obrns de múltiplos do rio como espaço e tempo, constitutivos da identi-
Morrison e Angelou mostnt como elas querem fugir de visôes dade amazônica, associados ao passado, embora Loureiro não
de guetos na vida social que não apresentam alternativas. Parn perceba que a identidade também dialoga com o presente. Já
tanto, constroem personagens que tr.izem à tona a multiplicidade em Monteiro, o rio não tem um papel estruturante na narrativa,
da vida hum~tna, ao passo que nos convidam a pensar novos mas serve para demarcar a multiplicidade da vida ribeirinha
significados sobre quem somos.
(a personagem principal é a cidade de Alenquer), com a qual
Karl Erich Schollhammer, no Capítulo 8, enfoca a conhecida dialoga. O foco não é mais o ser homogêneo da Amazônia, mas
pergunta de Spivak: as pessoas que ocupam lugares suhailernos as sociabilidades variadas, conflitadas e contradítórias. Finali-
JXXiem falar por si mesmas ou seus discursos têm que ser me- zando, Pereira sustenta que a escrita desses dois autores é anco-
diados pela autoridade do intelectual? Schollhammer levanta rada sócio-historicamente no início do processo de devastação e
o paradoxo implícito na colocaçjo de Spivak, uma vez que a modernização da Amazônia, que criticam ao procurarem construir
subaltemidade desapareceria se os subalternos falassem: uma a identidade tradicional do que entendem por cultura amazônica.
posição que apaga as contingências culturais e socioeconômicas o autor argumenta que tal perfil identitário é homogeneizador,
que os marcam. Discute, então, manifestações anístico-culturnis essencialista e cristalizador da heterogeneidade da vida social da
recentes (que incluem tanto testemunhos de escritores e prota- Amazônia, uma vez que não se alterou com o passar do tempo
gonistas, como também o talento de atores, bailarinos, músicos e com a rapidez da vida contemporânea, apagando as transfor-
etc.), nas quais a mediação é feita por pessoas que atuam em mações que os sujeitos amazônicos experimentam e negando,
OXGs e em projetos comunitários. Problematiza, a seguir, a utili- desse modo, suas próprias existências.
zação que a 1V e outras tecnologias têm feito da voz da periferia, Guacira Lopes Louro, no Capítulo 10, apresenta sua leitura do
argumentando que a mediação agora envolve a operação conjunta filme Transamêrica, de Duncan Tucker, propondo que pen5emos
do intelectual com a tecnologia, acarretando dificuldades na nos personagens do filme como viajantes pós-modernos nos
demarcação dos movimentos da periferia para o centro e vice- vários caminhos que experimentam em suas performances de
-\·ersa e caracterizando um hibridismo que viabiliza a existência gêneros e de sexualidades. Sugere que a metáfora da viagem é
dà5 duas posiçC:les. Entende que esse hibridismo causa a polêmica útil para ilustrar o trânsito identitário, constituído por desvios,
referente à exploração comercial da periferia. O artigo se desen- que os personagens vivenciam. Propõe, assim, que a teorização
voln: com a discussão de exemplos da literatura marginal e o seu
de Butler 0990) em relação à decisão enunciativa sobre o que
aproveitamento pelo mercado editorial, e com a apreciação do os corpos devem fazer, quando enunciados como homens ou
documentário Fakão os meninos da tráftco(2006), veiculado pela mulheres ao nascer, seja compreen<lkb como urna viagem na qual os
Rede Globo, entre outras manifestações. Finaliza indicando que
viajantes persigam outros roteiros para além daqueles constituídos
e&.as práticas redescrevem os limites cristalizados entre produzir, culturalmente. Louro deixa claro que e&se atravessar os limites
expressar, performar e fruir arte.
sobre o que os corpos devem fazer é constantemente controlado
Edir Augusto Dias Pereira, no Capítulo 9, nos conduz em uma nas culturas sob o princípio regulador da heterononnatividade.
\·iagem pelos rios amazônicos por meio da análise de dois textos e que tais cruzamentos têm se tornado cada vez mais Yisíveis
literários - a poesia de Paes Loureiro e a prosa de Benedicto no mundo contemporâneo, o que desarticula os binarismos <la
Monteiro -, possibilitando compreender como tais autores cons- masculinidade/feminilidade e da hetcrossexualidadeíhomos-
~roen:1 ~ i_demidade cultural amazônica, dentro das mestiçagens, sexualidade. Ao finalizar, argumenta que o filme é revelador de um
imagmanos e dos conflitos constitutivos do espaço e do tempo processo de instabilidade em relação à sexualidade e aos gêneros
dessa região. O autor recupera um discurso geográfico que que todos nós continuamente experimentamos. Como no filme,
constrói tal identidade no confronto entre a tradição e a mocler- nossas histórias como viajantes esüo ern construçào.
ni7.açào da Amazônia. Em Loureiro, Pereira realça os significados

18
19
No Capítulo 11, Henrique Caetano Nardi nos apresenta sua ênero levadas a efeito. Par.1 lidar com tal complexidade, Oliveira
pesquisa sobre prostituição masculina à 1uz do construto da pôs- ~ropõe a distinção entre interações ~r~>t!cas alt~rge~eríficadas
-identidade, ger.ado em teorizações pós-estruturnlistas e queer, e isogenerificadas, com base na defm1çao da sJtuaçao que os
que chamam atenção para a natureza performativa do discurso participantes projetam nas i_nt~raç?es er~ti:as com ~)u~r<.)S e, q~e
nas expres...-.ões de sexualidades, o que desestabiliza o binarismo as regulam. Estuda as matenaltzaçoes do 1e1to no vesruano, esnlo
:aprisionador do gênero. Tal desestabilização levaria a processos (de caminhada, por exemplo), uso do olhar (em que partes da
de pós-identidades (identidades em trânsito) questionadores da anatomia o olhar se fixa, por exemplo), tipos de música (quais
heteronomlatividade e da homonomratividade, ou das polarizaçôes sequências musicais mobilizam os "homens de verdade", por
que definem/definiam os sujeitos na modernidade. Nardi especi- exemplo), coreografias etc. Discute como os atravessamentos
fica que seu interesse pela questão está calcado na preocupação dessas materializações nas performances dos chamados "homens
em entender as subjethidades contemporâneas, assim como em de verdade" os colocam imediatamente sob suspeita e, portanto,
aumentar nossos repertórios de sentidos sobre quem podemos como 0 gênero tem relevância nas interaçr.ies sexuais. Conclui
ser. Seu foco está, portanto, nas possibilidades para viver a vida mostrando como os polos masculino e feminino são definidores
social para além de práticas normalizadoras. Sua pesquisa de muitas das práticas sexuais na boate.
envolveu, entre outros instrumentos de investigação, entrevistas Marcelo Santana Ferreira, no Capítulo 13, nos apresenta sua
com garoro.s de programa, observações de cunho etnográfico leitura da cidade do Rio de Janeiro como um texto, em seu ameio
em lugares de prostituição e pesquisa quantitativa com garotos de apreendê-la, notadamente no que se refere à experiência
e clientes. Seus resultados, que qualifica como parciais e tempo- homoerótica, nos fazendo recordar Benjamim e sua tentativa de
rários, apontam que os sujeitos estudados não operam dentro ler a realidade como texto. Relata seu flanar pelos espaços de
de uma lógica pós-identitária, ou seja, garotos e clientes estão interações homoeróticas de modo que a citação desse tal flanar
restritos aos binarismos da sex"Ualidade e dos gêneros. Finaliza se constitua como um qodo de traduzi-los. Especificamente, o
comidando-nos a intervirmos nos binarismos discursivos de autor se volta para o interior de uma boate gay no subúrbio
modo a construir outras sociabilidades legítimas. ' carioca e para os jogos eróticos em desenvolvimento nas práticas
Leandro de Oliveira, no Capítulo 12, nos conduz, em sua sociais em tal contexto, mostrando como revelam as assimetrias
pesquisa de natureza etnográfica, pelos meandros das interações historicamente construídas entre os gêneros, ainda que desar-
eróticas, em uma boate do subúrbio do Rio de Janeiro, frequen- ticulem as convenções entre ativo e passivo ou entre macho
rada por homens não heterossexuais dos setores populares. A e fêmea. Inclui a descrição da entrada na boate, o interior, as
peculiaridade de tal boate é explicada pelo fato de cobrar entrada apresentações artísticas, o quarto escuro, os prazeres transitórios,
somente de indivíduos que exerçam performances femininas, o a des-subjetivaçâo dos afetos, a idade dos p<lrceiros, os corpos
que Je\·a à representação singular por parte do público de que diferenciados, o vestuário, as tensões, a violência. a saída da
-homem não paga", ou seja, o atrativo para os frequentadores boate etc. e indica como as práticas reveladas dentro da boate
pagantes é a possibilidade de se envolver em prátirns eróticas com contradizem a concepção do que seria a essência de uma identidade
-homens de verdade". Para dar conta da categoria jeito (de bicha e homossexual. Ao trazer Foucault para a discussão, Ferreira
de homem) que os frequentadores da boate usam parn rnracterizar argumenta como as práticas homoeróticas interessam por inaugu-
as performances específicas de gênero, Oliveira investiga os gestos rarem novas alternativas de sociabilidade na expre~<i<1o do afeto,
~ue ~ se construir como efeitos de tais performances no diferentes daquelas já estabelecidas, o que envolve a possibilidade
mrenor das práticas e redes de que eles participam. Problematiza de configurar novos modos de relações inimagináveis, que nos
os usos feitos, no concexto das práticas estudadas, das categorias libertariam da ação impeditiva dos significados cristalizados na
homem, bicha, gay, viado, travesti, cross-dressers bicha-hov etc. história e a sua definição do que é legítirno, O provisório que
na definição de parceiros sexuais, com base nas ~rfonnan~es de acontece na boate possibilit;i tal configuraç:lo.

20 21
Branca Falabella Fabrício e luiz Paulo da Moita lopes. no NOTAS
Capítulo 14, nos apresentam sua pesquisa, de caráter etnogr.i-
fico-colaborati\"<:rinten·encionista, sobre re-posicionamentos de 1 SKLIAR, 2003, p. 55.
sexualidade em contexto de letramento escolar com alunos de s• 2 SKLIAR, 2003, p. 95.
série. Partem do pressuposto de que os discursos hegemónicos
' BHABHA, 1998, p. 23.
de se..-rualidade podem ser deslocados e receber no,·as redes-
crições. no interesse de construir novos sentidos sobre quem 4 APPADURAI, 2001, p. 5.
podemos ser - um desafio que reputam como fundamental nas ~ FABRÍCIO, 2006, p. 46.
práticas contemporâneas em que \"ivemos. Tal desafio é espe- 6 ROLNJK, 1997.
cialmente reb-ante na \.ida escolar, tendo em vista o fato de a
1 TOLENTINO, 2007, p. 28.
escola se constituir como primeira in.'>lituiçào que pode apresentar
alternativas para as restrições de significados com os quais as
crianças \i\-erJ.ID até então no mundo da família. Entendem que
tal projeto é inondor: primeiro, porque pouco tem sido docu- REFERÊNCIAS
mentado sobre temam-as de lidar com contra-hegemonias em
sala de aula, e, segundo, porque especialmente a questão da APPADURAI, A. Modernityatlarge: Culturnl <limen.-;ion.s of globalization.
sexualidade é tradicionalmente apagada pelos professores do Minneapolis: University of Minnesota Press, 1996.
discurso escolar ou é moti,·o para a expressão da homofobia. APPADURAI, A. (Org.) Glohalízation. Durham: Duke Cniversity
Fabrício e ~foita lopes ad\·ogam que a implementação em sala Press, 200L
de aula de uma abordagem que focaliza a natureza discursAa
BHABHA, H. O local da cultura. Trn.<l. Myriam Ávila, Eliana L. Lima Ah·es
dos gêneros e das sexualidades, com base em uma visão dos
e Gláucia Renate Gonçalves. Belo Horizonte: Editora UF~1G, 1998.
lettamemos como práticas sociais, em análise crítica do discurso
e em teoria queer. pode ajudar a gerar significados menos FABRÍCIO, B. Linguística aplicada como espaço de desaprendizage~:
~dos sOC>re as sexualidades. ao mostrar os desejos como redescrições em curso. ln: MOITA LOPES. L. P. (Org.) Por uma lmgws-
processos de trânsito contínuo. Os dados da interação em sala tica aplicada indisciplinar. São Paulo: Parábola, 2006.
cie aula analisados mostram rnicromovimentos discursiYos, que KEARNEY, R. Ibe wakeofimagtnation. Minneapolis: University of Min-
índicam tent.am·as da parte dos alunos de questionar a lógica da nesota Press, 1998.
heteronormati\idade.
LABOV, W.; WALETSKY,). Nam1.tive analysis: or.tl versions of personal
Esperamos que os capírulos que seguem façam pensar a \"ida experience. ln: HELM,). (Org.). Essays on the tY?rbal mui l'isual arts.
socia.I na. lógica do uânsiro, oo fluxo e do mO\imento, colaborando Seattle/Londres: University of Washington Press, 1967.
para que cal insuumental teórico-analítico possa ser inspirador
MIGNOLO, W. Local histories/global designs: Colonialíty, subaltem
àe outras pesquisas, ao passo que também possa contribuir knowledges and border-thinking. Princeton: Princecon University Press,
para desaiticu1ar 00015 homogeneizadoras e binarizadas sobre 2000.
quem somos. Tal caminho pode contribuir para a construç.lo de
ROLNIK, S. Toxicômanos Je identidade: subjetividade em tt'rnpo
discursos alternativos e inovadores para a vida social, para além
de globalização. ln: UNS, D. (Org.) Cultura e sul~jt'til"idt1de. saberes
da identidade.
nômades. Campinas: Papirus, 1997.

SKLIAR, C. Pedagogia (impro1•ât"e!) da diferença: e se o outro não


estivesse aí? Rio de Janeiro: DP&A. 20ll.t

23
HEIDRUN KRIEGER OLINTO

CONSTRUÇÃO IDENTITÁRIA
I

NA OTICA DA TRANSDIFERENÇA

Como falar, hoje, de identidade em relação ao fenômeno lite-


rário, a sua situação comunicativa, sua historicidade e possíveis
formas de sua teorização? Essa questão será abordada a partir <la
concepção de literatura como sistema social e cultural complexo
que, nas últimas décadas, expandiu as suas fronteiras além dos
limites tradicionais do gênero como unidade textual específica.
Novas configurações intermidiáticas - entre elas, a transformação
da mídia impressa em escrita na rede digital - tiveram consequências
para a nossa compreensão de literatura e para as opções de suas
fonnas historiográficas, que precisam ser percebidas e discutidas,
porque elas estão alterando tanto os nossos hábitos de ler e
de escrever, quanto os nossos hábitos de lidar com produções
simbólicas, de modo geral. Se adicionarmos a essas mudanças a
crescente ocupação de espaços inter e transdisciplinares, ensaiada
tanto no quadro dos estudos de literatura quanto em suas alianças
com estudos culturais, multiculturais e pós-coloniais, ficará evi-
dente a necessidade de revisão do próprio instrumental teórico
para tomar visível a situação alterada.
As questões que, no âmbito dessas preocupações, gostaria
de submeter a uma reflexão referem-se a uma a\·a!iaçào desses
tópicos temáticos e à sua conceituação numa perspectiYa que se
aproxima do ideário implicado no conceito de transdiferença,
que, na qualidade de elemento teórico, surge como proposta
de compreender processos identitários híbridos, entre eles, o
sistema literário.

Lt
II seria, então, a vantagem de se usar um neologismo para uma
investigação científica de processos identitários, que pelo
t:m primeiro olhar sobre um projeto recente que situa a acréscimo <lo prefixo trans, arrisca ser apenas mais um termo
problem:ítica da identidade sob o signo da transdifenmça pemiíte metafórico e indeterminado, carregado de ambiguidades e, por
en."tergar a sua índole processual em contraste com moJdos isso, de reduzido potencial explicativo na discussão de identidade/
de oposíçio binária. Concebida como pensamento altem:uivo. a diferença? Ou seja, em que consbte afinal a alegada especifícidade
propc6U entende con.'itrup5es identitárias a partir de proc~os de de sua proposta?
diferença aliados-concomitante e necessariamente-à copnxlut;â() Para os americanistas da Universidade de Erlangen, na Alemanha,
de transdifere11ça. .Sesta perspectiva, uma teoria da transd1fe- Helmbrecht Breinig e Klaus Lõsch, o termo transdijerença deve
TP11ça legitima os seus contornos indicando pontos de contato o seu nascimento ao desejo de complementar o pensamento
e distinções conceituais, em diálogo com m<Xielos teórícos que da diferença - em seus extremos polares, facilmente confun-
acentuam igualmente processos hibridos inter, trans e multicul- dível com modelos binários ou homogeneizantes - por uma
rurais em suas propostas de configuração identitária. focalização mais complexa dos processos periféricos ativos nas
Os idealizadores do projeto, Breinig e Lõ.sch. pretendem. desse esferas culturais intersticiais, que se afastam dos centros reai'i ou
modo, ocupar um lugar novo nos discursos atuais de identidade simbólicos.3Nesse sentido, o conceito de transdiferença pretende
e diferença, ao propor a manutenção de fronteiras e tem:itizar, enxergar o que permanece invisível em modelos de diferença,
ao mesmo tempo, a crescente dinâmica interativa de fenômenos ou seja, aquelas zonas indeterminadas de múltipla pertença,
e e'\-enros pertencentes a múltiplas esferas afetivas e cognití\:.ts. marcadas por estruturas tácitas de poder. Central nessa proposta
geralmente imisí\-eis em molduras teóricas centradas sobre rnffa- - e aparentemente paradoxal - é o reconhecimento enfático da
nismos de redução de complexidade, que ocultam referências a diferença como força geradora de orientação. Em outras palavras,
n:pertórios múltiplos e impedem ou dificultam a sua recuperaçào.1 a proposta não pretende subsumir a diferença em uma unidade
Segundo eles, o conceito doing identity, no contexto de uma te- mais elevada, mas tampouco preservá-la apenas como forma de
oria da trnnsdifenmça, permite en.'\:ergar fenômenos complexos orientação indispensável. Nesta ótica, tanto o foco exclusivo sobre
do mundo contemporâneo-tais como processos S<Xicx:ultur..lis a diferença quanto a sua desconstrução rddical são questionados
e pol.iticos, operações de produção e reprodução culturdl e de em função do restrito potencial explicativo na investigação de
negociação intercultural de identidade e representaç.lo simbólica práticas, situações e fenômenos acuais concretos. Trata-se de uma
-_ apontando nào apenas para a sua consrrutkidade e histori- concepção, de certo modo, em sintonia com a substituição da
. • mas f ocaliz.ando, t ambé m, mu, 1tlp
o<lade · los pertencimentos ideia de diferença-na-unidade por unidade-na-diferença, proposta
soaoc Jt · Fenomenos
• por David 1beo Goldberg em seu ensaio introdutório à coletânea
u ur.us. de transd1ifierença comrdriando a
da
""1'":Ih1;~,...;;,- '
---....~ ordem estrutural pe1a inclusão de a~'5es dissidentes. Multiculturalism. 4 Interrogando tanto o modelo monocultura lista
em _lugar de sua exclusão e/ou assimilação, precisam ~r ( re )ne- da assimilação, que orientou dur.inte longo tempo o sistema fX)lítico
gociaili"ls, relativizando a sua entidade e respeaiH idt>ntidade norte-americano, quanto o modelo de integração, expresso no
como mera diferença. termo melting-pot - baseado no comportamento nonnativo do
cidadão americano na esfera pública e na tolerJ.ncia da conduta
Trata-se apenas de um jogo de conceitos? A minha leitura
nnr-.aa·f cn·11·co desse pmteto particular do etnoamericano na esfern privada -, o autor favo-
Pretende_ sinalizar
_ o ~.. . , .
teonco, a partir
rece um projeto de incorporação. De índole trJnsgressiva, com
dos pnmeuns textos básicos de cientistas de áreas de conheci-
mento dislintas• discurmdo a Ira nsdifi , acento afirmativo sobre a diferen~·a entendida numa perspectiYa
1 erença em dialogo com o
~
pen..<>amento da diferença , publ'1cad os na co1etanea . . processual, esse modelo, por definição, se caracteriza pela
Dijjere11ze11
infração das normas do status quo rnonoculrural, pela promoç~"lo
anders denken (Um modo diference de pensar diferenças). 2 Qual
de novas iniciativas políticas de neg< >daçh 1 e pela ronresta1;:ào
da pureza obsessiva a partir do acemo positi\'o sobre a energia podem movimentar-se em territórios localizados no entremeio
criath·a do impuro.
das culturas, sem que esse lugar híbrido se transforme em ten:eiro
Tra1tsdifenmça como concept in progres.s (con<...""Cito em Jesen- espaço, em lugar alternativo estável e duradouro. Um <los argu-
,.oh·imenro), com ênfase no prefixo trans, pretende, dessa fom 1a. mentos de Breinig e Lõsch, balizado por numerosos exemplos,
dialogar com conceitos vizinhos de diferença - e diferença na cita a condição dos indígenas no mundo dos brancos, que nele
unidade - não a partir de gestos de transgressão de linhas se sentem como estranhos e não se entendem necessariamente
fronteiriças .amerio~, mas, dando relevo à ambi\·alência por como defensores <le direitos humanos liberais, mas tampouco
elas pnxiuzida, sublinhando nesse próprio ato de confinnação como críticos de fronteiras culturais. É precisamente o caráter
performativa a sua inerente instabilidade. Homi Bhabha, de certo precário e provisório desse lugar que encontra uma explicação
modo, sinalizava uma bivalência fundante similar, ao compreender teórica mais pertinente no conceito de transdiferença. Ao mesmo
fronteiras culturais como estereótipos fundados sobre continui- tempo, o seu próprio grupo transforma-os em estranhos, à
dades e estabilidades que demandam, na dimensão espacial e medida que autoridades indígenas tendem a ver essa ambígua
temporal simultaneamente, constantes formas de afirmação e de posição trans<liferente como ameaça ao seu sistema jurídico e
repetição, mas com ênfase sobre a diferença. 5 Em outras pa1a\Tas. administrativo institucionalizado. E é em contextos como esses
os processos operativos permanentes em espaços fronteiriços não - impossíveis <le serem explicados por modelos de desconstru-
representam garantia de estabilidade, mas, ames, emendem-se ção ou de homogeneização - que o conceito de transdiferença
~ameaça à continuidade de fronteiras e, por isso. necessitam pode representar mais uma opção contra a lógica excludente do
de retteradas estabilizações, pelo menos discursivas. "isto ou aquilo", e ser capaz, em certo sentido, de satisfazer os
O autor •de O local da cultura articula o dlSCU. rso ~J
r~~~OOLl
· l dois lados. 7 Nesta argumentação, o dissenso não é celebrado,
con~poraneo com a diáspora de intelectuais do chamado portanto, como saída a favor de um terceiro espaço, inaugural,
Terceuu Mundo, marcados por lústórias de deslocamento. A independente, uniforme e estável, mas como tentativa permanente
sua dupla ·
_ .
· - 1 ·
UlSCTlçao ru tural, confenndo-lhes simuJuneamence de perturbar o conhecido com o germe do inauguraL Desse
identidades plurais e parciais, está preserne tanto na elaboração modo, o conceito de transdiferença permite explicitar situações
de ~rtórios teóricos complexos quanto em obras lirerárias de complexas, enxergando, pela crítica de conceitos monoculturais,
es:::mores biferiados., que, em suas respecti\·as produções_ rraduzem processos de intercâmbio entre culturas distintas como regra e
essa condição pelo destaque dado a configurações híbridas. não como exceção.
Termos ] ·
ci . co~o entC: ugar, en~meio e entretempo, nes.se âmbiro. Em suma, um dos pontos de partida significativos para o
~em fenomenos e ndas oscilarnes situados em espaços conceito de transdiferença encontra-se no questionamento do
-m ~· nu~ ~fera do além, formulada por Bhabha co~o pensamento binário e da ideia subjacente a processos de trans-

=:figuras
. ·~ de transno em que espaço e tempo se cruzem pan
complexas de diferença e identidade-.~ Esses
ruhura e da arte arual não rPnresem:un nem horizont"""
formação lineares. Nesse sentido, afasta-se tanto da visào de
grupos culturais, como portadores de determinadas identidades
culturais claramente distinguíveis, quanto da compreensào da
~-os nem o aban ·-r '"·'
.~ . · dono do passado, mas deffi.3.ndam uma con:>- contingência cultural limitada à perspectiva diacrônica, dando
~ aguda das po._· - •
b: __ , . . . - içoes concretas - de raça. genero. IOCll relevo a uma complexidade e heterogeneidade do sincrônico.
~ruaonaI, onentação sexual, localidlde geopolir!ca - dos A primeira opção diz respeito à organizaç:lo espada!, enquamo
s..:~os que os habitam.
a segunda se refere à ordem temporal, ambas vistas em sua
E-;sa Cún."lel.ação não corresponde ao dissenso inrerrulrur.d. nus condi~'.ão interativa no moddo da tnmsdijàença. Ou seja, a
;"X~ta ~ uma situaç:lo de conflito em seu imerior. Cultur:l:-> condição de transdiferença inexiste sem a marca da diferença.
~~~ ~ se tomam \"isfreis concr.i pano de fun ...,io d· e. ,..,.,
.ambn~'la Os diss. .....
Os autores, idealizadores do projeto, esclarecem, em reiterados
· Jdemes, pelo menos dur:ime ceno temrx>. momentos do seu prograrna-manift•sto, que o conceito pretende

19
visualizar tudo que é refratário, que se rebela contra a inserçào assimilado pelo leitor numa atítude contemplatíva, a favor do
em polaridades de diferenças binárias, porque atravessa, ror processo interativo que funde as instâncias do texto e do ldtor,
assim dizer, as fronteiras e toma oscilante a diferença inscrita, sem de que a Estética da Recep,:ào representa apenas uma das
todavia dissolvê-la. O conceito, embom interpelando a validade propostas sugestivas iniciais. Uma teoria da literatura envolvendo
de constructos binários de diferença, não se entende tampouco
0 leitor numa ação produtiva de constnição de sentido corresponde
como a sua superação. A diferenç.i, por assim dizer, colocada ao confronto do leitor com uma experiência alheia, em que o
entre parêmeses, é preservada como indispensável ponto de texto representa o efeito potencial que mohíliza faculdades
referência: não há transdiferença sem diferença.
perceptivas e imaginativas do leitor. Esses efeitos e respostas
não são propriedades nem do texto nem do leitor, mas ocorrem
Deste 1U<Xlo, transdiferença não pode ser entendida como clirni-
naçJ.o de diferença, como fonna de desdiferenciaçào ou síntese,
no entrelugar que se produz durante o processo de leitura. Nos
mas descreve, ao contrário, situações em que construções de anos subsequentes, o interesse dos estudos de literaturd desloca-se
diferença, fundadas sobre lógicas dicotômicas, se tomam tlu- ainda mais nitidamente para uma perspectiva pragmática, no
niames ao suspender tempornriamente a sua validade sem, sentido de contextualizar e hbtoricizar processos de comunicação
110
entanto, serem desconstruídas de forma definitiva.(...) Em outras literária. Noções processuais como disseminação, dialogia,
palavras, tmnsdifenmça se articula de modo suplementar e nào heteroglossia, completadas por belas metãfor.is como rizoma,
substitutivo com relação ao conceico de diferença. 8 nomadismo, creolização, mestiçagem e hibridação, ainda que de
campos semânticos distintos, circulam hoje como uma espécie de
Até que ponto o potencial teórico desse termo permite uma antídoto contra um pensamento fundado sobre sistemas binários
descrição adequada da condição em trânsito do sistema literário excludentes, onde um dos pares conceituais se toma neces...-;aria-
hoje será uma das questões em destaque na reflexão proposta. mente totalizante e o outro invisível.
Nesta situação, em que se mesclam convicções epistemológic<L'>
III e projetos políticos, o acento de sinal positivo é atribuído, de
modo geral, a modelos que enfatizam domínios inclusivos, esferas
intermezzo, espaços in-between, que privilegiam heternrquias e
O acento sobre fenômenos híbridos e estruturas heterotó- heterodoxias, mas que atendem, igualmente, às necessidades de
picas, hoje constante nos debates em diversos territórios disci- construir campos conceituais de altíssima complexidade e mobi-
plinares, revela necessidades e desejos por modelos capazes lidade, capazes de enxergar os modos de experiência \'ivcncial
de tomar compreensíveis características básicas de sociedades nas sociedades contemporâneas a partir de seus próprios mexidos
contemporâneas funcionalmente diferenciadas. Na esfera dos de representação. Estes, nesse caso, podem ser aproximados do
estudos r , .
neranos, essas novas questões, nascidas no contexto de ideário proposto pelo conceito de transdiferença.
mudanças significativas, iniciadas na década de 1960 e intensi- Uma das marcas visíveis no âmbito dos estudos de literatura
fica~ nos anos subsequentes, sinalizaram igualmente transfor- atuais não revela apenas um campo de investigação sem fronteiras
maçoes expressivas.
precisas, quando se trata de alxm.lar o (ainda) chamado fenômeno
Processos 1'd · - · d
ent1tanos e crescente complexidade passaram a literário, mas igualmente urna dispersão da responsabilidade
serternatizados com ma· f ~ · · d -
.
paradigma'r . . . d tor requencia a partlf as transformaçoes autoral, que afeta o fonnato e o estilo dos próprios manuais <la
icas m1oa as com propostas da chamada Estética da teoria da literatura e de sua escrita historiográfica, que, de modo
Re~o, colocando em questão a própria existência de uma cada vez mais acentuado, estão se transfonnando em coleüneas
entidade integrada ,,,,,.,~0 ,,-.;.,J ha · •
'~
A
, ... &a , autonoma, c ' macia ilferatura/ Nessa de ensaios e antologias de múltipla autoria ou de aworía anô-
e~, começam a circular trabalhos teóricos que questionam a nima e temática dispersa. Ao mesmo tempo, o estilo rigoroso
v1sao exclusiva do 'en~ . , .
• 1
1
omeno 11terano como artefato verbal característico da reflexão teórica l't'lk t•s1x1ço para experimentos

30
31
decbrada.mente lúdicos e mais ousados em suas (indisdplinadas)
um mundo de simultaneidades e metamorfoses contínuas-, junto
trJ.Yessias disciplinares.
com a exortação de Lautréamont de que a poesia precisava
Siegfried). &hmidt, por exemplo, inicia um dos seus liHos transformar-se em empreendimento coletivo, deixando de ser
recences sobre questões construti\·istas, empíricas e científicas, Die uma produção restrita a um sujeito autoral único, inaugura, de
Zalmumgdes.Blkk:slA domesticação do olhar), com algu1rns ohser- algum modo, incontáveis projetos perseguidos reiteradamente e
l-:.tçôes pré\ias que situam a sua indagação acerca de conceitos de diversos modos durante o século XX. Entre estes, merece
de realidade no âmbito de argumentos desem·oh·idos em outros destaque o romance experimental Composition !, do escritor francês
conte~.1os disciplinares de orientação construth·ista similar à sua. Marc Saporta, que, em 1962, exibia as novas convicções de modo
oferecendo, ao mesmo tempo, um espaço multidimensional à exemplar e radical, a partir de sua explícita configuração materíal
sua argumentJ.c,.""ào ao procurar correspondências entre literatura e aleatória, transformando em manifestação literária concreta esses
artes plásticas. ro A obsen--a~1o comparativa de propostas distintas projetos utópicos, antes apenas imaginados na forma de manifestos.
de filósofos e dentistas pretende ainda configurar o empre- o experimento lendário, consistindo de 150 folhas soltas sem
endimento numa espécie de formato hipertextual, em função numeração, foi vivenciado na época como "verdadeiro pesadelo
de numerosas sugestões de conexões laterais que parecem lí~1ks bibliotecário". 15 O escritor, ao libertar as páginas do romance
de uma~ digital.11 O próprio Schmidt - teórico da literatura. de sua encadernação, rompia com uma das conven~·ões mais
conhe6do por uma elaboração conceituai sistemática e precisa tradicionais do livro impresso: a sua leitura linear, imposta pdo
do fenômeno literário -, nesse experimento multiwx:aL propo- princípio de sequencialidade das palavras. Um pequeno manual
sitl.Imente sem promessa de unidade e harmonia, se empenha de instruções dirigido aos eventuais usuários convidava-os a
~ aiaçào de uma atmosfera litecirio-en...:;aística perpassada de embaralhar as páginas como o fazem os jogadores com suas
aforismos. poeims, desenhos, gráficos e forogra.fias que não se cartas, ao acaso, antegozando as pequenas tensões e surpresas
somam em uma proposta teórica integrada_u Segundo o autor. na construção de sua própria história mutante, imprevisível, sem
a opçio por padrões de estilo '-ariados, sem síntese - entre eles princípio e fim. Segundo o autor, como a vida.
descom:a..-rual.iz:ição e sampling-, sintoniza-se não apenas com
Naquele momento, o experimento foi simultaneamente ironizado
o tempo e;goudo das superteori:ls uniformes. mas toma-se uma ou celebrado como forma visionária, ao indicar o meio que pem1ite
~.n~ produfü-a condizeme com o preseme, que se apresenta ao romance superar a sua, até então inevitável, linearidade, levando
Súb o signo da indetellllinação e da contingência. B
às últimas consequências a possibilidade real de infinitas combi-
P:lrn ilu._"lrar e lorrur pl:i~-n-eis alguns des..<;e:S argumemos no nações. Na mesma época, começaram a ser questionadas tanto a
qw~ da tran&Jijenmça... um olh:u- ff"lr<k.~\-O ~re proiecos. integridade quanto a estabilidade dos textos impressos no nível
mmilestos e produções liter.írias. sobre a Sll3 problem:HiLido da própria teorização, pelo acento colocado sobre o papel ativo
td.."'lrica inKial e sobre algumas formas de hi.."loriogrifi.J. experi- do leitor no circuito de comunicação do livro, não constrangido,
menu.l em sintonia com DO\JS expea:arn-as e int~~ p:lft'l<=-me necessariamente, por princípios de linearidade, eventualmente
~~u.
idealizados por uma suposta intenção autoral.
-:Jüsróril da liter..uu.ra. aJém de re\-ehr expl1Lit3.rrk=me c~"J5 Hoje, esses e outros experimentos sào lembrados nostalgica-
a.~ cun ex~ ~:i. OÍC'n.'\'..-e inúmeros. ex.perünct1- mente como precursores de novos modos de ler e de escrever.
l(~ que lk--,;e. são lidos reitenduneme como 3Jltecin3..;::io ilis No final da década de 1960, LJmberto Eco publicou o seu ensaio,
~~~~~ odictis ofett.1..id:J.s pela escriu 'irru:J/ em rc-06 hoje clássico, "A poética da obra aberta", em que propôe explicita-
~ ·• l m deb. o di."-'Sk.-n pn:~o utópico d:l cbr3 c:n1 mo\ l- mente um modelo teórk'o para o fenômeno liter:írio. nJo fundado
T?lrt."mo. rt:-J.Üzado no séaJJo XIX Ie lüw_ de ~lllb.rn>é - :ünJ.J. sobre a forma. verbal objetiva e autt>noma da obra, mas sobre a
~7 ~Jo ~.obieto mó,-e)_ plunL .:..'O::r:po~o Jc relação fruitiva entre ela e seus possíveis receptores. O resultado,
poihmori"os e ilu:rur:ados. reforçando a pen.t.'1:>..~º Je uma obra indefinida, plurívoc1, alwrta Sl' okrece ao leitor como

55
fei'<e de possibilidades fruitivas, transformando-o em centro ati- unificadas. Nesse sentido, comparecem, lado a lado, tanto autores
vo de uma rede de relações inesgotáveis, "sem ser determinado da linhagem canonizada e autores de tradiçôes tão divergentes,
por uma necessidade que lhe prescreva os modos definitivos quanto escritoras e escritores índo-amerícanos, afro-americanos,
de organização d'l obra fruida". 16 Eco compara esta situação à sino-americanos, hispano-americanos e judcu-amcricanos. 19 Uma
do ominte de uma composição pó.5-dodecafônica, descrita por situação que obviamente proíbe falar de uma única história da
Pousseurda seguinte maneira: "À medida que os fenômenos nào literatura americana, o que o próprio título exibe com ênfase pela
mais se encontr.tm concatenados uns aos outros segundo certo substituição da "História da literatura americand' por ~História da
detenninismo caUS31, cabe ao ouvince colocar-se voluntariamente literatura dos Estados Unidos'. Por outro lado, os editores home-
no centro de uma rede de relações inexauriveis." 17 nageiam com esse projeto as mudanças fundamentais ocorridas
Como siruar nesse contexto, por exemplo, ahemath·as interes- nas tendências teóricas dos estudos de literatura desde os anos
santes e aceitáveis, de acordo com esses now>S pressupostos. para 1960, motivadas, entre outras, por provcx:açôes alemãs, francesas,
nào desistir da escrita de histórias da literatura, tradicionalmente inglesas e americanas, no campo dos pressupostos teóricos e
configur.i.das em modelos de linearidade temporal, seguindo epistemológicos, que transformaram o ambiente da discussão
uma classificação em épocas ou gerações? Entre diversos expe- acadêmica em cenário aberto e flexível.
rimentos historiográficos em sintonia com essas novas posturns e Portanto, o livro historiográfico é concebido para produzir
pressupostos alterados, a Columbia litera1)' bistory of tbe Cnited efeitos de heterogeneidade e dispersão, ao problematizar as
States pennite ilustrar o nm·o cenário de questões teóricas. Os categorias tradicionais da maioria das histórias de literatura, que,
editores da obra coletiva - entre eles, T. Eliott - diferern.iam o seu ao contrário, proturam a síntese. E é precisamente essa opção que
projeto de propostas anteriores, pela escolha de uma metáforJ diferencia esse e outros experimentos de historiografia literária
arquitetônica emblemática. 18 Essa nm·a história da liter:itura. das marcas tradicionais dos congêneres anteriores, tanto em sua
poc eles entendida como modest(rpostmodem (modescameme proposta temática quanto estrutural. E, desse modo, leitores -
pós-moderna), é construída fonnalmente segundo o mooelo de leigos e profissionais - são estimulados a compor o seu próprio
uma galeria de arte. Yãrias entradas disponfreis garantem o acesso menu individual e a participar de um circuito comunicativo por
a diversos corredores, que p:xlem ser percorridos ou não. Em princípio aberto e interativo. Em suma, trata-se, em última análise,
Cúfltr.L"ile com outras histórias, de caráter monumental e optando da transformação em prática historiográfica das reflexões episte-
por um modo de represemaçào linear e unifonne do passado, o5 mológicas, teóricas e metodológicas que mobilizaram teóricos e
seus princípios esuuturais acentuam d.i,·ersidade, complexidade historiadores da literntura nas últimas década..<; em busca de novos
e contingência, portanto, padrões avessos a perspectivas glotx1ís. quadros explicativos. A explordçào do conceito de transdiferença
homogeneizantes. A partir desses compromissos, os editores certamente poderia oferecer uma alternativa na construção de
assumem as contribuições dos distintos autores em sua forma modelos complexos e mutantes necessários para descrever e
original sem inte1vençào sintetizadora que possa tr.msfomiar a compreender fenômenos híbridos, compósitos.
coktânea de autoria e oompromi.ssos teóricc6 e escéticos diYersos Em todo o caso, os exemplos apontados de uma nova escrita
em narrdti\-a linear e coereme. Ao leitor, pennite-se, dessa forma, historiográfica, além de exibirem de forma inquestionúvel o desejo
.a experiência paradoxal do confronto com elemt:ntos arti· de diminuir o descompasso entre uma teorização complexa e uma
rulados aleatoriamerne numa esuurura sem síntese sem início prática - ainda timidamente presente em discussões atuais nas
e sem fün, condizeru:e, portanto, com hipóleses e diagnósticos esferas da teoria da história e da teoria chi literatura-, pennirem
n:"\..'"'enl.eS. Assim lemos. por exemplo, que hoje inexistem \"i..";(:.es antever algumas das dificuldades que acompanham os questio-
uniformes de uma identidade nacional e, por conseguinte. é namentos teóricos, quando abandonamos o ainda confortável
preciso represeruar a multiplicidade coexi<>teme das persJX"-1.i' as espaço da tecnologia miuiútica imprl·ssa.
da uwest:igaçào COOlemporânea, reprimindo o dest-jo de \"ê-las
IV da projeção de sucessivas viradas - línguística, pictorial, ciher-
nética -, como traduçôes emblemáticas de nossa experiência
Se, nesse contexto, o conceito de tmnsdiferença será capaz contemporânea, com reflexos sobre os nossos sistemas de
de oferecer uma nova estratégia para encaminhar essas questôes pensamento e as nossas formas de construir conhecímento. A
vai depender também do seu poder explicativo e persuasivo. No suposta passagem da modernidade para a pós-modernidade, na
momento, segundo os próprios idealizadores, trata-se apenas de ótica de hoje, parece relativamente suave, comparada à passagem
um concept fn progress (conceito em desenvolvimento) promis- classificável como cybemetic tum (virada cibernética), que está
sor, cujo valor, no entanto, precisa ser testado em confronto com provocando mudanças tão abrangentes e radicais que excedem
investimentos teóricos que, na constniçào identitária, apostam e desafiam as nossas capacidades de entendimemo. As suas
na força do próprio conceito de diferença para explicar "entre- consequências não só tangem às nossas condições cognitivas e
lugares". comunicativas, sociais e individuais, naturais e artificiais, estéti-
No âmbito dessa discussão, parece-me oportuna, de qualquer cas e cotidianas, mas afetam as próprias condições e hábitos de
maneirJ., uma última indagação acerca dos modelos de pen- percepção e observação. 20
samento, percepção, representação e comunicação adequados Em nossa área de estudos de literatura, existem, por enquanto,
para dar \isibilidade a fenômenos literários atuais que escapam poucas reflexões teóricas e investigações empíricas acerca de
~cultura exclusiva do liHo impresso e que, por extensão, sina- fenômenos concretos que emergem como formas especificamente
lizam elos com ~roblemas de nossa experiência atual. Hoje se tecnodigitais. Entre estas, os exemplos mais visíveis correspondem
toma urgente, amda, a elaboração de modelos comunicarivos às novas formas literárias sem possibilidade de tradução para o
alternativos, simultaneamente sensíveis a processos de autor- formato do livro, porque resultam do uso do computador e de sua
refle..tio, sinestesia e multimedialidade, que permitam lidar com rede, tentando explorar esteticamente potencialidades ofertadas
configurações tecnológicas digitais do fenômeno literário que por esses processos midiáticos e seus modos de comunicação. Os
afera pn:furxbmente a sua pn::x:luçào e as opções de sua teorinção papéis e conceitos tradicionais atribuídos ao leitor, ao autor e ao
~Ia :m1Pliaçào de sistemas comunicativos monossensoriais em texto, como componentes desse circuito elo fenômeno literário,
d.irt\-ao a ÍOTI113.S multimidiáticas. precisam ser ajustados quando passamos da estrutura discursiYa
linear da tecnologia impressa - preto no branco - para a forma
A _presença de tecnologias multimidiátiC'J$ digitais prm oca
multimidiática da tecnologia digital.
quesu~namentos acerca do estatuto fluido de textos literários.
que nao só demandam processos percepth·os e imerpretati\·os O hipertexto distingue-se ainda da noção usual de texto pela
Clp:lZeS de . "d .
COfl.'itrurrsenti o das no\·as mterficções mas igualmente sua organização discursiva não linear - ou melhor, multilinear -,
a redefmiç:lo .
de conce·r d l"d d · .'
t os e rea i a es ficcionais e factuais.
libertando-se, portanto, do princípio organizatiYo único - a
Quando o texto liter:írio migra do li\TIJ ·unpresso . para o ciherespaço.
. sequência - e questionando o próprio estatuto formal do texto
alterando-se
. .. _. i o comumcatt\ o e sua produç-Jo, medi;H;ào.·
o drcu"t · ·- d fixo e uniforme estruturado segundo princípios de início, meio e
lei:rura e an:ili..:e cntJca PnlProPm ,..!~-"' . .fi . - fim baseados em conceitos de linearidade e sequencialidade. Em
-•-· 1 . ' ---·-·b~ ... u=u1os sigm lGatlH)S par.i es1udos
us: uter:uura baseados na rela .-
.. . • . b.1ot1ca
çao sun - . entre ceorizaçào e configurações hipertextuais, toma-se difícil ou impossíYel definir
expenenoa prática. essas marcas, porque inexistem paLwras iniciais ou tem1inais
em sentido tradicional, e qualquer texto pode transfonnar-se em
p'.\:as. últimas duas décaA-- ~.
d.1scut1ram-se
· muito, e de modo
multiplicidades. Hipertextos não definem inícios e fins e tam-
po. ._emte0, as :--i ...
con...;pouénc1·-.. s da m·c1· d' · 1
'º dL"'Cllf.50 acadenu·co, pre\-a Jeceram
tr:ln.sforma • ~ ist - · .
,
i ia

. '
1g1ta para a scx:ieÜ:.tlk.
antes reflexôes "')!)r" as
' · · ·-" " ·
pouco outras fronteiras. Inseridos numa rede de outros textos,
eles libertam a literatura da ideia da obr.i como objeto absoluto
,-1__ _ ÇOt: ep · emolog1cas ger..i1s promm·id:is p\:lo J.dn.·mo
u.t S(X'J\.'\b.de infomti . d' · .. 1 e fechado. Nesta ótica, o hipertexto traduz, de modo radical. a
tK."a 1gJ!_j,j_, ger.ilmente expfü:icadas a p:inir
materialidade da noção de obra aberta, que fund:l a possibilidade
de experimentação ilimitada, ensaiada timidamente, na visào dt"
hoje, pelos exemplos antes referidos. Contudo, ainda que as questões concdtuais estejam longe de
terem encontrado uma solução aceitável, podemos basear uma
A linguagem eletrônica está alterando o nosso relacionamento classificação provisória a partir de três características simultanea-
com o texto ao tomá-lo móvel e efêmero, distanciando-o da mente presentes: interatividade, intermedialídade e encenação.
fom1a contemplativa desenvolvida na cultura do livro. A internet Enquanto a primeira sublinha a participação do receplor na
oferece uma moldura processual e comunicath·a distinta, com construção da obra, incluindo projetos de escrita que convidam
ressonâncias significativas no campo da literatura.. Entre as ten- os leitores à coautoria, a segunda - a intermedíalídade- sinaliza
dên~~ e utopias da arte e da cultura midiáticas atuais, dest:icam-se, uma relação conceituai integrativa dos meios expressivos tradi-
~peaalme~te, ron;ia~ de intemi__edialidade na literatura digital cionais da linguagem, da imagem e da música, valorizando a sua
vmculadas a emergenaa de um genero provisoriamente chamado singela fusão conceituai, em lugar da mera combinação baseada
de inteeficções. O termo usado por Roberto Simanowski, no liHn na contiguidade. A encenação, por último, investe enfaticamente
Inteifictions: vom Scbreiben im A'etz (/nteificções: da escrita na no gesto performativo - seja em relação à programação incerna
rede) pretende enfatizar nesse tipo de literatura não apenas a da obra, seja em relação à dependência do receptor - e resulta
sua produçà~ e ~pçào interativa, já presentes em múltiplas no envolvimento de palavras e imagens em processos de animação,
fo~ expenmentatS no próprio livro impresso e nos projetos por exemplo, que transformam o caráter textual em evento
teoncos em tomo do livro infinito, por exemplo, mas dar relevo dinâmico. Em todos esses casos, desponta como aceitável o uso
à condição _intermidiática da fusão da escrita, da imagem e do do instrumental teórico contido no termo transdíferença.
som, exclusivamente possível na forma digital.2 1
Mas como localizar, nessa proposta cl155ificatória, um lugar
Nesse sentido, escrever na rede não se refere à adapta<,'ão do privilegiado para a palavra e a escrita, para confortavelmente
Proces&J p~utivo usual a uma nm·a mídia da representação, assumirmos que ainda estamos lidando com algo que aceitamos
mas .c~~ctenza, antes, um procedimento que se funda nas como literatura e que, em última análise, demandaria a presença
possibilidade: estéticas específicas da mídia digital, acentuando, de fronteiras? Est.a é uma pergunta que levanta a delicada questão
porta.nto, a diferença, e a diferenciação explícita entre interior/ se esse novo fenômeno de fato poderia ocupar legitimamente um
en~, entre texto/comex"to. Essa literatura não terá o lino como assento no chamado sistema literário, ou se deveríamos indicar-lhe
estagio final e consiste de textos impossíveis de serem lidos da um entreterreno alternativo no sistema classificatório das artes,

=ro,
~para a direita e do início ao fim, porque o leitor precisa,
configurá-los e, por vezes, até escrevê-los. Estamos
com wna literatura produzida com palavras que se mm·em,
mesmo sendo um assentamento provisório, sujeito a polêmicas
defesas e objeções como é a regra na república das letras.
Mais uma vez, lidamos com configurações híbridas que, nos
~e ~çam, que modificam suas cores e seus elementos e se termos propostos por Bhabha, transitam em espaços além,
~ ª unagens e sons, parecendo esperar por sua emrnda progra- exigindo formas de teorização atentas a esses movimentos tra.nsi-
ma er:i cena, como se fossem atores de letras. Essa literarura cíonais marcados pela reversibilidade. O entendimento desse
perfonnauca que se asse lha
• me a um evento em pennanente processo circular, contrariando os nossos modelos opositivos
estado de emergência e na·o a uma o b ra aca bada dL'itingum<lo-se
. . .
por seu catá h· · ' binários tradicionais, parece-me especialmente urgente quando
ter 1penextual, mterativo e multimidiático levanta entramos no universo do ciberespaço, a partir de instrumentos
uma questão bás" - • '
_ de . ica. ate que pomo se trata ainda de lirer-..uura e de conhecimento que pretendem comprovar a sua eficácia e
nao unagens textua·15 ·
~1;7"',...;;,.,. do ou cinema escrito, ou simplesmente <la plausibilidade numa orientação teórica que leva em consider.içào
•Cd..1---.......... sonh0 · ·d
nrn..·en·~ . d revivi o da obra de arte total, dessa ,·ez de o circuito empírico de sua produção, me<liaçào, leitura e análise
.... '-'' ienaa igital?
científica. 22
Por enquamo faltam f1 õe -.
. ' re ex s teoncas que acompanhem Desafios teóricos e consequências práticas contra pano de
a energia das prod - . .
uçoes expenmemais da literatura digital. fundo dos acelerados debates tt•óricos, nos últimos anos, acerca

39
cb.s 00\'35 condições midiátíc.is digílaís enfatizam a nt'<.'essi<lade
teórico da literatura diante dessa literatura digital e os riscos de
de uma leorizaç.'âo especialmeme sensível à sua prática material.
tomar invisível o objeto sob investigação por um olhar míope.
:sesse contexto, a pesquisa de ofertas midiáticas reforça a idda
A sua proposta sugere uma teoria de hipertextos e hipermídía
de que elas represemam simultaneamente produtos e condíçóes
em constante elaboração, verificação e modificação, a partir da
dos nos.so.s processos culturais. Em outras palavras, mídia nào
análise empírica de experimentos concretos que hoje circulam
se enrende apenas em sua qualidade de forma midi.ática técnica,
na rede digital da internet. Esse projeto teórico em movimento,
mas, do ponto de vista histórico e si.<;temático. como processo em
intitulado pela autora como Teoria e Prátíca de urna Estétíca
que percepção, sensaçào e pensamento enconuam suas car.Kle·
Cooperativa, acentua a necessidade de se elaborarem métodos
risticas representações contiguas. Análises midiáticas científlC'.is
híbridos, flexíveis, em constante diálogo com a empiria, o que
precisam ser refletidas no campo cultura) ou estético ames de
permite tematizar e discutir os procedimentos da ,investigaçà.o
mais nada, porque as novas mídias de elevado teor técnico
científica com relação às formas alteradas de uma literatura cuia
obrigam a uma série de reformulações mídia-científJCaS no campo
casa deixou de ser o livro impresso aprisionado entre duas capas.
das ciências humanas. Os processos do circuito comunic-.ati\·o das Nesse limiar entre teoria e prática, emergem momentos de tensão
fOnIJ3S eletrônicas, teJecomunicativas, da produção, distribuição
que acompanham a construção de uma moldura heurística para
e recepção cultural representam uma ruptura histórica parJ
as análises concretas da literatura digital. Segundo a autora, a
todas as sociedades e alteram profundamente tanto a relação
proposta precisa ser entendida a partir da ênfase sobre o conceito
dos in<füiduos com as dimensões de espaço e tempo. com
de oscilação, que permite compreender as novas formas de
processos sociais e comunicativos, quanto influenciam a relação
expressão de hipertextos literários como movimentos oscilantes
em:re espaços regionais e globais, entre o presente e a história entre diversos sistemas semióticos. Nessa ótica, enfraquece-se,
das sociedades, além de toda a relação entre' sL'i.emas cu1turnis igualmente, o potencial explicativo de teorias fundadas sobre
mareriais e imateriais.
a articulação entre figura e fundo apropriadas da psicologia ela
As práticas culturais e estéticas atuais encontram-se em gestalt, que, embora tematizando a instabilídade da percepção
processos de \-ertiginosa e ace]erada transformação e hibridaç:ào, visual na construção de imagens a partir do movimento ocular do
~~ _concomiranrememe, os domínios disciplinares enfremam switch, não abrangem as transformações do devir contínuo, que
ru...+.irukiades no USO de paradigmas cientificos comprometidos caracterizam as experiências com imagens moventes animadas
mm molduras dicotômicas que fecham as fronreir.ls da diferença. pelo computador. Estas demandam uma teorização que leva em
Ao ronfi.rmar identidades herdadas e está\-eis, eles se confromam conta novos movimentos de expansão baseados na dinamici-
·~ ~ cn-iliz.açào tecnocientifica, caracterizada pela plurJlí- dade constante. 23 O movimento de oscilação permite fundar os
Lii.ç~o ae culturas mundiais que demandam a fonruç.ào de non>s novos fenômenos literários eletrônicos no modelo dinâmico do
~llp0Sto5 pani o seu entendimento. . movimento, porque ele corresponde ao processo infinito entre
_ Todas essas quesrões acerca das no\-as consrela(,.Ues midiáLíC"ÃS diversos níveis, que cria algo novo a partir dos jogos ccx)perativos
!""~~das- que problematizamos em di\·ersos -experimentos dos sistemas sociais, midiáticos e técnicos articulados pelo
P:---~ e na daboracão de ~os r_-~ _ 1-,.~ - __ ,_ - computador. Os cenários construí<los nunca adquirem um
- ..... .__.,.._. ...'""'"-'-"' , •PJJC em an::U1"içao
n.~ ~~das ciências humanas e sociai'i. fornmbm estágio definitivo e acaba<lo em função das múltiplas interaçôes
~a seguinte pergunta: como encontrar. ent3o. in.'fru·
~ ">n->I:~=---
em curso e dos constantes movimentos de transformação. Por
~ -~. """'>.4.Ul..l\.US capazes de descTe\-er essas configur.i.ções isso a ênfase na oscilação.
~ reo:mes, Jnaocadas pelo pref1xo tran.s. de modo nu is A compreensão de movimentos e variações vinculados a
a..:lã:f:.ado à sua crescente complexidade e mobil.ídade? processos de temporalizaçào suscita a elabora1;:cio de conceitos
Olnmderi..-= - · . capazes de descTever não objetos, mas eoentos, Nes.-;e âmbito, enfra-
.. .........111.'llane Hei.bach, lileraturim l11Jeme1tLl1er:uur.i.
na miema: ), ilustra de modo exemplar as difi.rukhdes de um quecem-se conceitos que traduzem a redu.ç:lo da complexidade

41
por meio da busca de elemento...:; similares de fácil generalização
acidentais. Trata-se de situações inaugurais que modificam ainda
à custa da heterogeneidade, esmagada por uma dassifica~·ào que
os relacionamentos convencionais entre autor e leitor. O hipertexto
impõe unifonnidade.
faculta ao leitor ativo a transformação permanente de textos, o
Heibach refere-se, ainda, aos conceitos de trnnsversalidade e que, de certo modo, enfraquece a importância da própria instância
tmnsfugacidade para dar relevo à fusão radical entre literatu!"a autoral. Mas não só isso. Teorias da literatura tradicionais nos
e tecnologia computacional recente na busca de novas formas induziram a supor a existência de sentidos suhja<.:cntes aos
estéticas. 24 Ela considera indispensável investigar a alteraçào das próprios textos, vinculados à ideia de uma identidade autoral
condições têcnicas para a transformação das formas literárias integrada movida por atos intencionais. A quantidade ilimitada
com elas articuladas, mas enfatiza igualmente a necessidade de de textos conectáveis em sistemas hípertextuais pressupõe, no
se entender e explicitar as novas propriedades par& a compre- entanto, uma existência fundante de textos a partir de incontáveis
ensão dos estudos de literatura em uma perspectiva teórica. textos referenciais (não apenas verbais) e, assim, todo texto novo
Transversalidade, tenno criado pelo filósofo Wolfgang Welsch, já nasce como tecido de textualidades múltiplas, e toda instância
corresponde, em sua leitura, à capacidade de se aceitar a diferença autoral que altera e acrescenta elementos, por seu lado, emerge na
do outro apesar da orientação dos discursos sobre o dissenso. qualidade de compositora de textos multivocais. E é nesse sentido
preservando-se, portanto, a capacidade comunicativa. 2 ~ Em que podemos falar numa conversão do autor em utexto~.u,
oui:ras palavras, trata-se de se considerarem aceitáveis, do ponto Embora problemas desse tipo tivessem feito parte de discussões
de vista filosófico, pos.5íveis alianças entre sistemas epistemológicoii intensas a partir da introdução de conceitos como intertextua-
e\·entualmente distintos. A disposição de experimentar novas liclade, por exemplo, eles ficaram restritos a uma intervenção ativa
formas de cruzamento de códigos diversos pode ser transferida, meramente mental por parte de leitores que, de alguma forma,
sem restrições, para o gênero literário interficcional, especial- ainda podiam controlar o diálogo em função do acesso a um
mente interessado na exploração de potenciais hipertextuais que repertório variável, mas pessoal. As questões atuais situam-se em
estimulam tanto a hibridação entre os mais variados documentos outro nível e, penso eu, só podem ser abordadas adequadamente
midiáticos quanto travessias de fronteira que dizem respeito aos no contexto de uma permanente reconstrução de repertórios
próprios conteúdos_ Transfugacidade e transversalidade tentam teóricos em contato com esferas empíricas concretas, porque o
descrever, assim, o fenômeno da literatura digital em sua veloci- novo cirrnito demanda a materialização dos elementos envolvidos.
dade e transitoriedade, acentuando, no caso, o estilo perfonnático A presença virtual de outros textos e autores no ambiente hiper-
vincu1ado à incessante expansão e transformação, criando um textual pressupõe, assim, de fato, a conversão do ato de escrever
tecido mu1tilinear, desierarquizado, acidental. em ação cooperativa entre autor e leitor. Em todo o caso, na rede
Não é de se estranhar, nessa situação, que sejam frequente- virtual de conexões eletrônicas, textos não oferecem existência
mente os próprios escritores e poetas a teorizarem sobre o novo palpável e estável, mas esta se dá numa permanente combinaçào
gênero interficcional na cena eletrônica da literatura, assumindo, relacional concreta, quando eles sào produzidos e/ou recebidos
na prática, o duplo papel que lhes reserva uma estética coope- e articulados por indivíduos empíricos OC"dsionais. f\;esse contexi:o,
rati\4 baseada em projetos que ensaiam novas configuraçôes o questíonamento e o desconforto diante da noçào de uma
híbridas. . subjetividade integrada, atribuídos comumente ao pensamento
As conexões eletrônicas também alteram profundamerne as moderno e, especialmente, ao pós-moderno, responsabilizados
experiências estéticas de um texto ao modificarem as relações assim pela ruína de um dos alicerces da civilização ocidental,
temporais e espaciais com outros textos. Nesta nova condição, encontram uma espécie de apoio na condição do hipertexto, que
radicaliza a nossa consciência de que se trata de urna construçào
todos os textos passam a ter caráter mutante, e o leitor, desporado
de regras flv,.,.. . la 1· . convencional histórica, porque em seu espaço nào faz sentido
.....,..,, crrcu 1vrememe e desenha caminhos possíveis,
o uso explícito de conct"'itos de autoría. Nele, circulam usuários
adaptáveis a vontades e a necessidades próprias e, frequentemente,

42
comercial, dos próprios livros eletrónicos e dos seus imprevisíveis
:w JAHRAUS, 2000.
efeitos sobre o nostálgico charme do livro impresso.
21 SIMANOWSKI, 2002.
Creio que, nesses momentos de intransparência e imletermi-
22 OLINTO, 2003, p. 84.
naçào, sejam bem-vindos projetos teóricos que se confrontem
com o desafio paradoxal de assumir o seu papel de construir 23 HEIBACH, 2000, p. 236.
modelos de identidade - funcionando, assim, como redutores de 2• HEIBACH, 2003, p. 9.
complexid'lde -, sem fechar, todavia, as portas às complexidades, 2~ WEL5CH, 1997.
ao propor a construção de identidades via diferença.
Ui GABRIEL, 1997, p. 74.
Em ~uma, situ~r a relação identidade/diferença sob o .signo da
21 WELSCH; VAmMO, 1998, p. 7.
transdiferença, dialogando com modelos teóricos, com acento
sobre proces.')()S de hibridação em configurações identitárias, 211 SCHMIDT, 1998, p. 173.
parece-me uma opção promissora nessa nova direção.

REFERÊNCIAS
NOTAS
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Por ocasião da posse de François Mítterrand como presidente
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LOPES, L P .; CABRAL, L. B. (Org.). Identidade: recortes multi e inter- da França, em 1981, recebi em Paris dois artigos publicados em
disciplinares. Campinas: Mercado das Letr.is, 2002. jornais de São Paulo, um de Paulo Francis e outro de Lúcio Rangel.
A vitória tardia do socialismo no país era motivo de júbilo e espe-
OUNTO, H. K. Llterawra/cultura/ficções reais. ln: OLINTO, H. K.;
rança por parte da população, num início de década ainda sujeita
SCH0LLHAMMER, K. E. (Org.). Literatt.tra e cultura. Rio de Janeiro:
Loyola/ PUC-Rio, 2003. a transformações de toda ordem. Os dois artigos se distinguiam
quanto à abordagem do fato, insistindo Francis na revelação de
SAPORTA, M. Composition n. l. Paris: Seuil, 1962. segredos amorosos do presidente, ao contrário de Rangel, pouco
SCHMIDT, S.]. Die Zãhmuug des Blicks. Frankfurt: Suhrkamp, 1998. interessado nesse assunto. Paulo Francis, jornalista cujo estilo se
pautava pelo modelo da imprensa americana, banalizava a vitória
SI~fANOWSKI, R. Inteifictions: vom Schreiben im Netz. Frankfurt: de Mitterand e despolitizava o evento, ao mencionar a existência
Suhrkarnp, 2002.
da amante e interferir na vida privada do presidente. A ênfase
:~H, W. UnserefJOStmoderneModeme. Weinheim: Acta Humaniorn, na transparência dos bastidores da vida do homem público se
chocava com os princípios da imprensa francesa, dotada sempre
de discrição e respeito frente à privacidade de cada um. A minha
WELSCH, W.; VATI1MO, G. ltfedien - Welten - Wirklichkeiten Mu·· nch"n ·
Fink, 1998. . ~ . indignação se explicava por certa rejeição à tendência da mídia
em desestabilizar personalidades, valendo-se de detalhes de vida
pessoal pela utilização de uma ética de fachada.
A separação entre a esfera privada e a pública, responsável
pela legitimação do exercício da democracia, é um dos lemas
da política moderna, instauradora dos padrões republicanos e
pautada por práticas de representação e de panicipaçào. Essa
separação inibia julgamentos particularizados sobre a conduta
dos governantes, uma vez que cabia à instituição zelar pela sua
própria moralidade pública. A mídia, ao humanizar a imagem
do presidente, o considera como homem comum e o destitui de
sua função representativa. Esse gesto de naturdlizaçào da figurn
pública, aproximando-a do ambiente de família, se explica pda

48
atr.i.çào voyeurista da mídia no seu papel de espectadora do predomine sobre a privada, em que se mesclam semimcntos os
jogo político. mais variados. O mercado de notícias sen<;acíonalistas no mundo
Nos últimos anos, os desdobramentos desse processo espe- globalizado opera, portanto, a díluiçã~> gradativa das esferas
tacular da sociedade contempon'inea receberam provas de sua pública e privada, graças ao enfraquecimento dos valores que
efidcia. Um dos pedidos de Mirter.md ao morrer, em 1996, foi o definiriam os seus componentes.
de ter nos seus funer.lis a presença da filha e da amante ao lado A sociedade do espetáculo, polêmico livro de Guy Dehord,
da família oficial. A declaração da doença, escondida do público lançado em 1967 na França, consistiria num manifesto convertido
durante sua gestão presidencial, de 1981 a 1995, coincidiu com em profecia para o tempo presente. Denuncia o império capita-
o reconhecimento público da existência de uma relaçào exrra- lista da mercadoria, a vida como representação e a afirmação da
conjugal. Mas os tempos hoje são outros. Nos Estados Unidos, realidade sob a forma de imagens: "O espetáculo não é um con-
o escândalo do governo Clinton, no final dos anos de 1990, irá junto de imagens, mas uma relação social entre pessoas, mediada
legitim.1.r o poder da mídia - e da internet - como veículos que por imagens." 1 Intolerante diante da sociedade de comumo, o
começam a ocupar o lugar da esfera pública. A invasão da priva- autor condena ainda a ação destruidora do tempo espetacular,
cidade denuncia a fragilidade do representante do poder público que se revela como devorador de imagens e do próprio tempo.
diante de ameaças que ferem a moral e os bons costumes da Na condição de consumidor de ilusões, o sujeito se priva de sua
sociedade. Denunciado por assédio sexual pela estagiária Monica liberdade e se entrega à fruição de uma cultura que se banaliza
Lewinsky, o presidente por pouco não sofre o impeachment, e se proletariza. O suicídio de Debord, em 1994, é significativo
ao desrespeitar os valores moralistas da sociedade americana. O para se avaliar o grau ele intransigência manifestado contra essa
escândalo político toma-se ainda mais at:r-aente quando se tem sociedade, que a cada dia se mostrava de modo artificial, desu-
como pivô a figura feminina, motivadora de reações preconcei- mano e ilusório. Ao cometer suicídio, converte-se ironicamente
tuosas por parte da opinião pública. em autor de uma cena espetacular, na qual irá expor o que de
Em 1997, a morte de Lady Di e do namorado em Paris, mais íntimo e solitário guarda o ser humano - o momento da
exemplo trágico da intromissão da imprensa na vida privada morte. Esvaziado pelo excesso de representação e envolto na
das celebridades, constitui um dos mais emblemáticos casos dimensão obscena das imagens, toma-se vítima da sociedade
envolvendo a relação conflituosa entre a criação e a destruição que tanto criticou.
de mitos na atualidade. Com o acidente, inicia-se na imprensa O legado de Debord tem rendido bom número de adeptos
o debate em tomo da superexposiçào da imagem pela mídia, entre os que respondem por um saber iluminista e uma posição
da falta de privacidade e do comportamento esquizofrênico elitista, norteados pela clássica divisão entre público/privado,
d~ meios de comunicação de massa. Lady Oi, na condição de racionalidade/subjetividade, coletivo/particular. Dentre os argu-
pnncesa pop, atingiu uma popularidade até então inexistente na mentos favoráveis ao corte com esse raciocínio binário estão a
Coroa. inglesa, por ter, entre outros fatores, seguido o modelo da contínua flexibilização das condutas, o enfo1quecimento do f_<;L'KÍo
plebeia que se casa com o príncipe. Conhecida como "Rainha moderno, assim como as marcantes transformações cuhur.lis e
dos corações" ou uA rainha do povo", seu ritual funerário será políticas dos últimos 20 anos. A flexibilização dos pares 01x)sitivos
pako de uma das grandes explosões de emoção popular, não só não implica sua extinç.,'âo, mas a relmivizaçào de princípios rigidos
pela perda causada por uma morte trágica, mas pelo simbolismo responsáveis pela afirmação da autonomia de cada polo. A
que_ representa na épxa pós-moderna. A distância entre o povo e mudança de eixo interpretativo se deve à intenção de contextua-
ª pnncesa, separação que aumentava o seu poder e sedução, se lizar posições teóricas modernas, pautadas pela dicotomia entre
ck-<sfaz _d~rante o rito funerário pela conjunção imaginária entre as esferns pública e privada, com vistas a abrir o debate para a
a multidão e o corpo em exposição. A estrutura ambígua do contemporaneidade. Nesses termos, a condenação da sociedade
espetáculo permite, por momentos, que a manifestação pública do espetáculo por Debord não dever;i ser avaliada, no presente,

50
51

~ -~----·-··-·-·----·----
com base em critérios da época, em virtude da natureza híbrida
os exemplos do dL<;CUrso autobiográfico e de rcflexôes teóricas
das diversas instâncias formadoras das referidas esferas.
sobre a sociedade contemporânea serão retirados de alguns
artigos e livros recentemente publicados na França, com o obje-
tivo de dialogar com dístintas posiç:ôes e melhor definir os novos
AUTOBIOGRAFIAS EM REDE espaços comunicativos. Na sociedade frances~ ~atual, pcr~íste o
mesmo mal-estar diante do excesso de expos1çao de escntores,
É em tomo da pnxlução de novas subjetividades que a discussão celebridades ou pessoas comuns no meío literário, soda! e
sobre a sociedade do espetáculo consegue avançar, por se midiático. Se a febre biográfica atingiu vários setores da vida
apresentar de modo positivo. O gênero autobiográfico, em larga cultural, são evidentes as causas de sua expansão pelos díscursos
expansão nas diversas áreas do conhecimento, se impõe de modo das minorias, redefinidores de ídentídades e de lugares políticos.
exemplar parJ. se refletir sobre as subjetividades contemporâneas As reivindicações não se limitavam a substituir o emprego de
e a relação que aí se estabelece entre os domínios do público e pronomes pessoais, a terceira pela pri.meira pessoa, mas em
do privado. No entender da socióloga argentina Leonor Arfuch, deslocar o papel dos mediadores culturais, porta-vozes <lo outro.
em El espacio biogrqfico, a configuração atual das noções de o relato autobiográfico, nas suas distintas atualizaçôes, ressurge
espaço público e privado se apresentam sem limites rígidos ou como revelador de individualidades criadoras, de senhas que
incumbências especificas, por se submeterem a um constante ultrapassam interesses locais para se integrar às redes transnacionais
processo de experimentação. Ao discorrer sobre as subjetividades de comunicação. Como exemplo dessa prática, verifica-se a
comemp::irâneas a partir de relatos autobiográficos, refuta a posição passagem da escrita do diário íntimo entre adolescentes para
radical e pessimista quanto à invasão de uma esfera por outra,
0 exercício dos blogs e de webcams na tela do computador,
ponderando sobre o trânsito frequente entre elas. As diversas
comprovando-se a retomada do discurso autobiográfico sob
modalidades de atualização das narrativas autobiográficas, longe
forma coletiva.
de se constituírem como exacerbação de individualidades ou
narcisismo excessivo, exercitam o direito à expressão de vozes "Le grand déballage" (A grande exposição) é o título da
anteriormente excluídas dos discursos hegemônicos. reportagem publicada na revista francesa Le Nouvel Obseroateur,
em abril de 2004, versando sobre a confissão deliberada dos
O mesmo se verifica com o espaço da mídia, pois, antes de ser
segredos íntimos como assunto preferido da época. No entender
alvo de crítica, deverá passar por outras instâncias de definição
dos autores da reportagem, o hábito de compartilhar segredos
e avaliação, de revisão de seus critérios estéticos e éticos como
estaria se tomando um dos últimos projetos coletivos da socie-
decorrência do enfraquecimento da oposiçao entre as esferas
privada e pública: dade contemporânea, presente na produção de liVTos de memórias,
autobiografias, autoficções e nos programas de televisão.
C.) poderíamos dizer que ambos os espaços - se conservamos Entrevistas feitas com escritores, celebridades e animadores de
uma distinção operativa - se entrelaçam incessantemente numa debates televisivos demonstram ser a exposição da vida privada
e outra direção: não só o íntimo/privado deixaria seu recinto um meio de afirmação do sujeito pelo olhar do outro. A confissão
invadindo outros territórios, mas também o público - em seu~ tomada pública atua ambiguamente, tanto como gesto possível de
velhos e novos senu'dos, o poJ'aico,· o socia · I, o de uso, interesse e realização pessoal, quanto como forma de recalque de situações
bem comum, etc, - tampouco alcançará o estatuto da vL'>ibilidade de extrema solidão. Busca-se no outro a identificação que
todo o tempo pel
, o contrano,
- ·
como se afirmou reiteradamente lhe dá direito de pertencer a um grupo ou a uma tribo. :\Hchel
poderá recuar, de modo insondável, sob a mesma luz da sobre~ Maffesoli, um dos teóricos citados, reitera a tendência atual do
-exposiçã E d. :- · ·
o. sta mam1ca - que às vezes se transforma numa
procedimento autobiográfico diferente do simples narcisismo, ao
dialétka-con'>pira contra todo conteúdo "próprio" e designado.
As questões-.e seus fr"""'"tos ~ · 'bli se definir como narcisismo de gnipo:
~...... - 5erd0, assim, pu cos ou privados,
segundoª"' c1rcun'>tâ.ncias e os modos de sua construção.i
52
Nós

nos colocamos
.
em relação, procurnndo tocar 0 ~·:
outr<l ' ),,10
ext~to mais ~r mim mesmo, mas por e para. 0 olhar do outro.
a autora, a realidade está sempre colocada em xeque diante
A "ida em sociedade se organizava, nesses três últimos sécul . da proliferação do aparato de imagens produtoras de simulações,
C'")b ' f, 1· ' O.\ do virtual ou da criação de clones, invadindo o vocabulário coti-
fi'"'" a onna po mm. Desde os anos 1960• nrns enc·ontr~mos 1 no
n~ ~ en1 burguesa. A.5 categorias sddo-prnflssionais n:to quert·rn diano de termos como tempo real, telerrealidade, reality shows.
n~JS dizer gt:mde C:)isa. Dobm-se sobre o drnnésti<.:o, e a obsce- o destino reservado ao mundo das imagens, após ter inserido
nidade contempora~ea, é a telerrealidade, as testemunhas, a no cotidiano das pessoas altas doses de vivência virtual, é o
autofkçào, a necessidade de identificaç:,ão tribal Di't<) d de tentar proceder à reversão da realidade, encenando a perda e
. - · e outra
manetrn, o comunitarismo.J se projetando subjetivamente pelo olhar do outro. A saída desse
universo fechado da incomunicabílídade e da solidão se dá por
. ~ passage~ ~~ a~tude narcisista em direção à identificação procedimentos que guardam analogias com a arte do espetáculo:
tnbal _e ~mu~na~a unplica mudanças quanto à abordagem de existir é ser percebido. A fonnaçâo desse diário íntimo coletivo na
~uestoes identttánas, considerando-se que a televisão e a internet internet se caracteriza pela vivência simultânea do tempo, por
sao, no momento os meios de pro<l ~ d ações interativas que atualizam o tempo real. Dessa experiência,
sub· . . ' uçao e novas e heterogêneas
de Jetividades._.O. avanço
. da sociedade do espetá'c
, u1o e d a cu
. lturJ o que se ressalta como fator positivo para o conhecimento de
d rn;s...~ ~ibdi~~u o reconhecimento de diferentes modelos outras realidades é a valorização do banal, da vida comum,
e va onzaçao es~ell.ca, da inserção do cotidiano como sendo o tornada reality show pela sua associação à estética pobre da arte
~u~noÂ~undo mtimo das pessoas comuns. Trata-se ele expe- contemporânea. O fato de os cibercamistas colocarem câmeras
nenc1as Ud "dad
<li comum e multículturdl que se forma atualmente em diferentes lugares dos apartamentos serve para captar a imagem
ance das telas do computador ou da TV O e ~ . de não lugares considerados banais, repetitivos e sem interesse.
_e - . · 1enomeno kitsch
:ressao perfe1~a- para a cultura contemporânea - se impõe Assim, "os ritos diários são acompanhados de minigestos:
pe falta de autenttc1dade cios objetos e pela d"l . - d 1 tomar um sorvete, acender uma lâmpada, se olhar no espelho
j centraliza.d . , 1 u1çao os va ores
,,! - os num estilo unico, universal e hegemônico. do banheiro". s
~ideias, já desenvolvidas por G. Vattimo em s b Os relatos de ficção autobiográfica - batizados, em 1977, por
1
especialmente em A sociedade tr. ua o ra,
estatuto pi I d . ansparente, correspondem ao Serge Doubrovsky de autoficções- têm se proliferado na França
ura o conceito de 1·dad desde Simone de Beauvoir, com Les mandarins, na década de
hoje: rea 1 e com o qual lidamos
1950, a Julia Kristeva, nos anos de 1980, com Les samaurafs,
romances bem-comportados sobre períodos distintos da vida
Se cemos uma ideia da realidad
exJSt· • • d e, esta, na nossa condição de intelectual parisiense. Mas a geração formada por filhos de
enaa lar omcx:lema n - de
r>h;~ti , . ' ao po ser entendida como o dado escritores e celebridades irá escandalizar, nas décadas seguintes,
~...,._ vo que esta abal.Xo e para ai - da .
dadas l . ' em s unagens que nos são os frequentadores de Saint-Gennain-de-Pres, pela ousadia com
pe os media. Como e ond od -
realidade " "'? . e p enamos alcançar uma tal que narram os relacionamentos familiares e amorosos. O livro de
em si · Realidade p - , .
cruzamento da" . -' ara nos, e mais o resultado do estreia de Justine Lévy - filha do filósofo Bernard Henri-Lévy -,
ilnagens . , contammaçao" (no sentido latino) das múltiplas
• interpretações reconstru - Le rendez-vous, assim como o mais recente, Rien de grave, se
entre si ou ,...,;,,, e , ' çoes que, em concorrência transformaram em best-sellers, pela ousadia em dramatizar, de
' --,.. orno ior em qual d
media distribuem! ' quer coor enaçào central, os forma crua, cenas privadas envolvendo personagens entre a
realidade e a ficção. Alguns intelectuais, dentre eles o apresentador
A publicação do pequeno . , . _
1 'exf>osition de soí- d . e ~impat1co livro de Anne Cauquelin, de um programa cultural de televisão, Bernard Pivot, defendem a
· u ;ourna/ intime aux bc deliberada intenção autoral de nada omitir sobre suas experiências
dos conceitos de subJ.et' "dade we ams, faz a revi'>ào
ivi e de realid d · pessoais, considerando que "se tr.ita de um fenômeno que sempre
de comunicação atual, efetuada ·l ª
e a parttr da prática existiu, o que há hoje é talvez menos hipocrisia~ .6 Mtwidos
pe os blogse webcams. Segundo
pela atração sensacionalista imposta pelo mercado, os relatos
54
autobiográficos - escritos ou emitidos ao vivo pela televisão - se denúncia da noção de cultura que se confunde com o consumo,
moldam por critérios de autenticidade e verdade, artificio retórico gerando a desestabilização e o barat~a~ento ~~s valores. A obra
muito oomum a esses discursos, através dos quais a exibição de de Lipovet-;ky, embora forneça contnhu1ção valida pa~a ~avanço
si ania como senha para a identificação pessoal. das questões contemporâneas, revela-se, coAntu.do, limitada e~m
vários pontos de sua exposição. Mas a ausencia de conotaçao
s:
apocalíptica consegue sustentar um pensamento que interessa
ESTÉTICAS DO EFÊMERO pela busca de justificativas possíveis para o entendimento do
momento presente.
A publicaç-ào de um bom número de ensaios sobre cultura Em Pourquoi vivons-nous?, Marc Augé amplia o conceito
contemporânea tem suscitado discussões não só no meio inte- de não lugar elaborado em Não lugares: introdução a uma
lectual francês como em outras partes do mundo. Dentre os mais antropologia da supermodernidade. Ao defini-lo como espaço
recentes, vale mencionar o do etnólogo Marc Augé, intitulado de circulação (aeroportos, supermercados, tela de televisão), o
Pourquoi l'ivons-nous?; o do sociólogo Gilles Lipovetsky, Les não lugar se refere também ao espaço do debate público- ulugar
tem.psbJpennodernes; e &thétiquedel'éphémere, da critica de arte metafórico onde se forma a opinião pública". O polo oposto ao
Christine Buci-Glücksmann. Pela atenção dedicada ao domínio conceito de não lugar não se define como o conceito de lugar,
da imagem, à precariedade dos valores, ao individualismo e às ou o espaço privado, à medida que essas instâncías se cruzam
questões envolvendo noções de tempo e espaço, esses livros e se relativizam, de modo semelhante à articulação flexível das
mantêm um diálogo indireto com A sociedade do espetáculo, de esferas pública e privada. Nas palavras do autor, o que se processa
Debord, sem contudo se vincularem a preceitos racionalistas e atualmente é o deslocamento generalizado desses espaços,
socialistas ou à condenação radical dessa sociedade. É de interesse resultando em distorções e na mudança do próprio sentido do
teórico citá-loo, por dialogarem com as novas e múltiplas formações adjetivo público. A fraca oposição entre lugar e não lugar permite
de relatos autobiográficos na cultura contemporânea, ressaltando compreender o deslocamento da fronteira entre público e privado,
o enfraquecimento atual das instituições, a metamorfose da ética chegando até à sua diluição, considerando que o espaço público
e a espetacularização de sentimentos. se transformou em espaço de consumo.' A reflexão de Marc Augé
O conceito de hipermoderno - que pouco se distingue do se concentra na articulação e redefinição dos espaços urbanos,
pós-moderno - representaria a segunda revolução moderna lidos de modo literal e metafórico. Na discussão em pauta sobre
graças~ dimensão hiperbólica alcançada pelas transformaçõe~ os espaços autobiográficos na literatura e na mídia, deverá ser
cultur.:_1s. Ao. momento eufórico do pós-moderno segue-se sua levada em conta a construção em processo da opinião pública.
ex:iu~o, obtida pela excessiva reconfiguração de seus princípios, O livro de Buci-Glüksmann, Esthétique de /'éphémere, resolve
pnnc1~~lmente quanto à transformação hiperindividualista o impasse existencial frente às questões da época globalizada
do su1e1to. Em decorrência da falta de proteção coletiva e do utilizando-se da arte como discurso que exibe o sintoma de um
esgotamento
. . n1 u1çoes,
das ms . - vive-se
. entregue a si próprio, tempo passageiro e precário. Mas é a panir do salto da estética
se. automventando
, . _. e procu d
ran o sai'das no mtenor
· · d e espaços para uma reflexão ética e política da existência que se configura
pm ados e sob.ta.nos. A falta de comunicação na sociedade hiper- o efêmero, isolando o modelo pessimista e enlutado da moder-
rnodema conduz, no entender de Lipovetsky, ao isolamento nidade e atuando como saída positiva para o tempo presente. A
gerado. pela troca de h a- b'itos e comportamentos. A domesticação' precariedade e o desconfono do homem moderno traduzem as
da vida. pública se efetua pelo exerc1c10 - · v1rtua
· .
1 e mteratívo da inquietações ligadas a problemas de natureza identitária, surgidos
~;urnca~ção eletrônica, capaz de diminuir espaços e converter pela convivência do eu com o estranho outro. O tempo, anali-
. in::e~~ temporal em recepção simultânea do real. Um dos sado enquanto categoria frágil e nômade, capaz de modificar a
pnnc1pa1s itens de sua critica à hipermodemidade consiste na relação do sujeito com o mundo, pelo engendrarnento de uma

56
estética dos fluidos, modifica as condições de construçào de NOTAS
imagens, de paisagens e dos ambientes urbanos. A explicaçào
para o sentido da existência suscita, portanto, novas forma/'i de 1 DEBORD, 1997, P· 14.
subjetivação, confonne 1ição de Michel Foucault, com vistas a
2 ARFUCH, 2002, p. 76.
construir uma "hennenêutica do sujeito", referente ao cuidado
) MAFFESOLI, 2004, p. 83; tradução da autora.
de si e do outro.
Buci-Glücksmann, ao distinguir duas categorias do efêmero, o ~ VATIIMO, 1992, p. 13.

melancôlfco e o cósmico, sintetiza o trajeto da modernidade para s CAUQUEUN, 2003, p. 88.


a pós-modernidade, sem que a passagem se traduza em perda ou 6 PIVOT, 2004.
1uto. O efêmero melancólico, marcado pelo spleen baudelairiano,
1 AUGE, 2004, p. 144.
pela alegorização do eu e a alienação de si, diferencia-se do q/êmero
a BUCI-GLÜCKSMANN, 2003, P· 84.
cósmico dos tempos atuais, por tr-ansfonuar o peso existencial e
pláscico em leveza positiva e em energia vital, categoria estética
legada por Nietzsche ao século XX. 8 A lição que daí se retira
penuite chegar ao conceito de efêmero cultural, contemplado REFERÊNCIAS
nas suas fragilidades e esquecimentos, uma espécie de desordem
produtiva que movimenta o imaginário de uma época. ARFUCH, L. El espacio biográfico. Buenos Aires: Fondo de Cultura
Não é de se estranhar, portanto, que a comunidade intelectual Económica de Argentina, 2002.
francesa, reconhecida pelo recato e o respeito pela vida privada AUGÉ, M. Não lugares: introdução a uma antropologia da supennoder-
de seus membros, reaja de forma hostil a essa avalanche <le nidade. São Paulo: Papirus, 1994-
discursos da intimidade, veiculados principalmente pelos livros
AUGÉ, M. Pourquoi vivons-nous?Paris: Fayard, 2004.
de memórias, pelos programas da mídia televisiva e pelos relatos
autoficdonais. Esse ambiente cultural não se mostra exclusivo dos BUCl-GLÜKSMANN, C. Esthétique de /'éphémere. Paris: Galilé, 2003.
países considerados desenvolvidos, mas se encontra disseminado CAUQUELIN, A. L'exposition de soi: du journal intime aux webcams.
na maior parte das regiões letradas do mundo. Os vários tipos
Paris: Éditions Eshel, 2003.
de reação à cultura do espetáculo omitem as reais intenções aí
subjacentes, por se tratar da defesa de uma sociedade que deveria DEBORD, G. A sociedade do espetáculo. São Paulo: Contraponto,
se pautar por um comportamento opaco e distanciado quanto 1997.
às expressões exteriorizadas de sua intimidade. A transparência LIPOVETSKY, G. Les temps bypermodemes. Paris: Grasset, 2004.
operada pela cultura moderna - amante dos vidros, dos espelhos,
MAFFESOLI, M. Le grand déballage. Le Nouz.'el Obseroateur, p. 83,
da indistinção entre exterior e interior, do precário, do perecível e
2004.
da pobreza da experiência- assiste ao declínio do valor absoluto
dos objetos e à banalização do conceito de gosto. Para a maioria PIVOT, B. Le grand déballage. Le Nouuel Observateur, 2004.
letrada, essa situação é insuportável, por abalar orientações VAffiMO, G. A sociedade transparente. Lisboa: Relógio d'água, 1992.
estéticas unificadoras e universalistas, além de retirar dos objetos
comemporâneos traços de profundidade e perenidade. A socie-
dade do espetáculo não deveria ser entendida apenas como a
SOciedade das aparências manipulada pelo discurso do poder,
mas como aquela em que a realidade se constitui nas suas formas
mais brandas e fluidas.

58
if ANA LUCIA S. ENNE
i
,1

l
1

REDES DE MEMÓRIA EHISTÓRIA NA


BAIXADA FLUMINENSE
PRÁTICAS DISCURSIVAS,
PROCESSOS DE CONFlGURAÇAO
-
E RECONFIGURAÇÃO DAS IDENTIDADES SOCIAIS

APRESENTANDO A REDE

A proposta do capítulo que aqui se inicia é apresentar, de


forma condensada, algumas reflexões, a partir de pesquisas
anteriormente desenvolvidas, 1 sobre a relação entre memória,
discurso e processos de configurações e reconfigurações de múlti-
plas identidades na região da Baixada Fluminense (BF), área
metropolitana do Rio de Janeiro.
Para empreender a pesquisa proposta, fiz, durante cerca de
dois anos (de 2000 a 2002) um trabalho de campo com agentes
e agências ligados às práticas memorialísticas e historiográficas
da região, tendo realizado cerca de 60 entrevistas, que serviram
como parte do material empírico que tomei como base para as
conclusões aqui apresentadas.i Além dis.so, trabalhei com material
publicado por esses agentes em livros, revistas, folheto..-; e jornais,
dentre outros suportes. Dessa forma, as práticas discursivas,
cruzadas com as práticas sociais, constituíram o material funda-
mental para a realização da pesquisa sobre identidades na BF,
que a partir de agora apresentarei sinteticamente.
Éprecisodeixardaro, antes de qualquer coisa, que os dad<is aqui
: 1' estariam constantemente se remontando, de acordo com as
.l apresentados referem-se ao período de 2000 a 2002, e provaveJ.
situações e contextos que se apresentam quoci<lianam~nte. 3 Destas
mente não mais se apresentem dessa fom1a, visto que a realidade
interações, os diferentes nós percebidos na construçao das ~edes
é dinâmica. Além disso, a partir da escolha metodológica de se
estariam se ligando a outros ou se desligando de outros mais, de
trabalhar na perspectiva de rede j<i se pretendia indicar o constante
acordo com as relações estabelecidas. Portanto, passei a trabalhar
configumr e reconfigurar das práticas sociais. No entanto, mesmo
com 0 conceito de rede por julgá-lo mais adequado <lo que o de
com o risco da defasagem dos dados, acredito que o olhar que
grupos fechados e por conceber que as articulaçõ_es na ~ompo­
apresento sobre a construção de tal rede de memória e história
sição da rede são resultado claro de processos de mteraçao e de
;~ na BF e sua relação com a configuração e reconfiguração das A • 4
'.: fluxos entre os agentes e agencias.
identidades não tenha perdido a valldade e a importância, tanto
Dessa forma, meu objeto principal - pensar a questão da
em termos metodológicos, quanto em termo..<; de tentitiva Je
compreensão da realidade social. redução da memória e da história na Baixada Fluminense e sua

Quando iniciei minhas pesquisas acerca da questão, pensei,


~lação com a construção de identidades sociais - fo_i seco~ple­
xando aos poucos e me permitindo sair do que hoje com;1dero
a principio, em trabalhar com dois grupos oposicionistas, total- um redudonismo para uma visão mais fluida, em que as relações
mente separado...'>, que se antagonizavam em suas visôes acerca entre os agentes e as agências só podem ser percebidas em seus
da memória e da hL'itória da região. O primeiro grupo englobaria fluxos e interações, ou seja, em redes.
agemes ligados a espaços mais tr-adicionalistas, como os ins-
Ao mapear etnograficamente tal rede, portanto, percebi a
titmos históricos, enquanto o segundo grupo, de fonna mais
existência de dois grandes grupos, com posições aparentemente
genérica, seria composto por agentes ligados principalmente a
antagônicas: de um lado, aqueles que possuíam uma visão mais
universidades. Nesse sentido, parti de uma visão unilateral sobre
tradicional sobre a história da Baixada; de outro, aqueles que
a questão da memória e da história na Baixada (resultante de
tentavam romper com esse modelo historiográfico. No entanto,
minha experiência como repórter do caderno Baixada do jornal
pensando, por exemplo, no caso dos agentes m~is ligados a
O Globo, no início dos anos de 1990) para uma visão dualista, em
uma história tradícional, o que inicialmente parecia grupo, na
que c~n~bi a configuração dos agentes em termos estanques e
verdade, deveria ser pensado como uma outra rede possível,
antag~mcos. A partir do momento em que passei a penetrar na
uma rede mais restrita dentro de uma rede maior, uma sub-rede,
~uisa de campo de fato, permitindo que seus desdobramentos
em que indivíduos com interesses e métodos semelhantes se
e nos me embaralhassem, a teia das relações se revelou bem mais
complexa do que a · - ·1 1 alinhavam, se autorreferenciavam e se amparavam, embora sem
._ . visao uni atera ou mesmo a bipolarização
da v1sao dualista me permitiram ver. se constituírem em um grupo de maneira definida. Já no caso
dos francamente oposicionistas, os que constroem seu discurso
Assim, chamei de rede de memória e história na Baixada em confronto direto com os membros dessa sub-rede, percebida
Flu~.ínenseuma intrincada rede de relações entre agentes e agências como mais tradicional, a organização das atividades dentro de
S0C1a1S: na qual as combinações de alianças e rompimentos se instituições aglutinadoras, como as universidades, cria uma outra
reco~1guravam a toda hora· O conceito de rede social foi tomado sub-rede.
ª partrr de construções já conhecidas das Ciências Sociais. Por
Na verdade, as duas sub-redes são também redes, ou coníuntos,
agora me parece relevante 'd · .
' apontar que a i eia de rede permite com seus nós principais, seus elos mais periféricos e suas possi-
que se conceba o ob1·eto t · . .
. em ermos mais fluidos, em que, mais bilidades constantes de mudanças, agregações e quebras. No
llilportante do que vê-lo como composto por grupos com limites e
estruturas definidos sena· pe bê l entanto, optei pela classíficaçào de sub-redes para diferenciá-las

agentes e agências soe;,,.,, rce -.o como
. composto
- por diversos do que considero a rede de memória e história na Baixada
. . ~ em coru.tantes mteraçoes. Nesses proces- Fluminense, à qual as demais estão integradas, por compreender
sos mterat1vos as fronte'ra . b . .
, 1 s que a nganam agentes e agências
que todos os atores sociais envolvidos na questão da memória e da
62
63
história na BP estão ligados a essa rede maior, de alguma forma.
Assim, não considero que as duas redes principais possam ser poss1v, e 1·8 , que chamei didaticamente de elos intermediários,
entendidas fora da grande rede, o que me fez optar pela categoria elos prováveis, elos possíveis, elos perdidos, elos memortaltstas e elos
de sub-redes (ou redes dentro da rede) parn melhor defini-las. acadêmicos.
Como sub-redes, elas não se constituem em unidades autônomas, Nesse sentido, a sub-rede 1 compreenderia os chamados
que existem por elas mesmas, mas somente na relação entre elas memorialistas, categoria utilizada algumas vezes como referência
é possfvel pensar em sua existência, bem como na sua relação positiva e outras, c~mo peça de acusação. Algun~, ~o-ntos em
com outras esferas sociais (como a imprensa, o poder público comum pennitem o alinhamento elos agentes dt.>tltro des..<;a sub-rede.
e o senso comum, entre outros). Elas não existem a nào ser se Seus agentes estão ligados a instituições tradícíonais, como os
pensadas, pem1anentemente, em processos interativos. institutos históricos, muitas vezes mantidos com apoío do poder
público. Exatamente por essa relação, esses atores têm um~ ~orte
' l Resumindo o que apontei acima, de uma visão unitária e
penetração nas esferas governamen~is, o que g~r~ uma sene de
'.!I posterionnente dualista, mas ainda simplificadora, por acreditar
ações e reações. Tais agentes mantem uma pratica recorrente
estar lidando com dois grupos demarcados, com car<lcterísticas
de autorreferência, constantemente lembrando os nomes de seus
e limites definidos, passei a pensar a questão da produção da
ares como fontes de consulta e seriedade historiográfica,
memória e da história na BF com a perspectiva da rede: de um
complexo de significados que requer bem mais do que descrição
~mbora muitos não sejam historiadores porfonnação universitária.
Ao mesmo tempo, praticamente não se referem aos agentes que
etnográfica; requer compreensão dos fluxos de inter<lçâo que
compõem a sub-rede 2, dos acadêmicos, embora saibam de sua
possibilitam uma constante reconfiguração dessa rede, impedindo
a sua simplificação confortável. existência e, ainda mais, com eles interajam recorrentemente. Em
seus trabalhos, há uma evocação dos memorialistas fundadores,
Mais ainda: depois de um determinado período de observação
e orientação desta pesquisa, tomou-se claro que a própria divisão
que passam a ser não só os precursores de un:a linhage~, mas
objeto de adoração e prestação de tributos, ocasionando disputas
dicotômica dos agentes e agências em duas sub-redes não daria internas dentro dessa sub-rede.
conta da diversidade do objeto proposto. Dessa forma, passou-
Podemos citar ainda um fascínio por um passado de opulência,
-~ a pensar que alguns agentes e agências estavam interagindo voltado principalmente para o século XIX, e alguns fatos, datas
diretamente com determinados nós das duas sub-redes principais,
e personagens que articulam-se a uma historiografia classificada
embora esses não estivessem ainda inteiramente dentro dela5,
pelos acadêmicos como sendo de cunho mais positiui.sta, de exal-
por vezes alterando suas dinâmicas, por vezes indicando alte-
tação e quase nenhuma crítica. As abordagens em termos de
rações possíveis, mas sempre fazendo o trabalho constante da
objetos históricos, quando chegam ao século XX, pra.ticam~nte se
tessitura desse espaço social que tomei como objeto levando a
interrompem na década de 1950, quando a Baixada Fluminense
real.ocações : interações nem sempre diretamente p~rceptíveis.
passa a receber um fluxo migratório intenso, vindo a enfrentar
Assim, passei a considerar a possibilidade - que depois se fez
uma série de problemas urbanos, como a violência, a luta pela
real - ~e ~.trabalhar com a ideia de que a produção da memória
terra, a falta de saneamento, entre outros. Esse período, da década
e~ hJStona na Baixada Fluminense, com todas as suas impli- de 1950 a hoje, visto como negativo, é praticamente ignorado nos
caçoes em termos de configuração de identidades sociais deve
registros históricos feitos por esses agentes da sub-rede 1. Assim,
~ ~mada ·como
agenaas ·
uma grande rede de relações entre age~tes e
- · o presente é esquecido para ser ancorado nas lembranças do
SOCiaIS, que estio gravitando dentro ou em tomo de duas
passado, o que se reflete em uma luta constante por preseIYar os
grandes sub-redes: a chamada sub-rede 1, dos memorialistas e a
sub-rede 2 dos ac~AR- · Es , d . . ' marcos históricos que permitem uma articulação com essa vi.são,
. • U<M::mtcos. tas po enam, no sentido proposto em especial casas de fazenda e igrejas. Destaca-se, ainda, a torte
5
por .Adrian Mayer, ser chamadas de egos. A elas se ligam e/ou
desligam outros nos' conr· d · · · - penetrnçào desses agentes na imprensa e na mídia de uma fonna
, 11guran o outros seis tipos de mteraçoes geral, transformando-os nos guardiôes da histón'a da Bai.-.,,:ada
64
65
perante o senso comum, o que os consolida como referências
fundamentais em matérias jornalísticas, documentários, pesquisas 0 que os coloca como crítico~ das instituições t~adicionais. E,
escolares, congressos, palestras, exposições etc. Finalmente finalmente, enxergam a história como construçao e prohlema-
podemos dizer que o fator que mais claramente permite ,; ttzação, defendendo uma abordagem crítica em vez de uma
mapeamento do.s agentes que comJX'X!m a sub-rede 1 é a concer\·ào narrativa linear dos acontecimentos e fatos.
da história como nmrativa, de preferência obedecendo a uma Nos elos intermediários estão os agentes que, embora por
cronologia ancorada na história nacional. posições e pensamentos se alinhem mais com uma ou outra das
sub-redes principais, são vistos por grande parte dos agentes
A sub-rede 2, dos acadêmicos, tem tr.iços alinhadores bem
destas como presenças neutras ou presenças que exercem o papel
diferentes dos apresentados pela sub-rede 1. Em primeiro lugar,
de intennediação, o que, em muitas ocasiões, gera mudanças no
é formada totalmente por agentes com graduação em cursos de
posicionamento dos elos da rede. Os elos prováveis são aqueles
História, oom uma produção acadêmica (em especial, artigos e
que, pela penetração já obtida p?r seus agentes dentro das
monogr.ifias) e de alguma fonna inseridos nos meios universitários
sub-redes principais e pelo grau de mtcraçào com os agentes que
locais e/ou em progrrunas de pós-graduação (lato ou stricto sensu)
a compõem, em breve espaço de tempo já deverão estar, com
de universidades fora da Baixada, especialmente as federais. Além
grande probabilidade, inseridos dentro delas, não mais orbitando
disso, seus membros são explicitamente antagônicos a uma
em sua periferia. Já os elos possíveis compreendem aqueles que,
história positivista, respeitando o trabalho dos memorialistas, mas
embora já interajam com os nós principais, ainda não possuem
se colocando como portadores de um outro tipo de fazer histórico,
um grau de penetração dentro das redes de maneira a con~igurar
mais comprometido com o questionamento e a discussão.
1: uma probabilidade de interação contínua, apontando mais para
11 Na escolha de seus objetos de trabalho, temas contempodneos uma possibilidade de esse fato acontecer, embora sem margem
j
não são ignorados, tampouco reflexões sobre o fenômeno da de confiabílidade. Chamei de elos perdidos aqueles agentes que
violência, pois embora esta última também não seja tema corrente não conseguem uma inserção dentro das redes principais, ou
nos trabalhos escritos, aparece claramente na fala de seus autores que delas se desligaram, por vontade própria ou por imposição
durante as entrevistas, por exemplo. Há uma preocupação em se externa (no caso, por processos de exclusão e negação de seu
buscar uma historiografia oficial pelo olhar dos excluídos como trabalho), e ainda os que romperam seus laços dentro das próprias
'
os escravos, os negros, as mulheres, os migrantes, entre outros. redes , levando a uma reconfiguração da rede maior.
Quase todos os seus agentes são oriundos de movimentos sociais, Por fim, estou trabalhando com a noção de agentes fantas-
tendo grande experiência na militância política, o que se reflete
claramente em seu trabalh D e ~ magóricos (no sentido de estarem ausentes em termos espaciais
o. a mesma 10rma, todos sao profes- na constituição da rede, mas sobre ela exercendo urna constante
sores da rede 'bli
pu ca na Baixada Fluminense, gerando uma ponte influência), retirada de Anthony Giddens, 6 para mapear os dois
pe~~ente entre o fazer historiográfico e a preocu paçào com últimos segmentos: os trabalhos dos primeiros memorialistas e as
a didática em sala de aula. Nas suas falas e trabalhos escritos a
questão da identidade aparece d e - 'da : dissertações e teses produzidas na Academia. Os primeiros vão
recorrente · · J e 1omi.a mt1 , como preocupaçao
· ser objeto de reverência e de disputa por um legado por parte
• pnncipa mente quando pensada em associação com dos agentes da sub-rede 1, constituindo o que chamei de elos
as categorias estigma e autoestima.
memorialistas. Isso se dá não sem conflitos e menos ainda podemos
A1ém disso buscam, como ·~ - . .
de mamr . . '
interesse _ as u · esua.tegia
.-. para mdusào
. nas esferas dizer que esses autores são desprezados totalmente pelos membros
. rnvers1tánas -, participar como grupo da sub-rede 2, que manterão com essas fontes uma relação de
reconhecido em congressos e eventos de nível nacional. Utilizam ambiguidade, a meu ver. Já as segundas, pracicamente ignoradas
como fontes hi5tó · não -
cierx>· ncas so documentos escritos, mas tamhém pelos agentes da sub-rede 1, serão objeto preferencial dos que
i~tos- colhidos através da metodologia da hístória oral. compõe a sub-rede dos acadêmicos, funcionando claramente
Aoedttam na mvvwt:; · da de . _
r--• ....ncta mcxratizaçao dos acervos históricos, não só como fontes de consulta, mas como passaportes par.i a
66
67
i~serçâo. no debate universitário, além de serem um aval rara a
ou prestígio), a partir das referências dos agentes como inserídos
d1ferenciaçào entre um/azer história como ciência e 0 r::1,·1·0
. .t''- e um em uma das sub-redes (como identidades contrastivas, no caso,
o~tro pen:.."eb1do como marcadamente memon'a/ista e dih•tante. identidades locais), ou a partir de uma referência que aproxime
Sao aqueles que chamei de elos acadêmicos.
tais agentes, que seria a de morador da Baixada Fluminense,
É. p~')O observar que a relação entre a construção da memüria e ou seja, uma identidade regional. Dessa forma, não podemos
da l_11~tona~tem. papel fundamental na configuração de identidadvs pensar a construção da identidade como algo puramente indivi-
soaa1s no amb1to ~ Baixada Fluminense; logo, este estudo volta-se dual ou coletivo, mas como uma permanente negociação entre
~a~ uma pareei~ iu:iportante. das relações que se configuram e indivíduo e sociedade. E, príndpalmente, não podemos tomar tal
mc1dem sobre a 1de1a de Baixada Fluminense em termos mais construção como algo estático ou pronto, mas entendê-la como
am~l~~- ~ortanto, os processos interntivos dentro da rede que um processo permanente de interação e fluxos. Ou seja, não
ª?al1~1 vao apontando, aos poucos, para uma série de conver- podemos falar, quando pensamos em tal processo de construção,
~ncw.s en~re os atores e agências que, a priori, se apresentam ou de uma só identidade social, ou a identidade social, mas sim na
sao percebidos como predominantemente divergentes. A meu ver configuração de múltiplas identidades, por vezes convergentes,
a busca da configu ~ d 'd 'd
~. . . raçao e 1 enu ades positivas para a região' por vezes divergentes, mas sempre fluidas e movendo-se a partir
~ ~aixada Fluminense é contrapartida para uma visão enraizada de fronteiras interativas. Passemos agora ao exame detalhado
na unp d
· rensa e ~ue a BF seria percebida de forma pre<lomi- desses pontos.
nan:e~ente negatlva e estigmatizada, que acaba por alinhavar Se quiséssemos definir, a priori, a categoria identidade denota-
posiçoes anteriormente contrárias. Mais uma vez, a ideia de rede tivamente, poderíamos utilizar a acepção dada pelo dicionário
!
!" reaparece claramente, pois est a ira · -
tamlJem- ser remontada com a Aurélio: "qualidade de idêntico". Assim, embora o mesmo dicio-
suspensão de diferenças p · ·
Ih ,ante quando se trata d ara ·
um pos1c1onamento político seme-
·
nário citado também defina identidade como "conjunto de
e mterag1r com essas visões negativas caracteres próprios e exclusivos de urna pessoa: nome, idade,
Apesar das diferentes concepç- b - . . , .' ·
oes so re memona e histona bem estado, profissão, sexo, defeitos físicos, impressões digitais, etc.",
como a apropriação d b . '
_ _. e am as pelos diversos agentes estudados, a ideia inicial remete à perspectiva de se buscar algo em comum
e pos.sivel perceber como 1 - ·
e as sao instrumentos fundamentais com o outro, e não somente aquilo que lhe é único. Portanto,
para a construça~o d ·ct .
. - - e novas t enhdades para a Baixada e como se identidade remete a traços individuais, como os citados acima,
estas também sao estrat - . l' . . .
,.i, ___ , _ eg1as po ltlcas. Mais amda: através das naquilo que podemos chamar de identidade individual, em termos
~ussoes apresentadas · d' · 1
_ ' m 1que1 c aramente a relação entre a gerais, o que confere identidade a um indivíduo está atrelado à
Prod uçao das identidades e -· · . sua inserção social. Por isso, não é possível abordar o conceito de
. as praticas d1Scurs1vas como descn-
vo1verei a seguir. ' ·
identidade sem pensar a sua relação com a alteridade. Embora
identidade, em sua matriz etimológica, seja referente à idem,
tomar comum, o mesmo, idêntico, é preciso levar em conta
AS PRÁTICAS DISCURSIVAS que só se define o mesmo em relação ao outro. Identidade é,
E A PRODUÇÃO DE MÚLTIPLAS IDENTIDADES de saída, uma categoria transitiva, que implica em relação de
semelhança e, concomitantemente, de diferença. Nesse sentido,
No caso da rede que estou , d . a construção da identidade, em termos sociais, que podemos
a pos· - d mapean o, na Baixada Fluminense
1çao os agentes dente0 da . . , entender aqui como a maneira pela qual me vejo e desejo ser
de suas memó · mesma, ou se1a, a constrnção visto pelos outros, nunca será puramente individual (pela própria
nas e o estabeleciment d ~ · ·
comtítutíva de ídentídad,. . . . ~ e pro1etos, é claramente matriz etimológica de indivíduo, aquele que é único, que não se
dades pod es mdivi<luaLs e coletivas. Tais identi-
em ser pensadas a · d · . , divide), mas sim pensada em relação ao coletivo. Identidade, na
suas traJ·e"Á · b' . partir os md1v1<luos, a partir de sua dimensão social, é um conceito que necessita do outro para
-1.Vnas e tografias (co ,
mo um mecanismo de ascensão

69
~r refere~da~o, ou ~eja, não se constrói identidade para si e por
si. É preciso mteragir para que ela faça sentido. Dessa forma a De maneira breve, podemos perceber que as idcntidadc.:s st•r.to
ideia de identidade remete, necessariamente, aos proct:!ssos ~le ocessadas na relação entre indivíduo e sociedade, cspecial-
interação entre indivíduos numa sociedade. pr nte a partir de lógicas hier.arquizantcs (e, nesse senii<lo, o •1Ul<.1r
me ) .1 . .. -
faz remissões constantes à obra de L. Dumonl ue e1as~1 11ca.,-ao
Tal preocupação aparece claramente no trabalho de alguns e valoração. Dessa forma, há uma dimensão soda! e moral n.i
autores que se voltaram para essa temática. Assim, Roberto Cardoso
construção da identidade, o que implica o reconhedmcn~o do
de Oliveira afim1a que "a noção de identidade contém duas outro. Assim, a identidade, que na tra<li\·ào aristotélica se fana por
dimensões: a pessoal (ou individual) e a social (ou coletiva)".7 exclusão da diferença, pode ser compreendida como um espaço
Apoiado nos trabalhos de diversos outros antropólogos, ele também de conflitos e não só de semelhanças.
afirma que na noção de identidade "a pessoal e a social estão
Tal ideia (a dimensão do confüto como fundadora da idt·n-
interconectadas, pemlitindo-nos tomá-las como dimensões de um
tidade) aparece na noção de identidade contrastiva proposta
mesmo e inclusivo fenômeno, situado em diferentes níveis de
8 or Cardoso de Oliveira ao abordar as relações intcrérnicas.
reali_zação". O que faria a ponte entre essas duas dimensões, a
pa1tlr da contribuição da Psicologia, seria o domínio da identifi-
~ identidade étnica seria forjada a partir de um "sistema de
oposições ou contrastes". 12 Dessa forma, busca~~ ~ào ~rder
cação, que permitiria que indivíduos buscassem o partilhamento
de vista o que traz a dimensão aristotélica da <lefm1çao de 1den-
de uma identidade com outros indivíduos, com os quais se identi-
tid.ade (aquilo que é idêntico, o mesmo), com uma abordagem
ficassem. "A apreensão dos mecanismos de identificação" seria
que dê conta do que a configuração das iden~idade~ s:xi_ais traz
fundamental, "porque eles refletem a identidade em processo.
Como é assumida . di 'd em termos de conflitos e antagonismos. Assim, o 1dentico e o
por m v1 uos e grupos em diferentes situações oposto passam a ter pesos próximos ou similares na construção
concretas"· Mais ainda, o autor afmna que: "o conceito de identi-
das identidades sociais.
dade pessoal e social possui um conteúdo marcadamente reflexivo
ou ~m~nicativo, posto que supõe relações sociais tanto quanto O trabalho de Georg Simmel acerca do papel exercido pdo
um cócbgo de categorias destinado a orientar o desenvolvimento conflito na configuração da relação entre os grupos S<X'iais é
dessas relações".9 de extrema importância para esta discussão. Segundo Simmd,
0 conflito tem relevância sociológica exatamente por causar ou
opera , de que a identidade é processada em contextos , como
A ideia
modificar interesses grupais. O autor critica as análises redu-
çoes comunicacionais, aparece colocada de outra forma
cionistas que visam encontrar a unidade dos indivíduos e das
mas com intenção semelhante, no trabalho de Luiz Fernando Dia~ sociedades, em que o conflito seria excluído como objeto <lc
Duarte. ~ua- preocupação com a categoria de identidade faz com estudo. O autor destaca a impossibilidade de uma "unificação
que ele md1que três foc b _
os para sua o servaçao. O primeiro seria pura", H demonstrando que unidade e contradiçào sào constilu-
o da relação entre identidade nn<- .
f, " JJ<-Jsoa1e identidade social. Dessa tivos da pessoa, ou seja, todo indivíduo contém em si unidade e
~ sob este angulo ªquestão da identidade articula-se com os
A

fragmentação, e isso se aplica ao pensarmos sua inserção dentro


pro ~~ da dicotomia indivíduo/sociedade e com seus diversos de grupos sociais e da própria sociedade. Portanto, a ideia de
corolários entre os qua 15 · 0 da od
'psic J' . ' , m ema partilha entre os saberes conflito tem de ser percebida em seu caráter dialético, pois se o
o og1cos e os saberes 'sociológicos' e ) "10 o d e
estaria li d "' . . , ... · segun o 1oco conflito marca a dissociação entre indivíduos, também opera no
~ .º. ªtradição fdosofica do princípio da identidade" campo associativo, gerando esferas de negociação e alianças.
como pnnap10 da não co t d. - ,
lado n ra içao, paradigmaticamente fonnu-
no postulado de Aristót J ~ Voltando ao ponto central deste capítulo, podemos dizer".
. e es, segundo o qual "uma mesma que a configuração da rede de memória e história na Baixada .
coisa, sob a relação de um úníco e mesmo tempo não pode, ser
e não ser" 11 o ter . e Fluminense é matéria de identidade, tanto pessoal quanto social ·
- lor.. cerro ioco remeteria às noções de cl@:<;i'ica-
çao eva com as qu · 0 ':I' Pertencer a urna das sub-redes descritas, ou com ela se afinar. esd
' ais autor trabalha no decorrer do texto.
relacionado diretamente à busca do mesmo, do idêntioo. daquilo
70
d

'
-.. ,-.
~,-
com que se é afim. Mas, ao mesmo tempo, remete também ao que
não se quer ser, a um outro com quem nào se quer afinid<1des, a ue exclusão, encontram-se no domínio da sub-rede oposta. A
~oncepção contrastiva <la identidade s~cial ~~are~e claramente,
' uma alteridade com a qual a identidade buscada deve comraíitar
para se legitimar. Vamos retomar alguns dados aqui descritos,
para dar cont'a do que está se afim1ando.
po1·s , para além dos mecanismos de 1Jenttf1caçao _ com <leter-
minados agentes e agências, busca-se a ncgaçao e a opos1çao
. _

frente a outros. O conflito é elemento associativo tanto quanto a

' A apresenta~'ào, ainda que superficial, de dados referentes à


tr::ijetória pessoal dos agentes mapeados pern1ite uma série <le
observações acerca da relação entre identidades individuais e
sociais. No caso dos agentes da sub-rede 1, dos memorialistas,
temos alguns traços distintitivos em tem1os de identidades indi-
viduais que acabam influindo na configuração das características
unidade, retomando a ideia de Simmel.
Nesse sentido, é interessante pensar as estratégias utilizadas
pelas duas sub-redes para legitimarem seus papéis dentro da
re d e e , ao mesmo tempo, esvaziarem o de seus oponentes. f.Ã

caso da sub~rede 1, a valorizaçào passa por uma autorre erencia


No

como herdeiros de uma tradição de resgatar o passado da


da sub-rede, diferentemente dos membros da sub-rede 2. Assim,
Baixada Fluminense. Isso se dá tanto explicitamente quanto de
as ~jetó:ras individuais - que conferem a esses indivíduos trJços
fonna indireta, na constante evocação dos pioneiros nos trabalhos
de idenudade pessoal - são importantes na configuração das
publicados pelos memorialistas de a~ora. Al~m _di~s~, o controle
duas sub-redes, criando alguns padrões coletivos de identidade.
sobre os acervos de pesquisa, atraves das mst1tu1çoes por eles
Podemos perceber, então, como a memória desses agentes, bem
dirigidas (como os institutos históricos), possibi~ita a const_ru~à~
como os projetos elaborados por eles em termos de inserção
de uma imagem pública de guardiões da memoria e da htstona
~~1 e coletiva, são fundamentais para a construção de suas da Baixada, em parte referida pelos próprios agentes, em parte
identidades, como aponta Gilberto Velho. 14
legitimada pelas constantes matérias jornal'.stic~s e conv~tes_para
Portanto, a partir das trajetórias individuais, podemos perce- palestras, cursos, seminários em escolas, 1greps, a.s.soc1açoe.s e
be~ °:1ços identificatórios que vão se refletir, de fom1a clara, na outras agências locais.
P:Upna caracterização das duas sub-redes. Ou seja, podemos
Quanto aos oponentes, podemos pensar as estratégias dos
dizer que a sub-rede 1 possui traços de uma identidade memo-
memorialistas como dotadas de ambiguidade. Ao mesmo tempo
rialista, enquanto a sub-rede 2 possui traços de uma identidade
acadêmica. que silenciam sobre os agentes e agências que configurei c~m_o
pertencentes à sub-rede 2, não indicando seus nomes para possive1.s
Dessa forma, o aspecto etimológico do conceito de identidade contatos não os convocando para participarem de cursos e
aparece claramente quando pensamos no quanto a configuração eventos ~romovidos por suas agências, fazem alusões gen~ri~as,
das identidades coletivas, em tem1os de sub-rede revela a busca em geral pejorativas, aos acadêmicos, ao pedantismo acadermco,
por uma imil 'dad · '
. _ s an e, ou uma afinidade em termos de trajetórias ao fato de os acadêmicos ficarem presos a questões específicas e
e VISOes de mundo. Na busca por inserção em uma ou outra das não se preocuparem com a história da Baixada como um todo.
sub-redes os agentes e"'., d . .
, '"""º
nos leva à dimensã da ·d 'd d
procuran o partilhar mteresses o que
'
Assim, atualiza-se aqui o binômio lembrar/esquecer como estra-
o 1 ent1 a e como uma busca do mesmo, tégias complementares. De certa forma, podemos dizer que os
do semelhante, daquilo que nos é idêntico. memorialistas se lembram dos acadêmicos quando utilizam esta
Ao mesmo tempo tal c nfi - . . categoria como peça de acusação, mas o fazem de maneira muito
_ ' o 1guraçao pe1a partilha de interesses
~omuns esta a~elada a outro objetivo: ao marcar as similaridades, mais discreta do que como uma referência constante de crítica
usca-se também indicar as divergências. Pertencer a uma das e negação. De maneira geral e mais contínua, o silêncio é a
sub-redes não só impl · ·rh estratégia mais utilizada como forma de se lidar com os oponentes
1ca a parti a de pontos de vista e metas
comuns, mas a negação d l claramente conhecidos e com evidentes situações <le conflito.
.
afi1rudades que por uma 1ague ã as . com as quais não se têm
• , re aç o mais de complementaridade do Se na escolha <la melhor estratégia no que se refere aos
acadêmicos, os memorialistas optam mais por esquecer <lo que
72
73
por lembrar, o mesmo nào pode ser dito no caso inverso. Os
agentes da sub--rede 2, de fom1a gemi, constroem seus discursos Dessa forma, os memorialistas e os acadêmicos vão ancorar-se
em oposição aberta aos trabalhos dos memorialistas. Dessa fonna em suas contes
l' e seus lugares de memória, como ,documentos

a categoria memorialistas é uma peça de acusação frontal, carac~ e monumentos, para afirmarem suas verdades histoncas acerca
terizando aqueles que ser.lo mais colecionadores e contadores de do passado. Portanto, a disputa por saber é reveladora de u~a
história do que historiadores, no sentido acadêmico do termo. Pala- disputa por poder, pelo controle da inform~ção, pela construçao
vras como positivistas, tradicionais, amadores, documentaristas, l a versão que se sobreponha às demais e receba o status de
ce um · · - · 1
entre outras ser.lo utilizadas para indicar qual seria o papel dos dade 0 que implica uma disputa pela pr6pna pos1çao socia
ver , l f' "
ada por esses agentes na Baixada. Foucau t a 1rma que a
agentes da sub--rede 1 na construção historiogr'áfica da Baixada ocup d ~ 1s
verdade não existe fora do poder ou sem po er .
Fluminense. Ou seja, há uma distinção entre memõria e história,
em que esta estaria relacionada ao domínio da ciência e, portanto, As estratégias percebidas como utilizadas pelos m~bros tanto
seria portadora de uma legitimidade no tr,.Ho do passado que a da sub-rede I quanto da sub-rede 2 podem ser entendidas como
rte de uma estratégia maior, de controle do saber acerca da
h~tória
primeira, como exercício não acadêmico, não poderia ter. Assim,
a acusação contida na categoria memorialista aparece de fonna local, o que, em termos relacionais, geraria posições de
clara. De certa maneira, a estratégia utilizada pelos acadêmicos poder para aqueles que a controlassem. Tais es~eras. de_ ~~r
seria muito mais lembrar do que esquecer, como forma de negar poderiam ser relacionadas, por exemplo, com ~onqu1~ md1v1duats
os trabalhos dos memorialistas. _ como ascensão social, prestígio, satisfaçao de vaidades - _de
clara importância para os agentes envolvidos na rede_ <l~scnta.
Além disso, a posse dos documentos e o acesso às fontes é
Mas também com conquistas coletivas, como a penetraçao 1unto a
motivo de disputa clara entre os memorialistas e os acadêmicos.
outras esferas de poder - como os órgãos públicos, a imp~ensa e
Acredito que as reflex<Ses de Michel Foucault acerca das relações
os circuitos acadêmicos-, garantindo um tipo de reconhecimento
eAn~ os domínios do saber e do poder sejam de grdnde impor- público que se converte em distinç~o -~cial e poder sobre os
tanc1a ao pensarmos tais estratégias. Há um claro embate,
acervos e sobre a própria verdade bistonca.
entre os agentes que compõem tanto a sub-rede 1 quanto a
sub--rede 2, em termos de controle do saber acerca da história Nesse sentido, o trabalho de Pierre Bourdieu revela-se funda-
eda '· B. · mental. Ao definir região como um campo de disputas entre os
memona na aIXada Fluminense. Os memorialistas estão
escre_vendo e divulgando uma visão acerca do passado em que detentores de um saber, Bourdieu aponta claramente como a
este e constantemente glamourizado e valorizado positivamente.
autoridade sobre o mesmo designa uma identidade valorada,
Em contrapanida, os acadêmicos, de uma forma geral (embora que servirá como signo de distinção social. Assim, "a disrin~ào.­
n:1?1 semp~e, como demonstrei na tese), querem romper com essa no sentido corrente do termo - é a diferença inscrita na propna
estrutura do espaço social percebida segundo as categorias
VISao romantica e exercer uma critica metodológica sobre esse
P_assa?º· revelando uma história menos oficial. As duas posições apropriadas a essa estrutura". 16 Por isso, ele associa a distinção
sao divulgadas publicamente, como autorreferência e referência ao capital simbólico que os agentes buscam no decorrer ~e suas
externa, por lodos os agentes entrevistados. Em disputa, está um disputas pela autoridade, remetendo, como já dito antes, a asso-
saber ~cerca do passado da região, sobre o fazer histórico e sobre
ciação entre identidade e hiernrquia.
ª funça~ desse saber no presente, já que estamos partindo aqui
da prenussa de que toda h" - · do
Bourdieu aponta para o caráter perfom1ativo do dis~t'.rso, o
1stona passado é uma história feita qual forma identidades. Ou seja, o discurso é uma prattca de
por agentes no presente para atender a demandas do presente. institucionalizaçào, de objetivação da realidade, mas que requer
. ~im, há um saber em disputa dentro da rede de memória e
autoridade reconhecida para quem fala. O que estaria em jogo,
história na Baixada Fl · "nas lutas pela identidade - esse ser percebido que existe r:..mdan~e~­
é . ummense. E esse saber, objeto de conflitos,
revesttdo por um status de verdade, como indica Foucault. talmente pelo reconhecimento dos outros"-, seria a ~unpos1çao
de percepções e de categorias de percepçào". 17 Assim, o discurso
74
75
passa a ocupar o IugJ.r de arena para a disputa d·1s t'd • r· 1 1
' · en ll ·1c es
po:sto central nesse embate. Por isso, Foucault p!l)rv"-' . .. ' · ' meu ver, bastante significativas e apontam para um outro desdo-
lo i· d be · r " - um.i gcnca-
g a os sa res, dos discursos, dos domínios de obJ'"t0 " lH • bramento da construção das identidades sociais para os agentes
percebe d' - 1 . . '- ' poi~ estudados. Portanto, as sub-redes 1 e 2 são muito diferentes, mas
a isputa pe o poder, via discurso, como a disputa d
0
controle da verdade. Nesse sentido é import·int" perc p convergem em pontos muito imrortantes, capazes, inclusive, de
'd " d . . ' ' ._ e1)ermo.
a t eia · e ator pos1c1onado como fundamental ne'"'e p s alterar o quadro aqui descrito.
O d' . . ,,,, roccsso
s iversos agentes anuncrnm seus discursos a partir de p .· , . Em primeiro lugar, voltemos à ideia de posicíonamento,
definidas, o que claramente direciona suas falas. osiçoes que eu vinha caracterizando como fundamental para explicar
É a partir desse gancho, no entanto, que podemos come .. as práticas discursivas dos agentes citados. Se todo discurso é
a pensar a const ~ d 'd - ~.ir
inserid ruçao e 1 • enti~ades sociais para esses agentes
resultado de uma posição ocupada pelos agentes no campo de
disputas, é importante lembrar que tais posições não são estáticas.
os na rede de memóna e lustória na Baixada de forma mais
:mplexa do que a apresentada até aqui. Sem dúvida não p·1rec~ Ao contrário, elas são situadonais, dependem do contexto em
aver eng-J.nos quando percebe ' · que os atores se apresentam. Utilizando a ideia proposta por F.
b-red . mos o quanto a composição das
s~d es analisadas refere-se à constituição de identidades indi Barth, as posições ocupadas por esses agentes estão marcadas
vi uais e identidades colef
uma da b-red
o
ivas. s agentes que compõem cada
· por interações sociais, cujos limites são fluidos.i 9 Assim, se são
·/, . s su . . . es' ou aqueles que com e 1as interagem como os discursos que configuram as identidades, como venho assina-
e as tntermedianos, prováveis ou tv..:-N" • - lando, e se os atores formulam suas práticas discursivas a partir
ide tidad 1-'"·'·"vets, estao construindo suas
de posições, e, finalmente, se tais posições são situacionais,
os ~ . es em btem1os de afinidade e partilha de interesses com
maJS mem ros Sob esse ~ . dependendo dos contextos e interações nas quais tais atores estão
seu sentido etim l'.. angu1o, a identidade aparece em inseridos, por conseguinte, as identidades também não são estáticas,
que e, 1.d~enttco.
0
. ogico, ou seja, como a busca do mesmo do
' ' substantivas, sendo modificadas de acordo com as situações de
Mais ainda, parece- • interação social. Assim, utilizando a referência primordial de
sub-red d . U:e c 1aro que as identidades das duas Barth, quando este formula sua teoria acerca dos limites de um
es, os memonahstas e d d- ·
sentido d ;~:1 . os aca emteos, ultrnpassam 0 grupo étnico, podemos tomá-la emprestada para pensarmos a
e Suuuandade para se an
tiva. Ou _.; nfi _ corarem em uma lógica contrJs- construção de identidades em uma sociedade complexa como a
~1a, a co iguraçao das id 'dad da
para um campo d b enti es s sub-redes aponta Baixada Fluminense, e admitirmos que as identidades não estão
e em ates entre f,
oposição no qu 1 , . orças que se constroem por ligadas a características indicadas a priori ou fixas, mas devem ser
' a o que esta em JOg0 - d·
da verdad d e a tsputa pela construçào pensadas a partir de fronteiras móveis, em que as posições dos
e e o saber e po
de poder e autoridad~ , r consequenc1a, o que isso confere
à •

atores podem mudar de acordo com demandas e interações que


análise das - - . aos agentes nela envolvidos. A partir da se apresentem não apenas fundadas na memória das interaçocs,
praticas dJSCUrsivas des - -
as estratég1.,., de _ ses agentes, e poss1vel perceber mas também em projetos.
"""' construçao das 'd .dad
tanto em termos d 'd T t entt es no que elas geram Dessa forma, pard além da dicotomia indivíduo iwsussociedade,
sub-redes) quanto ; t em1 icação (para dentro das próprias a questão da ídentidade precisa ser pensada como um pr<xe.sso
em termo d . ~negação (de uma sub-rede para a outra constante de construção e desconstrução, em que os atores irào
s e opos1çao e conflito). '
No entanto, é hora de com 1 - mudar seus posicionamentos e suas práticas discursivas, depen-
discurso. Sem dúv'da 1
P exar ª relaçao entre identidade e dendo das situações interativas. Retomando a ideia proposta por
. . , as relações ent d
apatS da rede de , . re as uas sub-redes prin- Ulf Hannerz 0992), há um constante fluxo de infom1açôes entre
memona e história n B . d
marcadas por muitas d.
.
. ª
1vergêncta.s e ta• -
aixa a Fluminense sào os agentes inseridos na rede que estou mapeando, e tais fluxos
identidades As • . IS sao constitutivas de suas - tomados em sentido semelhante por Barth (2000) quando este
. convergencias existe te -
aos pontos de dU: . n s sao poucas em relação se refere às correntes cultur.üs - vão modificando, no de<:orrer
erenciação Contudo . '
· , tais convergêncías são, a do processo, as constnu;;oes referentes à identidade. Se, dessa
76
fonna, este conceito está associado a uma noção de pertencitnenro
morador da Baixada Fluminense, marcada, de forma dara, pelas
e de exdusào, tais referências podem ser alteradas no decorrer marcas do estigma social. Ou seja, uma identidade regional, que
dos fluxos.
interage com as identidades locais <las duas sub-redes.
Desse modo, uma contribuição relevante pam o que aqui se Assim, o principa.1 ponto que, a meu ver, leva a uma convergência
pretende apresentar - uma reconfiguração das identidades no entre os agentes da sub-rede 1 e da sub-rede 2 são as situações
caso das sub-redes que compõem a rede de memória e história de estigma, A convergência maior, segundo minha concepção,
na Baixada Fluminense - pode ser o trabalho de Stua1t Hall acerca estaria associada à construção de uma idemidade positiva para
dos mecanismos de constrnção de identidades sociais e culturais quem mora na região, isto é, por serem moradores de uma região
na Jamaica. Hall partilha da ideia de que a identidade não pode estigmatizada, passam a partilhar de uma identidade regional, na
ser tomada de forma cristalizada, mas sim como um processo, e qual se busca reagir a esse estigma. 22
propõe duas maneiras de se pensar a identidade cu/Jurai, que
No decorrer do trabalho de campo e das entrevistas realizadas,
aqui tomo como referência para a identidade social. Uma plimeira
bem como a partir da análise do material produzido pelos
posição, indica o autor, define identidade cultural em tennos
agentes descritos, pude perceber em que medida a comtru~~o
de uma cultura única partilhada, um tipo de "verdade interior
das identidades desses sujeitos, como moradores de uma regiao
coletiva~. Seria, portanto, uma constrnçào de identidades por
20

marcada pelo estigma, é atravessada por essa questão. Nesse


um partilhamento de interesses e visões. No entanto, existiria uma
sentido, reforçar as imagens positivas da região é uma forma de
segunda visão sobre identidade culturn1, que levaria em conta
recuperar a autoestima e assegurar a positividade também em
tanto os múltiplos pontos de similaridade entre aqueles que irão
tennos de identidade regional.
partilhar uma identidade coletiva, quanto ~pontos críticos de
diferença profunda e significativa". 21 Para o autor, é impossível É possível compreender, então, que existem diversos planos
pensar a construção das identidades como resultante somente discursivos em que as identidades dos agentes vão sendo proces-
de partilhamentos de pontos comuns, ou do estabelecimento sualmente construídas e reconstruídas. De certa forma, existe um
de contrastes e oposições. A produção da identidade, enquanto plano interno a cada sub-rede, em que os atores alinham seus
processo, deve conter os dois eixos ou vetores, como ele mesmo discursos por afinidades a seus pares e por oposição à sub-rede
chama: um de ruptura e outro de aproximação. antagônica. Além disso, existe um segundo plano discursivo, que
chamei de interno à rede (e não mais interno a uma sub-rede
Acredito que as propostas de Stuart Hall para pensar a situação específica), em que a identidade será configurada mais pelo
dos grupos étnicos no Caribe podem ser utilizadas com as
conflito, pelas posições de divergência entre os diversos agentes
devidas adaptações, parn o contexto que pude mapear n~ Baixada
e agências, englobando não só as duas sub-redes, mas os elos
fluminense. Como venho demonstrando, o vetor da ruptura entre
com as quais elas estão interagindo. Mas acredito que exista
as duas sub-redes é claro. Os agentes nelas inseridos construirão
ainda um terceiro plano, externo à rede de memória e história
~ua~ .ide~tidades enquanto sub-redes a partir das experiências na Baixada, em que as práticas discursivas estão endereçadas a
mdividuaJS, de fonna contrastiva. No entanto, não é possível deixar outros elos que não os que participam diretamente da rede - ou
de perceber, quando complexamos um pouco mais a rede de
mem' · h' - · · seja, a diversos outros, como, por exemplo, órgãos públicos,
ona e lStOna na BaJ.Xada, o vetor de aproximação dessas imprensa e mídia de uma maneira geral, fonnadores de opfniào
duas sub-redes, que, em alguns pontos convergentes partilham
também de ' (como os artistas), alunos das redes pública e privada da regíào,
uma identidade social. A meu ver tal identidade interlocutores diversos, moradores da Baixada Fluminense ou não
panilhada, capaz de alinhavar posições tão an~gônicas como
-, mas que com ela estão interngindo; plano no qual tais prátk.'as
as demonstradas pelos membros das duas sub-redes passa pela buscam a construção de imagens positivas para a região, refor-
COTl.<;t - d 'd '
. ruçao e uma 1 entidade que atravessa e ultrapassa as iden- çando a autoestima e denunciando o prcx:esso de estigmatizaçào.
tidades de memorialistas e acadêmicos, que é a identidade de
Nesse terceiro plano, as rnpturas em termos de identidade coletiva
78

:~.
'· .
l:i são, se não sobrepostas, ao menos restringidas por uma outra
concepção acerca do papel da memória e da história, em que
essas prestam-se a um reforço em tennos de valorização local.
Com isso, posições aparentemente antagônicas acabam por
aproxim.1ção e/ou negação. De certa forma, a trajetória histórica
da Baixada Fluminense está permeada por sua proximidade com
0 Rio de Janeiro, como Corte imperial, capital da Hepúblíca ou
capital <lo estado.
. f confluir, como, por exemplo, no que se refere ao uso de fatos
I A partir das considerações deste capítulo, podemos afirmar
enalcecedores do passado da região. A história e a memória
que a construção de identidades sociais para os agentes que pro-
aparecem, nesse contexto, como um projeto panilhado pelos
curei mapear dentro da rede de memória e história na Baixada
agentes que compõem a rede que estou caracterizando, visando Fluminense deve ser percebida dentro de uma lógica proces-
exatamente à reversão da imagem negativa da Baixada.
sual, e não de forma estática. As identidades serão divergentes
Como indica Gilberto Velho, a "memória é fragmentada", ou e também convergentes de acordo com as posições ocupadas
seja, "o sentido da identidade depende, em grande pa1te, da pelos agentes em situações diversas, e principalmente a partir
organização desses pedaços, fragmentos de fatos e episódios das interações que serão estabelecidas de acordo com múltiplas
separ.ados".l3 Ela será usada, portanto, de acordo com as demandas fronteiras. A cidade do Hio de Janeiro é uma fronteira fundamen-
do presente e com as posições tomadas pelos agentes de acordo tal para a construção de tais identidades, pela relação ambígua
com os contextos de interação. Assim, podemos perceber que de proximidade e distância que descrevi acima. Não só estão se
certas abordagens, motivo de críticas frequentemente relacionadas construindo identidades positivas para os moradores da Baixada
aos memorialistas, aparecem também como estratégia utilizada Fluminense, no sentido de projetá-las internamente (através das
pelos acadêmicos na intenção de se construir uma imagem mais mais diversas estratégias, como a atuação em sala de aula, a reali-
rm:itiva da região, em especial o apelo aos grandes vultos, a zação de exposições e palestras, a presença na mídia local, entre
n:gi~t~ q~e estejam ancorados em passagens glorificadas na outras), mas há um esforço expressivo de levar essas imagens
histona e a ideia de um período de opulência relacionado para fora da Baixada, de maneira a divulgá-la em outras áreas
principalmente, ao século XIX. ' (nesse sentido, podemos pensar os sites hospedados na internet).
. Podemos aqui perceber como a configuração de proi'etos Mesmo podendo atingir âmbitos ampliados (no Brasil e mesmo
diversos
. . . pel . os m· d·1v1'd uos, f,ormulados a partir de suas perspectivas no exterior), a meu ver, a cidade do Rio de Janeiro, como plateia
indiv1dua1s • mas também e m t ermos d e suas mserçoes
. - sooa1s,
. . leva objetivada para a divulgação dessa imagem positiva, é o universo
ªmudanças em termos de construções de identidades sociais de interlocutores mais visado, principalmente pela necessidade
le\·ando ta bé A • '
de reversão dos estigmas e, consequentemente, de diminuição
• m m, a convergenc1as de agentes e agências que
~ apresentam, de forma geral, como antagônicos. Como afirma das situações constrangedoras no contato entre moradores da
Gilberto Velho "o · , · , . _ Baixada e do Rio de Janeiro. Assim, a produção de uma identi-
. ' PTOJeto e o instrumento bas1co de negociaçao
da
. realidade
. com outros atores, m · d·ivr'd uos ou coletivos~. 24 · As dade positiva para a Baixada Fluminense tem várias dimensões,
identidades nesse sentido ta b, - , pois ela está voltada para o consumo interno, mas, também, para
' , m em sao materia de negociar·ào
entre os atore · · Co · "); uma transformação nas representações externas à Baixada, nas
. s SOCJJIS. mo podemos perceber a busca de uma
valonzaça-o ·d ·da ' mais diversas amplitudes (através dos sites, por exemplo), mas
para ª 1 em1 de de morador da Baixada Fluminense
marcada por estigmas, acaba send o uma via · de convergcncia
A • ' especialmente no que se refere à cidade do Rio de Janeiro.
fundamental para memo · 1· d
. na IStas e aca emicos. Como já apontado
A

antenormeme a situação d ,
. , . • e contato e marcante para estabelecer
estrategias de pro1'eção de .d t•d d
. . 1 en 1 a e para os estigmatizados. No
caso da Baixada Fluminense 0 , .
.d • contato mais permanente é com
a c1 · ade do Rio de Jan ·
eira, com que estabelece uma relação
por vezes contraditória
, mas a meu ver complementar, de
80
81
NOTAS
REFERÊNCIAS
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foram realizadas por mim, em diversos lugares da região, sendo gravadas
com o consentimento dos entrevistados. A relação e a mctodologi;i BARTH, F. A análise da cultura nas sociedades complexas. ln: LASK,
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VELHO, G. Individualismo e cultura. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

82
83
ANNA DE F 1 NA

TEMPO, ESPAÇO EIDENTIDADE


• 1
EM NARRATIVAS DE IMIGRAÇA0

Este capítulo focaliza a construção do tempo e do espaço como


elementos de orientação em narrativas que recontam as expe-
riências de deslocamento de imigrantes de um país para outro.
O foco de minha análise é colocado em como as pessoas que
vivem experiências de desoríentação articulam a orientação para
seus ouvintes e, ao mesmo tempo, em como o uso de recursos
linguísticos, tais como elementos de orientação em contextos de
narrativas, conecta narradores e interlocutores a contextos micro
e macrossociais. A direção de pesquisa que persigo compreende
o ato de narrar histórias não como texto ou mo<ld, mas como
uma prática social e discursiva, 3 na qual narradores e ouvintes se
engajam em processos significativos de construção e reconstrução
da experiência. As narrativas são, portanto, produzidas e compre-
endidas da perspectiva de lugares sociais e históricos específicos. 4
Estudar as narrativas como prática implica compreendê-las como
um processo, mais do que um produto, e como tendo lugar em
contextos locais e globais.
Para ilustrar o que isso implica para a análise da narrdtiva,
gostaria de começar com uma citação de Harvey Sacks. Ao se
referir a tópicos de histórias, o sociólogo observou que ~as
histórias são 'sobre' - têm a ver com - as pessoas que as estão
contando e ouvindo". 5
Na abordagem aqui proposta, o frx:o é no que o uso de dispo-
sitivos linguísticos e narrativos específicos nos dizem sobre os
contextos sociais nos quais essas histórias se originaram e em
como esses contexto..<: restringem a forma de contar tais narrativas.
Se narrar é compreendido como uma prática discursiva, o modo • os narradores produzem dispositivos de orientação que
de analisar a estrutura narrativa precisa ser tambt:m altL·rado. são frequentemente vagos e problemáticos e tendem a
Como consequência, precisamos propor modos alternativos de pedir ajuda a seus interlocutores;
estudar os processos narr.itivos e os elementos estrururais, tais • os interlocutores frequentemente se engajam no escl~re­
6 dmento dos detalhes da orientação e parecem focalizar
como orientaçào. No modelo de amílise <le narrativa de LJbov e
Waletzky, orações e seções de orientação servem "para orientar a orientação em si mesma como um ponto central das
o ouvinte em relação à pessoa, ao lugar, ao tempo, e à situaçào narrativas;
7
comportamental". Seguindo essa caracterização, poder-se-ia • as negociações sobre a orientação se tornam ocasiões para
ficar tentado a examinar a orientaçào em todas as narrativas, construir alinhamentos, no sentido de que revelam com-
como se; preensões compartilhadas (ou não) das experiências;
• a maneira de os narradores usarem elementos de orien-
• fosse controlada e administrada pelo narrador, com o
objeeivo de dirigir o ouvinte; tação e os tipos de dispositivos escolhido: por eles
estão relacionados ao grau de controle que tem sobre o
• constituísse um tipo de fundo de cena para a ação principal próprio deslocamento que experienciaram como pessoas
no mundo da história.
na vida real.

Contudo, se consideramos as ligações entre as estruturns <la


história e a construção de experiências dos narradores, pode-se
observar a necessidade de examinar a orientação como um
ESTRUTURA DOS RELATOS
elemento da estrutura que está sujeito a uma grande variação,
dependendo das circunstâncias relatadas na história e elas os dados analisados são constituídos por 13 relatos sobre
relações entre narradores, interlocutores e o mundo da história travessia de fronteira, explicitados em entrevistas sociolinguís~icas
apresentado. Nessa perspectiva, a orientação não aparece como com imigrantes mexicanos sem documentação, que col~te1, na
um elemento dado, mas como um objeto de investigação. maior parte das vezes, em colaboração com outro entrevistador,
Ismael (um jovem mexicano também imigrante), como parte d~
As narrativas que apresento neste trabalho problematizam a
defiruça-o de o · ta - d Labo -· um projeto de pesquisa sobre a construção discurs~va -~ id~nti~
0
nen çao e v de vanos modos. Tendo em vista
dade de imigrantes mexicanos para os Estados Unidos. Relat?5
fato de que essas narrativas focalizam o deslocamento e tratam
de pr~gonistas no mundo da história que estão frequentemente
narrativos têm uma natureza explanatória uma vez que seu ob1e-
?eson~ntados, a orientação, no nível do gerenciamento do mundo tivo é prover uma ilustração de como certos eventos oco~eram.
Nesse caso os relatos respondem a perguntas do entrevistador,
u~.teraaonal, nonnalmente aparece não como material que fun-
tais como: ;'Como você chegou aqui?", "Como você explica sua
etona como pano de fundo tanto para narradores/ouvintes como
Para figuras no mund da h" - · presença aqui?" Esses textos podem ser descritos como nar:'niv~s
. o tStona, mas como uma ocasião para
narrado~es e ouvintes negociarem e construírem compreensões já que que seguem o princípio de Labov e de Waletzky de 1unça~
temporal,9 que indica que as narrativas apresentam, pelo menos,
compartilhadas das experiências.
A análise propo ta · d. dois eventos passados ordenados em relação ao tem~o, um em
. . _ . s m ica que o grau de compartilhamento e relação ao outro, mas que diferem de histórias, no sentrd~) ~ie que
negoci.açao da onentação nas narrativas indicia papéis socíais e
re~~
não se desenvolvem em tomo de um único ponto avahatJVO.
pürcontadores e ouvintes. Também rn0t.tra como
os dispositivos de ori ta - d Os relatos são organizados temporal e espacialmente. Des~n­
en çao usa os pelos narradores indicam
~de ªP~, reconstruir e representar a experiência pessoal
volvem-se ao longo de uma linha temporal, mas tamber:1
transcorrem ao longo de uma série de pontos espaciais, mars
SOcial. Foco mmha atenção nos seguintes fenômenos;
86
ou menos ordenados, que podem ser usados para descrever 0 , ~, t-·er d u'vidas ' em relação aos detalhes sohre
ser incapaz, ou parece
deslOC'amento dos narradores do México para os Esrados Unidos.
0 tempo e o espaço.
Assim sendo, pode-se questionar o saber já estabelecido sohre
"1 o papel do tempo e do espaço na narrativa. De falo, enrre os
Veja os seguintes exemplos:11
dispositivos de orientação, o tempo tem sido tradicionalmente
1. Carlos
visto como intrinsecamente constitutivo de narrntivas: w a primazia
E não pudemos passar por esse caminho,
do ordenamento temporal tem sido aceita como um principio
básico da organização narrativa tanto em narratologia 11 quanto fomos rejeitados duas vezes, .
na linguística.12 Contudo, como veremos e como outros pesqui- - -,
e, entao, na segun da vez nos levaram
. para o outro lado ~
sadores13 têm indirndo, o espaço desempenha um importante , como · como um tipo de DQ.
;ligo assim
papel estruturador nas narrativas analisadas aqui. não me lembro como se chamava,
Os relatos apresentam uma grande variação em termos de
e cruzamos. a linha deste
· modo de noite, _ 1s
tamanho, organizaç.ào, especificidade e grau de completude. - era n01'te alta , estava na hora de anoitecer.
nao ,
Essas variações estão relacionadas às diferenças de experiências
de travessia, já que os imigr.rntes cruzam as fronteiras de modos
2. Sergio _ A • ,,

variados: alguns entraram nos Estados Unidos utilizando docu-


F , amos lá em um trailer por um dia, nao, tres dias la.
mentos falsos, fornecidos por contrnbandistas; outros atravessa- ~ d'
Em um trailer onde eu digo que o coiote nos ezxou.
ram o Rio Bravo; outros cruzaram, a pé, regiões de fronteirJ sem
vigilância. Alguns relatos são constituídos por pequenas histórias
que narram somente a travessia no ponto de checagem de docu- e sem dinheiro e sem nada,
mentos na fronteira e a viagem para a região da cidade de todos nós lá [morrendo] de fome, certo?
Washington; outras narrativas incluem relatos sobre vários dias,
Até que o coiote veio às cinco da manhã às quatro ou algo as-
ou mesmo anos, recontando os eventos que acompanharam a
sim, e nos entregou a outros, não nos deu nada para come~,
viagem dos protagonistas do México para a área de Washington.
.
nos entregou a outros co10tes d e modo que fomos donmr
O modo por meio do qual os relatos estão estruturados também
. m
na - lá onde eles nos d ezxara .16
está relacionado à vontade dos entrevistados de contar suas
experiências e à consequente natureza performativa ou não das
próprias narrativas. 3. Juan
Ficamos lá esperando, (.) e então, chegou (.)
lá todo mundo já ia tomar seu caminho,
ANÁLISE
ou seja, eles vieram nos buscar, ..
VAGUEZA NA ORIENTAÇÃO
e nos levaram ª--~!illª-J~~-~mnJu~nm1Lnl2QC)~\·Qo~a<lg~o~n~a~sL~re~d8c~)n~c~le~z~J=s~.
uma casa e l"

E NAS I\~GOCIAÇÕES INTERACIONAIS


eu não sei se é San Isidro, não me lembro, (,)
nos levaram para la., 1lOS colocaram em um quarto _(.)
O primeiro desafio que esse tipo de narrativa acarreta em · o e eu .1
e os únicos que chegamos foram meu pnm
relação a uma concepção de orientação baseada em uma histó-
ria prototípica, na qual o narrador está encarregado de dirigir o
ouvinte, advém de uma grande presença em tais relatos de ele-
mentos de orientação muito vagos, nos quais o narrndor parece
4. Omar Nos rehotaron /nos rejeitaram
Depois o coiote no..-; levou a, ou seja, se chama (.) rxu~i S:in Isidro, Nos dejaron /nos deixaram
para um apartamento ddes, Nos metieron /nos colocaram
e lá nos mantiveram por um dia, Nos tuvieron ahí / nos mativeram lá
também para nos preparar sobre o que fazer, Nos ihan a detener /iam nos fazer parar
ou seja, em todo o caminho, onde iam nos parar, Llegaron por nosotros y ya nos l!evarrm / víeram nos buscar
o que precisávamos mostrar, e tudo isso e, bem, ent3o depoi~ e nos levaram
de lá fomos para: como se chama: (,}
Não me lembro! Os sujeitos desses verbos são ambíguos: Alguma~ ~~zes se
e à polícia de fronteira, outras, aos trafteantes, mas sempre
A: Bem, não importa. 18 relerem s na posição de contro1e d as açoes.- To<l . e ·sas
as s. .
co1ocam o Utro d- h' - , .,
-
construçoes apre sentam os protagonistas
· · no mundo a 1stona
d .
Esses fragmentos demonstram como os narradores inseriram narradores são identificados como nos (marca os
com que m Os ·d · lad
em suas narrativas detalhes sobre o tempo e o espaço que são
como pronome o blíquo) , e não , fornecem nenhuma 1 enm Ih · e.
frequentemente vagos ou apagados <la memória. Por exemplo. ífica aos atores reais, que são tão apagados como os deta es
Carlos (1), Juan (3) e Omar ( 4) não se lembram dos nomes dos espec - 1
de orientação. Assim, vagueza na construçao e e tempo e ·_
espa~·o
1ugares. Sergio (2) se refere ao tempo que passou em um trailer, é a contrapartida linguística da perda de controle em rel~çao. ao
!j · mas não sabe se foi um dia ou se foram três que ele passou lá, e movimento que caracteriza o atravessamento de fronteira par.1
~ ..
[,
também não estava claro onde o trailer estava. Na sequência, de
esses imigrantes.
:!1_ .,
se refere ao fato de ter sido deixado em algum lugar parn dormir,
{
i e o lugar é caracterizado como "lá onde o coiote nos deixou··. Se
examinás.semos individualmente cada uma dessas descrições, sem
NEGOCIAÇÃO EM RELAÇÃO À ORIENTAÇÃO
referência às experiências do grupo sobre as quais as narrativas
nos infonnam, seriamos tentados a considerar esses narradores
Outra característica desses relatos é que a orientaçào é freque~-
como pessoas desatentas. Contudo, quando lembramos que essas
narrativas são relatos de perda de controle sobre deslocamentos temente negoc1aLW.
• ,..i"
com os m· terlocutores · As negociaçàes
. . estao~
relacionadas não apenas à inabilidade de prover det~lhes ~e
dessas pessoas, podemos compreender como a orientação p<t!d
·
onentaçao,~
como tambe' m à importância de encontrar. onentaçao
. , ..,-
narradores e ouvintes se configura mais como um problema a
para a ação complicadora nas narrativas. As..<;1m, a onent~ç~o
ser resolvido do que um elemento de pano de fundo, ou seja,
não aparece como um elemento periférico, mas, ao contrano,
um elemento dado. Os narradores parecem fazer um esforço de
memória para reconstruir urna experiência que de muitas formas como um ponto de foco . Tal foco , por ·sua vez ' demonstra .como..
· aç-ão nas representações coletivas está muito~ assooada
a migr. _ . a
não está clara para eles, enquanto os ouvintes intervêm de m<Xlos
variados ou para ajudar ou para pedir mais esclarecimento. capacidade de atravessar a fronteira. Veja as sequenc1.as u:~cr~~
clonais abaixo, nas quais tanto os narradores quanto os om mte:,
Vagueza no provimento de detalhes de orientação acompanha
se orientam em relação ao cruzamento da fronteira como ponro
indicadores linguísticos de falta de agenciamento e perda de
controle. Observem-se as expressões verbais em itálícos: da narrativa:

90 91
5. Raquel 7. Sílvia
~: Bom, conte-me um pouco sobre sua chegada. Corno foi Ou seja, não foi nenhum problema - não posso dizer que
isso? atravessamos a montanha correndo ou que a pessoa que se
encarregou disso quis se aproveitar da gente, ou seja, foi tudo
R: Como foi? Ou seja, ou seja decidimos vir para cá porque
tranquilo. Não houve nenhum problema, com exceção do fato
como o país estava em crise,
Je que eu fui rejeitada, entào ficamos um pouco nervosos.
ou seja tínhamos um salário, mas já nào em mais o mesmo Mas tudo foi tranquilo. Não houve nada.
21

era suficiente pam comer e vestir, '


d~ não era mais o mesmo, então um dia decidimos vir para É exatamente a existência de expectativas comJYartilhadas
sobre o cruzamento de fronteira (que inclui perigo, ansiedade,
roubo e trapaça da parte dos contrabandistas) que faz da travessia
E quer que te conte como foi que atravessamos a frontdra?
um evento que merece ser narrado.
·, A: Se você quiser. 19 [Segue uma crônica sobre o atravessa-
' ~- Tal série de expectativas explica o foco particular de narra-
mento de fronteira.]
dores e ouvintes na orientação sobre as circunstâncias que
6. Tono levaram os narradores a avançarem no espaço em direção aos
Estados Unidos. Frequentemente, os interlocutores interferem na
A: Como foi que vocês decidiram vir para cá? construção da orientação, ou fazem perguntas sobre os detalhes
T: Bem, foi por causa de um irmão que estava aqui(.), que explicam a...como das ações. Veja os seguintes exemplos, nos
mas eu nunca, nunca tive a ideia de vir aqui, quais eu (a entrevistadora) faço perguntas sobre a localização
mas .um dia eu disse que ia tentar, certo, e tentei, certo, (.) física da ação:
eu Vlffi.
I: Por causa de C. (o nome do irmão). 8. Sergio
L: Então você foi ao rancho, certo? Nos Estados Uni[dos.
T:. uh~, sim e (.) agora. quer que eu conte como vim a
pnmerra vez? S: [uhm
A: Sim, se você quiser, me conte. ~ .
L fiquei trabalhando no rancho um, somente um mês e meio
20 ( Segue uma cronica sobre
o atravessamento de fronteira.] [trabalhando.
E: ... [trabalhando.
Essas sequenc1as
~ · revelam como entrevistadores (A e l) e nar- S: Mas no rancho estive escondido não nas montanhas!
radores
_ . compartilham
. uma representaçao - na qual a migração
A: E o mesmo lá ainda no sul do Texas?
esta discursivamente
. conecta d a ao ser capaz de atravessar
a.-fronte1ra. S: Uhm. em Banderas Texas .
~ , . .A questão "Como 101 c · que voces~ dec1d1ram
· · vir para
c:a? e 1med1atamente interpretada como ~ Como você conseguiu A: Compreendo.
atravessar
-~ .a fronteira'"
· · Mas. atravessar a frontetra. é também uma S: Perto de San Antonio.
expenenci.a
. carregada de ti'<l , .
sen os construidos mtertextualmente A: Compreendo.
p_or melO de relatos repetidos e compartilhados que não sÓ
circulam S: Estive trabalhando lá.u
'd· V entre
. os imigra n tes, mas tambem , são focalizados
, na
mi ia. e1a a. observaçã
_. d Síl ·
o e t via, que ao falar sobre como, em No Exemplo 8, tento acompanhar o percurso da viagem de
seu caso, fo1 factl a travessia
· , manuesta ,e expectativas subjacentes Sergio até as cercanias da ci<laJe de Washington, ao solicitar que
comuns sobre essa experiência:

92 93
especifique a Jocalização do rancho onde ele trabalhou lkpois
de atr.i.vessar a fronteirn. 10.Sílvia
S: E então eles nos reuniram lá O .,
9. Leo
ã
ent o nos levaram - tivemos que passar pelo o que foi.
_ ,
L: Sim, foi assim e de 1á estivemos em Reynosa, de oni ,,
'hus para San Diego? me parece que era uma zona -
A

e foi de lá que pulamos para cá. acho que era uma área niral,
A: Uhm, I: Deve ter passado por L..J .
L: Atra:ressa.m.os__as.Jllontanhas. S: Passamos por uma zona[. .. ] íamos para San Diego.
A: Não o riQ? 1: Então não foram por Los Angeles?
Não há rio lá? Porque - foram para San Diego?
L: Sim há um riQ. ah sim,
. mas vao ~ e depois de San Diego para
;- a San Dieno
; ~.
A: É que nào conheço a geografia muito bem. Los Angeles.
(í; L: Sim há um rio, mas atravessamos uma comporta. 23 S: Para Los Ange l es. 24
·~ -

N t que tanto no exemplo anteríor quanto no seguinte,


Em (9), peço a Leo para falar mais sobre o ponto de travessia
1 o1eindica, ter conhecimento d os 1ugares e .das rotas , ante-
. .
usado por ele e pelos outros imigrantes que o acompanhavam e
srnae 1 s vezes a resposta do entrevistado, algumas
sobre a configuração geográfica da área. O Exemplo 9 também cipando, ª. gumdao-a para
, , , m·m enquanto mostro minha falta de
mostra como as perguntas e as negociações sobre lugares, além vezes exphcan 1 ' , .

de serem ocasiões interacionais, onde narradores e ouvintes conhecimento sobre os mesmos top1Cos:
definem a orientação em relação às ações no mundo ela história,
11.Leo
também se tomam ocasiões para definir e delinear papéis diferentes
dentro das entrevistas. Quando a orientação sobre lugar não estava L: Há uma casinha,
dara, minhas perguntas ou comentários me posicionavam como A: Uhm,
aJguém que não compartilhava tal experiência, como pode ser L: Onde há um vigia americano,
visto no Exemplo 9, ao passo que Ismael (o outro entrevistador
que ninguém passa e tudo,
que também era imigrante) era posicionado e se posicionava
como alguém que conhecia a experiência. Esses posicionamentos A: Uhm, mexicano do lado mexicano,
eram baseados no compartilhamento (ou não) de infonnaçào e I: Não [americano
ajudavam Ismael a confirmar seu alinhamento com os entrevis- L: [Não desse lado.
tados, já que ele se apresentava como um membro do grupo A:Uhm.
de imigrantes. No exemplo seguinte, retirado de uma entrevista
L; Esse lado.
com Sikia, Ismael tenta ajudá-Ia no provimento dos detalhes da
orientação, mas ao mesmo tempo indica para ela seu conheci- A: Uhm. 25
memo sobre rotas para atravessar a fronteira. Essas indicações
são usadas por Ismael como ocasiões para se alinhar com Sílvia. Desse modo, o gerenciamento da orientação na na~tiva
como um participante do grupo de imigrantes. d . t o como revelador e, ao mesmo tempo, como cna~or
po e ser vis i· rehç· o
de papéis locais e globais diferentes (não som:nte e a . ' .'_.1 -
entrevistador-entrevistado, mas também da relaça~) ~nrre ~~~1~1
pante do gnipo e não participante
. . ) , u1 ffl
, vez. que urngrant<:s st:m
documentação compartilham práticas e infonnaçào que, embnrJ 13.Ciro
não sejam do conhecimento de outros, são de seu interesse. ós estávamos) bem contentes, certo? Indo almo~·ar e tudo
le n 1 l p•i1
[...}"E já estávamos no outroa( Q.

,l t a referência ao rio Bravo nessas narrativas é


A CONSTRUÇÃO SOCIAL DO ESPAÇO Igua men e, l - (
ruída por meio da expressão definida e no o
sempre conSt ·
'. ) 't ando como a concepção de espaço se re 1aoona a
A orienta~'ào revela a existência de compreensôes e conheci- no, mos n . . . .
. t~ "as scJct'ais Ao apresentar o no Bravo como o no, os
mentos compartilhados, além de modos cornpa1tilhados de falar circuns <lOCI • • . • ~ • , , , • , •. ,
. · d'cam para os ouvmtes a 1mportanc1a de atravessar
sobre o tempo e o espaço. Isso é claramente o que ocorre em inugrantes m 1 • 'f'
· d d e a significância social <lesse no espcc1 JCO.
a fronteira na an o
relaç-lo à fala sobre fronteira, um espaço altamente simbólico no
relato de experiências de imigração para os mexicanos. A fronteirJ
é sempre apresentada como uma linha imaginária que existe parn 14.Sergio .
S: Quando atravessei a fronteira, pelo rio, [porque eu atravessei
ser atravessada. Os dois países são, portanto, representados como
lados de uma linha que separa um do outro, e os imigrantes estão o rio,
ou neste lado ou naquele lado da linha. A travessia é frequen- A: [uhm.
temente representada simbolicamente como um ato de "pular", ' 28
S: Eu fui assalta do !!Q..J1Q.
mesmo quando se dá através da água. Essa referência pode ser
consttuída em relação à posição atual do falante ou em relação 15.Ciro
à sua posição no momento da travessia. Assim, a construção de em dezembro, no no último dia de dezembro, quando ama-
cada lado como aqui e lá se altera de acordo com a apresentação nhecia 0 ano novo, atravessei o rio assim, e nos trouxeram
dos narradores de um si-mesmo idêntico ao do personagem <lo para cá, até Houston, em Houston.2<;
mundo da história, no momento em que a história está sendo
contada. Observe os exemplos seguintes, nos quais os narradores 0 úníco rio que existe na travessia da fronteira é o ri_o ~ravo,
apresentam construções diferentes de lados. No Exemplo 12, os e sua centralidade como um ponto geográfico de trave.ssia e clara
personagens que estão no México se referem aos Estados Unidos no modo como os ímigrantes mexicanos são descntos com o
como o outro lado, mas no Exemplo 13 os personagens estão termo desrespeitoso mofados (os costas molhadas).
felizes, porque já estão no outro lado, onde o outro lado nào
mais indexicaliza seu ser do ponto de vista espaçotemporal, mas TEMPO E ESPAÇO: VAGUEZA E PRECISÃO
seu posicionamento (e possivelmente o do narrador) em relação
ao país onde eles estão. Vimos que narrativas de desorientação sào carac~erizac~as por
muita vagueza no fornecimento dos detalhes <la_ onenta~·a~. Tal
12.María vagueza explica certos tipos de reação dos .ouvinte~ (t:us ~º 111-~)
sequências de aceitação ou esclarecimento). Se examu~a~nos es..~
e em tal circunstância não sei, eu creio que a ajuda de Deus
questão do ponto de vista do narrador, compreendtr: 1~1 os que
ou o desespero, certo? Uma pessoa chega e me diz: "Olha,
os narradores colocam em ação suas próprias estrategias_ para
vocês vão para o outro lado certo?" E eu digo que de fato meu
prover pontos de referência de espaço e t~·mpo. En~ n:~~~ça~> -~º
marido está aqui em San Isidro, está nos esperando, e como
você vai fazer parn atravessar seus filhos?i6
tempo, um aspecto interessante das narra~1\·as t.le d~~o~t~ ~r.•11..:
1
º
é o fornecimento de elementos temporais muno tspcuti1..os e
detalhados, juntamente com outros muito vagos. Os narrc11..~ores.
que frequentemente perderam o controle do tempo, se rderem

tp
96
de um modo muito detalhado ao início de suas viagens com
• de El Oro para a fronteira;
expressões ligadas ao dia da semana, ou mesmo à data na qual
os eventos ocorrer.:1.m: • da fronteira para Nova York;
• de Nova York para a cidade de Washington.
16.Toõo
i! então caminhávamos olhando a ponte,
era uma - era uma quinta-feira.
ore lato esta, <l'1vi'di'do em episódios
h d arrat;vas
trec os e n • · nos' quais há
·
pelo
• · Epísô<lios
·
menos uma
prototípícos
_
ac.;ao comphca-

são
..
·
dora e uma reso 1u Ção . Os, episódios
.,. sào marcados - por mu . , anças
.. , l
' j. não me lembro do anp, no tempo e no espaço . O espaço tem uma . funçao organizaciona . .
l'
r mas era uma Qliinta-feira, d ·nante nessa narrativa no sentido de que consutu1 um
pre om1 · . d . - · d'~ t xlo
estávamos caminhando olhando a ponte parn pular para cá, onto de referência para a ação comphca ora .. atra"~s ~. (
p l O espaço e o tempo podem ser combma<los, mas, fre-
ai nesse momento, o re ato. · . d · - --
quentemen te, O espaço se torna o único elemento e onentaçao e • .
uma patrulha do México vem, e em a 1gumas ocas10 ,, .· - es , constitui a ancoragem ~ . para a re1erenc1a
e nos para.30 d~ tempo. O relato começa com uma referencia de tempo:
Observe o exemplo de Ciro novamente: 18.
Em um dia de loucura não fui à escola,
17.Ciro
e foi quando com dois companheíros vim para cá.32
em dezembro, no no último dia de dezembro, quando ama-
nhecia o ano novo, atravessei o rio assim, Desse momento em diante, a referência de espaço se tor~a
e nos trouxeram para cá, até Houston, em Houston.:1 1 da
ca vez malS . portante na· orientação, particularmente
lffi.
f na seçao
·,
do relato em que Leo descreve como atravessou a ronte1ra e
A precisão do inicio contrasta claramente com a vagueza das caminhou durante 13 dias pelo deserto do Texas. _Nessa_ parte
descrições em outras partes dos relatos. Isso ocorre particularmente da narrativa, podemos ver mais claramente a_atuaçao rec~pr~a
em relatos nos quais os personagens viajaram por percursos longos e do tempo e do espaço nas seções d~ orientaçao, que funcionam
complicados para chegar aos Estados Unidos. A relação entre orien- como prelúdio para as ações complicadoras:
taçào temporal e orientação espacial se altera dramaticamente em
relatos que tentam reconstruir experiências complicadas nas quais 19. Leo
os imigrantes perderam o controle de seus movimentos. Como E a primeira vila a que chegamos
exempJo, veja a narrativa de Leo para ilustrar as estratégias de naquele dia era de noite
orientação usadas por imigrantes que experimentaram esse tipo
de problema. Solicitei a Leo que contasse como ele chegou à
região da cidade de Washington e ele respondeu com um relato ainda estávamos lá pela fronteira. . .
longo (rerca de duas mil linhas de transcrição), que começa quando e entãQ vimos um caminhão que vinha, mas não era da pohna
e1e e quatro amigos deixaram sua vila, El Oro, em uma van. da fronteira. 33
para chegar à fronteira, e termina com sua chegada na área de
'l'ashington vários meses mais tarde. Há três panes na narrntiva Na rimeira parte do relato, o tempo se toma entrelaçado com
que são defmidas por pantos que marcam o início e o fim: o espa~o.Leo começa a ru.1rrdtiva com um ponto inicial n.o tem_po
que coincide com a ação física de atravessamento da trontelf:.i.
Assim, o tempo começa com um ponto espeetTico m ) espaço . . .

98
rY.i.í em diante, Leo organiza a narr.i.tiva em volta dos pontos de A seguir, no Exemplo 23, Lco expressa a referência de tempo,
cheg-Jda e partid~~ no espaço, que alg:um:1s vezes s~io rnmpk- usando movimentos no espaço como um ponto de rcferêncía (o
menrados Por me10 de momentos temporais. Em todo 0 rcbro dia depois de sair de Rivera):
os pontos no espaço e nas açôes, definidos pt'f o rn< JViJnl'nto:
constituem a espinha dorsal da narrativa. 23.
Nos exem.plos seguintes, as ações complicadoras s;io enqua- L: Ou seja, ~m Rivera já quase saindo ç.le Rivera (,)
dradas por onentações definidas pelo movimento de enrrar na vila, ~uase saindo de Rivera, no dia seguinte, no outro dia,
de atraves..<;ar a estrada:
estávamos pedindo comida,
20. e-1lisso entramos em uma rua em Rivera, mas na vila, certo?

E..nis.."O chegamos ao primeiro povoado ... A: Uhm.


e então, quando íamos entrar no povoado, L: Entramos em uma vila e fomos bater na porta de um senhor.37
nisS(} um hispânico nos viu, 34
Esses exemplos mostram como a perda de controle da orienta-
21. ção resulta em uma estrutura de história na qual o espaço toma-se
mais importante do que o tempo. Contudo, o tempo enquadra
E assim seguimos caminhando o fim dessa parte do relato, como se simbolicamente concluísse
'
até que chegamos em Rivera, exatamente em Rivera. momentaneamente a experiência de desorientação.
Chegamos, A seção do fim da história:
passamos - ou seja, quando íamos passando em uma nia
e falamos com uma senhora 35 24.
Vínhamos assim,
A sucessão temporal é frequentemente implícita no uso do eu acho que a senhora sentiu pena da gente ou talvez quem
marcador discursivo y(e), ou expresso em formas que transmitem sabe que
falta de precisão (
, como en eso naquele ponto naquele momen- ((mudança de voz)) "venham rapazes!" @
to). ou por meio da comb· - d .'
~ _ maçao e tempo mais espaço: luego de I:
alli (entao de lá) e da
@@
.. ~ ...
. · a vez mais, Leo usa referencias de espaço
como o p · l l · Ela nos chamou: "ok, vocês podem ficar aqui na casa e
. . nncipa e emento de orientação. Ele faz uso de uma
sene de estratégias que 0 a·uda d f' . tudo,"
J m a e 1rur momentos no tempo.
Por exemplo ele desta d" , lá ficamos nesse povoado por cerca de três meses. 58
. ' ca certos ias espec1ficos que estariam
perdidos na memória neb I d · · . .' .
u asa e caminhos infm1tos, como dias
ou momentos que vieram a r d .
. . n es ou epo1s de um evento, ou de
determinadas ações: CONCLUSÃO
.......
')J
Neste texto, tentei mostrar, ao examinar a orientação, como
~E_,e~n=tá='o"'--!.bc~·m!!..1d8e<-h!Iá, bem caminhando e caminhando. a estrutura da história se relaciona a condições específicas de
~ntào de.Já eu te d. . produção e recepção das narrativas. Indiquei como a falta de
tgo que um q1~ um amigo meu
ikpois do Que aconteceu e 1 . ' . controle da orientação, da parte dos narradores, está relacionada
--- om o porn ){)no <lia sqrnmte, à falta de controle da própria experíência no mundo material, e
um amigo meu começou ,a d esma1ar,
. .
ccrto?3"' como a orientação descontrolada é típíca de narradores cuja
100
101
experiência foi de muitas fom1as desa ro. . .
apontam a nece ·d· d. d , . • rp 'ljJnada. Esses elementos LABOV, 1972; OCHS; CAPPS, 2001.
sst <1 e e se analisar a · , , ,;- 12

Processo. Uma visão da oriemaçào como one~ta~~o em tt·rmos de 1~ HERMAN, 2001.


a uma visão da oriemaçào co d d construída, em oposi~·;!o
da narrativa para narrado mo a ~muda o foco da <.'strULura M Os seguintes símbolos são usados na transcrição: O • pausa perceptível;
res e ouvmtes e ao .. [.enunciados sobrepostos,[ ... ] .. incompreensível,@@@ .. risos, (( ))
para os contextos. Assin1 . . , mt smo tempo, • comentários do autor da transcrição,
·' • para Cl!".tctenzar as . ·
constn:x::m a exper1·e~nc· d ' . n.irrat1vas ciue
ia e grupos ma · 1· H Carlos: y nos pudimos pasar así, dos veces nos rehotaron, y este, y ya la
tomar cuidado com . , rgma izados, precisamos segunda vez nos pasaron por, un sí como 1 como una espccie de río, no
o uso de c.uegorias est l l 'd
estrutura da narr.at'1 , fi , , a )e ec1 as sobre a me recuerdo como se !lama, y este, cruzamos la línea así por la noche,
os membros desse

e 1car atentos aos
..
. , ,.
recursos especrfICos que no era muy noche, era a punto de, de anochecer.
s grupos utilizam em int . , , , ..
com o ob1'etivo d . er.1çoes especihcas l6 Sergio: ahf nos quedamos en una traila un día 1 no tres días ahí. En una
e ver como ctrcu ·tã · ·
nelas articuladas. ns nc1as macrossociais são traíla donde le digo que el coyote nos de[ó,.,. y sin dinero y sin nada,
todo ahí {apelándonos] de hambre ,:no? Hast.a que luego llegó cl coyote
como a las cinco de la manana, cuatro, por ahí y nos dío a otros, no nos
dio de comer, nos dio con otros coyotes para que nos fueramos a dormir
NOTAS en - allí donde nos dejaron.
11 Juan: allí estuvimos esperando, (.) y ya, ya llegó (.) allí toda la gente
t Este rexto é uma Versão d . . . ya se iba a ir por, para su lado, o sea ya llegaron por nosotms, y ya nos
space and disorien•"a·on m~ um art~o mtitulado "Crossing borders: Time l/evaron a una casa, en un pueblito cercas, no sé si sea San Isidro, no me
"" narrat1ve" bl · d • acuerdo, (.) nos /levaron abi, nos metieron a un cuarto (.) y nada más los
n. 13 (2), p. 1-23 2003 Foi· trad .d ' pu ica o em Narrative lnquín•
' . UZI O do O . . J , .-'' que, !legamos, fue mi primo y yo.
Lopes. ngma por Luiz Paulo da Moita
2 Examinar a . is Omar: después e! coyote nos llevó a este, o sea se !lama, ( .) a San Isidro,
narrativa como texto im r a un departamento de ellos y ahí nos tuvieron un día, este también parJ
veículo para recontar eventos ou pica estudá-la como um simples
ª
f>es.soa.I, ignorando des.se od para representação da experiência preparamos y qué hacer, o sea, en todo el camino, que dónde nos iban
lado, considerar a ~rrac1·,~m o, sua ancoragem contextual. Por outro a detener, qu[e teniamos que mostrar, todo eso, y ya este, pues de ahí
f, de ,. como modos· 'f este saJimos este a: ~cómo se llama? (.) jno me recuerdo! A: Bueno, no
omia pensamento Tal .,;e;; , b igm ICa concebê-la como uma
faz entre · ·"""ºe aseada na disr - importa.
mooo narrativo e científi De mçao que Bru ner (1986)
O modo cientifico é baseado c~. , _acordo com esse autor enquanto 19 A: Bueno, cuéntame un poco como llegasre . .:Cómo fue que ocuníó esto~
narra · , ..,- no raciocm10 lóg' .
. tno \. ... ) tem a ver com bo h' , . ico e na exphcaçào, o modo
. '
R: iCómo fue? O sea uh o sea decidimos venimos para acá porque, como
hiscõri.v..-
~.....,, nos quais se pode a~-'·
as istonas aç-
' oes envo1ventes relatos estaba en crisis el país, eh o sea teníamos un sueklo, pero ya no era lo
'Verdade' ' ( ) '-•cu1tar (embora nà0 . '
lfOS ... e se esforça ( ) , seiam necessariamente mismo, no nos alcanzaba más que para para comer para vestir más que
~ e no espaço(...)~ (Bruner, 19s6~- p:i~.locahzar a experiência no rempo bien vestir, ya no era lo mismo. Entonces un dia decidimos venir para acá.
. FAIRCLOUGH, 1989. 1,Y guieres que te q1ente cómo fue gue pasamos la fronrera? A: Lo que ni
quieras.
• DE flNA, 2000; 2003a.
;);) A: Bueno. ~'Cómo se dió la, la cosa de venir acá? T: Ah, por un hennano
; JEFFERSON, 1992, p. 767-768. que ya tenía aquí O verda<l, pero yo nunca, nunca renía la idea de \·eninne
< HERl;.fAN' 2002. pa'ca, sino que dije un día voy a probar, verdad, y, verdad. prohé y (.)
me vine. 1: iPor C.? T: Aja, si, y este(.) ahora quê, ile cuento cómo me
" L<\BOV; W ALETZKY, 1%7, p. 32. vine la primem vez? A: Sí, si quiere cuémeme eso.
DE FINA, 2003a. 21
O sea no fue problema - yo no puooo decir que pasamos por el monte
conien<lo, o que la persona que se encargó de eso se guiso pasar de listo
9 lABOV; W'ALETzKY, 1%7, p. 25.
con nosotras, o sea fue de lo más tranquilo. No hulx) ningún prohlenia, sako
rn RICO
n llER, 1984; BROCKMEIER, 2000. porque a mi me regresamos, entonces si nos pusimos un poco neffio&1s.
Pero todo fue tranquilo. No hubo nada.
GE!\i'ETTE, 1980; PRINCE, 1982.

102

103
~1 y así seguimos caminan<lo, hasta que !legamos a Rívcrn, a mc.,-ro Riv~ra;
u L: Luego ya pasaste ai roncho, «no? En estados Uni [dos. S: laha. estuvc en . 'tsamos este - o sea cuando ihamos pasando una calle, ,no.
el rancho un, un mes y medio nada más [tr..lbajando. E: (trahajamlo. S: jl'ero L1cgamos, P• , · · · '
en el. rancho estuve encerrado no en el montd A: E1 d mismo, iall:í todavia Yuna seflom le decimos.
eh en el sur, en Tejas? S: Aha, en Dandera Teias, A: Ya. S: A un htdo de San .. • ,1c allí ya este pus camine y camine. Luego de allí ya te <ligo~
,.. Luego pl1s ·"º mío· ' después
' · de e~ dei pa l omo a1 otro e1·ia, un amigo
·
~.A: Ya. S: Ahí estuve tmbat..tndo. día este un am1,., . ·_ · · .
;;;k) este se empezó corno a <lar desmayos, ,:no~
.u Si así fue y de allí estt.1vimos en Re~">a, y allí fue donde le brincam( )S para
ad. A: Uhu. L: Por la, por el monte. A: ,:No por el rio? No hay rio alta? fa • . en Rivera ya casi salien<lo de Rivera (.) ya ca~i salícndo de Rivera
~~)S0 :::·.
37
que - L: Si hay rio. A: Es que yo, la geografia no me la se muy bicn. L: ai otro <lía, al otro día andamos pi<lien<lo. comi~, y en ~ nos
Si hay rio, pero este nOS1:.xros pasamos por una compuerta. mctimos por una calle ya en Rivera, pero dei pu:bhto, ~nof A: Uhu. L. Nos
metimos a una calle y le fuirnos a cocar a un senor.
~ S! y ya nos reunieron alli, (.) de.-pués nos llevamn - tuvimos que pasar ~que
fue? fP1X camlón, a San Diego? Me parece que era un zona - allí h:1y una •• y ·. m )S .,, • y yo creo la seftora !e <lio lástima o quíen sabe qué,
,,, a vema e • ....81 z)) umuchachos vengan'"@ I:@@ Ya nos liamo:· •no se
zon.a rural creo, 1: Oebe de haber pasado por l. ...JS: Pasamos por una zona ((mu d ança d e vo · , · , ·t . ,
l.J ibamos a San Diego. I: (Entonces no fueron a I.os Angeles? (Fueron a S;m pueden quedar aquíla casa y acá," alh nos quedamos en e;;e puc )11to como
Diego? Ah si. pero van a San Diego v luego <le San Diego a Los Angdcs. tres meses.
S: A Los Angeles.
25 Hay una c:;i:,ita, A: uh, L: Donde \'\'acha un gavacho, que na<lie pase y aca,
A: mhm, Mexicano del lado mexicano. l: No !gringo L: [No <lel lado de aca.
A: Ah. L: De aca. A: Uhu.
REFERÊNCIAS
111
Y en una de esas no sé, yo creo la ayuda de Dios o la desesperJción de
uno, lno? Llegó una persona y me dice: ~alga, ,:ustedes van para e! otro
ADAMS, J. Narrative explanation. Frankfurt Am Main: Peter lang, 1996.
lado verdadr Y le digo ,:si de ver.as es que mi esposo está aquí en San BROCKMElER, J. Autobiographical time. Narrative Inquiry, v. 10,
Isidro, nos está esperando, dice y cómo le va a hacer para pasar a sus
niiios? n. 1, p. 51-74, 2000.
21
Bien contemos, tno? A almorzar y todo[.. .} iYa estamos en el otro lado! BRUNER, J. Actual mineis possible worlds. Cambridge: Harvard University

:is S: Yo ruando crucé la frontera, pasando el rio, {porque yo pasé el el rio, Press, 1986.
~ [uhu a mi me asaltaron en el río. S: Quando atravessei a fronreim, pelo DE FINA, A. Oríenration in immigrant narratives: The role of etlmicíty
no, [por que eu atravessei o rio, A: [uhm S: Eu fui assaltado no río. in the identification of characters. Discourse Studies, v. 2, n. 2, p.131-
~ Hasta diciembre el el día último de didembre para amanecer ano nuevo 157, 2000.
pasé por e! rio así, nos trajeron hasta acá, hasta Houston, en Houston.
DE FINA, A. Crossing borders: Time, space anel disorientarion in narr.i-
~ Entooces andábamos viendo e1 puente, eran como - era un jueves, ~ tive. Narrative Jnquiry, v. 13, n. 2, p. 1-25, 2003a.
acuerdo que ano, pero era un jueves, andáb-.unos viendo e) puente para
brinçar para aci, enton's en ese momento, llega una patrulla, de México. y DE FINA, A. Jdentity in narrative: An ana~ysis o/ immigrant di..;course.
nos para. Amsterdam: John Benjamins, 2003b.
~ Hasta diciembre el el día último de diciembre para amanecer afio nuevo
1
FAIRCLOUGH, N. Language and power. London: Longrnan, 1989.
(!J.sê por el río así, nos trajeron hasta acá, hasta Houston, en Houston.
GENETIE, G. Narrative discourse. New York: Corndl Cniversity Press,
:i..; ~71 dia de loco dejé de ir a la escuela. Y fue cumulo con dos compas me
vme para acá. 1980.
50
Y;i este ai prímer pueblo que !legamos ese dia fue en la noche ... t(xlavia HERMAN, D. Spatial reference in narra.tive domaíns. Text, v. 21, n. 4,
esr.abamos alli por la frontera, y en eso vimos una troca que venia ~ p. 515-541, 2001.
no era de migración.
HERMAN, D. Story /ogic: Problems and possil>ílities qf narratit"e. Lincoln:
""' Y en eso !legamos ai prirner pueblito ... y luego pus íbamos a entrar ai
puehlillo, ~ nos vío un hispano. University of Nebrnska Press, 2002.

104
JEFFERSON, G. (Org.) Haroey Sacks. Lectures on conversation. v. 1. ANNA ELIZABETH BALOCCO
Oxford UK/Cambridge USA: Blackwell, 1992.
L'\BOV, W. The transformation of experience ín narrati\'e synrax. ln:
_ . (Org.). I.anguage in tbe innercity: Studies in tbe hlack f.'n~lish
nmuu;ular. Philadelphia: Universiry of Pennsylvanla Press, 1972.

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experience. ln: HEL\f, J. (Org.) .Bs~ys on the verbal and visual ans.
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Seattle/Londres: University of Washington Press, 1967.
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Press, 200 l.

PRINCE, G. NatTatology. Berlin: Mouton, 1982.


RJCOEUR, P. Narrativeand time. Chicago: University of Chicago Press, O SUJEITO DAS PRÁTICAS DO COTIDIANO
1984. E A POLÍTICA DE COTAS
NA UNIVERSIDADE PÚBLICA BRASILEIRA

Neste trabalho, busca-se problematízar a inserção social do


aluno corista na universidade pública brasileira a partir de uma
:.~
análise da dimensão discursiva desse processo. Diferentemente
de outras pesquisas, que se voltam para discursos sobre a política
de cotas, apresentam-se, neste trabalho, discursos produzidos por
sujeitos catistas, ou seja, sujeitos cujo acesso a uma universidade
pública carioca se deu através do sistema de cotas.
A aproximação ao processo de inserção social do estudante
corista na academia é feita a partir da problemátirn da construção da
identidade, mediante análise de um corpus de narrativas produ-
zidas em situação experimental. O foco da análise recai sobre o
fenômeno da avaliação na linguagem, a partir de quadro teórico
de Hunston (1994) e Martin (2000), para quem a atribuição de
valor a determinados elementos de no&-;a experiência social filia-
-nos a detenninados discursos e nos afasta de outros, criando uma
identidade para nós próprios e para nossos interlocutores, como
indivíduos que compartilham o mesmo sistema de valores.
O arcabouço teórico mais amplo a partir do qual se de&..·m·oh·e
a análise pode ser encontrado na Análise Crúica do Discurso, 1
com ênfase na visão de sujeito corno ser social e discursivo; e em
Moita Lopes, pard quem a identidade é ''construída em pr:1tie<1s
discursivas situadas na história, na culrura e na instituiç~io"'. 2

106
realidade social" é afastado pelo reconhecimento de "matrizl's em relação ao seu curso: o que esperava encontrar na universi-
~listórico-dialéticas"9 em operação na constituição do sujeito e dade? Como foi recebido por seus professores? Que dificuldades
do conhecimento: este processo se dá a partir das experiências (se alguma) tem tido que enfrentar? Como avalia sua experiência
vividas e das condições materiais de existência de um sujeito na universidade?"
historicamente loealizado. Os sujeitos são alunos de uma universidade pública carkKa,
Tendo feito essas ressalvas, apresenta-se a afinnaç:lo central à qual tiveram acesso através do sistema de cotas, todos inscritos
ue norteará esta pesquisa no que diz respeito à questão do no Programa de Iniciação Acadêmica de sua instituiç·ão (com
q h 1· . - bolsa da FAPERJ), voltado para o apoio aos alunos do primeiro
sujeito e da identidade: embora se rec?~ eçam as 1m1taçoe~
que pesam sobre o sujeito, rejeita-se ~ v~sao de que o mesm? e e segundo semestres (oferta de aulas de disciplinas instrumentais,
inteiramente subjugado pelas circunstancias que o afetam. Assim, oficinas, atividades culturais e tutoria). Sào pré-requisilos para o
assume-se como tarefa dos estudos da linguagem voltados para a acesso à universidade através do sistema de coras ter estudado
questão da identidade a reflexão sobre a "tensão contra<lit~)ria" no desde a 5" série em escolas da rede pública ou se autodedarar
processo de constituição do sujeito, que passa. n~c:ssanam~~nte negro ou pardo.
pela teorização sobre a dinâmica entre a const1tu1çao do su1c1to O corpus é constituído de oito narrativas, de um universo de
no discurso e o seu "envolvimento prático e material (ou corporal)" 26 alunos inscritos num curso de escrita acadêmica para alunos
com o mundo. 10 de inglês e suas respectivas literaturas, oferecido no primeiro
Essa concepção de sujeito enquanto ser social e discursivo período. As narrativas foram produzidas por homens e mulheres,
não significa o retomo a uma categoria de sujeito "voluntarisca", mas não foi considerado relevante para os objetivos da pesquisa
ou "intencional", ou ainda o retomo a uma visão "subjetivista" do identificá-las com base no gênero.
11
sujeito, característica de enfoques ditos humanistas. O sujeito A análise das narrativas, produzidas em situação experimental.
envolvido em um processo de construção de identidade nào é foi manual e qualitativa, buscando-se, no corpus, marcas de
sujeito origem e sequer o processo de construção de idcntí- avaliação na linguagem, a partir do quadro teórico de Hunston
0
dade é visto como o produto de um sujeito individual: aquele 0994), posteriormente desenvolvido por .VIartin ( 2000). Importante
processo não se dá no sujeito, no seu interior, mas fora dele, a no estudo da avaliação na linguagem é o reconhecimento de
partir de sua exposição aos discursos em circulação no tecído suas diferentes dimensões: segundo proposta de Martin (2000),
social que o circunda e de suas relações práticas e materiais com a avaliaç.10 pode ser codificada léxico-gramaticalmente como
o mundo. Esses pontos, de natureza teórica, serão retomados na afeto (expressão de emoções ou sentimentos), como aprcdaç3o
Conclusão. (avaliação de processos e fenômenos) ou como julgamento
(avaliação de comportamento). Para o autor, o afeto seria uma
dimensão central da avaliação, sendo as duas outras (apreciação
e julgamento) uma institucionalização daquela dimensão: dito de
A METODOLOGIA: OS ESTUDANTES
outra maneira, o afeto poderia ser entendido como a expre::;..-;;}o
El\T\TOLVIDOS NA POLÍTICA DE COTAS da dimensão do aqui e agom da linguagem, sendo aprecíaç~lo
E AS CATEGORIAS ANALÍTICAS e julgamento dimensões mais ~objetivizadas'' da avalia~·~io, que
-~
exigem um certo distanciamento do avaliador. Esta parece uma
Com o objetivo de levantar dados sobre o sujeito corista e distinção importante, que será retomada na análise.
suas práticas do cotidiano em ambiente acadêmico, pediu-se a As questões de pesquisa que nortearam a análise p<xiem ser
alunos universitários que escrevessem uma redação a partir do resumidas nas seguintes pergunt:ts: O que se a\·alia? Como st'
seguinte estímulo: "Produza uma pequena narrativa (em quatro avalia? Em outras pabvras, que demenros da cxperil·ncia soci~li
parágrnfos) sobre sua entrada na universidade e suas expectativas

1 ti
110
-à 0 discursivizados ou trazidos para o seu discurso No exemplo, observa-se o uso de "gostei", que pode ser
do estudante s . d s' Como esses elementos são codificados categorizado como afeto explícito, codificado no próprio verbo.
, m ava1ia o . "
para. sere . te do ponto de visL1 da categoria da avaliação No entanto, "aprendi muita coisa", embora à primeira vista não
, . gramattca1men ,
l exico- " Q d · ensões de avaliação são privilegiadas no
. uagem' ue 1111 ' ·
codifique explicitamente uma atitude, estando mais para um
na l tng • · · d t . acelo apreciação julgamento? Como essl:'s enunciado constatativo ("constato que ... "), pode ser entendido
. doestu an e. •' , . ,
d tscurso d,. ·vos podem ser relacionados a aspectos do como valorativo, em função do uso do pretérito («aprendí"), com
marcadores iscurs1 , , , " l .. , valor de realização, nesse caso, combinado com a partícula de
. - 5 ,...,..ial do estudante na acat emia.
rocesso de tnserçao '-'"" , . . . quantificação ("muito"). Esses dois elementos tomam o enunciado
p t das marcas lingu1sttco-d1scurs1ws de
A ós levantamen o . . valorativo.
p a amostra que constitui o corpus dl:'sta
r· -
ava iaçao
na pequen
.
. .
d as às condições imediatas do contexto Apesar dessas dificuldades, procedeu-se à análise, que foi
· relac1onan o- ·
pesquisa, d t xto em que foram colhidas as redaçôes organizada em torno dos elementos do discurso avaliados na fala
. . nal ou o con e dos estudantes (a universidade ou faculdade; seus professores;
s1tuacio (. . do-se aqui 0 gênero através do qual fornm
d · estudantes me1um . d' • seus colegas; a escolha do curso; a adaptação ao curso; dentre
os · , ) passou-se à a na'li'se , das ·suas relaçoes
· . com
. as con. 1çoes
expreS&lS ' d t turas 1·nstitucionais e soc1a1s que circundam outros elementos). Assim, em relaçào à faculdade, observou-se
· otas as es ru que predomina a avaliação na dimensão de apreciaçào: valoração,
mais rem d tes Nessa etapa da análise, buscou-se
. daqueles estu an ·
o dizer , e uintes perguntas: Como repercute, na fala .dos que é uma categoria ligada a "campo díscursivon, ou seja, a valo-
responder as s gb bre cotas no Brasil hoje? Que sentidos ração é feita com base em critérios institucionais, ou caracterbticos
dantes 0 de ate so ,. . de determinada instituição. No caso da universidade, o critério
estu ' . _ que diz respeito às pohttcas de açao
oc·ais em crrcu 1açao, no . d , , geral é seu nível de excelência na produção do saber, como nos
s 1 _ ·ar reverberam no discurso os estu-
· no ensino supen , exemplos a seguir:
a fiirmauva . . da D e forma as marcas de avalia\·âo no
d ant es? E mais am da
: e qu ,
tam para 0 seu envolvimento ireto
ct·
discurso do estu nte apon Exemplo 2: O aho conceito da faculdade [l]H
e material com aquele ambiente?
Exemplo 3: ... uma grande universidade 111

Exemplo 4: O nível é realmente de excelência, mas estes ILrQ::


A AVALlAÇÃO
blemas [=de banheiros alagados etc.} impedem a universidade
NO DISCURSO DOS ESTUDANTES
de ser melhor ainda do que é. [7]
-r e do fenômeno da avaliação na
Um dos ~roblem~s na ~~: t~e que quase tudo na linguagem Os exemplos mostram como a apreciaçào é fundada em cri-
q linguagem dtz respeito ao a~ , <l"f' ·'1 demarcar as fronteiras térios consensuais, ou compartilhados, relevantes na avaliação
.d d alorauvo· e i io
:1
.,.,
'.i
pode ser cons1 er.a ~ v .:- - '-'specialmente em estudos de uma instituição pública de ensino superior. O Exemplo
, haça·0 e 0 que nao e, ~· 4 mostra duas ocorrências de avaliação (também valor:içào ): a
~! entre o que e ava . <l 'Vt' ser levada em
·i . ecessanamente e ,
do discurso, em que n . . ., (1,,,,12 o exemplo a primeira delas ("o nível é realmente de excelência'') acompanha o
d' "avahaçao evoc,i " .
\ consideração a fligura ª d'
. d d corpus em iscu.ssao,
.. , fornece um•t ídeia do
l
padrào descrito para os exemplos anteriores (avaliação com base
seguir, rettra o o ·quis·idor interessa((! em critérios de senso comum), e a segunda ("estes problema.Ç)
; de problema com que se depara o p~s . , . representa uma avaliação baseada em crirérios de alguém que

'
t .po . - a linguagem,
na análise <lo fenômeno da ava1iaçao n transita pela universi<l<tde (os problemas referidos sào va7.amentos,
· . . pcm
prnneiro , · xlc) e vost~i
~
banheiros alagados etc.). A marca de ;1valbr;ào no Exemplo 4
e., l l· (
i:..z..emp o . .. · ) aprendi muita .cotS<l no , , l= os · .
prolcssores ·] . lll1·' é o substantivo valorativo prph/cma numa estrutura sintitica
do método de ensino de mwtos te 1 1es "

115

112

í~
1

compal"J.tiva: "estes problemas impedem a universidade de ser Exemplo 4 (repetido e ampliado):


melhor do que é.» Tudo seria perfeito se não fosse um problema, que além de
Há diferença no posicionamento discursivo do estudante: nos mim é enfrentado por vários outros alunos: a falta de dinheiro.
exemplos 2 e 3 e na primeira parte do Exemplo 4, ele se posiciona É sempre uma preocupação com o dinheiro da passagem, das
como alguém que vê a universidade de/ora, digamos, parte de apostilas a comprar... e há também um outro problema que é o
critérios de senso comum para avaliá-Ia. Outro elemento para mau estado de conservação do prédio. Os banheiros alagados,
fundamentar esse posicionamento discursivo seria o fato de essa o pátio cheio de goteiras são fatores que atrapalham um pouco
avaliaçJo ocorrer no primeiro parãgrafo da redação, momento o desempenho dos alunos. O nível é realmente de excdêncía,
em que o estudame fala de sua entrada na universidade. E, por mas esses problemas impedem a universidade de ser melhor
·.;
fim, há a coocorrência de afeto irrealis no mesmo parágrafo, ainda do que é. [7, pemlltimo e último parágrafos]
il como fica claro quando examinamos o ambiente discursivo em
que ocorre: À medida que relata suas experiências na universidade, o
estudante constrói uma posição de fala para si como alguém que
i
'i Exemplo 2 (repetido e ampliado): Apesar de não visar espe- se posiciona na academia e a avalia desse lugar de fala.
cificamente ao curso de letras, me inscrevi nesse curso por
! gostar muito de porruguês e pelo alto conceito que a faculdade
Quando falam de seus colegas de curso, os estudantes usam
avaliação na dimensão de afeto, como nos exemplos abaixo:
lj apresenta com relação às demais instituições. Tinha boas expec-
tativas com o que encontraria, as matérias, os professores, Exemplo 5: Gostei muito de meus ucoleguinhas'' l= têm a
q
,, enfim, o curso em si me tr-aria outras visões e me ajudaria a idade de sua filha] [5]
' me aperfeiçoar. {l, primeiro parágrafo]
Exemplo 6: Nosso relacionamento (= com colegas) foi QtimQ (5]
Afeto irrealis é uma dimensão de avaliação que se constrói no
eixo da ex-pectativa, da projeção, geralmente codificada léxíco- Exemplo 7: E os colegas de classe não parecem ter pouco
e
-gramaticalmente por marcadores temporais no futuro, em breve). tempo de conhecimento, porque minha relação é ótima [6]
No exemplo em discussão, a dimensão irrealis é marcada no uso
de verbos no precérito perfeito ("me inscrevi") e no futuro do Exemplo 8: Meus professores e amigos são o que mais me
pretérito ("me traria"): o padrão verbal no discurso do estudante motivam 16)
constrói um.a posição de fala no presente, mas de uma perspectiva
temporal localizada no passado (em referência a fatos anteriores Nos exemplos anteriores, o afeto constrói-se discursivamente
ao momento de fala: "me inscrevi") e com projeções para o futuro na dimensão realis, com marcas verbais de pretérito, no..-; exemplos
(em referência a fatos ainda não realizados: "me traria"). Vemos, 5 e 6, e de presente com valor habitual, nos exemplos 7 e 8. A
portanto, que, nessa dimensão, o estudante ainda se posiciona dimensão realis remete às experiências vividas dos estudantes,
como alguém com expectativas em relação à universidade. com destaque para o fato de que, em todas as suas ocorrências,
afeto é codificado ele forma positiva. Observa-se ainda que a
Já o Exemplo 4 traz um novo posicionamento di.scursívo:
codificação de afeto nesses exemplos se dá na dimen~1o de afeiçào
o estudante fala a partir de suas experiências na universidade.
("emoções ligadas ao bem-estar ecossocial [do indh·íduor,
O que justifica essa linha de argumento é o fato de as marcas
segundo Martin), 15 donde se conclui que o estudante constrói
de avaliação se localizarem no último parágrafo da redação - a
discursivamente a sua insen,,ào no amhien te ecossocial acadêmico
própria narrativa do estudante, ao se desdobrar, constrói sua
posição discursiva: de fonna positiva.

114
Embora predomine o afeto na fala dos estudantes sobre seus Exemplo 17: A recepção por parte dos professores foí ~
colegas, há também muita apreciação e julgamento, corno mostn1 111 kflk. Todos se mostraram compreensivos e so!idáríos. [7)
os exemplos a seguir:
Exemplo 18: Os professores são bons ajudadon;;s e alguns
Exemplo 9: Meus colegas são agradáveis [l} são bem irônicos, o que faz das aulas mais interativas e
divertklas. [8]
Exemplo 10: Encontrei pessoas muito interessantes [3]
Nesses exemplos, o julgamento desdobra-se em duas dimensfJes.
Exemplo 11: Os colegas de tunna são excelentes, muito prestíl- Na primeira delas, estima social, a avaliaçào baseia-se em critérios
tivos. inteligemes. [7J compartilhados, específicos de detenninada ins1ítuíçào e expressos
em termos de admiração ou crítica: tendo sido motivados a falar
Exemplo 12: Quanto aos colegas, fiquei abismado pelo fato
sobre seus professores, os estudantes os avaliam no plano de
de o número de moças ser superior em muito ao dos rapazes
seu desempenho profissional (são "bons", ~excelentes", "bons
neste curso, fora isso, a maioria em massa são pessoas .illTI..ÍZ!.S,
ajudadores"). Na segunda dimensão, sanção social, a avaliaçào
companheiras e auxiliadoras. [8]
baseia-se em critérios morais ou éticos (justo, sensível a questões
Na apreciação, a avaliação é objetivizada ou transferida do socíaisou indiferente, conupto, cme!etc.). Isto revela que alguns
avaliador (e seu sentimento) para aquilo que é avaliado. Assim, estudantes têm percepção da dimensão ética/moral envolvida
se no plano do afeto o estudante constrói discursivamente no tratamento diferenciado a estudantes coristas. E mais sobre
sua inserção social na universidade tomando como ponto de julgamento pode ser visto adiante.
referência seus próprios sentimentos, aqui ele destaca elementos Quando se voltam para o momento de entrada na universi-
daquele ambiente ecossocial e os avalia em duas dimensões: do dade, os estudantes usam recorrentemente afeto irrealis, em sua
ponto de vista de aitério.s, por assim dizer, afetivos, pois envolvem dimensão positiva (desejo):
o impado que têm sobre o avaliador (são "agradáveis", uinteres-
santes"); e do ponto de vista das qualidades morais/éticas do Exemplo 19: Eu ingressei na Universidade influenciada pela
aJvo da avaliação (são "prestativos'', "auxiliadores"). minha ftlha ... fiquei com vontade de estudar para dar aula
Passando para a forma como o estudante avalia seus profes- futuramente ... [5]
sores ou professoras, obseIVa-se que predomina a avaliação no
Exemplo 20: Eu espe.rav.a_que o curso me awdliasse no magis-
plano do julgamento, como nos exemplos a seguir:
tério futuramente [5)
Exemplo 13: ... [professores] em sua maioria eram bons [1]
Exemplo 21: O ingresso em uma faculdade com o nível da
Exemplo 14: Os professores tiveram grande parcela de responsa- UERJ sempre foi um sonho. A descoberta da aprovaçào foi
bilidade nessa contínua redescoberta e me fizeram abandonar muito emocionante. A chegada à universidade, cheia de
conceitos prontos [41 expectativas, cheia de vontade de aprender o maior número
de conteúdos que for possível. [7]
Exemplo 15: Os professores na sua grande maioria são bom; e se
empenham em passar ensinamentos até extracurriculares [5] ObseIVa-se que a climens.1o de afeto irrealis jamaL-; é neg;.lth·a,
que seria codificada como medo, ansiedade. Nos exemplos,
Exemplo 16: Os professores não <ls;monstraram indiferença, o desejo da dimensão irreatis apresenta-se codificado léxico-
se tratando das cotas, mas existem aqueles que se mostraram ·gramaticalmente de diferentes formas, seja como "nmtade de
dividido§ quanto ao assunto. [6] estudar" ou "vontade dt' aprem.kr", seja como expectati,·as em

116 11""
relaçz1o aos estudos, em "eu esperava que o curso me auxiliasse Um elemento que apareceu espontâneamente no discurso
no magistério futuramente", ou em "o ingresso( .. .) foi um sonho". dos estudantes foi a questão de sua "adaptação à faculdade",
Em outras palavras, a dimensão irrealis está relacionada a senti- avaliada em diferentes dimensões. Começamos com afeto realís
mentos volcados para o futuro, daí o uso de certos marcadores e irrealis, a seguir:
temporais ("'futuramente"), de verbos no pretérito imperfeito ("eu
espemv-à »), ou aínda de substantivos como "sonho", "expectativa8 ", Exemplo 25: Ainda me sinto perdida. (4J
"vontade".
Há também muita apreciaçào quando se rematiza a entrJda Exemplo 26: Pensei em desistir do cursQ, mas o fato que me
na universidade: fez mudar de ideia foi realmente deixar de estudar com os
professores que eu aosto tanto. [5]
'
i Exemplo 22: Minha grande conquista (título da redação) (3]
Exemplo 27: Espero até o final ampliar meus pontos de vista,
Exemplo 23: A minha entrada na Universidade foi uma grnnde "meus repertórios", enfim, minha visão de mundo e me
conquista. Para uma jovem de baixa renda ter uma oportu- adaptar. [4]
nid1de como esta, a chance de poder progredir é algo quase
Nos exemplos 25 e 26, a expressão de afeto (sentimentos
impossível. Por isso, eu valorizo muito a minha vitória [3]
de desorientação ou desânimo compensados pelos sentimentos
Exemplo 24: A princípio, minha entrada nesta Universidade foi positivos em relação aos professores) se dá no eixo da vivência
muito trabalhosa, entretanto, ao ver que meu nome estava na imediata (realís), indicada por marcadores tempor,üs (verbo no
lista de classificados, o trabalho para conseguir uma cadeira presente, no primeiro exemplo e pretérito perfeito, no segundo).
no curso de Letras foi bem compensador. [81 Já no Exemplo 27, o sentimento é projetado para o futuro (afeto
irrealis), marcado pela locução verbal "espero ampliar", acom-
Se em exemplos anteriores os estudantes representam sua panhada do marcador temporal "até o final~. Parece relevante
entrada na universidade em termos afetivos, ou em termos de destacar o que é colocado como requerido para a adaptação:
seus sentimentos em relação a esse rito de passagem, aqui se ampliar pontos de vista, visão de mundo, ''repertórios".
representa o acesso à universidade a partir de uma atitude mais Ainda em relação à adaptação à universidade, observou-se
objetiva. em. relação ao seu significado socíal. Por um lado , nos
d. também ocorrência de apreciação, como nos exemplos a seguir:
OIS prunerros exemplos, a entrada na universidade é represen-
tada como uma "conquista" e uma "vitória" a ser valorizada ou Exemplo 28: ... a transição antes e depois da CERJ não foi
seja, trata:-se da conquista de um direito social, um direito garan~ido fácil... pois ainda é difícil conviver com al~umas novas rea-
ª dete~dos grupos sociais, que a própria estudante especifica lidades [4J
no seu dL5CUrso: uma conquista para "uma jovem de baixa renda".
Por outro lado, no exemplo seguinte, a entrada na universidade é Exemplo 4 (repetido): Tudo seria perfeito se nào fosse lli.ll
repr~tada corno "trabalhosa", ou seja, como algo conquistado problema, que além de mim é enfrentado por vários outros
a partir de um esforço pessoal. alunos: a falta de dinheiro. É sempre uma preocupação com
Resumindo a análise do elemento do discurso "entrada na o dinheiro da passagem, das apostilas a comprar. .. (7]
universidade", a avaliação no plano do afeto irrealís não surpre-
Exemplo 29: ... o começo int:io tumultuado por caus<l da
ende, pois foram chamados a falar sobre suas expectativas. No
greve [2]
entanto, a avaliação positiva confirma o valor social da universi-
dade no imaginário desses estudantes.

118
119

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Destac-.i-se a ocorrência de avaliação negativa, que não apa- envolvimento em relação ao sistema de cotas. O ambiente em
rece quando o estudante fala dos coleg<ts, dos professores, ou que se movimenta o estudante não é, assim, representado como
da faculdade em si. De alguma forma, esse paddo valorativo constituído de alunos na relação com professores, mas de forma
contrapõe-se ao afeto irrealis (desejo) da sua vida fora da uni- muito mais complexa.
versidade: aqui, o estudante já se posiciona como alguém quç- A tematização de um problema específico para os estudantes,
\.ivenda a universidade. Assim, assume posicionamento discur- os gastos ou despesas com a f acuidade, não previsto no enun-
sivo distinto em relação ao posicionamento adotado quando a ciado proposto para redação, se por um lado aponta para uma
"entrada na universidade" é tematizada ou quando fala de suas dimensão da experiência vivida dos estudantes na sua condição
"expectativas em relação à universidade": se naquele momento o de estudantes catistas, por outro reverbera um discurso forte da
padrão de avaliação positiva baseia-se na valorização da institui- administração central da universidade na construção de um ponto
ção no imaginário social daqueles estudantes, aqui este padrão se de apoío para a obtenção de verbas para o Proiniciar. Esse é um
modifica a partir do próprio envolvimento material do estudante discurso produzido na universidade em resposta a questiona-
com a vida universitária. mentos feitos ao sistema de cotas no espaço público mais amplo
(imprensa, televisão, dentre outras mídías).
Nessa mesma direção de análise, observa-se que a tematizaç.ào
AS MARCAS DE AVALIAÇÃO das relações entre universidade e sociedade no discurso dos
E AS CONDIÇÕES IMEDIATAS estudantes também aponta para a construção de uma identidade
DO CONTEXTO SITUACIONAL discursiva para os catistas como estudantes de uma universidade
pública, ciosos das responsabilidades da universidade em relação
Nesta etapa, procede-se a uma análise das relações entre as à sociedade, em função de seu financiamento públíco:
marcas linguístico-discursivas de avaliação encontradas na fala
dos estudantes e as condições in1ediatas do contexto situacional. Exemplo 30: Avalio minha experiência no primeiro período
Muitas das ocorrências de marcas explícitas de avaliação eram excelente, aprendi muito mais do que podia imaginar, apesar
previstas em função de restrições genéricas (ou seja, o gênero do começo meio tumultuado devido à greve. 1'\ào imagino
dissertação escrita em ambiente acadêmico) e de restrições minha vida sem a UERJ, descobri que minha escolha foi mais
impostas pelo formato do enunciado proposto como estímulo do que certa, espero através do que tenho adquirido possa
à redação. devolver de alguma fom1a à sociedade e à própria instituição.
[2, parágrafo final]
Assim, por exemplo, os elementos do discurso tematízados
pelos estudantes figuram em função das restrições impostas Mais uma vez, o que vemos é um discurso bastante presente
pelo enunciado ("fale sobre suas expectativas em relação ao seu nas universidades públicas reverberando na fala dos estudantes.
curso, seus professores, sobre eventuais dificuldades, sobre sua Especificamente no caso de estudantes bolsistas do ProiniciJ.r, tem
experiência na universidade"), embora tenha havido ocorrência sido apontada, pela administração, a sua responsabilidade pelo
de elementos não previstos, como o DALB (Diretório Acadêmico êxito do programa, além da responsabilidade da uníversídJ.de em
dos Estudantes de Letras); o Proiniciar (Programa de Acompa- relação à sociedade, que financia todos os seus projetos atr..l\'és
nhamento aos Estudantes Catistas); os gastos ou despesas com a
do recolhimento de impostos.
faculdade;ª" relações entre universidade e sociedade.
A avaliação no plano do afeto/irrealis/desejo ( ·-~ devoln•r
A tematização do DALB e do Proiniciar aponta para a repre- de alguma fom1a à sociedade") introduz um elemento que não
sentação, no discurso dos estudantes, de um espaço social,
foi tematizado no enunciado da n.·d:u,·:io e que aponta para um
na universidade, com atores políticos com diversos graus de
deslocamento de posição enundatíva desse estudante: quando

120 121
assume esse enunciado, o estudante inscreve-se como o sujeito PROCESSO DE CONSTRUÇÃO
de um discurso da academia. O que se pode ver aqui é que as
identidades são construídas dentro do discurso e não fora dele:
DA IDENTIDADE DO ESTUDANTE COTISTA
e1as se produzem no interior de jogos ou modalidades especí-
ficas de poder, em locais históricos e institucionais específicos. O Nesta parte da análise, ampliamos nossa perspectiva no intuito
esntdante aqui, na verdade, está se construindo como um sujeito de interpretar as marcas de avaliação levantadas na primeira fase
de direitos: ele agora está na universidade, tem acesso a um bem de análise como marcas da forma como se dá o processo de
construção da identidade dos estudantes no discurso.
público e pensa a questão dos deveres associados a esse direito.
Este ponto ser.1 retomado para discussão na Conclusão. Resumindo os dados apresentados anteriormente, há duas
dimensões nesse processo: por um lado, há um processo de
Outras restrições do contexto situacional no discurso dos
interpelação do sujeito por discursos em circulação na universi-
estudantes remetem à própria situação de interlocução entre
dade e fora dela - por exemplo, quando o estudante reproduz
o estudante cotista e o professor que propõe a redação como
critérios de senso comum na avaliação da universidade (seu
atividade experimental: não se pode perder de vista o fato de a
nível de excelência, o alto conceito da faculdade); por outro, há
redação ter sido produzida em situação experimental. Foi expli-
uma dimensão nesse processo que é da ordem do envolvimento
cado para os alunos que suas redações seriam objeto de análise
direto e material do estudante com o ambiente acadêmico: isto
por parte de pesquisadores voltados para o tema da política de
se observa quando o estudante passa a avaliar a universidade
cotas na universidade pública brasileira. É possível que a pre-
na posição de alguém que vivencia a sua realidade cotidiana
dominância de avaliação positiva decorra dessas circunstâncias
("vazamentos, banheiros alagados").
imediatas da situação de enunciação em que foram produzidos
os discursos dos estudantes. Esta última dimensão revela-se também num trabalho meta-
enunciativo do seu discurso, em que ele se volta para o seu
Por outro lado, a essa restrição do contexto situacional tam-
próprio dizer e busca, de alguma forma, calibrá-la.
bém pode ser atribuída a ocorrência de avaliação na dimensão
de apreciação. Sendo entendida como uma objetivizaçào ou
Exemplo 27 (repetido); Espero acé o final ampliar meus pontos
institucionalização do afeto, a apreciação seria, pelo menos em
de vista, "meus repertórios", enfim, minha visão de mundo e
parte, resultado das características do gênero produzido pelo
me adaptar. [4]
aluno - redação escrita, produzida a partir de estímulo dado
pelo professor. Tem sido extensivamente apontado, na literatura As aspas apontam para um esforço metaenunciativo por parte
científica, um padrão de valorização de uma escrita acadêmica do estudante ou um desdobramento sobre o seu próprio dizer,
distanciada, em que se reduz a expressão da subjetividade, ou da que tem dua~ dimensões. Por um lado, esse esforço metaenun-
experiência pessoaP6 do enunciador. Se fosse aceita essa linha de ciativo sugere uma dimensão de trabalho no discurso <lo esn1<lante,
argumentação, a apreciação responderia às restrições <lo gênero que é a de gerenciamento de sentidos no interdiscurso. As asp~is
"redação acadêmica".
em "meus repertórios" marcam um distanciamento em rel.açao
ao tenno "repertório", que é visto como um tenno que tem ongem
em práticas discursivas com as quais o estudante apenas enrrJ
em contato. O estudante parece estar o.:perimentando o uso
daquele termo no seu discurso, num processo que a~onta
para a sua percepção de uma nova cultura, e de nO\'JS pr:ltlc1s
discursivas.
Noutra dimensão, trata-se de um verdadeiro trabalho discursivo
sobre o dizer, ou seja, uma constni(~to de um discurso próprio
122
àquele ambiente institucional. O discurso do estudante vai, assirn,
CONCLUSÃO
se construindo na universidade, no contato com pr:tticas discur-
sivas acadêmicas, vohadas para o cuidadoso gerenciamento de
Neste trabalho, buscou-se aproximação da temática discurso,
sentidos no imerdiscurso.
identidade e sociedade a partir da análise de narrativas produzidas
Assim, à dimensão "fantasmática" 17 nas práticas de identifi- por sujeitos envolvidos diretamente num processo de redistri-
cação do estudante, revelada pelo padrão intensivo de uso de buição de bens públicos no Brasil hoje. Destacam-se, da análise
afeto realís e irrealis positivo, vem se juntar uma dimensão de apresentada, os pontos que se seguem.
um trabalho efetivo sobre a sua própria linguagem. O estudante Há um padrão de avaliação na dimensão de afeto irrealis
está envoh-ido não só afetiva ou psiquicamente com essa nova positivo, no eixo da expectativa ou da projeção (por exemplo,
realidade, a partir de projeções imaginárias baseadas em valores no enunciado "o ingresso em uma faculdade com o nível da
pré-construídos, mas está também envolvido num trabalho de UERJ sempre foi um sonho"), que aponta para o valor social da
incorpora.r elementos daquela realidade, constmindo-se <:omo universidade no imaginário dos estudantes. Por outro lado, a
alguém na universidade. Trata-se de um trnbalho laborioso, por ocorrência de apreciação negativa (por exemplo, no enunciado
parte do estudante, de construção de uma identidade acadêmica "[os] problemas[= de banheiros alagados etc.] impedem a univer-
para si próprio.
sidade de ser melhor ainda do que e) parece sugerir que aos
Correndo o risco da redundância, reafinna-se que esse processo critérios de senso comum que orientam a valoração positiva da
de construção de identidade não é levado a cabo por um sujeito universidade no imaginário social do estudante são acrescentados
iuluntarista, em domínio pleno de suas capacidades cognitivas, critérios que se sustentam no seu próprio envolvimento material
de estratégias retóricas, ou de objetivos pré-delíneados. Pelo con- com a vida universitária. É a partir de sua vivência universitária
trário, trata-se de um processo afetado pelas condições específicas que o estudante constitui-se como cidadão ou sujeito político,
de um contexto sócio-histórico e pelas regulações discursivas que entendido este último, segundo Ladau (2007), como um sujeito
esse contexto coloca para o estudante. que apresenta demandas à sociedade: ~os problemas~ da univer-
Por outro lado, não se pode negligenciar o fato de que, ao sidade, apontados no discurso do estudante, constituem uma
lado da dimensão da regulação discursiva, está em andamento dessas demandas.
uma prática de autoconstituiçào (ou identificação) do estudante, ObseIVa-se, ainda, um padrão de avaliação no plano do julga-
que remete à dimensão de seu envolvimento direto e material mento, que não pode ser entendido como mern reverbernçào, no
com as circunstâncias que o cercam, de alguém que vivencia discurso dos estudantes, de como tem sido conduzida a discussão
diretamente o seu contexto sócio-histórico. sobre a política de cotas na grande imprensa. Nesta, a discussão é
Pontua-se, assim, que o processo de inserção social do estudante centrada na questão do mérito como critério de acesso à univer-
catista na vida acadêmica é um processo complexo, que não sidade pública; no discurso dos estudantes, no entanto, a questão
se esgota no exame ou discussão do desempenho do estudante: não se apresenta em tem10s abstratos, em tomo de princípios
nesta pesquisa, a academia é vista como uma nova realíd~ide universais mas como uma discussão sobre o tratamento dado
'
sociodíscursiva para o estudante, ou um conjunto de práticas aos alunos catistas no ambiente acadêmico (,.os profes,.;;ores nào
dL'>Ctlrsívas e não discursivas, investidas de uma ideologia. Na aca- demonstraram indiferença"; "não notei diferew,-a de rratamcnto'" ).
demia, o estudante entra em contato não apenas com os conteúdos Ou seja, do ponto de vista do estudante, o que é discursivizado
das disciplinas de sua fonnação específica, mas também com ~um no plano do julgamento (ou ética) remete ~1s vivências concretas
saber que não se ensina", segundo expressão de Pêcheux. 18 Ao do estudante na universidade, ou ao seu envolvimenro direto e
lado da ordem das coisas a saber, há sempre uma ordem invisível material com a instituição.
em ambientes institucionais, a qual se pretende investigar. Essas considera~·ões permitem t'lahorar a no\·ào de que há
duas dimensões nas idt:ntificH./1es do sujeito coe isca no ambit·me

124
12'i
acadêmico: se, por um lado, ele se identifica com o ambiente NOTAS
lnstinidonal com base na ídealizaçào (ou projeçôes imagin;irias
dis..~minadas na sociedade), por outro, sugerindo que as identi- 1 FAIRCLOlJGH, 2003.
ficações nào sào coerentes ou harmoniosas, 19 ele aponta para os 2 MOITA LOPES, 2002, p. 15.
problemas vivenciados. Ambas as dimensôes são parte integrante
3 DREYFUS e RABINOW, 1982, p. xix.
do processo de constituição do sujeito: sendo instado a falar
~ DREYFUS; RABINOW, 1982, p. xx.
sobre suas experiências sociais na universidade, o sujeito cocista
demonstra ser interpelado por discursos sobre a universi<l:.Kil' ' OUVEIRA, 2003, p. 34.
re]ativ-Amente estabilizados no imaginário social, mas articula 6 MIRANDA, 2000, p. 32.
também sentidos a partir de suas próprias vivências.
1 OUVEIRA, 2003, p. 45.
Do ponto de vista cfus relações entre o simbólico e o material,
s BlJlLER, 2000, p. 20.
já apontada nesse percurso, reafinna-se que se o simbólico é a
dimensão das redes de sentido estabilizadas na memória e na 9 OLIVEIRA, 2003, p. 45.
cultura, a história concreta dos indivíduos é a dimensào material 10 FAIRCLOlJGH, 2003, p. 160.
em que essas redes de sentidos se articulam às experiências de 11 DOSSE, 1993, p. 64.
sujeitos singulares.
1l HUNSTON, 1994.
Embora se apoie em dados restritos e em apenas um recorte 13 Os números entre colchetes fornm usados arbicraríamente na identífícaçào
de um projeto de pesquisa com outras características, a análise dos trabalhos dos alunos.
proposta permite teorização sobre a problemática da constitLli\'ào 14 A unidade de análise nesta pesquisa foi a frase, uma uníJaJe sintática.
do sujeito. No caso do estudante catista em discussão no recorte dada a complexidade envolvida numa análise que se_ propuse~~e a ad1 >~r
de pesquisa apresentado, a sua vivência no ambiente acadêmico é algum tipo de critério semântico (cf., a_ este respeito. ~u~s.~r)Il, l()(}ql.
funda.mental no processo de constituição de sua identidade como No entanto, por restrições de espaço, nao houve precx:upaçao.Je citar
integralmente a frase, mas apenas os seus elementos valoramos.
sujeito de direitos, com acesso a bens públicos outrora fora do
seu alcance. E é como sujeito de direitos que o estudante cotista lS MARTIN, 2000, P. 150.
transita hoje pela universidade, articulando em seu discurso 16 Essa posição, no encanto, é questionada por vários autores. que
sentidos em circulação naquele ambiente institucional e, ao mesmo argumentam que não exíste linguagem sem as marc1:> Je sub1eu• 1cbJe
tempo, construindo uma história particular da sua constituição do enunciador.
como sujeito de direitos na presente formação social brasileira. 17 O tenno "fantasmácico" é de Butler (2000) e faz referência àd1tnen~1•>
imaginária em que se dá 0 processo de idenrifü:a,·ão do suie1to com :is
posições que é convocado a assumir no thscurso.
18 Citado em: SERRANI INFANTE; STRA.ÇALA.l'-:0. 1998, P· 20:'i

t9 HALL, 2000, p. 126.

126
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Insular, 1998. ·
que circulam nesse espaço mrerme< !"
1Jr10· st · •1ll .s,te reconhecerem
mutuamente, de ouvido, como fazendo parte de um lado ou do
·
outro. E, apesar disso, pequenas· ou gi.,.111( jt •s- (l1·t·l 'f''l1'"lS
-- ..... · • !)f(JtltlH).

. J ) . 1· .
de diversas fonnas '- t' regu :1ç:H) mguh l. , " ,
·t·l "ll ''t'·tlH.'tll f)Of ·Sl' []le:-,.

tornar evidentes a esses mesmos t.:t lantt.,.,,· ~<· li ) 1·erudo nos· u..;,os

128
mais oficializados ou nos enunciados <la expressão escrita. Afinal é uma língua diferente das outras. Como expli<.:a Calvet (2004),
os falantes que não pertencerem a esse espaço fronteiri,·o, os
'
definindo um modelo linguístico ecológico que não reduza
mais afastados do contato com os do lado de lá, vif'Jo a refletir a comunicação a um código nem a um modelo de produção
também nas suas falas cotidianas, sobretudo na fonética e no de sentenças, é preciso levar em considerao;;ào não apenas
léxico, diferenças identificadoras que terão adquirido já um forte as abstrações criadas pelos linguistas, mas tamhém as práticas
valor simbólico. concretas dos falantes em que se baseiam essas abstraçôes, e
Louis-Jean Calvet mostra um exemplo que se tornou triste- as representações, isto é, as ideias ou imagens que os falantes
mente célebre, por se situar no cerne de um conflito que arrasou têm dessas práticas. Sendo assim, uma lín.t..YUa p<xk ser definida
milhares de vidas no centro da Europa - o do servo-croata. 2 As como uma abstração criada pelos linguistas e também como o
diferentes apreciações sobre o que seja essa realidade linguística produto de um consenso entre os falantes, que. se rec?nh~c~m
começam pelo nome. A denominação mista, língua servo-croata como fazendo parte de uma determinada comunidade lmgrns[Jca
ou croata-sérvia, convive com os nomes simples, sérvio ou e não de outra. Se, como dizíamos, nem sempre coincidem as
croata, dependendo, em todo o caso, de quem a ela se referir e fronteiras políticas e as fronteiras linguísticas, também não há em
da circunstância em que o fizer. Se do pomo de vista tipológico, todas as ocasiões um total acordo entre falantes e linguistas, nem
a lingul.stica tende a considerar que se trata de uma só língua, os linguistas coincidem sempre entre si na hora de decidirem
o fato de ela ser falada por três comunidades com identidades se duas variedades constituem uma mesma língua ou se, pelo
políticas diferenciadas - sérvios, croatas e bósnios - dá lugar contrário, são duas línguas diferentes.
a interpretações bem mais complexas. E isso porque o uso da Essa dificuldade não parece ter preocupado Saussure, quando
língua para a afirmação da diferença - os valores e imagens que no texto que inaugura a linguística moderna, o Curso de linguís-
fazem parte do seu funcionamento social - acaba interferindo nas tica geral, publicado em 1916, ele define qual deve ser o obj~co
próprias praticas linguísticas. Nesse caso concreto, uma importante teórico da linguística e rejeita atribuir esse papel ao que denomina
diferença gráfica, que é um elemento de alto valor simbólico, foi "fenômeno linguístico", por ter um caráter heteróclito e multi-
levantada para constituir uma fronteira linguística: os croatas, <le facetado, ao mesmo tempo fisiológico, físico, psíquico e social,
maioria católica, CSf-revem a língua desde o século XVIII com de difícil apreensão. A língua, que Saussure reconhecia ser um
alfabeto latino, enquanto sérvios, montenegrinos e ortodoxos objeto científico criado pelos linguistas, uma abstração produto
usam o alfabeto cirílico. Além disso, pequenas diferenças sintá- de um determinado ponto de vista, se lhe apresenta, no entanto,
ticas e, sobretudo, lexicais (relacionadas, por exemplo, com uma algumas páginas à frente, transfigurada num objeto homogêneo
maior tendência à criação neológica do croata) foram erigkhs e de natureza concreta, quando afirma que:
e continuam a constituir elementos simbólicos fundamentais ele
criação de identidade linguística. Desse ponto de vista, pode-se (...) os sígnos da língua são, por assim dizer, tangín·b: a esnira
dizer que o servo-croata, como língua unificada, foi um proJuro pode fixá-los em imagens convencionais, ao passo que seria
do processo de construção da nação iugoslava, e que as mudanças impossível fotografar em tcx.los os pormenores os aros '11 fab (..J
É esta possibilidade de fixar as coisas relari'"as à língua que foz
políticas acontecidas nessa parte da Europa vêm transformando
com que um dicionário e uma gramática possam repre:>t.:nt:1~1a
também, inevitavelmente, a situação linguística.
fielmente, sendo ela o depósito das imagens acústicas, e a escnt:1
Não custa reconhecer que a realidade linguística do mundo a forma tangível dessas imagens. 3
é complexa, e não apenas pela quantidade de línguas que nele
exi..rern, mas sobretudo porque, dadas as diversas possibilidades Parece evidente que não podt•mos atribuir a Saussure, por
de relaç&:s entre comunidades de falantes e as inúmeras formas causa dessa passagem, a ingênua idt'ia de que uma língua St:
de intervenção sobre essa realidade, nem sequer conseguimos reduz a um dicionário e a uma granütic:i, entendida es!a como o
alcançar o consenso mínimo que nos permite estabelecer o que manual que formula algumas das su:1s re,11.ras d1..• fumionamemo.

130
Em um espaço \inguístíco vazio, ou pratíçanu:nte \az10, de
Isso suporia, ao fim e ao cabo, excluir dessa categoria todas as
inteiven~·ôes tecnológicas, a lilx:rdade Je varü~ ao é evidenle-
línguas ágr.afas do mundo, reduzindo muito consideravelmente mente muito grande e: as Jt:sçonlinuídades diak-ta1s, que aktam
para felicidade dos que continuam consklemndo o multilinguism~ essen,ü!mente tra~·os que não se rt>cohrem, .sâo pouco clara,.,. A
um gr,.lVe problema, o seu cômputo global. Mas a escolha dos gramalizaç-ão, gi:ralmente se apoiando sohre uma di:.cu~são do
exemplos é bem significativa, ao mostrar que a "tangibilidade" que seja o Hlx>m uso", vai reduzir esta variação, Basta con,.,ídcrar,
da língua se baseia na escrita, e que os objetos materiais que para cada uma das línguas europeias, a série dos gramátii.os,
a «representam fielmente" são precisamente aqueles que a deli- do século XVI ao fim do XVII, pa1a ver como !.e reduum as
mitam, padronizando-a ou reduzindo-a a certos elementos signi- diferentes variantes de uma mesma forma até desaparecer<e•m. A
ficativos. Pois não apenas a gramática normativa, mas também a gramática nào é uma simples descríi;;ào da linguagem natural. é
descritiva parte de detem1inados pressupostos ideológico.s que, preciso concebê-la também como um instrumento hnguisru;a:
do mesmo modo que um manelo prolonga o ge:-,to da mâo,
dependendo do olhar teórico, estabelecem o que é importarne
transformando-o, uma gr,umítica prolonga a fala natural e ili
para a descrição. Parece, enfim, que não é muito aventurndo
acesso a um corpo de regras e de fonnas que nào figuram junto
r:ns~r que o que Saussure tinha em mente eram as língua.s na- na competência de um mesmo locutoL-
c10nats :uropeias, e que afinal esse é o modelo proposto para a
apreen&10 e o estudo das práticas linguísticas. 4 As línguas não instrnmentalizadas, nesse pnxesso que acom-
~m efei~o, a noção de língua como realidade homogênea e panhou a expansão colonial dos Estados europeus. se ,·iram,
estavel, nascida com a linguística moderna, deve muito à criação como explica o autor francês, mais expostas ao línguiâdio. ao
do Estado moderno, pois só então a enorme multiplicidade das não reunirem as condições necessárias para serem utilizadas no
falas pôde ser unificada sob um modelo de língua que, com novo mundo propiciado por essa revolução tecnológic.a. E. nesse
uma administração pública presente em todo o território com sentido, a descrição gramatical identifica-se com a pura prescrição,
a e;i...-rensào do ensino obrigatório e com o desenvolvimern~ dos dado que o que se apresenta como bom uso reflete as \"aliantes
tran~portes e dos mass-media, teria sido imposto para todos os socialmente prestigiadas, que acabam sendo consagradas pela
habitantes de um mesmo país. A ideia de cidadania que emergiu gramática e passam a ampliar o espaço da sua influência mesmo
<..'Om a Revolução Francesa foi, nesse sentido, fundamental parn nos usos mais distanciados da Corte. Corredoira < 1998) prop<.">e
que esse modelo, que se baseia sempre na língua de uma elite, uma leitura original da conhecida sentença do gramãüco cas{e-
se estei:d:sse realmente como teto para todos os falantes, pois lhano Antonio de Nebrija, que afimu que a língua sempre foi
o exerc1c10
. _ d, ~s d·ITettos
· · - do Estado exige, como
como c1dadao companheira do Império, muitas vezes citada como const:ltaçào
cond1çao previa, o domínio da língua oficial.s dos processos de imposição linguística e rnltural que acompanham
Mas, antes disso, a ecologia linguística já sofrera uma grande qualquer ação colonizadora de uma potência polític-.a. Para ele,
mudança com aquilo que Sylvain Auroux 0992) chamou de a frase de Nebrija pode referir simplesmente o fato de a -língua"
revolução tec no J,og1ca
· d·a gramatizaçao,
. - ,
acontecida na .ser sempre a da autoridade, a do poder, sendo esse o sentido
Euro~a d~z:im~ o Renascimento. O aparecimento do saber etimológico do substantivo império. O resto dos falares seriam,
~e~h~~u1sttco, com a redação das primeiras gramáticas e portanto, dialetos, linguajares, patois.
d1c1onanos das Jíngu·as europeias,
· trans f ormou, num processo Por outro lado, como explica também Aumu.x (1998). o processo
lemo~ constante, a relação dos falantes com o próprio ídi< lma, de gramatização só se dá em culturas que desenvolveram um
reduzmdo
. . considerave 1mente a vanaçao
· - e traçando frontt"1ras
. sistema de escrita, pois esta coloca a linguagem em posição de
.~
muito mais precisas entre falares: objeto, a parecendo diante do falante como uma realidade mais ~ - ~· .

concreta e estável do que no seu uso cotidiano oral. Sendo assim,


a afinnação de Saussure que citamos anteriom1ente adquire outra

132 133
re1evanda, relacionando com toda a clareza o objeto Hngua com
o suporte escrito e com os produtos elaborados pelos técnicos embora haja quem utilize essa etiqueta para identificar apenas a
da linguagem - gramáticos e lexicógrnfos. língua usada nas cantigas Hri~as medievais, r~c.onhecen_dr: aí ~m
modelo linguístico todo particular, uma espcc1e de kozne multo
Se, como dizíamos, a noção de língua está estreitamente ligada
afastada da realidade das falas medievais, o que nos parece revelar
na contemporJ.neidade à ideia de nação, e deve muito, enquanto
uma visão muito limitada da complexidade das trocas linguísticas
realidade mais ou menos homogênea, à expressão escrita, à grama-
na sociedade da Idade Média. 11 Por outro lado, os~ autores que
tizaç-J.o e ao trabalho ativo de uma administr&çào estatal, nào é
se ocuparam de periodizar a história do portugues costumam
difícil entender que o dialeto seja considerado, pelo menos em
recorrer a explicações históricas e políticas relacion~das com a
sua di~ensà? funcional (ou social), simplesmente como aquilo
constituição do reino de Portugal, o antecedente mais reconhe-
que nao é lmgua, acabando por se confundir, não por acaso,
cível do atual Estado europeu, para datar o nascimento do que
com o mesmo termo em sua dimensào estrutural (ou genética).B
conhecemos como idioma português. São escolhidos, assim, como
Desse modo, dá-se a entender também que as variedades linguís-
fatos simbólicos, fatos históricos, tais como o reconhecimento
tica~ nã.o oficiais procederiam, necessariamente, das línguas
11 nacionais. apal do rei, condição incontornável para que um território
11 ;dquirisse a categoria de reino; a ascensão da dinastia de Avis;
i i
l 1 ou a derrota dos castelhanos na batalha de Aljubarrota. Também
r '
argumentos literários são usados para delimitar o "nascimento
DO GALEGO-PORTUGUÊS
do português", como reconhece Mattos e Silva, assinalando-se,
AO GALEGO E AO PORTUGUÊS nesse caso, a produção literária posterior ao perícxlo trovadoresco
1 como a primeira propriamente portuguesa, de acordo com aquela
\
A linguística histórica românica sempre reconheceu que a língua visão limitada do galego-português a que nos referíamos. 12 Não
portuguesa surgiu do latim vulgar falado na antiga província é preciso insistir em como essas delimitações metodológicas
romana da Gallaecia, daí se estendendo ao que fora nesse mesmo são inteiramente convencionais e muito pouco elucidativas, nào
tempo a ~itânía. Segundo o linguista alemão, Heinrich Lausberg, o
9
apenas pela geral impossibilidade de marcar o momento pontual
que se tena estendido para o sul durante as lutas contra os povos de nascimento de qualquer língua, mas também porque fazem
muçulmanos que ocupavam esses territórios da Península Ibérica isso projetando sobre o passado as atuais fronteiras políticas, tal
seria o "dialeto fronteiriço galego". 1º Porém, Lausberg dá a essa e como existem hoje, e extraem dessa operação ideológica todas
J~gua ~edieval o nome de "português arcaico", por já identificar as suas conclusões.
sunbohcamente o reino de Portugal, constituído como tal em
Da parte galega, alguns autores vêm procurnndo situar no
113~- Nessa mesma epígrafe sobre as línguas românicas atuais, passado mais remoto a origem da separação entre galego e
ele infonna que "o dialeto da Galiza pertence hoje ao domínio
~ hngua escrita espanhola". Na distribuição de usos dos termos português. A variação diatópica do período medieval é assim
interpretada como "reagrupamento independente das fabs galegas
l:ngua e dtakto, percebe-se claramente a identificação entre a
ün~ e a expressão escrita, além da anacrônica projeção das
e portuguesas", 13 segundo uma perspectiva que nos parece,
atua_ fr~teiras políticas sobre uma outra realidade histórica, pois
15 como dizíamos, anacrônica, e que não explica onde se situa,
0 "em termos linguísticos", a distinção entre "variai;::lo di;itópica" e
rei medieval, diferentemente do monarca posterior, erJ. apenas
"reagrupamento independente". Na verdade, com essa explicação,
um senhor feudal com poder de arbitragem entre os seus pares,
0 parece-se estar a procurar legitimação histórica para uma vi~)o
e reino medieval pouco se parecia com o Estado absolutist<J
independentista do galego, dado que n~lo se sabe como se teria
posteri~r~ou com a nação contemporânea. A linguística românica
de tradiçao alemã criou a denominação mista ga!egoportup,11ês dado o reagrupamento das falas galegas sem centro aglutinador
para se referir à língua falada no noroeste da Península Ibérica, para exercer tal funç:lo.

134
No início da Idade Moderna, os destinos dos falares situados indireto dos abundantes textos galegos medievais. Mesmo assim,
a norte e a sul do rio Minho, fronteira entre reinos e depois entre a construção da nação e da sua língua realiza-se em conflito com
Estados, são muito diversos. Enquanto a língua do reino de 0
Estado espanhol. E, nesse conflito, a relação com o português
; ~

Portugal se viu submetida, desde o século XVI, a um processo (com as outras variedades modernas do galcgo-portuf,:ruês medieval)
de grnmatizaçào, com a redação das primeiras gramâticas e constitui uma questão de extraordinária relevância que atr.wessa
dicionários, o idioma falado no território da Galiza ficou à margem todo 0 processo, sendo especialmente agudo o debate que frxa
dessas tr:msfom1ações. Nesse momento, o galego é percebido a importância simbólica de que se reveste o uso das grafias que
no reino de Portugal como uma variedade empobrecida do identificam os idiomas estatais, entre os quais sobrevive o galego
português, já inteiramente identificado com sua varíedade conesà, (o espanhol e o português).
sobre a qual se aplica a nova tecnologia linguística, e imposto Atualmente, o problema normativo, que coloca em confronto
como modelo para todos os falantes. Na Romagem dos agravados quem defende a reintegração do galego e do português e quem
(1533), do dramaturgo português Gil Vicente, encontramos se manifesta a favor de construir uma norma autônoma, isolada
um diálogo entre duas personagens populares, as "regateiras do da lusofonia, faz parte do conflito linguístico que se vive na
pescado~ Branca do Rego e Marta do Pmdo, em quem se manifesta Galiza. A questione delta língua, ao colocar em pauta a identidade
uma cena censura linguística, identificando o galego como símbolo do galego, tem uma importância central na definição dos rumos
do ~mal falar": "Tu tens tudo emburilhado:/ pem qu'é falar galego/ das políticas linguísticas e perpassa os olhares que as ciências
senám craro e despachado?" 14 No século X\11, em 1606, Duarte da linguagem vêm jogando sobre diversos fenômenos próprios
Nunes de Leão, em sua Origem da língua portuguesa, defendia dessa língua.
a elegância do português face ao galego, baseando-se no fato de
em Portugal ~haver reis e corte, que é a oficina onde os vocábulos
se forjam e pulem e donde manam para os outros homens~. JS AS FACES DE UMA POLÊMICA:
Ao mesmo tempo, na Galiza, materializa-se um conflito linguís- AS REPRESENTAÇÕES DOS LINGUISTAS
tico causado pela imposição do idioma do Estado, o castelhano,
que nesse momento começa a se constituir em espanhol. Este Apesar do acordo geral sobre as origens comuns medievais
contexto não começará a se inverter, embora muito lentamente, das variedades linguísticas que costumamos agrnpar sob os nomes
até fmais do século XIX, quando o galego recupera a condição de galego e português, na Galiza, consolidou-se uma nonna
de língua escrita. Na realidade, a imposição do espanhol como linguística construída em tomo da tradição literária que se veio
língua nacional é efetiva sobretudo a partir do século XVIII, e constituindo desde o século XIX, de grafia castelhana, tentando
o ressutgimento da cultura galega, que acontece na metade do recuperar variantes populares minoritárias ou claramente em
séa.do XIX, em meio a um movimento de reivindicação política desuso e consagrando características morfológicas, sobretudo
proronacionalista, expressa a vontade de construção nacional de das falas ocidentais, onde se concentra a maioria da população.
uma minoria pertencente à pequena burguesia urbana, autoin- Graficamente, esse galego, tornado oficial por decreto em 1982 e
titulada núcleo constitutivo dessa ucomunidade imaginada" 1" com presença no sistema educativo, na administraç.1o autonômica
jdentificada com a Galiza. Dá-se então uma situação aparente- e na mídia de titularidade pública, caracteriza-se pela profu.sào de
mente paradoxal: essa minoria que coma para si a missao de xts e pelo uso dos grafemas simbólicos do espanhol eiie <ii) e elie
recuperação da língua galega fora alfabetizada em espanhol e, (lf), para representar os sons palatais nasal e lateral. respectiva-
muito frequentemente, usava essa língua na sua vida cotidiana. mente. De fato, um dos problemas que enfrentaram os primeiros
O galego escrito vai se conformando segundo uma tradição que autores a representar o galego por escrito, após um part'ntese de
usa o sístL-ma ortográfico do cal)telhano, sobretudo porque nesses quase quatro séculos, em que o idioma se manteve vivo a~nas
primeiros momentos há um conhecimento muito limitado e na or,I!idade, era o oc1sion,1do pelo fonem;i fricativo pré-palatal

136

.
afastava-se das instituições oficiais resultantes do processo
autonomista, mantendo-se coerente com o que era o desejo do pragmáticos relativos à utilidade da língua, como garantias de
galeguismo histórico, sempre à espera das condiçôes políticas sobrevivência, defendendo a constrnçào de um "galego extenso". 21
que pemütissem elaborar e pôr em funcionamento uma norma Como para os galego-falantes existe inclusive a possibilidade de
linguística que reintegrasse as falas galegas no tronco comum se usar a norma do português europeu, ou até do último acordo
galego-português. No seu caso, essa prJtka afetou, como num ortográfico, para a representação escrita da própria língua, há
renascimento, a representação gráfica do próprio sobrenome, quem se renda às consequências históricas da construção da
que passou de Carbalio para CatValbo. língua portuguesa ligada a um Estado independente e passe a se
referir ao galego, simplesmente, como ponuguês da Galíza.
A tr.idiçom galeguista mais finne viu sempre o português como Mas, em geral, a posição reintegracionista parte de uma visão
umha 1.1.ma do g'J.!ego, se nos situarmos no ponto de vista mais complexa dos processos de corn>trução linguística. R(xlrigues
histórico. Entom, o português é umha garantia de supervívéncia
Fagim, justificando a necessária adoção de uma norma reinte-
do galego, porque ainda que nas províncias espanholas esta
gracionista para o galego, utiliza o conceito de "pluricentrísmo
! . lingua deixasse de usar-se, perviveria na fom1a meridional. De
linguístico",22 que toma de Clyne 0992) e que se refere à exis-
por parte, a presença do português reforça as possibilidades de
persistência do galego. Se aquel nom existisse como instáncia tência de vários centros irradiadores de normas linguísticas
corroboratória, o galego nom poderia, nas circunstáncias actuais para realidades que o consenso geral considera serem um único
oferecer resisténcia efectiva ao castelhano. Por isso os castelha'. idioma. Isso aconteceria com o inglês, que tem nos padrões da
nistas desejam incomunicar as duas formas do galego-português. Inglaterra e dos Estados Unidos as referências mais universais,
Alguns propugnam um heroico comportamento independentista mas que conta com outras subnormas com centros na Ausrrália,
frente ao castelhano e ao português asemade. O pastor David, na Nova Zelândia, na África do Sul ou no Canadá, sem que isso
coa sua funda, luitando em dous frentes co Golias castelhano e altere as altas quotas de consenso que permitem a comunicação
o Golias português. Tal guerra seria demencial. O lógico é que e o intercâmbio cultural entre os falantes desses países. O mesmo
o galego restaure a sua conexom co português se quer resistir se poderia dizer do castelhano ou, obviamente, do português,
a castelhanizaçom. 19
que possui dois centros irradiadores de norma, Portugal e Brasil.
O padrão linguístico que o autor defende para Galiza teria o seu
Para Carvalho Calero, o galego só poderia ser galego-castelhano
próprio lugar, embora com um estatuto de menos prestígio e
ou galego-português, isto é, só poderia sobreviver socialmente
influência, nesse espaço pluricêntrico da lusofonia:
quer como variedade ligada ao espaço linguístico (político e social}
do espanhol, quer como forma linguística que funcionasse na Para o galego existe também umha norma uessas caracterist1cas.
órbita da lusofonia. A primeira possibilidade, porém, conduziria Som as Normas da Associaç:om Galega da Língua que partínuo
ao seu irremediável desaparecimento, pois suporia a consuma~"ào desde o mínimo da galego-portuguesiuade pro[X)m um corpo
do processo glotofágico. 20 A sua proposta, exemplificada no de formas autóctones galegas nom híbridizadas [X)lo castelha-
parágrafo citado, se materializa numa norma que recolhe as no e comuns com as variantes padronizadas porto-br.J.sileir,ts.
principais peculiaridades morfológicas das falas galegas, mas que Estas Normas som amplameme S(X"ializáveis dentro uo e.:;pa(o
apresenta uma roupagem gráfica que permite identificar o galego administrativo galego fá que, por umha partt.\ no.~ in:->t:n:m no
com as variedades atuais do português. polissistema culturJ.l galego-luso-brasik·iro-Palops;' e, por ourr.1.
permitem umha idenrifica,·om do utente galego com ~ts peculia-
O reintegracionismo linguístico, que, ao não contar com apoío
rklades formais da variedade galc::ga. 1 '
oficial, continua sendo minoritário na Galiza, reproduz o mito da
resta~ração da língua medieval, período de esplendor cultural
ante~ior ao processo de aculturação padecido pelo país durante
os seculos posteriores. Ao mesmo tempo, apresenta argumentos

140
l-11
O QUE PENSAM OS FALANTES É uma caricatura do que chamamos castrapo. Encontramos ali
uma perífrase com o infinitivo gerundivo, próprio do galego e do
Assim como há visões desencontradas entre os técnicos da português europeu, mas inexistente em qualquer variedade de
linguagem sobre as variedades galegas, também não são unâ- espanhol ("andar a servir"); a palavra galeg:o-portugue~a esquecer,
nimes as representações dos falantes sobre as próprias práticas conjugada como se fosse o verbo castelhano olvidar, e, por
linguísticas. Em geral, e apesar das mudanças provocadas pelos último, um fenômeno fonético denominado gheada, próprio de
já mais de 20 anos. de política linguística autonomista exercida algumas falas populares galegas e sobre o qual exbte uma antiga
na Galiza, prevalece ainda, entre os falantes, uma visão estereo- polêmica entre os lingüistas. 25 A r~sposta ~o ~omei_n, "vaites,
tipada negativa do galego, que se apresenta como uma realidade vaites", é uma expressão de mcredultdade propna da lmgua oral.
mista e, p::irtanto, impura, degradada. A imposição histórica do No Brasil, hoje diríamos "fala sérío!".
espanhol, que seguiu os mesmos passos que outros processos
de colonização linguística, originou entre os falantes um certo
sentimento de inferioridade, que já foi denominado auto-ódio.
Para a consciência linguística de muitos deles, o galego, quer
como língua diferenciada, quer como variedade galego-portu-
guesa, simplesmente não existe. O nome pejorativo mais comum
empregado para designar as variedades galegas mais ou menos
castelhanizadas (que de algum modo são todas) é castrapo. Esse
termo designaria um castelhano agalegado, ou bem um galego
espanholizado, embora, como é evidente, não haja modo de
diferenciar, na prática, uma coisa da outra.
Uma charge de Castelao, político, escritor, pintor e chargista L
-~
galego que construiu sua obra na primeira metade do século XX,
ilustra muito bem essa situação (cf. Figura 2} Comentando e1>sa
charge, Antón Santamarina 0991) afirmava que os dardos de
Castelao eram precisos como político, mas não como sociólogo.
Do nosso ponto de vista, embora Castelao criticasse ideologica-
mente a deserção linguística de quem não sentia o galego como
símbolo da identidade nacional, ele representa com extrema
fidelidade os mecanismos sociais desse processo de abandono
'- +-c::c-

""'
-De andar a servir se me esquendó todo d jallejo.
da própria língua.
-Vaites, vaites. 26
No desenho, a pessoa que fala é uma mulher que pertence às Figura 2 • Charge do álbum Cousas da vi.tia, de Castdao
camadas populares, como podemos deduzir pela roupa e pela
se1ha que carrega na cabeça. A selha era uma vasilha utilizada O motivo que justifica no discurso da mulher o falso esque-
para transportar áf,:rua ou leite e que constituía, por isso, no início cimento do galego, o fato de ela trabalhar como empregada
do século XX, um instrumento de trabalho de mulheres de classe doméstica na cidade, isto é, o comato cocidia.no com os patrües,
social baixa. A sátira ferina da charge se baseia na falta de corres- que por serem de classe social mais elevada cinh:un como língua
pondência entre o que se diz e o como se diz. A mulher utiliza familiar o espanhol, revela os sutis mecanísmos da substi-
uma língua misturada de elementos morfossintáticos, lexicab e tuição linguística. A língua é percebida, e fundona, porunro,
fonéticos próprios do galego numa pequena fala em espanhol.

142

~
'"'~J.
'.J·~ .~
-1. • _·~_-::_·:::::.:_ _ _ _ _ _ __
11
LAGARES, 2006.

u MATIOS e SILVA, ~006, p. 21-26. 26 "-De tanto trabalhar como empregada doméMica, esqueci toLalmente o
gakgo.
o MONTEAGUDO, 1999, p. 174-175; MARINO PAZ, 1999, p. 105.
- Fala sériot
H BUESCU, 1983, vv. 396-398.
r1 Essas formas espanholas encontram-se muito frequentemente nas falas
15
LEÀO, 1983, p. 220. galegas, mas a nonna autonomista encontrou diferentes soluçôcs para cada
16
ANDERSON, 1983. uma delas. Para calçada, elemento urlY.mo que não existia no âmbito rural
em que o galego sobreviveu como. língua falada, foi inv~nta<lo_atra~és
n FERNANDEZ REI, 1988, p. 102. Tradução: "O galego, obviamente, de um processo de composição Jex1eal um novo substantivo, hetrarrua.
nunca seria uma língua "por elaboração" (e algum dia língua "por Não se colocou problema algum com a palavra autohús, embora não seja
distanciamento") se todos os seus falantes adotassem o português como estranho ouvir entre falantes galegos outras formas, como a do português
língua própria após renunciar à elabora\iio da língua galega." brasileiro, ônibus, que também existe em espanhol (ômnibus esp.), ou
mesmo trolebus.
t.; 18
Freixeiro Mato (2002, p. 167), defendendo a necessidade de um consenso
;, j Um interessante estudo sobre o grnu de interferência do espanhol e a
1 normativo sobre a base da nom1a autonomista, afirma o seguinte; "Ora lll

bem tampouco se podem virar as costas ao português e a Portugal, e influência da recente norma do galego pode ser encontrada cm Kabatek
rnoito menos agora en que coa integración europea Galiza e norte do (2000), no qual se mostram entrevistas e íuízos meralinguísticos de pessoas
p.1.ís viciii.o constitúen unha única reuxión europea, senón que se debe ligadas aos meios de comunícação e a instituições universitárias que
procurar no posibe1 un achegamento que neste momento parece máis trabalham com a língua.
conveniente por \-ia do léxico e por via da aproximación e intercamhio
cultural do que póla via da ortografía."
19
CARVALHO CAl.ERO, 1983, p. 34. REFERÊNCIAS
21) CALVET, 1993.
.n RODRIGUES FAGIM, 2001, p. 46-47. ANDERSON, B. Imagined communities: Reflections on the origin and
22
RODRIGUEs fAGlM, 2001, p. 184-203.
spread of nationalism. Londres: Verso, 1983.

u O nome Palop é uma sigla que corresponde a Países Africanos de Língua ARACIL, L. V. Do latim às línguas nacionais. introduçào à história social
Oficial Portuguesa. das línguas europeias. Santiago de Compostela: Associação de Amizade
Galiza-Portugal, 2004.
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2'j A gheada consiste na realização fricativa faringa!, laringa! ou mesmo AUROUX, S. A revolução tecnológica da gramatização. Campinas: Edi-
tora da Unicamp, 1992.
uvular sonora do /g/, em formas como amígho ou ghato, carncterística
sobretudo da área do galego ocidental (Femández Rei, 2003, p. 163-
AUROUX, S. A filosofia da linguagem. Campinas: Editora da l'nicamp,
189). A hipótese estruturalisra defendida por alguns autores interpreta
1998.
o fenômeno como resultado da evolução orgânica do /g/ em posição
fraca, sem qualquer possibilidade de interferência do castelhano. Essas BUESCU, M. L. C. Copilaçám de toda las obras de Gil Vicente. Lisboa:
hipóteses mecanicistas contestam a de Pensado 0970) sobre a influência
Imprensa Nacional/Casa da Moeda, 1983.
do c:astelhano. Mais recentemente, Freixeiro Mato ( 1998, p, 153-158), que
defende a tese da interferência do caSfelhano para explicar a gênese do CALVET, L.-J. Linguística e colonialismo (Pequeno tratado de p,lotofaxia >.
fenómeno, 1embraria a impossibilidade de se explicarem as mudanças Santiago de Compostela: Laiovento, 1993.
linguísticas deixando de lado as condições sociais em que estas acontecem,
assim como, neste caso concreto, a falta de explicações coerentes sobre CALVET, L.-J. Por unha ecolo.x:ía das linguas do m11ndo. Sanciago de
a ausência desse fenômeno em qualquer área linguística do po1tugués, Compostela: Laiovenco, 2004.
pojs ..praaicamente non salx1iamos citar nengún fenómeno linguístico
que morra totalmente na fronteira do Mino, senõn que <lunha forma ou CARVALHO CALERO, R Da/ala e da escrita. Oun::nse: Galiza Edirorn.
doutra todos están presentes a ambas as marxes do rio" (Freixeiro Mato, 1983.
1998, p. 154).

14<i
14~
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148 1-+9
"J
1
l CLÁUDIA MARIA CENEVIVA NJGRO

1
i
l
l

IDENTIDADES EM EXClUSÃO
AS PERSONAGENS fEMININAS DE
TONY MORRISON EMAYA ANGElOU

FEMINISMO E FEMININO

I don't write 'ist' novels! l can't rake positions that are dosed.
Toni Morrison

As controvérsias contemporâneas acerca dos problemas de


reivindicação de identidades levam o leitor a inúmeras questões
e respostas que novamente podem ser questionadas.
A identidade pós-moderna discutida por algumas críticas
que se nomeiam feministas (no sentido mais radical da palavra)
já não é mais suficiente para justificar o tmbalho de inúmeros
escritores contemporâneos. Explico-me: a escrita feminina antes
feita por mulheres agora é reivindicada por outros grupos, que
incluem gays, lésbicas e homens heterossexuais. Uma vez que
muitas editoras, principalmente nos Estados Unidos, come~<1m a
privilegiar essa escrita, novamente assistimos a uma empreitada
inteligente, semelhante à de George Eliot (Mary Ann Evans, roman-
cista inglesa), ou seja, ele escritores usando a escrita cunhada
como feminina para publicar suas obras.
A fim de ter suas obras literárias publicadas, os escritores
contemporâneos criam, portanto, um novo padrào, utilizando os
papéis sociais politicamente reivindicados no debate acadêmico
na tentativa de reaver um suposto modelo: o de trazer os papéis
sociais quando deles necessitem. Esse novo padr..1o pode ser
exemplificado pela situaçào aparcntenwnte estranha que se criou
por ocasião do início dos ataques do PCC (Primeiro Comando marcando separação, estereótipo, º.próprio machísmo insti~uí~o,
da Capital), fom1ado e dirigido por presidiários e simpatizantes, pois às mulheres será (e é) permiti~lo apenas.º tema femtnmo,
em Sào Paulo, no ano de 2006. Os policiais e ladrões inverteram bem como utilizar palavras com sunleza e delicadeza.
seus papéis já consagrados pela sociedade, ou seja, os bandidos
Diante disso, indago-me sobre o que falariam as amazonas:
apareciam e os policiais se escondiam, posto que ernm, na ocasião,
alvos "ivos. Depois dos ataques, o próprio ato de nomear-se a mulher guerreira chinesa, dentre outras, sobre .suas. . espadas~
~ ~
A tradição, a família, a fraternidade, o amor e a v1t1m1zaçao sao
policial tomou-se ainda mais que perigoso. Os policiais que, <le
temas femininos? Sobre o que falam, então, os nossos poetas e
certa forma, vangloriavam-se de seus distintivos, esconderam-se
por causa deles. O discurso assentado em papéis sociais definidos escritores?
precisou ser renovado, e a nomeação apareceu somente em seus A cegueira conceituai de alguns enfatiza o ~recon~eciI~ento
próprios núcleos de trabalho. mútuo e a formação ou, até mesmo, a segregaçao da 1clent1cla_de
outra. Ao mesmo tempo que se postula uma postura combativa
Tendo o exemplo acima como alusão da força cio nomeável
na sociedade que perpetua rótulos e já não sabe o que fazer com que deveria ceder terreno para o respeito às diferenças, fo~m~s-~
eles, a visão do constituir-se feminino dissolve-se na abordagem conglomerados de iguais, que escrevem para os seus 1gu~1s
de construção social identitária que o indivíduo almeja para si e são apenas lidos por eles. Por meio da legitimação da ~senta
Se não tenho 1ugar na sociedade, busco-o, arranco-o a qualquer feminina, perpetua-se o status quo determinado e determinante
custo. Vecchi, em prefácio para o livro Identidade, afirma que: durante anos pelo machismo.
Judith Butler, discutindo a crítica genealógica de Foucault,
Numa sociedade que tomou incertas e transitórias as identidades sustenta que "ela investiga as apostas políticas, designando con_io
sociais, culturais e sexuais, qualquer tentativa de "solidificar"' o origem e causa categorias de identidade que, na verdade'. sao
que se tomou líquido (...) levaria o pensamento crítico a um efeitos de instituições, práticas e discursos cujos pontos de ongem
beco sem saída. Seu convite, portanto, é a exercitar um pouco de são múltiplos e difusos" .3 São essas as identidades trabalhadas na
sabedoria, mas isso será inevitavelmente rompido por convidados construção das personagens de Angelou e Morrison.
inesperados, isto é, as estratégias de adaptação à "modernidade
liquida" que vemos em ação nas sociedades capitafü;tas tardias. 1

No entanto, em algumas leituras, a literatura de autoria femi- MAYA ANGELOU E TONI MORRISON
nina, tendo como berço tais reivindicações, propaga a ideia de
construção de genealogias, que "narram as relações de mulheres J speak to the black experience, but Iam always talking abo~r
com outras mulheres". 2 A meu ver, a concepção de construção the human condition - about what we can endure, dream, ,fad
ar, and sttll surv1ve.
de genealogia leva-nos novamente à busca de uma verdade um
Maya A nfwlou
tanto quanto cartesiana, pressuposta a partir das ideias de que
as mulheres carregam em si mesmas uma identidade comum. · Imente, a 1magma.
Impercept1ve · · ça-o dos cr1'ticos
. . e leitores
.
A autoria feminina ficaria, assim, reduzida ao procedimento de constrói-se como metáfora segregacionista, d1ssolv1da no fatd-
estabelecer uma identidade coletiva. Estar-se-ia, portanto, discu- lismo da dualidade, o que vem a ser pouco apropriado para a.s
tindo um topoi fixo, predeterminado, posto que sem o domínio personagens de Toni Morrison e Maya Angelou.
do masculino não haveria necessidade de marcas duvidosas.
A leitura de ensaios críticos sobre as escritoras levanta alguns
Uma vez ouvi que determinadas palavras, como bebê, por questionamentos que, naturalmente, se tomam presentes, tais
exemplo, são marcas da escrita feminina. Ora, bebês para mim
como: Quando as autoras escrevem suas, o1)r; t.s,, •'l es(Tita
· é nnrctda
'
são de domínio público, ou seja, se a escolha de palavras, como de modo que somc.>nte as rnulhert•s enten(1am as· mu li iert:, ' ·s'· Os·
bebê ou faca, demarcarem o gênero de quem fala, continuar-se-á

152
T<Xla noite, Pecola rezava, pedindo olhos azuis. Em seus onzl.'
anos, ninguém jamais a havia notado. Mas, se tivesse olhos azuis, Mergulhados nessa inquietude da impossibilidade de realizar
pensava, tudo poderia ser diferente. Ela seria tio linda qut' ~t'us a análise última em relação à obra de arte escríta, optamos
p..1.is poderiam até mesmo parar de brígar. Seu pai poúeria pamr apenas pelo ato de dizer sobre ela. E dizer poderia ser o que
de beber. Seu irmão JXxleria parar de fugir. Se ela pudesse apernis basta ou, ainda, o que bastava em todas as escolas literárias,
ser bonita. Se as pessoas pudessem apenas olhar para e]an cujas identidades eram, e ainda são, estabelecidas por padrões
que, surpreendentemente, são corrompidos por essas grandes
i Maya, por sua vez, em J know wby lhe caged bird sings, afinna: escritoras. Obviamente, na ocasião em que escreveram, a questão
"Eu ficaria parecida com uma estrela de cinema. (Em de seda [o não era a de não serem compreendidas em seus anseios mais
seu vestido} e isso compensava a cor horrível.) Eu seria como
íntimos, ou apenas saberem situar-se no momento histórico,
uma daquelas menininhas brancas e meigas, que faziam pane do político e social, mas sempre os transcenderem, o que parece
imaginário de todos, a respeito do que era certo no mundo."u extremamente irônico quando o que está em jogo é o escrever
Quem alimenta esse tipo de sonhos em garotinhas? Que tipo e publicar suas obras.
de discurso é esse, em que as diferenças não se constituem de Assim, toda reflexão sobre sua literatura mostra-se, como dito
foona oomum, mas ex1ensivamente marcadas? Qual é a diferença anteriormente, pela própria natureza do objeto, insatisfatóría e,
entre o comum e o instituído? Como as supostas diferenças evidentemente, envolve-se com o vazio que pretende preencher,
perperuam as noções de raça e gênero, entre outras? o que dá aos textos literários tamanha abertura para a reflexão
O sofrimento pessoal de cada personagem feminina toma-se sobre as questões identitárias e de exclusão, encre outras.
sofrimento de todos os que um dia foram vitimizados. Todas as As personagens de Angelou e Monison, nas duas obras anterior-
mulheres personagens são inteligemes, trabalhadoras e prJticam mente citadas, podem ser consideradas representantes da abertura
atos que desestruturam as comunidades de que fazem parte. ~ào para a reflexão instaurada sobre o par identidade/exclusão e,
aceiram o rórulo de negras estúpidas (Sambo figure), bêbadas como tais, encontram-se inseridas no vazio ilusoriamente preen-
~Blue man) e subservientes (Une/e Tom). E nem se entregam à chido da contemporaneidade.
unagem da mulher infeliz, que não encontra nenhuma saída para
a vida e só lamenca (Bessie Smith 's Blues). (. ..) em nossa época líquido-moderna, o mundo em nossa volta
Takez possamos ler a literatura das escritoras como um está repartido em frngmencos mal coordenados, enquanto as
nossas existências individuais são fatiadas numa sucessão
discurso intertextuaI sobre as diversas referências que os leitores
de episódios fragilmente conectados. Poucos de nós, se é que
atribuem aos sentidos linguísticos existentes ou não nas obrJs. alguém, são capazes de evitar a passagem por mais <le uma "comu-
Por meio de uma reflexão critica sobre a linguagem, i:a!Yez pos- nidade de ideias e princípios", se[am genuínas ou supostas,
samos apontar para uma busca fa\·orecida pelos códigos e para bem integrndas ou efêmerns (, .. ). 14
os USOS dessa escrita literária que constrói personagens femininos
como indivíduos e não como animais marcados com gênero e Certamente, a tentativa ele responder a essa natureza efêmera
e:.t>écie. da identidade, na época líquido-moderna em que habitam as
As abordagens criticas mais recentes esforçam-se para dar personagens de Angelou e Morrison, não cokx<l em risco a garanti:i
roma de. apropriar-se de e preencher os espaços de ambiguidade dessa necessidade de fazer-se idêntico ou nào - a obra de arte,
do texto literário e de cada obra de arte escrita que cause em razão de muitas buscas, nào está fundamentada em nada. Pre-
seus leitores (ou no leitor que reivindica autoridade de análise e tenso elemento integrador dos amantes da escrirn, a obrJ de arte
iulgamento) o ·efeito sublime", de que faJa,·a Edgar AJan Poe.'' organiza-se a partir dos atos que levam o sujeito a estabelecer
Por vezes, CO!k"iêgUem. regras de conduta em sociedadt', já que, sem elas, o dizer toma-se
precário ou, até mesmo, impossível.

156
!
1'l ·.1 Dessa fonna, tais questionamentos desembocam na ideia
da desmistificação da imagem da mulher negra, assim revista.
o número oito é marco tanto na obra de Angelou, quando
Ma a é estuprada pelo namorado da mãe, quanto na obra ~de
l! i Aliás, o modo como o discurso é tecido nessas obrns reforça y·
Mornson, em que Twyla e Roberta são abandonadas pelas maes
'1. 1
~ í·
a ligJçào com a literatura ocidental canonizada, ilustrada por b · 0 sofrendo terrível segregação, não por serem negras ou
\I' . alguns procedimentos, como a inlertextuaHdade, a aproximação, a no a ng , d - f- T M
! 1· brancas, ma S Po r não possuírem
·· o status . ,e oras.
. anto , aya
1i transgressào e a reivindicação por uma identidade, entre outros.
'' quanto T wyla e Roberta têm uma expenenc1a . marcante
. b que
A reflexão dá-se com a elaboração da identidade do ser humano · constantes indagações na vida adulta so re o . ser
desencad eia
em constante busca, desenvolvida ao longo do texto e, principal-
feminino e negro · Elas sabem como navegar
· · . no texto, combinar , .
mente, com o trJ.nsito sem rumo das personagens nas imagens 6t. os com não estereótipos e manipular o texto que as
comemporJ.neas. estere •P · . . - , d , .;-
segregou e exclul·u · o corpo femmmo e a .metafora
. . a naçao
Llnda Hutcheon, em artigo sobre o pós-modernismo e o idealizada, buscada e imaginada, em que as miustiças desapare-
15
feminismo, sustenta que não há posição fora das metanar- cerão e 0 respeito estabelecer-se-á.
rativas lyotardianas, criadas com a suposta intenção de manter
um lugar para a mulher na sociedade patriarcal, e, assim, toma-se
impossível lançar uma crítica que não esteja comprometida, de "RECITATIF"
alguma forma, com elas. Para Hutcheon, enquanto os feminismos
puderem usar as estratégias paródicas pós-modernas da descons- We allow our ignorance to prevail upon us and make ~s think
trução, nunca sofrerão dessa confusão de agenda política, ou seja, we can survive alone, alone in patches, atonem gr~ups, alone
nunca poderão ser julgados como feminino ou masculino. Isso in races, even alone m genders.
se dá, em certa medida, porque essa agenda política pressupõe
Maya Ange/ou
uma posição e uma verdade que proporcionam meios de com·
preensão das práticas sociais e estéticas, à luz da produção de Em "Recitatif"' de Monison, a narradora conta uma história
questionamentos sobre as relações de gênero. É a metanarrJtiva da affilza
. de , que se toma conflituosa, de duas mulheres, , uma
.,
dos feminismos. Isso constitui, também, a sua força e, aos olhos negra e outra branca. O mais interessante nesse conto - o urnco
de alguns, a sua limitação necessária. da escritora, publicado em 1983, em Confirmation: an anth~logv
Hutcheon obsenra que as estratégias representacionais do pós- ojAfrican American women, organizado~ editado por .Am1~-ª e
-modernismo (paródicas e irônicas) oferecem às artistas feministas Annire Baraka - é que só mais tarde o leitor pode, tah_ez,. vtr a
modos efetivos de trabalhar no interior dos discursos metanar- saber quem é a negra e quem é a branca, já que a ª,º~b1gu1~lade
rativos dominantes, ao mesmo tempo que os desafiam. é perpetuada até o fim da narrativa: "Oh, Twyla, voce sabe como
eram as coisas naqueles tempos: preto- b ranco. ·•16
A ficção de Morrison e de Angelou descreve-se como busca
por uma identidade negra feminina complexa num movimento A história tem início no encontro das duas, aos ?ito anos,
aparentemente autorreflexivo. Por meio do próprio ato de criaçào, num abrigo para menores abandona<los. Depois de mmto tem~~·
suas personagens fogem do livresco e apresentam-se gritando por reencontram-se maIS . quatro vezes,, a<.i u l"•s • ~ e r-
.... , n1-i"S "''rtencenres a
seu lugar na sociedade, sofrendo por não o possuírem, rindo por diferentes lados políticos, econômicos e, claro, raciais. O apagamento
não pertencerem a ele, amaldiçoando por terem um lugar que dos traços raciais dá-se quando a escritorn opta por <.lt~screver o
não desejam e agradecendo por serem ouvidas e construírem-se ponto de vista das personagens, vo1ta<.i o p.ir. , a as, -sinnçoes
• . - e para
como reais. É interessante notar que essas identidades in<livi- as outras personagens envolvidas. .,
duaís são produzidas quando as autoras escolhem descrever essas Nas duas obras discute-se a mate1ml, [ • f>rt'llleiro · n»)o
· . ·!·1 lt.:. r- \"lt'S
.
reflexões por meio de mulheres adultas, recordando marcos de das filhas e, depois, pela m~nernilLkk quL' trJnsforma suas n~l~l~
suas vidas, iniciados nas narrativas aos oito anos. comuns. O dizer pelo olhar nmstítui-se pdtic:t comum entre as

158
1"9
amigas. Poucas palavms são necessárias para o enten<limento Os panfletos estavam espalhados por to<lo o lugar e o conteúdo
sobre suas mães. A linguagem é utilizada como meio pal"J suavizar a da minha bolsa estava amontoado embaixo do guarda-lama <lo
realidade, apagando traços de inaptidão das mulheres adultas em carro. O que ela estava dizendo? Negra? Maggíe não era negra.
reaHzarem seus papéis de màe. 'I'wyla justifica a razão de sua mJe
- Ela não era negra, eu disse.
não poder ficar com ela, com a frase: "Ela gosta de dançar." Com
- Claro que não era, e você a chutou. Nós a chutamos. Você
roupas e comportamento provocativos, a mãe de Tvvyla muito se
chutou uma senhora negra que não podia nem gritar.
assemelha à mãe descrita por Maya: "Ela era muito bonita para
ter filhos." A linguagem altamente irônica (des)associa a mãe da - Mentirosa.
imagem de prostituta, ou de mães que não desejavam ser mães, -Você que é a mentirosa. Porque não vai para casa e nos deixa
no construto ocidental de maternidade que conhecemos. em paz, hein? 18

"Recitatif" é a história de mulheres, grandes amigas na infüncia, Em "Recitatif", há vários enigmas não resolvidos no enredo
na qual o discurso do outro não revela o construto de raça difun- que necessitam da parceria do leitor, Ou seja, Morrison, mais
dido e já questionado anteriormente. Durante todo o conto uma vez foi brilhante em expor as chagas da sociedade como
em seus reencontras, elas lutam para redescobrir as memórias' paródia da defesa pela origem: o que as amigas querem é outro
que lhes propiciaram tamanha intimidade e empatia, deixando lugar, um topoi imaginário. Não o possuindo, vivem reivindicando
de lado suas outras experiências.
mudanças, vivem moldando identidades excludentes, as mesmas
O lado de vitimizadora é demonstrado, em ambas, quando moldadas pela sociedade de que participam.
participam, de certa maneira, do ataque a Maggie, uma funcionária Spivak afirma ser "fascinada pela maneira com que Freud
manca e surda que trabalha no abrigo e, mais tarde, é descrita declara que uma história de repressão produz a sentença final.
por uma das amigas como negra.
É uma história de origem dupla, uma escondida na amnésia do
Na verdade, Morrison coloca palavras na boca dos subaltemos 17 infante, a outra alojada em nosso passado arcaico, assumindo por
para voltarem a ecoar nos ouvidos dos que podem ouvir. A cons- implicação um espaço pré-originário onde homem e animal não
ciência de que havia uma raça negra e que essa era segregada e são ainda diferenciados." 19 Para Morrison, o espaço pré-originário
não possuía os mesmos direitos da branca, só depois é exposta, em "Recitatif' abriga o ser humano, e isso basta.
quando as amigas encontram-se rodeadas de outros amigos, em
posições sociais diferentes (uma é caixa do supermercado e a
outra é cliente), e têm seus filhos na escola, na época em que a POR QUE O PÁSSARO ENGAIOLADO CANTA?
integração racial começa a ser imposta pelo governo americano.
O tomar partido, contra ou a favor da situação, leva as amigas, A bird doesn't sing because it has an answer,
protestantes em lados opostos, a ironizar a sua própria participa- it sings hecause it has a song.
ção. A'i duas atendem ao protesto não para lutar contra/a favor do :Haya Ange/011
racismo dominante, mas para lançarem uma à outra as questôes
que não conseguem responder. No conto, a atitude das mulheres Nesse romance, também considerado autobiográfico, Maya
causa estranhamento aos participantes: Angelou descreve sua própria história, com um mcxlo simples
e elegante de apresentar a segregai;.·ào que sofreu em situaçôcs
- Talvez eu esteja diferente agom, Tt\-'}'la. Mas você não. Você ímpares. Relembrando o discurso do diretor sobre o futuro dos
é a mesma menininha interiorana, que chutou uma pobre velha alunos, por ocasião de sua fom1atura, n<t escola secundária, .\faya
negra quando ela estava caída no chão, Vcxê chutou uma senhora afirma: "nós éramos criadas e agricultores C.. l Era horrível ser
negra e tem a cara de pau de me chamar de intolerante! negra e não ter nenhum controle sobre a minha vida.".:<'

160 lül
Maya conta a vida dos 3 aos 16 anos. A infância e a adoles- Então veio a dor. Um assalto e violação, um entrar e sair, no
cência da escritora, nas décadas de 1930 e 1940, é assim descrita momento em que até mesmo todos os sentidos são rasgados. O
e repensada. É interessante notar que, nos 10 primeiros anos da ato de estupro, em um corpo de oiro anos, é um problema da
sua narr-.uiva, vivida em Stamps, Arkansas, o próprio nomear-se doação da agulha, jã que o camdo não pode se dar. A criança
aparece ambíguo - Maya ou Marguerite? Coabitando com a avó dá porque o corpo pode, e a mente do víola<lor não. 2'
e o im1ào, Bailey, Maya reflete sobre o instituído, representado
pe1a sociedade sulista americana, tendo como suporte a avó e a Parece que a autorn mostra em sua obra o que Rorty sugere: uo
religiosidade intensa e repressiva. Em um dos momentos consa- modo mais eficiente de expor ou dcsmistifícar uma prática exis-
grJ.dos do romance, o incidente na igreja, quando é criança, e que tente deveria ser pela sugestão de uma prática alternativa, além
reconta já adulta, Maya critica a sua posição quando menina, 0 de apenas criticar àquela corrente".:u Angelou critica a sociedade
que pode ser uma ilustração do questionamento ao instituído: límitadora, por meio de descrições de situações poderosas que
ilustram o riso, o choro, o nada.
Corri, urinando e chorando, não em direção ao banheiro <los
fundos, mas para a nossa casa. É claro que eu apanharia por isso,
e as crianças maldosas teriam algo novo com que me provocar.
O FORJAR DE NOSSAS IDENTIDADES: QUEM É A
De qualquer modo, dei gargalhadas, em parte por causa do alívio.
No entanto, a grande alegria não veio apenas da liberdade de VÍTIMA E QUEM É O VITIMIZADOR?
não frequentar a igreja tola, mas do entendimento de que eu não
morreria de uma cabeça arruinada. 21 O trabalho da escrita que reivindica o respeito ao ser humano,
sem discriminação, exclusão e opressão, e a leitura que assim o
Os conceitos de Estado e nação desenvolvidos por Bauman confirma buscam uma utopia idealmente prescrita. Alguém disse
~eriam ser levados à mesma contestação de Angelou, se substi- que a literatura de Morrison é árdua e a de Angelou, de protesto
nudos peJos conceitos de comunidade e minoria. O autor declara velado. Como assim? Se você, leitor, espera que as personagens
o seguinte a esse respeito: femininas sejam marcadas com raça, cor e, principalmente, uma
postura só parn mulheres, esqueça. As autoras citadas escrevem
Estado e nação precisavam um do outro (. .. ) O Estado buscava a na contemporaneidade, em constante diálogo. Na mesma con-
obediência de seus indivíduos representando-se como a concre- temporaneidade em que o sofrimento e a violência fazem parte
tização do futuro da nação e a garantia de sua continuidade. Por
da vida de cada um. Não é apenas do sofrimento racista que elas
outro lado, uma nação sem Estado estaria destinada a ser insegurn
falam, mas de como este sofrimento atinge e se (trans)fom1a,
quanto ao seu passado, incerta sobre o presente e duvidosa de
seu futuro, e assim fadada a uma existência precária.22 individualmente, voltando, mais tarde, se o leitor o permitir, a
retratar aquela comunidade.
Assim, a "igreja toJa" de Maya constrói-se como necessária para
ª manutenção da comunidade afro-americana mas também se
perpetua limitadora de seus horizontes. A fun
de demonstrar a ambí-
1 guidade da personagem, a linguagem de Angelou é tempestiva e
l1 toca os sentimentos mais escondidos da menina negra, podendo
ser representante e representada por qualquer menina vitimizada.
}
O narrar a própria história, fazendo uso de recursos inatingíveis
pela linguagem comum, causa no leitor um efeito intensificado.
Descrevendo o estupro ocorrido aos oito anos, declara:

162
-~·;...·· 163
~~- ~·

.. ~~~ :·
--··-:~-----
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1
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1 ;.'' l
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l NOTAS
r ' 19 SPIVAK, 1994, p. 92.
?~·

!".
~·~
:~
l
f
i
t VECHJ, 2005, p. 12.
1D ANGELOU, 1989, p. 175-176.
~
$ j 21 ANGELOU, 1989, p. 5. Texto original: "l ran, peeing and crying, not
1
i ALMEIDA, 2006.
i !'
ij
í'
J \
3
BUTLER, 2003, p. 9.
toward the toíler out back but to our hou:;e, I'd get a whípping for it, to
be sure, and the nasty children would have something new to tt:ase me
~ 1 about. I laughed anyway, partially for the sweet release; still, the greater
4
~ BAUDRIUARD, 2006. joy carne not onfy from being liberated from the silly church but from
i' ~ BAUMAN, 2005, p. 16.
the knowledge that I wouldn't die from a busted head."
''
j 6 ii BAUMAN, 2005, p. 27.
l MORRISON, 1983.
7 23 ANGELOU, 1989, p. 76. Texto original: "Then there was the pain. A
ANGELOU, 1989.
breaking and entering when even the senses are tom apart. The aGt of
8
HOUAISS, 2001. rape on an eight-year-old body is a matter of the ncedle gíving because
the carne! can't. The child gíves because the body can, anJ the mind of
~ HOUAISS, 2001, p.199. the violator cannot."
10
MORRISON, 2006. u ROR1Y, 1995, p. 227.
11
MORRISON 2000 . .
bl , , p. 27. Texto ongmal: "Each night Pecola prnyed for
bl~: er:8· ln her eleven years, no one had ever noticed Peco!a. But with
~yes, she thought, everything would be dífferent. She would be so REFERÊNCIAS
~~~e~e~parents would s_top fighting. Her father would stop drínking.
, ould stop runrung away. If only she coukl be beautiful. Jf
0 nl} peop1e would look at her."
ANGELOU, M. I know why the caged bírd sings. London: Virago, 1989.
i2 ANGELOU, 1989, p. 4 Te . . ." ' . .
s·lk d th · xto ongmal. I d look like a mov1e star. (Ic was
i an at made up for the a fui 1 ) ALMEIDA, L. Linhagens e ancestralidade na jiterat_11I.a_ç!e autoria
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15
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1
.,. SPIVAK., 1994. BUTLER,J Problemas de gênero: feminismo e subversão da identidade.
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1$ MORRISON, 1983, p. 9. Texto original:
~A-favbe I am diiferent now T la B HOUAISS, A. Dicionário Houaiss da lfngua portuguesa. Rio de Janeiro:
kid ~rho ki ·k xi ' v.y · ur you're not. You're the sarne little state
y ou kkk~ ae~ old black lady when she was down on the ground.
Objetiva, 2001.
lady and you have the nerve to cal! me a bigot."
The coupom; were everywh d h HlITCHEON, L. A incredulidade a respeito das metanarralivas: articu-
under the -i,... ere an t e guts of my purse were bunchcd lando pós-modernismo e feminismos. Labrys, Estudos Feministas. v. 1
u=hboard • What was· she ·· · ~ uu1 ac k'·f Maggie wasn't black.
saymg:-
4
She wasn't black, • I said,

e 2, p. 7-12, 2002.
~Llke hell she wasn't and k' k d MORRISON, T. Recitatif. ln: BARAKA, A.; BARAKA, A. (Org.). Omfimwtion:
black lad ·h ' , you K e her. We both did. Yoll kick('.d a
Y w o couJdn t even scream.• an anthology of African American women. New York: Quill. 1983.
"Liar!"
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Columbia UruvefS.lty Press, 1994.

Uma das frases mais contundentes e significativas do debate


pós-colonial dos últimos anos é a pergunta provocativa de
!, '
'. Spívak: "Pode o subalterno falar?" 1 Inicialmente, era dirigida em
polêmica contra a pretensão do intelectual ocidental - branco,
homem e heterossexual - de falar em lugar dos oprimidos e de
se colocar na mesma posição de poder do discurso colonial.
Ou seja, contra uma presunção ocidental e logocêntrica, mesmo
bem-intencionada, de poder articular, sem nenhuma violência
epistêmica, uma solidariedade entre povos despossuídos e subal-
ternos, e contra o perigo de querer falar pelo outro e em lugar
do outro, em vez de deíxá-los falar por si próprios. Para Spivak,
os subalternos precisariam se articular para inscrever sua especi-
ficidade subalterna dentro de uma identidade cultural dominante
e, assim, deixar de ser subordinados. 2
O paradoxo nessa visão aparece facilmente na centr.ilicb<le
do discurso na análise de Spivak, que desloca a economia e as
condições socioculturais e acaba definindo os subalternos como
aqueles que não têm voz nem acesso ao discurso predominante e
aos seus veículos. Ou seja, os subalternos não podem falar, pois
não seriam subalternos se falassem! O círculo se fecha ao redor
do subalterno e abre-se de novo par<1 o articulador, o mediador.
o tradutor ou o intérprete, capaz de entender a contradi(:lo em
nome da solidariedade ou da análise do discurso. Podemos
observar hoje uma importância crt•scente da media~'ào articulada
por uma nova classe de a.gemes virn.h )S de organizaçôt.·s nào
governamentais e ele projeto,-; comunitúrios. Ao mesmo tl'mpo.

166
é sig?ifkativa a autoridade que as expressões a1tístico-culturais inclusão de cenários, protagonistas e expressões autóctonas da
genumas das camadas mais pobres ganhamm durante as últimas marginalidade em produções de grande porte, com tecnologia
duas déc.idas. ·
avançada e~ muitas vezes, diretamente incluída nos programas
?°'"taria de comentar duas questões ligadas a esse paradoxo, mais populares da mídia de massa. O exemplo recerne mais
assu.n como se coloca no Brasil contemporâneo. Não se tnita notório nesse sentido é, provavelmente, o programa Minha
aqm de subalternos no sentido pós-colonial, isto é, de um povo periferia, apresentado por Regina Casé, produzido pelo Central
deslocado e despossuído na periferia ruml do poder colonial daperlferia, da Rede Globo.
urbano, senão de uma populaçào heterogênea e múhipla de No texto de promoção do antropólogo Hennano Vianna se lê:
vozes marginais que habitam as periferias várias da realídade
metroP?litana industrial brasileira. A exclusão social é, no Brasil, Não tenho dúvida nenhuma: a novidade mais importante da
um fenomeno que afeta uma população de mais de 40 milhões cultura brasileira na última década foi o aparecimento da voz
de brasileiros em condições de pobreza e miséria, sem acesso à direta da periferia falando alto em todos os lugares do pais. A
educação adequada, à ascensão social nem aos meios de comu- periferia cansou de esperar a oportunidade que nunca chegava,
nicação de massa, a não ser como meros consumidores. No e que viria Je fora, do centro. A periferia não precisa mais de
intermediários (aqueles que sempre falavam em seu nome) para
Brasil contempof'Jneo, a exclusão e a marginalização operam
estabelecer conexões com o resto do Brasíl e com o resto do
n~ c~ntro da sociedade. A falta de comunicação entre a classe
mundo. Antes, os políticos diziam: "vamos levar cultura para
média e a população mais pobre se expressa nos preconceitos e a favela". Agora é diferente: a favela responde: "Qualé, mané!
na violência, por um lado, e nos esforços de domesticar cercar O que não falta aqui é cultura! Olha só o que o mundo tem a
c~n~o1ar e entender o excluído, por outro. Assim, as políticas
' '
aprender com a gente!"
pubhcas se posicionam contra a exclusão com o intuito de Jimi-
n~ir o P!oblema da segurança e, ao mesmo tempo, apelar para Ou seja, promove-se aqui a ideia da voz direta e de uma nova
ª mclusao do consumidor das classes C e D no crescimento do possibilidade de se ouvir a periferia sem mediação nenhuma,
mercado interno. no entanto, o texto não deixa de ser expressão de uma curiosa
É notável. o interesse da mídia pelo tema, não só pelos seus ingenuidade a respeito do dispositivo midiárico, principalmente
aspectos mais chocantes, do crime e da violência mas também vindo de um intelectual cujo trabalho com a música Junk foi
pela inclusão de histórias de interesse humano n~ssa realidade pioneiro no Rio de Janeiro. Como se a exclusão de uma deter-
à margem da sociedade. Essa conjunnua tem aberto uma contra- minada realidade periférica pudesse ser resokida num golpe ele
pa_n~da nas ~ssíbilidades autóctones de expressão de artistas - tecnologia e como se a mediação midiática não apenas agravasse
mus1cos, bailarinos, atores, escritores - dessas comunidades, e, as mesmas questões em escala muiro superior.
dentro dessa :bertura, delineiam-se duas tendências na produção A inclusão da periferia na grade televisiva mais popular mostr..i
cultural e artIStica atual. A primeira se evidencia na aparição que a problemática da mediação agorJ. se desdobm numa questão
a~tônoma de livros, obras de teatro, espetáculos de dança, música, de agenciamento do mediador (o intelectual) e do dispositivo
cmema e outras expressões artísticas independentes de pe1>soas tecnológico (a mídia) na divulgação dessas vozes. Ambas as
ou grupos que habitualmente não têm acesso à expressão própria. dimensões envolvem questões sérias e complexas de natureza
Com frequência, trata-se de testemunhos diretos de seus autores socioeconômica e simbólica, uma vez que o mediador costuma
e prota~on~stas; outras vezes, de talentos que emergem em aproveitar sua atividade numa ascensão social e profissional e, por
consequenaa da mediação de organizações e iniciativas não gover- esse motivo, se expõe às criticas, apesar ele suas boas intenções.
namentais nas áreas mais desprivilcgiadas do país. A segun<la Da mesma maneira, o articulador, o artista ou o rt>prt>sentante da
tendênc· 'tida , ·
ia ru e uma populandade crescente do tema, explorado realidade periférica pcxle ganhar urna via legítima para melhorar
pelos grandes veículos de comunicação, que se evidencia na sua situação social, o que muitas vezes significa afastar-se da

168
169
vivência e da situação social que em principio legitima e autoriza marginal pelos mecanismos representativos do sistema político.
sua expressão,
As experiências desenvolvidas nesses textos não são lidas como
Não é sempre fácil, entretanto, marcar uma fronteira dara entre expressão de uma identidade autoral individual. De m<xlo indireto
as duas
• . tendências - o movimento da periferia para 0 centro. e, o se originam nos processos coletivos de aprendízagem em oficinas
contrano, ~ movimento do centro para a periferia -, pois quase literárias, monitoradas por escritores bem íntcncionados. Muitas
~m~~ existe al~u~1a ~orma de. hibridismo como condição de vezes o resultado é consequência e expressão da superação direta
viabilidade da ex1stenc1a dos dois. Nenhuma expressão artística da autoria indivídual na união de muitas vozes conjuntas por via
chega a seu público sem mediação e nenhuma exploraçào na de apropriações, citações, empréstimos e múltiplas participaçôes
mídia do assunto sobrevive sem alguma incorporaçJo da re~lidade numa escrita aberta e dialógica.
efetiva que retrata. É em tomo das diversas formas de mediac,·ào Desde o sucesso do livro de Dráuzío Varella, Estação Carandirn,
e explomção comercial que a polêmica surge, e talvez se;a uma cuja venda superou o número de 400 mil exemplares, o mercado
consequê~da inevitável desse hibridismo fundamental. Não pre- edítorial abriu um espaço comercialmente interessance para escri-
tendo aqui mapear a produção na literatura e nas artes comem- tores, profissionais e amadores, que relatam suas experiências do
podneas sobre a exclusão social, devido ao espaço limitado mundo do crime, das prisões, da proscituição, da miséria ou de
deste te1\."tO. Apenas pretendo abordar a questão a partir de dois outros cenários de exclusão social. Apesar da irregularidade dessa
exemplos. O exemplo que vou dar da primeira tendência ou escrita, a autoridade de quem viveu na carne essas experiências
seja, da tentativa de se dar a voz incondicionalmente a pes~oas radicais criou uma nova onda de literatura testemunhal. Autores
em condip.'Jes de marginalidade, encontramos na coletânea or- como josenir, André do Rap, Hosmany Ramos, Luiz Alberto Mendes,
ganizada por Reginaldo Ferrez e intitulada Literatura marginal: Ferrez, entre outros, encontraram espaço editorial apoiados na
talentos da escrita periférica. O livro é uma seleção de escritos urgência do tema. Editoras especializadas na garimpagem da lite-
antes publicados em três números especiais da revista Caros ratura marginal, como Labortexto, Estação Liberdade e Gryphus,
Amigos sobre o tema. Já na introdução, intitulada ''Terrorismo têm surgido, e algumas editoras estabelecidas, como Companhia
Jiterário", um ar de combatividade e revolta se mistura com a das Letras e Objetiva, também se interessaram por essa fatia de
procura de reconhecimento literário.
mercado emergente. No caso do outro grande sucesso editorial
nessa perspectiva, o romance Cidade de Deus, de Paulo Líns, não
Jogando contra a massificação que domina cada vez maü; os assim
devemos ignorar a participação direta, na preparação do manus-
chamados por eles de ~excluídos sociais" e para nos certificar
de que o povo da periferia/favela/gueto tenha sua colocaçào na
crito, do crítico e acadêmico Roberto Schwartz, que foi decisiva
história (...)a literatura marginal se faz presente para representar para a abertura da possibilidade editorial. Sem dúvida, nada disso
a cultura de um povo, composto de minorias, mas em seu todo tira o mérito do autor, que criou o romance brasileiro talvez
uma maioria.3 mais importante da década de 1990, mas é um fato que mostrd
a mudança nos processos criativos nas artes e na lirernrura que
O tom militante de Ferrez não esconde a contradição intrínseca modificou as fronteiras entra criação, gerenciamento. produçào,
na reivindicação da condição marginal, um traço identitário distribuição, marketing e crítica, adotando complexas fonnas <lc
fortemente estigmatizado e, ao mesmo tempo, base constítutiva produção desenvolvidas nos meios de comunica~·jo. O processo
do projeto editorial e critério positivo de seleção dos participantes, solitário da criação cada vez menos é a regra.
Para Ferrez, a categoria do excluído social mantém a hierarquia Sempre existiu uma literatura sobre o lado sombrio Ja vida
entre centro e periferia, e contra essa dupla exclusão - social brasileira. Autores como Lima Barreto, Antônio Fraga. Joào
e esp~cial - propõe-se uma certa ínversào, que converte a voz Antônio e Carolina Mari<I de Jesus s;\o alguns dos autodidatas
marginal em representação verdadeira da maioria, de um povo que participaram na fom1açüu da literatura mmkma e comcm-
comrv><:l"n po . .
i-~~'"'"' r mmonas que não se encontra representado como porànea brasileira. O que difercnda cssl's aurores dos nomes

170
)"' 1
que aparecem nas antologias atuais parece ser, à primeira vista, notícias e reportagens especiais, inserida de maneira central na
o fato de que todos se tomaram autores da literatura nacional
programação entre o Dom_tng~~ do Faustào e o B:g. Brother. No
por uma ambição literária muito mais importante do que a mera entanto, naquela noite, fo1 ex1b1<lo um documentano que, pelo
vontade de dar um testemunho pessoal e que acabou abrindo 0 conteúdo, pela linguagem e pelo estilo, foi um marco na televisão
caminho para o reconhecimento dentro <los moldes canônicos.
brasileira.
f Muitos escritores que aparecem no mercado hoje nunca passam
l do único livro e, às vezes, não são nem escritores propriamente,
o documentãrío durou 58 minutos, um tamanho que em sí já
\ 1
l: f é uma quebra radical com o formato cio Fantástico. No entanto, o
' ll '' uma vez que se apoiam em ghost-wn'fers para dar voz à expe-
verdadeiro choque foi assistir a uma reportagem que apresentava
!' .. í !' riência. Há exceções, obviamente, como o próprio Ferrez, cuja
;,
1
uma enorme intimidade entre a câmera e os entrevistados, longe
'
~ ~ ' obra já conta seis títulos de livro, ou como o detento Luiz Albeno
f ;
do sensacionalismo comum, oferecendo o ponto de vista de 17
~ Mendes, que também é estimulado pela ambição ele escrever
j i1 meninos envolvidos no tráfico de drogas em favelas do Rio de
ficção, ainda que sua literntura continue ligada ao memorialismo
i' Janeiro e de outros estados brasileiros. Mesmo que nada do que
~ e à vivência própria.
foi exposto tenha sido novidade para o público, mesmo que a
O imediatismo da popularidade midiática favorece o lança- realidade cruel do narcotráfico sempre tenha sido amplamente
mento rápido de um livro e sua possibilidade de vencia maciça. divulgada e conhecida, o documentário conseguiu uma proximi-
Um exemplo é o Diário do escotpiào, de Bruna Su1fistinha, que dade insólita com os meninos entrevistados, que, aparentemente,
foi escrito em blog e, depois de apresentado em programas de tinham plena liberdade de falar, sem intenupção nem direcio-
televisão, ganhou várias edições e vendas consideráveis, sem namento jornalístico. Os autores do projeto, que não aparecem
que ninguém por essa razão acreditasse e investisse no futuro nem fazem perguntas moralizantes, conseguem uma sinceridade
literário da autora. Em algumas iniciativas editoriais, como a surpreendente dos garotos e até uma ternura, que transpa~ece
recente antologia Cenas de favela (2007), uma inclusão efetiva nesse diálogo amputado, apesar do cenário e dos temas sm1s-
acaba unindo alguns escritores considerndos clássicos ou novos tros. O que mais surpreende é a humanidade que acompanha a
clássicos, como Carlos Drummond de Andrade, Rubem Fonseca, crueldade das histórias contadas e que possibilita uma empatia
Lygia Fagundes Telles e João António, com novos talentos, excepcional com esses jovens, nonnalmente só tratados corno
como Fernando Bonassi, João Paulo Cuenca e Luiz Ruffato e ameaça contra a sociedade.
alguns poucos escritores que apontaram como vozes marginais
O projeto se iniciou em 1998, com filmagens esporádicas em
e conseguiram se confirmar na carreira de autor, como Carolina
comunidades carentes visitadas por J'vfV Bill, e chegou a acumular
de Jesus, Antônio Frnga, Ferrez e Paulo Lins. Aqui se percebe a
90 horas de filmagens e entrevistas com uma centena de jovens,
força canonizante do mercado editorial, que, mesmo dentro da
Em 2003, a Rede Globo assumiu a produção, e a exibi~:ào do
exploração da popularidade do tema, marca um claro critério
estético na seleção. documentário chegou a ser anunciada, mas acabou sendo retirada
pelos diretores por motivos de foro íntimo. !\a época, a imprensa
O segundo exemplo é a recente transmissão, no domingo 19 especulou livremente sobre os motivos de tal quebra de contra.to,
de março de 2006, de um documentário chocante e comovente inclusive foi ventilada a teoria de que ameaças de morte teriam
- Falcão: os meninos do tráfico (2006) - realizado pelo músico provocado a decisão. Hoje, MV Bill tem explicado que n~10 foi
de bip-hop MV Bill e seu parceiro e produtor Celso de Athayde, nada disso, a decisão apenas refletia a necessidade dos autores
que assinaram como representantes da organização Cufa- Central de terem um projeto ideológico mais consistente parJ lidar com
Única <las Favelas. Aquela noite de domingo aguardava uma os desafios dessa projeção.
surpresa para milhões de telespectadores brasileiros. O programa
Sem dúvida há urna consist[•ncia inúlita no projeto, pois, ah.'.·m
da Rede Globo, Fantástico, fecha, normalmente, o fim de semana
da exibição d; document:trio, inicl< >u-se um;i grande campanha
com uma mistura descomprometida de diversão, entretenímento,
de conscientizaçào n:H.:ional em drias er:1pas de aproH·itamento

172
desse material. Um livro com as entrevistas foi editado, um filme culturais e intelectuais, que oreram nas comunidades e, ao mesmo
} '
de duas horas será 1ançado nos cinemas, um CD homônimo de tempo, conseguem apoio e cohertura de poderosas instituições
MV Bill também ser.1 colocado à venda e a utjJizaçào do interesse de política e mídia, como, por exemplo, a Rede Globo. É lógico
despertado nas mídias já produziu uma grande variedade que é preciso questionar críticamente que interesse a Globo tem
de entrevistas, artigos, comentários, discussões e apariçôes em nesse projeto. Não há dúvida de que calculam muitos benefícios
progrJmas. Não há dúvida tampouco a respeito do ineditismo nada altruístas em termos de imagem e produção de um fato de
desse projeto, em relação tanto ao tratamento do material, mídia que se aproveita e reaproveita em sucessivas autorreferên-
quanto ao aproveitamento dos canais de divulgação altamente cias do jornalismo sobre o próprio jornalismo.
profissionalizados e comerciais para uma mensagem politicamente Os comentaristas da imprensa têm criticado duramente o
eng-Jjada de dois ativistas em movimentos comunirários. o que
circo que a Rede Globo montou, posteriormente, na exploração
precisa ser enfatizado é que se trata de um fenômeno pioneiro do fato, mas talvez seja preciso, nesse caso, dar a César o que é
e, ao mesmo tempo, indicador de uma nova tendência na relação de César e deixar de lado as teorias tradicionais de conspiração
entre artistas, intelectuais e ativistas em projetos culturais com
e manipulação para celebrar a realização dessa estranha aliança
finalidades sociais. É verdade que a realidade revelada pelo que fez possível uma divulgação do debate para um público
documentário não é desconhecida; muito pelo contrário, direto de mais de 50 milhões de brasileiros ligados ao aparelho
muitas pesquisas e reportagens têm mostrado a desumanidade televisivo no horário exclusivo de domingo. O mais importante
das condições de exclusão dessas comunidades, o mecanismo dado novo nessa produção aparece se consideramos a trajetória
de recrutamento de crianças para o narcotráfico por ausência de dos dois autores e idealizadores do projeto, ambos nascidos em
outras opções e a realidade brutal e suicida do caminho do crime favelas, onde continuam vivendo de perto essa realidade, um
' .. : para esses jovens infratores.
fato que obviamente possibílita outro tipo de contato com jovens
Outros documentários recentes, como, por exemplo, Noticias de comunidades muito parecidas. Conseguem colocar perguntas
de uma guerra particular, de João Salles, mostram cruamente críticas sem soar ofensivos nem pedantes e conversam com os
essa mesma realidade em detalhes. No entanto, há uma diferença envolvidos com a franqueza de quem cresceu com os mesmos
muito grande no tratamento das histórias dado em Falcào: os problemas, estimulando os jovens a falar sem cuidado e com
meninos do tráfico, pois os autores evitam o olhar sociológico, grande sinceridade e afeto.
de quem vem de fora para denunciar uma injustiça, e prestam A história de colaboração entre MV Bill e Celso Athayde é
mais atenção à voz dos entrevistados, à opíniào e à visão deles interessantíssima e mereceria um trabalho extenso em si. Amhos
da própria realidade, criando um depoimento muito mais agudo têm um longo currículo de eventos, projetos, produtos e obras
e claro do que se poderia esperar de crianças e jovens na culturais, assim como provocações e íntervençôes na opinião
maioria analfabetos ou iletrados. Todos conhecem muito bem o
pública, que, às vezes, têm-lhes causado problemas com a lei,
beco sem saída em que se meteram, são conscientes da lógica como por exemplo o vídeo clipe de !YIV Bill, "Soldados do tráfico~,
perversa na relação entre o tráfico de entorpecentes e as forças que sofreu processo judicial por apologia ao crime.
policiais e aguardam laconicamente o destino fatal que espera
A mais recente realização foi um livro intitulado Cabeça de
a quem não sair desse caminho errado em tempo. Dos 17
meninos entrevistados em 2003, apenas um sobreviveu até hoje,
porco, escrito a seis mãos, em colaboração com o sociólogo luis
Eduardo Soares. Numa escrita pessoal e ao mesmo tempo coletiva.
e alguns morreram já durante a própria filmagem. Não comento
esse trabalho para entrar na discussão do problema em sí, mas registram aqui impressões, reportagens e entrevistas em fa\"ebs,
para sugerir que representa um tipo de engajamento que sô tem periferias e comunidades c-.irentes de todo Hra:->il, numa radiografia
sido possível pela criação de formas inovadoras de colaboração de extraordinária amplitude do problema do tdfico, muito além
e interação entre artistas, ativistas comunitários e produtores das reportagens de guerra. st•mpre focadas nos morros c1ri<Kas
ou na periferia paulista. Sào artistas de uma mH"a classe. cujos

174
NOTAS SANTIAGO, S. Outubro retalhado (Entre Estocolmo e Frankfurt). Jn:
MARGATO, I.; GOMES, R. C. (Org.). O papel do intelectual hoje. Belo
1
Texto original: "Can the subaltem speak?~ (ver SPIVAK, 1988). Horizonte: Editora UFMG, 2004.
2
SPIVAK, 1988. SANTIAGO, S. A globalização dos pobres. Rio de Janeiro. Rocco, 2005.
3 FERREZ, 2005, p. 11.
SCH0LLHAMMER, K. E. Os novos realismos na arte e na cultura con-
4
SANTIAGO, 2005. temporânea. ln: PEREIRA, M.; GOMES, R. C.; FIGUEIREDO, V. L F.
Comunicação, representação e práticas sociais. Rio de janeír0: Editora
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178
179
identit'.itias das populações ribeirinhas da Amaztmia, em par1k'ular expresso no uso da linguagem popular (sumo das peculiari-
do estado do Par.i, nas obras dos escritores Benedicto Momdro l' dades léxicas); c) expressão de um ideal de luta política - o qual
J~o de jesus Paes Loureiro. 1 Estes, na prosa e na poesia, respec- denomina de humanismo etnográficcr, d) forte nexo erótico: a
tivamente, apresentam em suas obras o encontro t~ 0 confronto, paisagem é erotízada, a ling~agern ~ erotiza<la, a na~urcza apre-
o co~i.to e a~ m~sda.s sincréeicas diversas no espaço-tempo senta aspecto sexual. Loureiro, assim, transcendena os traços
r:
; i amazomco do rmagmáno moderno-coloniaF (dos colonízadorl's
l ! localistas do meio ambiente, redesenhando a paisagem com as
i i
. ~ dos pioneiros, dos migrantes, do Estado, das empresas etc.) ~ tintas fesceninas que deve ao mito.j
~o ~maginário amazônico ribeirinho, confonnado num longo e
Além disso, o lirismo fluvial amazônico de Loureiro tem no rio
mtncado percurso histórico (dos quilombolas, dos indígenas, Jos
uma entidade mítica e plena de mitos. Os mitos greco-romanos
seringueiros, dos caboclos etc.), com suas diferentes matrizes
espaçotempornis de racionalidades. e da Idade Média são entrecruzados e equiparados aos mitos
amazônicos indígenas. O tema e a trama da linguagem são
Buscamos apreender como suas representaçôcs Jiter:trias do confluentes ao tema/trama do rio - desembocando no temário
espaço e do tempo ribeirinho, tanto nas suas dimensücs materiais do tempo. O rio é espaço-linguagem-tempo na Amazônia de sua
como nas suas expressões simbólicas- representaçôes da natureza poesia. O rio apresenta uma polivalência semântica, relacionada
e das diversas interações dos ribeirinhos com seu meio (o rio ao seu "papel" de espaço de referência identitária do cal:xxlo
. \
,,
: ~ . a floresta, a cidade) e representações imaginárias mitológicas ; amazônida. 4 Assim, o rio assume na poesia de Loureiro, entn:
ideológicas-, se relacionam à emergência do discurso identitário outras, a significação de: a) palco das labutas cotidianas pela
na Amazônia, que busca conferir e definir ao espaço e à cultura subsistência; b) campo de elaboração e emergência de mitos; O
amazônica marcas originais e especificidades. campo simbólico e semântico (linguagem e vida); d) espaço do
devaneio e da contemplação poetizante do homem amazônico
(o caboclo); e) meio de uma dupla comunicação do homem:
A POÉTICA Do IMAGINÁRIO AMAzôNico com o natural e o sobrenatural, com o próximo e o distante -
DE PAES LOUREIRO: sociedades, culturas, lugares; f) marca de temporalidade e ritmo
O TI:MPO-ESPAÇO DO RIO da vida social; g) expressão do lúdico e do erótico.
A poesia de Paes Loureiro é marcada pelo espaço de dest;1que
A poesia amazôrúca de Paes Loureiro é uma tradução da conferido ao rio, como o espaço privilegiado fundacional de
paisagem e do modo de vida amazônica e dos seus fluidos e mitos e lendas a ele associados; mas, também, espaço de \'Í\·ência.<>.
fecundos símbolos, bem como dos conflitos e confrontos dramá- meio de sobrevivência e espaço de referência identitária do
ticos destes com a modernidade e a modernização. Não constitui homem amazônico: o caboclo. O rio é ao mesmo tempo uma
nosso intento demonstrar a geograficidade de sua poesia nem representação metonímica' do espaço amazônico e uma nprc-
mesmo geograficizar sua poesia. Seus poemas tampouco ser}o sentaçào metafórica do tempo amazônico, bem como um espaço
~mados aqui como fonte de conhecimento da geografia amuô- textual, um fluxo de linguagem, signos. súnlx>los e mitos. O rio
rnca, mas simplesmente como textos (interpretações) portadores é um espaço-tempo de múltipbs significa~'óes imaginãrbs.
~ um discurso geográfico de construção de identidade cultural, Portanto, na poesia de Loureiro, os elemenros que sL' cruzam ' e
dLSCUrso identitário com forte referência espacial, que se traduz se relacionam para conformar essa identidade do homem anuzo-
pelo espaço-tempo do rio. nico, que se confunde com ou é insqx1r;ín·l da própria identidade
Segundo Nunes, a poesia de Loureiro apresenta as seguintes do espaço amazônico, são o rio, o tempo e o mito: e o qut:' l)S
característica: a) radicação da poesia na entidade coletiva regional unem num só elo, numa cadeia signifü:alllL' t.'· a lingu:1gcrn. Assim.
- a região como espaço de referência identitária; b) nativismo, hã quatro elementos b:1sicos a L'struturar ;1 identida<..k cultur..tl <.fa
Amazônia através da pot·sü dl' Lo11rl'iro: o ternpo. o rio. o nrno e

182
a linguagem. O rio é metáfora do tempo, é espaço da linguage No entanto, a identidade cultural da região para toureiro
é (fonte de) mito. E o tempo, a linguagem e os mitos no 'r· m, estaria muito mais fincada ou enraizada nesse passado remoto, ao
• 1 · • 10, com
o no e pe o no ganham os sentidos e especificidades geooráfi longo do qual se processou a mistura dos elementos da cultura
· · á no ~ .
· amazonice. o icas
no imagm
indígena, negra e portuguesa (e posteriormente da nordestina)
No "Cântico I" do livro Porantím, esses elementos são lo numa situação de isolamento. A5sim, na Amazônia constituiu-se
d . , . , d E go
e mtc10 enuncia os: " ra o tempo naquele/ em que 0 rio/ sem ~uma cultura de profundas relações com a natureza, que perdurou,
co~1eçar a ser o rio-mesmo,/ fazia sua linguagem/ e era tempo."6 consolidou e fecundou o imaginário (até final dos anos de 1950)
l

l
O no demarca o tempo da origem: a ele se relaciona o mito fun-
~ador _da identidade cultural amazônica. E ao longo de todo 0
destes indivíduos 'isolados' e dL5persos". w Essa cultura estaria
ameaçada pelas transformações desencadeadas pela onda avas-
' livro sao esses elementos retomados diversas vezes, afinnando a saladora da modernização, ameaçada a ruir, descaracterízar-se,
.,
fi
j temporalidade amazônica como fundamentalmente ligada ao rio degradar-se com o próprio ambiente natural, ou a desaparecer
·; '.r: um .tempo marcado pela circularidade da natureza (a dinâmic; como a floresta consumida pelos tratores e queimadas. Não
fluvial), mas também marcado pelos mitos - um tempo lendário: reconhece Loureiro que a identidade tem tanto um pé no passado,
""A lenda sim movia-se nas águas/ parindo sombra (cobra/ entre é sempre configurada em relação ao nosso passado, à nossa
a linguagem/ e a onda (...)). "7 memória e imaginação - sua dimensão histórica-, quanto um pé
~ím~lo dos símbolos, símbolo das experiências temporais, no presente, ao entorno espacial que vivenciamos - sua dimensão
o no e igu~Jmente símbolo das experiências espaciais, pela geográfica. Ou seja, a construção da identidade é sempre um
contempl~~o (~evaneante, poética dos homens) e a obtenção processo em curso - não necessariamente longevo e estável -;
~ sobrev1venc1a, pois no rio: "O homem pesca a lida/ e seus a identidade é relacional e contrastiva: envolve sempre diálogo
milagres./ Aqui, fundou-se o tempo./Aqui, lendou-se a idade." e conflito, entre o passado e o presente, entre "nós" e os outros,
Mas n~ rio também "o homem mais se pesca do que o peixe( ... )" ,8 o "dentro" e o "fora".1'
?u S~Ja, constrói com e a partir da interação com o rio sua Essa "perda" de elementos conformadores da identidade
identidade. Mas, se o homem se reconhece pelo rio, no rio que amazônica se traduz no termo deslendário usado por Loureiro.
coi:mece, .ºªAmazônia: "A natureza e o homem se prospectam", 9 "Dores e tratores/ pororocas/ e cocares sangrentos/ matinados,/
pois do no retira sua sobrevivência, no rio também encontra a castas índias e seus/ machos castrados,/ machados decepados/
morte, a incerteza do destino e o sentido da vida. mitos emasculados em barrancos ( ... )" 12 A modernização na
Mas, o ~mpo presente na poesia de Loureiro não é apenas o Amazônia é sinônimo de violência (pororoca é um encontro,
tempo do no (dos ritmos naturais) e o tempo dos mitos, é também um choque estrondoso e turbulento de águas de diferentes rios),
~:po histórico'. das heranças pretéritas: a cabanagem, o ciclo física e cultural, material e simbólica (cocares malinados, mitos
rracha, o aviamento, os seringais, o massacre indígena, os emasculados). "O Curupira perdeu-se entre tratores} Afoga-se
caboclos e as cidades ribeirinhas tradicionais são suas figurações; a Uiara em seus cabelos} E, abandonado, o Homem, de seus
e o tempo moderno, das mudanças presentes que redefinem o mitos,/ passa boiando boi-homem de bubuia,/ no esquife das
espaço regional: a exploração mineral, as queimadas, a grilagem ondas mortuárias." 13
cta: ~as, a poluição do rio pelo garimpo, os projetos agrope- Os mitos emasculados perdem sua força (virilidade simbólica)
cuanos e os objetos técnicos modernos (videoteipe (TV), rádio, diante da força da técnica e do capital devastadores e devassado-
gravador, trator etc.) o ilustram. A'lsim, emerge já nesse livro o res da natureza e da cultura. E o homem, alijado de seus mito..~,
tempo contraditório e conflituoso da fronteira na Amazônia aberta torna-se como um animal (boi-homem) morto no rio mortuário.
a ferro e fogo pelo capitalismo em expansão, pela modernização O rio toma-se signo e símbolo de uma morte indigna. O proces...">O
dolosa e dolorosa. de integração imposto à Amazônia pelo Estado em par com os
interesses do grande capital desconsidera o homem amazônico

184
185

'
.
-...
~~"':""___,_,..., __
(escereotipa, escigmatiza), seus saberes, suas necessidades As interrogações iniciais mostram o confronto de duas
1 concretas, suas aspirações, sua cultura, seu modo de vida a matrizes de racionalidades distintas, de cemporalklades distintas,
1 diverskfade e heterogeneidade do espaço. ' que disputam o comando do ritmo das águas: de um lado o mito
1
!" Uma Amazônia foi posta à margem do projeto modcrnizador e a lenda (do Imaginário amazônico), e de outro a lei e o mapa
foi sendo por e1e suplantada, silenciada, apagada, subalternizada; (do imaginário colonial/moderno eurocêntrico). A Amazônia é
~- .
a Amazônia ribeirinha. "Malárias e solidões tripulam o homem,/ um espaço em disputa uma segunda vez: não mais da disputa
Que desce, desce o rio e entra no mito. »14 "Gerações de ruínas colonial (colonizador e indígenas), porém da disputa moderna
em barr.mcos./ Homens caídos./ Tribos passam/ golpeadas:is (capital e cultura). O tempo do rio é circular: vazante e enchente.
Os trechos acima ilustr-.:tm como Loureiro apreende esse con- O tempo moderno é linear e sucessivo: ordem e progresso!
fronto violento e dramático entre a modernidade e a tradição, "E vai o homem só (o Canoeiro)/ entre as margens de tudo/ ao
responsável pe1a marginalização e morte do homem, morte física rio do nada,/ estranho a si, estranho ao tempo,/ estranho ao
mitonovo (. .. )" 17
e cultural, apagamento ou desqualificação de sua identidade, uma
identidade que tinha na sociedade fluvial seu marco fundador e A modernização não só marginaliza o homem amazônico (o
elo fecundame. A identidade desse homem está enraizada nessa canoeiro), mas o aliena, ou seja, faz com que perca sua identi-
tradição em confronto e em contraste com, ou em oposição à dade (tomando-o estranho a si), e também confronta-o com um
modernidade. tempo (o tempo da modernidade), que nega sua contempora-
neidade, já que ele não se reconhece e não é reconhecido pelo
No fragmento a seguir, Loureiro sintetiza algumas das repre-
"mitonovo" da modernidade. O novo (moderno) é o mito que
sentações que reafirmam o discurso do rio como meio e mode-
!; esmaga o homem: o jimdamentalísmo do novo é o paradigma
lador da identidade amazônica no confromar com o imaginário
colonial-moderno: da modernidade.
Por fnn, Porantim termina com uma questão que se atualiza: "'O
Quem comanda o rio? qual - posto na linha do conflito - / há de sobreviver: o Homem
O mito?
ou o Mito?" 18 Benedicto Monteiro também situa sua prosa
nessa linha de conflito, mostrando que ambos sobrevivem,
A lei? mas se transformam profundamente no cotidiano ribeirinho
A lenda?
amazônico.

O mapa, onde se perdeu


o portulano? A NARRATIVA AMAZÔNICA
DE BENEDICTO MONTEIRO:
Em que meridiano, norte ou sul,
O COTIDIANO RIBEIRINHO
ou em que polo?

Amazônia O livro Verde vagomundo, de Benedicto Monteiro, inaugura


sua tetralogia amazônica, urna espécie de mape-amento temático
Amazônia
literário da Amazônia. Mas representa também a mudança, o
quem te ama? deslocamento de um olhar sobre o espaço-tempo ribeirinho da
Amazônia a partir da Amazônia. Monteiro cria uma narrativa
Quantas vezes, no tempo, o rio encheu~se,
que vai espelhando a Amazônia por dentro, e procur.a dar voz
e, quantas vezes, vazou? 16 ao amazônida antes de simplesmente falar por ele, de pintar sua

186
187
imagem. Procura trnduzir a linguagem cabocla ribeirinha antes
de desqualificá-la, ao mesmo tempo que sua própria linguagem o 0 estranhamento e a unificação em razão da magni-
tude da natureza;
se transfigura, se desdobrn diante de um espaço-tempo que a
Jinguagem convencional não abarca, não contempla. g) a mítíficação da figura do caboclo, principalmente
na imagem de seu personagem-chave, Miguel dos
Da literatura dos viajantes, estrangeiros procurando desvendar
Santos Prazeres;
a imensidão misteriosa da Amazônia, entramos numa viagem
literária ao coração da Amazônia empreendida por um amazô- h) 0 confronto tradição e modernidade, mas uma
nida, tentando apreender e aprender o seu lugar, estranhando seu modernidade que se anuncia em objetos muito mais
mundo familiar. A narrativa de Monteiro mergulha no cotidiano que em valores e relações e pela intervenção política
ribeirinho problematizando-o. O rio não tem a verticalidade estru- violenta do Estado sob comando militar.
turante em sua narrativa que tem na poesia de Loureiro. Ele tem
Vimos que na poesia de Loureiro o rio é um espaço líminar e
a horizontalidade que demarca o mundo cotidiano e o modo de
metonímico fundamental e fundacional na/da identidade cultural
vida ribeirinho. O espaço é vasto e vago, vagomundo. O tempo é
da Amazônia: um espaço de mediação na construção de uma
flmial, fluido e cíclico, mas também plural. Nesse tempo-espaço
identidade cultural vigorosamente arraigada no território existen-
amazônico, situa-se não mais apenas o caboclo idealizado, um
. !mente expressivo do homem/caboclo amazônida. Monteiro
homem genérico, mas também uma multiplicidade de sujeitos CIB bo ~
também encontra no rio o espelho e as metáforas da ela raçao
sociais, com um modo de vida em que se organiza uma sociedade
da identidade ribeirinha amazônica, dos caboclos e dos ribeirinhos
diversificada, hierarquizada, contraditória e conflituosa.
em geral, mas ressalta vários outros aspectos da t~~ cotidi~na,
Assim, a representação do espaço-tempo amazônico em em que a identidade não aparece como unidade m~iferenrn~.da
Monteiro acrescenta outros elementos para compreendennos a dos sujeitos, ou seja, ausência de divisões, hierarqmas: t~nsoes
emergência de um discurso identitário gestado a partir do interior e contradições, lutas por afirmação de posições estrateg1cas na
da cultura Amazônia:
construção e apropriação do espaço ribeirinho.
a) o espaço e o tempo marcados pela dinâmica, usos e No verde vagomundo, há pelo menos três vozes se sucedendo
apropriação do rio e da floresta (dos seus recursos e se entrecruzando: a do major (personagem-narrador) de retomo
materiais e simbólicos); à sua terra natal, Alenquer - cidade ribeirinha do Pará; a de
b) a religiosidade na organização do espaço e do tempo, Miguel, um caboclo herói que traduz na sua própria linguag.em
da vida cotidiana ribeirinha (inclusive quanto à suas aventuras (de emprenhadorde etnias), percorrendo os nos,
origem histórica, quanto ao imaginário da origem, várzeas, campo e matas, misturando-se com eles, desaparecen~o
do passado); neles; e a do rádio, que transmite notícias do mundo e do pais.
c) as práticas políticas e as disputas de poder local, que Se em Loureiro o rio figura como principal personagem, em
demarcam as desigualdades sociais e as formas que Monteiro, sem que se diminua a importância do rio, a persona~e~
assumem as relações de poder; que assume relevância é Alenquer, a cidade ribeirinha. O. no e
sempre considerado em relação à cidade, ao espaço da c1~a~le
d) as práticas econômicas (comerciais, extrativistas etc.),
e ao ritmo e modo de vida ribeirinho: ~o próprio calendano,
em dois sentidos: da interação dos homens entre eles
calendário dessa gente, divide-se também de acord? com. o
e com o meio ambiente em que vivem e da articulação
movimento das águas." 19 O vazar e encher imemoriais ~o no,
do lugar com outros lugares distantes;
de que fala Loureiro, demarca um tempo de longa duraçao que
e) a linguagem própria dos ribeirinhos, uma marca não se enquadra na medida cronológica do tempo mo<l~n:º·
importante da sua diferença; É por isso que o major indaga: "Qual o sentido de um _relog:~
numa cidade em que se despreza até a marca de um seculo.
188
1&'9


Não é o tempo racional que organiza a vida, o tempo mecânico
e unilateral, é uma temporalidade fluvial, um templo que flui e local, paternalista e de base familiar, como sua narrativa permite
reflui com e como as águas do rio. perceber. Mas é claro que se esperava muito mais do santo que
dos políticos!
Mas, além do rio, do movimento das águas, elementos de
outra ordem interferem e estruturam a organização do tempo, do A concentração dos interesses em torno desses elementos tem
espaço e da vida dos ribeirinhos, demarc-.mdo sua identidade a uma explicação ou um sentido voltado à manutenção do arranjo
partir de uma repeti~'ào, definindo ciclos e ritmos sociais: de poder e da estrutura social: "Mas nada parecia interessar a essa
gente, a não ser a festa, a safra, as intrigas da política,. política
a) a safra: "Aqui nesta cidade a grande palavra é a local, é claro. Objetivo final: a posse da terra, a Prefeitura, os
safra. Safra: safra de castanha, safra de batata, safra cargos públicos, o pagamento e a sonegação de impostos. »30
21
de cumaru , safra de peixe, safra de gado e safra Portanto, esse interesse se fundamentava numa relação socio-
de ;uta 22";23
política de dominação e controle socioespacial; de diferenciação,
b) o santo: "Aqui nesta cidade, a ordem do tempo e das classificação e hierarquização dos grupos sociais, mesmo que
; .
coisas, é a festa: a Festa de Santo Antônio, glorioso possibilitassem integração e coesão social: "Estavam, de fato, todos
e milagroso padroeiro da cidade" ;24 amarrados ao movimento das águas, ao resultado das safras e
e) a política: "Estavam de fato, todos amarrados ao aos azares da política, política local, é claro. 31 A identidade vista
tt

por dentro se configura como um campo d e d 1sputa, . 32. ~e~mo


movimento das águas, ao resultado das safras e aos
azares da política, política local, é claro". 25 numa sociedade como a ribeirinha, em que são pouco vJS1veIS as
desígualdades e assimetrias sociais. Essa circularidade como que
O rio, com sua dinâmica, sua função na mobilidade e comu- natural (da safra, das águas, da festa de santo) tem em realidade
nicação, sua significação simbólica; sua religiosidade - seu um sentido social e político explícito; essa aparente homoge-
sentido histórico, seu sentido social, seu papel espacial-; sua neidade cultural - que Loureíro personifica na imagem do calxx::lo
safra, Jigada ao cultivo da terra e extração ou coleta de seus frutos - resguarda diferenças e desigualdades, conflitos e contradições
de estação; e sua política local (disputa pelos cargos públicos), internas, que se encobrem sobre o manto da paisagem social
estruturam o modo de vida ribeirinho, seu espaço-tempo. Na harmônica e homogênea do espaço ribeirinho.
concepção de Monteiro, são esses os elementos que compõem Além de tudo isso, a própria espacialidade da cidade ribeirinha
a trama e o tema da vida das pessoas: "É que as conversas que se organiza em função do rio e da religião: u A água e o Santo,
eu ouço nessa cidade, só tratam da terra, da mata, da água e do sim marcam e demarcam a fisionomia dessa cidade: influem na
Santo." 26
sua vida e decidem da sorte do povo encurralado. Assim todos
Os acontecimentos da história e da vida cotidiana dos ribei- vivem. Todos vivem: ou do movimento arbitrário da água ou da
rinhos são explicados e organizados a partir da interação desses proteção infalível do Santo. "33 Portanto, o rio não só constitui uma
eJementos. A "origem mítica" ou o "mito fundador" 27 da cidade referência simbólíca identitária dos sujeitos sociais desigualmente
está relacionado a um milagre do santo; assim como "(. .. ) a posicionados em relações de poder, como também demarca
cronologia dos fatos só tem um ponto de referência: a festa de uma espacialidade própria - com e na qual os ribeirinhos se
28 identificam.
Santo Antônio". Na compreensão dos moradores, "qualquer
desgraça, a culpada era a água! Qualquer benefício, o respon- Monteiro também procura extrair o sumo das peculiaridades
29
sável era o Santo", ainda que pareça uma redução por parte léxicas da linguagem popular regional ribeirinha para compor
de Monteiro - já que a água significava também a possibilidade sua narrativa, para criar uma i/usiio de oralidade na fala de seus
de vida, de subsistência. E os benefícios podiam ser por conta personagens, demarcando a diferença ribeirinha, uma identidade
do dientelismo ou do paternalismo da oligarquia, da política cultural amazônica, como o faz Loureiro, usando tennos como

191
_;:
. \4
b ub wa , ma1·maretc. M onteiro
.
se esmera nesse repe11ório, pois Olha, por aqui, boto-encantado, víndo <lo fundo das águas, já não
procura dar voz ao próprio caboclo. Destacamos um trecho engana professora-moça. Muito menos disfarçado em caboclo,
significativo nesse sentido de uma fala da personagem Miguel: com chapéu ele palha na cabeça. Ninguém quer mais ser levada
':' li;
como donzela para o fundo do rio como dantes. Aqui tamhém,
Como já emào, sumano pau-mulato, pni. tu deixar esse danado
1 de longe em longe, acena um pensamento de progresso.3'1
de apuf eruaniçarteu corpo todo com esse poder desconforme
J
!1:j ii ' de rJ.ízes? Nem acaso viste, será, o in:>.irlmento das flores? Diz Esse "pensamento de progresso~ aponta para a mudança dos
j; que querendo brincar nos teus cabelos? Os te atacaram de morte valores, que irá se intensificar com o processo de modernização
t''~ feito puchirum? Se cofiaram vento, sol e chuva, pássaros, folha~
.
~
'\
j
capitalísta imposta à região pelo Estado, a partir da década de
! e flores, pra ter amarrar de nó cego e chupar teu sangue feito
; j'. 1960. Monteiro vai retratar isso nos seus livros subsequentes .
1 : ':~ sanguessuga? Viu no que deu agita semetizinha mal-a-mal caída
·~ ' No Verde vagomundo, toma maior destaque a questão da
i' na bosta do fJ.piim? Olha só, em que a tua pavulagede pau-mulato
í:
i ~ danisco que lasca mas nào verga, querendo-porque-querendo política nacional, através do contexto da ditadura militar, que
ser o pai-d'égua da mata! Agora, cadê sustança? Cadê gogó, cadê ele vivenciara e sofrera, tendo seu mandato político cassado e
:
:
\
: tutiço, pra sair desse buraco?35 sendo preso.
Também poderíamos destacar em Monteiro o erotismo, através
Mas, há algo que não pode ser traduzido pela escrita: é a do personagem Miguel dos Santos, cuja figura representa também
sonoridade peculiar da fala cabocla ribeirinha: "O ritmo: eis ai 0 a idealização do caboclo, ou sua heroicização; a vísihilidade dos
toque mágico das palavras do caboclo. "36 O que foi interpretado notáveis da cidade ribeirinha - o prefeito, o vigário, o escrivão,
como um sinal da rusticidade, do atraso e da ignorância do o delegado de polícia, o juiz de direito - e também dos notados,
homem amazônico por muitos é posto em relevo por Monteiro tipos populares ribeirinhos - o cego-pedinte-visionário, o
para valorizar seus traços culturais específicos e significativos: secretário-historiador, o "curandeiro~ padrinho de Miguel -; bem
uma linguagem própria, inventiva e poética! Essa especificidade como a reprodução de alguns discursos que se constituíram
da linguagem (falada) é uma das marcas distintivas, expressivas historicamente sobre a região - uma natureza monumental e
das populações ribeirinhas amazônicas. alegórica,311 que, em certos sentidos, aparece como inimiga do
No entanto, a cultura está em transformação pennanente, homem, ainda que este esteja unido a ela por várias raízes e laços
tanto por forças externas, quanto pela sua própria dinâmica. de interação e adaptação. Portanto, na narrativa de Monteiro, as
O confronto entre a tradição e a modernidade é ainda nesse representações do espaço-tempo amazônico ribeirinho ligam-se
livro, marcado por certa distância: um isolamento ~m rel;ção ao ao rio e à floresta, à natureza de uma forma geral, mas também
mundo do ribeirinho, mal rompido pelas notícias do rádio, e ao às relações sociais e de poder mais específicas das populações
mesmo tempo uma sensação de estagnação, pelo ritmo social ribeirinhas.
em que as mudanças transcorrem. Mas, esse isolamento e essa
estagnação são apenas aparentes e relativos. Loureiro, em sua
obra teórica, destaca esse longo período de isolamento por que IDENTIDADE RIBEIRINHA AMAZÔNICA
passou a Amazônia como um fator importante para entendermos NAS REPRESENTAÇÕES ESPAÇOTEMPORAIS
a amálgama que deu origem à cultura amazônica, conferindo-lhe,
portanto, sua identidade.J7 Monteiro parece compreender esse
LITERÁRIAS
isolamento negativamente. Nesse livro que estamos analisando,
o processo de mudança aparece mais nas concepções e valores Essas representaçóes da Amazônia, que 1xxfem .ser lidas em
culturais do homem amazônico: obras como de Paes Loureiro e Bcncdicto Monteiro, transmitem
que ideias sobre uma possivd identidade cultur.tl da Amazônia?
Por que falamos em identidade rnltural amaz(mica? O que isso

192
19~
,,
!!
l significa? Vamos nos abeirarum pouco dessas questf>es, para não
ficarmos só de bubuia na leitura dos seus textos, nem cairmos
espaço, do tempo, do modo de vida e do homem amazônida. A

1t
!
l~
1
'. ~
;;_
~~
<~
no perau.w das reduções e simplificações.
Inicialmente, é importante destacarmos a importância desses
identidade cultural amazônica:

a) é representada pela relação do homem com uma


! autores, não apenas pela qualidade de suas obras literárias,
1 f ·:·~
natureza monumental e mítica, transfigurada pela
l '; mas porque buscam construir uma nov-.i imagem e discurso da imaginação criadora do caboclo, particularmente;
l :t· j',
Amazônia, na tentativa de transpor os estereótipos e estigmas é coru:.truída historicamente pela hibridez, pela mistura,
1
r
l
!
;

i
r que subsistem em muitas das representações historicamente
b)
de elementos da imemorial cultural indígena, pelas
' ! k,:~ predominances sobre a região, indusive em obrns de autores da boas e más heranças dos colonizadores europeus
~':
própria região, que a veem, portanto, com o mesmo olhar dos (princípalmente os portugueses), pelo legado dos
{
j •.
de fora. A leitura desses autores nos possibilita, de certo modo, negros e posteriormente pelas contribuições da
desfocar esse olhar. ver a Amazônia a partir de suas bordas, de cultura nordestina; portanto, tem uma essencialidade
suas mat;gens constitutivas (vozes, sujeitos, espaços) apagadas, histórica: pelo longo isolamento que possibilitou
ocultas e silenciadas. Por isso, não aceitamos rotulá-los de nati- essa composição original;
vistas ou regionalistas, pois isso pode muito bem ser usado para
e) tem uma representatividade na cultura cabocla, o
desqualificar os seus discursos - e não apenas localizá-los. Mas,
resultado dessa mistura, um tipo humano também
não é porque são escritores da região escrevendo da região é que
original e idealizado;
devemos aceitar os seus discursos como verdadeiros, a verdade
sobre a Amazônia. d) é marcada fundamentahnente pelo espaço de referência
dos rios e pelas comunidades ribeirinhas;
Importa, também, para entendermos o discurso da identi-
dade que permeia seus textos, atentarmos para o contexto em e) e se define em oposição à modernidade e à moderni-
que escrevem: íntensificaçào do processo de modernização da zação capitalista induzida pelo Estado autoritário.
Amazônia, que devasta a floresta, polui os rios, chacina as tribos
indígenas remanescentes da voragem colonizadora, desaloja, Mas, parece, principahnente em Loureiro, que discute essa
expropria as populações tradicionais e pequenos produtores, questão da identidade cultural da Amazônia teoricamente, que a
concepção da identidade é essencialista ou substancialista e não
posseiros de suas terras; implanta grandes projetos de drásticos
relacional, apesar de algumas vezes afirmar o papel da mudança,
impactos no ecossistema e no modo de vida regional; rasga
da não fixidez da tradição. A identidade cultural da Amazônia
o solo com estradas, institucionaliza os espaços, tecniciza-os
ribeirinha e cabocla que ele requisita aparece de forma fixa
pelos meios de comunicação etc. Portanto, num contexto de
e imutável, um conjunto cristalino, autêntico, de carJcterísticas
um tremendo confronto, de tensões e conflitos extremos. Eles
comuns que não se alteram ao longo do tempo. O passado é
procuram fazer a crítica ao caráter devastador e desagregador
interpretado e convocado a afirmar uma posição a esse sujeito,
inerente ao processo autoritário de apropriação e incorporação
denominado caboclo - positivado, portanto -, diante de um pre-
da Amazônia ao território e à economia nacional-intemacíonal,
sente que se altera rnpidamente e ameaça dissolver as bases de
sustentado pelas ideologias geográficas da segurança nacional e
seu modo de vida, pois o progresso avança devorando a floresta,
da modernização redentora.
contaminando e barrando os rios, abrindo imensas craterJs no
Assim, buscam afirmar a identidade cultural da Amazônia, solo, pois nega a contemporJneidade do ribeirinho, nega sua
diante desse processo de transformações impostas desde cima, existência, seu saberes, classificando-os de tradicionais, arcaicos
recorrendo ao passado (histórico e mítico) ou ao presente em etc. Essa história se conjuga com uma natureza rransform~1da,
que o passado resiste ou subsiste espacializado; o espaço ribei- apropriada simbolicamente, através dos mitos, por exemplo.
rinho. Buscam apreender as especificidades da constituição do

194
J9")
Assim, ao se defrontar com as avassaladoras transformações regional. O processo de modernização imposto à região implica
que a sanha modemizadora dis...:;emína pelo espaço amazônico, um duplo processo: de desestruturação de grupos e territórios e,
muitos intelectuais e escritores, como Loureiro e Monteiro ao mesmo tempo, de reações e respostas a esse processo, através
buscam retomar um passado ordenado por lendas e paisagens'. de afirmações identitárias - a busca da afirmação de uma iden-
i: antigas tradições e lugares sagrados, para afim1ar uma identidade tidade regional. Desse modo, a identidade nunca é construída
~ ~ .
cultuml da região e de seus povos. Assumem o discurso identitário a partir da mera diferença ou de características próprias, singu-
L
r _.
regional, sem cogitar que a noção de regiâo e mesmo a de cultura lares de um grupo, pois tem sempre um caráter reflexivo, isto
são problemáticas - sem problematizá-las como construções é identificar-se implica sempre identificar~se com, num sentido
hLstóricas e polícicas, imersas no imaginário colonial/moderno '
relacional, dialógico, e a identidade, por mais essencíalízada que
ocidental e capitalista. pa.reça, justamente por seu caráter simbólico, é sempre múltipla
Outro aspecto é a ausência das relações de poder no interior e/ou está aberta a múltiplas reconstruções. 42
dessa fonnaçào cultural, mais forte em Loureiro que em Monteiro.
Esse sistema simbólico, sistema de representações espaço-
temporais, de organização do espaço-tempo não é isento de DESEMBARCANDO
j, dispucas pelos significados, pelas posições, pelo território visto
como abrigo, recurso e valor simbólico, como demonstra Monteiro, Não podemos saber se ao fim dessa viagem - se é que essa
1 adentrando o cotidiano da vida ribeirinha. Os mitos, por exemplo, viagem realmente tem um fim - encontramos a Amazônia, esse
1 têm um papel fundamental na ordenação do espaço amazônico espaço literariamente representado. Mas embarcamos nessa
/
1. e do modo de vida ribeirinho, e não apenas do ponto de vista leitura-viagem sabendo que os rios das representações guardam
daquilo que representam em termos do imaginário poético, das também muitos obstáculos e riscos em seus cursos e meandros,
relações com a natureza, mas em termos da ordem social e desenham um intricado labirinto de igarapés, furos e paranás,
política, juntamente com a religião - que assume um papel idecr assim como de lagos, onde nossa imaginação e reflexão se estagna
lógico mais evidente na organização e definição dos sentidos e por vezes. Mas temos a certeza de ter chegado a algum lugar,
valores do espaço e do tempo. O casamento dos tempos histórico ainda que esse lugar não seja a Amazônía. É um lugar que diz
e mitológico define certamente uma tempornlidade específica às da Amazônia e de onde se fala da Amazônia, é uma Amazônia
populações ribeirinhas da Amazônia - e não apenas do caboclo -, tecida por essa trama de letras e signos.
juntamente com o tempo da natureza; mas os significados desses Despedimo-nos da uiara, da boiúna, do boto, da macinta-
tempos são sociais, objetos de disputas para o controle social, perera, de todas essas lendas e mitos pelos quais remamos nas
para a manutenção e reprodução de uma dada ordem política mansas e turvas águas dos poemas de Porantim. Principalmente,
e espacial.
despedimo-nos dos caboclos, dos ribeirinhos de uma Alenquer-
A forma como vivenciamos e representamos o tempo e o -personagem, espaço de personagens: do major, de Miguel, que já
espaço é fundamental para a definição de nossa identidade. some em sua canoinha gita, quase na mesma linha d'água desse
As identidades dos povos e grupos sociais na Amazônia não Verde vagomundo de Monteiro, ainda estonteados por tanta cor,
se pautam numa unidade, não correspondem a uma unidade e por tanta luminosidade, por tantos reflexos, pela densa vastidão
homogeneidade de uma cultura amazônica, mas estão relacio- de um cotidiano apenas entrevisto.
nadas a processos e condições sociais e materiais; a mobilização Aportamos no solo seguro de nossas teorias e disciplin<ts,
desses elementos identitários é estratégíca e posiciona!. 41 Assim, no trapiche da manhã da ciência. E hmçamos mais um olhar
esses textos literários analisados expressam uma regionalização a essas vastas paisagens amazônicas e, de repente, já não é a
da identidade cultural: as identidades móveis e particulares dos mesma Amazônia que vemos, já não a vemos do mesmo modo,
<liferentes grupos sociais são territorializadas no espaço-tempo outro é o nosso olhar. Alguma coisa mudou no nosso olhar. O

196 197
quê? Perguntamo-nos aparvalhados. Sabemos apenas que algo , Essa fonna de representação metonímica, a pane pelo todo, se relaciona
;: mudou. à noção de natureza e a outros term?s associados (hiodiversidade), como
a forma mais generalizada e dominante de representação do espaço
Nesse porto da identidade cultural amazônica, os barcos amazônico em muitos discursos (ver Dutra, 2(X)5).
aportam e partem, abrem sulcos espumosos na crosta escamosa
6 LOUREIRO, 2001, p. 39.
de brilhos do rio, os quais logo se fecham sem vestígio, levan-
do e trazendo consigo cargas, encomendas e passageiros de 1 LOUREIRO, 2001, p. 40.
representações do mundo. E chegam-nos diversas vozes, vozes s LOUREIRO, 2001, p. 41.
de muitas tribos, de muitos povos, de muitas pessoas; vozes de
9 LOUREIRO, 2001, p. 52.
uma pororoca de representações, da piracema de discursos que
buscam demarcar diferenças, especificidades, posições estraté· ID LOUREIRO, 1995, p. 26.
gicas a diferentes sujeitos sociais - ruídos dos tambores da festa 11 HALL, 2003.
modemizadora, dos fogos do artifício das novas tecnologias e u LOUREIRO, 2001, p. 67.
discursos.
u LOUREIRO, 2001, p. 69.
É preciso compreender, como Foucault, que
14 LOUREIRO, 2001, p. 48.
(...) as margens de um livro jamais são nítidas nem rigorosamente IS LOUREIRO, 2001, p. 57.
determinadas: além do titulo, das primeiras linhas e do ponto 16 LOUREIRO, 2001, p. 46.
final, além de sua configuração interna e da forma que lhe dá
11 LOUREIRO, 2001, p. 102.
autonomia, ele está preso em um sistema de remissão a outros
livros, outros textos, outras frases: nó em uma rede. 43 1s LOUREIRO, 2001, p. 103.
111 MONTEIRO, 1991, p. 113.
Ou como Deleuze estabelece, há duas maneiras de se ler um livro:
20
MONTEIRO, 1991, p. 106.
como uma caixa que remete a um dentro, ou como uma pequena
máquina que relaciona um livro a um/ora: "Um livro é uma pequena :n O termo se refere a uma árvore (curnaru-verdadeiro, cumarurana), mas
engrenagem numa maquinaria exterior mais complexa."44 aqui designa o fruto e a semente do cumaru-verdade~. Uma va~~m
drupácea, monospérmica, com polpa fibrosa e espon1osa. ci:mesmel.
A semente desse fruto, por sua vez, encerra cumarina, com va.nos usos
medicinais e também em perfumaria, como sucedânea da baumlha, para
NOTAS aromatizar tabaco e rapé, e para extraÇ,'ào de óleo_ (Disponível em: <http:/I
pc.wikipedia.org/wiki/Cumaru>. Acesso em: set. 2006)
1 22
A juta ( Corchorus capsularis) é uma fibra têxt~ v:ger:11. A fibra út~ é
Devido à abrangência da obra desses autores, utilizaremos como referência
contida entre a casca e o talo interno, e a extraçao e feita pelo proc~
para este artigo principalmente o livro Porantim, de Paes Loureiro, e
da maceração. Introduzida no Brasil por Riyota Oyama, a rui~~ f() 1
Verde vagomundo, de Benedicto Monteiro, pois ambos foram escritos no
feita inicialmente por japoneses, tomando-se a seguir uma_das pnn~ii:iis
início da década de 1970, quando começa a se intensificar o processo de
atividades econômicas das populações ribeirinhas da reg1ao a1~azon_1~<1,
modernização da região amazônica, desencadeado pelas inteivenções do
Esta.do ditatorial militar. sendo um fator fundamental para a fürnçã.o de mais de 50 nul fam1has
no campo. (Dísponível em: <http://pc.wikipedia.org/\\-iki/Juta>. Acesso
2
MIGNOLO, 2003. em: set. 2006)
3
NUNES, 2001. 23
MONTEIRO, 1991, p.159.
24
• Na Amazônia em que atnda se mantêm fortes vínculos e interações sociais MONTEIRO, 1991, p. 159.
com e através do rio, o que estaremos chamando de Amazônia ribeirinha 25
ou espaços ribeirinhos amazônicos (ver Oliveira, 2000; 2003 e Trindade MONTEIRO, 1991, p. 135.
Jr., 2003). Zli MONTEIRO, 1991, p. 46.

]
.i 198 199
n CHAUI, 2001. DELEUZE, G. Conversações. Rio de Janeiro: Editora 34, 1992.
2S MONTEIRO, 1991, p. 148.
OUTRA. M. S. A. Natureza da TV: uma leitura dos discursos da mídia
29
MONTEIRO, 1991, p. 28. sobre a Amazônia, biodiversidade, povos da floresta. Belém: NAEA
-'° MONTEIRO, 1991, p. 135; grifos nossos. (UFPA), 2005.

-~ MONTEIRO, 1991,
1
p. 135. FOUCAULT, M. A arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Uni-
3'l HALL, 2003. versitária, 1986.

:l3 MONTEIRO, 1991, p. J 13. GONÇALVEZ, P. C. W. Amazônia, Amazônías. São Paulo: Contexto,
2001.
l-l Bub~1fa é uma expressão popular do interior ribeirinho amazônico que
slgmficar ficar à tona, flutuar na água. No sentido figurado, significa HAESBAERT, R. Des-terrttorialfzação e identidade: a rede "gaúcha" no
descanso sem preocupação, vida sossegada. nordeste. Niterói: EDUFF, 1997.
31
MONTEIRO, 1991, p. 83; grifos nossos. HAESBAERT, R. Identidades territoriais. ln: CORRÊA, R. L; ROSE.N-
$6 MONTEIRO, 1991, p. 144. DAHL, z. (Org.). Manifestações da cultura no espaço. Rio de Janeiro:
37
LOUREIRO, 1995. EDUERJ, 1999.

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41
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.ii HAESBAERT, 1999.
2004.
43
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44
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<:1.1upo1IS: Vozes, 2004. resultado da única relação heterossexual que tivera nos tempos
de faculdade, quando ainda era homem. Bree, a transexuaJ,
TOCANTIN
• da S,. L Invenção da floresta:. três livros de poemas e poemas
hora unagmada. Belém: CEJUP, 1993. ansiosa por livrar-se do pênis, precisa lidar com esse passado
para conseguir a autorização de sua terapeuta e, então, efetivar
;ruNJ?ADE JR., S.-C. C. Cidades n'beirinhas na Amazônia: uma leitura a cirurgia tão desejada. O garoto Toby, encrencado por uso de
partir de suas orlas. Artigo apresentado no VII Encontro ParJense de drogas e prostituição, sonha conhecer seu pai. Ambos lançam-se
Geografia, Cametá-Pa, 2003.
numa viagem que atravessa os Estados Unidos, de Nova York a
WOO~WARD, K. Identidade e diferença: uma introdução teórica e Los Angeles, tentando dar conta de seus sonhos. Esse é o enredo
=ceituaL In= SILVA, T. T. (Org). Identidade e diferença: a perspectiva de Transamérica, füme exibido em 2oo6 nos cinemas brasileiros.
estudos culturais. Petrópolis: Vozes, 2004. Um road movte, um filme de estrada, com dois estranhos viajantes,
solitários, outsiders sexuais, como chamou um comentarista -
talvez um bom mote para este capítulo.
Há algum tempo, escrevi, para integrar meu livro Um corpo
estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria queer, 2 um texto no
qual me valia da metáfora da viagem para falar de trajecórias,
caminhos e desvios experimentados por sujeitos no campo das
sexualidades e dos gêneros. Viagens são, geralmente, associadas
a trânsito, movimento, turismo, e também sugerem migração,
evasão, fuga, exílio. O tema é recorrente nas novelas de fonnaçào
- aquelas que narram o percurso de um herói (quase invaria-
velmente um homem) numa saga pontilhada de experiências,
obstáculos, encomros. Enquanto realiza essa viagem exterior,
o herói, tradicionalmente, empreende também uma espécie de
viagem interior, descobrindo-se e fonnando seu car.íter e sua
consciência. A metáfora, frequentemente explorJt..ia na literatura e
na educação, parece se repetir, com algumas variantes, nos road

202
movies. Nesses filmes, os personagens também estão em trânsito como diferenças fundamentais e às quais se atribui importantes
na busca de algum obj~tivo muitas vezes adiado; ou em fuga: significados culturais. 3
ou empenhados na realização de algum sonho, com esperança
Pretende-se que a viagem que assim se inicia siga uma
de alcançar riqueza ou liberdade. Ao longo do c.:lrninho, esses
sequência (ou seja, uma rota) precisa e coerente entre sexo,
personagens também se veem diante de provas, têm encontros
gênero e sexualidade. O sexo (definido como macho ou como
experimentam conflitos. Nos filmes, tal como nos livros, a estrad~
fêmea) deverá indicar um gênero (masculino ou feminino) e
i e a viagem são, muitas vezes, apresentadas como via de redenção.
J
implicar uma única forma de desejo (dirigida ao sujeito de sexo/
Mas, também, muitas vezes, isso não se realiza, é claro. o fato gênero oposto). O ato de nomear o corpo acontece, portanto, no
é que, de um modo ou de outro, ao se deslocarem, os sujeitos
interior de uma lógica binária que supõe o sexo como um dado
se tr-.msfom1am.
anterior à cultura e pretende lhe atribuir um caráter definitivo e
A imagem da viagem me serve, mas preciso dizer, imediata- a-histórico. A nomeação inaugura um processo de masculinízação
mente, que não recorro a ela para falar de um sujeito que vai se ou de feminização com o qual o próprio sujeito se compromete.
desenvolvendo, de modo linear e progressivo, ao longo da vida. Para se qualificar como um sujeito legítimo, como um "corpo
Não acredito que ainda haja espaço para se pensar tal sujeito assim que importa", no dizer de Butler, esse sujeito se verá obrigado
coerente e unificado. Quero me valer da viagem aqui (como fiz a obedecer às nonnas que regulam sua cultura.4 Contudo, esta,
naquele texto) para pensar o desenraizamento e o trânsito, para como qualquer viagem, também pode seguir outros rumos. O
pensar um percurso e também um viajante que, necessariamente, viajante ou a viajante - porque nessa viagem não lidamos somente
se apresentam mais difusos, confusos e plurais do que aqueles com heróis masculinos - pode desviar-se da rota, experimentar
das amigas novelas de formação. Quero pensar a viagem e espe- veredas improváveis, cruzar fronteiras proibidas.
~ :

! 1
cialmente o viajante como menos previsíveis e mais afeitos aos Bree ilustra lindamente essa metáfora. Cabe a ela - como a
desvios. Bree e Toby, os personagens centrais de Transamérica, qualquer um de nós - seguir, ao longo da vida, um detemúnado
podem me ajudar a desenvolver essas ideias. caminho no território dos gêneros e da sexualidade. Ao nascer,
~ proposta é compreender a declaração "É uma menina!" seu corpo é identificado como de um macho. Recebe o nome
ou "E um menino!", ou seja, a nomeação de um corpo recém- de Stanley, deve seguir todas as imposições e disposições de
-nascido ou prestes a nascer como desencadeadora de uma espécie sua cultura para se constituir como um sujeito masculino -vestir
de viagem que se desenvolve ao longo de toda a existência do roupas apropriadas, comportar-se como um menino, provavel-
sujeito. Supostamente, essa víagem deve seguir um rumo prede- mente gostar de esportes, mostrar-se disposto a enfrentar brigas,
terminado, e, para garantir que assim ocorra, a sociedade dispõe não ter paciência com frescuras, ir para a faculdade, namorar
de um conjunto de normas regulatórias que são reiteradas e garotas etc. Ninguém lhe pergunta se está de acordo com essas
mantidas por inúmeras instâncias, por meio de uma multiplicidade prescrições nem se o corpo masculino que está fabricando lhe
de discursos, práticas e estratégias. A declaração pronunciada é confortável. Stanley cumpre (ou parece cumprir) como pode
no momento do nascimento, ou mesmo antes, durante a gestação, e enquanto pode as normas que lhe são prescritas e reiteradas
faz mais do que descrever um novo sujeito; na verdade, ela cotidianamente. Cumpre tão bem que chega a ter uma relaçáo
pode ser compreendida como uma decisão e uma definição sexual com uma colega de faculdade (mais tarde, já como Bree,
sobre um corpo. Judith Butler argumenta que essa afirmativa faz recorda essa como sendo uma relação meio lésbica), e desse
parte de uma série de enunciados, atos e práticas performativas; encontro sexual nasce Toby. Por um certo tempo, tenta, portanto,
ela desencadeia, efetivamente, todo um complexo processo de realizar a viagem no território do gênero masculino, mas isso
fazer desse um corpo feminino ou masculino. Um processo lhe parece cada vez m;1is penoso. Como comentou Contardo
que toma por base algumas características físicas que são vistas Calligaris, na Folha de Sào Pcmlo, é alguém que «vive num corpo
que lhe parc<:e estrangeiro (por ser Je um gênero no qual ele
'~ :
não. se . reconhece)".s Stanley dá um J'eito• então , de ,,a1r
<-· • desse e, em seguida, com gestos, mostrar que a acha muito forte; enle-
cemtóno onde se percebe estr.ingeiro. Recorre a todos os (l'. vada, ouve a música que o homem canta para ela e movimenta,
.. l 1spo-
slllv~ ª.º seu a cance e produz um novo corpo - feminino na suavemente, a cabeça para demonstrar sua apreciação. Todo o

:rpo.
aparenc1a - quase perfeito, na sua idealização do que seria um
de dmulher. Falta-lhe um último detalhe para atravessar a
nte1ra e gênero. A cirurgia que vai tirar o pênis (apêndice
seu corpo expressa sua imersão no território feminino - Bree é
praticamente um estereótipo de mulher! A situação me fez !em·
brar do modo como se comportam imigrantes e exilados em terra
que absolutamente não lhe agrnda) representa, possivelmente, estrangeira. O medo de serem expulsos desses territórios - que
o passaporte para cruzar pam o outro lado. não são originalmente os seus - e o enorme desejo de serem
Mas esse cruzamento não é simples - não é simples para aceitos fazem com que os forasteiros obedeçam à risca às normas
Bree nem para ~inguém. Esse é um atravessamento de fronteira do novo país. Seguem-nas, geralmente, com muito mais rigor do
extremamente vtgiado em nossas culturas. Somos todos instados a que os nativos, pois esses se acreditam legitimados e, portanto,
pennanecer no território de gênero para o qual fomos designados se sentem mais à vontade naquele espaço.
ao nascer. Pedagogias são exercidas cotidianamente e continua- Na contemporaneidade, os atravessamentos das fronteiras de
~e~te por meio da família, da escola, da mídia, das leis, das gênero e sexualidade parecem mais frequentes ou, quem sabe,
igrejas, da medicina, para garantir que cada um ou cada uma talvez sejam, simplesmente, mais visíveis. O fato é que hoje as
de nós ~dquíra e mantenha coerentemente seu gênero e, por classificações binárias de masculinidade e feminilidade, ou de
:onsegumte, sua sexualidade. O processo de heterononnatividade heterossexualidade e homossexualidade, não mais dão conta das
e posto em ação para nos tornar, todos, compulsoriamente, possibilidades de prátkas e identidades experimentadas pelos
h_eteros.sexuais. As normas i:egulatórias de gênero e de sexualidade sujeitos. Isso não significa que se transite livremente entre esses
sao, ~mo todas as normas, anônimas e onipresentes. É pratica- territórios - por certo, os guarda-fronteiras continuam vigilantes,
mente lillpossível identificar quem as enuncia: elas simplesmente severos e inflexíveis. As consequências para quem tem a ousadia
acontecem, se espalham por toda parte e costumam penetrar em de fazer tal atravessamento são, em geral, a punição, o isolamento
:~· ins~diosamente. A rota programada para a viagem implica ou, eventualmente, a reeducação com vistas ao retomo ao bom
reiteraçao constante dessas nonnas. Apesar disso, muitos, tal caminho. Invocando diversos discursos - da Psicologia, da
como Bree, decidem abandonar a rota prevista. religião, da Medicina -, é possível que alguém tente empreender
Para se fazer mulher, Bree precisará encontrar sua voz um processo de recondução desse desviante. Neste caso, quem
femi~~ª· E ela se esforça, então, para realizar com perfeição os se encarrega de trazer de volta o forasteiro costuma demonstrar
exeraaos de um vídeo de ínstrução; ela repete escalas parn poder indulgência e tolerância, evidenciando, com orgulho, sua posiç-Jo
fa!ar ao telefone no tom adequado. Há uma performance de altaneira e superior.
genero que precisa ser cumprida e que só poderá ser alcançada Cruzamentos de fronteiras são feitos pelas mais v~ariadas razões.
através da repetição continuada das nonnas e práticas. Quando penso nos territórios de gênero e de sexualidade, não me
É curioso observar que, ao transgredir e cruzar a fronteira preocupo em descobrir as intenções, os motivos ou os propósitos
de gênero, Bree se constrói como uma mulher conservadora e de quem empreende a travessia. Minha atenç-Jo volta-se para
~ec:1tada. Seus gestos, roupas, o modo como se comporta e as outros alvos: quero saber quem faz esse trânsito, quem pode se
1
ct:_ia.s que man~esta sugerem uma feminilidade clássica (tipo anos deslocar e como tais deslocamentos são significados socialmente.
1950). Quem vm o filme possivelmente se lembra de inúmeros A metáfora da viagem às vezes pode ser enganadora, especi<ll-
exemplos. Destaco a cena em que ela conversa à noite com o mente se associarmos sempre a ela o privilégio de ir e de vir
caubói índio que tinha dado, a ela e a Toby, u~a caro~a. Bree livremente. James Clifford, em seus estudos sobre culturas como
mo~tra-se a típica mulher delicada, atenta e meiga. Recusa a locais de moradia e de passagem, nos leva a pluralizar sentidos
bebida que lhe é oferecida, para depois aceitar só um pouquinho e signific-ados das viagens. Ele nos recorda que há sujt.,itos que

206 207


fazem travessias e deslOC"amentos compelidos por circunstâncias disso, assumem-se como estranhos, esquisitos, queer. Preferem
'.
alheias ou por motivos externos (por exemplo, guias, criados, ser sempre estrangeiros, sempre diferentes, desprezando a
l
f 1.
l
migr.mtes, exilados etc.) e lembra, também, que as viagens sào normalização e a integração.

.
1
ri t ~
'
distintamente significadas por gênero, por classe, por raça.6 Não
podemos esquecer, portanto, que, também no território dos
Talvez possam ser compreendidos como uma espécie de
nômades e, se assim for, deles se poderia dizer que só têm "estadia
~-
;

.:
gêneros e das sexualidades, haverá sujeitos que se sentem de provisória, via de passagem. Seu próprio território é construído
i
algum modo empurrados para tais viagens e que não percebem constantemente pelo movimento." 7 O migrante, como lembra Rose
!'. a travessia como sendo uma escolha que fazem livremente. Suas
~ .: Braidotti, tem um itinerário de deslocamento entre sua terra natal
razões podem ser as mais diversas e eles podem atribuir distintos e um outro lugar que o recebe; o exilado, por sua vez, é obrigado
~ signifieados ao seu deslocamento. Tal como quaisquer outros a se separar, radicalmente, do lugar de origem e a ele não pode
viajantes, podem ver sua travessia restringida e repudiada ou, retomar. Mas ambos, migrante e exilado, lidam com lugares de
em vez disso, admitida e ampliada por suas marcas de classe, de algum modo fixos. "O nômade, por outro lado, se.posi~iona pela
raça ou por qualquer outra circunstância. Nào pergunto, entào, renúncia e desconstrução de qualquer senso de idenudade fixa
sobre as r.izões do cruzamento de fronteiras, apenas constato que (. ..) 0 estilo nômade tem a ver com transições e passagens, sem
o cruzamento acontece e que tem efeitos culturais significativos destinos predeterminados ou terras natais perdidas. nt1
não só para quem o realize, mas para todos nós que convivemos
com esses \>iajantes. Mas, decididamente, esse não é o caso de Bree. Ela pretende
atravessar, efetivamente, para o outro lado, quer adotar o novo
É possível pensar ainda que, também nos terrítórios de gênero território e ser por ele adotada. O que mais deseja é ser tomada
e sexualidade (como acontece em outros territórios), há aqueles por uma mulher autêntica. Por isso, quando sua irmã lhe sugere
e aquelas que vivem na própria fronteira. Sujeitos que não um traje extravagante e exagerado, ela rejeita enfaticamente,
chegam a completar o cruzamento (o que Bree consegue fazer dizendo: "Eu não sou uma travesti (ou uma drag queen), eu sou
em Transamérica) e vivem a ambiguidade do entrelugar. Por uma transsexual." Bree aspira alcançar toda a legitimidade possível
vezes, esses sujeitos inscrevem em seus corpos as marcas dos dois em sua travessia. Não quer, de mcxlo algum, ser considerada esqui-
lados, confundindo quem os encontra; ou escapam de um lado sita e manifesta essa preocupação ao perguntar a Toby: "Você
para outro, não se deixando fixar, deslizando. De fato, fronteiras me acha freak ?''9 (uma aberração, alguém excêntrico, ridículo).
são feitas para dividir e separar, mas é preciso lembrar que elas Bree não quer ficar errando à toa entre os territórios masculino e
também são locais de relação ou de encontro. Constituem-se em feminino, deseja encontrar seu lugar definitivo, estabil~r-se. O
região propícia à mélange e à mistura, ao embaralhamento dos que ela quer, enfim, é ser uma mulher nonnal e respeitavel.
sotaques, das marcas e dos hábitos distintivos de cada um dos
Andar à toa, vagabundear, viver como nômade caracterizam
.! lados. Zona de contrabando, de passagem ilegal de produtos,
a situação de errância que alguns estudiosos associam à rep~
de ideias e de gente, zona de transgressão; também é aí, conse-
sentação de viagem. Busrnndo a etimologia dessa expre~ao,
quentemente, que se exercitam com mais atenção a vigilância
nos deparamos com o verbo errare: "vagar, andar sem destmo,
e o policiamento. No domínio dos gêneros e da sexualidade
perder-se no caminho", também "enganar-se, comet~ e_rro" · lO
há, por exemplo, quem se divida (ou divida seu tempo) entre
Como toda a incursão num dicionário, essa se mostra instigante
os dois territórios, vivendo de dia aqui, de noíte lá; há quem
e sem fim. Um conjunto de noções vai se enc<1deando e pe~mite
aposte na ambiguidade, combinando em seu corpo as marcas
pensar naqueles que se desviam, que se apartam do c:-mmho,
dos dois gêneros; há ainda aqueles e aquelas que brincam com
se perdem, se enganam, hesitam ou cometem faltas - a\ues que,
as características identitárias dos dois territórios, apelando para o
usualmente, são representadas com alguma negatividade. Se
exagero e para a paródia. Esses viajantes não se preocupam em
seguirmos por aí, penso que a analogia mm o terrítório dos gêneros
íntegrnr-se definitivamente em nenhum dos territórios. Em vez
e das sexualidades ainda ptxle se sustentar. Errar ou vagar sem

208
destino, nesses territórios, se constitui em prática desaconselhável. sua juventude ou adolescência e as condições particulares de
É possível dizer que, em seu sentido mais amplo, a errância não sua existência talvez nos levem a pensar, mais facilmente, na
é bem vista nesses domínios. Mas também aqui podemos nos possibilidade de incertezas ou de turbulências em um processo
deparar com aqueles e aquelas que revertem essas representa- de construção identitária. Cometeremos um engano, contudo, se
ções. Marcas, usualmente negativas, que se associam à errância pensarmos que essas caracterí~ti~a~ são ~rivilégío de un:i fase
ou ao descaminho são assumidas ao revés, afinnativamente e específica da vida ou de um h1stona particular. A produçao das
sem receios, por quem se considera queer, esquisito, excêntrico. identidades sexuais e de gênero que se dá ao longo de toda a
Para esses, parece que importa mais vagar, descompromissada existência dos sujeitos (de todos os sujeitos) nada tem de harmo-
e livremente, do que chegar a algum destino; eles/das desejam niosa e estável. Muito pelo contrário, revela-se como um processo
experimentar, perder-se no caminho, errar mais do que cumprir sem qualquer garantia de estabilidade ou coerência; um processo
um trajeto e fixar-se numa posição. Talvez porque queer seja que pode ser, e é, marcado por imprevisibilidade e provisorie-
melhor compreendido se for tomado como uma disposição, como dade. Neste sentido, é possível dizer que todos somos, sempre,
um jeito de estar e de ser, em vez de ser considerado como uma sujeitos em constrnção ou, para usar uma expressão do filme,
nova posição de sujeito ou um lugar social estabelecido. Queer a work in process. Bree afirma isso com convicção, assumindo
indica um movimento, uma inclinação na qual parece implícito que é uma mulher em construção. A ideia se repete com Toby.
um tom perturbador. Mais do que uma nova identidade, queer Sua viagem no terreno da sexualidade é marcada por violência,
sinalíza um modo de estar no mundo. encontros, conflitos, experimentações. Inicialmente, deparamo-nos
A travessia de Bree me ajudou a pensar sobre isso. Num com um garoto problemático e confuso que aceita se lançar na
primeiro momento, quando tomamos o termo queer como uma estrada junto com Bree, suposta missionária religiosa; no meio do
expressão guarda-chuva, ou seja, como uma expressão que canúnho, assistimos ao seu reencontro com o padrasto e a emer-
serve para se referir a todo um conjunto de sujeitos não heteros- gência do ódio e do medo, resultantes do abuso sexual sofrido;
sexuais, parece absolutamente apropriado incluir nesse rótulo a adiante observamos suas tentativas de tirar alguma vantagem do
figura transexual de Bree. Mas, em seguida, se refletirmos mais empréstlmo de seu corpo, seja prostituindo-se no breve encontro
profundamente sobre o significado político que intelectuais e com um caminhoneiro, seja atuando em filmes pornográficos. Será
militantes procuraram atribuir à expressão queer, ou seja, a de também através de suas supostas habilidades sexuais que Toby
uma disposição antinormalizadora, subversiva, de rejeição aos buscará expressar seu crescente afeto por Bree, oferecendo-se
arranjos e instituições sociais, então, teremos de admitir que, amorosamente a ela.
neste sentido, Bree não demonstra uma disposição queer. Ela O propósito declarado da viagem é, para Toby, encontrar seu
assume, claramente, a posição de integração; Bree busca ajustar- verdadeiro pai e chegar até Hollywood, para ali se tomar astro de
-se, adaptar-se, o mais convencionalmente possível, ao território filmes pomô. E, ainda que de um jeito meio truncado, ele realiza
da feminilidade. Sob esta perspectiva, decididamente, Bree não tal projeto. É bem verdade que o pai se revela numa estranha e
é queer. delicada figura de mulher, Bree, e o sonho cinematográfico não
Não quero me esquecer da figura de Toby, que, junto com traz junto a fama esperada ou o reconhecimento social. Mas, de
Bree, empreende a viagem através da América. Ele também um jeito ou de outro, Toby realiza a viagem e lida, como pode,
percorre os territórios de gênero e sexualidade e também parece, com os códigos e as referências de gênero e sexualidade que a
em muitos momentos, confuso com seu corpo. Desalinhado sociedade lhe apresenta. Também experimenta desvios da rota
e negligente, antes de iniciar a travessia, ele junta suas coisas legitimada quando pratica sexo com outros homens, mas busca
de qualquer jeito, como pode, no quarto do hotel imundo em retomar ao campo da masculinidade hegemónica e se mostra, em
que vive. O desarranjo e o descontrole do lugar e também de alguns momentos, agressivamente heterossexual. Não sabemos 0
Toby fazem contraponto com a esmerada aparência de Bree. rumo que tomará a seguir. Ao final do filme, nada está assentado

210 211
OUAISS Antônio. Dicionário eletrônic(J 1!ouaiss da linµ,ua /H1rl11;.!,JU.'SCC
ou resolvido. Não fica claro o caminho que Tohy vai as.~umir rs.l.]: Obj~tiva, 2001. 1 Versão
1.0 - 1 CD-R0.\1.
nem de que modo se construirá sua relação com B1\x' (seu rai.'
mãe). A história desses viajantes, tal corno nossa própria hiskiria LOPES, D. O homem que amava rapazes. Hío de J;im·iro: Aeropl;in<>.
pennanece em aberto, em construção. ' 2002.
LOURO, G. Um corpo estranho-. cn.saius solm: '.->exualidade c: tvoria queer.
Belo Horizonte: Autêntica, 2004.
NOTAS WCKER, Duncan. Transamértca l TramamertcaL Est<1do~ \"nidos. 10,1
min., 2005.
1
O título deste artigo remete a um capítulo de meu livro, Cm curpo
estranho: ensaios sobre sexualidade e teoria q11eer(Louro, 2004 l. Trata·
-se, no entanto, de uma nova abordagem do tema (daí o indicativo ro.
embora sejam feitas, aqui, referências àquele texto.
2
LOURO, 2004.
3
BlITLER, 1993.
4
BlITLER, 1999.
~ CALLIGARIS, 2006.
6
CUFFORD, 1997.
7
PEIXOTO apudLOPES 2002, p. 183.
8
BRAIDOID, 2002.
9
Diálogos extraídos do filme Transamérica {ver TUCKER, 2005).
10
HOUAlSS, 2001.

REFERÊNCIAS

BRAJDOTil, R. Diferença, diversidade e subjetividade nômade. Lahrys.


Estudos Feministas 0-2) jul./dez. 2002. Disponível em: <http://v,•ww.
unb.br/iMlLs/gefem>.

BUTIER, J. Bodíes that matter. On the discursive limits of sex. New


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BUTIER, J. Corpos que pesam: sobre os limites Jiscur.sívos Jo "'sexo··.


ln: WURO, G. (Org.). O corjxJ educado:. pedagogias da sexualidade
Belo Horizonte: Autêntica, 1999.

CALUGARIS, C. Estamíra e Transaméríca. Folha de S.Paulo, 3 ago.


2006.

CUFFORD,J. Routes: Travei and translation in the late twentidh cc:ntury.


Londres: Harvard University Press, 1997.

212

~
L#~·. ~r~
1
l
l,
1. HENRIQUE CAETANO NARDI
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l
!
1
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J SEXO EPODER
NAS TRAMAS PÓS(~)IDENTITÁRIAS
REHEXÕES SOBRE APROSTITUIÇÃO MASCULINA

CAPTURAS IDENTITÁRIAS
E PRODUÇÃO DE SUBJE1TVIDADE

O debate a respeito das possibilidades de (auto)constituição


do sujeito a partir de urna perspectiva pós-identitária recebeu
ímportantes contribuições do campo pós-estruturalista e, mais
recentemente, do que temos chamado de teoria queer. Utiliz.ando
as ferramentas teóricas de Michel Foucault e Judith Butler,
buscarei explorar, a partir do reconhecimento do caráter perfor-
mativo do discurso, os efeitos restritivos da língua em designar as
experimentações da sexualidade para além da prisão linguística
do binarismo de gênero. As contribuições de Butler ajudam a
.w compreender por que as experimentações da sexualidade sào
~. ~
-~ reféns da assignação identitária generificada 1• Segundo a aurora, as
'.• >

'_~· 1.ª1·-'_'
práticas eróticas estão esquadrinhadas em um campo de relações
.' de poder que é definido pela hierarquização dos sexos e pelas
performances de gênero. Assim, mesmo que a experimentação
sexual/erótica seja mais livre do que o espaço da norma, quando
esta é submetida ao campo da linguagem (no ato linguístico do
relato e da enunciação), sofre a restrição colocada pelas possibi-
lidades de inteligibilidade presentes no vocabulário. Os sentidos
atribuídos às experiências derivam do jogo de forças que constrói
a possibilidade de expressão a partir da palavra.
Cabe salientar que o trabalho de reflexão que proponho
aqui, ao pensar as possibilidades de expressão do vivido para
!

além das capturas identitárias construídas na normalização das das relações capital/trabalho no modo selvagem como este se
perfonnances de gênero e da sexualidade e na rede enunciativa apresenta no Brasil. Min~ias análi~e~ tornaram ev~de~te que o
1 que as configuram e sustentam, não implica negar o papel das dispositivo do trabalho fixava pos1çoes com relaçao as perfor-
1 balizas idencific-atórias na (auto)constituição dos sujeitos, mas mances de gênero próprias à modernidade e, aqui, recorro ao
1
refletir sobre as fomlas de dominação que limitam as práticas conceito foucaultiano de dispositivo, ou seja,
l: de liberdade.
[,, Em minha trajetória de pesquisa até este momento, me con- (. .. ) um conjunto heterogêneo, comportando discursos, insti-
: l'í; tentei em definir a identidade como uma formatação subjetiva tuições, conjuntos arquiteturais, decisões regulamentart..'S, leis,
L medidas administrativas, enunciados científicos, proposições
contextualízada pelo tempo e pela cultura. Assim, ao buscar
L compreender os processos de subjetivação, seguindo os passos
filosóficas, morais, filantrópicas, enfim: o dito como o não dito
(. .. ) o dispositivo, nele mesmo, é a rede que se pode estabelecer
de Foucault e tomando como leitmotiv de minha pesquisa a
entre estes elementos. 2
compreensão das formas como nos constituímos como sujeitos
em diferentes contextos, acabei por relegar a um segundo plano Para as mulheres, a colagem de performances de gênero
; , o debate conceituai em tomo do termo identidade. Talvez porque à divisão sexual do trabalho produzia uma culpa particular
o conceito de identidade, no campo psicossociológico (no qual relacionada ao adoecimento. 3 O fato de terem ampliado suas
me situo), carrega a rigidez e a marca normativa das perspectivas possibilidades de ocupar um lugar nas redes de sociabilidade
tradicionais psicológicas e psicanalíticas que idealizam uma identi- para além da posição fixa de mulher/mãe, tomando-se traba-
dade clara e bem estruturada em tomo de um verdadeiro eu e que lhadoras na esfera da produção (me refiro à dístição marxista
derivam de uma boa resolução do complexo de Édipo, ou seja, entre produção e reprodução), apresentava-se agora na forma de
bons exemplos do funcionamento da norma. Em minha prática uma punição, pois as limitações físicas (como no caso das LER/
de pesquisa, ao contrário, sempre me deparei com os efeitos de DORT4) as impediam de realizar as tarefas do cuidado da casa
cerceamento da liberdade presentes nas capturas identitárias. Por e dos/as filhas/os.
essa razão, optei por uma discussão centrada na produção de
Para os homens, ficava claro o peso do exercício da dominação
subjetividade, a qual me permitiu construir ferramentas críticas
masculina> no momento em que, ao adoecerem no trabalho,
para propor na esfera acadêmica fonnas distintas de compreender o
experimentavam o peso da performance viril, as quais eram
que somos no nosso tempo e, assim, ao situar nossa historicidade,
colocadas sob suspeita, conjuntamente com a incapacidade para o
poder ampliar as possibilidades do que podemos ser. Busquei
tr.abalho. Este lugar de trabalhador sustenta(va) também a posição
com essa escolha conceituai trazer o debate psicossociológico
de paVprovedor, para a qual o espaço doméstico se configurava
para o campo ético das possibilidades, em oposição às perspec-
como um lugar de passagem e lócus de reprodução e, portanco,
tivas normalizantes hegemônicas.
é considerado como feminino e infantil.
Inicialmente no campo das relações entre saúde e trabalho
No contexto brasileiro foi durante a era Vargas que se orga-
nizou o campo de forças ~ue produziu a associação entre ~drníl~a/
(que marca o início de minha trajetória de pesquisa), ao me con-
frontar com situações de sofrimento relacionado ao adoecimento
trabalho e cidadania, o qual se estruturou solidamente no mte~or
no trabalho, percebi que, ao adoecer, as/os trabalhadoras/es não
da desigualdade estrutural brasileira. Posteriormente, o pro1eto
podiam mais dar conta dos ideais identificatórios relacionados ao
desenvolvimentista varguista foi incorporado pelos militares em
código moral do trabalho e tomavam para si mesmas/os a culpa
nossa ditadura mais recente. No período do mik1gre econômico, foi
por não poder ter resistido às pressões e aos riscos presentes nos
a figura identitária emblemática do operário padrào que_ n_:a_r-
processos de produção aos quais estavam submetidas(os). Elas(es)
cou a forma de produção social do esquadrinhamento bmano
se sentiam incapazes, em um primeiro momento, de entender
caracterizado por posições fixas para os homens e as mulh_:~es
a produção social das situações de risco ligadas à exploração
na sua relação com o trJ.balho e no contexto da família catohca

216 21i
brasileira dencro da lógica do familismo, tão bem descrita por A modernidade se caracterízou explicitamente por ser um
Colbari (1995). período (o que não quer dizer que a comercíalização das diferenças
Os resultados dest'a pesquisa refletem a transição do foco de que marca o capitalismo pós-moderno não remeta à serialização
minhas pesquisas do campo da saúde para o da sexualidade. da diferença) no qual nós humanos queríamos nos encontrar em
Como esta pesquisa se situa no campo da prostituição, é impor- uma situação de identidade com algo (uma ideia), com alguém
tante ressair-ar a potência da ação conjunta dos dispositivos do que desejávamos imitar ou com quem nos identificávamos. Neste
trabalho e da sexualidade/gênero nesse lócus social particular. sentido, é claro para mim que não é possível pensar a concepção
Trata-se de uma conjugação de agenciamentos que remete à moderna/contemporânea de identidade, anteriormente à
biopolítica como fom1a de controle das populações e ao modo emergência do indivíduo (a forma assumida pelo sujeito), como
produto do modo de subjetivação predominante da moderni-
de subjetivação simultaneamente totalizante e individualizante a
dade. Faço esta ressalva, pois não se pode pensar nessa figura
ela associado. Tr..t.ta-se de uma forma de poder (biopoder) que se
conceituai da identidade antes do nascimento do Estado moderno
materializa na açào conjunta da disciplina e do controle no que
.~ . e do conjunto de ações produzidas na culturd a partir da figura
se refere às/aos trabalhadoras/es da modernidade.
simbólico/imaginária da identidade nacional. Aqui cabe afirmar,
Ao explorar a ação conjunta dos dispositivos trabalho/sexua· mesmo que muito rapidamente (e correndo todos os riscos dessa
1idade, mostrou-se incontornável fazer uso da discussão proposta pressa), que o conceito de identidade emerge no final do século
por Foucault no seu te},..1:0 "Naissance da la médecine sociale", XVIII e se estrutura no século XIX, com a afirmação do Estado-
principalmente quanto ao papel da medicina da força de trabalho -nação. Acontecimento esse ritualizado pela criação dos hinos
inglesa.6 Também foi fundamental retomar a compreensão da nacionais, bandeiras nacionais e pela emergência das guerr.Js de
ação disciplinar do dispositivo trabalho ao produzir a docilização independência na América Latina; e, não se deve esquecer, pelo
dos corpos, como exemplarmeme demonstrado em Surveilleret nascimento da Psicanálise.
punir.7 Finalmente, foram igualmente fundamentais seus cursos É no século XX, entretanto, que a figura do indivíduo com
no College de France, principalmente, "Naissance de la biopo- identidade própria (e carteira de identidade também) se afirma
litique" (1978-1979), "Ilfaut défendre la socíété" 0975-1976) e como o centro da organização das sociedades democráticas
"'Sécurité, territoire et population "(1977-1978); os quais remetem no Ocidente. É o século de afirmação e, ao mesmo tempo,
para a compreensão de como o poder se metam01foseia e se de desconstrução da ideia de indivíduo (tal como produzido
reformata., não se tratando de forma alguma de uma evolução a partir do iluminismo) e das identidades (pensadas como
ou sequência, uma vez que distintas formas de apresentação do essencializadas).
poder podem coexistir.
A modernidade apostou na força dos indivíduos, na busca de
Assim, pensar a marca do trabalho associada à disciplina e às uma essência psicológica dos mesmos, de uma verdade interior
capturas identitárias a ele associadas na modernidade conduz à toda soberana, mesmo que por vezes (des)governada por um
exploração da origem etimológica do termo identidade, i.e., de inconsciente também todo soberano, mas localizado no que
idem (do latim), que quer dizer o mesmo, o que nos faz pensar podemos chamar de uma ilusão de interioridade dos indivíduos.
na produção em massa de mercadorias, na linha de montagem, Ao refletir sobre a construção subjetiva a partir da afinnaç;'.io de
nos modelos disciplinares na escola, na cor rosa para meninas e uma identidade, encontramos uma série de binarismos próprios
na cor azul para meninos; e, também, na ligação do conceito de à modernidade, ou seja, lidamos com as relações de p<xier que
idemidade (e do caráter performativo de sua enunciação) com o se esquadrinham a partir dos polos masculino/feminino, social!
processo psíquico de identificação, tal como descrito e explorado individual, interior/exterior, púhlicoíprivado, trabalho/vagabun-
por Freud na resolução do complexo de Édipo, e por meio do dagem, heterossexual/homosst~xual. Pobriza<,,'ôes e binarismos
qual o sujeito da (e para a) Psicanáfüe se constitui.R que definiram (e ainda definem) nossa constituiç:.lo como sujeitos
modernos.

219
218
A partir dos anos de 1960, fomos vendo niir, ou pensamos
ver ruir, a força das capturas identitárias centradas na exclusão das verdades que são afirmadas como as únicas possibilidades
. f.
de tudo o que ameaça a estabilidade do ideal identitário, ou para a existência. É importante frisar que e_s~e é um m~wimcnto
seja, se sou branco, recuso o negro; se sou heterosexual, rereito rocessual coletivo que depende do exerc1c10 da altendade, do
p . . 1 .
o homosse;..-ual; se sou homem, recuso tudo o que possa ser respeito pelo outro, não porque o outro se1a 1gua , mas JUSta-
identificado como feminino n~ que tange às performances que mente por diversidade/diferença. Este é um movimento que se
1. constroem minha identidade. E nesse rico período (anos 196ü- sustenta na ruptura com o modelo das capturas identitárias que
J;
19iú) de revoltas e invenções que emergiram ou se afirmaram nos aprisionam na lógica do mesmo e da designação restritíva
L
1: os múltiplos movimentos que denunciaram a dominação mas- do que pod emos ser. 10
l!
t: culina, o heteros.sexismo, a discriminação racial, a destruição do Nesse sentido, proponho seguir algumas pistas de análise que
j.

''
; planeta pela fonna abusiva de exploração dos recursos naturais, indicam a(s) forma(s) como operam no campo da sexualidade as
o consumismo e o empobrecimento das formas de ser e existir novas e as antigas possibilidades de produção da subjetividade.
no mundo, a moral sexual e seu caráter assujeitador dos corpos
i: e dos prazeres, a desigualdade social, o desequilíbrio norte-sul,
os imperialismos de toda a sorte, a educação autoritária, a PROSTITUIÇÃO 1v1ASCULINA
sociedade de classes etc. Múltiplas forças que, ao deslocarem as E CAPTIJRAS IDENTITÁRIAS
formas reiteradas de reinstalação da norma no jogo descrito por
Butler (2000) do assujeitamento apaixonado, produziram fissuras Como exercício de reflexão proponho discutir aqui algumas
e novas possibilidades de reinventannos o que somos. conclusões de uma pesquisa 11 (realizada entre 2004 e 2006) sobre
Esses movimentos nascem de e, ao mesmo tempo, fazem o comércio erótico dos homens que fazem sexo com homens
nascer propostas teóricas ligadas à perspectiva pós-estruturalista, (HSH) na região metropolitana de Porto Alegre (Rt\1P A).
a qual, ao apostar na perspectiva da produção da subjetividade, O ponto de partida, ou seja, minha pergunta-guia nasce da
denunciando as amarras do construto identitário, permitiu avanços afirmação de uma transformista, gerente de um bordel, que diz
para se pensarem novas possibilidades de construção do sujeito que a identidade sexual (homossexual, heterossexual, bisse-
para além daquele que reproduz o mesmo na lógica da captura xual) é menos importante que as posições no jogo erótico para
identitária. Falar de pós-identidades, portanto, é fazer referência os garotos de programa. A pergunta que me fiz ao escut~r
ao incremento do espaço de liberdade que possibilíta(ría) o essa afirmação foi: Será que lidamos aqui com um campo pos-
trânsito para além das capturas identitárias que fixam posições -identitário, no qual as noções de sujeito homossexual e sujeito
sociais. Trata-se de operar conceitualmente no campo dos jogos heterossexual perdem o sentido?
de legitimação das verdades a partir das quais os sujeitos fazem
a experiência de si. A questão não é simples, pois a resposta depende de um~
análise vasta e complexa de um contexto marcado pela d1vers1-
A compreensão da produção de subjetividade depende da dade, mas que aponta para uma liberdade relativa das práticas no
decifração da maneira como as verdades são legitimadas em cada comércio erótico, mesmo que as posiçôes (ativo/passin)) p:1re<,":lm
contexto. Cabe ao genealogista9 da subjetividade compreender regular o campo mais do que as denominações identitárias.
as condições políticas da emergência dos enunciados que são
É importante ressaltar que o campo da prostituiçlo Yiril (no
oferecidos ou impostos em cada tempo e dos quais nos utilizamos
qual desenvolvi a pesquisa) se constrói no tensionamento_ das
para pensar o que somos. A transformação da subjetividade
performances masculinas marcadas pela origem de classe. :\'este
passa pela compreensão das regras dos jogos de legitimação da
contexto específico, as categorias heterossexual e homossex_ual
verdade. A invenção de outras possibilidades de "ser no mundo"
perdem poder de atribuir Sl'ntido 1!, pelo menos no que se_ reft~re
e de se constituir como sujeitos depende da desnaturalização
ao lugar ocupado pelo garoto de programa. Essa cons!ItUH,;ao

220
221
identitária binária (homossexual/heterossexual), 13 que nasce no acompanham, o que implicou discutir o trabalho e o código
século XIX (momento no qual, segundo Foucault, uma prática moral que o aprisiona, assim como discutir as capturas do capi-
transforma-se em uma forma identidária), parece ter mais sentido talismo na sua associação com a construção do desejo de possuir
para algumas vertentes dos movimentos gayH que se sustentam no ol*tos/mercadorias e consumir prazeres. Posso afirmar que os
discurso psicossodo16gico identitário e para parte da população prazeres são múltiplos, mas hegemonicamente capturados pela
de classe média e classe média alta, atravessada pelo discurso lógica capitalista, 18 seja na perspectiva da vulnerabilidade social
médico-psicológico. 15 criada pela precarização do trabalho, seja pela necessidade
Neste ensaio, tomarei como base para a discussão essa de portar as grifes que marcam simbolicamente uma posição de
pesquisa, cujo objetivo era o de acompanhar um projeto de inter- cídadão num mundo marcado pela desigualdade, ou, ainda,
venção no campo da prevenção do HIV-AIDS e da violência.16 de possuir (nos diversos sentidos possíveis do verbo) um belo
O princípio-guia do projeto de intervenção centrava-se na corpo, possuindo-o ou vendendo a ílusào de possuí-lo.
produção de uma outra visibilidade da prostituição masculina Tanto a definição dos prazeres possíveis como sua relação
que possibilítasse deslocar o lugar de dominação representado com o capitalismo contemporâneo são definidos no interior da
pelo anormal no interior da norma, questionando-a. A luta norma sexual. Ali se encontram os regramentos que constituem
travada no interior da norma, que caracteriza a ação das ONGs tanto a heteronormatividade como a homonormatividade, pois
que coordenaram o projeto, buscou tensionar o código mornl que a imposição da heterossexualidade (a heteronormatividade) cria
marca a ideia/concepção de direitos humanos e, assim, introduzir uma segunda dobra de normalização no campo das homos-
alguma reversibilidade de posições nas relações de poder inte- sexualidades. 19
riores ao campo, amplíando a liberdade presente nos processos Embora a relação dos clientes e dos garotos, por vezes, escape
de subjetivação marcados pelo dispositivo da sexualidade na das fonnas de dominação heteronormativas, encontramos ali,
cena contemporânea. majoritariamente, uma vulnerabilidade socialmente construída em
As incursões no campo e as entrevistas logo mostraram que relação à epidemia de AIDS e à violência, uma vez que o jogo
a prostituição não é homogênea e uniforme. Esta constatação foi comercial do sexo entre homens ainda está preso à visibilidade
acompanhada de um princípio de vígilâncía ético-epistemológica, específica do gueto e, portanto, da violência que marca a for-
que utilizei para atenuar o risco de ficar preso no código moral mação do gueto; ou seja, por meio do processo (com múltiplas
interior ao dispositivo da sexualidade (o código binário do jogo dimensões) que faz com que tudo aquilo que é inaceitável no
de culpabilização do garoto ou do cliente), o qual me apresentaria interior da norma que marca a constituição da subjetividade deva
como possibilidade de interpretação. Dessa forma, foi possível ser expulso para o espaço da abjeção.
refletir sobre as condições nas quais o comércio erótico se produz; Embora as diferenças sociais sejam evidentes e certamente
ou seja, tratava-se de problematizar as práticas do comércio erótico importantes na definição do comércio erótico, simplificar a análise
(e os sentidos a ela atribuídos) na produção de subjetividade. remetendo exclusivamente para a polaridade/dicotomia cliente
Problematizar significa aqui entender o conjunto de questões rico/garoto pobre seria uma violência analítica reducionista. Mesmo
presentes em um determinado campo. Mais precisamente, para que a diferença socioeconômica marque a prostituição viril e,
Foucault, a problematização implica compreender o conjunto de certamente, o diagrama de forças e de orientação do desejo (de
práticas discursivas e não discursivas que fazem algo entrnr no ganhar dinheiro de um lado e comprar prazer de outro), ela não
jogo do verdadeiro e do falso e que constituem esse algo objeto é absoluta para todos os casosísituaçóes. Na pesquisa, enconrrei
do pensamento, seja na forma de uma reflexão moral, do saber situações diversas nas quais a renda advinda da prostituição po._<;-
científico, de análise política etc.17 sibilitava o acesso a bens de consumo, inserção cultural, existir e
Nessa direção, a pesquisa tomou como premissa a constrUçào ser desejado (que de outr..i form•• seriam pouco po.~íveis ); assim
histórica do masculino e das práticas de dominação que a como encontrei relatos que apontavam par.ta prostituição como

222 223
1
1:., uma etapa planejada de projetos de vida (por exemplo, como definem/julgam a transexualidade, o travestismo e a homosse-
uma forma de ganhar dinheiro para posteriormente montar um xualidade feminina, cada um desses, com suas subdivisões. Todos
1 ' negócio ou pagar os estudos). os círculos constrõem seus diagramas de força guiando-se pda
Também é impolt'.rnte lembrar, em relaçào à diferença socio- polarízação primera da ordem sexísta da heterossexua!klade.
1 econômica, a referência feita por Perlonguer 0987) em relação Como fonna de exemplicar esse construto conceituai (certamente
! ao rompimento das fronteiras de classe possihilitaJo pela reduciotilita), podemos ver que, no interior da nonna homossexual,
' prostituição, embora essa conclusão não seja isenta de crítica a bicha louca, por ser efeminada (próxima do polo feminino,
uma vez que, como ele mesmo afirma, a fantasia do trabalhado~ portanto), tem menos prestígio no mercado erótico homossexual
1 braçal viril faça parte do jogo erótico homossexual e, portanto, (contemporaneamente marcado por uma idealização do masculino).
não se trate de rompimento, mas de um posicionamento fixo Pode-se assim explicar, também, porque nas relaçôes estáveis
l:' no jogo erótico. Esta polaridade se mostra evidente quando res- com as travestis a posição de marido - ocupada muitas vezes
! ;;
; : tringirmos a análise à polaridade que estabelece o diagrama das pelos garotos de programa22 - também é hierárquica, ou seja, a
~ _:

' relações de poder no campo; ou seja, poder viril de um lado e posição daquele que penetra na relação (ativo no sexo, portanto
!' ;

poder econômico do outro. O pertencimento de classe.w acaba


sendo um motor do desejo e também um divisor de águas, se
masculino) e é ativo na proteção da travesti. Entretanto, esta
observação deve ser melhor explorada (apontando para os limites
pensarmos com Perlongher que as relações entre homens acabam de uma representação gráfica conceituai quando o masculino
sendo verticais no comércio erótico (um paga pelo prazer e o se craveste e se reapresenta de formas distintas para manter sua
outro é ativo no sexo) e horizontais nas relações entre os garotos potência no jogo da dominação), pois, embora o fato de apanhar
e suas namoradas e companheiras (no que se refere à origem do marido confira um caráter feminino muitas vezes desejado pela
de classe); mas é importante não esquecer que essas relações se travesti (na sua hiperbolização de um feminino do imaginário, i.e.,
mantêm hierárquicas no que se refere ao sexo/gênero. O sexis- a cópia da cópia da cópia, se seguirmos a lógica proposta por
mo lúerarquizador das posições homem/mulher e masculino/ Butler), a proteção do marido não é algo corrente, mas idealizado.
feminino é central na definição do diagrama. A violência cultural do masculino (que também constitui as
Encontramos aqui o que Foucault 0976) descreveu como as travestis como sujeitos) e a dureza da vida na prostituição faz
espirais do poder e do prazer. Nestas espirais, podemos visualizar com que as travestis imprimam um jeito de ser no mundo que
pode e frequentemente recorre a/explode em disputas físicas
o que tenho chamado de círculos concêntricos da subjetivação.
violentas internas ao grupo. No cotidiano da batalha,2' a proteção
Este conceito-imagem ajuda a diagramar o jogo de forças e a ação
é assegurada por elas mesmas ou pelas amigas.
produtiva do poder no interior do dispositivo da sexualidade,
pois evidencia os efeitos da polaridade da norma heterossexual Com relação a outro definidor do diagrama, ou seja, o dinheiro.
nos círculos interiores à normalização da homossexualidade e a posição das travestis, bem como dos clientes homossexuais
dos prazeres classificados como abjetos. 21 em relação aos garotos, é distinta. Ali, os garotos oferecem no
mercado da prostituição uma perfonnance erótica viril, ficando
Os vetores da polarização no interior do dispositivo diagrnmam
em uma posição intennediária e tensa do diagrama (o dinheiro
as relações de poder e definem a orientação das ações e a atribui-
estando mais próximo do polo definidor do masculino).
ção de sentido às experiências (ou seja, funcionam como legiti·
madores da verdade que sustenta e estrutura as subjetividades). Já com relaçào aos relacionamentos com as mulheres origi·
Os círculos ajudam a compreender a norma em funcionamento nárias do mesmo contexto social (o que é diferente das rebçües
nas suas múltiplas dobras e reapresentações/reiterações. Assim, com as mulheres clientes), os garotos de progr:.una conjugam
o círculo mais amplo da heteronormatividade produz um círculo a posição ativCl no sexo e superior no que range ao poder
menor no seu interior, que é aquele da homonormativiJade, econômico repre:->entado pelo dinheiro (adquirido na rd:t<,'~lo
cujo interior vai abrigar círculos menores de normalização, que com o cliente).

224
. Es:-;:1 descrição das múltiplas combirn1çúes reh1nonab t' impor- podemos dizer que o que ocorreu ali foi uma inversão da
[ante, .un~1
vez quc.-por -strem nmcradas nas po!anzaçue~ ma:-- frágil polaridade que sustenta a vírilídade do garoto e que o
cuhno/fomini.no, ativo1 passivo; rk:o1 polm:, produzen 1 un t circuitr, sustenta na trama da sedução. Ao ver uma mulher nua, ele se
instável e kn•..;o ~· fadlmt"nte_abertn ~1 violêrn.:i~L sente interpelado (no sentido que Butler toma de Althusser) a
A violência -é parti<..:ulannente tvidenie quando a fragilidadt' realizar sua performance de gênero .
da çombinaçâo tma..'iculino:ativo X femínino/past>í\'t • X renda A outra cena é a do anúncio da proposta de realizar um
~colari<la<le-.·posiçào ..;oda! hit"rárquic1 supt-rmn t; ameacatia. calendário de garotos em uma casa de prostituição feito pela
. arín • t~ern
-por -exemplo, -quando o cliente in:o::i.'>le em tomar--..<;{' representante de uma das ONGs. O comentário jocoso dos
con-tbinacào-previa) ou -humilha ()_garoto, fazenJ( )refer~nuac ;1 garotos foi de que poderiam se ver pendurados nas paredes de
-&ua (1tigem _de das..-:;e. borracharias, tal como os calendários de mulheres nuas .
-X~mmj;i ,a.finnamos. 01·<1~gin:tt::-" .de ven..Ltdt· .qlli· Jdmen: ( A marca da reificação do corpo/fantasia em mercadoria inter-
que~~ .st"r honlt:'.tn.-mufüer;-nt:}!ro. branco. heteroscrexuaL 1mmu~- pela os garotos. Eles são, inicialmente, intimados a ocupar um
-.~xual;·bi.&"eX.UaL V'iad.ü.::t"nt-ei1<lid.o •. travtsLí,_garot( i trn > 1op i .trJnntc lugar até então tido como exclusivamente feminino. Posição esta
:das -capturns i<lentit.J1ias) i" :tkpt"ndenft. · tfa:-. ·nolanzacl.c-.t> am·u que será ressignificada posteriormente no transcurso <lo projeto
·u<t.S.".l.ivo ,-m.;~cuh.no/knlinino ;1in YpObl'c ..t)Ut'. orgaruzan t ;l nem:.:' pela alteração de sentido atribuído ao calendário, ou seja, quando
:~xua l:-ilt) :inl-t:'ritlr ii<) .i.hs_p0::.itin • ~ti t 8eX.ualid<.cJ..·. J .r)ti: Yt.' t.b 1
este passa a ter a função de instrumento de marketing <la casa e do
~'1.lima~Jo .1.b- ve.Iiia.<l-t-110'1~< )_apaixonado ó, .:.1SW~'.l.Lffi1'.:'11r1, seu trabalho, representando assim uma valorização do produto-
,-,q1.1:t11us:cónsti.tuLCOO!í>-'SUieltes .que:a.;;-m~tonn;u:ce-, dt -)!0'11-.:·n ~mercadoria (o prazer que o garoto pode proporcionar com seu
-:ictf'."!~ili.ias. belo corpo) dentro da lógica do mercado erótico.
:--J >.uaé' ,:e:U::k' ;::pre~m. :iaua~ :-n._q ,, ~:±ci.:msúe" carr:t)1 , T1ifr~n:
jJ-'.. Além dessas duas cenas, gostaria de chamar a atenção para
~axl:Úa r ~: -~t"OJ11!)~.ier ~' :-i~c1J:n; 1•..:en; úl:::~u. _\.:\ .--CI:TI:::",,:'.IT;,
4cm1e::.:: as distinções nas entrevistas realizadas com os garotos, com os
e(:Ql..J:.O::n...ê.u.<i1a:re~.i'tül.fü.ci::RM'~t.~:nc 1.xll..,.ll:•.-e.sa::íl:n ... U ·AZJTOl!. clientes e com as(os) donas(os)/gerentes dos locais em relaçào
,~qw»~~,ft!~ur:i;., .J.lill:.l·~uii~:'-i.coaff :-fü, :::.:i~:ili111 me: a como classificam e analisam a sexualidade dos garoros.
t ~11.a..um:.i..±.IBsiates:->..l.ii ~rcr.ett 1f.,.lti' !,<tnalie-..::.... . • 1cu3 l UZL 1xrrc
A grande maioria das(os) donas(os)Ígerentes e dos clientes
~:Ua"':::t~i..--...:id:::.-...:omsrnrO.U ,J.=t ~,"\$.:.ci.i.i.::eire-. ~ .. 1; :r:-mErn.JlW
imprimem marcas de identidade ligadas à orientação sexual dos
:"ID..ié:t.ifun:.l. J3SS!Iit. COml:I 'lJ.ml:: i,[cnn: · ,:'.t;h ··;~ox::r::ru::.'.:8 U!· ' }]"{; ~·
garotos, denominando-os como bissexuais ou homossexuais
coori 1n.·~--..ii..:6-k1:~--....h •.?R~~ltl :rn •L-U;.'1 ; •: -lDft:lIT.:ill~::::u
nào assumidos. Os garotos, por sua vez, nào tratam da questão
J.1!.0:Dilf."Ce<..: Q.i ·.:hi..ulw •lÜ:' honat", ct:mt C['J..~t.Lll ,: Lll.!l -..-~-~mo W
da mesma forma . Para estes, antes de uma posição identitüria. a
~l; rn Ow€::t.· ce :unophlur i cci..~~..:L :rl[ÇlC•'7 .um -"-~'Ic prostituição envolve práticas sexuais (polarizadas em tomo das
re, ~ri""~ ._,-b;r;;arie "'.];. !T...:c:t'!f'~· Im::~~ ':n.:i:::i -..e- ~Xl5S:.i a:no •.te posições ativo/passivo) que não se relacionam diretamente com
l-illfu'.n.tx:: &UOiJIG·· ~ .•..:~~· e~ ~eá.:.un:D pr:x:~ a identidade sexual; quando perguntados, a grande maioria se
t ttt"n:~m e g;uOOC6· efil ;:xu:rer:i.:L .~ :m.".JL.2K.'--!'t~ bmt:l!i
apresenta como ativo antes de afirmar que é heterossexual/• até
ua::Oé!n.~t.a"\"2m pr~ .. _-\·.cem L"f<I.)t.k:i ~e '-cr:-r.í,;;::u.-, ,::;mu
porque essa apresentação incita o desejo erótico dos dknres.
eui.LH~ ~~ q.x se '.m.:u :x:r::u .iw ..:;am;,./lei
É nesse jogo de definições que se centra a dificuldade em d.ir
da. rnint um _.,h:;:iw <le slTip('ea:te:r~:ar.k:i pca: ~ ;nmhe.!l:5 'o
uma resposta positiva à pergunta inicial que gui:.1 essa rd1exào.
r~ foi pm~ com a í~io <le aL."3...1ll: 1~J..>...'1e-t'.'!.l. ~ósc
pois o fato de atribuir um peso maior às práticas que à..'> categorias
irnrauie.. g;uoros ~ se~ ;rr.-t:~.!:..l.Ü(IS ;:ie!a
(__o
cli'iSicas identitárias não nos remete para um camp.) ix'.is-identitário.
cena e ahl.nckinam tran=~·th e: dii<;-ntes li~oi:..v;.io., 't~ ~ügumas
É importante lembrar aqui a afirmaçào de Foucault de que a
tra"\"e5Eis ~J paia: cercu o p---..1.k:o .Je w..i.'"'lt"".!ra -•i.7t<-"-~n--a..
partir da modernidade, o discurso cientifico e jurídico passa
a t~J.nsformar as práticas em id:~tidades e é nesta tensão que Aprofundar essa questão não faz parte da discussão aqui
se situa um dos elementos confltttvos entre clientes e garotos. 0 apresentada; entretanto, acreditamos que a busca de uma imposição
fato de se apresentar como ativo) remete para a afirmação "eu identitária (derivada de uma perspectiva essencialista) por parte
sou ativo" e, assim, "sou homem"; e, ao fazer essa operação de dos clíentes pode gerar violência, principalmente quando surge
afinnaçào identitária, o garoto produz um desvio de sentido <la a situação (aquela com que com mais frequência foi relatada
pelos garotos) do não pagamento. Este desacordo comercial é
ik
i:
!! classificação heteroatribuida (do cliente e da( o) propriemário(a)/
.~ gerente) que o identifica a partir do fato de manter uma relação muitas vezes sustentado pelo argumento de que, se o garoto
t'_,
sexual com outro homem. Outro elemento que o protege dessa demonstra gostar da relação sexual, ele é gay, e, portanto, não
J'í i imposição identjtária é o fato de cobrar para manter relações deve receber.
t
:j
,.
::: sexuais com outros homens. O desejo (tal como explicitado).está A violência aqui remete a relações de poder que a norma da
lt; (
f!
aqui dirigido ao dinheiro e não ao sexo do parceiro. sexualidade - na forma como ela se apresenta no discurso hege-
-~ ~ü
Essa tensão identitária, ao mesmo tempo que abre um espaço mônico médico-psicológico - busca invísibilizar. Ela se alimenta
''
;
'
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d
para a violência, é explorada no espaço comercial. A exibição de todos os elementos que conformam o comércio erótico, ou
' ' 'I seja, as capturas identitárias marcadas pelo binarismo de gênero,
de vídeos eróticos heterossexuais nos locais de prostituição é
'' l frequeme. É comum que os garotos se masturbem trocando a pela desigualdade social, pela visibilidade abjeta do gueto. pelo
'1 racismo, pelo desejo na sua forma aprisionada pelo mercado e,
direção do olhar do vídeo para os clientes, busc.mdo assim chamar
! também, pelo pragmatismo comercial, pelo erotismo possível e
i a atenção para a ereção produzida pela imagem, como uma forma
~-
·, 1
1
de atrair os clientes. A maioria dos garotos relata explicitamente pelos prazeres construídos nos jogos de sedução que produzem
ij que o importante é a posição sexual na relação com o cliente, ou invenções de si visíveis nas risadas e nas amizades construídas
seja, ser ativo, pois se manter nessa posição demarca um lugar nas parcerias entre garotos e entre clientes e garotos.
viril e protege a identidade masculina heterossexual. Entretanto,
essa definição parece ser secundária aqui, em razão da forma
específica como se constrói o lugar do garoto na troca erótica. PÓS-IDENTIDADES?
Essa característica que associa a posição ativa (penetração)
à virilidade é bastance presente nas culturas latinas e já foi A análise das práticas discursivas e não discursivas que busquei
descrita por diversos autores. 25 A maior presença do sexo anal esboçar aqui se engendrou na composição do próprio campo de
nas práticas heterossexuais brasileiras (em comparação com enunciação. Tal campo se pautou por um modo de pesquisar
outros países), tal como recentemente evidenciado por Heilborn no qual busquei suspender o a priori, levando em conta o
e Cabral (2006), é também um elemento que ajuda a desvincular efeito de raridade dos enunciados. Busquei seguir a perspecti\'a
a sodomia das práticas exclusivamente homossexuais. Assim, não foucaultiana de "pesar o 'valor' dos enunciados~, valor que não
existe constrangimento em assumir que existe prazer físico na é definido por uma ideia positivista de verdade e não é avaliado
relação sexual garoto/cliente para a grande maioria dos garotos, pela presença de um conteúdo secreto, mas remete à caracteri-
mas que este só se justifica pelo fato de ser pago ou de receber zação do lugar que eles ocupam, à capacidade de circulaç3.o e
alguma compensação financeira. troca, às possibilidades de trdnsformaçào. ~ 6
Alguns garotos afirmaram que poderiam assumir relações Minha resposta à questão que dt•u origem a esta reflexào é
temporária e parcial. O campo da prostituiçào é ainda muito
estáveis com outros homens desde que fossem sustentados finan-
violento no que tange à imposição da norma da sexuJ.lidade. A
ceiramente (moradia, estudos, alimentação, ajuda para a família),
violência do dispositivo se faz sentir nos limites <la invem,;üo de
mas essas relações são quase sempre consideradas moralmente
si que restringem <• expt•riência às possibilidades de inteligibili-
inferiores (e como escolha secundária cm termos de pr<tzer) se
dade oferecid~1s pela língua fonnada e generificada a partir dos
comparadas às relações estáveis com mulheres.

229
228
binarismos polarizados da sexualidade e do gênero. Por essa de grupo são um aspecto inevitável da vida social e da vida política, e
razão, a forma como a experimentação da sexualidade se dá no as duas são interconectadas porque as diferenças de grupo se tomam
campo do comércio erótico da prostituição masculina, mesmo se visíveis, salientes e problemáticas em contextos polítícos específicos. É
nesses momentos - quando exclusões são legitimadas por diferenças
ela tangencia a modernidade no que se refere às classificaçôes de grupo, quando hierarquias econômicas e sociais favorecem certos
homossexual/heterossexual, não foge dos binarismos e das polari- grupos em detrimento de outros, quando um conjunto de características
~ =· . dades que marcam os construtos identit:1rios do masculino. biológicas ou religiosas ou étnicas ou culturais é valorizado em relação a
~ : outros - que a tensão entre indivíduos e grupos emerge. Indivíduos para
Ao pensar no tem10 pós-identidade, remeto a Krishan Kumar
05 quais as identidades de grupo eram símplesmenre dimensões de uma
(1997), quando este aponta para a ambiguidade do pôs de pós- individualidade multifacetada descobrem-se totalmente determinados por
-modernidade, que pode significar o que vem depois; ou 0 post um único elemento: a idemidade religiosa, étnica, racial ou de gênero"
de post-morten, que remete para as exéquias realizadas sobre 0 (Scott, 2005, p. 18).
corpo morto da modernidade. Trata-se, portanto, do meu ponto 11 A metodologia da pesquisa utilizou três estratégias/instrumentos:
de vista, de realizar um exercício de desconstrução da forma de 1) entrevistas não diretivas com donas/os de boates, saunas e casas
de prostituição frequentadas por garotos de programa (michês); 2)
produção de subjetividade da modernidade sustentada na ideia observações de cunho etnográfico dos espaços de prostituição e,
de uma identidade única, verdadeira, essencialista, homogênea especialmente, dos eventos associados ao concurso para eleger o garoto
e fuca. Dessa forma, podemos interferir nos limites da língua, do calendário-, 3) entrevistas não diretivas com os garotos, além de
1:" transformar os sentidos, inventar palavras e pensar como pode- utilização das informações oriundas de uma pesquisa quantitath·a com
i' to6 garotos e 78 clientes, que buscou traçar um perfil socioeconómico
mos nos constituir de outras formas para além dos binarismos e descrever as situações de violência e as práticas relativas ao uso do
que marcam as relações de poder que esquadrinham a vida ao preservativo nas relações sexuais com clientes e com parceiros/as não
estabelecerem uma hierarquia das vidas legítimas. comerciais. A análise das entrevistas buscou definir a rede enunciativa
que marca o jogo discursivo presente nos relatos das/os entrevisfa<las!os.
A análise elas notas relativas à descrição etnográfic.1, por sua vez, buscou
compreender os espaços de interação, ou seja, como os jogos de ixxJer
NOTAS e verdade se materializam nas práticas cotidianas do comércio erótico.
As informações relativas ao perfil de clientes e garotos foram utilizadas
1 como forma de contextualização dos relatos. Para uma maior explicitação
Generificada ou gendrada, pois ambos os termos são neologismos da metodologia, ver Nardi (2006).
derivados de uma importação do termo em inglês gendered.
1
2 ~ Uma alternativa a essa interpretação seria de que o deslocamento
FOUCAULT, I994a, p. 299.
dessas definições poderia se constituir uma defesa - no semido dos
1 mecanismos coletivos de defesa descritos por C. Dejours 0992l-, pois a
NARDI, 1999.
homossexualidade (no interior do diagrama do disposith·o da sexualidade)
• Lesões por Esforço Repetitivo/Distúrbio Osteomolecular Relacionado ao aproxima os homens da posir,.'ào feminina (a de bicha) e <.Kupar esta
Trabalho. posição deslegitimaria o garoto de progrJ.ma no mercado sexual. além
s NARDI, 1998. de produzir um conflito nas relações com mulheres estabdeod.1s for.i
6
do âmbito da prostituição. O que se cobra é o ato, na maioria das Yezes,
FOUCAULT, 1994b. restrito à penetração, com algumas concessões possh·eís. como o be(io.
1
FOUCAULT, 1975. mas essa transar,.'ào, na forma como o prcxluto é anuno;1do. se dissocia
de uma posição identitária. Claro que esta hirx){<:se se utiliza dt' um grnu
8
LAPLANCHE; PONTALIS, 2004. de generalização excessivo - a diversidade das fonnas de prostiruiç:1o é
9 muito complexa, sendo que aqueles que mais se libertam de rx)siçôes
Entendido como aquela(c) que busca desnaturalizar as condiçües/
identitárias são aqueles que se apresenc:un de fonna mais lhn> no m.:n:ado
contextos nos quais nos produzimos como sujeitos.
sexual.
w Ao criticar dett..'rminada forma de concepçlo da identidade (que considero 15
A bissexualidade é sempre colocada sob suspeita no c:unrx) identíürío.
hegemónica) não se trata de negar a import.ância das identifica(óes para
a con.scítuíçâo do sujeito, JYJ.ra que ela/ele se sinta como alguém que faz
parte desse mundo. Mesmo porque, como diz Joan Scou: ""As identíd;1des

230
.... (.<.,J?..Uli1" J.lfl* r.P.:111.1ti;r'.;, ~u ~-'='jki. \U:.L:amf'::"!W.: :r.<11c::<.. m.>r-:ir.::t ~ :it BENEDETTI, M. Toda feita: o corpo e o gênero das rravestis. Porto
.•~· 11k.h . ·!;Ut :111'.~"111•".:Ul·~ :::n·r..1~·::tt UTI '!:'!~: · ~ 11:mu'ln".'lt:ai:::.<i.:::;i-. Alegre: Programa de Pós-Graduação em Antropologia S(x:ial, Díssertaçào
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de Mestrado, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 2fX)Q.
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1998.
os anos de 2004 e 2005. 2 A pesquisa, de caráter etnográfico,
NARDI, H. C. Saúde, trabalho e discurso médico: a relaçào médico- investigou as interações eróticas em uma boate voltada p-.ua o
-paciente e o conflito capital-trabalho. Sào Leopoldo: Editora da público masculino não heterossexual de camadas populares,
Unismos, 1999. frequentada por travestis, gays (na sua maioria, praticantes <lo
NARDI, H. C. Poder, sexo e o preço do prazer: processos de subjetivação e
cross-dressingJ e seus parceiros sexuais, localizada no subúrbio
prostituição masculina. ln: ALMEIDA, C.; GOLIN, C.; POCAHY, F. (Org.). da cidade do Rio de Janeiro. 3 Esse estabelecimento possui perfil
Projeto prazer também tem preço: saúde, prostituição e cidadania. Porto singular frente a outros no circuito GLS 4 carioca, que se craduz
Alegre: Nuances/GAPA-RS, 2006. no discurso de frequentadores pela representação de que homem
não paga para entrar na boate e pela prática de cobrar ingresso
NARDI, H. C.; POCAHY, F. A. LGBT Youth in South América. ln: SEARS.
]. T. (Org.). Youth, education and sexualities. an international en<ycio- somente de sujeitos cuja performance é avaliada como feminina.
pedia. v. li. Westport: Greenwood Press, 2005. A motivação acionada pelos clientes pagantes p;:ua frequentar
esse espaço é a possibilidade de se estabelecer interação erótica
PARKER, R. Homossexualidades brasileiras. ln: Abaixo do equador.
com homens de verdade. A boate apresenta ainda áreas públicas
culturas do desejo, homossexualidade masculina e comunídade gay no
Brasil. Rio de Janeiro: Record, 2002.
e relativamente iluminadas, referidas pelos frequentadores corno
becos, reservadas para o estabelecimento de práticas sexuais entre
PERWNGHER, N. O. O n.egócto do michê: prostituição viril em Silo dois ou mais parceiros.
Paulo. São Paulo: Brasiliense, 1987.
Investigar os gestos foi a forma que encontrei p:lfa decomix)f
SCOTT, J. O enigma da igualdade. Estudos Feministas, v. 13, n. l, analiticamente a categrnia êrnica jeito, que ret.:obre estilos perfur-
p. 11-30, 2005. máticos que supo$tamente expressariam atributos perdur.í,·eis
da pessoa. A linha de problematização que desennAYo tenr;,i

234
deslocar a discussão do debate sobre identidades em prol de uma ntexto de enundação. Conferi atenção também às rdaçôes
an{ilise sobre n?des e práticas - um enfoque que pode ai imentar co r· ~ d . .
face a face em que elaboraçôes e ava 1açoes o 1etto emergis_sem
.
a reflexão crítica acerca do primeiro tema, evidenciando como como elemento relevante, impactando a conduta sexual. Minha
processos de identificação podem se constituir enquanto deito uestão era pensar como opera a seleção de parceiros sexuaLs
mais ou menos persistente de perfonnances que têm curso no q se contexto: Quais são os "microdispositivos de organização
interior de certas redes. Se identidades aparecem para os sujeitos nes _ d . .Q .
do acaso"ª em jogo nas estratégias de se 1eçao e parceiros~ ua1s
que aderem a elas enquanto substância, é somente devido a um as articulações entre o gênero encenado pelos sujeitos e as inte-
trabalho contínuo de apagamento de sua própria história, da , . ?
rações no mercad o erouco.
trajetória de sua produção simbólica e material, ou por meio de
Quando me refiro às redes que se con!i.guram ~m torno
uma naturalização de suas sucessivas reelaborações. O recurso
desse estabelecimento como um mercadD erotico, deseJO chamar
à noção de gesto - que penso enquanto movimento ou atitude
atenção para alguns dos tipos de intercâmbio que têm lugar nesse
corporal investido de sentido em situações de interação - visa
lançar um foco de luz sobre processos de constituição de jeitos eontexto ' particularmente trocas de sexo por sexo e de sexo por -
dinheiro ou bens. Mercados eróticos específicos apresentarao
e corpos, assim como sobre o jogo de interações em que estes
têm curso. 5 no rmas e práticas regulatórias distintas na gestão desses inter- .
câmbios. Nesse circuito em que homens não pagam, as travestis
jeito de bicha e jeito de homem são duas expressões que se
não praticam a prostituição. A boate constitui para elas ~spa~o
tensionam no discurso de frequentadores, circunscrevendo um
para sociabilidade-forma lúdica de s_ociaçào, e~ que~ <lmh~1r~
modo de percepção dos fenômenos que me propus a explorar. não é acionado como elemento pertmente na mteraçao social.
A categoria bicha, particularmente, é ponto de uma convergên-
Os sujeitos sobre os quais incide a categoria homem, em prin-
cia de desqualificações, investida de um caráter de alteridade e
cípio, desempenhariam tão somente o pape_! ~e pe_ne~rJdor nas
abjeção a partir de normatividades muito distintas, tornando a
interações eróticas e externariam atração erotica pnncipalmenre
investigação sobre seus usos particularmente delicada. 6 A hicfa
por sujeitos de aparência e maneiras femininas. 10 A interação
é o outro do homem: a categoria serve para assinalar sujeitos
erótica entre dois sujeitos de perfonnance aparentemente mascu-
cujo processo de materialização enquanto homem de verdade
lina desqualifica a masculinidade de ambos, principalmente aos
fracassaria; é o fantasma contra o qual a masculinidade dos
olhos das travestis - a não ser que se trate de uma troca de sexo
homens se delineia. Contudo, a bicha é também o outro do gay:
por dinheiro, em que um falso homem retribui com dinheiro ou
no Brasil, a valorização de identidades homossexuais na arena
bens o tr.abalho sexual desempenhado por um humem de n>rdade.
pública envolveu a adoção de um termo estrnngeiro e a relativa
Essas redes de seleção e obtenção de parceiros sexuais se~·e'.1~ de
rejeição dos estereótipos da homossexualidade como inversão de
substrato a processos de socialização e incurporaçào de sign~fi~:a­
gênero que o termo bicha evoca. Essa rejeição parece estar ligada
dos sociais: aquilo que aparece, na literatura socioantrnpologica
a respostas culturais à estigmatização, que talvez contribuam,
sobre o tema, como o aprendizado do sexo. Circulando por das.
inadvertidamente, para a reiteração das normas subjacentes ao
o sujeito é instado a investir tais e quais experiências de \·ator
estigma.7 Em um terceiro eixo, a categoria pode representar o
erótico e aprende os mecanismos para obtençlo de parn.:ims
outro até mesmo para travestis, que evitam o termo bicha em
sexuais, a partir de discursos normativos e pritic1s regubwna:-.
algumas de suas estratégias de apresentação de si.
vigentes nessas redes.
Ao longo da coleta de dados, procurei captar usos da lingua-
A interação erótica entre tra\"l'Stis e paffeiros sexuais - :issun
gem que fossem reveladores para uma análise das avaliaç'Õt~J . · - dres'>er~ e .:;eus
como aquela que se csrahe 1ece entri:, l . 1m.\- · · ....
do jeito polarizadas em torno das figuras da bicha e do homem . . . .. ll"l qLr;flo de dtt1•.:1l
1
parceUD..<; no escopo desia pesquisa -to <x,1 u1 • '"' ,
de verdade. formas de apresentaçào~de si, formas de percepção . .
abordagem para o ana \1su. l:sta pm 1t ,11.·.•1.'>t. ·r resmnida
· em uma
do outro, enunciados proferidos sobre si e sobre outros em seu

236
pergunta: as praticas eróticas estabelecidas entre esses sujeitos socialmente dispostos, elaboram e ncgodam conjuntamente
i
i ~ podem ser chamadas de homossexua(.:;? Faz sentido chamar de as personagens que desempenham e as cenas em que tomam
1
homossexual a interação erótica entre um homem - no sentido parte. 13
particular que o termo assume nessas redes sociais - e um sujeito Uma vertente nesse debate explora a eficácia produtiva das
que não se percebe e/ou não é percebido como homem? perfonnances, dialogando com a reflexão no campo da linguística
Proponho um deslocamento da reflexão acerca do caráter sobre peiformatividade - que tem um marco relevante na ohra
homossexual ou não dessas práticas para uma terminologia que de Austin (1990). Neste trabalho, Austin argumenta que a fala
talvez pareça um pouco abstrata, mas que permite atacar 0 proble- não apenas comunica sentidos, mas em certos contextos prcx.luz
ma sob outra ótica. As inter.ições eróticas entre travestis e homens efeitos, correspondendo a um tipo de ação dotada de conse-
ou entre gays prnticantes do cros..ç;--dressing e homens são, ames quências na vida social. Judith Butlcr, em uma obra que impactou
de tudo, altergenerificadas. Desejo circunscrever a essa expressão fortemente o campo de estudos em gênero e sexualidade nos
encontros em situação de copresença, em que o gênero de um anos de 1990, incorpora a discussão de Austin a uma proposta
dos atores envolvidos no intercâmbio é percebido como distinto de tomar sexo e gênero como constituídos a partir dos usos do
e oposto àquele ao qual o parceiro adere, independentemente corpo, estendendo assim a eficácia perforrnativa dos atos de fala
do sexo biológico de ambos. Esse modo de interação poderia, aos atos corporais. 14 A autora emprega o conceito de performa-
enquanto tipo ideal, ser contrastado ao modelo das interações tividade de forma bastante específica, interpretado a partir da
eróticas isogenerificadas, nas quais essa polarização seria investida noção de "citadonalidade". 15 Seguindo esta linha de reflexão, atos
de relevância menor ou inexpressiva. 11 performativos não criam efeitos a partir do nada, mas sempre por
Essas categorias analíticas se conectam à "definição da situação" referência a um repositório de experiências sedimentadas pre-
que os atores projetam em situação de presença imediata, viamente. A reprodução citacional de um ato implica a inserção
podendo envolver outras pessoas além daquelas efetivamente em outro contexto, que pode subverter seu sentido e efeito. A
engajadas em um contato físico percebido como erótico. 12 Pro- aparente estabilidade dos efeitos materiais da performance ocorre
blemas particulares poderiam ser colocados a partir de contextos tão somente como expressão de uma acumulação ciracional que
e eventos em que uma definição consensual da situação não se dissimula esses efeitos, demandando a formação de aparatos
estabelecesse entre os parceiros - ou seja, que aquilo que aparece regulatórios para conter sua instabilída<le potencial .1º
como altergenerificado aos olhos de um não aparecesse como Este trabalho explora as normas e práticas regulatórias que
tal aos olhos do(s) outro(s) em relação de copresença. Contudo, incidem sobre gênero e interação erótica no sítio etnográfico
esses termos não assinalam atributos substantivos imanentes aos investigado. Procuro destacar, particularmente, o modo como
próprios encontros, mas instrumental comparativo para apreender certas convenções que reiteram a distinção entre bichas e homens.
e confrontar modos de interação mais ou menos rotiniza<los. expressas nos usos da fala e <lo corpo na interação social,
A opção por trabalhar com a noção de peifonnance se deve
articulam-se a dinâmicas da troca erótica nesse contexto.
à potencial rentabilidade analítica dessa categoria para focar os
processos de elaboração ela corporalidade e sentidos rnnexos em
contextos de internção social. O debate acadêmico em torno da O PESO DOS ATOS DE FALA
noção de performance, no campo das ciências sociais, emerge
direcionado a lacunas presentes nos estudos de tipo funcional- Nas interações face a face enlre sujeitos que se i<lenrificam
-estruturalísta quanto a questões pertinentes à agência individual como travestis, estes tendem a preferir outros termos para referir-
e à mudança social, empregando metáforas teatrais para a análise -se ao interlocutor: mona, bicha ou t'iado, 1• mais ou menos ne.ssa
da vida social. Sob essa perspectiva, agência e mudança estariam ordem. Aparentemente, esses usos d<I linguagem car.ineriz:un
expressas nos improvisos de atores que, hasea<los cm scripts certa familiaridade entre os coparticipantes. Em conYersa com :i

238
travesti Luana, 111 24 anos, perguntei por que ela empregava esses gays, referindo-se a sí próprios como bichas-hoy somente para
tennos, e ela respondeu que falava assim "porque nós somos diferenciar-se de travestis.
tudo bicha mesmo". Comentei que ela não se dirigia a todas as Durante algum tempo, os múltiplos usos da categoria me
travestis da mesma forma e recebi a explicação de que esse causaram certa perplexidade: apareciam a meus olhos como
tratamento era reservado a pessoas com as quais se mantivessem fundamentalmente agramaticais. Nas primeiras incursões a
laços mais estreitos. campo, o tenno não emergia nas conversas que estabeleci com
O rótulo bicha não enseja adesão/identificação intensa, mas frequentadores, embora aparecesse em diálogos que presenciei
opera enquanto uma figura que pode se materializar sob diferentes entre eles - principalmente comentários entre travestis acerca dos
fom1as, circunscrevendo sujeitos portadores de um pênis que nào cross-dressers. Perguntando formalmente a alguns informantes,
são percebidos como homens. As categorias bicha e travesti nào travestis e bichas-boyacerca do sentido do termo, estes mostravam
se encompassam perfeitamente - em alguns contextos, aparece pouca elaboração reflexiva a respeito, embora alguns tentassem
uma oposição entre a travesti (personagem que leva ao extremo fornecer, às vezes um pouco inseguros, definições que à época
o culcivo da própria feminilidade, através de intervenções sobre me pareciam redundantes e pouco úteis: variações em tomo da
o corpo) e a bicha (que não promove transfo1mações corpornis ideia de que bicha-boy é uma bicha que não virou travesti.
perduráveis sobre o próprio corpo visando tomá-lo mais feminino). Em vários desses relatos, com ligeiras variações, era apre-
Em outro.5 contextos, travestis referem-se a si próprias como bichas. sentado algum obstáculo para que essa transformação se concreti-
O uso das categorias bicha e vi.ado, como forma amistosa de se zasse: "falta de coragem", "medo do preconceito~ (fala da travesti
. j
endereçar a um interlocutor de performance feminina, é recor- Luana, 24 anos); falta de "estrutura", no sentido de autonomia
rente também entre gays praticantes do cross-dressing. É possível financeira (fala da cross-dresser Desirée, 30 anos); ~não se aceitar-,
que, uma vez que o sujeito que enuncia o rótulo bicha para falar "não se assumir" totalmente (fala da travesti Fernanda, 30 anosl.
de terceiros se inclua e/ou seja incluído pelos ouvintes como Uma versão interessante foi apresentada com naturalidade - como
objeto do enunciado, seja deslocado e apagado citacionalmente a mais óbvia das evidências - pela cross-dresserDaiane, 26 anos.
o caráter de a/feridade abjeta de que o termo é investido em segundo a qual "a bicha-boy é o gay: é o jeito como as trJ.vestis
outras situações. falam da gente, e a gente acaba falando também-. Formulaçào
semelhante aparece no discurso da cross-dresserCristíne, 19 anos
A junção do qualificativo boy ao termo bicha é ato linguístico
- infonnante que se identificava como gay, mas emprega,-a o
aparentemente paradoxal, por unir em uma única categoria
termo bicha como sinônimo para esta última categoria. Yaleria
classificatória figuras que deveriam estar separadas. A categoria
assinalar a existência de certa correlação entre a categoria hicha-
é enunciada em uma gama muito variada de contextos - ou
-boye classes etárias: sujeitos de idade superior à fai.xa dos 30 anos
melhor, naquilo que eu, enquanto pesquisador, percebo e recorto
são referidos, em alguns casos, simplesmente como bichas. ~o
como contextos distintos. Entre as travestis, essa expressão
discurso sobre si, a categoria parece ser enunciada como fom1a de
pode ser empregada pelo menos de duas formas opostas. Ela
se distinguir das tn1.vestis, implicando uma pretensão à capacidade
pode indicar um estágio num processo de desenvolvimento (cm
de exercer uma performance masculina em e:->paços públicos: na
curso ou interrompido), caso dos praticantes do cross-dressing,
esfera do tmbalho, relações de parentesco e ,·ízinhanç:.i.
que abraçariam parcialmente uma feminilidade. Pode, contudo,
também assinalar certo tipo de quimera, no caso dos gays 1rnsculi· Perceber-se como bicha-boy, para aqueles que externam
nizados: figuras híbridas marcadas como abjetas que o discurso relativa adesão à categoria, implic1 o uso de nome feminino. ou
normativo tenta qualificar como uma subespécie de hicha. Os o uso de artigo feminino antes do nome próprio masculino: a
sujeitos sobre os quais o rótulo incide não revelam adcsào Marcelo, a Antônio. 19 lJm nome ft.:minino é usu:ilmente empregado
na apresentação de si pt•rante pt>ssoas qul.· nào fazt>m parte do
intensa ao rótulo discursivamente: tendem a se identificar como
circulo de sodabiliJadt· do sujdto, podt:ndo mudar com algum~i

240 2-11
frequência. O nome masculino seria o nome de batismo, mantido mais francamente no discurso dos atores identificados nesse
inaltemdo. Segundo depoimentos de sujeitos que se autoidenti· campo com a categoria/posição de travesti-, a categoria gay
ficam como bichas-boy, nas experiências eróticas com homens delineia um campo de abjeção, de alterída<le constitutiva, contra
a apresentação de um nome próprio se faz relevante: um nom~ 0 qual se estrutura a especificidade e a inceriorida<le das redes
feminino deveria necessariamente ser empregado - sob pena de pelas quais travestis circulam:
interrupção da interação.
Assim, a categoria bicba-boy recobre alguns estilos aparen- Fernanda: essas bichas-hoy são o ó, elas têm as boates
temente muito distintos de performance de gênero: 1) jovens delas lá na Zona Sul, não sei o que elas vêm fazer pra cá
praticantes do cross-dressing que estejam iniciando-se na carreira que é lugar das travesti.
moral da travesti, efetuando as primeiras tr.msfonnações corporais Leandro: são o 6, como assim?
duradouras de produção da feminilidade; 2) quaisquer outros
sujeitos praticantes do cross-dressing; 3) homens não praticantes Fernanda: ah, fica dando em cima dos homem da gente.
do cross-dressing que supostamente exercem, esporádica ou Ou então fica se beijando no beco com as caras barbada,
corriqueiramente, alguma modalidade de sexo receptivo, indepen- até espanta os homem de verdade daqui.
dentemente do fato de desempenharem também o papel ativo.
Sujeitos que não pratiquem o cross-dressing e se autoklentifiquem A referência à Zona Sul do Rio de janeiro deve ser interpre-
como gays são, quase que automaticamente, enquadrados nesse tada a partir da percepção nativa de uma ancoragem espacial
terceiro caso pelas travestis. de distinções socioeconômicas na cidade. Essa área da cidade é
Demorei um pouco para perceber o que as definições exter- caracterizada, em falas de travestís, como cosmopolita, frequen-
nadas por meus informantes revelavam quando confrontadas tada por turistas e gringos, sendo supostamente um território
com os usos da categoria bicha-boy que esta se presta, nesse mais receptivo à sociabilidade gay que a periferia. 21 > Sujeitos que
universo, a distinguir entre travestis e outras pessoas do sexo exercem uma identidade gay, referidos nessa fala pelo rótulo
masculino que praticam, suposta ou efetivamente, sexo receptivo. bícba-boy, são percebidos por vezes como intmsos na territoria-
Algumas falas recolhidas ao longo do trabalho sugerem que a lidade travesti, que tentariam competir em seu mercado erótico
bicha-bqyseria uma travesti ou bicha incubada, que não se aflorou ou perturbariam o desenrolar das transações ali promovidas.
- metáforas naturalistas que sugerem a ideia de um germe que Existem dois campos de enunciados nesse universo que
não se desenvolvera plenamente. Esses usos do tenno são reve- tensionam a figura da bicha em seus usos citacionais. i\as \·ersões
ladores de um discurso sobre a pessoa humana que se pretende mais ou menos hegemônicas, a bicha expressa uma natureza
totalizante, cindindo o universo dos indivíduos portadores de feminina, cuja fórmula mais sintética seria o enunciado ~eu sempre
um pênis em homens (aos quais o sexo receptivo é interdito) e fui assim". Um sentido menos enfatizado poderia ser extraído
bichas. Os sujeitos autoidentificados como gays que aderem à de proferimentos do tipo "conheço essa cbí desde que ela era
categoria bicha-boyproduzem um deslocamento na categoria gay, boj', ou "no tempo em que eu era bof - ou seía, de que existe
ao operarem com ela dentro de outro quadro interpretativo: o uma trajetória de aquisição dessa feminilidade que é apagada
gay será incorporado como uma variante paradoxal da figura da por meio de um discurso naturJlizante. Ser bicha e ser lx~r não
bicha, que se masculinizaria de modo precário, pardal e artificial, implica contradição lógica, uma vez que esses rennos parecem
contrariando as tendências de sua natureza. representar, para os sujeitos que os enunciam, mais que identi-
Nessa tr.:1.ma discursiva, a categoria gay é um ponto particu- dades substantivas, o contorno de certos estilos dt.• performance,
larmente denso de tensões. No nível apresentado anteriormente, que se toma perceptível pelo contraste, no rontexto de uso:
o termo é reelaborado, circunscrito a uma das materializaçües
pos,síveis da bicha. Em outra versão - que se encontra explicitada

242
Leandro: Você vê diferença entre hoy e homem?
AS MATERIALIZAÇÔES DO ]E1TO
Daiane: Não, ué. O boyé homem.
Leandro: Mas eu vejo que as pessoas chamam só alguns O elemento primeiro, mais externo e evidente das perfor-
rnras de boy. mances de gênero no universo da boate é o vestuário. A roupa
sinaliza gostos, estilo de vida e pertcncimento de classe, enquanto
Daiane: Ah, isso é porque o boy faz programa. Aliás,
um bem simbólico que é consumido diferencialmente por
alguns boys.
segmentos sociais específkos. 21 Modos de se vestir representam
Leandro: Alguns? Não são todos? também formas de fornecer informação que permitem a desco-
nhecidos saberem como se portar uns com os outros na esfera
Daiane: Tem boy que faz de vez em quando, quando tâ
pública, em contextos urbanos. 22 Nos rituais de apresentação de
sem grana, quando não cem mulher. Quando precisa.
si que têm curso na boate, a escolha de roupas e acessórios pode
Leandro: Você já conheceu algum? ser tomada como um gesto performático que produz sentidos
Daiane: Ah, tinha o Pedro que namorou minha amiga pertinentes ao gênero dos atores sociais. Vestimentas multico-
Márcia. loridas e certas tonalidades específicas, como pink e salmão, são
imediatamente associadas à homossexualidade, referidas como
Leandro: Era uma travesti? roupa de viado, quando utilizadas por sujeitos que sobre outros
Daiane: Não, ela era boy. aspectos aparentariam uma performance masculina. Roupas
muito justas, blusas de manga monocromáticas em um estilo
Leandro: PeraL Ela também erd boy mais clássico/sóbrio ou vestimentas que caracterizam um estilo
Daiane: Ai, menino, não me confunde! Não era boy [no de classe média também feminizam aqueles que as adotam: são
sentido] de homem, era boy tipo bicha-boy, que se percebidas como um modo de se trajar distinto daquele a que
monta. aderem os homens de verdade, que recorrentemente se apre-
sentam usando bermuda e camiseta de bab;:o custo, relativamente
Os usos dessas categorias generificadas conectam-se às largas, em cores primárias ou tonalidades escuras, mesmo nas
avaliações tecídas em tomo do jeito da pessoa. jeito de bicha e madrugadas de inverno. O uso de cabelos compridos, anéis (à
jeito de homem são duas expressões êmicas que assinalariam, exceção de alianças de casamento ou noivado) e orelhas furadas
supostamente, atributos perduráveis dos atores sociais - e que, na são outros elementos na apresentação que feminizam o sujeito
prática, operam contrastando e opondo estilos performáticos em nesse universo.
dois campos distintos. O sentido dessas expressões e de cate- Os usos da roupa detêm certo destaque no cultivo e na
gorias correlatas pode variar conforme os contextos de interaçào, elaboração da feminilidade, mas não constituem o elemento
mas seus usos parecem reiterar os contornos de uma nonna que mais relevante na avaliação das perfomunces masculinas. Entre
prescreve a ocorrência de interações altergenerificadas e desqua- travestis e cross-dressers emerge com destaque um discurso sobre
lifica ou mesmo marca como abjetas interaçôes isogenerifícadas. o jeito da pessoa, endereçado a sinais de apresentação do gênero
Como sugiro adíance, esses rótulos que distinguem e classificam que se estampariam, plenamente perceptíveis, em todos os
estilos de desempenho do gênero podem reportar a modelaçôes gestos e atos por ela executados. 25 Cm exemplo aparentemente
do corpo e da subjetividade que expressam a se<lim(~nta<;ào de banal, porém bastante ilustrativo, foi dado pela travesti huna
performances. As avaliações mútuas da performance de gênero ao indicar, perto do bar do primeiro piso. um homem que tinha
emergem como particularmente significativas no jogo dos inter- jeito de bicha. Luana assinalou- classificando como delicado- o
.~ câmbios sexuais, exercendo um papel capítal na atrihui<.;ào de modo como de segurava uma lata de cerveja: t<Kando-a somente
-~. valor erótico a parceiros em potencial na boate. com as pontas dos dedos médio e pokgar. e n:lo com a palma

244
inteira. Gestos mínimos são interpretados de modo mais ou masculina, mas não avaliam sua compleição do modo como os
menos consciente, conduzindo a uma avaliação da perfonnanre homens fazem com elas: olhando-as de alto a baixo lentamente, por
de gênero do outro. vezes fixando-se nas nádegas, virando a cabep para acompanhar
Um estilo que é característico dos parceiros de travestis e cross- com o olhar sua trajetória caso a travesti esteja caminhando e se
-dressers nesse contexto é a atitude de espera: postados nos bancos afaste. Um sujeito que ostente uma performance aparentemente
de cimento espalhados pelas dependências da boate ou encostados masculina mas cujo olhar se fixe cm outros homens é automati-
pelas paredes, circulam pouco pelo espaço, principalmente no camente classificado como gay, bicha ou categoria equivalente.
início da noite. Mais tarde, caso nenhuma travesti se aproxime No início da noite, o som que toca na pista de dança são
deles denotando interesse sexual, podem intensificar ou não sua sequências de música eletrônica, que mobilizam, principalmente,
movimentação. De um modo geral, sentam-se de pernas abertas, travestis e cross-dressers. Durante a madrugada, até o fim da festa,
pés separados, joelhos projetados para fora; executam um estilo costuma haver a execução de sequências de funk, em que alguris
peculiar de caminhada - passos pesados, bruscos, pernas abertas, homens participam dançando. A execução do fimk enseía, nesse
os pés podem apresentar-se paralelos, mas via de regra formam contexto, uma coreografia mais claramente marcada pelo gênero,
um ângulo que pode variar de 30 até quase 90 graus, tendo os parecendo exercer um atrativo maior sobre os homens. Em um
calcanhares como eixo. Esse estilo de caminhada, observável entre exemplo do modo como essas coreografias são encenadas na
parceiros de travestis e cross-dressers, contrasta visivelmente com 0 boate, as travestis dançam mexendo os quadris em movimentos
~ : dos demais frequentadores. As travestis caminham com leveza, por circulares descendentes, mãos afXJiadas sobre os joelhos arqueados,
vezes com passos um pouco mais firmes, mas seguindo sempre projetando as nádegas para trás. Já os homens permanecem no
o traçado de uma linha imaginária: 24 em raras ocasiões é possível mesmo nível de altura, executando, com a bacia, estocadas
observá-las andando com os pés afastados. Gays, praticantes ou ritmadas no eixo sagital, numa simulação e estilização da cópula:
não do cross-dressing, tendem, por sua vez, a se mover com as braços ligeiramente erguidos, palmas pra cima, o antebraço
pernas relativamente afastadas e os pés mais ou menos paralelos, formando um ângulo de 90, punhos cerrados, como se segurassem
em um fluxo contínuo e regular que transmite também certa uma parceira imaginária pelos flancos.
impressão de leveza. Existe, portanto, uma gradação na abertura Evidentemente, a relação entre esses usos do corpo, os rótulos
das pernas ao caminhar que se articula às performances de gênero, que tentam circunscrevê-los e a própria constituição corporal é
configurando estilos distintos de desempenho de masculinidade bastante complexa. As categorias bicha e homem assinalam, pdo
e feminilidade entre os frequentadores. menos, três coisas mais ou menos distintas. Primeiro, avaliaçôes
Certos usos do olhar, no contexto da boate, operam também que os atores fazem da performance uns dos outros: enunciados
como técnicas corporais generificadas: ter o olhar atraído pelas do tipo fulano é, parece ou tem jeito de bicha ou homem, estabe-
performances femininas de travestis e cross-dressersou por certas lecidos a partir da interpretação do gestual encenado pelo suícito.
partes de sua anaromia (como seios e nádegas) é signo de masculí- Segundo, estilos de performance, que, em alguma medida, ~·iYem
nidade; encarar sujeitos de performance masculína é signo de de suporte para essas avaliações: vestuário, usos da voz, fonnas
feminilidade. Recorrentemente, as travestis oferecem-se ao olhar de andar, se mover, se expressar; usos habituais do corpo. Por
dos homens, caminham, circulam, enquanto estes se movimentam fim, modelações do corpo e da subjeth·i<lade que s:lo a resultanre
de forma menos intensa. É bastante comum, principalmente, no de performances reiteradas e que também s~io, num certo sentido,
início da noite, travestis dançarem no centro d:.1 pista, enquanto continuamente peiformadas, posto que são sujeitas :l ~n-aliaç:lo
diversos homens po:;ttdos em volta, de pé, observam-nas imóveis. e escrutínio por parte dos ator!!s na inter,1çüo.
Esses sujeitos tendem a ignorar sumariamente desconhecidos que Em situações concretas, esses três nín.·is analitil..·os podem
não apresentem, pelo menos, vestes femininas. As travestis, por aparecer bastante misturados. Investigar as frnmas como av~1lü(ào
sua vez, p<Xlem cruzar o olhar com um homem de performance das performances, estilos de performance e se<limenuç;\o de

l 246
materialidades corporais se entrelaçam demanda uma an:tlise natureza, em oposição ao caráter adquirido da compleição física
criteriosa dos dados etnográficos. Um exemplo do modo como exibida pela barbie. Avaliar a performance do outro, aqui, não é
esses três planos aparecem na experiência das pessoas poderia ser um ato essencialmente distinto de avaliar o corpo do outro, pois
extraído de conversas estabelecidas com a travesti Luana acerca a performance é tomada como assinalação de uma certa nature;,-.a
do modo pelo qual ela era capaz de distinguir um homem de e de uma certa corporalidade.
rerdadede outros, que seriam bichas. Na primeim dessas conversas,
Existe uma diferença, nos discursos que circulam nesse
Luana assinalou a roupa e o jeito dos parceiros como sinais
espaço de interações, quanto ao potencial materializador das
convencionais relevantes na percepção dessa distinção. Em oca-
performances avaliadas como masculinas e das performances
sião posterior, interpelei Luana novamente acerca desse tema:
avaliadas como femininas. A performance da masculinidade é
continuamente posta sob suspeita: supõe-se que, sob o menor
; i.1 Leandro: Além do jeito, tem outra coisa que diferencie
'lj : ~ bichas de homen.S? gesto discrepante, possa-se ocultar uma variante ela figura da
il bicha. Já a performance feminina parece ser dotada de eficácía
:1 Luana: Ah, assim, o corpo. muito mais intensa, um suplemento de poder. Em tese, é pre-
'
/
ciso muito pouco para um homem virar viado - um deslize em
Leandro: Como assim? Que diferença você acha que tem?
público, a aceitação de uma acusação -, situação que poderia
Luana: Ah, o homem é mais forte. ser interpretada, retrospectivamente, pelo argumento de que ele
Leandro: Mas não existe bicha que malhe, musculosa? sempre fora viado, mas até então não se aceitara, aflorara ou
assumira. Embora o corpo dos homens de verdade seja apresen-
.f Luana: Ah, isso tem. Tem gays, né? As barbies. Engraçado, tado como dotado de uma natureza distinta do corpo das bichas,
as bonecas somos nós, mas eles se dizem barbies, aquelas na prática, ele encontra-se continuamente aberto à possibilidade
coisas enormes, monstruosas [fazendo uma careta de de rematerialização.
desaprovaçãoJ. Mas aí é uma coisa que ele fez por fora,
Entre os parceiros de travestis e cross-dressers, virar l'Íado é
não era da natureza dele, e ele malhou pra ficar forte. Eu
um risco simbólico que deve ser exorcizado continuamente pela
mesmo conheci uma bichinha-boy que em toda raquítica
negação ou neutralização de qualquer possibilidade de identifi-
e depois ficou enorme, até parecia homem. Eu acho que o
cação com a homossexualidade. Um exemplo signifícativo desse
homem já vem mais forte assim sem precisar fazer nada.
repúdio necessário ao exercício de masculinidades poderia ser
extraído da conversa com um desses sujeitos, um jm·em de 20
Na fala de Luana, o sujeito assinalado pelas categorias barbie
anos. Quando explicitei o objetivo da pesquisa que eu conduzia
e gay é também classificado como bicha - a despeito de sua
constituição corpornl, percebida como artificial ou antinatural. - conhecer aquele tipo de boate e seus frequentadores -, sua
Subjacente à avaliação, há o reconhecimento de um estilo de primeira reação foi afirmar de modo enfático que aquela pesquisa
perfonnance e uma certa modelação corporal sobre os quais não era sobre ele, pois ele era homem:
tal avaliação incide. O estilo de performance aqui circunscrito
Jonas: Cara, eu não tenho a ver com essa pesqui.s::l não,
sob os rótulos barbie e gay- percebido como distinto daquele
eu não venho sempre aqui não, sou homem.
desempenhado pelas bonecas - é, contudo, abarcado também
Süb a categoria bicha, como uma de suas manifestaçôes poli· Leandro: Sim, mas não precisa frequentar sempre, basta
morfas. A modelação corporal musculosa da barbie, por sua vez, estar aqui, ter vindo uma vez, duas ...
é tomada como uma expressão inautêntica de masculinidade
Jonas: Mas eu não sou viado não.
por uma bícha-boy que parece homem. Luana transita do nível
da avaliação de gestos e jeitos para uma avalíaçào do corpo do Leandro: Claro, entendi. .. mas você vem aqui por quê?
outro, em sua materialidade: o homem é considerado /orle por
Jonas: Eu gosto de travesti.
248
jomis repudia a possibilidade de ser visto como um frequen- apresentar vestidos de mulher. Estes últimos são desqualificados
tador da boate, como se a mera presença física nesse espaço por não apresentarem um sinal de feminilidade referido como
pudesse coloc-ar sua masculinidade em questão. A rotulação relevante (a modelação corporal), mas não são excluídos como
como viado não é isenta de consequências nesse contexto. A possíveis parceiros. Em diversos momentos, Jonas reitera que um
performance desempenhada e as avaliações que sobre ela inci- homem, por desempenhar somente o papel ativo, pode sair com
dem impactam fortemente a interação erótica, refletindo-se nas travestis ou homens gays sem virar vtado.
estratégias de seleção de parceiros sexuais. Entre os cross-dressers circula o discurso de que os homens
Como argumento adiante, o gênero pesa nas trocas sexuais - possuiriam um desejo sexual indiscriminado por parceiros
na mesma medida, talvez, em que as trocas sexuais sedimentam a passivos, mas não aceitariam fícar publicamente com um que
materialidade do gênero. A performance de gênero pode agregar usasse vestimentas masculinas, temendo acusações de efemíni-
prestígio e valor erótico aos agentes sociais (ante os olhos de zação por outros frequentadores da boate. A roupa feminina seria
plateias ou segmentos de mercado específicos), dando margem menos um catalisador do desejo que um elemento da cena capaz
a equivalências e trânsitos entre fluxos monetários e fluxos libi- de legitimar as relações sexuais com bichas-boy, sem perda do
dinais. As trocas eróticas, por sua vez, são elas próprias gestos prestígio nesse mercado erótico. A prática do cross-dressing na
generificados que comparecem na constituição da subjetividade boate implicaria menos uma simulação esmerada de feminilidade,
e corporalidade do sujeito. Bichas e homens, num certo sentido e mais a sinalização da preferência por parceiros masculinos
personas esquemáticas e caricaturais, são investidos de materia- naquele contexto específico de sociabilidade, a partir de certos
lidade por práticas regulatórias que tentam estabilizar o jogo das sinais convencionais:
trocas sexuais nessas redes sociais. Embora a microfísica dessas
relações de força deva ser analisada com cautela, acredito ser A primeira vez que eu vim foi vestida de bov. e nào fiquei com
possível lançar um foco de luz sobre os contornos que essas ninguém. Da segunda vez, eu só botei uma peruquinha, rava de
l jeans e camiseta, e tinha homem me chamando de princesa. de
'
l
tensões assumem, a partir da análise das trocas no mercado
erótico.
rainha, de minha deusa... Nào precisa nem se produzir muito
pra conseguir homem aqui, é só você dar o sinal que é bicha,
botar o cabelo um pouco mais comprido, que já arruma f(xlos.
Porque se você estiver vestida igual boy, ele pensa que você é
PERFORMANCE DE GÊNERO homem que nem ele, e não vai querer nada com wxê (Sandra,
E INTERCÂMBIOS NO MERCADO ERÓTICO cross-dresser, 32 anos).

Aos olhos das travestis, por sua vez, um parceiro potencial


Para um número maciço de frequentadores, o critério funda-
que mantenha relações sexuais com um cross-dresser pode
mental na seleção de um parceiro no contexto da boate é que
ser desqualificado, embora não definiürnmente re1mwido do
ele desempenhe com clareza o gênero oposto ao que aqueles
seu circuito de trocas sexuais. A manutenç:.10 de pdtkas sexuais
apresentam. Aparentemente, existem, para os homens de verdade
com um gay cuja performance seja masculinizada, por sua \·ez.
hierarquias estéticas que distinguem parceiros mais femininos
supostamente excluiria esses homens do mercado sexual d:1s
de menos femininos. Esse modo de percepção, implicado nas
travestis, principalmente se motivada apenas por interes.-;e eróri-
estratégias de seleção, pode ser ilustrado pelo depoimento de
co. Para as travestis, o desejo por um homem de performance
Jonas: "Tem muita travesti aqui que não é travesti de verdade, é
masculina, cujo corpo e roupa s;1o masculinos. feminizJria o
viado com roupa de mulher. Se me der mole eu até pego. Mas eu
sujeito - mesmo que este exercesse somente o p:tpd de pene-
prefiro as que têm carne, peito, bunda." Enquanto em <llgumas
trador na relação sexual:
de suas falas Jonas abarca travestis e gays sob a categoria bicha,
aqui ele distingue as travestis dos víados, que podem ou não se

250 2'>1
Admite-se ainda que. se um homem n.Jo l.Oík'<-1fút• t~ho::k,·t'r
Homem que é homem não vai querer uma boca barbada rrn
pciticlS sexuais com uma tr.ive:;.ti, pcxkru !'Cr Jom:.rwJ..) pek1
chupar ele, nem comer uma bunda dura, peluda. Eles n;io sentem
tesào nisso, dão até porrada se algum gay tentar passar a mão
tesão e ceder a in\"esti<las <le qtulquer omm JXirL~uo x-::rn.ii.nx'Tih:
no pau deles. Eles vào preferir uma mulher, ou uma travesti passim disponh·e1, gay ou cro...'5-dres....':r. E.'~ tipo Je :.uauJe.
(Fernanda, 30 anos, travesti). embora não macule de forma defimt1n a rn.i~ulm1J.JJe Jo
homem em questão, é também a\-aliada n.:gamanknte:
Esse tipo de prática é pardalmente aceirável caso sefa motivada
{X)r uma contrapartida financeila: nesse caso, o dinheiro é acionado Tem homem que quando qut.'r gvztff ruo qucr "-lht:r x- [um
poterK.ial parceiro) é homem_~ t.: b1du. ~ <:: tr.l\ e-ti: t:lo q1...-.:.·n:TI1
como elemento que neutralizaria o potencial erótico da troca.
um buraco pra meter. A.s n:zt.'S chep qll.ltm. cin.:o J.l rn.1n'.-Ll.
Assim, não é de todo r.uo travestis manterem relações amorosas
ele não arrumou uma lx>nec.i.. ek Jeix.i gay_ bi;;,-ru-/1..:r- fl<.l\.l_
mais ou menos duradouras com garotos de programa, embora
velha. qualquer uma. cbupar. Pn n.3.o l:":f{X•mIT" no ch:io. ~t.i" <-'U
muitos desses tenham como clientes preferenciais homens gays. não gosto desses não (femandi_ lr3\·e-.t1. ~) 3.no·<. L
No entanto, muitos dos frequentadores da boate não se percebem
como profissionais do sexo ou michês. Para eles, o sexo não ê Por outro lado, atitudes agressiYas como aqueb rekrid:i.
considerado uma fonte de renda, mesmo secundária. Exercem anteriormente pela travesti Fernanda, por pane de homem
outras atividades para manutenção da sua subsistência e podem perante abordagens de gays não pr:uicrnres do onss-dn"ssmg.
manter práticas sexuais com um gay simplesmente em troca de pareçem não ser de todo infrequemes. l-ma siruaç:lo de contlno
uma cerveja ou um copo de vinho, ou quantia equivalente visando que presenciei em um dos becos ilustra a emerg~nda de pr-átíc1s
à aquisição e ao consumo de bebida. Por exemplo, Jonas, que regu1atórias em tomo desse tipo de enconrro. O epi...;;ó.Jio i:x11rrt'u
afirmou nunca ter feito programa, já teve experiências eróticas entre dois homens cuja performance. a meus o[hos. poJ>:'rü
com homens gays em algumas ocasiões, fora do espaço da boate. ser classificada como masculina - emborJ. apre:-;ent.mdo estilo.'
Embora afirme não sentir atração por gays, sugeriu que manteria particularmente distintos: um ddes crajando b:mmJ:.i. c:1m1~u
relações sexuais com um se recebesse algo em troca. Quando pedi e touca e apresentando um corpo mu~uloso; o ourro. 'estmJo
que especificasse a natureza dessa retribuição, ele respondeu, calça comprida preta e blusa branca. mais baix.o e Jê compkiçio
com um ar de dúvida, que poderia ser qualquer coisa: dinheiro, franzina_ O primeiro acusou o segundo de ter apalp:1Jo (jJa.'.'-ado
cerveja ou um presente. Afirmou que se as meninas (as travestis) a mão) em sua gecútália, agrediu-o verbal e fisic.uneme. pmtt:-rindo
soubessem que ele exercia esse tipo de prática, pensariam que inclusive uma amea\â de morte: -Aí, se eu te pego b fora. tt:·
ele estava virando víad0: para a reiteração de sua performance meto uma bala_ Tá pensando que eu sou l'íado que nem YLX'ê'?
masculina, é necessário que mantenha segredo sobre a intera- Eu gosto é de travesti_"
ção erótica com homens cuja performance não é avaliada como
Conforme expresso nesse evento. para muitos frt'<]Ut.'nta_dnre:-
plenamente feminina. Embora essas experiências eróticas com a masculínidade plena se estabelece na manifest:içio perto_nna-
outros homens não abalem sua percepção de si, Jonas considera tica de interesse exdusiYo por sujeitos de ma1wir:ts t' ap~•n:..'nc1a
que poderiam desacreditá-lo junto às travestis. 25 femininas_ As reações de repúdio J.nte a ocorrt'nciJ. de irnt·r..1çCx·s
A prática institucionalizada de troca de sexo por favores eróticas isogenerificacbs ~)o exemplo de' pr..iti1.~lS reguLnóriJ: que'
materiais é censurada por algumas travestis, mas, de modo geral, ocorrem nessas redes sociais, reiterando assimt>trias lk gL'nem
confere-se a ela certa legitimidade: simuladamente estáveis. Outro evento represenutin) dt."SSt.'S
dispositivos regulatórios foi susciudo pda ocorr0ncia t:imlx·m t.'!H
Tem homem aqui que vem atrás é de oti [bebida alcoólica]. Eles
um dos becos ele intercurso anal entre uma tr..1n:sti e um ªº·'-'·
sabem que a travesti não vai JY&gar pra eles, então eles pedem pr.1
-dresser, em que este úlrimo exerceu o p;1pd atínl. PJr..1 akm do
um gay pagar, e até ficam com o gay. Mas des não gostam de gay,
C'Jráter singular da cena - intl'f:t(:lo erótica entre dois parCL'tros
eles gostam de mulher, de travesti (Luana, 24 anos, travesti).

252
de perfonnance claramente feminina, cuja repetição nào constatei necessariamente em uma posição de superiorí<lade, mas no bojo
no decorrer da pesquisa -, as reações posteriores são dignas Je de relações de sujeição que constituem seu corpo e sua subje-
nota. Assim, no encerramento da noite, obseivo uma espécie de tividade. Para um sujeito reconhecido como homem de verdade,
briga na saída da boate, em que a tnwesti que praticara sexo ter sua performance avaliada como feminina implica perda
receptivo na ocasião citada era agarrada pelos cabelos por uma do capital corporal que lhe propicia acesso a sexo, bebida
outra, que lhe desferia violentos cascudos na cabeça. A agressora ou dinheiro nessas redes. É possível que a intensa pn.::<x1Jpação
bradava: "Sua filha da puta! Você deu para um gayzinho! Você que os homens externam quanto ao ri'lCo de feminização esttja
vai apanhar, pra aprender a ser viado!" A vítima esboçava gestos também artirulada a láticas de preservação do volátil capital erótico
parcos de resistência, pedindo em tom choroso à outra que que é associado à masculinidade nesse contexto.
parasse, enquanto a audiência ria sonoramente.
A norma de gênero que se aftnna nessas redes, atuante nos
dois eventos que acabo de relatar, preconiza o estabelecimento NOTAS
de interações eróticas somente entre parceiros cuja performance
de gênero é nitidamente demarcada entre os polos masculino e 1 CLASTRES, 1995, p. l L
feminino. Essa polarização dos gêneros é reiterada por um grJnde
2 Agradecimencos à fundação Ford. através do Programa dt:: ,\fttodc.k.1µ de
número de práticas regulatórias, tocantes à apresentação de si, Pesquisa em Gênero, Sexualidade e Saúde Reprodutiva. pelo trein:arrlit:nto
aos usos do corpo, às relações interpessoais. Sobre os homens de e sujX>rte propiciados durante a realiz.açào da pesquL,,;i :\ ~)Cú wl.'>
verdade incide não apenas o interdito à penetração, mas também Camra (IMS/CERJ), pela amizade e dedicação com q:.;e r..rit:nrrJU .a
a prescrição da manifestação perfomlática de desejo exclusiva- dissertação de me:suado que originou este trab-.ilho. Go-iuría dt: aw-..<lrt tr
.j também a ~faria Cláudia Coelho <PPOS 1.""ERJ l. Pcter Frv. l PPC;'-:\. IFC5
; mente por parceiros femininos. Externar interesse sexual por . L\15 CER.J1 e \tan:a Filr>IDt:113 Grê"';<~.n
l'FRJ). Maria luiza Heilbom (CL\.\l
travestis e cross-dressers reitera a masculinidade dos homens a (IFCHilJnicamp), pelas preciosas sugestões e comer.dri'.n \c<Á":<J".r
seus próprios olhos e aos olhos de seus parceiros sexuais. Ainda -metodológicos.
1
! que o repertório e o sentido dos gestos diacríticos delimitadores 3 A categoria cross-dressíng não emerge do disc.Jr>o d<:..; frrt.j"'--t:"!""IL«•.í<I'"-"'.
1 do masculino e feminino possa variar conforme a posição do mas consisie em ferr.unenr.a analítica que bu-;ca ci.rcur.-><:!"t:"'>ct e. '-'-"'
ator que os avalia, a ameaça representada por essas interações de 1iestimenras femínína.s por homens que apa.renrcrrx-r.1.::.'. n:.•IJ LL<:T.
hormônios e pfÕ(e5eS de silicone para IDíxkl..ai:..:io J..: *'~ U.!f:)I,.. ( · -r::_,,
eróticas entre sujeitos que performem gêneros simétricos tem que
as travestis.. Os aoss-dres.ser:s com que con.,·er;.ei nr, tJ.:-.a:.n::r -~ ~:'.-;:-,..<
ser constantemente exorcizada ou apagada, pela abjeçâo 26 que tendem a se ídenúficar como g;iys ou rnch2s.-Q-,.~. 0t- :u_r,r.:.., ~- .r.. ':
materializa. A ocorrência desses episódios gera respostas como contexro. Nessas redes soc:í:ais. o cross-dressm;z e-ri irre-..L':".t::"".:k .._,,, ..:::::;,.::. ·
riso, agressão verbal e física ou mesmo ameaças de morte. a uma deten:nínada forma de exercício da i:-<1rriü".'<:"x·....:u..'.:i,.x e l ,_·e::-.;...-
eSl'.J"atégias de obcenç:lo de parceiros ·'<:-Xl.tliS
Para concluir, gostaria de retomar a questão que motivou
• As iniciais GLS <g.iys. lesbicas e simp.:mz;l.nro · ..::1·c.c-,;2::-. 1 -<. :::-:'"':""":-'· · .•
este artigo, tecendo últimas considerações sobre o modo como
nos anos de 19'90 para de<gn::ir um mcrc:i.,:o de~.:- e'<""'·...:-·,.;·, ,-...o,.:.
os desempenhos de masculinidade e feminilidade se arriculam para público consurr.idoc de ch.,<.t:: rr:C-~ .::..:.;. A., c:·.ci::-.<:-, ~ . .s
aos intercâmbios no mercado erótico. Os materiais etnográficos norte americmo da noç:io gayfr~u:f;\ •q.t.c ;;.s.~..i....l·.; ~.-t::·:c::::-c:-r.·,..
evidenciam a relevância detida pela dramatização e demarca~'âo receptiYos à presença do pú.bi:co f.,:ra:• ...,-.cx:.•.L :::-'."' ~-'"'. -"'"-'·' :, ·~
~por hdc''l'O:"i.-i<:'.'.'f.J>' 1 t:"'.'::<..-4~<'.:l _:.:.; •i-'.:.i .·._, -,
de fronteiras entre bichas e homens nesse contexto. Essa distinção
Br:isil
simboliz:a"11a a In.corpo<:l(:lo dr ;:n-.pa:::::.;:r.::,.:.; =-:-. """':::'"': - ::::,.-:;.
impacta os intercâmbios eróticos - não apenas orientando os ~ re"\.-eb..ndt~~ li~~ CC:!:..t) e:--r:-j_:'t-~ _:e:- 2:-:-::•o:j.~_::tc ..c---c
critérios de percepção e as estratégias de seleção de parceiros mercado (françi. ]J))-1. E,.."<'." pi;T)("t:"',-{) d:'·.· í·. ""'- J .......• L· L ..,-·:-.::•·: ·''. :X
sexuais, como também configurando uma relac;:ão assimétrica ~~~ dt- l'l:X.<.:r;..c,.,. cr·,rr: rr.1:.~~,r ::• ..--fr·•::t::....,.:r .:.e::~:-.'_-::-:;,:..:·~
entre os sujeitos, pela alocação de valor ao trabalho sexual clas- nesse IDel'C:ldo. e urn::i h.itT.irqu;r_.,J,, ~r:tc ~..i.:o::·ç- ::-~r ,.. J:" ·'""'·' ~ ·

sificado como masculino. Tal assimetria não coloca os homens menor ~:PO '· ...t:'T J. n. ..U 2! ' not~{c .<.;': i.'

254
~ OLIVEIRA, 20000. dt ~·~te' •=~.~ su~n:* .,.:..:~ - .:.t::..~ :,... ~-- Jt.•~·­
6 ~<t:: ~:IJJ:- ·~~..a,:·;-,.. :rr.w.:;u.·,. :t.r un nt."ll.T :-rn~;.o.
OLIVEIRA, 2006b.
~C" 1o."Jm u.ma ~r rD::-~-:a.1 .1. ~':It.":iln~,.. .cu~· ~~ 2.•-
1
CARRARA, 2005. ~ ~ ~ ~ ... .:i.í:L.~ ::-ffir:! 1:7>:" =::- :: '-'. -..
P _;c-t.
~ ll.:l."mlr ::t:k:I ~~ :n:..w:.::a;i;~ .X ~..=-:~:. n-.;..-. :am~"''.It ~t:. ~-::-.::
8 PERI.ONGHER, 1987, p. 159.
sXlõli ~ .1. -.:-~~i.::k:r ~ :e-ti..r..ill~ .:~ x =.-:.4.:
9 SIMMEL, 1983. ~·

w Emprego as categorias aparência e maneiras designando elementos da


fachada pessoal dos atores em situações de interação social (Goffman,
1985).
11 a ~~q.:e;:'f":çt.Tri.: :-ur:l~.:i:s_-.x">~. :Tit ~!Ir: T.l.c .;i_~:a:
Um exemplo significativo do modo de interação erótica que denomino .,.,,.. ,,.,_...;:_._+ ~ ~-.~~~ -~ ..,.,..~"" ;.
..-- ~ -~~-~"-"---:::'-- 'e-.~'- -•-e-~>--· ::: ./1::1""!::..!'"fü.A.~: .:t::
isogeneriflcado poderia ser identificado nos casais de mulheres lésbicas
de camadas médias estudados por Heilbom 0996; 2004). Note-se que
·..
cm.lÇ.:6 ·-~ r~. ;::'·-~ ..u:-ui=w: ~'S.l. ..:.."'.:;.;:;1:: .it:"'..:..Cl!:.L; .li ' r:::..;:,.
~~~ ..S:so:.t.:::e;.. ..:S: ~:::~.::..E.~ z··~::: _....-.>;;.--~:~- :
o fato de a polarização entre os gêneros ser inexpressiva não implica,
~ cr;k> e~ <.Tmü ~J. ~.i"<A._;;.; :~ ::0.:1:-:--.l -:::.a.:L--:r
de modo algum, que o gênero seja irrelevante nessas imernções: essa
ou::~~~~~ ~~e~ ;ai.-__j..~ü..1.~.l. -1!! ,Cl..:i~--L""L..t."L :e~ .:·u:c
petfonnance da simetria será percebida e avaliada de formas distintas,
dependendo das normas e práticas regulatórias postas em jogo. ~
-;t
õ= !='*~ 'FJ.ó.r.~"'~
s::ias."';ljrn:'-"""" ~ .1 ~Á.l.•'"<1 º.-. E.··•;•;.;.
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11
Goffman propõe a expressão «definição da situação" para circunscrever ~ qtM:! 5(l ~ ':i«t ::..z. ..i.::..--.m:-..<r:L::..<r ..:tt ..i= nc_~ .m::~J..·
o acordo que se estabelece em um encontro quanto a quais precensôes ~ ;:J. ~.a> n.-tl:~ C..~e::.ct:G<::;. .:e ;:ó3__~: .;i,· 1!='~: • .::c-..:c·--::---
dos outros atores serão temporariamente acatadas. A definição da situação <b~- ,.,;a rot::;'""L ~ti ~:~ :t' ~ ~ ~. ~elr: ..:t ~;: '1 0" \ . . . - : ~
depende da resposta e das linhas de ação que a plateia adota em face ~ ~ ~L:S-.- ti~ ~--~:~ =.a.- ~ ~~~ ~ l::::L~-~

>i.. ! da definição de situação projetada pelo indivíduo, não implicando


necessariamente um consenso, mas usualmente tendendo a uma harmonia
O:f ~de IIh:CO ~'-'- ~8..,"l.::.L."":11: ~..,..:::, .:t: ~OD:t ~: 4
&r'r;ri"'il~~~~ ~ ~~~~ ~..L ~""=l ~ -..:t r_:-..:._,~-..J~r~~li:':
relativa que suprime a emergência de francas contradições (Goffman, ~~~~1:..iJ...i.'l;'~T~"L<l.:'-~-.i1: --à: ... mtc"'!;ô_ ~
1985, p. 18). ~Jt:.~~~~~·.::~~. . . . . .~~==l_~-TI"::~
•• - - L -

~~-e-~~- ~:r..:.lr" ..i K~"':t.: _í.,,"- .L'":L""T':.~~--~ ~~{:\....~


13
SILVA, 2005; i\IORRIS, 1995.
em'*'"«-!.> Q:: ~~ :.;c_Lic- +.:- -..,, ~.-.;;.;:. ~ 3='•-::-:-..:. -e ~"":\.:· •'f::':r
14
BUUER, 1993. ~~~~~~,:Oe:.~--c.~-:J____IC.l ~~,a. i T"""'\:"~"""= :--1::~~ -T:'•"t...:~,. l
fiein.ir:ie..:i;.~~=.::l.::; .::o:::--~:~ J. _-:.TTr~:c:..:....:.i::: . ._ ~~~:'-:.:u:
15
DERRIDA, 1990. e;a~»-- ~L"1JT'.;'.;D :l'Jl..--~~. -;à'" r"•t:S:_c.;::- .:e ·=LT "t'.'C' :.n.. "':.:
16
BUUER, 1993. ~ mn ~-,..tf ~'rrt ~.-:-..t__..t""'!'.'"L~.: __:u rrc~-n.:.:.A.:t:c :'1'~~ "':""i!_ ~ç::~t..~J
G,tJe ~ ~-C-=es ~~.)~~ ~.:Cr.= : ~,~in.: e:: : 1=-~=.u~11".'t". r..:.,,"'
17
Embora a fonna dicionarizada para este termo seja veado, optou-se neste ~ um. !éà:rn CCTTI__.. ~:< ::::_Ç'°J:O -i__- -.:L:.4 ~ ~=cr::""'~...:...:..:.:: ...::._""-Lr1t,,'", t:'
artigo pela grafia mais próxima da fomm de expressão fonética empregada
pelos sujeitos da pesquisa.
~ 05 ~ = tr:l:é!""..t':c~:> "''-~
:o; E:i.oé-e;tio<lec.;;::nr.i:·;,-"; rJ ~,:e:---'--:..:::: x ~_;-,t~.:o- -u -i·c..:....:.L ::.:-!-t:'':
lil Todos os nomes são fictícios, visando resguardar o anonimato e a m ~..lfu díé- ~ ~.... '.l C.:C:. ::!"..i"·~ :::J. -.""'.~ .:L· ~._. ..:C: ..:.....'."t::T"
privacidade de infonnantes. iSili.1 19-i:t ~-
19
Os cross-dresserscom que conversei apresentavam-se para mim, de modo ::> M ~ ;Ji:<.~~::,l;::;' ~.C"l::" '-'"ti- ~2- ..' °" ,..:Cro' .li: TL:LG -...::<_....:. -.J>
geral, com um nome feminino, e somente no curso de interai;ôes cm sua ~~~..5::-tr.l"ii.~°'C-.:-r_..s..o:~,~·s..\.o.::~.=-~)...:t:~L~:..;,_::: -;,1-:-:.__'- -,:::_~:-i:......_--.
rede de sociabilidade emergia o nome masculino acompanhado de anigo dt:- pen.~:;lo do~~-., lT..:.i-,.......:.:...-:...). ~~ ~ t:"'::C:~-r .:e: ... r-- -;,::-:.....e.::.:. .:
feminino. pc6..~ Ji.:c ~..;,;.-('...-5 ~.Lt.::.t.'- .::.·r.: -"".:: -.'x-~-..;_-,'"c:~· ..:e: ,..,-:..:,"":'.•"L'~:

"" A difusão, nos anos de 1990, da sigla GLS e atividades econômicas e ~..i::tl mi:5<..~,,;.- :x.ib - ~· :::.:....::.L~...::..;.-..:.:: ..::.::- ~c-',-t.::.:1..:1:: ...::·~:.-'- .;;,_e: -...,,.
j
é~O"Jai.ú m:L"'.'"~~~, ~., ;-.. _r~~-.._ ~~;_..~-1~..._J t"";;'. ..... .:,_ cf·_._.:\-. -=7c
\ correlatas pode ser um índice da emergência de um estilo que envolve
1: processos de distínção social, com a pluralização de empreendinwntos nio2.bti.l mk-;. .;i). c:t~1>.:llc' J..:, -;'""'"';'":' _i:_~·,.:· :-.c:-...-.::' ;:·-...:· .-C- ,-., "'°~~:--:...:»...l'
H e servíços voltados para um nicho consumidor de alto poder aquisitivo ~Sll:l Jl'.~:.ÍO.lr; é<.-'"Ol'!c ..!. .;._,· ;-....:.. :;:·:· ;-u..-.,.:;·, :· C.•. _~ :- . --l'> f".,.
1 (Simões; França, 2005). No Rio de Janeiro, tais empreendinll'nlll~ cit-me d.l eL._~~---a.. }....i.r-.l -.l...,_ ~~.i'-.~.._;:,_,-.. j;;;:· \_(~'::-o- _':---fç..-\ ~ _,:~-...,~fL_.._~ t-t '~

prolifer-Am com força na Zona Sul da cidade. A formação dL'sse :;egmL'fllo n:.ie\~ ,.Jt:f'".L'it A:li,.,.-....1 U: ~r:t~·f .. ~( .i~ ""'< "t ""':"".. '.:'::."l'.:'" "" ,~·\ :;:_·(._·-~t'-\'

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ll 256
1
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x. A n()(Jo de ah,it.'çiro foi el:ihomda por l\rnler < 1'>')3'J. comn fnmm Je ~ OLIVEIRA, L. Gestos que pesam: performance de gênero e práticas
reft>rir ao pmt:e~ de deman:-ação tit! uma exterl.omlm.le que cnnslinn homossexuais em contexto de <:amadas populares. Dissertação de
sujeitoS ~ dh-.:.·urno.'i', uma :dterid~tde \•iolentumeme repndl:1da no propnn Mestrado. Instituto de Medic:ina Socíal, UERJ, 2006a.
l
:1
proce$0 de con~in1i~'.âo do.'I sujeifl").'l. P.m minha dis.<;errucJn de me~cr:i,Jr,
(Oliveira ..?006a). esl')O(O uma retlexão .~ohre pno;síve1s :1rticulau°Jes entre OLIVEIRA, L. As realizaçôes polimorfas da figura ela bicha. Anais do H/
1 ahjeção e emtiMnú - ~'l..1~erindo a amhiguidade da vaiímcm da :ihíec:in e Seminário Fazendo Gênero. Florianópolis: t:FSC, 2006b.
e.orno esta pode ser investida de valor erorico em contexto.~ ~11uucíon:.us
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258
MARCELO SANTANA FERREIRA

TEXTUAUDADE
DA CIDADE CONTEMPORÂNEA
NA EXPERIÊNCIA HOMOERÓTICA

Toda vez que saía para dar uma volta, tiniu a sensação de
!. ! que estava deixando a si mesmo para trás e, ao se entregar ao
movimento das ruas, ao reduzir-se a um olhar observador, de se
descobria apto a fugir da obrigação de pensar, e isso, mais do
que qualquer outr.a coisa, lhe trazia uma certa paz, um saudável
vazio interior.O mundo estava fora dele, em volta, à frente e a
velocidade com que o mundo se modificava sem parar tomava
impossível para Quinn deter·se em qualquer coisa por multo
tempo. O movimento era a chave da questão, o ato de colocar
um pé adiante do outro e se abandonar ao fluxo do próprio
corpo.
Paul A11ster

A rua está tingida de tons delicados de azul e de vennelho,


prenunciando um domingo momo e arrJ.stado. A chuva que prorn-
velmente banhou a cidade durante a madmgada se acumula
em poças irregulares nas calçadas, servindo de espelho para
os rapazes que saem de uma boate gay do subúrbio do Rio
de Janeiro, o que se expressa em seus gestos ampliados no
reflexo dos círculos concêntricos de cada poça de ;igua. São
rostos juvenis, impregnados de cansaço e de alegria, muitas \·ezes
contrastantes com os rostos sisudos dos seguranças que tentam
organizar a saída dos frequenradores.
Filas de rapazes, homens e mulheres se arrastam pelas mas
próximas. Alguns se aproximam de b:..trr..Kas de cachorro-quente
e ainda têm fôlego para mais uma cerveja e alguns cigam)s. A
cidade amanhece e pessoas já se encaminham às padarias e aos A cada hora da noite, a partir <las 11 horas, um preço é cobrado
supermercados para fazerem suas compras de domingo. Rostos para que se entre na boate,
bagun<,,-:ados pelo sono se misturam aos rostos festivos, e a socia- A fila de notívagos aumenta e se torna mais densa em algumas
bilidade plena e ritualístk11 <los notívagos se dilui na imensidão partes. Alguns garotos já se aproximam da fila vendendo balas
do bairro da Praça Seca. Acabou mais uma noite de música, Je de menta e chicletes para que as pessoas possam beijar muito
dança, de corpos perfumados e de corpos diversos no território durante a noite. Os perfumes se misturam e o som da lxr.:lte já
febril de uma boate. Resta esperar mais uma noite, tão próxima
1•
nos invade, vazando dos muros e da porta da boate. A noite
quanto um verso que se refaz na respiração tensa de quem es- vai bombar. Na fila, já nos deparamos com uma diversidade de
creve um poema nutrido pela mutabilidade de uma cidade como sujeitos que portam alguns signos interpretáveis, e outros ainda
o Rio de Janeiro.
ou definitivamente opacos para nós. Roupas coloridas e pretas se
Se pudéssemos rever as imagens da última noite, talvez conse- misturam, rapazes se juntam a grupos já formados para conver-
guiríamos compreender uma parte do sentido de uma experiência sarem, funcionários de outras boates vêm se agregar à massa de
coletiva como a que se deu no interior da boate. Para isso, no pessoas que se compõe. Estamos na fila e entramos na boate, um
entanto, precisaríamos do apoio de.um interlocutor sensível, que segurança nos inspeciona e, finalmente, após quase 40 minutos
se esguei~..e. como uma espécie de tônus, pelo território que na fila, empurramos a porta da pista principal da boate. ~oo you
·: f
fôssemos gradativamente elaborando. Então, imaginemos que believe in life after love?", nos pergunta a primeira música da noite.
o tempo se desloque e que já não seja, ainda, a manhã de um Sim, parecemos responder. Acreditamos que, ali, haía uma forma
. ' domingo em que chuvisca na Praça Seca. Ainda é sábado e são de existência que dialoga com as racionalidades técnico-científicas
sete horas da noite. O que encontramos? Saindo de Madureira, articuladas sobre a experiência sexual entre pessoas do mesmo
passamos pelo Campinho e chegamos até uma rua em frente sexo, com a violência das ruas naturdlizada nas notícias de jornal
-J
a um famoso supermercado. Madureira é cinza e barulhenta, e com o tempo histórico em que ela mesma se formula.
!
! irregularmente pincelada pelo azul de suas luzes promocionais São três pistas de dança e mais um terraço, onde a luz forte
e pela fumaça dos carros que se deslocam, velozes, pelos seus comprime a escuridão de cantos em que casais já se constituem.
conhecidos viadutos. Campinho é uma passagem, bairro espremido Um jogo de sinuca e uma moça que vende crepes acenam como
entre um lugar cheio de evocações singelas e um outro limiar, bandeiras que nos indicam a existência de muitos lugares numa
o inicio da Praça Seca. Subimos uma ladeira íngreme, lugar que mesma boate. Andamos entre os ambientes, assistimos aos grnpos
mistura casas de classe média a escolas e uma enonne favela, de rapazes que rebolam ao som do fimk e da atual música baiana.
sustentada sobre pedras que parecem pôr permanentemente à Versos eróticos se misturam à distribuição gratuita Je cerYeja e
prova a capacidade de sobrevivência dos indivíduos às condições de água durante a noite. Parece tão belo o que vemos. :\Ias, ao
adversas de existências. mesmo tempo, tão denso e tão confuso. Precisamos de textos que
Alguns comerciantes já se arrumam, preparando carvão e gelo nos enviem ao que vemos para que reconsideremos o visto como
para aquecerem alimentos que venderão e preparando bebidas um texto. A cidade é um texto. Então, nos lembramos do jlânCIJr,
que serão consumidas pelos frequentadores de uma importante personagem do século XIX, estudado na poesia e na prosa de
boate gay no cenário das possíveis sociabiHdades entre indivíduos Baudelaire, como um dos últimos heróis d.a mtx!emidade, atemo
gays do subúrbio do Rio de janeiro e de bairros próximos. Nas às transformações pelas quais importantes capitais europóas
casas e nos bares, as pessoas fazem as coisas que são nonnais passaram e, ao mesmo tempo, resgatado pelo pensador judeu
em seu dia a dia. Um barulho de televisão, um latido de cachorro alemão Walter Benjamin na sua tenta!iva de articular uma fonn:i
e uma garr.afa de cerveja que se abre são os nossos primeiros de apreensão sensível da 1rnxlernidade. Benjamin se rnnfrunta
sons aliados na in..erç.ão no território gay. A noire se aprofunda, com a modernidade e busca considerar a n.:alidade histórica como
embora não saibamos nos localizar apenas a partir do relógio. um texto, interprt•tando alttuns dos seus mais importantes signos t'

262
elaborando textos que se assemelham, cada vez mais, a mun<lo.s, originalmente escrito em 1933, expressa a sua pre<xi.1paçào em
que buscamos percorrer atentos às suas diversas estnituras. Texto inaugurar, em relação à própria modernidade, uma forma de
e mundo pareciam ter uma similitude nas culturas anteriores à
cultura da infonnaçào e do advento da burguesia como classe
leitura das coisas imediatas que se apresentam à sua experiência
~mundana", encaminhando-se à uma tradução dos elementos
1
economicamente dominante. Benjamin retoma o esforço <los imediatos através de grades de inteligibilidade permitidas
primeiros românticos em interpretar a textualidade da realidade, pelo campo do conhecimento histórico e filosófico. Portanto,
empenhado, através de seu próprio itinerário biográfico, em dar Benjamin (1993) busca apresentar e citar as coisas, mais do que
um estatuto heurístico aos elementos que recolheu em sua própria simplesmente interpretá-las previamente. A configuração profana
experiência histórica.
das mercadorias e dos corpos humanos na cidade de Paris, por
O dom de encontrar semelhanças entre as coisas e a própria exemplo, garantia o estudo histórico da transíção do século
existência humana parece ter se degradado com o advento das XIX ao século XX, traduzida como época de consolidação da
sociedades letradas. O homem primitivo tinha mais oportunidades permutabilidade entre a existência privada e pública dos indh-í-
e mesmo necessidade de recolher nas coisas e nos fenômenos da duos modernos e da centralidade da burguesia na regulação elas
natureza um índice de similitude com sua própria experiência. Daí sociedades capitalistas_
que o sentido de leitura tenha se restringido na cultura moderna
Cítar o presente é uma fonna de trdduzi-lo e, ainda, de retir.u
e, ao mesmo tempo, tenha assumido uma nova fisionomia.
as coisas de um cenário estável e racional para submetê-las
Diz-nos Benjamin em sua reflexão sobre a semelhança:
a uma nova configuração intempestiva, como a que se dá
a partir de uma jlanerie 2 por Paris, capital do século XIX, de
O dom de ser semelhante, do qual dispomos, nada mais é que
um fraco resíduo da violenta compulsão, a que estava sujeito o acordo com a acepção de Baudelaire e do próprio Benjamin. A
homem, de tomar-se semelhante e de agir segundo a lei da seme· busca de uma outra fisionomia do tempo se toma possível, no
lhança. E a faculdade extinta de tomar-se semelhante ia muito trabalho benjaminiano, a partir da interrupção da temporalidade
além do estreito universo em que hoje podemos ainda ver as cronológica e vulgar das cidades e da inaugurdçào de um texto
semelhanças. Foi a semelhança que pennitiu, há milênios, que a em que finalmente os objetos são confrontados como ren·la~·ào
posição dos astros produzisse efeitos sobre a existência humana de uma série de condições históricas precisas. Por exemplo, ao
no instante do nascimento. 1
citar as prostitutas em seus aforismos, 3 Benjamin bu.:-ca proble-
matizar a condição de mercadoria vivida pelos próprios artistas
A compulsão do homem primitivo não sofreu apenas uma
nas sociedades capitalistas modernas. As prostitutas \·endem uma
degradação, mas a capacidade de encontrar semelhanças migrou
mercadoria por serem uma mercadoria. A prostituta enunciada no
para a experiência da linguagem, campo a que se voltou Benjamin
texto de Benjamin deve ser lida como uma imagem do processo
na defesa de uma concepção onomatopaica da origem da
de proletarizaçào vivido por importantes exrratos das sociedades
línguagem humana. A primitiva capacidade de ler do homem se
modernas, dentre eles os trabalhadores e os próprios a11istas,
restringiu historicamente, não se desdobrando nos dois estratos
como são pensados pelo próprio Baudelaire.
a que se referia, quando, por exemplo, um ser humano podia
ler as vísceras de um animal e a posição dos astros ao mesmo Voltando aos rapazes que rebolam na lx);!le \"isirada por
tempo que encontrava uma destinação daqueles elementos na nós numa noite de sábado no Rio de Janeiro, percebemos que>
exi<>tência dos indivíduos. Ler, posteriormente, só se desdobraria os corpos se abrigam no cenário complexo Ja pista de daiwa.
na referência aos signos linguísticos. ganhando uma visibilidade afeita à especificidack (b sirtia\·ào.
Além disso, as relações que os indivíduos e:;tabek·cem entre si
A leitura, no seu sentido mágico e profano, se alinhava ao
no interior da lxxlte ac1lxun por di:ilogar com as :.issimetrias hi.,to-
diálogo entre a experiência sensível e aos aspectos extrassen·
síveis da existência humana. O importante texto de Benjamin, ricameme presentes na forma hegemtmica Je instituciomlíza•;:lo

264
de expenendas afetivas. Uma mistura de referências está se sensibilizasse com o apelo do gay. Todos os santos desdenham
presente na pista de dança da boate e podemos recolher algllns da candidatura do gay ao paraíso, mas alguns deks, e talvez até
elementos como imagens dialéticas da temporalidade histórica mesmo jesus Cristo, estejam se preparando para uma diversão,
atual. O feminino e o masculino se confrontam e se rearranjam, arrumando os cabelos e a maquiagem. O público rí IYJ.stante, e
garmtindo uma interrupçlo do fluxo banal das horas no bojo alguns dos outros artistas, constrangidos, ficam de costas fY.tra 0
de uma sodedade capitalista. Na dança vertiginosa ao som de público, visivelmente preocupados com a narrativa. ~o entanto,
um funk, o corpo ~grotes<..u~, tal como pensado por Mikhail a narrativa do peifonner é uma expres..sào dara da fbicalídade
Bakhtin em sua pesquisa sobre Rabelais, 4 e o carnaval se fazem intensiva da experiência coletiva na boate, mi'iturando rder[-ncia"
presentes como expressão do antidogmatismo, da fisicalidade e e nomes sagrados à musicalidade e à brincadcíra profana durante
da superação do corpo puro ou mesmo idealizado atr.ivés dus a noite, instituindo uma fomla de ritual semelhante ao carnaval,
discursos científicos e sociais dominantes. O corpo "grotesco" questionando as moralidades dominantes que negam qualquer
inaugur.t., sempre de maneira transindhidual, uma forma de tempo- fonna de reconhecimento da legitimidade da parceria cívil entre
ralidade imemorial, em que a praça e o mercado se opõem ao pessoas do mesmo sexo. Oportunamente, a brinca<lcira dí.al(Jga
discurso hegemônico. "A experiência física do carnaval expressa com o contexto de desqualificação moral e p<Jlítíca das parcena<i
não apenas um escapismo negativo, mas também um aspecto entre pessoas do mesmo sexo, ao mesmo tempo que val(Jríza <>
positivo. O carnaval não é um tempo desperdiçado, porém um riso e o deboche como formas de resísttncía à atualidade. Tal
tempo preenchido com profunda e rica experiência."" imagem também pode se aproximar da reílt-xao sug(.-rida tyJf
Ora, de acordo com a autora .citada e a discussão apreendida Michel Foucauh em relação à própria ciência hi'>t6ricL jã q"Je rJ
nos teÀ1os de Benjamin, podemos vislumbrar os corpos que autor-um historiador do presente - afínna\·a que a ·a!1J.&);:-J.ddt:'
bailam na boate como corpos cônscios de urna interrupção da não é apenas aquilo que se pode btUclaL ITláS ar4w]rJ de r.j ~e
temporalidade da produção e, ao mesmo tempo, como imagens devemos nos desprender a fim de inaugur&.r fc,,r:r,a-, rfJ'.-a.., de
que revelam a contraposição às hierarquias idealizadas entre conhecimento e de enunciação."
macho e ]emea ou entre atilJO e passivo. Não que esses t.em10s Na perspeah·a foucaultiana, portanro. pt:n.~h t;.r;.r<; ?f'r
não se façam presentes nos conrext:os pesquisados, mas eles nào funda preocupação com a relação enL't:' o cr..;rJ.>t-ci!rit-n:'_, t ;;.
organizam previamente as relações que se esrabelecem entre os difereaciação do pesquisador" em rdaçà<) â sua pr~ a~~::."-:it:.
índh·íduos e os grupos. A própria concepção de experiência em >Ler.d f<_,..A.-"~i r.::-;r_, !-t-
Além da pista de dança em que toca funk, na primeirJ pista assenra em princípios da fenomeni".JÍ<Yp .. já qJt <J ª'Jê'A u.r."si~­
de dança um shov.r de perfarmers é um instrumento precioso para Ia\'3 que a experiência era uma forma de ó.~-.-)~;:.;;;_,_, &:- fx::·~~ ::.t
o,hõ.,.;...:,L...J_ ~.-:,~~..J~- ~-"""'"-",...,., - '•!.;: CJ -rr,c .-r........-:·•
... ..r---.F _...
..._ __.;_ ,. -
uma indagação política. No momento em que a música vai se ~u-..~ t...\..JllOà.Cl~ 1-Po...-~.::i.~~-,i- ... .::;o...- - .._...__._......i. "'!~-.__

espraiando pela pista, condensando-se em determinados ge::.tos de O próprio pesquisador percebia a irr:.7.11.í.-:i'.::::,. e.e rr::~d~··:.:..ar-x

.indivíduos, que parecem fazer um show para seus públicos mais 3lm"és do JllOi'imerno dé ínrI:-rprt.-'!'~çâf.J àrJ ?;,;: ~-..:..:.e. t Jt= ~~:-=-~­
próximos, anuncia-se o show da madrugada, feit.o por um t-,'íupo lização do presem.e. Em en!rt:"YÍ..<;!3 O:.>TKt:";_,i;. t:::: ~.'..'.~·;"__ f )J_::. _J'.
de anisras já conhecidos das pessoas que frequentam a boat.e em {191).0 difere-ncia-se da peí5pt"CLlY3 lt-n0:Tk".""Jé.>~:.<.:f,:.::.. ;,,:/ .f.:';~1j:­
questão. Um dos mais conhecidos artistas começa a falar sobre UDla espécie de des.....-u.bje!iu1.ç.ã.& u_>!:)CJ t-':'.1:::· · :i4· ~...:.::.~ =---, -:-:-"..2.:,-

'.l.'ída e mone, lembrando de um peifonnerrecentemente falecido. ções ~e ruo um rft:'l'::icon::"T.J j:,... t-~~tc·::r. .1'- :-•'.":~:rc"::· ~
O .arti"1a se empolga ·e .a.cana inventando uma piada na hora. da .,.,~;...::...L.. ...:r •.• na e,._.~,~-. c·c... ; .,,, ~-· ·O ..-,.~:~:~". .···r
~u~~ ~-··-·-~ ~1~-~ _._ .. !/ i···r--- ,.~,~::·~.r~~--, ~..__

na.rr.mdo .a chi::gada de um gay ao céu. Muitos santos nt"gam a foucauh., no é"n!l3nt.o. não k efc-t;Y;;.\ :o ::t?<.:-C-2'- ~ ~..::::· x-.:.: _>"'~
entrada do gay no paraíso, mas a personagem central cw pt'quena de cunho,....,~ ~-- .-1::;._.;,,.r, ,.._,,,, pr'"' ,., .......,,:~..e-1'·-
ª~ ~l'"P".i"Ai\.·\_.-, J,J.J,.+:;i..
...--' .;· '2.'-. ~·1:C-• ~,-
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narra.tiva procura invocar os santos mab próximos dt' uma causa \.'Õesquedavam UIT'.ü. cummuKi... ~- ;,;n'- .....-.> ;'"'i:'.'-1~~1'::-~::: '~ :'.:.::
UªJ'r cita o Santo António de Caregeró. que, por ~er nt'.gro. taln~z uma~ t:'fltn:·,:i~u. conu.-~1J::! t:"C": ~ ;.-. :; ::e. C ~;'--' :s._..: ~.- .:t:~-::

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}.fichei Foucault problematiza a questão do prazer sexual e contrário: "De fonna alguma! Deixemos que ela escape na medida
acaba respondendo a questões sobre a cultura gay e a noção do possível ao tipo de rclaçôes que nos é proposto em nossa
de experiência sexual. Dois momentos importantes da entrevista sociedade, e tentl.'fTIOS çriar no espaço vazio em que e.sumos nova.~
podem ser destacados a fim de podermos dialogar com o campo possibilidades de relação". Propondo um novo dírdto de relação,
citado desde o início do texto. Inicialmente, Foucault problematiza veremos que pessoas não homossexuais p<xlerão enriquecer suas
vidas modificando seu próprio esquema de relaçôes.~
a tendência. reconhecida nos anos de 1980, em se estabelecer
um ímportante \'Ínrulo entre sexualidade e direiJ.os, e afirma:
Ésignificativo o entendimento de Míchel Foucault nos excertos
O fato de fazer amor cum alguém do mesmo sexo pode muito anteriores acerca da relação entre a cultura gay e a história. Ao
naturalmente acarretar toda uma série de escolhas. toda uma invés de se submeter a uma luta pela libertação dos gays na sua
série de outros \.Uore:s e de opções para os quaís .ainda não há crescente dissolução na normalidade geral das relações instituídas
possibilidades reais. Xâo se trata somente de tmegrar essa nas sociedades ocidentais, a cultura gay poderia negar-se a se
pequena prática bizarra, que consiste em fazer amor com alguém ver diluída no reconhecimento de sua simetria em relaçào aos
ck:i mesmo sexo, nos campos culturais pree:il<;tentes; trai.a-se de afetos heterossexuais. A relação entre subjetividade e história, de
criar formas culturais. 7 acordo com o autor, deve ser estabelecida de forma efetiva, ou
seja, deve-se também buscar criar novas liberdades na enunciaçào
Ora, no fragmento acima, podemos perceber que o amor não
do fardo da história. Evidentemente que o autor se nutre das
se opõe às lutas do século passado que propunham um reconhe-
reflexões de Nietzsche sobre a história no século XfX, já que o
cimento da legitimidade das relações entre pessoas do mesmo
filósofo defendia a necessidade de se reconhecer em que medida
sexo, mas afmna a necessidade de algo a mais, embora extrema-
o conhecimento histórico seria impeditivo da ação. ou melhor. da
mente mais complicado, que seria a inauguração de formas de
própria vida. Uma história que se nutre do modelo ancrnpológicn
relação com esratutos diferenciados das relações já estabelecidas.
da memória deveria se tecer a partir da continuidade cronokígKa
Obl.iamente que ares das suas in\·estigações se fazem presentes
edo reencontro empático entre passado e pre-;ente. Cma hísrória
na enlre\ista, fá que o autor tencionava enconrrar um ponto de
efetiva garante o próprio e5tranhamenro do preseme, daqui/() qtJR
contato entre a formação da subietividade ocidenr.aJ e a própria
somos, daquilo que nos tornamos e daquilo de que estamr,ç ~
atualidade, afirmando a importância da amizade e de norns
vias de nos diferenciar: O próprio Walrer Benjamin ( 190.2. • ciu
afecos não gerenciáYeis pelos saberes esubelecidos que pudessem
Nietzsche em uma das suas teses sohre o conceiro de h1st<ir.a
constituir modos de exist.ir não cindidos em papéis preestabe-
relembrmdo a import.ância que a história deve as.-;um1r em n.:!:K.io
lecidos. Além do momento anterior. o autor também afinna que
às necessidades da vida e do próprio presenre Em rebcio .·i
a condição das relações entre pessoas do mesmo sexo é reflexo
cultura gay, Foucault (2004) aciba por apresenur cim::i ,let°e-;;a
da tensão que os sujeitos experimentariam., p que se siruariam
corajosa da relaçio entre subjerívid.ade e ética. p( ,js "'" ~( :rrn;1:-
num espaço vazio a partir do qual a inren__tjdade da experiência
de rela.çào estabelecidas emre pesso~is do mesmo '>e'\n ;-i 10 de:i1
de\·eria difenmciar-se da história e não simplesmeme se submeter
abalar os modos de exi'irência inJi\·iduai e cnletin1 hisrc :ncinw<lh'
a ela. De acordo com o próprio ~fichei Foucaull.
reconhecidos como legfrirnos. \:a boate l·iuda :Jnft';lnnw;ire
muitos afetos nào tang~nciát:eís peb linguauem t' ~;.,,!:;:- :)r:a1c;.,
(...) a rultura g:iy não será então sünplesmeme um.a escolha de
homos:sexuai" por homos..~. L%0 aiJci rel.a.,x'l<.."".S qm: rxxkm dominantes circulam pelos seus corrednr~':s e pt>lns ,·nrnn' in'
ser, até cetto ponco, uanspo:sus par.i os ~"ief'U'c"<Xtu.i". É pr<:eíso indivíduos que se envolvem com ourrns no mrt"rn1r .::is ·:-:;rn:•·'
inwtter um pouco a.s coi;;;;1s.. e mais do que dizo:."f o que se dbse tecidas durante a notCe.
em um ceno lllOnk."fl.tO: "'Tememos ~imroJuzir 3 hl)mosSêxua- No quarto escuro ,!a hnate. uma qu:inti<::ll :e rnm:;<..;in.;\ '·: ir
lidade na normalidade geral da:s rdl.\""Õe:S ~i.-.·, di;g:unos ao pt'..'l..."Oassecompnme no tdsp;H\l «XÍl.!lln :,- ·1rn nntit·:ri\ n.b<d·
lino em qu~ for..tm .1m·~wnt:1tLis .l'> ':'1rnc.1d;;, • ·i:-ii k' ·r· ..:,:r .~:'r
o ritual das sexualidades nômades e sem rosto. Na escuridão do outras bebidas alcoólicas, homens e rapazes se posicionam em
banheiro, as pessoas parecem se encontrar e trocar carícias a diferentes muros de uma rua específica da Lapa para urinarem,
partir da irregularidade do espaço e da própria exiguidade. No garantindo a formação de novos territórios de observação de
contexto contemporâneo, em que as racionalidades científicali públicos híbridos interessados em assistir à exibição de corpos e
desenvolvidas em torno da AIDS parecem ter afrouxado 0 de pênis diferentes. Na rua específica, novos bares foram cons-
discurso do medo e do risco imanente às práticas sexuais não truídos e eles são maciçamente ocupados por frequentadores de
hegemónicas, alguns grupos de indivíduos que se relacionam uma boate gay próxima. Nas mesas dos novos bares, os grupos
com outros do mesmo sexo inventaram modos transitórios de de indivíduos observam, avaliam e se divertem com a diversidade
uso do prazer. Numa outra boate, na zona sul do Rio de Janeiro, a de corpos disponíveis ao olhar. Numa noite específica, no meio
distância geográfica e política é suprimida com o ritual do quarto da multidão que caminhava de um lado para outro da Lapa, um
escuro. Na mesma noite em que estávamos transitando pelos 1
rapaz, entre seus amigos e amigas, coloca o seu pênis para fora e
espaços da boate do subúrbio, seria possível escutar gemidos e ver l urina, enquanto continua andando. A sua juventude, a sua roupa
práticas sexuais de risco no meio de aglomerados de indivíduos facilmente reconhecida como uma roupa da moda se aliavam à
que buscam identificar os seus potenciais parceiros na penumbra sua maior permissividade, garantindo uma suspensão provisória
e através do toque, que permite a criação de uma imagem da funcionalidade das ruas de uma cidade. Ele andava pela rua
sobre o corpo de quem está mais próximo. O corpo grotesco, e o seu corpo era misturado às cores e aos afetos de uma noite
presente em sua genitalidade, se opõe ao corpo sarado ou o quente na Lapa. Mais do que um rapaz no meio da rua, ernm o
corpo perfumado - imagem suportável e consumível nas atuais pau e o mijo que habitavam o trecho quente da cidade, permitindo
relações entre homens, pelo menos nos meios de comunicaçào que se constituísse uma experiência coletiva em que o corpo puro
de massa. O corpo presente nos quartos escuros dialoga com das idealizações científicas e midiáticas não estava presente.
o risco real, impregnando o ar com o cheiro de saliva, de fezes Na boate no subúrbio do Rio de Janeiro, muitas vezes a parcia-
e de esperma. Mais uma vez, o corpo real e sua mesclagem a lidade dos corpos se impunha às formas mais naturalizadas de
outros corpos celebra a "livre interação"9 com o mundo exterior abordagem e de efetivação da corte entre homens. ~fergulhando
e impõe, provisoriamente, a importância de orifícios e protusões. nas tramas intensas da boate, percebemos o quanto o fedor. a
Uma forma cultural possível se elabora nos quartos escuros, precariedade, o genítal e o transitório eram uma express:lo da
respondendo à mercantilização dos corpos nas distintas mídias materialidade das relações, não subsumidas na forma dominan-
contemporâneas e à banalização das relações entre homens. O te de se estabelecerem vínculos entre os corpos. Os perfumes
risco das relações sexuais na penumbra não poderia ser entenrudo, do início da noite, a fumaça dos cigarros e o cheiro de chiclete
portanto, corno uma questão de ordem puramente biográfica de menta são apenas os precursores de misturds imprevisíveis.
ou psicológica. Existem formas de relação entre os corpos que como a de um rapaz que sai do quarto escuro com sua calça
celebram a desindividualização dos afetos, rearticulando a vida preta salpicada de esperma. Na luz penetrante da manhã que se
individual e coletiva ao caráter imprevisível das tensões dos iniciava, a calça preta com pontinhos brdncos era um destroço
encontros na cidade. da genitalidade e da provisoriedade dos encontros em urna l.xxite
A desindivídualização dos afetos, dessa forma, expressa o gay. A assumída tr.ansitoriedade das relaçôes aferiYas. ohjero de
estatuto histórico e coletivo da própria experiência homossexual, extrema preocupação de especialistas da conduta humana. n:.lo
um amplo espectro de relações que os indivíduos podem esta- pode ser entendida como resultado de uma sociedade que prima
belecer com outros do mesmo sexo. Do cheiro do quarto escuro pela fugacidade dos encontros. Tr.ua-se de uma cekbndo dt:
somos lançados, através da insistência da rememoração, às ruas aspectos nào racionalizáveis da exi.stt•ncia inJívídual e cok·cín.
do bairro <la Lapa, que ficam inundadas de urina no decorrer pois pennite a efetivai.:;lo J~· pr:itíc.1.s er6lica:-> parJ alem do pum
das noites de sexta-feira e sábado. Após o consumo de cerveja e hedonismo e do individu;.ilisrnn contt:mpodneos.

270
A textualidade da noite ainda prossegue e os signos do con- de uma temporalidade "outra" no interior do ttmpo vulgar uu
sumo se espr.:i.iam pelo território observado. Cabelos coloridos, cronológico. 10 De acordo com Agamhen, a concepção de história
piercings, corJX>S sarados e roupas de grife se confrontam a corpos em Benjamin diz respeito à necessidade de, para o materialbta
comuns, de trnbalhadores, de estudantes, de velhos e de moços histórico, se parar o tempo a cada instante. 11 Ora, o "ínstante"
que querem dançar e beber, namornr e trnnsar, observar e serem de que fala Benjamin é o "instante~ <lo perigo tanto individual
observados. O próprio corpo dos peiformers se modificou em quanto coletivo e, mesmo, o ahrigo tecido pelas palavras através
quase uma década de nossa deambulação por boates gays. Alguns do estudíoso da história que busca construir uma forma de
corpos são o próprio objeto do espetáculo durante a noite, percepção política sobre os acontecimentos que passam. O texto,
por serem excessivamente contrastantes com a concepção de em Benjamin, é uma forma de paralisação do tempo cronológico e
beleza divulgada pelas mídias e consumida pelos indivíduos. Um a inaugurnção de uma experiência. A experiência se articula numa
peifonner, especificamente, se mexe ao som da dança do ventre, diferenciação dos homens em relação à sua própria história.
mostrando seu ventre enorme e enumerando os alimentos que Um fragmento sensível desse processo se dá na configurar;ão
consumiu durante um período de festividades. Numa das noites do território em que realizamos nossa deambulação. Os prédios e
em que realizou o seu show, consumiu um enorme sanduíche as realidades sociais distintas formam uma espécie de cristal, em
de uma lanchonete famosa antes de subir ao palco. O alimento que a própria totalidade do processo histórico vem espelhar-se,
excessivo, gorduroso, cheio de sabor e de cheiro distinto daquele . ~ mas os elementos que conseguimos identificar são cognoscíveis
a que estamos habituados é oferecido em diferentes amhientes a partir do contexto em que nos encontramos. Ou seja, podemos
da boate, em que a própria bebida alcoólica é consumida em dizer que toda a história das práticas sexuais entre homens vem
profusão, garnntindo a composição de um tapete de cerveja e de espelhar-se no instante fugidio dos encontros no interior de uma
copos descartáveis na continuidade das noites. Além do peiformer boate específica, mas a especificidade dos encontros impõe uma
obeso e satírico, outros artistas portam os signos do consumismo perspectiva sobre outrora, por ser, na sua forma de texto, uma
contemporâneo, ao aparecerem com corpos trabalhados em agoricidade1 2 , em que o passado pode ser reconhecido, mas
academias de musculação. em que o presente inaugura uma certa distensão do tempo. Tal
As práticas vislumbradas no interior da boate questionam o operação nos é sugerida pelo próprio \Valter Benjamin em uma
estatuto pennanente da noção de identidade homossexual. Devido das suas lembranças biográficas, que garantiram a elaboraçào de
a uma multiplicidade de fatores, os modos de elaboração de si uma perspectiva sobre a história e sobre o tempo:
mesmo como sujeito de determinadas práticas e afetos no boio
das sociabilidades entre homens que se relacionam com homens Primeiros socorros
não são a mecânica expressão da construção da identidade sexual.
Um bairro extremamente confuso, uma rede de ruas, que anos
A performance dos indivíduos pode ser mais importante que a
sua identidade; as práticas entre homens nem sempre traduzem
l a fio eu evitara, tomou-se para mim. de um só lance. abarc:í,·d
1 numa visão de conjunto, quando um dia uma pessoa amada
a construção de identidades fixas. Neste sentido, as prúticas no
interior da boate podem ser compreendidas hístoricamente, pois l
i
mudou-se parn lá. Em como se em sua janela um pmit..'tor esti\·esse
instalado e decompusesse a regi~lo com feixes de luz. 1'
o atual contexto em que vivemos permite uma relativa experi- }

mentação dos afetos inimaginável em outros contextos históricos, A confusão das ruas e a irregularidade de um detcnni1udo
mas que necessitam ser reconhecidas em sua intensidade, ou espaço se tomam, involuntarianwnk', o espa(o em que o estudin->t.)
seja, em sua temporalidade para além da história. É exatamente do passado encontra uma ce11a sugestào de unid~tdt_•. A partir da
nessa direção que elas podem ser vislumbradas como imagens mudança de uma pessoa amad:t para um lx1írro, as constrnvx·s
de uma forma de experiência. Uma "experiência", de acordo ganham uma luminosidade. No ciso lb lxute em quesüu. a sua
com a acepção de Walter Benjamin, se constitui na inaugura~"àcJ presença num contexto híbrido µarante uma suposta unídJdt..'

272
l
l
ao território, e, mais do que isso, o estudo das pr<iticas entre
A experiência na história é permitida pelos ohjeros mais
homens no interior da boate garante uma aproximação à totali- costumeiros e insignificantes possíveis. No atual estágio <lo capita-
dade da história da própria homossexualidade masculina no Rio
lismo mundial, a presença de mercadorias estrangeiras em nosso
de Janeiro. Mas, para isso, é necessário instituir uma experiência. país garante uma fruição através do lazer. No caso da boate citada
É o caso do..."i indivíduos que se dirigem à boate, no meio de as músicas de diferentes épocas constituem a atmosfera em qu~
bairros dormitórios e de pa.<;sagem. Ali, naquela boate simples sujeitos se constituem a partir do encontro/confronto com outros.
e escondida, um certo relampejo da noção de experiência se Indivíduos mais velhos percebem seus paradigmas de conduta
,,
faz presente. Compreender a relação que se estabelece com a e de valores relativizados diante de novos modos de comporta-
AIDS nas sociedades contempodneas se toma possível a partir mento e de desejo entre homens, mesmo que incorporem uma
do contexto específico; interpretar a polissemia dos afetos entre parte da atualidade em seus próprios comportamentos. Um lkíjo
homens t.imbém é permitido pelo acesso ao elemento cotidiano entre pessoas de idades diferentes é uma forma de experiência na
e provisório que se estabelece no interior da boate. A própria história permitida pelo espaço-tempo da boate. O uso de roupas
noção de identidade sexual é permanentemente questionada similares por indivíduos de gerações diferentes também impôe
pelas atitudes e pelos afetos que vislumbramos na boate. Para uma imagem aos seus observadores: signos do capitalismo atual
isso, torna-se necessário citar o acontecido, para permitir uma desfilam pela boate, permitindo uma relativa flexibilidade de
::.<
perspectiva política acerca da atualidade no que diz respeito às elementos para que se construa uma performance no bojo de
práticas homoeróticas masculinas. uma boate. A experiência da história se revela na imediaticidade
A diversidade de elementos que são importantes parJ a invenção das relações, em seu fugidio contorno expresso na coti<lianei-
de práticas homoeróticas coloca em questão o caráter polifónico dade de palavras, expressões e gestos específicos. r-;"a própria
da atualidade. Muitas gerações se encontram no interior de uma cotidianeidade, suspensa na elaboração de um texto, a história
mesma boate gay, portando signos que se historicizam diante - e a história da homossexualidade masculina - é reconhecida e
dos signos atuais. Por exemplo, percebemos a juvenilizaçào das superada, já que a intensidade dos afetos e dos olhares trocados
práticas sexuais entre homens, devido à presença considerável de resiste à sua dissolução no suposto curso homogêneo <lo tempo
rapazes nos contextos pesquisados. Muitos estratos de práticas se histórico. Recentemente, nas páginas de jornais de grande
comprimem numa mesma noite: indivíduos muito jovens e sua circulação, fica.mos sabendo de um jovem gay que lutou com mais
postura flexível e mesmo efeminada em determinados momentos, três adolescentes que agrediam continuamente frequentadores de
o que os valoriza ou desqualifica diante de potenciais parceiros; uma boate gay na zona sul do Rio de Janeiro. A l'iulência contra
indivíduos com mais de 20 anos que portam os signos da juventude as minorias encontra distintas respostas na história, e uma das
na contemporaneidade; e indivíduos mais velhos que carregam suas faces é o confronto explícito (extwordin:írio). Mas a tensão
os sinais dos tempos que viveram e que ainda são importantes na dos encontros no interior de uma boate também está c1rregada
sua conduta cotidiana. Essas gerações se distinguem no fluxo da de violência, desejo, ambiguidade e intensidade. Por exemplo,
temporalidade cronológica, mas se encontram e se confrontam os jovens mais efeminados tendem a ser ridicularizados e
no espaço-tempo da boate pesquisada. Numa pista de dan~a submetidos a uma hierarquia em que, geralmente, eles aparecem
mais escondida da boate, músicas dos anos de 1970 e 1980 são como possuindo menor importância ou sendo apenas obje!o
compartilhadas por indivíduos de idades diferentes, acarretando de chacota. No entanto, em vários espaços dJ. boate, dift.:rentes
a suspensão das separações rígidas entre pessoas <le gcra~·ôes individualidades elaboram formas Je relação un que as hierar-
distintas. O espaço da boate permite uma provisória suspensão quias se suprimem, ou enlJ.o, permitem prm·ísórbs trocas. O
da história, negando-lhe sua inevitabilidade e inaugurando uma particular das interaçôes entre os indivíduos no interior da boa!e
experiência na e da história. pesquisada se ilu1nina atravt-s da relaçJ.o com o bist(mrn, nau
se dissolvendo no mt.·smo. Esta rdaçjo é ck'lendida por \\.alter

274
Benjamin em sua construção de uma concef)\'ào materialista de assassinados por garotos de programa. Estes fatos se agregam à
história: ~o cronista que narra os acontecimentos, sem distinguir história das n_Unor~s sexuais em nosso país, indicando a comple-
entre os grJ.ndes e os pequenos, leva em conta a verdade de que xidade da s1tuaç,:ao que os homens que se relacionam com
nada do que um dia aconteceu pode ser con.sider.1do perdido homens enfrentam na atualicfade. A cena do beijo roubada da
para a história. " 1 ~ audiência foi representada numa boate em São Gonçalo, em que
a peiformerda noite perguntava às pessoas o que haviam achado
A tensão entre os momentos vividos e os acontecimentos
do último capítulo da novela da Rede Globo. Os casais que se
do passado permite uma narrativa sensível do curso da história,
elaboraram durante a noite se beijaram t"Ill protesto à higienização
em que a acuidade do historiador se alimenta da perspecth·a
do espetáculo, dialogamlo com a estranheza da atualidade.
do cronista, ou seja, de quem se preocupa em ler o relampejo do
Personagens caricatos e uma falsa tolerância têm impregnado a
passado num traço do presente. Benjamin 099.3a) lernhra, por
relação das mídias com a experiência homossexual masculina.
exemplo, da consciência histórica dos participantes da Re\·oluçào
Vivemos numa espécie de naturalização da exceção, e YiolC:ncias
de 1848, em Paris, que, no término do primeiro dia de combate.
cotidianas se impõem, de forma quase opaca, aos olhares não
em pontos distintos da cidade e de forma independente, dispa-
atentos à trama das práticas sociais cotidianas. Por isso, mais
raram tiros contra os relógios das torres, tencionando a inter-
uma vez, nos esforçamos em construir imagens sobre os destroços
rupção da história oficial e garantindo o encontro fugidio entre
do passado recente e do próprio presente não reconhecido.
as lutas do presente e os anseios não atendidos do passado. Tal
Tais imagens se opõem à concepção de uma história linear, em
configuração se dá continuamence na relação entre as minorias
que o progresso das sociedades seria o telas do desenvokimento
e a sua própria época. A luta de indh·íduos que se relacionam
~
tecnológico. Novas gerações precisam interpretar os sinais da
1
com outros do mesmo sexo se distingue das lutas do pa&sado,
história efetiva das práticas homossexuais entre homens para que
mas a cada obstáculo enfrentado pelas pessoas, a cada tensào
não sucumbam à ideia de uma suposta toledncia hegemónica
entre moralidades distintas, garante-se o reencontro do presente
em relação às minorias.
com um passado que se tomou citável. Embora se consuma
a dn·ersídade sexual em programas de tele,·isão e em mídias A boate pesquisada seria um gueto? Mais prudente interpretá-la
segmemadas para diferentes públicos, a ,-iolência se expressa, como mónada- espécie de estrutura fechada em si mesma. mas
inclusive, entre os próprios homens que se relacionam com que reflete a totalidade do processo histórico em que se constituiu.
homens. A transitoriedade de atoo como o do rapaz que apareceu A boate é uma mercadoria e, para nós, um objeto histórico.
nas manchetes de jornal se alimenta, também, das respostas Interpretá-la como mônada é um recurso que herda a reílexào do
pro,·isórias que as pessoas no interior de uma boate dão ao seu próprio Walter Benjamin sobre a história. Diz-nos Benjamin:
próprio tempo histórico. Além disso, o ritmo do prazer e da
O materialista histórico só se aproxima de um ohido lüstónrn
fugacidade dos encontros se articula como uma contraposiçào
quando o confronta enquanto mónada. '.\essa e.qrucurJ. dl'
ao modelo higiênico de relação entre os indi,·íduos.
reconhece o sinal de uma imobilizaçJ.o messiânica dos anm-
Na mesma noite em que jlanamos pela boate, p<:xleríamos tecimentos, ou, dito de outro modo. de uma oportunidade
ter sabido dos seguintes fatos: um pai assassinou o seu filho por revolucionária de lutar por um passado oprimido.:'
saber que ele era homossexual; numa nO\·ela da Rede Globo
de Televisão, a cena do beijo entre dois personagens homos- Pesquisar um objeto histórico como môn:tda implici construir
sexuais foi suprimida do último capítulo; indi,·íduos que saem uma imagem que dê conta da expn:ssào do passado no presente
de diferentes boates têm sido agredidos por pessoas que rondam e da totalidade ela história naquilo que é ínfimo. A rntKt-pç:J.~)
as áreas onde se desenrolam soci<Jbílidades encre pessoas que se messiânica no curso da histúri:t \'isa a uma sofraçâo do p:i.-;sadu.
relacionam com outras do mesmo sexo; em Iwhoraí, um gr:mde ou seja, à sua citação. l rm passado reconhecido é, nen:ssaria-
município do Estado do Rio de Janeiro, homossexu;1is têm sido mente, um p;.tssado salvo do esquecimento. Logo. <l lxxtt\' kmhr.1.

276
: ~
e;

afgumi1s. \-e"Zõ. um g.ueto" :'\os Clit'\\G!06 ~lUirr06 e ro ptópn.:.o Je: wna. fruiçi.u passiva permitida pelas '<H.:1edadi:-., '.'1Jf\tf·my)·

d;1til;1.Je.
. o tecilo :soc:íiall ü.n'I>~ no irltci'ioli ili büuc~ mo ránt!l:LS> Há uma. :;emibílidade coletiva que ~ ·..,-e.,ta na : Yr1re ,. , n:e
está ~-d a ~"Ir uipo de tndí:lli<luo. lrra.u-se d,.; IJ:.ffi1 rrlo foi Jevidarnente reconht:cida. Traia·'><:' de lfrn e• Jn-,nrno ,fri..,
pro<luto~ <la sodt'<lade capitalista contcmrorf!nea. ma-, ;to me..,1w)
'l 1
~Jrtzaçiio 00.s hõer~ impoi5t:ls ftistafu::l.mltnre :i.s, r>::h1,:1)ies l'
entre OOme:ns. ou .stj".l,, taii:s rebções dir...-em se d.l! i::m espa<.;os 1i re.mpu sua i~~úo na prátka coletív~1. em que'> riimr> t'· rn:ii-:;
preciflos. e tr.m....~óri05. a fün de es<::.lfJU$ do proces1x) Je "igi- importante que o signi/kadode Ltma letra e t!m queª" :1w!odi:Vi
iln<i::l e contrcle m±nt:euupto sobre aquilo que n:lo- ê nonrul. :\o i.mpÕcill um.a certa deienvo1tura aos corpos (~ :too,; própriq~ ;1fi·10-;
enurn:o.. uI ~e tr.in.~oried:J.de re>•d.am Oti incerstii.:io.5 Os- corpos parecem ie coadunar numa prnvivlria w<..f·nna de
das próprias cidades conremporlne".J.S.. con_~íd::l.5 a partir J.: ditameS e....xtemos. Corpos e prazeres -;e '>poem ;1-; ,denrkbck'" ,.
principias de •isi:bilida<le e de c.lt:.iiogaçlo d.is anormalidide::; e aos controles cotidianos <las condutas. Dentro da hoate, ,•.,ramo<..
das contingências_ Nó enunro,. a boate mo pode ser reduzida também dentro de uma espécie de mícmm'olídade. ,·m que
à. sua condição de gueto_ Ela est:1 rekztin.1mente penndvd à alguns homens se referem aos seus :.imigos utilizando prnnrirne<..
arual.id.ade. nem que stja atra•-és da presença dos signos rruí::; femininos e em que brilhos exagerados nas c1mi-;:1.., "e refw~i-am
hegemônicos do in<..--entivo ao hedonismo coleti...-o e da comrru.ç:lo das cores hegemôníG.LS que mantêm a atmosfer:t pre\·ísí>cl ·::1
de indicudalidades-padrão, como aquda..s em que :l."5 pes...~)as Sê produção, da escolarização e do lazer aiiemido, Banharno-nr )<.. n'.l'
reLK.iorum com outras na tem:ati:va de submdê-1.as à comli<,;:lo músicas que tocam na hrn.J.le e ··nos movemos··. ··nos ~ac11dirnn..._··
de objeto (de consumo}_ Além d.isso, o próprio espaço di boate "descemos até o chào'', ''deixamos bem cfarr> o que t 1uererrv1" t·:n
gar:mre a elaboração de afetos concemporlneos, protegidos da nosso olhar" e consumimos a cerveja e 1> cigarro mesmo 1m 1,!11n-
claridade do dia e da funcíonaliillde dos espaços socíais. As tário que impregna nossas roupas e nossa lemhr:mca
minorias sexuais necessitam de espaços precários, em que possam A- textualidade da cidade conrempor:lne:i cit:1da di'.·<::T<ts
sobre\.iver ao jugo da aleatoriedade das horas incorpor.H..las à vezes não se resume aos elementos índiodos peb hoare. H;I
produção capitali._"tl e à normatizaç:io das condutas. ;\"a penúltima diversos signos espalhados pelo Rio de Janeiro comernrnrJncn
Passeata pelo Orgulho Gay, Lésbico e Transgênero, realizam no que revelam, Je acordo com a nossa percepcio. :iqui!n quic'
bairro de Copacabana, no ano de 2007, por exemplo, as imagens entendemos por experiênaa homossexual ma-;culin:i. Tntt-se de
mais consumíveis de famílias nucleares e casais de gays conví- uma produção coleciva, em que o contexto híst(>rico e e~r:11.i·,1l
vendo hannonicameme no asfalto das ruas de Copãcabana se fornece algumas condições importantes p;1r..1 que os índiYí(!i H1<..
chocavam com as práticas coletivas de intensificação dos pr.l.Zeres, se formulem como sujeitos de suas opçôesst>xuai-:. Es-:a c'fX'rit'nciJ
articuladas em lugares distantes do percurso da passeata. Atrás coloca em questão o caráter não individualizado de um:i pr:íri, :t. !:·1
de quiosques, no final da tarde e no decorrer da noite. grupos que remete ao lugar, a uma detennínada hora. a um ,lt·term1n:id1'
de pessoas se relacionavam sexualmente e se desYencilh.ivam momento histórico. Além disso, pem1ite a suspens:"io do jugn d.1
da sugestão de bom comportamento em voga no asfalto, durante história, como dissemos anteriormente.
o dia_ Grupos de policiais se silen<..iavam em frente a casais de
O conceito de experiência é fundamental para que enten-
rapazes mais ousados que descontavam a quantidade de vezes
! damos o itinerário do pensador Walter Benjamin e mesmo as
e de horas em que não podiam se beijar no bojo das tram:is
comuns de uma cidade_
' ~- contribuições do pensador Michel Foucault, especificamente
no que se refere ao tema da sexualidade. Nutrindo-se do legado
Tais imagens se ampliam na escuridão e no ritmo nervO&:l das kantiano, mas não se restringindo a ele, os autores citados
pistas de dança da boate pesquisada. A alegria da noite, rnbturada defendem uma concepção de experiência que amplia o sentido
ao cheiro de corpos perfumados e suados, não pode ser consi- do que entendemos por história. A crise da experiência nas
derada apenas uma expressão negativa da massificação das sociedades modernas - em que os indivíduos não conseguiam
próprias minorias e muico menos da concepção de que se tr.ita mais ligar sua própria vida ao patrimônio cultural - não impede

278
que percebamo...'> imagens de expenencia, como aquelas que Agora, resta afastarmo-nos, provisoriamente, daquílo que vimos
; dizem respeito às sexualidades periféricas. Experiência não é 0 na boate pesquLsada, a fim de permitir que o texto se refon:e
i' que garante um reencontro do sujeito que doa o sentido ao que como abrigo daquilo que passou. Mesmo passado, aquilo que
i
1 se realiza. Experiência, na acepção dos autores citados, é o que se findou recomeça na melodia dt' urna música, na cor de uma
I!
pennite um reconhecimento-desprendimento da própria história. roupa, na trama da cidade e nas páginas dos jornais de grande
1 1
Reconhecer o presente pem1ite um desprendimento em relação circulação. Esquecer o que se viveu é uma forma de acatar a
a ele mesmo. É o que afim1a Benjamin em sua reflexão sobre a imprevisibilidade, e lembrar é um modo de celebrar a inten-
ciência histórica: sidade, mais do que se apegar a uma identidade. MisturJmo-nos
aos outros na Praça Seca. Já é domingo e, numa das manchetes
Os acontecimentos que cercam o historiador, e dos quais ele do jornal, apresenta-se uma última estatística sobre a quantidade
mesmo participa, estarlo na base de sua apresentação como um de homossexuais a.'>.Sassinados no Brasil no ano passado. A cidade
texto escrito com tinta invisível. A história que ele submete ao não para. Passam os ônibus, e o ritmo da ooate se desfaz; que-
leitor constitui, por assim dizer, as citações desse texto, e somente
. ~ ;
remos, agora, pensar e pesquisar sobre a violência em relação às
elas se apresentam de uma maneira legível parn todos. Escrever
minorias sexuais no contexto do estado do Rio de Janeiro.
a história significa, portanto, citar a história. Ora, no conceito
de citação está implícito que o objeto histórico em questão seja
arrancado de seu contexto. 16
NOTAS
Arrancar o objeto de seu contexto significa citá-lo, buscando
uma fisionomia das épocas históricas. Mas tal fisionomia só 1
BENJAMIN, 1993a, P- 113.
se constrói através de um movimento de supressão da história
l Flanerie, neste contexto, se refere a uma forma de caminhar na cidade.
contínua. No texto, a atualidade se confronta, como imagem, ao atendo--se aos aspectos históricos e mesmo subjetivos que identificam uma
continuísmo e às concepções cronológicas do que se entende por determinada época. Obviamente que o sentido de j7ani>rie é superado
temporalidade histórica. Objetos arrancados de seu contexto na obra de Charles Baudelaire. O "andar atento - na cidade ensejou um
necessitam de uma interpretação renovada da história. Assim método nos estudos de Walter Benjamin sobre a modernidade. e o autor
' considera que Baudelaire lhe tenha fornecido a imagem mais forte de
,.[
j
também quando se produz um obstáculo a uma história que uma atenção sensível ao caráter de novidade e de tr.u1sit0Iiedade em
determina nossas ações e nossos sentimentos. No caso em ques- questão no século XIX.
tão, o que determina o reconhecimento dos indivíduos que se 3 BThJAMIN, 1993b.
relacionam com outros do mesmo sexo? Resta buscar não o reco- 4
nhecimento através de um trabalho de detetive, mas as trilhas do CLARK, 2004.
5
que permitiu uma outra ÍOffi1a de se relacionar com a vida e com CLARK, 2004, p. 318.
o tempo. A diluição de si na experiência possivelmente significa 6
FOUCAULT, 2004.
uma resistência ao nominalismo de alguns movimentos sociais
e do discurso científicizante. Portanto, as imagens sugeridas
l 7
FOUCAULT, 2004, p. 119-120.

não indicam uma representação ociosa da história em que a


experiência cotidiana ficaria totalmente diluída na temporali-
l,.
;~
8

9
FOUCAULT, 2004, p. 122.
CT.AR.K, 2004.
í
dade oficial. As imagens sugeridas indicam a tensão produzida
pelo confronto de existências cotidianas com o próprio tempo r
1.. ·
to BENJAMIN, 1993a.
11
AGAMBEN, 2005 .
histórico. O lazer que une as imagens permite urna distensão a
u Fonna de tempo inaugur,1da fnr.1 d:ts amarr.1:; d:1 çmnologia \·igt'IHt'.
quem viveu os momentos narrados e ao próprio nzlfrndor das
Trata-se do momento em que uma época passada t•ntr:t em con<'XJn com
imagens. o presente em que se t'bhora uma perspt~lfi\a sobre a hi:;!úri~1

280 281
1.1

11

1
~
BENJAMIN, 1993b, p. 35.
BENJAMIN, 1993a, p. 223.
BENJAMIN, 1993a, p. 2:·H.
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lll~iui;~ t- ~<m ~,;::z.-r..-;.'b ~.1 >.:::-.ir;:c>1..:ff!. ( •.t·itri1; Jm Jest:>i~1bilizar.
m 1i'.1rJ~~ m-.d. ~~f.d, f",t'A'TI"~:V.J~:>- ili:-> ;;;:;xualidadt•s.

282
sociais. O percurso que adotamos para apoiar essa posição inclui, mais complicada quando sabemos que a pesquisa no Brasil' tem
primeiramente, uma discussão sobre a relação entre identidades indicado que os próprios professores ou se mantêm em silêncio
de gênero e de sexualidade, o contexto educacional e a pesquisa no que se refere à homofobia ou frequentemente contribuem para
em sala de aula. A seguir, relacionamos ideias advindas do sua reprodução. Embora Moita Lopes (2002; 2006a e 2006bJ tenha
pensamento de Foucault, da Análise Crítica do Discurso, das investigado discursos escolares sobre gays, assim como sobre a
Teorias Queer e das Teorias de Posicionamentos, com o objetivo socioconstrução de identidades sociais homoerôticas e heteros- l 1

l
'1
1
de apresentar uma abordagem discursiva das identidades e das sexuais em contextos escolares e, na verdade, tenha avançado na
alteridades. direção de apresentar um modo de discursivamente desestahilízar,
l~
I'\a sequência, descrevemos parte de um projeto intervencio- em sala de aula, noções congeladas de sexualidade,6 sua pesquisa
'
nista em uma instítuiçào pública de ensino no Rio de Janeiro, na até agora não tinha se desenvolvido no sentido de promover
qual uma professora de História, uma pesquisadora e alunos de 5" mudança na sala de aula diretamente e, por conseguinte, não
série operam em conjunto na reflexão sohre a lógica essencialista tratava das dificuldades envolvidas em tal tarefa.
presente na cultura. No recorte proposto para o presente trabalho, Tal negligência parece advir do fato de que a sexualidade é
os participantes se encontram engajados no questionamento dos ainda um assunto tabu em contextos educacionais, nos quais
conceitos de masculinidade hegemônica e de homossexualidade, a discussão, particularmente sobre o homoerotismo, apresenta
pilares da ótica heteronom1ativa. Dados gerados etnograficamente grandes desafios. Essa perspectiva surge da cren~·a tradicional
possibilitam a análise de reposicionamentos coletivos. Ao concluir, de que o desejo homoerótico é anormal e não natural, leYando
refletimos sobre os ganhos da pesquisa. o homoerotismo a ser um assunto banido da maior pane dos
programas escolares e dos livros didáticos. Dessa fonna, apesar
do intenso debate contemporâneo sohre as mudanças que estão
IDENTIDADES DE SEXUALIDADES afetando as sexualidades em contextos diferentes <na mídia. na
NO CENÁRIO EDUCACIONAL internet etc.) e da inclusão oficial dessas questões no currirnlo,
como indicado acinla, as possibilidades múltiplas para as perfor-
Na arena educacional, é crescente o interesse pelo papel das mances de sexualidade tendem a ser temas silenciados nas
sexualidades no processo escolar tendo em vista os princípios agendas pedagógicas no Brasil. Entretanto, algumas pesquisas_
multiculturais que oficialmente informam currículos nacionais em têm mostrado que questões referentes às sexualidades penneiam
muitas partes do mundo. 3 Apesar do fato de tal interesse em identi- todo o processo educacional, sendo identifiGheis não somente
dades de sexualidade ser bem claro em teorias pós-estruturalisras, em múltiplas conversas paralelas em sala de aula, mas tambem
em pesquisas no contexto educacional e em estudos queer - 4 nas interações e nas relações sociais construídas pelos alunos em
iluminando a interseção de linguagem e cultura na construção das outros espaços escolares. Tal situa~'ào corn·ida os professores.
sexualidades e das alteridades em diferentes contextos -, pouco juntamente com pesquisadores acad(>micos. a imaginarem como
tem sido dito sobre a possibilidade de se desestruturarem visües as conversas sobre as sexualidades em contextos de letramenrns
sedimentadas das identidades nas práticas em sala ele aula, muito podem ser transformadas em ati\·idades pedagógicas rde\·:mtl'S e
menos ainda sobre ideias concebidas hegemonicamente sobre a em oportunidades de aprendizagem que enn>lYam o questiona-
sexualidade. Em relação a esse tópico, a situação ainda apresenta mento de ideias naturalizadas sobre a vida scóJI. '.\osso trabalho
problemas sérios para o campo da educação em geral, já que a é uma tentativa de contribuir par.i esse empn.:erKlimemu: conceber
escassez de investigações que focalizam diretamente questões e investigar a operacionalizaç~1o de tarefas educacionais de letrJ-
referentes ao homoerotismo não tem permitido o desenvolvi- mento, as quais, ao lidarem com o repertório de significado dos
mento de práticas pedagógicas e procedimentos que rematizem alunos e com crenç·as do senso comum. ohjeti,·am desesrabilízar.
as identidades ditas lésbicas e gays. Essa situação torna-se ainda em algum nível, ~·rct'N;ôt·s normalízJd:ts das x·xualidades

j 284

1
que não consideram os modos polimorfos de experimentar
A TEORIZAÇÃO PARA A AÇÃO PEDAGÓGICA
formas de vida social e de desejo.
É nossa crença que a implementação de transformações em Em vez de compreender os gêneros e os desejos sexuais de
contextos educacionais deve ser orientada por princípios teóricos modo essendalizado, com base na lógica hetcronormativa na
explícitos. Neste estudo, seguimos um arcabouço interdisciplinar ótica queer, eles são concebidos como múltiplos, dinâmic~s
e
em face da complexidade das questões envolvidas, associando contraditórios, não fazendo coincidir gênero e desejo sexual pelo
visões discursivas das sexualidades na linha de teorias queer e sexo oposto. Desnormatiza-se, assim, qualquer direção normativa
uma perspectiva do discurso e do letramento como práticas para a sexualidade. Não haveria, portanto, nenhuma essência do
sociais. Com base nas concepções dos chamados Novos Estudos gênero e da sexualidade nem tampouco um destino de gênero e
do Letramento, concebemos o letramento como uma miríade de sexualidade para quem quer que seja, o que não quer dizer,
práticas de construção de significado por meio das quais os por outro lado, que tais destinos não possam ser perseguidos,
participantes, conjuntamente, aprendem a abordar textos midiá- por motivos variados, como aqueles de natureza política -
ticos, entre outros, como artefatos culturais. evidenciados nos grupos de liberação homossexual.
As construções do gênero e da sexualidade que nos orientam
seriam dependentes dos discursos a que temos acesso em práticas
UMA VISÃO DISCURSIVA DAS SEXUALIDADES discursivas diferentes. 13 Além disso, a_<; identidades de gênero e de
sexualidade são apenas alguns dos fragmentos dos quais somos
t
A essencialização das sexualidades e dos gêneros tem sido feitos, os quais se entrecruzam com classes sociais, raças, etnias
. ~
típica de visões biológicas, que, a partir do século XIX, se dedi- etc. Como Weeks aponta,
caram a tomar os limites entre masculino e f eminino/heteros-
sexualidade e homossexualidade daros: 8 a anatomia determinava ( ...) cada um de nós vive com uma variedade de identidades
potencialmente contraditórias que se debatem dentro de nós
não somente perfom-iances específicas de gênero, 9 mas também
mesmos: como homens ou mulheres, negros ou hr.inca.'i, heteros-
práticas sexuais particulares como naturais, as quais neces-
sexuais ou gays [ou lésbicas], com deficiências físicas ou sem.
sariamente envolviam o desejo pelo sexo oposto. Tais visões
"britânicos" ou "europeus". 14
têm sido influentes na cristalização dos discursos em diferentes
!~ .:
instituições (na justiça, nas ciências e na educação, por exemplo) A lista é potencialmente infinita e dinâmica, acrescentaríamos.
no que se refere ao binário homem/mulher e à heterononnati- O foco na sexualidade, como é o caso nesta investigaç:io. é
vidade implícita em suas performances, ou seja, à "visào de que uma abstração neces..o:;ária para se operacionalizar uma pesquisa
a heterossexualidade institucionalizada constitui o padrão para específica ou uma ação político-pedagógica singular. já que a
arranjos sócio-sexuais legítimos e prescritivos" .10 sexualidade não existe independente de nossas perfonnance..-
A "matriz heterossexual", 11 consequentemente, é a norma '"·
., de gênero, raça, classe social etc.
compulsória em relação à qual todas as outras fonnas de dese- Portanto, seguindo teóricos queer, 1' compn:endemos que é
jos sexuais são consideradas anormais ou ilegítimas; ao mesmo crucial que aprendamos a resistir, em nossas pr:íticas discuP'i,·:is.
tempo, tal matriz define o que, de modo fundamental, os gêneros àreprodução de noções de masculinidade hq..(emúnita. kmini-
devem fazer no mundo social: desejar o sexo oposto. Essa compre- lidade enfatizada 16 e heterossexualidade nonnari\·a <:1ssim nmm
ensão indica, portanto, as imbricações entre os significa<los que homossexualidade essencializada) como fomus caregórkas dt.'
constroem os gêneros e as sexualidades. Não obstante, teorias
perfonnances de gênero e de desejo sexuaL l ·nu wz que d:is
pós-estruturalistas e queer 12 têm mostrado como conceitos dico-
nào e.xisrem <...'Orno fatos per se, mas sim como constn.i<,Ú.':> dixur-
tômicos de gênero e de sexualidade são construçôes discursivas
sivas e ficcionais às quais podemos aderir tr:.msitori:.lllk'nte. ns
modos por meio dos quais os gêneros, os desejos e os corpos 1J1UtlÔO.. O..°W tu.~ em '~~ fe''-~~ s.~ ..;c.11:·::: -~ ~"-::-, 1:-
sào vividos são muitos - de fato, continuamente experimenta- sk>,, se1lS ,-.akJres e ~ ~~~-....._,
mos uma dissonância entre açào e modos de ser culcuralnll'nte Tal ~~ t'L>en.i f"'..~~ i:t ;-,.·&;.,,;:.."-_;._-:~~.e~ ;"'..i.:".:-
sanciona<los. 17 cubres ;atí,l\'CS J:e u:f~tQ ~'\.'-~~, X-:::--:>,'(X'.i.:' i ~:.....;:-Cc:·_..._·:i.~
Ao colocar em xeque os sentidos historicamente normatizados ~ '~ rn.~ r.u··~.:~ e...:.\ ·::.,:..x: .._:,. :;::i;~..,_x-..r. .. '>.~
sobre os gêneros. e as sexualidades e ao desessencializá-los de f:uem. Poftanto. le\-:i..-n..,~ t."n1 .._._v.-._,:Jc-72,;i . .~ '-" ~-..:,, 0e .:,-''t' <'
fon11a detemlinante, a problematização que a teorização queer ,..,...,.
""'-'"'
_._•;~,.~~~:se
lW 1,1.2..:i~~~ - -
tt.'Cn;n...i:J.
-
.~v;, ,~.,,
..,_ __ .......:1_ ""...._
,.......,.,
...t_......,
......
~- ·- .....,.;,1
"'-~ ....... .:.._,~-'-~.i

·~.'
levanta nos convida a pensar sobre outros sentidos historicamente em fleb..'15- SOLiedl..ies. altll!k'nie tn~...:"~_;;:_~,_:. 0-.':..u;,,~1 ._x.
sedimentados, como, por exemplo, aqueles de natureza racista, bdo usos roonomochis da hn~..u~ L"'-""C" m:.:c~' :::...2L"7.1>..~1 .
1
que vêm definindo, atnrvés dos séculos, a ideia de rnça boa e ê patticulannerue e'\i.Jerue ('...l lT'-~ e rrr:-..::.'1 ~ ko\:.h.J..' ;'Ur".l .l
legítima. 18 Trnta-se, dessa fom1a, de uma teorização que tem o sab de aula como um.i d.is f1..irues .Ji:: ~:t="~:...-:1,5..:l:'- .:;~e 1."<-<t.'f',:.tm
potencial de questionar sentidos calcificados para além daqueles a lida contempor~.l. O ktr..L~<o rr.~..:;.,.r.i-.:n e. p_'f"wm,,_ um
referentes aos gêneros e às sexualidades, com ganhos epistêmicos e tipo autill de~ cm no:..~~~ rct:""~~ ..k r::;.:.'::.1..:."tr..L"~-1'.r::.:~
éticos evidentes: se, por um lado, chama a atenção para a natureza e é cert:llllC1lle re:;;:pons.Jsd pek<5 intct"!.exrL"...... e ~~·r:..Th" 1.k
fabric-.ida dos discursos sob os quais vivemos, por outro, nos significados que os :tlunos cr.izem JX.ir.l .i5 :rr..i.L>...":.L' ~-l'LlR~ ~­
possibilita localizar os interesses que balizam a trama de todos Esses significldos preci"11I1 SC"r ex.irr1iiuj,_-.s e ...\:tl.it::..1:~ r1.1. s..li.1.
os significados que nos orientam cotidianamente. de aula, de modo que os alunos X" h.~ l.."1..'!L'<..'k~m6 ,_k :'W
natureza fabricada. Somos di opini.iü Jc- q<..'<:'. ;w r ..m:n.:1r..m:·m
de tais di_'CUSSÕe5_ os alunos poJem :J.?ft'"D<.kr .l '.'<:' R:'f•(l-.i..."l('fl.if
DISCURSO E LETRAMENTO sobre as sexualidades e os genen.~. :.
COMO PRÁTICAS SOCWS Seguindo uma pe~pet.."tú·a foucmltiln..l. en-1t.•iJur.inl..:\'. o U'-..1
da linguagem como esundv s.emprt:' .ltrt'L!Jo J. n."l.b 1.i1:.· 1.Y•nh~:­
A visão de que os gêneros e as sexualidades são construídos cimento e saber sócio-hi."'loffi.":Lrnenre 5ÍnLh.iJs ...x Enirt'tJm,_,_ (\.'
no discurso implica que o discurso tenha uma natureza constí- signif!Cldos nelas produzíJos s.lo cominu.iffk.'nre rt·,:onrextu.1-
tutiva, conforme tem sido argumentado em algumas tradições lizados nas interações cotidilrus. O u.--0 .b lin~u.l~t'm cm\)h.: .
da Análise Crítica do Discurso. 19 A pressuposição subjacente é por um lado, signifi1.."3.dos com·enciün.tlíz:iJcis Je naturt:z_1
de que, quando usamos a linguagem, não estamos simplesmente macro-histórico-social. e. por outm. signific:1do...- de n:mm·z.1
1 representando o mundo social, mas também estamos, acima de
tudo, agindo nele, produzindo-o ou modificando-o, ao fazer
micro-sócio-hisróric-a que s:lo kx'3.lmeme ( re kLmsrmíd1.'S 1us
práticas discursr.·as. É a interface <ln.'-C'S Jüis tifX\.' Je si~nítk.1<.h'
1 coisas para ou com as pessoas por meio da linguagem. O que dá conta dos posiciorumenros ink'r.Kínn:li5 que.' LKllp:mK\.->
discurso é, portanto, uma prática social que leva à construção no uso da linguagem:~ Os posit.ion:i.memo.-> :>.:.1o ddlnkh-> ;1qui
e à atribuição de significado à experiência e aos arores sociais com base na tradição d:i psicolo~ü S<.'l<jJL~- qut' et'nsidt.·ra amtx~
por meio dos posicionamentos interacionais que eles ocupam os tipos de signilic-.ado por meio do,..; quais os p.mi1.:ip:tnt6 x'
no uso da lin~'llagem. 20 Tal perspectiva aborda o discurso como localizam na inceraç-Jo discursi\·a. É a an.ili'.'<:' dt.• fX)."iúun;imelllü"
siruado sócio-interacionalmente. Quando nos engajamos no ínteracionais que possibilira compreender como ()." parti<..·irunrt's
discurso, estamos localizados em uma prática discursiva particular COnstituem uns aos outro." nas pr:uic1,.; di:'l'Uf'.'.i\·;i5_ nm1 b:ix· t.'!11
na produção e na interpretação dos significados - um processo significados conn·ncion:díz:.KIL)S S<x·i(l-his!L)ric:1nwnre. t' c1.Hfa)
influenciado por nossos interlocutores e pelos contextos que novos posídonamentos ink·r.icíonaís pudt.'!ll negnôar si~nific:J1.h'
contínua e localmente construímos. O discurso é, dessa forma, nm·os OU altematÍ\"Os:. :\o CllrHt.':\.!O no qu.iJ 1:.'5U fX'~llÍ5:.l fni
sempre interessado, já que usamos a linguagem para agir no conduzid'l, as pr.itic1.s d1scursí\as S:10 pr.ític:t" lk ktr:imt·nto
nas quais os alunos estão aprendendo a desafiar visões fixas e OS DESAFIOS:
normalizadas das sexualidades e dos gêneros. CONTEXTO E METODOLOGIA
Essa abordagem, diferentemente de visões autônomas de
Jetramento - 28 que compreendem o letr.imento em termos de A escola onde nossos dados foram gerados, kKa!izada em
oompetêndas e habilidades - 29 está relacionada a concepções um bairro com grande índice populacional na cidade <lo Hio de
ideológirns que veem os letramentos como práticas sociais nas Janeiro, oferece todos os níveis educacionais: <lo jardim <le infân-
quais os participantes estão aprendendo tanto o que conta como cia, ao ensino fundamental e médio. A instituição tem cerca c.le
Ietramento em contextos diferentes (por exemplo, o que conta dois mil alunos de classe média, classe média baixa e c.le classe
como letramento na escola não é necessariamente o mesmo que trabalhadora. A escola é constituída por dois ec.lifícios grandes
conta na família, na igreja, no tr.ibalho etc.), quanto visões do com laboratórios de computação, de vkleo e de ciências, além
mundo social, de si mesmo e dos outros. Por conseguinte, alguns de um ginásio e um campo de futebol.
autores30 abordam o letramento como um conjunto de práticas
Nossa ideia, ao contatar Lívia/2 uma das profe:-;soras de Hi.'>tóría
discursivas (nas formas orais, escritas e visuais, por exemplo)
da escola, foi motivada pelo fato de que a conhecíamos bem -
associadas a visões particulares do mundo e a crenças e valores
anteriormente uma de suas turmas tinha sido investigada por um
- um processo intrinsec.imente relacionado às identidades sociais
de nós.33 Como ela parecia estar aberta a novas ideias e não tinha
ou ao sentido de si mesmo das pessoas que participam de tais
se importado com a gravação de suas aulas em áudio e víc.leo
práticas. Consequentemente, uma mudança nas práticas discur-
anteriormente, estávamos seguros de que aceitaria tomar parte
sivas impacta, de alguma forma, as práticas identitárias.
em nossa pesquisa sobre a possibilidade de desestabilização de
Essa ótica implica que as práticas de letramento são práticas ideias tradicionais de gêneros e sexualidades em sala de aula. '.\ão
discursivas envolvendo qualquer tipo de conversa sobre texto, 31 estávamos errados. Ela não só ficou entusiasmacfa com a pesqui-
:~ .·
nas quais, à medida que os participantes coconstroem o signi- sa, mas também considerou que a proposta era bem adequada
ficado, posicionam-se interacionalmente tanto uns vis-à-vis aos à ideia central do projeto por ela coordenado para as turmas de
outros, quanto em relação ao que está sendo dito e discutido.
5ª série, intitulado "Os outros". Llvia, que além de ser professorn
Nesse processo, constroem suas identidades sociais ou podem
era a coordenadora do setor de História da escola, sugeriu esse
ser levados a redescrevê-las. Nossa posição é de que, ao intervir
tópico porque desejava que os alunos desenvolvessem uma aütude
nas práticas escolares de letramento, podemos colabornr com
mais positiva em relação às alteridades, já que manifestaçôes
tais possíveis redescrições, uma vez que os reposicionamentos
racistas e sexistas eram frequentes entre os alunos da escola. Tal
são gerados coletivamente na interação - processo intersubjetivo
temática também era focalizada no novo livro didático, adotado
que, conforme mostraremos abaixo, pode 1) ser in'.ciado. ~or
pela equipe no ano em que a pesquisa foi realizada, o qual discutia,
artifícios pedagógicos, com o objetivo de desnaturalizar v1soes
em suas primeiras unidades, a organização dos jovens em relaçào
J i
essencializadas das identidades sociais e 2) ganhar visibilidade
à diversidade e à diferença.
'.,/ por meio da análise dos posicionamentos interacionais nessas
práticas. Antes de proceder, porém, à explicação dos passos No entanto, emoora a professora tenha imediatamente ahrJçado
seguidos na intervenção em sala de aula, é necessário descrever a ideia de colaborar na pesquisa, ela nos advertiu em relação a
os desafios que enfrentamos. vários aspectos institucionais que funcionariam como obstáculos
à implementação do projeto. Primeirnmente, atê aquele momento,
a escola vinha opernndo com abordagens metodológicas tradi-
-~.
cionais de transmissào de conteúdo, muito dikrentes da qut·
-~ '.
iríamos implemencar. Ela também apontou que o próprio petfil
dos alunos de s· série ~•presentava Jificulc.lades específicas no
1
l
290 291
l.l
~
"Os outros" eram muito cuidadosos no que se referia ao tema da
contexto educacional brasileiro. Além de serem bem jovens
sexualidade. As palavras de uma professora de ciências (registradas
(na faixa etária entre 10 e 12 anos), os alunos, ao entrarem
em nossas notas de campo), quando foi ínformada sobre 0
nessa série, se defrontam com um mundo toralmente novo.
trabalho que a professora de História estava realizando em sala de
São confrontados com mud<.mÇ'.aS radicais no que se refere à
aula, explicita as posições tradicionais a respeito da topicalízacão
organização curricular, ao número de professores, aos modos
da sexualidade nos contextos escolares: "O que você está faze~do
de se conduzir a inter.ação em sala de aula, à carga ele trabalho,
é bastante perigoso porque você corre o risco deles pensarem
ao número de disciplinas, a novas demandas cognitivas, aos
que é normal [a homossexualidade] e acharem que tudo bem"
procedimentos pedagógicos e às expectativas em relação às suas
(professora de Ciências, 28 anos, comentando o tralxtlho que a
aç"àes. Portanto, é um período no qual o processo de aprendizagem
professora de História estava desenvolvendo com alunos de 5"
envolve uma grande quantidade de informação e práticas novas.
série, durante uma reunião pedagógica).
Nos...<>a pesquisa anterio04 mostrou que, em tal contexto, não é
incomum encontrar alunos que continuamente movimentem-se Apesar das dificuldades acima mencionadas, os pesquisadores
por dois territórios: um mais infantil - no qual tratam a professora e a professora decidiram enfrentar os desafios em jogo. Assim,
de tia e mantém práticas do primeiro segmento educacional, tais depois que Lívía obteve a permissão da diretora da escola parJ
como colorir o livro didático - e um outro mais maduro -, no realizar a pesquisa, os três participantes planejaram ações peda-
qual os alunos agem com maior autonomia. gógicas para todo o ano letivo, o que incluiu decisões não só
em relação ao conteúdo curricular, mas também em relação às
Um outro elemento que torna o foco da pesquisa em tela mais
complexo é o fato de muitos alunos e professores da escola serem atividades de sala de aula, à metodologia utilizada e à inte~açào,
evangélicos, um ramo do cristianismo que floresceu rapidamente como sinalizam os seguintes procedimentos pecbgógicos '>~igemes
no Brasil. Esse aspecto constituiu um problema crucial em nossa durante toda a intervenção:
pesquisa, já que evangélicos, assim como outras denominações
1) reformulação do conteúdo das disciplinas da grade
religiosas, costumam operar com visões essencializadas dos
curricular, abrindo espaço para temas e discussões sobre
gêneros, tendo uma atitude negativa em relação ao homoero-
linguagem, cultura, sexualidade, gênero, raça, etnia, idade,
tismo. A perspectiva do supervisor técnico de laboratório, que
padrões de beleza etc. - temas que fordm articulados, de
é evangélico e que auxiliava a professora e a pesquisadora com
alguma forma, no currículo oficial;
aspectos técnicos (instalação do retroprojetor, da câmera de vídeo
etc.), pode ajudar a compreender pane das crenças em jogo nas 2) historicizaçào desses conceitos, constrnindo a percef)\.<lo
aulas gravadas: tanto de sua procedência sociocultutral e histórica rnmo
de sua polissemia;
A minha preocupação maior é preservar a natureza humana 3) introdução dos temas para discuss~1o a partir de uma
(...) Eu não posso dizer que os homossexuais são pessoas do
variedade de textos e imagens da mídia em geral (revistas,
demônio. Afinal <le contas, Deus morreu por eles também. Mas
internet, jornais, gibis, televisão etc.), com potencial de
eu considero o homossexualismo um mal, eu já te disse por quê,
Porque muda a função <los órgãos sexuais que Deus criou com
desestabilizaç-ào de conceitos essencializados:
um objetivo específico(...) O homossexualismo é um equívoco. A 4) utilização de tipologia textual Yariad<• (artigos de jomaL
única maneira que nós temos <le ajudar eles [os alunos] é mostrar histórias em quadrinhos, a11igos de re\·ista. hipertextos .._,te.),
a eles o gr,in<lc erro (Supervisor <lo laboratório, em entrevísta a para expor os alunos a diferentes fom1as de consrrnç:Jo de
um dos pesquísa<lores). sentido e de possibilidades de a~·ào semiótica:
\.

5) estímulo à comp~tr;1~·;1o de textos que construíss...·m os


Um último fator complicador era o fato de que os outros
fenômenos sodais focalindos de mam:ir:.i diferçnciada
professores da 53 séríe que tomamm parte do projeto pedagógico

292
e incentivo à pesquisa de textos culturais sobre os temas solidificadas sobre sexualidade e gênero fazem pane <le um
em delxlte; repertório de ideias naturalizadas sobre a vida social em geral,
6) desenvolvimento de consciência crítica da linguagem, jS que discrimina padrões de normalidade e desvio em relação a
estimulando os alunos a localizarem os textos no mundo um conjunto amplo de identidades. Por isso, não faz sentido
social, observarem sua composição léxico-gramatical e ima- trabalhar com a perspectiva da desestabilização de abordagens
gética e refletirem sobre os efeitos de sentidos das escolhas essencialistas de fonna aditiva, restrita a temas específicos (como
feitas no processo de tessitura dos textos; sexualidade) e a certos momentos da açJ.o pedagógíca, sob 0 risco
de criar obstáculos às visões que se quer inaugurar. Estereótipos
7) negociação de novas regras interacionais junto aos alunos:
de sexuaHdade obedecem a um mesmo paradigma fundacional,
desenvolvimento de metaconhecimento sobre a comuni-
que compreende os fenômenos sociais de linguagem, identida-
caçJ.o; desenvolvimento de estrntégias de envolvimento
de, cultura, gênero, raça, etnia, religião etc. como sendo unos,
e de ação cooperntiva; desenvolvimento da escuta alerta
isomórficos e universais, independentes dos atores e contextos
do outro; desenvolvimento do hábito de trabalhar com
que os produzem.
diferentes arranjos espaciais e interacionais (em pares,
em pequenos grupos, em grupos maiores, em forma de Com base nessa perspectiva, o estudo, de caráter etnográfico-
conferência etc. Tais procedimentos, que constituem uma ·intervencionista-colaborativo, foi desenvolvido ao longo de todo
agenda paralela - mas não menos importante - visam ao o ano letivo de 2005 na instituição foc-alizada. Além de em·olver
desenvolvimento, junto aos alunos, de "olhar para a plurali- 1) a observação participante de uma tunna específica (composta
dade de vozes e perspectivas em jogo, responsabilidade por de 17 meninas e 13 meninos); 2) a frequência a reuniões peda-
suas ações discursivas, envolvimento no debate permanente gógicas; 3) sessões de discussão com a professora; e 4) decisões
de ideias, construção de diálogo com a diferença e prática conjuntas acerca da utilização/elaboração de material didático e
de troca intercultural" ,36 sendo condições essenciais para a procedimentos metodológicos; também pautou-se em grJvações
reconfigurnção da sala de aula como espaço de diálogo, de em áudio e ,.-ídeo, notas de campo e entre\·istas. A im·estigação
reflexão critica sobre as práticas discursivas vigentes; produziu grande quantidade de dados, mas, para fins do pre-
8) atuação cooperativa em sala de aula de um dos pesquisa·
sente trabalho, focalizamos apenas o material relativo às nO\·e
dores (que anteriormente já havia observado e gravado as aulas consecutivas (rotai de 10 horas de gr.n-ação e 20 hords de
aulas de Lívia durante duas semanas), com salvo conduto observação) que inauguraram o ano letivo e tratam do tema da
para tomar a palavra e interagir com os alunos e colaborar sexualidade.
na problematização de sentidos cristalizados. A motivação para o início do trabalho, com base em um
tema tabu, advém da nossa compreensão de ser a sexualidade, ou
Norteando o conjunto dessas estratégias, encontra-se a neces- melhor dizendo, a lógica da heteronormatividade, crucial no
sidade de redescrição da lógica escolar vigente, em direção a: 1) modo como historicamente aprendemos a nos definir uns em
maximização do contato com a alteridade e com a possibilidade de relação aos outros, mm base em padn1t:s de pureZ3 e de ideais de
atribuição de significados plurais para as experiências sociais e reprodução - acarretando a produção da ideia de de~io legítimo
2) melhor organização quanto às diferenças, problematizando a e ilegítimo. Crenças em noções de naturez.a biológica, impulso
grnmática usual implicada nos estereótipos, nos estigmas e nos e instinto (normais ou pervertidos), que decretam a anomalia.
processos de discriminação. Nosso juízo é que desenvolver desordem e subaltemidade do outro desYiante, subjazem tinto
uma atitude questionadora e reflexiva quanto à percepção essen- a visões raci~'tas como a sexisr~ts e homofóbicas. 3- Por cal raz:1o.
cialízada das sexualidades e dos gêneros - objetivo precípuo cremos que um progr.ima de ensino voltado para a ourridade rem
do presente capítulo - não pode ser um movimento descolado muito a ganhar ao já começar centrado no tema da sexualidade,
da totalidade da lógica orientadora da sala de aula. Percepçôes entendida, na tradi\,~O. como a sede da es.-;[·ncia de nosso St:r.

294 _>9.:;
Dar inído ao projeto com a problematização do que é conside- jocosa, o que se comprovou. O entusiasmo e a ansíedade dos
rado o cerne de nossa identídade pode facilitar o caminho para estudantes em participar ativamente trouxeram, a princípío, uma
o abalo de outras crenças socioculturalmente solidificadas acerca série de dificuldades interacionais, frequentemente pro<lu:>:indo
de quem somos. muito barulho e ruído. A professora contornava a situação elevando
Cabe lembrar que a ideia norteadora dos procedimentos acima o tom de voz, retomando o controle da participação dos alunos
se afasta da perspectiva da simples aceitação ou tolerância da e constantemente redirecionando a atenção dos mesmos para
diferença, já que, com base nos princípios da teorização queer, se o tema centra) da aula. Tais aspcc.1os levaram os pesquisadores a
deseja questionar a lógica da heteronormatividade, não havendo adotarem determinadas convenções de transcríçâ()-.il (como, rx)r
lug'J.r, portanto, parn a ideia de tolerância fundada na legitimidade exemplo, tom de voz, engatamentos, sobrerx>síções, pausas e
da norma heterossexual. Ao contrário, as estratégias propostas sinalizações não veibaL'i) que pudessem captar a dinâmica c<irJc1e-
visam conduzir jovens alunos aos primeiros passos em direção ao rística dessas aulas.
exame dos processos de nomeação, construção, classificação e
hierarquização das diferenças, bem como dos modos pelos quais
certas características físicas, comportamentais e socioculturais DISCURSOS EM AÇÃO:
passam a defini-las. Além disso, elas têm por objetivo familiarizar A CRIAÇÃO ARTESANAL DE MUNDOS SOCWS
alunos de 10 a 12 anos com a ideia de que as sexualidades e os
gêneros são produzidos em nossas práticas discursivas, tendo A partir do objetivo precípuo do estudo em tela - que é a
uma natureza fluida - na verdade, trata-se de uma tentativa de explornção da possibilidade de questionamento, desafio ou, até
engajar crianças em uma prática problematizadora dos efeitos e mesmo, fratura de identidades sociais percebidas como estáveis
embates de sentido implicados em nossas escolhas semióticas -, encontramos no conceito de posícionamento de Davies; Harré
diárias e na forma como usamos a linguagem. (1999) um construto teórico pertinente à análise da mucbnça de
posição dos participantes da pesquisa.
As próximas sessões concentrnm-se, a&<;im, no processo dis-
AS AULAS
cursivo colaborntivo, no qual se engajam a professora, a pesqui-
sadora (P) e os alunos. Argumentamos que, ã medida que os
Como apontado anteriormente, as nove aulas registradas
posicionamentos dos alunos são redefinidos na interaç:1o, norns
em áudio e vídeo se desenvolveram em tomo de materiais e
procedimentos metodológicos elaborados pelos pesquisadores
compreensões e significados são negociados, pemlitindo variados
níveis de movimentação local de regimes de verdade. que, embora
em colabornção com Lívia. Fez parte desse trabalho cooperativo
inicial a preparação de um conjunto de atividades reflexivas sohre discretos, apontam para a dinâmica implicada na fricção de
ideias naturalizadas de sexualidades. discursos referentes ao par tradiçào/inovaçào. Voltemo-nos,
então, para as ações discursivas intersubjerh·as propiciad:1s pelo
Todas as aulas foram encaminhadas colaborativamente, ten-
processo de intervenção colabomtiva descrica anteriormente. O
do Lívia e um dos pesquisadores se alternado na condução das
material analisado mostra interações ocorridas em três momentos
atividades. A professora decidiu que, pelo menos nas primeiras
distintos da intervenção, todos contendo, em algum gr.ilL deses-
aulas, a interação deveria ser mais controlada, já que os alunos
tabilizações localmenre produzidas.
não estavam habituados à prática de debates em grupo, sobretudo
nas primeiras aulas da 5" série. Ela também sugeriu que um dos
A DEFESA DA HETERONOR\li\.1l\1DADE
pesquisadores guiasse as discussões e organizasse o sistema de
troca de turnos de forma didática, tornando-a gradualmente mais O excerto abaixo se refere a um:I conversa na sala de ~ll!la
dinâmica, já que sua expectativa era a de que os alunos falariam travada entre a professor.i, a pesquisadora e os alunos da runn:i..
todos ao mesmo tempo e tratariam o tema focalizado de maneira O diálogo acontece depois de os alunos terem n:1o só lido uma
mensagem de e-mail intitulada "Coisas de bichinha",.w mas
o fato de os alunos falarem ao mesmo tempo opera, a prin-
t<tmbém conversado sobre ela, tentando localizá-ia no munuo cípio, como um obstáculo à comunicação, embora sinalize a
social através de perguntas (por exemplo: Quem escreveu o texto? sua ânsia em participar e expressar suas ideias (JJnbas 05 a 08).
Onde foi publicado? Quem é o leitor-alvo?). Assim que eles tenni- Apesar dessas dificuldades - que motivaram a professora a utilizar
nam de preencher a tabela Coisas de heterossexual X coisas de estratégias de comunicação como ênfase, aumento do volume
homossexual, a pesquisadora toma a palavra e pergunta se eles
concordam com o conteúdo dualista da tabela:
da voz e marcadores discursivos (linhas 09 a 13) na tentativa de
organizar a interação -, Lívia e P insistem em engajar o grupo
no processo de reposicionamento, como pode ser ohservado na
.
'
continuação da sequência acima, quando convidam os alunos a
Tabela 1
refletir sobre rótulos.
01 P: Vocês concordam com isso aqui? Sim ou não?
02 Alunos: s·lffi.' Tabela 2
03 Professora: Então toda pessoa que tem gato é gay?
CP e professora se alternam, incro<luzin<lo o conceito <le
[
rótulo)
04 P: Todo mundo oue tem ~ato é Ray?
15 P: O rótulo é uma lista de íngre<líemes=
05 Alunos: Não!
-com tudo que tem-
16 Professora:
(falando ao mesmo tempo) 17 P: =que sempre vão estar lá, tá!=
[ 18 Professora: -~ as substâncias, tudo que tem. Agor.i, isso eo
06 Oh professora! Ele gosta de estudar aqui oh, mas não 19 remédio=
é bicha. 20 P: .. quan<lo a gente pega essa mesma lógica e aplica ao
[ 21 ser humano-
22 Professora: -às ~ssoas=
07 Você gosta de estudar, mas não é gay. -... ,:

23 P: =às pessoas, a gence começa a ter complica~·ao. Porque.


[
24 olha aqui- vocês acham que isso é um rótulo (apontando
08 É gay.
25 a tabela na apostila)? Imaginem se isso viesse l:L.
09 Professora: Gente! Atenção. Olha aqui! Ele levantou a ques[ão de 26
10 que ele é gay. Então, um minutinho. Antes de a gente
t1 Professora: TODO GAY E A.'i')l\L dois pontus. ~de, como é que é'
11 continuar aqui, primeiro o seguinte, TÁ muito tumulto!
28 Vamos lá!
12 A gente precisa fechar essas questões de uma forma
lj P: Gosta de g.no=
13 mais organizada.
14 Carlos: Tia, eu tenho cachorro. 30 Professora: =gosta de gato, pede meia porção. é cheio de fre:->cura =
31 Robe no: -não fica toda hor.i vendo mulher pelada
Inicialmente (linha 02), os alunos se posicionam em acordo 32 Alunos: (riem e falam ao mesmo tempo)
com as descrições estereotipadas de heterossexuais e homos- [
sexuais presentes na tabela. À medida que professor.! e P estimulam 33 Francisco: Eu vejo mulher pelada.
os alunos a construírem posturas mais reflexivas (linhas 03 e 04),
alguns alunos são levados a um reposícionamento (linha 05), Conduzindo um dueto, os dois profissionais se altt·mam no
começando a problematizar as identidades fixas em jogo (linhas questionamento do processo de rorulaç:1o implic1do na dico-
06 e 07); outros, entretanto, oscilam entre ratificar essas identi- tomia criada pela tabela <lo exercício (linhas l ") a .){)). Suas falas
dades (como o aluno na línha 08) ou se apressam em assegurar engatadas sugerem um ritmo que parece com·idar os alunos
sua masculinidade, como faz Carlos (linha 14). a, gradualmente, panil'iparem do rmwinwnto problematiz~idor
298
(linha 31), Como o gmpo ainda ni'lo havia negociado regras de o dueto (linhas 15 a 30 e 34 a 40), levando os alunos a
participação, frequentemente a interação tende a ficar bastante elaborar suas contribuiçôes, deflagra novos posicionamt:ntos à
tumultuada (linha 32), apesar de sua dinamicidade. Embora esse medida que alguns alunos percebem a inadequação do uso de
aspecto traga dificuldades para a compreensão ele todas as rórulos para descrever sexualidades (linha 38) e que outros -
contribuições dos alunos, fomos capazes de localizar um movi- como fr.:1.ncisco (linha 44) e João (linha 54) atx>rdam de maneira
mento recorrente nas primeiras aulas observadas: o fato de alguns mais crítica a visão essencialista presente no texto e no exercício.
alunos, como Francisco (linha 33), se empenharem em afim1ar Esse tímido movimento de desestabilização não é consensual, ''
seu pertencimento ao universo masculino, posicionando-se em contudo. Enquanto os dois meninos são capazes de perceber
consonância com a ideia de masculinidade hegemônica. as inconsistências presentes na proposta dualista heterossexual
Entretanto, ao serem estimulados a desenvolver urna postura x homossexual, a única coisa em que Carlos consegue pensar é
mais reflexiva, os alunos, em conjunto, redefinem a dinâmica dos defender e sublinhar sua posição de macho (línhas 41-42).
posicionamentos oonstniída: Por conseguinte, o aspecto relevante dessas primeirns sequências
é que, ao participarem de um evento de letramento, conversando
sobre textos, os alunos estão aprendendo sobre sexualidades e
Tabela 3
gêneros de formas diversas. Alguns reificam a heteronorma-
34 P: Mas olha só, a pergunta é, a gente pode dizer que TODO tividade; outros já começam a desenvolver uma postura maís
35 comportamento ... reflexiva em relação à ideia de identidades essencializ~1Jas. Em
[ qualquer um dos casos, é importante sublinhar que esses movi-
36 Professora: que todo mundo é assim?- mento.5 são discursivos e envolvem uma rede de significados. que
37 P: •que TODO mundo é assim? orientam os atores sociais em seus posicionamentos. Se parrim1os
38 Alunos: Não. do princípio de que essa trama é flexh·el e modulável, ela pode
39 P: Tem gato ... gay. Tem cachorro ... isso é um ser reconfigurada por nossas práticas linguísticas.
40 rótulo. A análise dos próximos excertos mostra como o discurso JX><le
41 [ ser um lócus de mudança.
42 Carlos: Eu tenho cachorro.
43 Alunos: (falam ao mesmo tempo) DESALOJA.NDO O CONCEITO DE
(...)
SEXUALIDADES HEG EMÔT\i1CAS
(dirigindo-se a P, que estava perto dele)
A interação abaixo ocorre durante a aula quatro. imediata-
44 Francisco: Oh professora, eu tenho quase 30 revistas Playboy e não fico
45 vendo toda hora.
mente após os alunos terem analisado um conjunto de textos
imagéticos retratando diferentes tipos de homossexuais e hetems-
46 Professora: Então olha só! Gente, nós estamos nos dispersando. Temos
sexuais. O objetivo da arh·idade era promover um dt.:bare sobre
47 aqui um trnbalho pra dar continuidade. Aí, continuando. Se, na
estereótipos e a sua incapacidade de abarcar a mulriplíddade
48 verdade, ela tá dizendo, dando o rótulo TODO gay é assim ...
~· de mexias de ser. A estratégia utilizada consistia em propor que
49 quem não é gay tem que ser assado, Nào é, a brincadeir~1 do
1\ assim e assado. Então, TODO heterossexual NÀO GOSTA de
os alunos cornpar.:1.ssem as ideias estereotipadas construídas nn
! 50
texto discutido nas aulas <tnteriores (··ü}ÍS~l:-> Je bichinha-> com
i 51 estudar ou arrumar a casa. Vem cá?
a pluralidade de formas de vida presente na~ imagen:-; mostr:idas
52
no recroprojetor.
53
54 João: Eu gosto de estudar.
-~

-~'

.............................--.-_.. .. -. .slt....--
Tabela 5
Tabela 4
P; Mas também não se encaixa aqui (apontando para a
01 P: Professora, deixa só eu fazer uma pergunta. Se a 20
caixa coL'ias de homossexual).
02 geme volmr nesse quadro aqui (aponta pam o quadro
21 Alunos: (falam ao mesmo tempo)
03 na apostila: coisas de heterossexual), esses todos
(apontando p-dra a tabela Coisas de ht.'terossexual X
04 são homens (aponta par.a a imagem dos homens de
• 1
coisas de homossexual)
os saias na transparência). Eles se encaixam aqui (volta
22 P: fDti!Q. Qlha só a QS'.rifl.1.1nta Q.r>! g~ms: f!i~har. Se s;n~ªi~
06 a apontar para o quadro na apostila: coisas de hele-
07 rosscxual), em algum desses dois quadros? 23 ag,yi rn;s~ róty!Q gs; gay?
08 24 Alunos: NÃO
09 Alunos: Nào! 25 P: Se encaixa aqui nesse rótulo Je heterossexual?
[ [
10 Encaixa! 26 Alunos: NÃO
11 P: Aonde?• l'1 P: Então, qual é a conclusão que a gente pode tirar disso
12 Professora: Aonde?• 28 tudo com relação à diferença? Primeiro, somos todos
13 Maria: Aqui no heterossexual. 29 iguais ou somos todos diferentes?

14 P: Encaixa no heterossexual? Usa saia, põe brinquinho, 30 Alunos: Todos diferentes!


15 usa calcinha. [
[ 31 Somos todos diferentes!
16 Professora: usa saia, põe brinco, usa calcinha, usa maquiagem 32 P: Então algum rQru1Q fica de pé? Alguma receita de
17 33 remédio, quando a gente aplica ao comportamento
[ 34 humano, fica de pé ... ou cai por tem?
18 Cláudio: Usar saia até tudo bem, mas usar calcinha é demais! 35 Alguns alunos:
19 Cai por terra.
36 P: Cai por terra. né? Por enquamo. a condu5ào é essa.
Cooperativamente, P e a professora continuam a incentivar
os alunos a problematizarem os birrarismos homossexual/hete- As respostas em coro nas linhas 24, 26, 30, 31 e 35 sinalizam
rossexual e masculino/feminino (linhas 1 a 8, 11 a 12, 14 a 17). a performance coletiva de posicionamentos mais 1...!Íticos, abrindo
Fica claro que os posicionamentos dos alunos oscilam entre o espaço para um processo reflexivo no qual os alunos elalx)rJ.m
questionamento dessas etiquetas (linha 09) e a sua reificaçào uma série de contraexemplos empíricos que abalam o equilíbrio
(linhas 10 e 13), confrontando-se com possíveis vazamentos semântico dos ré>tulos com os quais vinham trJ.balhando:
entre os domínios da feminilidade e masculinidade, cujos limites
aprenderam socioculturalmente a delinear de forma rígida. O . ~-·

comentário de Cláudio nas linhas 18 a 19 parece apontar nessa


direção quando o menino expõe o seu desconforto em face da
fricção de novos discursos contra conceitos naturalizados.
Paulatinamente, no entanto, essa ideia de desconforto é
mitigada e redefinida à medida que os alunos, respondenúo
l colaborativamente ao posicionamento desafiador da professora
1
e de P, se reposicionam:

302 .30.3

Tabela 6 Enquanto os alunos tr.ib-.ilhavam em grupos de quatro, P e a
:_,- professora monitor.ivam a ati\·kbde. P estava perto do grupo de
:~.;,vj: ! Rrlm, f:iln rine eu '1Uern tM-har 'Jma ''c,r~;L
:;~ fr.tncisco, quando um menino sugeriu aos demais que poJíam
!- i \farina: j "i'ào. eu acho que... o meu tio ele tt..'la creme no rr--.~ro ..
j 39 f ! fazer uma história sobre crian\~ls br.isikir.is indo para a Grécía
' Antiga, onde estr.mhariam o comportamento dos gregos. Esse
i --!<!} ' ~~"'lf'.r:J: iHum
l ·f l ,!Ge~ i,E dai!' primeiro rüleiro, de imediato, empolgou o grupo. que após ree-
~ __..; ! ~ar.m:ic ! E daí oue n:ida. laoorar o argumento, produziu o tex-ro alx1i.xo.
i .+:3 '~r.r Tá. enein niha anuí 2Cf1fe ...
1 1falando ao meslTl() tempo; parte <las fal:is pó<lt:: :ler
Tabela -
captada pelno; grav:id.oreo; po.'iícionado.s em diferentes
História em quadrinhos critica,
cuteir.ls}
Carolina:
produzida por um gruJX> de alunos"''
O meu pai usa xampu no ci.bdo.

1:
1 ,
1-ttl
Joãa:
1\~uricio:
r
Arrumo a casa, mas tô a fim de esrudar =
,. arnnruir a casa é coisa de-
Titulo
lº quadrinho
O agor:i e o 03.."-'i:ldo
Dois meninos br.isileíros con.,troem urna m:.íquma do
cempo.
.f- ;Joa& , = eu sei. mas 5enão minha vó me h-.ire. Cm dos menínos diz:-:\o:;.'1 melhor ím enc:"w. -
O omro concorda: -t.·
As coruribuições dos alunos nas linhas 38. -H e "t5, reft:remes a
suas experiências pessoais, ilustram o eng:ijamento desst:s jo··.-ens "!:'quadrinho Eles \iajam no lempo: -E_..:.umos \O!r:mdo no tempo. -
em um processo investigativo que os leva a explorir práücas
familiues envolvendo performances de gênero e se:rual1dade e 3" quadrinho Eles são U-Jn'-port:ldos JUr.l a Grécia Antip.
abordá-las sob uma ótica menos estereotipada. Podemos dizer, Cm dos rr.erc~:i05 diz: -Gn:'Lia Antlí(:l'.-
assim., que uma série de manobras intersubjetivas reirranjou a 4° quadrinho Encorur.un dois gn-gos que e->tio de màos d.:1di:-.
rede discursiva desses participantes, constiruindo um outro l"m dos meninos diz: -Qut:: boiob.s!"
m0----aico, mesmo que frágil e momentâneo. O omro ri; ·tta. h.a. ha~-

9' quadrinho l-m dos merunos: -Yocê nu. ci.r.i! Que boiolas'"
PERTL'RBA."-~'DO/DESESTABIUZA_~l)()
fJ' quadrinho .\torai: As leis mudam.
PERCEPÇÕES HEGE.MÔt\lCAS DE SEXL'AUDADES
E l\.IASCCl.I\.ilDADES ?> quadrinho .\loral: A geme discrirruru o blrJ.nho. i

S'quadrinho .\Jora.I: :'l>ingu('m aceita a cuiturJ. do pn >x.11110_


Nas aulas oito e nove, os alunos, tr.ibalhando em grupos de
quatro, teriam que produzir urna história em quadrinhos irupir.ida '1' quadrinho .\Joral: EJes rUO esUO 3Cdtmdo :l lei :.mtr)'!:L
em algum aspecto das discussões re-d!izadas n:.L5 aulas anteriores. 10" quailiinho Os gregos. segur.indo um tipo Je :imu e t•m um;i :nitude ,
Esta tarefa gerou uma série original de cartuns colori<los. contendo ameaç:ldor:i: -\·:imos lutar. - 1
vários níveis de desestabilização em relação a creni;,'a.s es&·nci:ili- Os meninos bri-.íleiros: -:--;Jo. unur;.. corr~·r'-
zadas e conceitos hegemônicos acerca das idemidades de gênt:ro Os go=gos: -Qu<::- p.:idúes•·
e sexualidade. Uma delas, no entanto, pro<luzi<la por Fr.inciSt'o e
outros três colegas, chamou nossa atenção em esp<::-cial em wzjo 11º quadrinho Denco d! ntlqum.i <lo r1.111r.,.y · E.-..i.tm.x' \-<'lt.m<lo. -

de seu conteúdo antiessenci.llista e seu processo de tessitur.i. L: m:i 12" quadrinho l)c;:> \·olu ao bbor.itórío.
breve contextualização do pr<Kesso criativo dos meninos faz-se l'm d._~ na.-nm<>:i: -l -ff'. de:- 4ucn-1m º"' nuur_ -
necessária, antes da análise de seu cr.itx1lho. O ouiro: -fuj.:UH•~ ru hor..1 -

:,.y;
Ao abordarmos esse texto focalizando a dinâmica de posi- (cf. Tabela 2, linha 33), se engajou cooperativamente na cons-
cionamentos que ele constrói, nos deparamos com um processo trução de posicionamentos mais flexíveís (cf. Tabela 3, linha
intrincado de desnaturnli1.ação em relação às sexualidades e às 44), é agora capaz de posicionar-se de fonna antiessencialista
masculinidades. à medida que ele e seus colegas analisam sentidos produzidos
Podemos dizer que há um processo de identificação dos histórica e socioculturalmente. Além disso, o fato de trabalharem t:
meninos brasileiros do grupo com as duas crianças da história, com a ideia de que práticas homoerótícas já foram consideradas
o que posiciona os autores como porta-vozes do senso comum normais ou legais (conceito engendrado pelo título do cartum e
em relação aos gays (quadrinhos 4 e 5). Tal aspecto parece ser pelo quadrinho 6) e que elas, aos olhos contemporâneos, fXxiem
enfatizado pela moral da história, a qual, além de fornecer parecer estranhas (quadrinho 7), conduzindo à discriminação,
comentários críticos sobre as atitudes dos meninos (quadrinhos mostra que a resposta desses alunos à nossa intervenção foi a
6 a 9), os posiciona como sendo ignorantes de sentidos históricos compreensão, em seus próprios termos, de que identídades e
(quadrinho 6); como tendo uma percepção preconceituosa em alteridades sociais são fabricadas. Finalmente, as ações desses
relação à alteridade e às diferenças culturais (quadrinhos 7 e 8); jovens de 5ª série demonstram que, apesar da pouca idade, os
e, finalmente, como encontrando dificuldades em operar em alunos podem aprender a problematizar crenças naturalizadas,
regimes de verdade diferentes do seu (quadrinho 9). através da observação de fenômenos socioculturais, e a localizar
Um outro ponto de interesse é o desenvolvimento do posi- a rede discursiva que os constitui.
cionamento crítico na continuação da história, quando os autores Fsse trânsito positivo, entretanto, mantém o esteref>típo negativo
parecem fraturar as sólidas fronteiras imaginadas que delimitam da homossexualidade em diferentes momentos: na reação inicial
conseruções hegemônicas de homoerotismo, heteronormatividacle dos viajantes no tempo em relação aos gregos de mãos dadas e
e masculinidades. Tal reflexão é levada a termo pela mudança na reação dos gregos que classificam os meninos de ~peidões~,
na caracterização dos gregos: de efeminados (subscrevendo o em referência ao fato de se acovardarem e se recusarem a lutar.
estereótipo corrente de homens gays) a homens prontos para Ambas as imagens estão ligadas a ideias de norma, desvio e
a batalha, um atributo considerado característico do universo comportamento desejável - algo como homens reais não tiram
masculino (quadrinho 10). Entretanto, as normas aparentemente o corpo fora. Dessa forma, o binarismo homossexual/heteros-
rigidas orientando a performance identitária dos meninos são sexual é mantido, sendo o conceito de masculinidade concebido
perturbadas: os gregos gays estão dispostos a brigar, enquanto a como inerentemente heterossexual, o que delíneia uma dinâmica
resposta dos meninos representantes da masculinidade heteros- oscilatória entre significados essencializados e pequenas deses-
sexual é se acovardar, como "peidões" (quadrinhos 10 a 12). Essa tabilizações de tais significados.
construção de limites turvos entre os domínios de sexualidade e
gênero, enquadrando o frnal d.o texto, se relacionada ao conteúdo
dos quadrinhos 6 a 9 e às discussões encaminhadas nas aulas CONSTRUINDO NOVAS SOCIABILIDADES
aqui discutidas, pode ter o efeito ilocucionário de moral geral da
história: os rótulos não abarcam a complexidade das identidades
A análise nos fornece modos por meio do..o;; quais podemos
sociais de gêneros e sexualidades.
compreender o que acontece quando tent~unos questionar/
É nossa convicção que há ganhos consideráveis nesse movi- desnaturalizar visões solidificadas da vida socül. As dificukbdes
menco crítico em relação à ideia de possibilidade de reconfigu- encontradas por professores e alunos ao encaminharem essa tarefa
i
•I
ração de regimes de verdade. No que diz respeito à dinâmica chama a atenção para sua importância: alunos de 10 a 12 ãnos
1
1 identidades/alteridades, podemos testemunhar a possibilidade de parecem já ter desenvolvido ncw;ôes hem sediment1d~1s sobre
redefinição discursiva. Frnnci'iCO, que, depois da preocupação com as sexualidades e as masculinidad1:s, sarwndo operar dentro do
sua performance como membro da masculinidade heterossexual binário heterosexual/homo1'1'exual - que discingut.·rn claramente.
Isso, na verdade, não nos surpreende, jã que sabemos que de formas de vida consensuais. A simplicidade de uma S<X'kcbde
os próprios professores dessa escola, como já indicado, vivem na qual todo mundo ou é homem ou mulher, heterossexual ou
dentro desses mesmos limites. Da mesma forma, nào causa es- homossexual, de formas muito distintas, obscurece o modo plural
tranheza o fato de as prirneirns reações dos alunos envolverem como as pessoas vivem seus gêneros e S<:xu:iliJaJes, fomenra
riso e desconforto frente à tematizaçào de tal tópico na escola. discursos preconceituosos e homofóbicos e coíbe a imaginação
Fica claro, assim, que a perturbação do repertório de sentidos de futuros sociais diferentes.
usualmente atribuído à sexualidade é atrnvessado pelo padrão Por causa da relevância dos discursos educacionais na cons-
da heteronorrnatividade, mostrnndo a força das normas e regras trução de quem somos, devido, principalmente, à quantidade de
socioculturnis sob as quais atuamos. Assim a movimentação dos tempo que passamos na escola e ao fato de que os contextos
sentidos ocorre em meio a múltiplas persistências e nptu;as suti~ escolares são os primeiros que podem apresentar uma alternativa
de discursos essencializados. para os limites discursivos que as crianças normalmente viveram
Vimos que a história em quadrinhos produzida pelos alunos até ingressarem em tais contextos, as práticas de lctramentos
concomitantemente desafia e reproduz ideias dominantes sobre escolares têm um papel a desempenhar na familiari:t,a~'ào dos
masculinidade e sexualidade. Entretanto, as várias interações alunos com os processos implícitos na produção soci(xultural
acima analisadas apontam para a plasticidade das identidades das identidades e das alteridades. Dentro dessa persp<:ctiva, a
dos alunos, os quais, apesar dos movimentos oscilatórios conscienrizaçào sobre a nacureza discursiva dos gêneros e das
detectados, podem ser levados a se reposicionar localmente em sexualidades pode apresentar discursos alternativos sobre a \"ida
relação às sexualidades se desenvolverem uma postura reflexiva social em geral e reposicionamentos menos aprisionadores.
e problemacizadora de regimes binários e crenças culturais. É Esperamos que o caminho que seguimos nesta investigação possa
nossa compreensão que tal oscilação já é um tipo de desequi- contribuir para outros estudos de natureza similar. que focalizem
líbrio importante, apesar de discreto, em solos aparentemente a possibilidade de construção de ordens sociais alternativas, nas
engessados - processo resultante do engajamento coletivo em quais a vida social e os desejos possam ser concebidos como
práticas de tetramenta que engendram novas práticas discursivas plurais e flexíveis.
e interacionais. No caso do contexto educacional investigado,
um conjunto de procedimentos pedagógicos teoricamente moti-
vados ajudou os participantes a inaugurarem percepções menos
NOTAS
essencializadas das identidades sociais. Entre elas, gostaríamos
de enfatizar uma abordagem dos letramentos como práticas 1
FOUCAULT, 1979a.
sociais, nas quais os sentidos estão em construção, possibilitando
2
oportunidades de desestabilização e historicização dos discursos FABRfCIO; SANTOS, 2006; SA.'\TOS; FABRÍCIO, 2006.
- estratégias empregadas para estremecer, mesmo que de forma .'·· 3
MOITA LOPES, 2003; MEC, 1998; SECRETARIA ESPECIAL DE DIREITOS
tímida, conceitos fundacionais, rigidamente estabelecidos. HUMANOS, 2004.

BRITZJl;IAN, 1996; EPSTEI:":: JOH:\'SO:\'. 1998: '.\EL~O'.\', 1999: 2006:


4
À luz <los princípios curriculares brasileiros de natureza anti-
homofóbica e da reflexividade intensa sobre questões referentes MOITA LOPES, 2006b; DALLEY: CA\lPBELL. 2W6; O"\IÓCHAL''· 20Cl6:
às sexualidades na mídia brasileira, no mundo acadêmico e em ELLWOOD, 2006, por exemplo.
outras práticas institucionaL<;, parece essencial que os discursos s MOITA LOPES, 2002; ABROMO\"AY: CASTRO: DA SIL\"A. 20C4.
escolares colaborem com possíveis redesaições da vida sociaL O 6
MOITA LOPES, 2006h.
verdadeiro desafio de nossos tempos "não é descobrir o que so- 1
BRITZMAN, 1996; MAC A'.'\ GHAILL. 199-i: EPSTEI'.'.': JOH:\SO'.\'. 199B:
mos, mas recusar o que somos. Precisamos imaginar e construir o MOITA LOPES, 2002; 2006:1; 2(.)(X)h.
que podemos ser. "41 Tal objetivo envolve distanciamento rdkxivo

308
6
SEDGWICK, 1994. sinalizam ênfase acentuada; (parênteses) identificam comentáríos da
9
Btm.F.R, 1990. pesquisadora ou sinalização não verhal e (?) refere-se à transcri~·ào
impossível.
m lNGRAHAM, 1994, p. 204.
11
11 o texto, extraído de uma mensagem eletrônica, foi apresentado em uma
BlITLER, 1990. apostila.
11
SEDGW'ICK, 1994; GOLDBERG, 1994; LOURO, 1997. '° Em razão do espaço limitado, os desenhos foram omitidos.
.t 13
HEILBORN, 1996. i1 FOUCAULT, 1995, p. 239.
N W'EEKS, 1990, p. 88.
15
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32
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11
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31
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38 and Education, v. 5, n. 1, p.11-30, 2006.
Foram utilizadas as seguintes convenções de transniçào: (m) indica
engatamento da fala; (.) indica pausa brc.,'Ve e L.) pausa mais longa; ([)
indica sobreposição de fala'>; sublinhado indica ênfase e MAIÚSCULAS

310
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l.anguage and líteracy insocial practice. London: Longman, 1994. Suas publicações focalizam uma variedade de tópicos relacionados
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Community, culture, difference. Londres: Lawrence & Wishar, 1990.
professora do Programa de Pós-Graduaçào em Letras da LERI
WOR1HAM, S. Narratives in actíon: A strategy for research and analysís. e vice-diretora do Instituto de Letras da mesma universidade. E
New York: Teachers' College Press, 2001. autora de inúmeros capítulos de livros e artigos publicados em
revistas especializadas no Brasil e no exterior, na área de Análise
do Discurso e de Linguística Aplicada. Sua úlüma publicaçào é:
~o papel da ímprensa na construção de espaços dem<xTãricos no
Brasil: o caso das cotas no acesso ao ensino superior público-.
presente no livro .Mídia e memória: a produçâo de sentidos nos
meios de comunicação (2007).

Ana Lucía Silva Enne é jornalista e doutora em Antropologia


pelo Programa de Pós-Gr.iduação em Antropologia do ~1Ust'u
NacionaVlJFRJ. Atualmente, é professor.i do Departamento ele
Estudos Cultur.iis e Mídia e do Programa de Pós-Graduação de
Comunicação da L'.niversidade feder.il Fluminense. Coon.lt.:na o

314
Labor.ltótio de Mídia e Identidade (Lami - http://www.uff.br/bmi J Guacim Lupt;'S Louro é <loutora t'm EJucH;:1D pda l"níc~unp.
e o Grupo de Estudos sobre Comunicação e Sociedade ( Grecos licenciada em Hbtória e mt>strt' em E<luc:11,:àü rx·la l"FRGS.
- http://paginas.terra.eom.br/educacao/grecos). Professor..i titular J.tx~nt.1.JJ. dJ. l'fRl~S. JCU:J no Pro~ranu de
Pó&-gr..tdu;.u;ào t:m E<lw..·a\·:.lo. dt·~~l tnt.':'>HL.l ~nn er-i<..Lt_de como
Branca Fala bel/a rabricio é doutora em Estudos da Linguagem professora convidad.l. Foí !unt.hh.l~':·1 <lo ~eerg~ !Grupo <li;.·
pela PUC- Rio e professoni adjunta no Programa Interdisciplinar Esrudos<le Educaç:io e ReLlço..~~ <.k GeneroJ i: rxirtH..1ra Jo grnpo
de Linguístk-a Aplicada da UF!tj. Parte de :ma pesquisa de dou- desde 1990.. Tt'tll pubtkJ.Jo. no Br.isil e no i::xterior. n;.i_ :in:a do.s
torado foi realizada na Universidade de Lancaster, Grà-Brelanha. estudos de gênero. X"XWliiliJt: e teoru qurrr. Entre seus hnos
Foi bolsista recém-doutora pelo CNPq na UFRJ. Suas puhlicaçôes destl{.-am-se GifrLl:!TO. sexr.wluü.1.<.lt! e t'dtt<:<lçúu uma penpectico
mais recentes incluem os seguintes artigos: "Tbe (re-)framing pós-estmtumlista ( iern 9' ~-:lo. EJitor.i Yozt":S l: cr:z
c~rpo ~"trcmbo.
process as a collaborntive locus for change", em (Re-)locating ensaios sobre se:..x1w!idade e teona qurrr L\ucentKJ. EJIInrJ) e
TESOL in an age ofempire(2006), e "Discurso ocidentalista como Cuniculo. gênero e sexr.wlid..ide (Porto Editora. Portug-.iD.
am1a de guerra: a construção de alteridades na mídia", em /kfídia
e ~Memória: a produção de sentidos nos meios de comunicação Jkttlmn ~-<t?rOlmw e douror.i em G2ncW. ..li Llter..nura ~la
(2007, em coautoria). LTR). com pós-<louror..1.Jo na L"nin:rsiJadt' J<:: Bremt:n..\l.emmh..1..
É profes..>;()(a de Teori.:.l d.i. Llter.imrJ. ru Pl-C-Río. p::squL--aJor..1.
Cláudia ilJaria Ceneviva Nigro é doutora em Letras pela Uncsp/ do C-.-Pq e Iiili:r. junro com K:.lrl Em:k S..:holhamrner. Jo grupo
lbilce (Instituto de Biociências, Letras e Ciências Exatas de SJ.o de pesquisa Teorlli Aru:.it... de Llter.uur..1... do Jireróno n:.ioon:.il Jo
José do Rio Preto). Professora do Progrnma de Pós-Grnduaçào em ~"Pq PCC-Rio. É :.mtoc.l Cl)•.1.urorJ. J1_.).5 Linu:s Cém U.l d,l litemtur~~
letras da Unesp/Ibílce, tem pós-doutorado pela UNICAMP. Seus empírica t 1%9). Histôr"-jS da Íltf'nl!Iira· as 11nuls tt:Onds .''l~m<z.-'
últimos trabalhos são capítulos de livros. Entre eles 'Translating (1996\ Sm·as epi::-'ti?molt)gid.S: âc>s<.lftüs para a unilersuia~le. do
Identities: How Brazilians translate themselves when faced with faturo4 1999 •. literatura e m~1i:a • ,. ( _1_•J_ • r"
.., ._ · ..,l . Liien: •"ª' ~r> 0 -·,f""nlt '! fr1. •
~ t ' . • "_ _ - . · - -
other cultures", em Translation and meaning (2007); e "Memórias ~ . . .
literatu.ro e imagem 1 ..:.IJJ---il e L1tera.t,ra
. • ..., ,_,,.., e,..;~'l ' -)1 .~ .~' i -
e ,,,c,,,u,
póstumas de quem? A construção da identidade em Brás Cubas",
em A roda de Memórias Póstumas de Brás Cubas (2006). Henriqtle G:k!tano -~JniL ~doutor c-m :::O.:K_>Lo~u ~b !. ·ni\ t·r-
sidade Fet.kr.il do Rio Gr.indc do Sul 1 l rRG:' 1_ po:rUoutor pd.i
Edir Augusto Dias Pereira é graduado em Geografia pela Écote ~ .E-bures Érudes cm S....icn...:es ~x:i:.Ú.'> Jc P.m:,. pmfe:->...;._,r
UFPA e mestre em Geografia pelo Programa de Pós-Graduação do Progr.l!Ill de p~~du;içlo cm P'."'ícd~·,pi S..xci e [r.5l:in.h. 1un:.d
em Geografia da UFF. Tem artigos e capítulos de livros publírndos. da CFRGS e p::squis1dor Jo C-.7q. Puoh....::.i no Brd.'u e no üt:r:nur
O mais recente se intitula "Cidades ribeirinhas na Amazônia: nas áre.is cil P-:-ico!cp S...:,..:w..l e- J.;i :'.iúJc- Cu[cti' .L pnn._:p-ilmeme
mudanças e permanências", publicado em 2008, em um livro - ~ 7 - ~• -, ~~~7
'l'·~").~--1'T\~~>1.ç
nas tem:.>ric:c rert::n:n[é'- :1 rcl:..i>,.J.O :'Uu.J.e e tr-t'.>".c.D• 1 e :-- ·' io::. ,. ''"""··
- 1
coorganizado por Sainc-Clair C. da Trindade Jr. e Maria Gorctti e se:nuliJ:.Wc. Seus últ.rnüs Ll• ros slo 5aúck'. m1~úht, e d:...x·:a-sn
da Costa Tavares.
médico ( 1999 l e Ética. traha:ho e suh;.:rn kkkÍc' 1 2•:• 'D '·
Eneida Maria de Souza é professora emérita e titular em Teoria Karl Er..k S.:b0[:hammer ~ J.nur,.0;r c::i. "crr::• .it:CJ. e Lkr..lt~:.i
da Literatura da UFMG; doutora em Literatura Comparada pela latino-Amcric:ma p;:ci::.I. -~'L'."' l. rE" e!""té<::.-t. 0:7",.l'."::.lrc.::.i ..\c-~:::ccr:~~· ·
Uníversité de Paris VII; pesquisadora do CNPq. Autora, entre . Le[~.!..--
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'·1 f)' ' R· ) ~-
é professor a..->scx.:::..t.-.:.-::, <lo Ü<=';J:.l:""o...i:Y:c!l:o <..le l '·· ~ " .
outros livros, de A pedra mágica do discurso (1988), O século de
pesquisadr.)c Ó) C\.?q <t" co Pr, ';;c:-..i:T'J Cc-r.[:."~i-- e.'' '.'.',""'' L-i~~io.
B01ges (1999), Crítica cutt (2002), Pedro Nava: o risco da memória da Fapttj. Publicou rci..:e-nt<::r!'"erti"c- o il'".~ l .--!."é7 : ,zr, l 7..ê':~el (;(,./:'ar
(2004), Tempo de pós-crítica (2007).
da lúeraiura

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pensamento contemporâneo (2006), articulando um ensaio sobre
~ndro de Oliveira écientista social, doutorando em Antropo- pensamento de Waher Benjamin e sua recepção na contem-
logia pelo Museu Nacional (PPGAS/MN/UFRJ) e investigador do 0
poraneidade, além de ter colaborado no livro Educação e pós-
Núcleo de Pesquisa sobre Sujeito, Interação e Mudança (NuSIM/
-modernidade, organizado pela professora Solangejobim e Souza
PPGASiMN). Durante o ano de 2005, participou do Programa de
Treinamento em Metcx:lologia de Pesquisa em Gênero, Sexualidade
e publicado pela Editora 7Letras.
e Saúde Reprodutiva (IMS/UEHJ), conduzindo estudo etnográfico Xoán Carlos Lagares é doutor em Filologia Hispânica pela
entre gays e travestis na periferia da cidade do Rio de Janeiro. Universidade da Corunha, professor do e.urso Espanhol-Português
Atualmente, desenvolve pesquisas na área de Antropologia Urbana e do Programa de Pós-Graduação em Letras da UFF. Tem publi-
junto a populações não heterossexuais, focando os temas gênero, cado trabalhos no âmbito da língua e da liter.itura medieval, da
família e religião. linguística histórica e da sodolinguística em revistas e coletâneas
da Galiza, de Portugal e do Brasil. Autor dos livros E por esto
liliana Cabral Bastos é doutora em Linguística pela PUC-Hio,
fez este cantar. sobre as mbricas explicativas dos cancioneiros
com estágios de pesquisa nas universidades de Georgetown e de
profanos galego-portugueses (2000), O xénero gramatical en ga-
Harvard. E professora do Programa de Pós-Graduação em Letras
lego (2006) e da edição crítica da obra de Gil Vicente Farsa dos
da PUC-Rio e pesquisadora do CNPq. Entre suas publicações
rerentes, estão Identidades: recortes multi e interdisciplinares (2002), a/moeres (2003).
organizado com Luiz Paulo da Moita Lopes, e os capítulos "Identity
in service interactions: The situated affiliatlon to social groupings",
no livro US and 01HERS: Social identities across languages and
cultures (2002), e "ldentity and personal/institutional relations:
People and tragedy in health insurance customer service" no
livro Discourse and identity. (2006), em coautoria com Mari~ do
Carmo Leite de Oliveira.

Luiz Paulo da Moita Lopes é professor titular do Programa


Interdisciplinar de Linguística Aplicada da UFRJ, Pesquisador cio
CNPq e do Programa Cientistas do Nosso Estado da Faperj, É Ph.D.
em Linguística Aplirnda pela Universidade de Londres, Seus livros
mais recentes são Identidadesfragmentadas(2002), Discursos de
ídentidades(2003), Identidades: recortes multi e interdisciplinares,
(2003, em colaboração com Liliana Cabral Bastos); Por uma
linguística aplicada indisciplinar(2006) e Peiformances, (2007,
em colaboração com Fabio Durão e Roberto Rocha). Publicou
ainda artigos em periódicos e capítulos de livros no Brasil, México,
Estados Unidos, Holanda e Inglaterra.

Marcelo Santana Ferreira é doutor em Psicologia pela PUC-


Río, professor adjunto I de Psicologia Social e Institucional do
Departamento de Psicologia da (UFF), onde também coordena
pesquisa sobre a experiência homossexual masculina no Hio
de Janeiro contemporâneo. Participou do livro Ensaios sobre o

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