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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO GRANDE DO NORTE – UFRN

CENTRO DE CIÊNCIAS HUMANAS, LETRAS E ARTES – CCHLA


DEPARTAMENTO DE FILOSOFIA
PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM FILOSOFIA

SARAH MAIRA FERNANDES DE ANDRADE

O absurdo na existência:
uma análise da condição humana na filosofia de Arthur Schopenhauer

Natal - RN
2019
SARAH MAIRA FERNANDES DE ANDRADE

O absurdo na existência:
uma análise da condição humana na filosofia de Arthur Schopenhauer

Dissertação apresentada ao Programa de Pós-


Graduação em Filosofia da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte como requisito parcial para a
obtenção do título de Mestre em Filosofia.

Orientador: Prof. Dr. Dax Fonseca Moraes Paes


Nascimento

Natal – RN
2019
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA

Andrade, Sarah Maira Fernandes de.


O absurdo na existência: uma análise da condição humana na
filosofia de Arthur Schopenhauer / Sarah Maira Fernandes de
Andrade. - 2019.
68f.: il.

Dissertação (mestrado) - Universidade Federal do Rio Grande


do Norte, Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes, Programa
de Pós-gradação em Filosofia, 2020. Natal, RN, 2020.
Orientador: Prof. Dr. Dax Fonseca Moraes Paes Nascimento.

1. Schopenhauer, Arthur, 1788-1860 - Dissertação. 2.


Existência - Dissertação. 3. Absurdo - Dissertação. I.
Nascimento, Dax Fonseca Moraes Paes. II. Título.

RN/UF/BS-CCHLA CDU 122/129

Elaborado por Ana Luísa Lincka de Sousa - CRB-15/748


AGRADECIMENTOS

Ao meu orientador, Dax Fonseca Moraes Paes Nascimento, não só pela sua genuína e
dedicada orientação, mas também por estabelecer uma relação de confiança, mediante suas
atitudes de paciência e disponibilidade, e por me auxiliar de maneira tão substancial na
compreensão da filosofia de Arthur Schopenhauer.
Aos professores José Thomaz Brum e Eduardo Ribeiro da Fonseca pelas valiosas
contribuições para o desenvolvimento deste trabalho.
À minha mãe, Mariza Fernandes, por sua dedicação, cuidado e generosidade.
Ao meu avô Miro (in memoriam) pelos exemplos de humor, criatividade e curiosidade
que me proporcionaram uma atmosfera favorável para os estudos e para as artes.
Ao meu namorado Edu pelo companheirismo e paciência.
Aos amigos, sobretudo àqueles que estão durante anos ao meu lado.
Ao amigo Anderson Barbosa Camilo por ajudar nas traduções de Clément Rosset para
o português.
À CAPES, pela concessão da bolsa de estudos.
Aos professores de Filosofia da UFRN.
“Todos trabalham para comer, mas nunca estão
satisfeitos. Há alguma vantagem do sábio sobre o
insensato, ou do pobre que sabe conduzir-se na vida?
Mais vale o que está diante dos olhos do que aquilo
que se cobiça. Também isso é ilusão e corrida atrás do
vento.”

(Eclesiastes 6, 7-9)
RESUMO

Procurando situar a filosofia de Arthur Schopenhauer (1788 – 1860) a partir da hegemonia da


Vontade, esta pesquisa tem por objetivo apresentar de que maneira a existência humana pode
ser considerada como absurda, porque pautada em um querer viver sem finalidade ou razão. A
compreensão de uma existência absurda advém de uma interpretação feita por Clément Rosset
(1939 – 2018) acerca da filosofia schopenhaueriana, segundo a qual o autor expõe que o
querer, manifestação fenomênica da Vontade, é o centro para o qual convergem todas as
incongruências existenciais. No entanto, para além da soberania da Vontade, também devemos
expor algumas questões relativas à representação, já que é no contexto do mundo fenomênico,
da natureza, que o espanto perante o absurdo da existência pode se tornar consciente para os
seres humanos. Para tal fim, utilizamos, principalmente, O mundo como vontade e como
representação (3ª ed. 1859), de Schopenhauer, e Schopenhauer, philosophe l’absurde (2ª ed.
1994), de Rosset.

Palavras-chave: Schopenhauer; Vontade; Causalidade; Ausência de finalidade; Existência;


Absurdo.
ABSTRACT

Starting from the hegemony of the Will to anchor the philosophy of Arthur Schopenhauer
(1788 – 1860), this research has as its purpose the presentation of how the human existence
may be considered absurd, once being based on a will to live that has no goal as far as it has
no reason. The understanding of an absurd existence comes from an interpretation offered by
Clément Rosset (1939 – 2018) about Schopenhauer’s philosophy, according to which the
author reveals that willing – phenomenal manifestation of the Will – is the center towards
which converge all of existential incongruities. However, on the other side of the supremacy
of the Will, we must also explain some questions concerning the representation, considering
that our astonishment for the absurd character of existence rises just in the context of the
phenomenal world by the means of which can human beings become aware of it. In such way
we use, mostly, The World as Will and Representation (3rd ed. 1859), by Schopenhauer, and,
Schopenhauer, Philosophe l’Absurde (2nd ed. 1994), by Rosset.

Keywords: Schopenhauer; Will; Causality; Lack of purpose; Existence; Absurd.


SUMÁRIO

INTRODUÇÃO 7

1. CONSIDERAÇÕES ACERCA DO CONHECIMENTO HUMANO


NA FILOSOFIA DE ARTHUR SCHOPENHAUER 13
1.1. Como e o que conhecemos 13
1.2. Do conhecimento mais complexo e exclusivo ao homem 17

2. O QUERER NA VIDA HUMANA 24


2.1. O núcleo da existência 24
2.2. Considerações acerca daquilo que se é, ou sobre a imutabilidade do caráter 29
2.3. A condição de sofrimento inerente à existência
a partir da perspectiva do desejo humano 33
2.4. A luta pela existência 40

3. ASPECTOS DO ABSURDO NA EXISTÊNCIA HUMANA 46


3.1. A desilusão acerca da causalidade 46
3.2. O irracional no mundo e na existência 51
3.3. A absurdidade do querer 57

CONSIDERAÇÕES FINAIS 64

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 67
INTRODUÇÃO

O ponto de partida deste trabalho surgiu do desejo de compreender o que Arthur


Schopenhauer (1788 – 1860) pensou acerca da existência humana. O contato com as
principais obras do autor, e a constatação de suas reflexões sobre os mais diversos temas do
universo humano, fez-nos perceber em seus escritos uma abertura filosófica acerca das
investigações existenciais, o que nos permitiu seguir com a pretensão de formar uma
compreensão sistemática sobre a condição humana em sua filosofia.
O problema da existência humana na filosofia de Schopenhauer é, sobretudo,
contemplado exponencialmente no que o filósofo expôs como sendo a “Necessidade
metafísica do ser humano”. Nesse capítulo, que é parte dos suplementos de sua obra magna, O
Mundo como Vontade e como Representação (2ª ed. 1844), Schopenhauer indica que toda
filosofia nasce do espanto. Nesse sentido, ele não deixou de concordar com os filósofos
clássicos. Porém, o espanto que Schopenhauer atribui como ponto de partida da filosofia não
assume inquietações sobre o que está para além do próprio homem, e nem sobre mundos além
deste que habitamos. O filósofo expõe que aquilo que o ser humano tem em si mesmo, e as
condições comuns à sua própria existência, é o que o condiciona ao espanto e ao filosofar.
Dessa maneira, a filosofia de Schopenhauer está embasada em uma esfera existencial, haja
vista que o filósofo trata de temas, tais como a dor e a morte, como pontos cruciais das
investigações e inquietações humanas e, também, como veremos mais adiante, porque
percebe naquilo que há de mais íntimo no ser humano o conteúdo fundamental para sua
metafísica.
Não encontramos Schopenhauer como um exemplo de existencialista a ser citado nos
livros de filosofia em geral, e tampouco ele procurou definir em seus textos o que seja a
existência. Desse modo, até mesmo por intermédio da leitura dos seus comentadores e dos
dicionários especializados, não identificamos definições do que seja a existência segundo
Schopenhauer. Todavia, é válido mencionar que podemos apreender em seus escritos dois
sentidos para o que seja a existência, visto que Schopenhauer trata a existência dos objetos a
partir da consciência, ou da percepção mediata que temos dos objetos exteriores, mas também
trata de um tipo de existência mais íntimo, imediato e que corresponde à autoconsciência.
Esse segundo modo de existência é o modo que aqui desejamos investigar, se trata de uma
existência sobre a qual não há determinações, ou razões, e que está associada aos sentimentos
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imediatos produzidos em nosso próprio corpo e, também, que nos leva a questionar sobre
aspectos ordinários da vida.
Schopenhauer expressa que todo o embasamento acerca das questões filosóficas, e
também das motivações religiosas, partem de indagações que são inerentes à própria
existência, pois é através do contato com os problemas que nos são próprios, principalmente
com aqueles que nos remetem aos maiores sofrimentos, que refletimos acerca da realidade e
das dificuldades dessa vida. E, como se os percalços não nos fossem comuns e constantes,
desejamos sempre o antídoto para os nossos próprios males.
Em sua filosofia existe o reconhecimento de que há uma contínua surpresa e aversão
perante as dores, e, diante dessa realidade, é possível observar uma contradição entre aquilo
que vivemos e aquilo que desejamos viver, posto que há uma constância de sentimentos
ávidos por objetos que nos sejam favoráveis, mas, ao passo disso, nos frustramos diante da
realidade que nem sempre, ou na maioria das vezes, não nos é oportuna.
Essa contradição nos incita ao incômodo, ao esforço e à indignação, e Schopenhauer
demonstra que é nessa contrariedade diante das nossas condições existenciais, e também na
impossibilidade de um prazer constante e duradouro, que se desenvolve a presença da dor na
vida humana.
Ao questionarmos o que Schopenhauer compreende pela existência humana,
adentramos num território pessimista, porque o mundo é, para ele, um lugar de dor,
contrapondo e combatendo concepções vigentes de sua época, como a de Hegel, cuja
premissa pode ser expressa pela máxima “todo racional é real, todo real é racional”.
O filósofo não esconde, e muito menos minimiza, que as suas visões de mundo estão
fora de perspectivas fundamentadas em uma inteligência ordenadora, otimista ou teológica,
posto que para Schopenhauer não há Deus, razão, ou qualquer espécie de inteligência, que
justifiquem a natureza do mundo e do microcosmo. Em vez disso, o filósofo dá à Vontade 1
(Wille) o lugar de supremacia sobre todas as coisas e a considera como essência de tudo o que
há.
De modo oposto à proeminência da razão, as questões schopenhauerianas, que durante
muito tempo não foram tão valorizadas, expressam uma autenticidade, dado que, a fim de
decifrar o enigma da existência, Schopenhauer refuta o significado do mundo oferecido pelas
concepções racionalistas, otimistas e teológicas, atribuindo à existência o reconhecimento dos

1 Aqui gostaríamos de esclarecer que a Vontade (com “V” maiúsculo) refere-se à Vontade enquanto coisa em si,
já a vontade (com “v” minúsculo) refere-se à manifestação da vontade individual, ou determinada.
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afetos, do querer e do não querer, como expoentes que expressam a força volitiva inerente a
toda natureza.
O pensamento que Schopenhauer construiu dá o lugar máximo àquilo que o homem
sente, tanto é que não há nada mais que fundamente a sua metafísica além daquilo que o ser
humano possui no seu próprio interior. Por esse motivo é que também podemos compreender
a sua filosofia como uma filosofia dos afetos. Mas, há uma tragicidade nesse modo de pensar,
posto que aquilo que o homem é e sente se relaciona com conceitos que dialogam com uma
série de desventuras e de contradições que partem de um querer viver.
A abertura de Schopenhauer ao trágico e ao pessimismo nos permite visualizar a
imagem do homem no que há de mais proeminente no romantismo europeu do século XVIII,
o qual conservava uma reação contra a racionalização, e no niilismo, por exemplo, já que
nessas manifestações o sentido da vida é substituído por uma falta, uma ausência de sentido,
que contrariam as tendências ordenadoras, otimistas e racionais que o filósofo tanto refutou. O
contato com autores renomados da literatura entre os séculos XVIII e XIX, nos permite
perceber demonstrações de desesperança acerca da vida e do futuro. Personagens, tais como
Frankenstein e Werther são exemplos de papéis na literatura que marcaram época e que
expressam o sentimento de devastação perante a falta de sentido na vida. Neles temos a
imagem do homem, submetidos às dores e às ilusões, que Schopenhauer, precursoramente,
também ilustrou em sua filosofia.
O lugar de destaque que Schopenhauer dá ao ser humano vem da compreensão da
Vontade enquanto aquilo que cada homem possui de mais íntimo em si mesmo, e também
porque é no próprio ser humano que Schopenhauer enraíza a descoberta da essência do
mundo. Além do mais, segundo a sua filosofia, é o homem o ser mais capaz de manifestar e
compreender essa essência, mesmo que esse conhecimento não seja a priori.
Todavia, a essência que Schopenhauer nos apresenta não possui tendências
consoladoras e benevolentes, ao contrário disso, ela é cega, livre e não podemos apreendê-la,
senão por intermédio do querer viver, manifestação da vontade, que é o responsável por toda
as contradições e sofrimentos na vida humana. Em linhas gerais, podemos dizer que sofremos
porque queremos.
Para além da soberania da Vontade, Schopenhauer reconhece a importância da
representação no mundo, e alega que existe uma relação entre vontade e representação em
cada fenômeno da natureza, pois enquanto a vontade de vida condiciona e submete tudo o que
existe a fim de satisfazer-se, o intelecto reconhece objetos e media as ações dentro dos limites
do conhecimento. No capítulo dos suplementos “Do primado da Vontade na consciência de si”
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o filósofo reconhece que o “eu” seria um ponto em comum entre aquilo que ele apresenta
como Vontade, mas, também, como representação: “Este eu é o pro tempore idêntico sujeito
do conhecer e do querer [...]” (SCHOPENHAUER, 2015b, Cap. 19, p. 245).
Sendo assim, embora haja uma soberania da Vontade no mundo, posto que essa é
essência de tudo o que há, Schopenhauer coloca a representação como um aspecto também
fundamental, pois a representação é a condição necessária para o conhecimento sobre tudo o
que existe e o ser humano é também um ser de conhecimento.
Procurando situar a filosofia de Schopenhauer a partir da onipresença da vontade
enquanto afirmada, esta pesquisa tem por objetivo apresentar o pensamento do filósofo a
partir da primazia que nele tem o aspecto irracional do mundo a fim de demonstrar de que
modo a existência humana pode ser considerada como uma existência absurda, pautada nos
conflitos e nas lutas motivadas pelo querer em busca de satisfações para as carências
infindáveis.
A presença do absurdo nesta pesquisa surgiu quando, mediante a construção do que
Schopenhauer entende pela existência, estabelecemos contato com o livro O pessimismo e
suas vontades: Schopenhauer e Nietzsche (1998) de José Thomaz Brum, na qual o filósofo e
professor desenvolveu o capítulo “O absurdo de ser homem”.
Nesse capítulo encontramos uma espécie de guia que nos permitiu o acesso a um
material substancial, com tópicos capazes de nos orientar acerca daquilo que gostaríamos de
sintetizar sobre a existência humana na filosofia de Schopenhauer, tais como a relação da
vontade com o intelecto e a imagem do homem enquanto objetivação da Vontade. Mas, além
disso, nos deparamos com a noção do absurdo, um aspecto novo, sobre o qual ainda não
havíamos tido o conhecimento.
Clément Rosset interpretou o pensamento de Schopenhauer sob a perspectiva de um
absurdo. A sua interpretação, rica e com elementos que nos permite compreender de que
maneira a filosofia schopenhaueriana ecoou na contemporaneidade, não foi muito explorada
dentro dos departamentos de filosofia e, por isso, tivemos a missão de levá-la em
consideração mesmo sem a presença suficiente de referenciais bibliográficos que tratem desse
tema.
O absurdo desenvolvido por Rosset está vinculado a uma interpretação acerca do que
o autor do Mundo entendeu pela existência, isso porque Rosset compreendeu que, se tudo
para Schopenhauer está submetido à vontade, a existência também não escaparia dessa mesma
tendência, mas, mais do que isso, Rosset percebe que é a existência mesma que revela o
absurdo, a contradição própria a uma vida cujo embasamento está no querer viver.
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Todavia, embora apenas a vontade esteja no âmbito do absurdo, é de extrema


importância incluirmos a noção de representação na nossa pesquisa, posto que ela também é
fundamental para a compreensão do que seja o ser humano, e também porque é a partir do que
o filósofo entende por representação que se faz possível entender o que seja a causalidade.
Ao tratar sobre a representação, Schopenhauer expõe uma série de entendimentos, mas
aqui desejamos contemplar os seguintes aspectos que dialogam melhor com a nossa pesquisa:
como se dá o conhecimento fenomênico, assim como também o conhecimento abstrato, ou
racional, e apresentar a causalidade, um dos quatro princípios de razão suficiente que
pertencem à representação, visto que essa é tratada por Rosset como ausente no que diz
respeito ao conhecimento da própria existência.
Nesse sentido, dividimos a pesquisa em três capítulos que abrangem os principais
conceitos e entendimentos que fundamentam a condição do homem enquanto ser volitivo e
submetido à força irracional da vontade, mas também que visam demonstrar como se dá o
conhecimento na vida humana, para que, por fim, possamos apresentar o absurdo que Rosset
interpretou na filosofia schopenhaueriana.
Começamos a pesquisa apresentando de que modo há o conhecimento no mundo,
mediante a concepção de representação e as suas quatro figuras, e expondo quais são os
limites do conhecimento humano, ou o que podemos conhecer. Nesse primeiro passo
contemplamos apenas o que o autor do Mundo entendeu acerca do conhecimento, sobretudo
acerca do conhecimento humano.
No capítulo seguinte, a Vontade será exibida como núcleo da existência, essência
incognoscível, aparato metafísico de uma filosofia imanente, de forma que, estando ela em
um lugar de primazia na vida humana, o indivíduo seja considerado um sujeito do querer
submetido aos sofrimentos e à luta pela existência. Também temos por objetivo apresentar
nesse capítulo o que Schopenhauer entendeu acerca do caráter, e quais as implicações de um
caráter na vida humana.
Por fim, o último capítulo desta pesquisa é uma análise dos conceitos vistos
anteriormente, sobretudo a causalidade, o aspecto do irracional e o querer viver, cuja
interpretação se apoia no pensamento que Clément Rosset desenvolveu no livro
Schopenhauer, philosophe de l’absurde (1967; 2ª ed. 1994).
O último capítulo deste trabalho abrange as concepções de conhecimento e querer na
vida humana, vistas anteriormente, e abarca o entendimento de que a existência humana é
uma existência absurda por ser instruída por uma vontade cega, a qual conserva uma visão de
mundo completamente oposta a tudo que tem razão e justificação.
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Em síntese, o que aqui intencionamos investigar é de que maneira o autor do Mundo


percebeu a existência humana e relacionar esse entendimento ao absurdo que Rosset
interpretou acerca de sua filosofia.
1. CONSIDERAÇÕES ACERCA DO CONHECIMENTO HUMANO NA FILOSOFIA
DE ARTHUR SCHOPENHAUER

1.1. Como e o que conhecemos

Em O mundo como vontade e representação (MVR), Arthur Schopenhauer apresenta o


mundo como espelho da Vontade, isto é, o mundo que se revela de modo que cada fenômeno
é visibilidade da Vontade. Analogamente à relevância da Vontade, Schopenhauer diz que “[o]
mundo é minha representação”, sentença que implica na afirmação de que tudo o que existe,
existe para o conhecimento de quem representa, ou seja, é objeto para o sujeito que conhece e
está condicionado ao seu entendimento2. A vontade e a representação são os dois aspectos
fundamentais na obra schopenhaueriana sobre o mundo, cuja origem está no modelo idealista
transcendental kantiano3.
A proposta desta primeira seção é investigar apenas o lado cognoscível do ser humano,
a representação, e demonstrar como ela ocorre a partir das quatro figuras do princípio de
razão (sujeito/objeto, espaço, tempo e causalidade). Essa explicação nos possibilitará, além de
conhecer o que o autor do Mundo entende acerca do conhecimento humano, introduzir,
posteriormente, o que Rosset compreendeu acerca da causalidade em Schopenhauer, já que
causalidade se dá de modo suficiente para o conhecimento dos objetos externos, mas, por
outro lado, é insuficiente para fundamentar a compreensão da própria existência. Todavia,
esse último ponto, a ausência de causalidade na compreensão da existência, só será abordado
de modo mais abrangente no terceiro capítulo deste trabalho, quando trataremos a questão do
absurdo de modo mais detalhado.
A representação (Vorstellung) na filosofia de Schopenhauer é o primeiro fato da
consciência e possui um caráter semelhante ao fenômeno (Erscheinung) kantiano por ser
aquilo que se opõe à coisa em si e por estar submetida às formas de tempo, espaço e
causalidade.
Enquanto a Vontade possui uma condição inteiramente metafísica e incognoscível
quanto ao que seja em si mesma, a representação é o polo do Mundo que corresponde à
possibilidade de conhecimento.
2 “O entendimento é a faculdade da representação. Estruturado pelo princípio de razão suficiente (a tríade:
espaço, tempo e causalidade), seu papel é essencialmente perceptivo e pragmático” (ROGER, 2013, p. 21).
3 “A relação de Schopenhauer com Kant é de tal riqueza que a filosofia de Schopenhauer é classificada na
história da filosofia como um neokantismo. Schopenhauer considera a sua filosofia como um encerramento da de
Kant” (PERNIN, 1995, p. 22).
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Schopenhauer utilizou esse conceito – representação – como conteúdo inicial no


primeiro livro do MVR tendo por objetivo considerar o mundo sob o aspecto do entendimento
e da razão. A dimensão desse primeiro passo consistiu em demonstrar o aparecimento do
mundo enquanto objeto, ou fenômeno, aparência, e em expor os possíveis tipos de
conhecimento submetidos ao princípio de razão.
Para tal fim, Schopenhauer partiu da afirmativa “o mundo é minha representação” e
caracterizou tal sentença como sendo uma verdade a priori4 em sua filosofia, pois, segundo o
seu pensamento, nenhuma verdade é mais universal do que essa, visto que todo objeto é
objeto para um sujeito, forma geral do princípio de razão suficiente.
A verdade a priori declarada por Schopenhauer pressupõe que o conhecimento de algo
sempre depende de um sujeito que se relaciona com um objeto. Portanto, se existe um sol,
esse só existe – enquanto só se pode referir a uma existência como representação – porque há
um sujeito capaz de percebê-lo. Nesse sentido, o mundo inteiro é representação, é “intuição de
quem intui” é “objeto em relação ao sujeito”.
O sujeito e o objeto são as duas partes essenciais da representação, e caso uma dessas
metades desaparecesse, o mundo todo desaparecia. Diz Schopenhauer: “Tais metades são, em
consequência, inseparáveis, mesmo para o pensamento: porque cada uma delas possui
significação e existência apenas por e para a outra; cada uma existe com a outra e desaparece
com ela” (SCHOPENHAUER, 2015a, §2, p. 6). Assim, a relação do sujeito com o objeto é
necessária para que ocorra a representação, seja ela abstrata ou intuitiva, racional ou empírica,
tipos de representações, ou de conhecimentos, que serão expostos mais adiante, dado que
existência objetiva das coisas só é possível a partir de um ser capaz de representar em relação
com um objeto capaz de ser representado.
Essa forma de conhecer o mundo também implica num modo relativo do entendimento
sobre os fenômenos, já que a existência e as qualidades de qualquer objeto são sempre
relativas a um sujeito e às formas de seu modo de conhecer. Com isso, a existência dos mais
diversos objetos possui significações diferenciadas de acordo com o referencial daquele que
representa.
Levando em consideração a existência relativa mediante a representação,
Schopenhauer pretendeu encontrar um outro lado para o mundo, o lado mais íntimo e
totalmente diferente da representação, o lado da Vontade. Segundo o filósofo, “uma
semelhante explicação do mundo seria sempre apenas relativa, condicionada, seria
4 “Se alguma verdade pode ser expressa a priori, é essa; pois é a enunciação da forma de toda experiência
possível e imaginável, mais universal que qualquer outra forma, mais universal que tempo, espaço e causalidade,
pois todas essas já a pressupõem” (SCHOPENHAUER, 2015a, §1, p. 3).
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propriamente dizendo a obra de uma física que a cada passo anela uma metafísica” (2015b, p.
18). Seria a Vontade, então, a própria essência, enquanto a representação corresponde apenas
às aparências das coisas para o sujeito que as conhece, à fenomenalidade.
Sabendo que todo o mundo é representação para o sujeito que conhece, é válido
questionar como é possível conhecer e de que a representação é constituída. Para responder
essa questão, Schopenhauer expõe as formas que possibilitam a representação, ou seja, as
formas do princípio de razão, princípio explicitado por Leibniz e retomado por Schopenhauer,
ao qual todo objeto está submetido.
“Princípio de razão” é a forma de todo objeto, “o modo universal de sua aparição
fenomênica, o princípio constitutivo de toda representação” (ROGER, 2013, p. 60) composto
por: sujeito/objeto, tempo, espaço e causalidade.
O fato de a filosofia de Schopenhauer apresentar o sujeito e o objeto como termos
correlatos, sem colocar um ou outro como única causa da representação, o distancia de uma
filosofia materialista, para a qual o objeto é dado como independente do sujeito, e também de
uma filosofia cuja causa esteja inteiramente no sujeito, como no idealismo de Fichte. Assim,
Schopenhauer distingue sujeito e objeto e os coloca como termos relativos para o surgimento
da representação, ou do conhecimento, sendo o sujeito a metade que não se encontra no
espaço e nem no tempo, “pois está inteiro e indiviso em cada ser que representa”; apenas o
seu corpo pode ser encontrado no tempo e no espaço, e, enquanto tal, é objeto, pois objeto é
tudo aquilo que está no tempo e no espaço.
Toda representação é, portanto, conteúdo do princípio de razão, já que a representação
necessita dessas duas partes, sujeito e objeto, e uma dessas metades, o objeto, está
necessariamente no tempo e no espaço. Desta feita, compreendemos que o princípio de razão
pertence ao sujeito, mas só pode ser aplicado ao objeto.
A causalidade, uma das quatro figuras do princípio de razão suficiente, é possibilitada
pela relação entre tempo e espaço, formando uma conexão da qual resulta o entendimento. É
possível dizer que a causalidade seja como uma síntese do espaço e do tempo, pois nela há a
ideia de uma relação de dependência entre a existência temporal e espacial dos objetos de
maneira que aquelas formas se limitam reciprocamente determinando assim o objeto
representado em um tempo e em um lugar.
No decorrer do livro primeiro do MVR, Schopenhauer afirma que toda matéria
consiste em fazer-efeito (wirken), que os corpos possuem a capacidade de fazer efeito uns
sobre os outros e que o entendimento consiste em perceber modificações nos órgãos dos
sentidos, posto que a cada modificação percebida, o entendimento a representa como sendo
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efeito de uma causa. Assim, quando verificamos os outros corpos e constatamos suas
modificações entendemos que, igualmente aos efeitos que percebemos no nosso próprio
corpo, as modificações correspondem aos objetos que atuam sobre ele como causas daqueles
efeitos. Vejamos, nas palavras do autor: “O entendimento [...] possui sempre e em toda parte
a mesma forma simples: conhecimento da causalidade, passagem do efeito à causa e desta ao
efeito, nada mais” (2015a, §6, p. 24).
Sendo assim, a causalidade é a lei que possibilita as condições da percepção do que
está posto – mais do que isso, é ela mesma a “por” os objetos diante do sujeito (Vor-stellen) –,
confundindo-se, identificando-se com a própria atividade do entendimento, que envolve a
dependência entre relações temporais e espaciais dos fenômenos. Logo, caso não houvesse
essa correlação e apenas uma das formas do princípio de razão aparecesse de modo
independente na consciência, não seria possível explicar e nem conhecer os fenômenos.
Schopenhauer assegura que toda intuição é possibilitada e intermediada pelo emprego
da lei da causalidade, e que sem essa condição não chegaríamos à intuição de um mundo
objetivo.
Dessa maneira, todos os animais possuem um conhecimento que está atrelado à
capacidade de conhecer objetos segundo o conhecimento imediato do próprio corpo e de
reconhecer nos objetos modificações segundo a lei de causalidade.
O filósofo indica que, por vezes, nos surpreendemos com o conhecimento animal e dá
exemplos, como o do elefante que se recusa a atravessar uma ponte por intuir que a tal ponte
não suportaria o seu peso, e o do cão pequeno que teme pular da mesa, para ilustrar de que
modo o animal consegue intuir certas relações sem que para tanto lhe seja necessário refletir,
tratando-se, sim, apenas de um conhecimento a priori da relação de causa e efeito.
O conhecimento pela causalidade é a base do que Schopenhauer compreendeu ser o
tipo de conhecimento mais primitivo e comum a todos os animais, o conhecimento intuitivo,
ou representação intuitiva, empírica. Nesse âmbito de representação há uma abertura dos
sentidos e do entendimento, mas que é restrito e não diz respeito à reflexão e ao conceito.
Segundo Clément Rosset, o absurdo já se encontra na concepção de causalidade na
filosofia de Schopenhauer, e é exatamente nesse ponto que Rosset indica o que seria “a maior
absurdidade”: a constatação da ausência de necessidade e de causalidade para a existência em
geral, para a natureza em geral e para o querer em geral. Rosset percebe que em
Schopenhauer só há necessidade e causalidade do ponto de vista fenomenal e este, sendo mera
representação, é mera contingência.
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Nesse sentido, a causalidade se aplica ao fenômeno, mas a existência mesma está


isenta de fundamentos. Só as aparências são fundamentadas, mas a realidade mesma não pode
ser, pois ela não está submetida ao princípio de razão: “O absurdo, para Schopenhauer, dito
propriamente, não consiste no contraditório e no ilógico, mas no incausado” (ROSSET, 1994,
p. 77).
Sendo assim, a descoberta de uma existência absurda está, sobretudo, na constatação
de que a existência não possui origem, não possui razão e não possui causa. Para Rosset, não
há nada, nenhum outro aspecto do pessimismo na filosofia de Schopenhauer, que se compare
à decepção perante essa ausência de causa para o mundo; esse seria o “mal fundamental” de
toda a filosofia schopenhaueriana. Diz Rosset (1994, p. 81): “é a ausência de causa que é o
mal”. Daí o pessimismo, não sentido originário, nem final.
O saber sobre o absurdo é exclusivo do homem, pois ele pode descobrir que sua
existência não é necessária, mas absurda. Já o animal está salvo dessa compreensão por não
haver nele uma consciência refletida. Vejamos, a seguir, de que modo o conhecimento
humano ultrapassa o conhecimento comum à animalidade e quais as implicações de um
conhecimento mais aprimorado na vida humana.

1.2. Do conhecimento mais complexo e exclusivo ao homem

Vimos no tópico anterior como se dá a possibilidade do conhecimento de modo geral e


que pela causalidade os animais podem perceber algumas relações concretas entre os
fenômenos. O que expusemos até então foi como se dá o conhecimento mais simples, o ato
originário de conhecer, ou de representar, o que Schopenhauer chamou de representação
intuitiva e que diz respeito a todo mundo sensível e às experiências.
Já nesta seção nos ocuparemos em demonstrar de que maneira Schopenhauer percebe
o conhecimento humano, a partir das suas diferenças e peculiaridades em relação aos animais
em virtude da presença de uma faculdade de representação abstrata. E, ao expor de que se
trata a representação abstrata, apresentaremos de que maneira a condição racional, ou
abstrativa, se comporta, a partir de criações reflexivas e conceituais, mas também como a
presença da razão implica em alguns males, tais como a dúvida e a angústia.
De acordo com o explicitado anteriormente, concluímos que é na representação
intuitiva que o conhecimento é possibilitado através do dado sensível determinado segundo a
causalidade testemunhada entre fenômenos. Todavia, Schopenhauer também afirmou que
18

existem diferentes graus cognitivos entre as espécies animais, e que há desde graus com
bastante proximidade à capacidade intelectual-intuitiva humana até níveis que se aproximam
das plantas, entre as quais não se verifica nenhuma percepção de objetos. Isso se deve ao fato
de que, mesmo estando presente em todos os animais, o intelecto não se manifesta da mesma
maneira, posto que a manifestação fenomenal do intelecto é o cérebro, e a partir da presença
ou não de um sistema nervoso cerebral mais desenvolvido é que se faz possível medir a sua
relativa complexidade.
No ser humano, em especial, Schopenhauer observou um complexo sistema nervoso e
uma ampla variação sobre o intelecto e elucidou que cada homem é possuidor de
características intelectuais distintas, chegando, por isso, até a mencionar que cada indivíduo é
como uma espécie. O filósofo classifica, também, os homens segundo o intelecto e diz haver
variações intelectuais que vão “do obtuso até o gênio”.

[…] o intelecto tem não apenas graus de estimulação, desde a sonolência


passando pelo humor e o entusiasmo, mas também graus de sua essência
mesma, de sua perfeição, a qual, por conseguinte, ascende gradativamente
desde a mais baixa, em animais que percebem apenas confusamente, até o
ser humano e, neste, desde a cabeça obtusa até o gênio. (SCHOPENHAUER,
2015b, Cap. 19, p. 250)

Para Schopenhauer o intelecto no reino animal tem como atividade a apreensão do


mundo. O filósofo percebe o intelecto como uma função cerebral do ponto de vista objetivo,
embora, na verdade, o cérebro seja apenas o correlato físico do intelecto, cujo fim é servir à
vontade de vida, que sempre está à procura de objetos para satisfação de um querer. A partir
da presença do intelecto, o ser humano, assim como os animais, pode encontrar meios
favoráveis para sua autoconservação, pois é o intelecto que regula as relações de um
determinado organismo com o mundo. Sobre as diferenças entre o conhecimento animal e
humano, diz o autor:

De fato, enquanto o animal é sempre motivado apenas por uma


representação intuitiva, o ser humano, ao contrário, esforça-se em excluir
completamente esse tipo de motivação, ao procurar determinar-se
exclusivamente por motivos abstratos, utilizando assim sua prerrogativa, a
razão, em vista da maior vantagem possível, e, independentemente do
presente, não se limita a escolher ou evitar a fruição ou a dor passageiras,
mas pondera as consequências de cada uma delas. (2015a, §55, p 346.)

A representação abstrata é a passagem da intuição para a reflexão, mas sem que essa
reflexão perca o seu apoio na intuição que consiste em seu conteúdo material inicial, haja
19

vista que “todo o edifício do nosso mundo de pensamentos repousa sobre o mundo das
intuições” (2015b, Cap. 7, p. 85).
Na representação abstrata a razão se comporta como uma espécie de reflexo sobre os
fatos, extraindo do material empírico particular elementos universais, promovendo a
capacidade de desenvolver conceitos e raciocínios sobre eles. A razão, pontua Roger, “possui
um papel passivo” (2013, p. 63), posto que ela só “recebe” os dados imediatos e os transforma
em conceitos. Não é raro encontrar a definição da razão, ou do conhecimento abstrato, como
sendo “a representação de uma representação”, pois é assim mesmo que ela se comporta:
como uma faculdade capaz de refletir acerca das representações intuitivas, de modo que o
conhecimento não se restrinja apenas aos dados sensíveis.
O filósofo defendeu que a racionalidade é a responsável pelas construções de
verdades, reflexões, conceitos e linguagens, inclusive por construções interiores, como a
imaginação propositada, tal como encontramos nas fábulas.
Dito de outro modo, Schopenhauer reconhece a representação abstrata como um tipo
de representação comunicável e, também, como um tipo de conhecimento objetivo, capaz de
construir conceitos, enquanto o conhecimento intuitivo se limita ao subjetivo e ao que há de
mais rudimentar, como a autopreservação, não atendendo às demandas comunicativas mais
elaboradas.
Se na representação intuitiva há a presença de impressões sensoriais, na representação
abstrata o que há é o conceito, e é por isso que a filosofia, a ciência e a literatura, por
exemplo, são consequências de representações abstratas, justamente porque exigem
raciocínio, reflexão, linguagem, em uma palavra: comunicabilidade.
Dessa maneira, observamos que quanto mais complexo for o intelecto, mais
complexas serão também as suas atividades, e que há no homem uma diversidade de ofícios,
inclusive com atribuições criativas, enquanto nos animais observa-se apenas tarefas mais
especializadas e repetitivas que condizem com o que há de mais instintivo nos seres dotados
de algum conhecimento: a autopreservação.
Em sua obra magna, Schopenhauer afirma que quanto mais rebuscada e genial for a
obra literária ou filosófica, mais contiguidade com a intuição ela precisará ter. O trabalho do
gênio, de acordo com o autor, é comunicar e desenvolver a sua obra com bastante
proximidade da intuição que origina o conceito, e esse foi o motivo que levou Schopenhauer a
reconhecer que “todas as grandes cabeças sempre pensaram na presença da intuição e em seu
pensamento mantiveram fixa a mirada sobre esta” (2015b, Cap. 7, p. 87).
20

Schopenhauer percebeu que a intuição é o tipo mais real de conhecimento, mas


também alertou que a “imagem” da intuição está sujeita a apagar-se com o tempo e só pode
ser conservada a partir dos conceitos. Dito isto, há uma valorização da representação abstrata,
pois há nela a possibilidade de transmissão e de conservação dos conceitos que tiveram a
intuição como pressuposto:

O valor inestimável dos conceitos, e por conseguinte, da razão pode-se medir


quando lançamos o olhar para a multidão infinita e diversificada de coisas e
estados existentes sucessiva e conjuntamente, e então consideramos que
linguagem e escritura (os signos dos conceitos) possibilitam, todavia, que
uma precisa informação nos chegue sobre cada coisa e cada relação, não
importando quando e onde tenham ocorrido; justo porque relativamente
poucos conceitos abarcam e representam uma infinitude de coisas e estados.
(SCHOPENHAUER, 2015b, Cap. 6, p. 76).

Porém, ao contrário do racionalismo e das ciências que destacam a razão como


elemento basilar, não é parte da pretensão de Schopenhauer apoiar a sua filosofia na soberania
da razão para fundamentar as ações humanas e, menos ainda, fundamentar uma essência nela.
Schopenhauer parece muito mais interessado em abalar essa estrutura cognitiva, enquanto
conteúdo fundamental de certezas filosóficas e científicas, do que remetê-la a uma condição
de garantias. Veremos, a partir do próximo capítulo, de que modo o filósofo retira a relevância
da razão para fundamentar as ações humanas, posto que a razão não tem nenhum poder sobre
o querer e não pode determinar nada, já que a Vontade em nada se relaciona com concepções
racionais.
É verdade que, na filosofia de Schopenhauer, o uso prático da razão pode servir de
instrumento para evitar certos danos e para projetar ações futuras, e por isso mesmo ela é um
elemento bastante relevante para a sabedoria, visto que essa consiste em uma ponderação
racional a fim de viabilizar o discernimento sobre as mais diversas situações da vida.
Contudo, na filosofia schopenhaueriana, tudo está submetido à Vontade, inclusive a razão, e
não há nada que tenha mais preponderância do que a Vontade na vida humana, mas
Schopenhauer ainda nos dá mais motivos para a desvalorização da razão, faculdade intelectual
do ser humano.
A filosofia schopenhaueriana destitui a soberania da razão, pois a razão induz aos
pensamentos e às reflexões incessantemente, e nisso ela incita ao erro pela via da dúvida, e até
mesmo pelas criações imaginárias que não se associam à realidade: “nos conceitos abstratos,
nos pensamentos e nas palavras, entra tudo o que é só imaginável, logo, também o falso, o
21

impossível, o absurdo, o disparate” (2015b, Cap. 6, p. 82). Dessa maneira, o homem está
sujeito ao erro, ao contrário dos animais, pois neles o intelecto opera em total adequação com
a vontade, enquanto no homem a razão confabula. Segundo Brum (1998, p. 27), “o homem é
doravante passível de erro. Pode imaginar, inventar “motivos imaginários” capazes de
extraviá-lo em um mundo distante de suas necessidades reais”.
Além de induzir ao erro, a razão também intensifica o sofrimento humano, sobre isso,
diz Moraes (2015, p. 162): “A vantagem que tem o homem sobre o restante da natureza, a
razão, potencializa suas dores como se já não bastasse para tanto seu complexo sistema
nervoso, particularmente suscetível à dor em todos os mamíferos”. Isso porque a razão nos
antecipa problemas futuros e nos faz reviver, através da memória, momentos do passado,
despertando dúvidas e remorsos acerca das situações vindouras e passadas.
Mas, Schopenhauer não foi o único a pensar a razão enquanto condição capaz de
intensificar os males, Albert Camus (1913 – 1960), em O mito de Sísifo, também diz que
“começar a pensar é começar a ser atormentado”.
Por fim, é legítimo dizer que, mesmo diante de uma fragilidade racional, a filosofia
schopenhaueriana reconhece uma necessidade humana de formular garantias, elencar
objetivos e compreender as mais diversas causas do mundo a fim de, com isso, estabelecer e
de encontrar consolos e justificativas para existência apoiando-se na razão.
O filósofo considera que é típico e exclusivo do ser humano a razão, mas também o
espanto5, e que, por meio dessas duas qualidades, os homens tendem a buscar justificações
para a própria existência.
É a partir do desejo de desvendar o conhecimento das mais diversas causas que
Schopenhauer compreende a presença de uma necessidade metafísica na vida humana e
classifica o ser humano como animal metaphysicum em virtude da ânsia que possuímos em
encontrar entendimentos acerca da existência. Cito:

[…] se há uma coisa digna de ser desejada no mundo, tão desejável que até
mesmo a turba tosca e grosseira em seus instantes de clareza de consciência
iria valorizar mais que prata e ouro; essa coisa é um raio de luz que caia
sobre a obscuridade do nosso existir e nos dê clareamento sobre esta
enigmática existência. (SCHOPENHAUER, 2015b, Cap. 17, p. 199.)

No entanto, como estabelecer a “clara consciência” sobre as mais diversas causas se


Schopenhauer demonstrou a fragilidade da razão e a limitou ao conhecimento dos fenômenos,

5 “[...] nenhum ser, excetuando-se o humano, espanta-se com a própria existência” (SCHOPENHAUER, 2015b,
Cap. 17, p. 195).
22

sem que jamais um conhecimento racional pudesse alcançar a essência última e absoluta das
coisas e as suas origens? Segundo Schopenhauer, “a mera razão de conhecimento sempre
permanece na superfície” (2015a, §15, p. 82), e jamais pode responder mais profundamente
acerca das questões existenciais sobre as quais nos debruçamos, posto que o princípio de
razão pode responder acerca das aparências, mas é insuficiente para explicar de onde elas
vieram e para que existem.
Em seu ensaio, Schopenhauer, filósofo do absurdo (1967), Rosset defende que a
filosofia de Schopenhauer parte de uma intuição primeira e que essa seria a concepção de um
mundo em oposição completa a toda espécie de razão ou justificação.
Nesse sentido, Rosset acredita que a busca por fundamentações acerca de questões
existenciais em um mundo sem razão, fundamento e causa só reafirma a noção do absurdo,
visto que o ser humano persegue fins e organiza, exaustivamente, meios para alcançar as tais
fundamentações acerca da existência.
Sendo assim, o que Rosset entende por absurdo não se reduz somente a um mundo
onde não exista necessidade nem finalidade, mas, sim, se refere a um mundo no qual essas
condições estão ausentes no que diz respeito a sua existência mesma e, ainda assim, os
homens as perseguem, sem jamais alcançá-las. Nas palavras do autor:

Esta ausência de finalidade no mundo não é em si mesma um tema absurdo,


pois se poderia muito bem imaginar o mundo inteiramente desnudado de
finalidade, mas cuja ausência de finalidade não fosse em si um objeto de
espanto. Em tal mundo nada imporia ao espírito a ideia de finalidade, de
modo que não se teria nenhuma ocasião para se tomar consciência dessa
ausência. Mas esse não é o caso do mundo que nós conhecemos, onde tudo
conspira, ao contrário, para sugerir essa ideia. Apesar de não existir fim, tudo
está organizado em vista de um fim. (ROSSET, 1994, p. 70).

Inclusive, a ausência de causa e de razão para a existência é considerada como um


mal, segundo Rosset, que compõe o absurdo em Schopenhauer, pois “é a ausência de causa
que é o mal”. A razão, diante disso, procura um consolo para esse mal, e constrói toda sorte
de fantasias sem, contudo, obter sucesso.
É importante notarmos, nesse ponto, como o desejo humano de conhecer as diversas
causas atrai um certo tipo de angústia, pois, na medida em que o ser humano procura razões
defensáveis para determinar o que ele seja ou o que seja alguma coisa no mundo, ele se
depara com a inexistência de razões para ele mesmo e para os mais diversos objetos. A
ausência de razões, ou de determinações, ocasiona angústia porque, diante da necessidade que
23

temos em determinar as coisas, não encontramos determinações, mas sim um vazio sobre o
que essas coisas sejam.
O desejo de desvendar o enigma da existência a partir do conhecimento racional seria,
então, uma ilusão que pertence a um extenso cenário de angústias, pois há um sentimento de
insuficiência e de ausência até mesmo diante do desejo de conhecer.
2. O QUERER NA VIDA HUMANA

2.1. O núcleo da existência

Vimos no capítulo anterior de que modo Schopenhauer compreende o conhecimento


no mundo e como o filósofo percebeu um conhecimento exclusivo ao homem em virtude da
presença da razão. Em síntese, nessa primeira abordagem ficou entendido que há um tipo de
conhecimento que depende da nossa experiência com os objetos externos, e que a existência e
as qualidades desses objetos são relativas à nossa própria representação.
No entanto, a partir do segundo livro de sua obra magna, Schopenhauer demonstrou
que há algo nos seres que independe do conhecimento fenomênico, da representação, visto
que esse algo não está posto nas formas do princípio de razão suficiente: se trata daquilo que o
ser é em si mesmo e que Schopenhauer considera como essência do mundo, núcleo da
existência, ou Vontade.
Nesta seção veremos de que modo Schopenhauer compreende Vontade, o núcleo da
existência, e como podemos apreender as manifestações da vontade imediatamente a partir de
um sentido interno. Para isso é necessário exemplificar como ocorrem as manifestações da
vontade a partir das mudanças de estados no nosso próprio corpo, embora a compreensão
dessas manifestações seja insuficiente para o conhecimento da Vontade de modo estrito, pois
mesmo que as manifestações sejam sentimentos não causados que se apresentam de modo
imediato ao sujeito, ainda estão condicionadas à forma temporal, ou seja, estão submetidas ao
princípio de razão, e a Vontade mesma, enquanto coisa em si, é livre de qualquer
representação, visto que não está submetida ao conhecimento.
É legítimo dizer que Schopenhauer construiu o seu pensamento acerca da Vontade na
pretensão de responder a questão que tradicionalmente se apresentava aos seus
contemporâneos: o que se esconde por trás do mundo fenomênico, isto é, do mundo das
aparências? A perspectiva de Schopenhauer para essa pergunta acrescentou um passo na
Filosofia Moderna, trazendo a Vontade como núcleo da existência, diferenciando o que é
aparente do que é essencial, porém, sem submeter o essencial à divindade ou à razão, como
fizeram os seus antecessores.
25

A Vontade, ou coisa em si, é concebida na filosofia de Schopenhauer como natureza


íntima e indestrutível do homem,6 como o núcleo de todas as coisas existentes, força cega e
dinâmica, livre7 de formas e absolutamente diferente das suas aparências. É o aspecto mais
significante em toda a sua filosofia, pois mesmo que o mundo todo possa ser visto como
Vontade e como representação, a Vontade é comum a todos os seres e a mais profunda e real
instância do mundo. De acordo com Cartwright (2005, p. 181), “o mundo em todas as suas
partes e pluralidade é vontade, e ele [Schopenhauer] argumentou que a própria existência, o
tipo de existência do todo e de cada uma das partes do mundo, advém da vontade”.
Sendo a Vontade dada como a essência presente em tudo o que há e como aquilo que
há de comum em cada organismo, Schopenhauer chegou a concluir que “também somos coisa
em si”, justamente em decorrência da presença constante e ininterrupta da vontade nas mais
diversas formas de vida. Em consequência disso, há em sua filosofia uma abertura para a
identificação do corpo com a vontade, visto que o filósofo percebe o corpo todo como
visibilidade da vontade.
Schopenhauer argumenta que no corpo as afecções da vontade dão sinais de si de
modo mais imediato, de tal maneira que o próprio corpo é a condição de conhecimento da
vontade. Sobre a correspondência do corpo com a vontade, elucida o filósofo:

Todo ato verdadeiro, autêntico, imediato da vontade é também simultânea e


imediatamente ato do corpo que aparece: e, em correspondência, toda ação
sobre o corpo é também simultânea e imediatamente ação sobre a vontade:
que enquanto tal se chama dor, caso a contrarie, ou bem-estar, prazer, caso
lhe seja conforme. (SCHOPENHAUER, 2015a, §18, p. 118).

Dessa maneira, é no corpo onde Schopenhauer enraíza a descoberta da vontade, pois o


corpo é o lugar onde o ser humano pode experienciar a sua força, essa que nele se torna
aparente mediante as afecções do querer. A exposição de corpo e vontade como uma e mesma
coisa perpassa por uma analogia do corpo como uma espécie de espelho que reflete a vontade,
visto que nos movimentos dos corpos é possível reconhecer os movimentos da vontade.
Se no livro primeiro da sua obra principal Schopenhauer apresenta o corpo como
objeto capaz de ser representado como qualquer outro fenômeno pelo sujeito que conhece, a
partir de uma representação intuitiva espaço-temporal, no livro segundo o autor o identifica

6 “A vontade, como coisa em si, constitui a íntima, a verdadeira e indestrutível essência do ser humano [...].”
(SCHOPENHAUER, 2015b, Cap. 19, p. 243).
7 “Por outro lado, entretanto, este mesmo mundo, na totalidade das suas aparências é para nós objetidade da
vontade, que, por não ser ela mesma aparência, representação ou objeto, mas coisa em si, não está submetida ao
princípio de razão, a forma de todo objeto; portanto não é determinada como consequência por um fundamento,
logo, não conhece necessidade; em outras palavras, é livre”. (SCHOPENHAUER, 2015a, §55, p. 332).
26

como vontade e enfatiza que a representação do próprio corpo se dá de maneira totalmente


diferente das demais representações, pois todos os outros objetos não são dados de modo
duplo tal como o próprio corpo é. Nesse sentido, diferentemente das demais representações,
nas quais o conhecimento dos objetos se dá de maneira mediata e exterior, há no corpo, e
somente nele, a condição de um conhecimento imediato e íntimo.
A representação imediata está inteiramente ligada à noção de tempo, sem qualquer
relação com a noção de espaço, é a primeira a aparecer na consciência e diz e respeito ao
sentido interno. Há nessa representação, e somente nela, o reconhecimento da vontade a partir
das sucessivas intercorrências de estados provocadas pelas excitações do querer.
As excitações do querer são comuns em qualquer corpo onde há a vontade afirmada,
isto é, onde a vontade é presente o corpo expressa as suas afecções, tais como dor, prazer,
paixão, necessidade, tédio e desejo, dentre várias outras.
Schopenhauer identificou no querer o modo de expressão do em si em cada corpo e
demonstrou que o movimento de um corpo é condicionado por um objeto representado pelo
qual a vontade se interessa; esse interesse se mostra como ato de querer, movimento corpóreo,
que age como uma espécie de bússola, nos movimentando sempre em uma ou outra direção,
sem cessar, a fim de satisfazer aos desígnios da vontade. Existir, portanto, significa ter a
presença constante do querer, posto que em tudo há uma Vontade como essência e, desse
modo, um querer que se revela nos atos dos corpos.
A partir dessa perspectiva é possível pensar a filosofia de Schopenhauer como uma
filosofia dos afetos, visto que o núcleo da existência, ou a essência de tudo o que há, é
reconhecido a partir do conhecimento das manifestações dos prazeres e dos desprazeres nos
próprios corpos. O filósofo esclarece que os afetos condicionam, afetam e movem o intelecto.
Há a preponderância dos afetos em sua filosofia porque a essência não é racional, e
por isso o foco da existência não pode estar submetido a uma racionalidade. Inclusive, nessa
sujeição, os afetos podem até negar e rejeitar os progressos intelectuais na vida humana,
ressalta o filósofo: “o que se opõe ao coração a cabeça não admite” (2015b, Cap. 19, p. 263).
Não é muito raro perceber que constantemente tomamos o certo e o errado a partir dos
nossos próprios sentimentos, sem que para isso façamos uso de um juízo racional.
Schopenhauer cita Bacon de Verulâmio (1561 – 1626) para fundamentar os motivos dessa
recorrente atitude: “O intelecto não é uma luz seca, mas recebe influência da vontade e dos
afetos, com os quais produz conhecimento conforme nossa vontade. O ser humano prefere
antes de tudo acreditar no que mais quer” (2015b, Cap, 19, p. 264). E acrescenta: “Stat pro
27

ratione voluntas”8, demonstrando que há uma resistência da Vontade contra o conhecimento e


que nenhum conhecimento pode impedir e modificar a Vontade.
Ainda sobre a vontade, vale dizer, também, que o modo interno e imediato que
Schopenhauer identificou como a condição para o conhecimento dela no próprio corpo é o
que caracteriza a sua metafísica como uma metafísica imanente, pois quando o filósofo afirma
que a vontade, núcleo de toda e qualquer existência, se revela como “natureza íntima” de cada
corpo, ele está categorizando a sua metafísica a partir de um querer que se revela em cada um
de modo particular, sendo cada pessoa capaz de observar impressões da vontade em sua
própria subjetividade.
“Imanente” significa a permanência no âmbito da experiência, e em razão disso, não
existe na filosofia de Schopenhauer conclusões que estejam fora da própria experiência. Tudo
que existe só existe por uma assimilação e identificação a partir da própria experiência. Dessa
maneira, Schopenhauer encontrou na experiência com o próprio íntimo o embasamento
necessário para sua metafísica imanente, pois, segundo o autor, a noção de um conhecimento
interior serve muito mais para o entendimento da natureza em geral do que um conhecimento
exterior baseado na mera aparência.
O filósofo expressamente demonstra que a sua compreensão acerca da essência e
núcleo do mundo parte muito mais de uma interioridade do que de qualquer outro meio, e
ressalta que “temos que aprender a compreender a natureza a partir de nós mesmos, e não a
nós mesmos a partir da natureza. O que é diretamente conhecido por nós deve nos fornecer a
explicação sobre o que é indiretamente conhecido, e não vice-versa” (2015b, Cap. 18, p. 237).
Dessa feita, a metafísica de Schopenhauer é reconhecidamente dada como uma metafísica
imanente, pois, vale dizer: ela é um saber que surge de uma interioridade que é Vontade.
Nesse sentido, todo ato da vontade não se diferencia das ações dos corpos e, por isso
mesmo, os atos de vontade só podem ser conhecidos a partir de mim, do meu corpo. A
identificação da vontade com o próprio corpo é o que permite uma abertura para o
conhecimento da vontade como essência íntima de todos os seres, pois se meu corpo é
vontade e todos os outros seres são possuidores de um corpo, então em todos os seres
corporais há uma identidade com a vontade, assim como há em mim também. Dito isso,
embora os corpos possam ser meras aparências, objetos em relação ao sujeito, fenômenos
submetidos ao princípio de razão, são, também, vontade.
Todavia, é necessário ressaltar que a Vontade enquanto coisa em si permanece oculta
ao entendimento, pois mesmo que as afecções do querer nos corpos possibilitem um

8 “A vontade dispensa razões.”


28

conhecimento imediato sobre a vontade, a intuição só nos apresenta fenômenos, nunca a coisa
em si mesma. De acordo com Moraes (2017, p. 350):

A possibilidade da coisa-em-si, para Schopenhauer, é antes encontrada na


imanência, no sentimento íntimo do querer/não-querer não condicionado
pelo intelecto e suas formas. Há, desse modo, uma importantíssima ressalva
com relação à cognoscibilidade da coisa-em-si, que não é cognoscível nela,
mas em mim e a partir de mim.

A coisa em si, no sentido estrito, permanece incognoscível, já que só conhecemos a


vontade individual de modo imediato, e mesmo sendo esse o único modo que Schopenhauer
apresenta algum conhecimento sobre a vontade, ele ainda é fenomênico, visto que está
submetido à forma temporal e a coisa em si é livre de qualquer perspectiva fenomenal. Ou
seja, a coisa em si não é algo que está posto para os outros e não se dá em perspectiva de
tempo, espaço e causalidade.
O tempo e o espaço, de acordo com o filósofo, são representações que “existem
apenas em minha cabeça”, e por isso mesmo a coisa em si dispensa essas formas de
conhecimento, visto que “o lado real tem de ser algo toto genere diferente do mundo como
representação” (2015b, Cap. 18, p. 234).
Assim, na filosofia de Schopenhauer não compreendemos a essência a priori, mas só a
compreendemos a posteriori, a partir das afecções da vontade manifestas no corpo, sendo o
conhecimento do nosso próprio querer aquilo que mais nos aproxima do conhecimento da
vontade. Por esse motivo é que Schopenhauer admite que “em tudo o que conhecemos resta
oculto um certo algo como completamente insondável, e temos de confessar que não podemos
compreender a fundo nem mesmo as mais comuns e simples aparências” (2015b, Cap. 18, p.
235), visto que todos os objetos se expõem somente em aparência e possuem características
que nos são desconhecidas, já que a essência continua sendo insondável e só nos é revelada
fenomenalmente, a partir de atos sucessivos do querer.

2.2. Considerações acerca daquilo que se é, ou sobre a imutabilidade do caráter


29

Em sua filosofia, Schopenhauer assinala que tudo o que se expressa como vontade e
querer em uma pessoa é expressão de um caráter (Charakter). De acordo com o filósofo, o
caráter é o que há de mais essencial no homem e as ações humanas são apenas exteriorizações
sempre repetidas de um mesmo caráter.
Schopenhauer reconhece que há três considerações acerca do caráter: o inteligível, o
empírico e o adquirido, sendo o caráter inteligível, ou originário, aquele que coincide mais
propriamente com o ato originário da vontade. Nas palavras do filósofo o caráter inteligível “é
a vontade como coisa em si na medida em que aparece num determinado indivíduo e num
determinado grau [...]. O caráter inteligível de cada ser humano deve ser considerado como
um ato extratemporal, indivisível e imutável da vontade” (2015a, § 55, p. 335).
A consideração de Schopenhauer acerca do caráter inteligível indica que existem
características nos humanos que são inatas por não terem sido desenvolvidas em virtude de
influências sociais, culturais ou a partir de métodos de aprendizagem, mas sim pela sua
completa identidade com a vontade. Segundo o filósofo, há uma constância relativa às
peculiaridades de cada indivíduo e nisso há, consequentemente, uma perenidade sobre o que
as pessoas são em si mesmas. Em vista dessa realidade, o modo de agir de cada pessoa está
sempre em conformidade com um caráter originário, isso é, caso a vontade permaneça
afirmada no indivíduo, pois quando há a negação da vontade o caráter da pessoa também é
suprimido.
A permanência do caráter originário de um indivíduo permite que seus traços se
exteriorizem nas mais diversas ações, e essas manifestações do caráter originário na
experiência é o que Schopenhauer compreende como caráter empírico. De acordo com o
autor: “O caráter empírico tem de fornecer num decurso de vida a imagem-cópia do caráter
inteligível e não pode tomar outra direção a não ser aquela que permite a essência desse
último” (2015a, §28, p. 184). Dessa maneira, o caráter originário é livre de aparências e de
fundamentos, mas pode dar sinais de si de acordo com as afecções que cada indivíduo
expressa continuamente em sua própria experiência, em conformidade com o caráter
empírico.
Schopenhauer não percebe a presença de um caráter originário e empírico somente nos
homens, mas até mesmo nos animais e nas plantas. O filósofo considera que as plantas
expressam o seu caráter segundo suas fisionomias, ou figuras, e os animais a partir de suas
ações e esforços. De acordo com o autor, a planta é mais inocente do que o animal e o animal
é mais inocente do que o homem, visto que no homem há a capacidade de dissimulação,
enquanto que nesses outros seres essa característica não existe, ou seja, nos outros seres
30

aquilo que é comum à natureza do seu próprio ser pode aparecer até de maneira mais pura do
que nos homens, pois os homens, de acordo com os seus interesses, podem manipular as
aparições dos seus desejos em suas atitudes, enquanto os outros seres expressam em suas
próprias fisionomias aquilo que são.
Todavia, há uma semelhança entre os seres, como entre os animais e plantas, por
exemplo: a presença da vontade de vida que se manifesta a partir de um ímpeto cego pela
existência. Mediante a presença da vontade de vida, portanto, há a presença de um caráter
inteligível e de um caráter empírico que correspondem à vontade que se encontra em cada um
deles.
Já o caráter adquirido, como o próprio nome já indica, é o caráter que se conquista.
Esse caráter é exclusivo aos seres humanos, pois um caráter adquirido depende de uma
reflexão, e a reflexão é exclusiva aos homens e ausente nos outros seres, visto que para refletir
é necessário que haja razão, e os animais não demonstram refletir, portanto, não possuem
razão de acordo com a filosofia de Schopenhauer.
O caráter só pode ser adquirido mediante a consciência daquilo que se apresenta na
própria experiência, sendo assim, essa consideração de caráter depende completamente de um
conhecimento abstrato. Sobre essa consideração de caráter, diz Schopenhauer (2015a, § 55, p.
353):

[...] é o conhecimento mais acabado possível da própria individualidade:


trata-se do saber abstrato e distinto das qualidades invariáveis do nosso
caráter empírico, bem como da medida e direção das nossas faculdades
espirituais e corporais, logo, trata-se de saber dos pontos fortes e fracos da
nossa individualidade.

No parágrafo §55 da sua obra magna, Schopenhauer identifica o caráter adquirido


como um caráter que pode ser conquistado ou não. Conquistar um caráter significa possuir
uma regularidade nas ações mediante o uso da razão, já que a razão corresponde à capacidade
de abstração, e a abstração sobre as próprias ações é o que possibilita o autoentendimento e a
ponderação sobre as mais diversas situações na vida de uma pessoa.
A possibilidade de autoconhecimento pela reflexão é uma condição para o caráter
adquirido, pois a partir de uma autoanálise é que o indivíduo pode considerar e reconhecer
comportamentos que lhe são comuns. Já a sabedoria é um possível resultado que advém do
autoconhecimento.
31

Schopenhauer indica que com o tempo é que os motivos se apresentam com mais
clareza ao entendimento, e que somente a partir de uma análise sobre as próprias ações no
decorrer do tempo é que se torna possível alcançar uma sabedoria, essa que é pautada na
escolha de meios mais adequados para o melhor agir em conformidade com aquilo que se é.
Mas, ainda assim, é necessário acrescentar que há tendências constantes em cada
pessoa que não podem ser explicadas, visto que cada pessoa é parte comum de uma essência
sem razão, e se a essência é sem fundamento, o caráter dos indivíduos não pode escapar dessa
mesma disposição. Além do mais, há sempre algo em nós mesmos que nos é desconhecido
porque o tempo nem sempre é o bastante para que a experiência do autoentendimento seja
capaz de nos esclarecer detalhes acerca da nossa própria natureza. Desse modo, o
autoconhecimento se dá sempre de modo parcial ao indivíduo.
Portanto, a partir de uma compreensão do que expressamos e desejamos, podemos
mediar as nossas ações de acordo com aquilo que nos é realmente possível e alcançável,
sendo essa via a única possibilidade que há para o aperfeiçoamento de comportamentos.
Concordamos com Debona quando diz que:

[...] o caráter adquirido pode ser considerado o principal elemento


suplementar à ontologia determinística do seio da metafísica do seio da
vontade. É esta noção que torna possível uma consideração do indivíduo
pautada, sobretudo, nas ideias de experiência adquirida, de
autoconhecimento e de instrução do intelecto, noções configuradoras da
porção “melhorável” de cada individualidade, dimensão da personalidade
conquistada pela experiência consigo mesmo, com os outros e em sociedade.
(DEBONA, 2013, p. 129)

A permanência das mesmas tendências no indivíduo e a incapacidade em acolher


efetivamente as instruções para mudanças de comportamentos que nos são ofertadas revelam
a impossibilidade de modificar aquilo que somos, mas, mais do que isso, revela que por ser
idêntico à vontade, o caráter também é imutável. O filósofo também indica que mais
frustrante do que tentar modificar a si mesmo é a tentativa de modificar o outro, pois,
argumenta ele:

Nada é mais fastidioso do que disputar com argumentos e explicações com


alguém, empregar todo esforço para convencê-la supondo lidar meramente
com o seu entendimento, - para ao fim descobrir que ela não quer entender;
portanto, lidávamos com a sua vontade, que se furtava à verdade e
arbitrariamente lançava mão de mal-entendidos, chicanas, sofismas,
entrincheirando a si mesma atrás do seu entendimento e sua pretensa falta de
intelecção. Nada se conseguirá com tal indivíduo. (SCHOPENHAUER,
2015b, Cap. 19, p. 273.)
32

De certo modo, a imutabilidade intrínseca ao caráter contribui para que ocorra um


conhecimento parcial acerca daquilo que somos, pois o caráter adquirido resulta da reflexão
do caráter empírico, que permite a intelecção daquilo que se é, o caráter inteligível, que é
independente de tempo, espaço e causalidade, em conformidade com o qual devem estar as
máximas do caráter adquirido. Daí, através de uma constância de atitudes exteriorizadas, o
indivíduo pode tomar consciência sobre a natureza daquilo que se expressa em suas atitudes.

Algumas das coisas atribuídas à força do hábito se devem mais à constância


e à imutabilidade do caráter originário e inato, pois, sob as mesmas
circunstâncias, sempre fazemos o mesmo, e, portanto, a primeira vez nós
fizemos com a mesma necessidade que a centésima. (SCHOPENHAUER,
2009, §307, p.596.)

A observação da experiência e a repetição dos próprios atos podem indicar meios de


como melhor agir em determinadas situações, pois a partir da permanência e das repetições de
determinados pensamentos, atos e sentimentos se torna possível saber o que queremos, o que
somos e o que podemos, mas não se pode, em nenhuma hipótese, modificar aquilo que se é.
Com frequência Schopenhauer afirma que aquilo que o homem quer, é e persegue não
pode ser modificado e tampouco ensinado. De acordo com o filósofo: “O que o ser humano
realmente e em geral quer, a tendência de seu ser mais íntimo e o fim que o persegue em
conformidade a ela, nunca pode mudar por ação exterior sobre ele, via instrução; do contrário,
poderíamos recriá-lo.” (2015a, §55, p. 340). Por isso que, em sua ética, não há menção sobre
meios que possibilitem um aprimoramento moral, haja vista que, para Schopenhauer, a
existência de “códigos morais” que descrevam como agir melhor e mais corretamente são
completamente inúteis para o querer. Segundo o autor, “a virtude não pode ser ensinada”.
Rosset (1994, p. 93) compreende que o caráter “é a soma de todas as vontades
[volontés] da pessoa” e que Schopenhauer, ao descrever esse aspecto, desenvolve o argumento
fatalista sobre a impossibilidade de uma liberdade em consequência de um caráter já
determinado.
A evidência acerca de uma singularidade sobre o que se é, desde a mais tenra infância,
também desperta uma espécie de angústia, pontua Rosset, visto que há uma relação de
dependência da pessoa com relação a tendências sobre as quais ela não possui o menor
controle para alterar ou descartar. Além disso, há, também, uma angústia sobre a
impossibilidade de conhecer aquilo o que somos mais propriamente, pois não se pode
33

conhecer a priori o caráter inteligível. Sobre a relação da angústia com a imutabilidade


daquilo que se é e da impossibilidade de conhecer o caráter inteligível, argumenta Moraes:

Não se escolhe a vontade, tampouco o indivíduo que já se é em sua


determinidade; é a vontade a escolher – o que uma vez somos, sempre
seremos, não passando de ilusão a representação de que podemos vir a ser
diferentes de nós mesmos. Nesse sentido, “tornar-se o que se é” nada tem a
ver com um autoconhecimento do sujeito, mas com uma autoadmissão da
vontade. [...] Encontramos aí mais uma vez em Schopenhauer, portanto, a
angústia vinculada a “uma visão clara” de que a vontade que somos jamais
“deixou de ser essa mesma vontade” [...]. Nesses termos, Schopenhauer
parece tratar do angustiante tormento de não se saber quem se é, ou seja, não
termos conhecimento a priori do caráter inteligível que nos constitui
essencialmente e fenomenalmente manifestamos – o sujeito conhecedor, a
que não se aplica o princípio de razão, não é conhecido. De tal tormento
também fugimos cotidianamente na medida em que acreditamos no
“autoconhecimento”, ou seja, no suposto fato de termos uma personalidade
coesa, previsível para nós mesmos e para os outros – aí se pretende fundar
confiança, respeito e, com relação aos outros, uma certa exigência de
tratarmos e sermos tratados de modo “apropriado”. (MORAES, 2011, p.
201).

É notório como cada um obedece ao seu próprio querer assim como um súdito se
encontra submisso às ordens do seu senhor. Rosset diz que cada pessoa está atada ao próprio
querer assim como uma pedra está condicionada ao seu movimento, não existindo nisso noção
de liberdade. Há, dessa maneira, na filosofia de Schopenhauer uma refutação da liberdade
segundo a qual o homem possa orientar a sua própria vida, visto que, segundo Rosset (1994,
p. 92), a liberdade na filosofia de Schopenhauer “não é outra coisa senão a necessidade
segundo a qual cada um representa suas próprias tendências”, e nada mais do que isso.
De acordo com o sistema schopenhaueriano, a liberdade, no sentido mais extremo, só
seria possível mediante a negação radical da vontade, mas, enquanto ela for afirmada, não
existirá total liberdade de ação, pois o caráter inteligível se apresenta como uma espécie de
fatalidade sobre a qual as pessoas não podem desviar de suas constituições.

2.3. A condição do sofrimento inerente à existência a partir da perspectiva do desejo


humano

Arthur Schopenhauer é comumente caracterizado pelo seu pessimismo. Concordamos


com Janaway quando esse diz em seu artigo, “Schopenhauer’s pessimism”, que o pessimismo
de Schopenhauer não é redutível a nenhum argumento isolado, mas aqui desejamos destacar
34

três fatores que contribuem para o reconhecimento do pessimismo em sua filosofia: a


insuficiência racional em conhecer a essência dos objetos do mundo, a impossibilidade de
alteração do caráter e a condição de sofrimento inerente à existência.
Em uma das suas colocações mais célebres Schopenhauer argumenta que esse é “o
pior dos mundos possíveis”9. Uma possível interpretação para essa consideração pessimista é
a afirmativa de que cada fenômeno da natureza precisa se esforçar muito para poder existir, e
todo esse esforço acarreta consequências, fazendo com que esse mundo seja dado como o
pior, pois, diante do extremo esforço e de uma luta pela sobrevivência, o mundo assume uma
dimensão de sofrimento para os seres.
No primeiro capítulo deste trabalho identificamos quais os limites do conhecimento e
como podemos apenas conhecer fenômenos, relações causais, sem que a existência mesma
possa ser fundamentada ou conhecida a priori. Essa primeira abordagem corresponde à
insuficiência racional em reconhecer a essência dos objetos. Já neste capítulo, mais
precisamente na seção anterior, procuramos investigar a imutabilidade do caráter, outro
aspecto que destacamos como parte do pessimismo em Schopenhauer. Agora, nesta seção,
observaremos de que maneira uma vida condicionada por um querer viver implica em uma
contínua busca por satisfações em contraste com as constantes sensações de insatisfação, e
como Schopenhauer reconhece nessa dinâmica uma fonte de sofrimentos inesgotáveis para os
seres humanos. Dessa maneira, nesta seção abordaremos o terceiro ponto que destacamos
como característica de sua filosofia pessimista, a condição do sofrimento inerente à existência
a partir da perspectiva do desejo humano.
Segundo o sistema schopenhaueriano, a vontade é insaciável e jamais tome qualquer
ganho como suficiente; há sempre um querer e, em consequência disso, há sempre nos
movimentos dos corpos e de toda a natureza uma dinâmica que visa favorecer ao querer,
mesmo que jamais ele seja satisfeito, visto que Schopenhauer observa que enquanto a vontade
for afirmada, trabalharemos, nos esforçaremos e nos movimentaremos, sem cessar, a fim de
favorecer a vontade de vida.
O filósofo também percebe que, por maiores que sejam os esforços, há uma carência
de satisfação neles, já que aplicamos esforços a fim de obter uma satisfação, mas a satisfação
não é durável e, além do mais, ele compreende que para cada satisfação realizada existem
outras que ainda não foram alcançadas. Nesse sentido, o sentimento de insatisfação é muito

9 “As demonstrações claramente sofísticas de Leibniz de que este mundo seja o melhor dos mundos possíveis,
pode-se até mesmo contrapor séria e honestamente a demonstração de que se trata do pior dos mundos
possíveis.” (SCHOPENHAUER, 2015b, Cap. 46, p. 667).
35

mais presente do que o de satisfação, pois ele é contínuo, enquanto que o sentimento de
satisfação é apenas momentâneo.
Schopenhauer indica que não há alvo para a vontade, e que o esforço 10, revelado em
diferentes graus de aparecimentos, como, por exemplo, na luta dos indivíduos, seria a sua
própria essência. Por esse motivo, não pode haver nenhuma satisfação final, já que o esforço
pertence à natureza mesma da vontade. Daí o sofrimento estar no âmbito dos constantes
esforços e também na impossibilidade de uma satisfação duradoura, pois a verdade é que para
a vontade nenhuma realização duradoura é possível. Segundo o autor do MVR:

Todo querer nasce de uma necessidade, portanto de uma carência, logo de


um sofrimento. A satisfação põe um fim ao sofrimento; todavia, contra cada
desejo satisfeito permanecem pelo menos dez que não o são: ademais, a
nossa cobiça dura muito, as nossas exigências não conhecem limites; a
satisfação, ao contrário, é breve e módica. Mesmo a satisfação final é apenas
aparente: o desejo satisfeito logo dá lugar a um novo: aquele é um erro
conhecido, este um erro ainda desconhecido. Objeto algum alcançado pelo
querer pode fornecer uma satisfação duradoura, sem fim, mas ela assemelha-
se a uma esmola atirada ao mendigo, a qual torna a sua vida menos
miserável hoje, e no entanto prolongar seu tormento amanhã.
(SCHOPENHAUER, 2015a, §38, p. 226)

Em O mito de Sísifo (1942), Albert Camus, autor existencialista e reconhecido pela sua
filosofia do absurdo, trata sobre a questão da inutilidade dos esforços, e, assim como
Schopenhauer, ele indica que a existência é marcada por esforços inúteis.
A indicação da inutilidade dos esforços, segundo Camus, surge pela busca de sentido
que o ser humano persegue em um mundo ininteligível. Para expor a inutilidade dos esforços
o autor compara a atividade humana, que está sempre procurando um sentido para justificar a
sua própria existência, ao trabalho de Sísifo, personagem da mitologia grega.
Sísifo foi condenado a empurrar uma pedra até o topo da montanha eternamente, pois
sempre que a pedra estava próxima ao topo, ela voltava rolando até o ponto de partida que se
encontrava anteriormente. Em função disso, Camus compara a existência ao mito e diz que
todo esforço é dispendioso por não haver nele satisfação e nem realização.
Já Schopenhauer compara o trabalho humano ao trabalho da toupeira que está sempre
em permanente atividade, cavando a terra dia e noite, sem que nisso exista uma finalidade a
não ser o próprio ato de cavar.

10 “[...] a vontade em todos graus de seu aparecimento, dos mais baixos aos mais elevado, carece por completo
de um fim e alvo último; ela sempre está se esforçando porque o esforço é sua única essência, e nenhum alvo
alcançado põe um fim a esse esforço [...].” (SCHOPENHAUER, 2015a, §56, p. 357).
36

Há, também, enredos na literatura nos quais os personagens expressam a sensação do


esforço mediante a busca de satisfação sem que nisso haja sucesso. Vejamos o exemplo do
personagem Werther, escrito por Goethe:

Quando observo os estreitos limites em que se acham encerradas as


faculdades ativas e intelectuais do homem; quando vejo que o objetivo de
todos os nossos esforços é prover necessidades que por si mesmas não têm
outro fim senão prolongar nossa miserável existência, e que por
consequência toda nossa tranquilidade, em certos pontos de nossas buscas,
não passa de uma resignação sonhadora, que gozamos pintando as figuras
variadas e perspectivas luminosas as quatro paredes que nos fazem
prisioneiros: tudo isso, meu amigo, me reduz ao silêncio. Olho para dentro
de mim mesmo e vejo um mundo; porém um mundo muito mais de
pressentimentos e vagos desejos do que de realidades e forças vivas.
(GOETHE, 2010, p. 20.)

Schopenhauer constata que as inquietações, a agitação e os tormentos que os desejos


despertam na existência são muito mais presentes do que qualquer ganho ou sensação de
saciabilidade. No capítulo “Acréscimos à teoria do sofrimento do mundo” de sua derradeira
obra, Parerga e Paralipomena (1851), o filósofo expõe que as constantes desgraças e lutas em
contraste aos poucos momentos de paz das civilizações é comparável à vida do indivíduo,
pois tanto o indivíduo quanto as civilizações estão tomados por momentos de perturbações e
insatisfações, incluindo nisso raros momentos de paz e de tranquilidade. Isso se dá, diz ele,
em decorrência da pressão de uma necessidade que a vontade de vida, cegamente, impõe, pois
a presença constante de um querer nos seres humanos é motivo para o surgimento de dois
extremos que oscilam e geram o sofrimento: o tédio e a necessidade. Cito Schopenhauer
(2015a, §57, p. 361):

A base de todo querer, entretanto, é necessidade, carência, logo, sofrimento,


ao qual consequentemente o ser humano está destinado originariamente pelo
seu ser. Quando lhe falta objeto do querer, retirado pela rápida e fácil
satisfação, assaltam-lhe vazio e tédio aterradores, isto é, seu ser e sua
existência mesma se lhe tornam um fardo insuportável. Sua vida, portanto,
oscila como um pêndulo, para aqui e para acolá, entre dor e tédio, os quais
em realidade são seus componentes básicos.

A necessidade reproduz uma falta, tal como uma lacuna sedenta, e desperta o desejo,
ou o interesse, por algum objeto da representação a fim de suprir o sentimento de ausência
que lhe é comum. Já o tédio é quando não há nenhuma aspiração, nenhuma agitação em vistas
de algum fim que desejamos ou necessitamos. Nesse ponto é interessante notar a diferença
entre satisfação e tédio, pois a satisfação pode ser compreendida como a saciedade por termos
37

atingido algo, ou então como o prazer em possuir o suficiente, sem nisso haver aspirações que
indiquem que nos falta alguma coisa, mas o tédio, ao contrário da satisfação, não reproduz um
bem-estar por não haver o que conquistar. Ao contrário disso, ele reproduz uma angústia, um
sofrimento, em virtude da ausência de aspirações, que dá a sensação de um não passar do
tempo, pois o tédio não toma interesse por nada.
Nesse sentido, encontramos no desejo o cerne do sofrimento, seja pela agitação que
ele desperta, ocasionado pela necessidade, ou pela sua ausência que nos angustia. Sobre a
relação do desejo com o sofrimento, diz Brum (1998, p. 37):

A teoria do desejo como falta é um ponto célebre da doutrina


schopenhaueriana. Ligando toda satisfação a um estado anterior de
insatisfação ou de necessidade, Schopenhauer coloca o sofrimento no âmago
do desejo. O homem só deseja a partir de uma privação, de uma necessidade.
O prazer é apenas a satisfação de um desejo que nasce de uma carência. O
desejo humano e seu corolário, o prazer, são dominados pela falta.

O sofrimento é comum em toda natureza, mas no ser humano ele toma uma forma
mais acabada, pois no humano o pensamento é intermediado pela razão que pode nos
conduzir a uma sensação de dor ainda mais aguda, visto que o pensamento é capaz de
confabular aspectos ainda mais intensos sobre os nossos sofrimentos. É por isso que diante de
algum infortúnio que nos ocorra não pensamos unicamente na representação daquele
infortúnio de acordo com as disposições momentâneas e reais que ele implica no tempo
presente, mas desenvolvemos uma cadeia de pensamentos sobre as consequências daquele
mal para a posteridade, e também pensamos em outras condições adversas que aquela
desventura pode ocasionar. Além do mais, a razão nos possibilita refletir sobre situações que
poderiam ter ocorrido de um modo diferente, o que pode ocasionar sentimentos de
arrependimento ou de insuficiência diante das mais diversas situações, por exemplo.
Dessa forma, Schopenhauer acredita que o sofrimento dos animais é bem inferior ao
sofrimento dos homens, pois “eles não conhecem outra dor senão aquela que é produzida
imediatamente pelo presente” (2015b, Cap. 5, p.71), havendo neles, nos animais, uma certa
inocência sobre as tendências do futuro e uma ausência de desconfiança sobre os infortúnios.
A inocência dos animais, inclusive, nos desperta encantamento, pois eles não possuem
pensamentos que os levem ao sofrimento e, também, não são capazes de articular reflexões
que os faça perceber ou até mesmo praticar a malícia.
Todavia, mesmo sendo capazes de refletir e de uma consciência abstrata,
Schopenhauer também percebe que nem sempre temos consciência acerca daquilo que
38

desejamos e tememos, e por isso podemos nos surpreender conosco mesmos, posto que, na
maioria das vezes, diz o filósofo, “estamos completamente enganados sobre o real motivo que
nos leva a fazer ou deixar de fazer alguma coisa” (2015b, §19, p. 254).
A explicação que Schopenhauer elenca para o engano e o desconhecimento dos nossos
próprios desejos não vai de encontro à incapacidade de percepção, mas sim à resistência que
possuímos em nos assumir em determinadas situações como sujeitos não morais, egoístas,
vaidosos, ou como toda sorte de determinações que possam indicar um caráter duvidoso, no
sentido de ser reprovável diante do julgamento das outras pessoas. Fugimos das tendências
duvidosas, diz o filósofo, pois nos falta coragem para assumi-las. Sobre esse ponto, diz ele:

De fato, com frequência, estamos completamente enganados sobre o real


motivo que nos leva a fazer algo ou deixar de fazer alguma coisa, - até que
finalmente um acaso revela-nos o mistério e reconhecemos que o real motivo
não era o que tomávamos como tal, mas um outro que éramos incapazes de
admitir visto que não corresponde de modo algum à boa opinião que temos
de nós mesmos. (SCHOPENHAUER, 2015b, Cap. 19, p. 254.)

A não aceitação dos desejos mais “sombrios” também nos indica mais um sofrimento
existencial, mas, mais do que isso, ele nos indica uma recusa mesmo, pois as condições
adversas que nos remetem aos sofrimentos demandam uma aceitação racional de um estado
de dor.
Em seu livro O princípio de crueldade, Rosset entende que há uma recusa à dor e
declara que ou nos colocamos em uma posição de inconsciência diante das mais diversas
formas de angústias, como um modo de viver mais tranquilamente, e, consequentemente,
menos conscientes, ou tomamos o conhecimento do pior sem sermos afetados. Rosset declara
que resistimos “a toda informação exterior quando esta não concorda com a ordem da
expectativa e do desejo” (1989b, p. 52), mas que, em consequência disso, nos apartamos da
realidade.
Schopenhauer é pioneiro em explicitar o dilema da existência e apresentá-la como
sofrida diante da insaciabilidade da vontade e do desejo humano, para isso ele cita o mito de
Ixião, personagem da mitologia grega que foi condenado por Zeus, depois de uma traição, a
permanecer girando eternamente em uma roda flamejante, aludindo que, assim como a roda
de Ixião, estamos presos a uma roda do querer que nunca tem fim. Diz o autor: “O sujeito do
querer, consequentemente, está sempre atado à roda de Íxion, que não cessa de girar, está
sempre enchendo os tonéis das Danaides, é o eternamente sedento Tântalo” (2015a, §38, p.
226).
39

Rosset observou a mencionada passagem e expressou que os desejos 11, por sempre
serem recomeçáveis e sem fim, criam uma certa inquietude que diz respeito à recorrente
insatisfação. Nesse sentido, a existência humana é comparada a alguns dos piores castigos da
mitologia grega e dada como dolorosa e sofrida pelo eterno ciclo de sua falta de saciedade.
Nesse ponto Rosset diz que não é o mundo que é incompreensível, mas sim a busca cega por
desejos. Cito:

A humanidade situou mal sua inquietação. Ela sofre por sentir que está tudo
além de seu alcance, que ela não pode definir, deter, apropriar-se de tal
objeto de seu desejo ou de sua admiração, apreender ao menos quaisquer
ideias ou bens no decorrer de sua busca cega; e, nada resultando disso, ela
acusa o mundo de escapar, os objetos, de se furtarem tão logo avistados
antes que se tenha podido compreendê-los. Mas é sua busca que é
incompreensível; o mundo, ele mesmo, é simples e claro – ainda que sem
razão de ser. (ROSSET, 1994, p. 85)

A percepção de uma vida cíclica, cheia de altos e baixos, é, inegavelmente, uma visão
fiel sobre a realidade existencial dos seres humanos. No entanto, ainda que possam existir
momentos de satisfação, Schopenhauer os compreende como bastante ocasionais e pouco
recorrentes se comparado aos desprazeres, haja vista que o filósofo entende a presença do
sofrimento como algo que nos acompanha por toda a existência, e assume que “nossa
sensibilidade para dor é quase infinita” (2009, §148, p. 307). Ele percebe que, ao contrário de
muitas outras filosofias, há na sua a compreensão da dor enquanto positiva e da felicidade
como negativa, pois as dores são mais constantes do que a soma das alegrias.
O recorrente ciclo de sofrimentos existe porque estamos condicionados à vontade
cega, sem que jamais nossos esforços tragam saciedade, já que são sempre recomeçáveis e
sem fim, e também porque o intelecto não pode ser capaz de nos libertar dessa submissão,
declara Rosset (1994, p. 90): “nenhum empenho [tentative] intelectual poderá libertar
[affranchir] dessa dependência”.
Rosset admite a constatação dos desprazeres sobre os prazeres na filosofia de
Schopenhauer, e também indica que há um déficit nos prazeres em vistas da constância dos
desprazeres. Ele expõe que é por essa razão que Schopenhauer questiona: “Le jeu en vaut-il
bien la chandelle?”12, demonstrando que a vida não vale a pena ser vivida em consequência
das inumeráveis perdas e frustrações que estão acima das satisfações. Além do mais, dentro
11 O desejo é um aspecto de tanta importância na filosofia de Schopenhauer, que o filósofo entende que a
percepção de um desejo, mediante a satisfação e insatisfação desse, é o que há de mais imediato em cada
consciência. O desejo é transitivo e é próprio do homem que toma interesse por algo, mas ele é conduzido por
um querer intransitivo da vontade de vida.
12 “O jogo vale mesmo a vela?” (SCHOPENHAUER, 2015b, Cap. 45, p. 683).
40

dessa mesma perspectiva do desejo e do sofrimento, Rosset constata que, para Schopenhauer,
as alegrias não são somente menos recorrentes, mas são, também, menos reais.
A verificação dos prazeres, ou das alegrias, como menos reais ocorre porque o estado
de dor é tão constante que as satisfações, ou alegrias, são dadas como negativas e só surgem
quando há ausência de necessidade. Sendo assim, os prazeres só podem acontecer em um
curtíssimo intervalo de tempo, pois a necessidade é que é constante na vida humana. Sobre as
alegrias como sendo menos reais, pontua Rosset (1994, p. 66):

Schopenhauer insiste recorrentemente sobre o caráter negativo de todo


prazer, sobre a insatisfação inexoravelmente ligada a toda satisfação, em
contraste com as dores e carências que produzem um estado de sofrimento
muito mais estável. Isso porque uma falta, uma privação, se sentem, ao passo
que sua satisfação apenas remete ao estado anterior à aparição da carência,
não suscitando nenhum estado positivo ou durável. O prazer não se sente; no
limite, não existe.

Dessa maneira, a filosofia de Schopenhauer indica que é vã a busca pela felicidade e


pelo prazer, e, mais absurda ainda é a busca por felicidade como finalidade para a vida, visto
que “nenhuma satisfação possível seria suficiente para apaziguar os anseios da vontade”
(2015b, Cap. 46, p. 583).

2.4. A luta pela existência

Schopenhauer compreende o mundo como um lugar de guerra perpétua, sem trégua,


visto que a afirmação da vontade demanda uma luta entre os indivíduos.
O filósofo entende que há na vida do ser humano uma luta constante, não só em
decorrência da necessidade e do tédio que nos acomete e exige nossos esforços, mas também
em relação à luta que mantemos com os outros seres e, também, contra nós mesmos, no
intuito de obtermos ganhos e conquistas. Sobre a constância das lutas na vida do ser humano,
diz o filósofo que “em toda parte ele encontra um adversário, ele vive em constante luta e
morre com armas na mão.” (2009, §150, p. 308).
A razão da luta de todos contra todos está na afirmação da vontade, que pode ser
compreendida a partir da seguinte definição: “é o constante querer mesmo, não perturbado por
conhecimento algum, tal qual preenche a vida do homem em geral” (2015a, §60, p. 379).
41

De acordo essa asserção, Schopenhauer propõe que o desejo pela vida de forma
absoluta e constante seja o foco da afirmação da vontade. Todavia, esse desejo pela vida
implica numa série de lutas, egoísmo e também no ímpeto sexual que promove uma sucessão
de gerações e, dessa maneira, prolonga a vida das espécies, renovando a vontade de vida.
Na filosofia de Schopenhauer há uma concordância de que a luta pela existência é
comum a todos os seres e condiz com o modo de sobrevivência mais primitivo da natureza,
pois em toda a natureza há “conflito, luta e alternância de vitória”.
A luta pela existência ocorre seja a partir da caça e da predação, ou da conquista por
espaço, tempo e matéria, visto que ela sempre implica na destruição, invasão ou na tomada de
algo. Contudo, Schopenhauer destaca que a luta no reino animal é ainda mais visível do que
no vegetal, e que o homem aparece como o mais cruel de todos os seres, já que, além de
possuir uma dominação sobre as demais espécies, ele mesmo reproduz uma autodiscórdia
sobre si, como no caso do suicídio, no qual Schopenhauer percebe uma contradição interna da
vontade em grau mais elevado. Sobre a discórdia comum aos humanos, diz o autor:

[...] o gênero humano, por dominar todas as demais espécies, vê a natureza


como instrumento de uso; esse mesmo gênero humano, porém, como
veremos no quarto livro desta obra, manifesta em si próprio aquela luta,
aquela autodiscórdia da vontade da maneira mais clara e terrível quando o
homem se torna lobo do homem: homo homini lupus. (SCHOPENHAUER,
2015a, §27, p. 171)

.
No parágrafo §27 do primeiro tomo de sua obra magna, o filósofo esclarece que “a
vontade de vida crava continuamente os dentes na própria carne”. Essa metáfora pode ser
compreendida como a imagem do constante conflito da vontade com ela mesma, dado que
cada objetivação da vontade se encontra em combate com outras objetivações a fim de
afirmar-se.
Na luta de todos contra todos, o caráter egoísta da afirmação da vontade transparece,
pois o ato de afirmar-se implica sempre na negação de uma outra objetivação, diz
Schopenhauer:

De fato, a vontade de um invade os limites da afirmação da vontade alheia,


seja quando o indivíduo fere, destrói o corpo de outrem, ou ainda quando
compele as forças de outrem a servir à sua vontade, em vez de servir à
vontade que aparece no corpo alheio, logo, quando, da vontade que aparece
como corpo alheio, subtrai as forças desse corpo e assim aumenta a força a
serviço de sua vontade para além daquela do seu corpo, por conseguinte
afirma sua vontade para além do próprio corpo mediante a negação da
42

vontade que aparece no corpo alheio. (SCHOPENHAUER, 2015a, §62 p.


388)

O egoísmo é típico da afirmação porque os seres precisam uns dos outros para a sua
conservação, inclusive as plantas, os astros, os elementos químicos etc. E nisso o filósofo atrai
a atenção circundante para o fato de que o interesse é próprio do sujeito do querer dotado de
conhecimento, e que, quanto mais afirmada for a vontade, mais egoísta ela será e mais
sofrimentos despejará no mundo.
Em sua ética, Schopenhauer indica que o extremo egoísmo seria sinônimo de maldade
e que a ausência de egoísmo seria a compaixão, sendo o homem o ser mais capaz de um
extremo egoísmo em virtude do seu desejo de poder e de dominação, uma vez que através
desse ele impõe a sua própria afirmação de vida sobre os outros seres. Mas, por outro lado,
Schopenhauer também entende que o ser humano é o único a desenvolver a compaixão de um
modo consciente, visto que somos capazes de reconhecer que há uma essência comum a nós e
aos demais seres. Todavia, a compaixão condiz com a negação da vontade, e nesse ponto não
nos deteremos, pois aqui nos interessa abordar as consequências de uma vontade afirmada.
Uma vez que Schopenhauer compreende a afirmação da vontade como a manifestação
sempre em vista da conservação de vida, o impulso sexual é identificado como o seu principal
expoente, pois “tem em vista uma série sem fim de gerações”.
A afirmação da vontade, mais do que a conservação do próprio indivíduo, quer a
propagação de vida “absolutamente e por todo tempo” e Schopenhauer reconhece isso,
indicando que o principal foco do querer é a procriação.
Dessa forma, ele reduz os movimentos da vida a meios para a produção de uma série
de gerações, lançando-se sempre para além do próprio indivíduo, e declara que os órgãos
genitais estão para a vontade assim como o cérebro está para a representação, para o
conhecimento.
No capítulo “Metafísica do amor sexual”, Schopenhauer faz uma reflexão acerca do
amor entre humanos e da união entre os sexos. Segundo o autor, toda expressão de amor no
mundo, entre seres humanos de diferentes sexos, ocorre em decorrência da vontade de vida
que quer prolongar-se por todo o tempo, através da procriação, e, também, que nenhum outro
fim se compara ao fim da busca amorosa na vida humana. Diz ele: “todo enamoramento tem
em mira unicamente a procriação de um indivíduo” (2015b, Cap. 44, p. 638).
A forma como Schopenhauer elucida o que entende pela união entre os indivíduos
escapa de uma reflexão romântica, pois, para ele, toda a idealização de um outro, ou de um
43

par, nada mais é do que a manifestação de uma vontade de vida que foge do interesse do
indivíduo para contemplar o interesse da espécie. Embora possa existir alguma dificuldade
para assumir essa posição, de que o amor apenas serve à vontade, de modo a reproduzir e
prolongar a vida, é possível encontrar essa mesma análise em Totem e Tabu (1913), de
Sigmund Freud, onde o psicanalista faz uma reflexão acerca do comportamento sexual dos
povos aborígenes australianos a fim de compreender as crenças que permanecem em nossas
estruturas psíquicas até os dias de hoje. Segundo Freud, entre os aborígenes da Austrália havia
regras, ou limites, com punições severas, sobre as suas relações sexuais.
O modo das relações sexuais entre os aborígenes era a exogamia, pois não era
permitido que o indivíduo se relacionasse com alguém que venerasse o mesmo totem, isso
tudo para evitar o incesto. Inclusive, o descumprimento dessa regra poderia ocasionar até
mesmo a morte do indivíduo que não a respeitasse. Havia outras punições entre os aborígenes,
e uma delas era direcionada aos “romances passageiros” que não resultassem na procriação.
Cito: “Com a mesma severa punição é aplicada também a romances passageiros que não
resultem em filhos [...]” (FREUD, 2012, p. 24).
Nesse último ponto, mais especificamente, encontramos uma regra que a cultura atual
não leva minimamente em consideração, pois o uso de métodos que possam evitar a
reprodução é cada vez mais frequente, além de que há consideráveis avanços tecnológicos no
desenvolvimento dos contraceptivos. No entanto, a regra dos aborígenes sobre evitar relações
passageiras que não tenham finalidade reprodutiva vai ao encontro do que Schopenhauer
reconhece como finalidade da união entre os indivíduos, já que o filósofo admite que a
finalidade das relações sexuais é meramente reprodutiva.
Schopenhauer afirma que a busca da satisfação por intermédio do sexo é o que
introduz inquietude, melancolia, infortúnios, preocupações e necessidades na consciência.
Cito:

[...] a vontade expõe-se ao mesmo tempo como impulso sexual, que tem em
vista uma série sem fim de gerações. Este impulso suprime aquela
despreocupação, jovialidade e inocência, que acompanhariam uma mera
existência individual, na medida em que introduz na consciência inquietude
e melancolia, no curso da vida, infortúnios, preocupações e necessidades.
(SCHOPENHAUER, 2015b, Cap. 45, p. 677)
Na perspectiva da espécie humana Schopenhauer expressa que o que há de menos
individual é o impulso sexual, posto que a conservação é a mais elementar intenção da
natureza, muito embora seja o que determina as ações de modo mais individualizante,
justamente porque está em jogo o aperfeiçoamento da espécie.
44

Em vários graus da objetivação da vontade o impulso sexual é o que há de mais


comum, sendo, inclusive “as relações sexuais, a procriação e alimentação da prole são
incomparavelmente mais importantes e mais dignos de atenção para o indivíduo do que
qualquer outra coisa” (2015b, Cap. 42, p. 609).
Um outro notável aspecto da luta pela existência desenvolvida por Schopenhauer é a
sua semelhança com o que Charles Darwin (1809 – 1882) também entendeu acerca desse
aspecto em sua teoria evolucionista.
Não pretendemos fazer um paralelo entre a filosofia de Schopenhauer e a teoria da
seleção natural de Darwin, mas há uma similaridade casual entre os dois no que se refere à
luta pela existência que nos desperta a curiosidade.
Em seu célebre livro A origem das espécies (1859), Darwin expõe o que entende por
luta pela existência e declara que todos os seres orgânicos estão expostos a uma “severa
competição”. Nisso, mesmo que tenha passado despercebido pelo autor, ele concorda com
Schopenhauer, mas a semelhança entre o que os dois entendem por “luta pela existência” não
para por aí.
Darwin, assim como Schopenhauer, também entende que a luta pela existência “inclui
a dependência de um ser em relação a outro e, ainda mais importante, que inclui não só a vida
do indivíduo, mas o sucesso em deixar descendentes” (DARWIN, 2018, p. 82). Dessa
maneira, tanto em Schopenhauer quanto em Darwin há o reconhecimento de uma dependência
entre os seres em virtude da autoconservação, e também há uma concordância acerca do
egoísmo e da noção do impulso sexual como modos de garantir a conservação e a perpetuação
das espécies.
Com relação à sexualidade na vida humana, Rosset reconhece que esse é o aspecto
mais “nevrálgico” na filosofia de Schopenhauer, pois o assujeitamento do homem a uma
tendência que escapa dos seus próprios anseios para servir aos anseios da espécie gera um
certo estranhamento, já que servir às aspirações que não nos sejam próprias, sobretudo em
situações nas quais o nosso próprio querer parece prevalecer, produz uma sensação de
submissão, ou de não liberdade, em relação a algo que seja maior do que os nossos próprios
desejos e aspirações.
Todo o assujeitamento que acomete a pessoa em virtude da vontade é o ponto que
sustenta a asserção de Schopenhauer sobre sermos tais como “marionetes”, pois, enquanto as
marionetes são conduzidas por fios, os homens são conduzidos pela vontade de vida, sem que
haja qualquer conhecimento objetivo a respeito disso.
45

A imagem exponencial da vontade de vida que conduz o indivíduo pode ser ilustrada
em sua vida sexual, já que, nessa condição, existe uma ilusão acerca de uma satisfação que
parece servir ao indivíduo, quando, na verdade, serve à vontade de vida.
De acordo com isso, temos a imagem de uma potência sem razão que se manifesta nas
lutas e fatalidades que recaem sobre os indivíduos a partir de uma mútua devastação e do
sexo, que visam garantir a sobrevivência e a prolongação das espécies no mundo.
Reconhecemos na luta pela existência, seja a partir da discórdia ou do impulso sexual,
o que Rosset descreve sobre sermos, obrigatoriamente, caça e caçador, e que essa condição
nos induz ao “tumulto, privação, miséria e angústia, grito e urro” 13 (ROSSET, 1994, p. 72).
Esse aspecto da filosofia de Schopenhauer reforça que estar submetido às tendências da
vontade ocasiona sofrimentos, mas, além disso, também possibilita o reconhecimento de um
absurdo em sua filosofia.
Segundo Rosset, a absurdidade que podemos identificar na filosofia schopenhaueriana
mediante o querer é que nesse mundo “tudo é tendência”, visto que perseguimos propósitos e
somos motivados a alcançar determinados objetivos, sejam eles bens materiais, saúde,
sucesso, amor etc., através das constantes lutas e esforços, pois tudo o que queremos é “a
existência, o bem-estar, vida e propagação” (SCHOPENHAUER, 2015b, Cap. 19, p. 247).
Porém, mesmo havendo essa constante busca por atingir objetivos, “reina uma potência que
não é tendência” (ROSSET, 1994, p. 67), sendo essa potência o próprio querer, posto que esse
é desnudado de finalidade. “A Vontade”, que Schopenhauer apresenta como sendo a essência
“que tudo governa, não tem nela mesma nem fim, nem origem, nem razão para seu próprio
poder coercitivo, não fazendo outra coisa senão repetir-se eternamente” (ROSSET, 1994, p.
106).
Temos, então, a partir dessa conclusão, a aparição do absurdo da vontade em
Schopenhauer que consiste na presença constante de um querer no mundo sem que esse
querer tenha qualquer fundamento, pois os propósitos que atribuímos a ele não têm existência
real.

13 “[...] l’obligation pour chacun d’être tour à tour chasseur et gibier, tumulte, privation, misère et angoisse, cris
et hurlements, voilà tout ce qui nous apparaît; et tout cela continuera ainsi [...].”
3. ASPECTOS DO ABSURDO NA EXISTÊNCIA HUMANA

3.1. A desilusão acerca da causalidade

Ao iniciar a sua obra Schopenhauer, filósofo do absurdo, Rosset faz uma reflexão
sobre a causalidade schopenhaueriana, pois, segundo o seu entendimento, a importância e a
meditação acerca da causalidade é o ponto de partida de toda filosofia schopenhaueriana.
Como vimos no primeiro capítulo deste trabalho, a causalidade é a forma da intuição
que une as formas de tempo e espaço. Ela é um dos quatro elementos que constituem o
princípio da razão suficiente, base fundamental para a representação no mundo, já que os
objetos exteriores só podem ser apreendidos, ou representados, caso estejam submetidos ao
princípio de razão. Dessa maneira, podemos concluir que a causalidade é um aspecto
fundamental para a possibilidade do conhecimento fenomênico segundo a filosofia de
Schopenhauer.
Em sua interpretação acerca da filosofia schopenhaueriana, Rosset diz que a
causalidade “ocupa um lugar privilegiado”, e que há um mistério, um interesse e um espanto
(étonnement) em torno das relações causais, desde as mais ordinárias até as mais
extraordinárias.
Rosset nos lembra do que diz Schopenhauer logo no início do capítulo sobre a
necessidade metafísica do ser humano, que há dois modos de espanto14, o científico e o
filosófico, sendo o científico aquele que se limita ao interesse pelos fenômenos
extraordinários na natureza constituída, tornando-se objetos de investigações, enquanto o
filosófico é aquele que se interessa pelos fundamentos das coisas ordinárias, o que faz de uma
coisa ser o que ela é, ou o que ela é em si mesma, por exemplo. Sobre a diferença das
investigações filosóficas e científicas, argumenta Schopenhauer:

A disposição filosófica propriamente dita consiste, antes de tudo, na


capacidade de nos espantarmos diante daquilo que é comum e cotidiano,
com o que justamente temos ocasião de fazer do universal da aparência um
problema nosso; enquanto os investigadores nas ciências reais espantam-se
tão somente com escolhidas e raras aparências mais conhecidas. (2015b,
Cap. 17, p. 196)

14 “Há, então, dois níveis muito diferentes de espanto, que podemos chamar de espanto científico em oposição
ao espanto filosófico. O primeiro se interessa pelos fenômenos em uma natureza, na medida em que eles pareçam
uma exceção relativa ao conjunto de suas leis, enquanto que o segundo surge na simples presença desse curso
natural das coisas que, para o cientista [savant], necessitam de explicação final” (ROSSET, 1994, p. 6).
47

A possibilidade do espanto desperta em nós o desejo de conhecer e, também, o


fascínio perante alguns objetos da experiência. Nessa perspectiva do desejo de conhecer e do
fascínio diante dos objetos do conhecimento, Schopenhauer reconhece que o filósofo é aquele
que acolhe o espanto e procura decifrar o sentido da existência e do mundo, pois o espanto é o
começo da atividade filosófica, que ocorre a partir de um dar-se conta dos mistérios do
mundo. Já o homem comum, ou o não filósofo, evita pensar naquilo que aparece como
ordinário e adere a discursos religiosos acerca das questões ordinárias. Schopenhauer
evidencia, com isso, que até mesmo entre aqueles que evitam pensar com maior profundidade
é possível observar uma necessidade metafísica perante os mistérios da vida, já que o homem
comum, mesmo em meio à ausência de reflexões próprias acerca dos “porquês” da existência,
apoia-se nas explicações religiosas, não negando, com isso, a necessidade metafísica comum
aos seres humanos.
Aqui podemos entender a necessidade metafísica enquanto o desejo de conhecer
aspectos do mundo e da existência que estão para além das aparências das coisas.
Schopenhauer pontua que a necessidade metafísica está no desejo de clarear as condições sob
as quais vivemos, ou “sobre aquilo que se esconde atrás da natureza e a torna possível”
(2015b, Cap. 17, p. 200). Sobre essa necessidade, afirma o filósofo:

Templos e igrejas, pagodes e mesquitas, em todos os países, em todos os


tempos, no esplendor e na grandeza, testemunham a necessidade metafísica
do ser humano, necessidade que, forte e inextirpável, pisa os calcanhares da
necessidade física. Decerto alguém com humor satírico poderia acrescentar
que essa necessidade metafísica é uma garota humilde que se contenta com
cardápios bem modestos. (2015b, Cap. 17, p. 197).

As religiões, enquanto portadoras de possíveis respostas para a necessidade metafísica


humana, são alvo de constantes críticas na filosofia de Schopenhauer, pois ele argumenta que,
diante da constatação dessa necessidade, sempre existiram pessoas capazes de tirar proveito
dela. O filósofo aponta os sacerdotes como o maior exemplo de pessoas que, mediante a
comercialização de dogmas, lucram com a necessidade metafísica comum aos seres humanos.
O proveito que os sacerdotes, por intermédio da religião, tiram da necessidade
metafísica humana ocorre porque as explicações metafísicas vindas do próprio interior exigem
“reflexão, formação e esforço” e essas nem sempre podem estar presentes em algumas
pessoas, ou em determinadas civilizações, e, por isso, há quem recorra às religiões, pois essas
oferecem um tipo de conhecimento que não exige esforço e advém do exterior.
48

O filósofo admite que a maioria das pessoas não é dotada da capacidade de pensar por
si, e por isso prefere acreditar na reflexão de terceiros. Ele qualifica as religiões como um tipo
de “metafísica popular”, pois são cheias de “poesia popular, sabedoria e provérbios” que
permitem que a grande maioria possa ter acesso às explicações de causas a partir da crença.
Contudo, mesmo concordando com a necessidade e com o valor do conhecimento e da
causalidade na vida humana perante a necessidade que temos em conhecer as causas do
mundo e da nossa própria existência, Schopenhauer limita os seus domínios, já que reconhece
que a causalidade só pode ser aplicada aos objetos, fenômenos, ou às aparências, e que as
causas, os porquês da existência, não estão ao alcance do entendimento ou submetidos à lei de
causalidade.
Nesse sentido, o filósofo faz uma crítica aos seus contemporâneos ao dizer em sua
tese, Sobre a quádrupla raiz do princípio razão suficiente (1813; 2ª ed. 1847) que, em virtude
do progresso científico, algumas teorias se tornaram “dissimuladamente causais”, e que essa
atitude resultou numa má aplicação da causalidade em questões que não estão sob seu
domínio.
De acordo com Rosset, o que Schopenhauer exprime em sua tese é que o princípio de
razão possui quatro raízes e apenas uma delas corresponde à necessidade física que se reveste
da forma de causalidade. Desse modo, Schopenhauer indica que podemos ter um
conhecimento causal sobre determinados fenômenos que se dão na experiência com o tempo e
com o espaço, mas não podemos, em nenhuma hipótese, chegar a conhecer algumas ideias
sobre as quais a filosofia se ocupa, pois a etiologia 15 se limita a investigar as relações
fenomenais. Sobre os limites da etiologia, cito Rosset: “A etiologia não informará jamais nada
além das relações que regem os fenômenos, ou da ordem segundo a qual podemos prever sua
manifestação” (1994, p. 10).
Segundo Schopenhauer, a causalidade pode informar sobre as modificações
fenomenais, mas o mundo e a e existência não são explicados quanto à sua origem, somente
são explicados segundo as suas modificações sobre aquilo que já está posto fenomenalmente.
Cito Rosset: “uma causa informa sobre tudo o que interessa à modificação dos fenômenos,
mas não sobre a sua essência, nem sobre as forças naturais graças às quais essas mudanças se
efetuam” (1994, p. 10).

15 “Etiologia em sentido estrito são todos os ramos da ciência da natureza que têm por tema principal, em toda
parte, o conhecimento de causa e efeito: ensinam como, em conformidade com uma regra infalível, a um estado
de matéria se segue necessariamente outro bem definido: como uma mudança determinada necessariamente
produz e condiciona uma outra determinada, cuja prova se chama explanação. Aqui se incluem sobretudo a
mecânica, a física, a química, a fisiologia” (SCHOPENHAUER, 2015a, §17, p. 113).
49

Por essa razão é que Schopenhauer recomenda que, ao demonstrar o que entendem
pelo mundo e pela existência, os filósofos devem explicar sob qual forma de necessidade
estão pautadas as suas justificativas, pois, segundo ele, tudo no mundo ocorre
necessariamente, quer no campo dos objetos naturais, das ações ou das relações lógicas, mas
há quatro formas distintas de necessidade: a física (causal), a necessidade lógica, a
matemática e a moral (ROSSET, 1994, p. 9), e seria um erro procurar as causas da existência
do mundo como efeito de um ato de vontade.
Schopenhauer considera que a etiologia é um “objeto de desilusão”, já que ela não
pode contemplar os fenômenos em sua completude, mas apenas em aparência, e, desse modo,
conforme as palavras de Rosset (1994, p. 19), “a explicação causal é incapaz de satisfazer
inteiramente a interrogação filosófica”, pois tudo o que se apresenta é em aparência, enquanto
a “natureza íntima” das coisas, objeto pelo qual a filosofia também se interessa, permanece
insubordinada à causalidade.
Distanciando-se do senso comum, Schopenhauer indica que quanto mais o intelecto
for desenvolvido em um indivíduo, mais misteriosa a existência será para ele, e que o
despertar para o espanto filosófico ocorre quando o indivíduo passa a considerar questões tais
como morte e sofrimento em suas introspecções. Diz o filósofo: “Se a nossa vida fosse sem
fim e sem sofrimento, talvez a ninguém ocorresse perguntar por que o mundo existe e por que
tem precisamente essa índole” (2015b, Cap. 17, p. 196).
É a morte e o sofrimento que nos incitam a pensar acerca da existência e nos acomete
ao espanto diante de dilemas. Schopenhauer considera a morte como “a musa da filosofia”,
pois ela é o que mais provoca a inquietude filosófica nos homens. Sobre a noção da morte
enquanto musa da filosofia schopenhaueriana, explica Cacciola:

A morte, musa da filosofia, vem ao encontro desse feitio da filosofia de


Schopenhauer, pois elege um sentimento originado num fenômeno natural,
próprio da evolução do organismo, como inspirador da reflexão filosófica. A
seu favor, Schopenhauer cita Platão, que, no Fedro, define a filosofia como
inquietude da morte, inquietude ou temor que invoca a reflexão filosófica.
Schopenhauer atribui tal disposição à própria consciência humana, àquilo
que distingue os homens do animal; este goza da eternidade da espécie,
confundindo-se com ela, mas no indivíduo humano surge, em contrapartida,
com o desenvolvimento cerebral e da correspondente função intelectual, o
temor da aniquilação, podendo servir-lhe de antídoto tanto a religião como a
filosofia. (CACCIOLA, 2007, p. 92)

A necessidade que sentimos em descobrir e elaborar explicações acerca da nossa


própria existência revela aquilo que Rosset interpreta como o primeiro dado do absurdo na
50

filosofia schopenhaueriana: o anseio em encontrar explicações para as causas existenciais,


mesmo sendo a existência privada de causa e de razão. E, por isso, Rosset afirma: “O espanto
schopenhaueriano pode reportar-se inteiramente a uma angústia diante da ausência de
causalidade” (1994, p. 6), pois, em sua filosofia, há uma constatação acerca da
impossibilidade de um conhecimento íntimo sobre a natureza das coisas em contraste à
constante necessidade humana em conhecer as causas de sua própria existência, sendo a
necessidade de possuir o conhecimento causal acerca da existência tão relevante que,
“faltando esta condição, o mundo mergulha no absurdo” (ROSSET, 1994, p. 13).
Schopenhauer reconhece que há uma incapacidade em aplicar o conhecimento da
causalidade sobre as bases que fundamentam as coisas, que o avanço da ciência e de toda
discussão filosófica se dá, apenas, no campo das aparências, e que o anseio que o homem
moderno possui em conhecer a essência a partir de uma etiologia não é nada mais do que uma
miragem. No entanto, desejamos, avidamente, conhecer as causas da nossa existência. Diz o
filósofo:

Pois se há uma coisa digna de ser desejada no mundo, tão desejável que até
mesmo a turba tosca e grosseira em seus instantes de clareza de consciência
iria valorizar mais que a prata e ouro; essa coisa é um raio de luz que caia
sobre a obscuridade do nosso existir e nos dê um clareamento sobre esta
enigmática existência, na qual nada é claro senão a sua miséria e vaidade.
(SCHOPENHAUER, 2015b, Cap. 17, p. 199)

Há no desejo de desvelar as causas existenciais uma frustração, pois interiormente não


encontramos nenhuma relação causal que possa justificar a nossa própria existência, de tal
modo que “todas as forças naturais, animais e humanas aparecem como inteiramente mudas
em face da causalidade” (ROSSET, 1994, p. 19). E por isso a forma dúplice, tal como vontade
e como representação, também remete à compreensão de que não só o mundo é dúplice, mas
também o próprio indivíduo. E, sendo o indivíduo dúplice, há uma parte que é a coisa si e
outra que é fenômeno. Daí, por isso mesmo, há no indivíduo uma parte que é conhecida e
outra que não é. Sobre a dupla condição que remete ao fenômeno e à coisa em si,
desenvolvida por Kant e retomada por Schopenhauer, pontua Safranski (1991, p. 164):

O homem vive em dois mundos. Por um lado, é, na terminologia kantiana,


um phainomenon, uma célula do mundo sensível a cujas leis se submete sua
existência; por outro lado, é um noumenon, uma coisa em si – sem
necessidade, sem causalidade -, algo que já é antes de eu poder entendê-lo e
explicá-lo; e isso é diferente e infinitamente mais do que eu posso entender.
51

A contínua necessidade que nós, seres humanos, temos em conhecer a origem da nossa
existência repousa em uma desilusão e, também, em uma angústia, já que, como
demonstramos, as explicações acerca das origens existenciais não estão submetidas às formas
de conhecimento.
O resultado dessa desilusão não é somente uma afirmativa de que a existência não
possui origem, mas também um “sentimento de estranheza perante a simples noção de
existência”16 em um mundo privado de necessidade e de razão, já que não existe
conhecimento filosófico que seja capaz de superar o vazio acerca da insuficiência causal
perante a noção de existência.
Sendo assim, há na metafísica da vontade uma dificuldade em explicar e conhecer o
mundo, uma vez que a perspectiva da vontade é isenta de necessidade, e, dessa maneira, há
um contraste que indica, segundo Rosset, uma absurdidade em Schopenhauer, já que
habitamos em um mundo em que tudo é necessidade, mas, ao mesmo tempo, reina uma
potência isenta de razão suficiente fazendo com que exista um sentimento de estranheza
acerca do mundo, visto que esse é inexplicável e incognoscível.

3.2. O irracional no mundo e na existência

Na filosofia de Schopenhauer há uma consideração notável acerca de uma soberania


do irracional sobre o racional, pois o filósofo admite que a existência é grundlos, sem razão,
assim como também é grundlos o mundo, posto que são ausentes de “ponto de partida,
princípio ou de origem”.
A admissão de que a Vontade seja privada de razão e de conhecimento acarreta em um
mal fundamental17 que serve de embasamento para o pessimismo schopenhaueriano, mas,
também, serve de fundamento para a compreensão da presença do irracional no mundo e na
existência.
Há a constatação de uma irracionalidade quando tentamos encontrar explicações para
o mundo e para a existência porque, de acordo com o pensamento de Schopenhauer, como já
citamos, o entendimento e a razão não são capazes de elencar os fundamentos do ser em si das

16 “L’objet de cet essai est montrer que cette intuition relève d’une certaine conception de l’absurde, d’une
vision du monde en opposition complète avec toute espèce de raison ou de justification, d’un sentiment
d’étrangeté absurde devant la simple notion d’existence” (ROSSET, 1994, p. 63).
17 Rosset explica que a ausência de causa é que o mal, e elenca a expressão “mal fundamental” para designar a
ausência de razão, de causa, para o mundo.
52

coisas, e também porque no sistema schopenhaueriano existe a compreensão de que há uma


manifestação cega de um princípio arbitrário e alternativo à razão.
É certo que podemos encontrar a racionalidade no mundo, porque o mundo e os seus
fenômenos podem ser apreendidos segundo um princípio de razão. Mas, por outro lado,
desconhecemos a razão do mundo, já que não podemos compreender o porquê de sua
existência e de essa existência ser tal como é e não outra. Inclusive, Schopenhauer deixa clara
a submissão e o papel secundário do conhecimento e suas operações quando indica que há a
primazia da vontade sobre o intelecto.
A submissão da razão e das faculdades intelectuais em geral à Vontade resulta em um
sistema inclinado a uma filosofia dos afetos, e esse modo de filosofar é uma forma bastante
inovadora para a época de Schopenhauer, visto que os seus contemporâneos buscavam
solucionar os problemas filosóficos a partir da pura razão, e não segundo a sua ausência, haja
vista que “a modernidade demanda uma reavaliação das nossas crenças ordinárias e práticas
visando aproximá-las às demandas da razão” (DUDLEY, 2013, p. 26), enquanto
Schopenhauer compreendeu que o querer é o ponto mais central da existência humana.
Rosset admite que Schopenhauer foi pioneiro ao introduzir uma crítica à razão
clássica. E, nesse sentido, é comum observar ao longo de suas obras alguns direcionamentos
contrários ao primado da razão, seja no campo epistemológico, quando Schopenhauer limita o
conhecimento que temos sobre a natureza das coisas, no campo metafísico, quando ele admite
que a força, ou essência do mundo, é privada de conhecimento, ou no campo ético, quando
não admite que a razão possa mudar as disposições morais de um indivíduo.
Ainda sobre o tema da insuficiência da razão no que concerne à moralidade,
Schopenhauer foi um crítico de Kant, pois, enquanto Kant procurou formar as bases de sua
ética na racionalidade, a partir da noção de “dever”, Schopenhauer negou a influência da
razão, ou de um dever, sobre os nossos atos, já que para ele a soberania da Vontade sobre as
ações humanas rejeita que a razão tome posse dos nossos movimentos e possa nos
condicionar, recorrentemente, a agir conforme a um dever racional.
Sendo assim, Schopenhauer dá o primeiro passo ao indicar o contrário que os seus
contemporâneos, herdeiros de Kant e de Descartes, costumavam alegar, ao dizer que a razão,
agora, deve estar em segundo plano. Concordamos com Santa María quando diz, na
introdução à tradução espanhola dos Parerga, que:

Schopenhauer supõe em muitos aspectos uma ruptura total com a tradição


moderna; uma tradição que encontra sua culminação e representação
53

máxima no idealismo hegeliano. Assim, diante de um sistema para o qual


“todo racional é real e todo real é racional”, Schopenhauer argumenta que
nem o racional é real, porque o mundo da razão é a aparência pura, um véu
de Maya que esconde a verdadeira realidade das coisas, nem o real é
racional: porque a realidade originária, o ser em si das coisas, é justamente
uma vontade irracional. (SANTA MARÍA, 2009, p. 21)

Embora desde os seus primórdios a filosofia procure, em geral, atestar a validade das
coisas a partir de bases “ordenadoras”, arrumando a desordem e fazendo com que as relações
pareçam “constantes e dotadas de inteligibilidade”, como no caso de Anaxágoras, que adotou
o nous como o princípio, ou arché, sob o aspecto de “uma inteligência ordenadora”, há,
também, mesmo que em menor quantidade, a presença de tendências que se opõem a essa
condição e encontram no acaso as suas raízes desde a origem do pensamento filosófico grego.
Vejamos o que diz Rosset na Lógica do pior (1971), uma de suas teses universitárias:

Opostamente e à margem desta filosofia, houve, de quando em quando,


pensadores que se determinaram uma tarefa exatamente inversa. Filósofos
trágicos, cujo alvo era dissolver a ordem aparente para reencontrar o caos
enterrado por Anaxágoras; por outro lado, dissipar a ideia de toda felicidade
virtual para afirmar a desgraça, e mesmo, na medida do gênio filosófico de
que dispunham, a pior das desgraças. Terrorismo filosófico, que assimila o
exercício do pensamento a uma lógica do pior: parte-se da ordem aparente e
da felicidade virtual para culminar, passando pelo necessário corolário da
impossibilidade de toda felicidade, na desordem, no acaso, no silêncio, e, no
limite, na negação de todo pensamento. (ROSSET, 1989a, p. 14)

Essas tendências podem ser observadas nos ritos, sobretudo nos dionisíacos, cujo
enfoque estava nas músicas e nas danças desordenadas que cultuavam o deus da embriaguez e
da loucura.
Na interpretação de Nietzsche, no Nascimento da tragédia (1872), o espírito otimista
do homem teorético se comporta tal como um germe da destruição da sociedade, enquanto o
“espírito dionisíaco” pode nos convencer do prazer de existir, pois o coro dionisíaco, segundo
Nietzsche, é a saída que os gregos encontraram para o problema da dor no mundo. Cito:

A consolação metafísica – que nos é dada, como já disse, pela verdadeira


tragédia, o pensamento de que a vida no fundo das coisas, a despeito da
variabilidade das aparências, permanece imperturbavelmente poderosa e
cheia de alegria – esta consolação aparece como uma evidência material na
figura do coro dos sátiros do coro de entidades naturais, cuja vida subsiste de
maneira quase indelével atrás de toda a civilização, e que, apesar das
metamorfoses das gerações e das vicissitudes da história dos povos,
permanecem imutáveis. (NIETZSCHE, 2004, p. 51).
54

Todavia, Schopenhauer, ao contrário de Nietzsche, não identifica nenhum consolo


metafísico na tragédia, e menos ainda na constatação do irracional na existência, pois para ele
é o próprio aspecto da irracionalidade, ou de uma essência irracional, que proporciona a dor
no mundo.
Os argumentos de Schopenhauer para demonstrar que a essência do mundo é cega e
livre de fundamentos são inúmeras, e na primeira seção do segundo capítulo deste trabalho já
demonstramos o que o filósofo compreende acerca dessa realidade. Mas, aqui vale retomar o
exemplo das marionetes, que ilustra muito bem o que o filósofo quis demonstrar acerca da
força cega, ou sem razão, que é a Vontade.
Segundo Schopenhauer, as marionetes, assim como nós, são movimentadas a partir de
um “fio”, ou uma força, sobre a qual não possuem o menor controle e entendimento. Em
virtude do em si não obedecer a nenhum critério racional, nós não temos condições, também,
de saber sobre a força que nos movimenta. Dessa maneira, da mesma forma que as
marionetes, nós não sabemos qual será o próximo movimento “da corda”, e nem o porquê de
ela nos movimentar de tal maneira; tudo é “orquestrado” de um modo que escapa ao nosso
entendimento, e o filósofo afirma que esse “movimento cego”18 é “a vontade de vida
manifestando-se como um propulsor infatigável, um impulso irracional, que não tem seu
fundamento suficiente no mundo exterior” (2015b, Cap. 28, p. 230). Sobre esse aspecto da
filosofia de Schopenhauer, ressalta Brum:

Essa imagem mecânica, de um boneco controlado de dentro, mostra muito


claramente o resultado do percurso schopenhaueriano: quando Schopenhauer
quis descobrir qual seria “o outro lado” do mundo enquanto representação,
não atingiu – chegando à coisa-em-si – uma realidade superindividual, mas
uma realidade “subindividual”: a vontade, força obscura e cega que o
homem compartilha com todos os outros seres da natureza. (BRUM, 1998, p.
32)

Sendo assim, ao descobrir qual é o “outro lado” do mundo que se opõe às aparências,
Schopenhauer provoca uma cisão entre o conhecimento e a essência. E, dessa forma, a noção
de uma inteligência ordenadora é dissipada em sua filosofia. Cito Cacciola: “Ao consagrar a
cisão entre o mundo como representação e o mundo como Vontade, correspondente à
distinção entre fenômeno e coisa-em-si, bane de uma vez por todas a noção de uma
inteligência que impusesse seus fins ao mundo” (CACCIOLA, 1994, p. 102).
No capítulo “Da vaidade e do sofrimento da vida” Schopenhauer expressa que, caso
esse mundo não fosse algo que não deveria ser, ele não seria um problema e as pessoas
18 Há algumas exceções, como no caso da metafísica do amor sexual, onde o fim é precisamente determinado.
55

também não se espantariam e nem questionariam sobre a sua existência, pois se o mundo não
fosse algo que não deveria ser, ele seria compreensível. Todavia, o filósofo reconhece que
esse mundo possui problemas insolúveis e que “até a mais perfeita filosofia sempre contém
um elemento inexplicável” (2015b, p. 691). Essa condição está totalmente relacionada com a
cegueira essencial da vontade.
Diante de toda realidade de sofrimento e de incompreensão, Schopenhauer expressa
que é um “absurdo gritante” tentar justificar esse mundo como bom, ou como “o melhor dos
mundos possíveis”.
Logo ao iniciar a segunda parte de seu ensaio, intitulada de “A visão absurda”, Rosset
descreve que o seu objetivo naquele escrito é demonstrar que há uma intuição em
Schopenhauer, um pensamento único, que surge de “uma concepção do absurdo, de uma visão
do mundo em total oposição a qualquer espécie de razão” (1994, p. 63-64). A partir da
exposição desse objetivo, fica claro que aquilo que se opõe à razão na filosofia de
Schopenhauer é um aspecto que desperta o interesse de Rosset e o faz pensar na filosofia de
Schopenhauer enquanto uma filosofia do absurdo. Mas, por que Rosset se utiliza desse
aspecto, e não da dor, ou de qualquer outra condição existencial, para justificar um absurdo e
um mal fundamental em Schopenhauer?
A resposta para essa questão está na compreensão de que o pessimismo procede da
irracionalidade, e não o contrário. É por ser sem finalidade, sem causa e sem necessidade, sem
razão, que este mundo é dado como o pior dos mundos possíveis. Rosset esclarece que o
pessimismo de Schopenhauer é superficial frente à irracionalidade, pois essa “repousa sobre
bases muito mais profundas e sólidas”19.
Nesse sentido, a incidência do sofrimento transparece na ausência de razão sobre o que
somos e sobre o que o mundo é, pois a ausência de razão mostra que não há finalidade no
sofrimento, e menos ainda há uma finalidade otimista por trás da dor. Em sua “Epifilosofia”,
diz o filósofo: “Só em minha filosofia é que os males do mundo são honestamente admitidos
em toda a sua enormidade: minha filosofia pode fazer isso porque a sua resposta à questão
sobre a origem dos males coincide com a sua resposta à questão sobre a origem do mundo”
(SCHOPENHAUER, 2015b, Cap. 50, p. 767).
A submissão às tendências que são privadas de necessidade e de causalidade não pode
nos conduzir, senão, a uma condição de existência absurda. Absurda porque, antes de
qualquer outro aspecto que possa justificar a absurdidade que Rosset encontrou em

19 “De fait, si le pessimism schopenhauerien apparaît souvent de surface, son irrationalisme repose sur des
assises beaucoup plus profondes et solides” (ROSSET, 1994, p. 64).
56

Schopenhauer, há a falta de premissas que justifiquem os nossos anseios e movimentos, posto


que o querer é desnudado de finalidade. Sendo assim, a existência é grundlos, porque:

É grundlos aquilo que é destituído de um ponto de partida, de um princípio


ou origem a que possa se referir – aquilo que é inteiro em si mesmo, cego,
pois é em toda parte visível, incognoscível porque onipresente. O mundo, a
existência, são grundlos, isto é, privados de fundamento, uma vez que eles
são o Todo e, por conseguinte, é impossível encontrar um ponto situado no
exterior do Todo para apoiá-lo. (ROSSET, 1994, p. 77)

A constatação da ausência de tendências racionais que justifiquem a existência e o


mundo faz com que Schopenhauer perceba as limitações e não só rejeite as concepções
racionalistas, mas também as noções teológicas, já que, enquanto na filosofia moderna a
racionalidade é trazida para o interior, para a consciência, na teologia, e também em algumas
filosofias, sobretudo na escolástica, a racionalidade pertencia à natureza submetida a um
Deus.
Schopenhauer percebe que a filosofia e a religião surgem a partir do anseio de
responder e de compreender a existência, mas, enquanto a filosofia serve a poucos, a religião
serve “para muitos, para a humanidade em grande escala” (2009, §174, p. 340)20.
O filósofo refuta a possibilidade de um Deus criador, bondoso e ordenador, assim
como querem as religiões cristãs, por exemplo. Isso ocorre porque ele afirma que não há nada
que possa surgir do nada e, também, porque se esse mundo fosse obra de um Deus onipotente,
onisciente, onipresente e bom, ele não deveria ser um lugar de incompreensão, miséria e de
sofrimento, mas seria, sim, reflexo desse criador bondoso.
Sendo assim, o absurdo da existência e de um mundo sem razão está inserido,
também, em um pessimismo que contraria a ideia de um mundo perfeito e compreensível.

3.3. A absurdidade do querer

Antes de adentrarmos propriamente na explicação acerca do absurdo que Rosset


percebeu no querer schopenhaueriano, é necessário, mesmo já tendo feito isso de algum modo
20 “Los fundadores de las religiones y los filósofos vienen al mundo para despertarle de su letargo e indicarle el
elevado sentido de la existencia: los filósofos, para los pocos, los que están exentos; los fundadores de religiones,
para los muchos, la humanidad a gran escala”.
57

no segundo capítulo deste trabalho, destacarmos alguns pontos acerca do querer que se fazem
imprescindíveis para a compreensão desta seção. Para isso, reforçaremos três distinções
acerca do querer e da Vontade, e, depois, faremos um breve resumo de aspectos fundamentais
acerca do querer que apresentamos no capítulo anterior para poder relacioná-los à absurdidade
apontada por Rosset, sendo ela, a absurdidade do querer, percebida a partir de duas noções: o
querer enquanto negativo e a ausência de finalidade no querer.
Seguindo essa ordem, devemos, primeiro, destacar que o querer é apenas uma
manifestação fenomênica da Vontade, e que ele não deve ser confundido com a coisa em si,
ou Vontade metafísica. Em segundo lugar, a Vontade mesma, enquanto coisa em si, nada quer,
não há nela nenhuma necessidade, nenhuma finalidade, enquanto que a sua manifestação
fenomênica, o querer, apenas quer. E, por último, a luta pela vida, a afirmação da existência e
toda destruição que lhes são próprias, não pertencem à Vontade mesma, visto que essa é sem
propósitos, porque livre, e indestrutível, mas sim ao querer. A fim de fundamentar esses três
pontos que fazem distinção entre a Vontade e o querer, e que indicam que, sim, a Vontade
mesma nada quer, citamos Pernin:

A intenção filosófica de Schopenhauer é estabelecer que não há resposta à


pergunta: “O que quer a vontade?”. A prova disso é o caráter subordinado do
intelecto, servidor da vontade, que só fica sabendo de suas intenções
posteriormente. Elas são sempre particulares: “o que ela quer em geral, a
vontade nunca sabe”. Três pontos devem ser encarados, para apoiar a tese da
ausência de objeto da vontade. O primeiro é o estudo do intelecto sempre
subordinado, estudo inseparável de uma notável fenomenologia da interação
entre um “intelecto físico” e uma “vontade metafísica” (principalmente o
cap. XIX do Mundo). O segundo ponto examina a finalidade no mundo, essa
harmonia mínima, que não é obra de nenhuma inteligência, mas da vontade
imanente. Isso confirma a dependência do intelecto em relação à vontade. O
terceiro ponto estabelece que o apego à vida, manifestado pela vontade, não
é “o resultado de um conhecimento objetivo do valor da vida”. A vida não é
o fim da vontade, que não tem causa e nem fim. (PERNIN, 1995, p. 92).

Como vimos na terceira seção do segundo capítulo deste trabalho, o desejo é parte
comum de toda animalidade, e aquilo que se encontra em cada consciência é a percepção
imediata de um desejo. É a partir das sensações de bem-estar e de mal-estar que se torna
possível distinguir o que sentimos e, dessa forma, podemos tomar conhecimento sobre aquilo
que queremos.21
O conhecimento do próprio querer é um tipo de conhecimento subjetivo e imediato
sobre o qual conhecemos diretamente aquilo que está em nós mesmos, no nosso interior, posto
21 O sujeito do querer, ao contrário do sujeito do conhecimento, pode ser conhecido pelas modificações no
tempo.
58

que o querer é o que há de mais íntimo em nós mesmos e se identifica com a nossa essência,
com aquilo que somos.
Dessa forma, ao contrário de uma consciência acerca dos objetos exteriores, ou de um
conhecimento objetivo, temos, com muito mais frequência e diretamente, um conhecimento
interior, subjetivo e imediato do nosso próprio querer. E é por essa razão que Schopenhauer
admite que o conhecimento mais real de todos é o conhecimento do próprio querer.
É pertinente elucidarmos que o querer que se dá em cada pessoa é uma manifestação
completamente espontânea, não sendo possível que o próprio indivíduo venha decidir acerca
do que quer ou do que não quer em seu interior. Além de que, mesmo que o indivíduo não
possa reconhecer o que quer, principalmente enquanto as suas capacidades intelectuais não
tenham sido plenamente desenvolvidas, ele já nasce com o querer. O bebê chora, e chora
porque algo o incomoda, chora porque quer, porque necessita de algo, mas ainda não é capaz
de abstrair acerca daquilo que satisfaria sua carência ou de entender por que chora.
Além de identificar o querer como o elemento mais íntimo do ser humano,
Schopenhauer também reconhece que nós, seres humanos, somos o grau de objetidade mais
perfeito da vontade. Isso porque o filósofo constatou que, no ser humano, a percepção da
satisfação e da insatisfação perante o desejo assume um grau superior, já que a consciência
humana é a única capaz de compreender que é vontade, e que aquilo que se apresenta como
desejo nos indivíduos é reflexo do querer.
É compreensível que, mediante a percepção de um desejo, o indivíduo procure meios
para satisfazê-lo, e que todos os seus movimentos sempre indiquem a busca pelo regozijo,
afinal, recusamos a dor e aspiramos ao prazer constantemente. Nessa busca, faço efeito sobre
as coisas, seja através do egoísmo, da luta por matéria etc., pois o querer que se encontra em
mim demanda movimentos e atividades que visam atingir os seus desejados objetivos, e
nesses movimentos há uma diversidade de impactos sobre o mundo, inclusive com
consequências desastrosas.
Em suma, podemos dizer que toda a realidade que se dá para o indivíduo vai de
encontro aos desígnios do querer que se manifesta no seu interior, visto que o querer é aquilo
que cada pessoa possui de mais íntimo, e, além do mais, nossa vida inteira consiste em servir
ao querer com obediência, pois, como compreendemos a partir do capítulo anterior, o que o
indivíduo quer, em geral, é vida, bem-estar e autoconservação, sendo as suas ações meios que
possibilitam garantir esses propósitos.
O sujeito do querer sempre quer, e mesmo que não saiba o que quer propriamente, ele
está sempre afirmando a sua vontade de vida e se movimentando em vista de algum fim que
59

compreende ser como antídoto para as suas aspirações. Nesse sentido, de acordo com
Schopenhauer, não há nada mais relevante do que o querer na vida humana, nem mesmo o
conhecimento, pois o querer não advém do conhecimento e o conhecimento não tem poder
nenhum sobre a Vontade, apenas serve a ela.
Isso considerado, vejamos, agora, de que maneira Rosset compreendeu o querer
schopenhaueriano como um aspecto, talvez o mais relevante, da absurdidade.
Rosset reconhece que, em Schopenhauer, o querer se manifesta como a constatação de
uma ausência, e “que as dores que ele ocasiona no curso de uma vida humana são
inumeráveis”22 (1994, p. 65). Na terceira seção do segundo capítulo deste trabalho
demonstramos que, na filosofia schopenhaueriana, há a constatação de um déficit relativo aos
prazeres, e, por esse motivo, Rosset, assim como Schopenhauer, considera o querer como
responsável pelas dores e pelos sofrimentos, já que aquilo que o querer quer nem sempre é
satisfeito e, quando satisfeito, a duração do prazer é muito curta, é momentânea, e sempre dá
lugar a uma próxima aspiração que se comporta da mesma maneira.
A ideia schopenhaueriana do querer enquanto fonte dos sofrimentos também dá
abertura para a compreensão de que o sofrimento, ao contrário do que muitas vezes estamos
habituado a pensar, não surge de fora, das nossas relações externas com o mundo, mas sim do
nosso próprio interior. O filósofo alega que “cada pessoa carrega em seu interior a fonte
inesgotável do sofrimento. No entanto, constantemente procuramos uma causa exterior
particular como se fora um pretexto para a dor que nunca nos abandona”
(SCHOPENHAUER, 2015a, §57, p. 369).
Rosset compreende que o querer enquanto uma fonte inesgotável de sofrimento é um
dado do absurdo, pois mesmo diante da consciência de seu caráter negativo, em razão de sua
ausência e da sua intrínseca incapacidade de satisfação duradoura, não cessamos de querer e
de atribuir toda a importância e significação das nossas vidas ao que em geral queremos.
Inclusive, diante da realidade de um querer que é “vazio”, e que mesmo assim serve de
sentido e significação para as nossas vidas, Rosset também acaba concordando com uma
inutilidade existencial, haja vista que aquilo que consideramos como mais vultuoso na nossa
existência consiste, apenas, em uma ilusão que não pode se satisfazer por completo e que é
passageira. No entanto, esse caráter negativo ainda é um aspecto superficial da absurdidade do
querer, aponta Rosset.

22 “Le premier caractère du Vouloir se manifeste dans un constat de déficit: les douleurs qu’il occasionne au
cours d’une vie humaine sont innombrables, les plaisirs maigres et rares.”
60

Há algo de mais profundo e mais grave na absurdidade do querer, pois, além de


concordar com Schopenhauer acerca das dores que o querer ocasiona no interior de cada ser
humano, e dos prazeres enquanto escassos frente aos desprazeres, Rosset indica que há uma
ausência de necessidade e de causalidade no querer, e, mediante essa ausência, Rosset afirma
que os propósitos que atribuímos a ele, ao querer, não possuem existência real. Diz o autor:
“Por trás da insatisfação própria ao desejo se esconde um segredo mais sombrio, que é a
ausência de motivação no desejo [...]” (ROSSET, 1994, p. 67).
Por outro lado, Rosset concorda que existir em um mundo onde não existe necessidade
no querer não seria um absurdo, posto que o absurdo consiste em viver em um mundo no qual
não há necessidade, mas no qual tudo conspira à ideia de necessidade, sugerindo uma
oposição e contradição entre aquilo que realmente podemos encontrar no mundo e aquilo que
ansiamos, ou desejamos encontrar. Segundo Rodrigues:

No nosso mundo, a ausência de necessidade é irmanada à ideia de


necessidade e à consciência de sua ausência. A necessidade, como o desejo,
revelaria a presença de uma ausência. Como diz Rosset, tudo no mundo
conspira para nos sugerir a noção de causa, de fim, de liberdade, etc. Em
uma palavra, segundo ele: o que é absurdo é a necessidade; absurda é a
finalidade. (RODRIGUES, 2018, p. 150).

Como a citação acima explica, tudo conspira a uma noção de causa. Essa
“conspiração” se deve ao fato de estarmos em um mundo em que os nossos objetivos, ou
nossas buscas por atingi-los, sugerirem alguma finalidade. Em vista disso, nos organizamos a
fim de garantir os nossos propósitos, que são reflexos daquilo que queremos e ansiamos por
usufruir da finalidade que parece convergir nesses propósitos. Trabalhamos, construímos e
desenvolvemos uma série de atividades que visam à satisfação, e recorrentemente nos
apegamos a essas tarefas como fontes de sentido para a nossa própria existência.
Todavia, somos esquecidos, continuamente, de que não há finalidade no querer, e que
a sua atividade é simplesmente se repetir por toda a vida sem que nisso exista qualquer
espécie de explicação e de finalidade última, haja vista que não há causa e não há necessidade
no querer, além de que não existe nenhuma satisfação completa, visto que todo ganho traz
consigo outra necessidade que nos condiciona ao esforço por sua satisfação. Diz Rosset
(1994, p. 66): “Para compreender o querer em sua absurdidade maior é preciso retornar ao
espanto perante a ausência de causalidade e necessidade no seio das forças que regem o
universo”.
61

Na perspectiva de um mundo submetido à vontade, nenhuma necessidade é pensável.


Assim, Rosset explica que habitamos em um mundo onde tudo é tendência, mas, ao mesmo
tempo, reina uma potência que não é tendência. Cito: “No mundo em que tudo é tendência,
reina soberana uma potência que não é tendência: o querer, na medida em que é destituído de
finalidade, de modo que os propósitos que se assume não têm existência real” (1994, p. 67).
O querer, em geral, não tende a nada, não quer nada, é absolutamente intransitivo. Por
outro lado, no dia a dia temos desejos e aspirações objetivos, transitivos, sempre dirigidos a
alguma coisa, a alguma finalidade. Esta, contudo, não tem “existência real” na medida em
que, sendo atingida, não cumpre o papel esperado, ou seja, trazer uma satisfação suficiente
para proteger a coisa conquistada da perda de valor da substituição por novo objeto de desejo,
assim sucessivamente. Cito Schopenhauer:

Em vez de uma resposta apresentou-se diante dos nossos olhos como a


vontade em todos os graus de seu aparecimento, dos mais baixos ao mais
elevado, carece por completo de um fim e alvo últimos; ela sempre está se
esforçando porque o esforço é sua única essência, e nenhum alvo alcançado
põe um fim a esse esforço, pelo que ela não é capaz de nenhuma satisfação
final, só obstáculos podendo detê-la, porém em si mesma indo ao infinito.
(2015a, §56, p. 357)

A atividade do querer é se repetir, e por isso ele jamais está satisfeito. Essa condição é
o que permite a entrada do tédio na vida humana, pois a sensação da repetição evidencia uma
dinâmica na qual não existem progressos mediante as aspirações, e nisso reina uma sensação
de um não passar o tempo, acompanhado por insatisfação e por um vazio, resultando em
angústias. Concordamos com Young quando analisa o segundo livro do MVR e diz que:

[...] o final do Livro II representa o ponto da catástrofe, o ponto em que a


vida e o mundo aparecem irremediavelmente horríveis e absurdos. Com
instinto dramático, Schopenhauer gasta sua páginas finais intensificando o
clima de desespero, lembrando-nos de que não apenas habitamos um mundo
em que o bellum omnium contra omnes incessante e inútil constitui a ordem
das coisas, mas que a vida humana, considerada apenas nela mesma,
reproduz no microcosmo a contenda e o absurdo que caracterizam o
macrocosmo. Assim como o mundo na totalidade não tem meta em sua
existência, também nenhuma meta há para a vida humana, e assim como o
mundo na totalidade consiste em contenda sem descanso, também, a vida
humana consiste em uma oscilação sem descanso entre a dor do desejo
insatisfeito e o tédio do desejo satisfeito. (YOUNG, 1987, p. 81)
62

A noção do querer cíclico que sempre se repete é uma condição comum à existência
humana, mas Rosset, assim como Schopenhauer, também faz alusão a essa mesma imagem
cíclica e repetitiva ao macrocosmo, e a tudo que pertence à natureza:

[…] essa folha de árvore no outono que cai em direção ao solo rodopiando é
a mesma que vi no ano anterior na mesma época e que verei no ano seguinte;
essa mosca que azucrina minhas orelhas, verão após verão, permanece
sempre a mesma mosca; o gato que caminha em meu percurso realiza os
mesmos saltos que seu semelhante há trezentos anos. (ROSSET, 1994, p. 99)

A eterna repetição do querer na existência e no mundo reflete-se no que Schopenhauer


compreende sobre a indestrutibilidade da Vontade. Segundo o filósofo, a Vontade jamais
cessa, e mesmo que um determinado corpo perca as suas condições vitais, a Vontade que nele
existe não deixará de existir. É certo que o corpo, assim como os sentidos e tudo o mais que
compõe o que seja o indivíduo, deixam de existir mediante a morte, mas o seu ser em si, que é
Vontade, é indestrutível e sempre se repete, manifestando-se como vontade de vida
eternamente.
No capítulo “Sobre a morte e a sua relação com a indestrutibilidade de nosso ser em
si”, Schopenhauer expõe que o nosso ser em si não é aniquilado pela morte: “[...] é impossível
que esse ser insondável, tal como existe e considerado no seu todo, venha aniquilar-se: e no
entanto conhece-se por outro lado a sua transitoriedade” (2015b, Cap. 41, p. 577). Nisso
Rosset percebe que, em Schopenhauer, o que há de mais absurdo na morte não é a
“desaparição brutal da pessoa”, mas, sim, precisamente, a compreensão de que a morte não
mata, visto que o filósofo esclarece que aquilo que desaparece é somente a aparência.
Em sua interpretação, Rosset reconhece na morte e o no amor os aspectos que mais
exemplificam o caráter da repetição do querer viver, pois a morte, como vimos, não aniquila o
ser em si, mas propicia uma manifestação da vontade continuamente, mesmo que em
diferentes formas de vida. Já o amor é cíclico porque serve à conservação da vida, permitindo
que a vontade de vida manifeste-se e eternize-se mediante a procriação. Assim, mesmo
naquilo que nos parece ser de interesse individual, como no caso do amor, há um querer que
serve à vontade de vida e que se sobressai e que em nada se relaciona com um querer
individualizado, posto que o querer que se encontra no mais íntimo de cada indivíduo não
tende a procurar satisfação para o indivíduo em si, mas trabalha sempre em função da espécie
e da vida como um todo. Sobre a metafísica do amor sexual e a sua submissão aos interesses
da espécie, pontua Rosset (1994, p. 100):
63

Esse é também, como vimos, o caso do amor que, sob a pena de


Schopenhauer, se torna uma atividade estereotipada e cômica, que
provisoriamente opõe a prestígios do individual aquilo que concerne
somente aos interesses da espécie, que garante, ao que se repete
indefinidamente, uma mesma ilusão necessária à permanência de seus
desígnios cegos.

Em suma, Rosset compreende que o absurdo está mesmo no querer, e que, caso o
querer não existisse, o absurdo também não existiria. Tanto é que Schopenhauer assume que,
mediante a negação da vontade, toda dor e contrariedade desapareceriam do indivíduo. Sobre
o desaparecimento do absurdo mediante o desaparecimento do querer, afirma Rosset (1994, p.
95):

Seja como for, o desprendimento do querer abandona o terreno da


experiência do absurdo. O absurdo é o assujeitamento inexorável à vontade,
na medida em que esta, malgrado a necessidade que ela representa, em si
mesma escapa do mínimo fundamento na causalidade ou na necessidade.

Dessa maneira, entendemos que há uma ausência de sentido existencial que resulta de
uma vida cujo embasamento esteja em um “querer viver”, pois não há nada que justifique as
nossas ações e as nossas ânsias individuais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS

No sistema schopenhaueriano, a condição humana é percebida de um modo duplo,


posto que Schopenhauer faz elucubrações sobre o que seja o ser humano enquanto ser
pensante, e único ser capaz de um conhecimento abstrato, mas, também, como ser cuja
essência está na Vontade, essa que nos acomete como querer sem limites, sem que, nesse
aspecto, existam determinações racionais.
Nesta pesquisa, compreendemos o ser humano como um ponto de intersecção entre
Vontade e representação e intencionamos demonstrar de que maneira a vida humana pode ser
percebida segundo a ótica desses dois aspectos fundamentais na filosofia de Schopenhauer,
assim como também tivemos como propósito expor como há uma primazia da Vontade na
existência e demonstrar quais as condições e consequências dessa primazia, sendo elas o
recorrente desejo por algo, o sofrimento, a luta pela existência e a imutabilidade do caráter em
virtude de sua essência ser vontade.
Dentre as consequências mais notáveis de uma vontade afirmada na vida de um
indivíduo, acreditamos chegar ao ponto mais crítico quando, ao utilizarmos o pensamento
desenvolvido por Rosset, nos deparamos com a constatação de uma existência absurda.
A absurdidade na existência dialoga com o modo duplo que Schopenhauer encontrou
para designar a vida humana submetida à primazia da vontade porque o filósofo percebeu que,
mesmo sendo considerado um animal metafísico, o ser humano é incapaz de um
conhecimento substancial sobre aquilo que está para além das aparências, e também porque
tudo que o perseguimos como propósito é privado de finalidade última cujo alcance nos traria
satisfação, felicidade.
Sendo capaz de um conhecimento racional, esse que possibilita a reflexão e a
construção de conceitos para os mais diversos objetos, incluindo a reflexão acerca de suas
origens, da origem do mundo e do que seja a sua própria existência, nós, seres humanos,
encontramos um limite para o conhecimento no que se refere às questões existenciais, haja
vista que o conhecimento racional é incapaz de contemplar o conhecimento dos porquês da
nossa existência e da existência do mundo em geral.
Nesse ponto limite, o desejo pelo conhecimento se defronta com uma impossibilidade
que denuncia uma absurdidade, já que somos seres ávidos por conhecimento, mas não
podemos conhecer nada de modo absoluto. Sendo assim, o absurdo está na insistência de um
65

querer mesmo diante de uma impossibilidade, seja na impossibilidade de adquirir um


determinado tipo de conhecimento ou até mesmo na impossibilidade de uma vida cujos
prazeres sejam plenos e não meramente relativos aos desprazeres.
Para Schopenhauer, a obscuridade e ininteligibilidade das forças que regem a
existência e o mundo nos deixam com um sentimento de vazio e de angústia perante o existir.
Somos levados a pensar, com isso, que o sentido da vida mergulha num vazio, pois, diante das
nossas buscas a fim de fundamentar a nossa existência não encontramos nada, a não ser a
compreensão de que a nossa essência é sem razão e livre de qualquer fundamento.
Diante desse cenário de incertezas, tudo o que nos resta é perceber que apenas
conhecemos os fenômenos, as aparências, e nada mais. Além de que, ainda sobre o contexto
de incertezas, o desejo que se mostra como impulso para tentar suprir alguma necessidade não
tem fundamento, a não ser os atos de um querer que sucessivamente se renova.
Sabemos que em Schopenhauer as investigações acerca do ser humano parecem não se
exaurir, posto que em cada página de suas obras é possível encontrar elementos em torno da
condição humana. Dentro de um panorama tão abrangente, deixamos de contemplar, ou até
mesmo de nos aprofundar, em aspectos relevantes para a compreensão schopenhaueriana da
condição humana, visto que, aqui, nos ocupamos mais precisamente em esclarecer os
conceitos que nos permitiram aproximar a filosofia de Schopenhauer ao absurdo denominado
por Rosset.
O autor do Mundo não é comumente compreendido como um existencialista ou como
um precursor desse movimento. No The Cambridge Dictionary of Philosophy, por exemplo,
não há nenhuma menção sobre a influência de Schopenhauer sobre o existencialismo que
surgiu na Europa após a Segunda Guerra. Em vez disso, há menção sobre a influência de
Pascal, Nietzsche e Kierkegaard. Cito:

Alguns veem em Pascal um precursor existencialista, cujo fideísmo católico,


expresso aforisticamente, questionava o poder do racionalista [...]. Muitos
concordam que Kierkegaard, cujo fideísmo fundamentalmente similar,
embora protestante, era baseado numa profunda falta de vontade de situar
tampouco Deus no interior de uma filosofia sistemática, como fizera Hegel,
deve ser considerado o primeiro existencialista moderno, apesar de ele
também ter vivido muito antes do surgimento da denominação. Outros
reconhecem em Nietzsche um protoexistencialista em virtude da natureza
aforística e antissistemática de seus escritos. (AUDI, 1995, p. 225)

Todavia, Rosset faz um adendo em seu prefácio à tradução francesa do MVR dizendo
reconhecer em Schopenhauer uma expressão existencialista, chegando até a denominá-lo
como um precursor desse movimento. Vejamos: “Precursor, Schopenhauer também é do
66

existencialismo e do seu conceito de facticidade da existência, que nada mais é que uma
verbosidade [délayage] da concepção schopenhaueriana de um mundo absurdo, dado que é
destituído tanto de fundamento como de finalidade” (ROSSET, 2004, p. VI).
É inegável que a união entre os termos “existência” e “absurdo” nos remeta ao
existencialismo do século XX, principalmente a autores como Albert Camus e Jean-Paul
Sartre (1905 – 1980). Todavia, não foi parte da nossa pretensão expor e relacionar o que esses
autores pensaram acerca da existência e do absurdo, posto que o desenvolvimento de tais
considerações extrapolariam os limites desta dissertação.
É importante mencionar que Rosset esclarece que a filosofia de Schopenhauer possui
uma abordagem genealógica, e que nela há uma riqueza de assuntos que são comuns a outros
autores que vieram posteriormente. Ele percebeu, inclusive, em Freud, Nietzsche e em Marx,
mesmo esse último não fazendo qualquer referência a Schopenhauer, continuadores do
pensamento schopenhaueriano.
A delimitação do tema e dos conceitos que aqui foram expostos também se deu em
virtude de que o tema do absurdo em Schopenhauer ainda não fora tratado em outros
trabalhos, tais como dissertações ou teses acadêmicas, ao menos até onde nosso levantamento
foi capaz de buscar. De acordo com essa realidade, achamos que o tema da existência
enquanto absurda fosse o mais específico possível a partir das concepções mais relevantes
tratadas por Rosset e pelo próprio Schopenhauer.
A falta de material bibliográfico sobre o absurdo que Rosset identificou na filosofia de
Schopenhauer, em vez de desanimar e desestimular as nossas buscas, nos impulsionou a
construir uma dissertação que o incluísse, pois consideramos o conteúdo relevante e
esclarecedor para fins de compreensão da existência humana conforme pensada por
Schopenhauer.
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