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O absurdo na existência:
uma análise da condição humana na filosofia de Arthur Schopenhauer
Natal - RN
2019
SARAH MAIRA FERNANDES DE ANDRADE
O absurdo na existência:
uma análise da condição humana na filosofia de Arthur Schopenhauer
Natal – RN
2019
Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN
Sistema de Bibliotecas - SISBI
Catalogação de Publicação na Fonte. UFRN - Biblioteca Setorial do Centro de Ciências Humanas, Letras e Artes - CCHLA
Ao meu orientador, Dax Fonseca Moraes Paes Nascimento, não só pela sua genuína e
dedicada orientação, mas também por estabelecer uma relação de confiança, mediante suas
atitudes de paciência e disponibilidade, e por me auxiliar de maneira tão substancial na
compreensão da filosofia de Arthur Schopenhauer.
Aos professores José Thomaz Brum e Eduardo Ribeiro da Fonseca pelas valiosas
contribuições para o desenvolvimento deste trabalho.
À minha mãe, Mariza Fernandes, por sua dedicação, cuidado e generosidade.
Ao meu avô Miro (in memoriam) pelos exemplos de humor, criatividade e curiosidade
que me proporcionaram uma atmosfera favorável para os estudos e para as artes.
Ao meu namorado Edu pelo companheirismo e paciência.
Aos amigos, sobretudo àqueles que estão durante anos ao meu lado.
Ao amigo Anderson Barbosa Camilo por ajudar nas traduções de Clément Rosset para
o português.
À CAPES, pela concessão da bolsa de estudos.
Aos professores de Filosofia da UFRN.
“Todos trabalham para comer, mas nunca estão
satisfeitos. Há alguma vantagem do sábio sobre o
insensato, ou do pobre que sabe conduzir-se na vida?
Mais vale o que está diante dos olhos do que aquilo
que se cobiça. Também isso é ilusão e corrida atrás do
vento.”
(Eclesiastes 6, 7-9)
RESUMO
Starting from the hegemony of the Will to anchor the philosophy of Arthur Schopenhauer
(1788 – 1860), this research has as its purpose the presentation of how the human existence
may be considered absurd, once being based on a will to live that has no goal as far as it has
no reason. The understanding of an absurd existence comes from an interpretation offered by
Clément Rosset (1939 – 2018) about Schopenhauer’s philosophy, according to which the
author reveals that willing – phenomenal manifestation of the Will – is the center towards
which converge all of existential incongruities. However, on the other side of the supremacy
of the Will, we must also explain some questions concerning the representation, considering
that our astonishment for the absurd character of existence rises just in the context of the
phenomenal world by the means of which can human beings become aware of it. In such way
we use, mostly, The World as Will and Representation (3rd ed. 1859), by Schopenhauer, and,
Schopenhauer, Philosophe l’Absurde (2nd ed. 1994), by Rosset.
INTRODUÇÃO 7
CONSIDERAÇÕES FINAIS 64
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 67
INTRODUÇÃO
imediatos produzidos em nosso próprio corpo e, também, que nos leva a questionar sobre
aspectos ordinários da vida.
Schopenhauer expressa que todo o embasamento acerca das questões filosóficas, e
também das motivações religiosas, partem de indagações que são inerentes à própria
existência, pois é através do contato com os problemas que nos são próprios, principalmente
com aqueles que nos remetem aos maiores sofrimentos, que refletimos acerca da realidade e
das dificuldades dessa vida. E, como se os percalços não nos fossem comuns e constantes,
desejamos sempre o antídoto para os nossos próprios males.
Em sua filosofia existe o reconhecimento de que há uma contínua surpresa e aversão
perante as dores, e, diante dessa realidade, é possível observar uma contradição entre aquilo
que vivemos e aquilo que desejamos viver, posto que há uma constância de sentimentos
ávidos por objetos que nos sejam favoráveis, mas, ao passo disso, nos frustramos diante da
realidade que nem sempre, ou na maioria das vezes, não nos é oportuna.
Essa contradição nos incita ao incômodo, ao esforço e à indignação, e Schopenhauer
demonstra que é nessa contrariedade diante das nossas condições existenciais, e também na
impossibilidade de um prazer constante e duradouro, que se desenvolve a presença da dor na
vida humana.
Ao questionarmos o que Schopenhauer compreende pela existência humana,
adentramos num território pessimista, porque o mundo é, para ele, um lugar de dor,
contrapondo e combatendo concepções vigentes de sua época, como a de Hegel, cuja
premissa pode ser expressa pela máxima “todo racional é real, todo real é racional”.
O filósofo não esconde, e muito menos minimiza, que as suas visões de mundo estão
fora de perspectivas fundamentadas em uma inteligência ordenadora, otimista ou teológica,
posto que para Schopenhauer não há Deus, razão, ou qualquer espécie de inteligência, que
justifiquem a natureza do mundo e do microcosmo. Em vez disso, o filósofo dá à Vontade 1
(Wille) o lugar de supremacia sobre todas as coisas e a considera como essência de tudo o que
há.
De modo oposto à proeminência da razão, as questões schopenhauerianas, que durante
muito tempo não foram tão valorizadas, expressam uma autenticidade, dado que, a fim de
decifrar o enigma da existência, Schopenhauer refuta o significado do mundo oferecido pelas
concepções racionalistas, otimistas e teológicas, atribuindo à existência o reconhecimento dos
1 Aqui gostaríamos de esclarecer que a Vontade (com “V” maiúsculo) refere-se à Vontade enquanto coisa em si,
já a vontade (com “v” minúsculo) refere-se à manifestação da vontade individual, ou determinada.
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afetos, do querer e do não querer, como expoentes que expressam a força volitiva inerente a
toda natureza.
O pensamento que Schopenhauer construiu dá o lugar máximo àquilo que o homem
sente, tanto é que não há nada mais que fundamente a sua metafísica além daquilo que o ser
humano possui no seu próprio interior. Por esse motivo é que também podemos compreender
a sua filosofia como uma filosofia dos afetos. Mas, há uma tragicidade nesse modo de pensar,
posto que aquilo que o homem é e sente se relaciona com conceitos que dialogam com uma
série de desventuras e de contradições que partem de um querer viver.
A abertura de Schopenhauer ao trágico e ao pessimismo nos permite visualizar a
imagem do homem no que há de mais proeminente no romantismo europeu do século XVIII,
o qual conservava uma reação contra a racionalização, e no niilismo, por exemplo, já que
nessas manifestações o sentido da vida é substituído por uma falta, uma ausência de sentido,
que contrariam as tendências ordenadoras, otimistas e racionais que o filósofo tanto refutou. O
contato com autores renomados da literatura entre os séculos XVIII e XIX, nos permite
perceber demonstrações de desesperança acerca da vida e do futuro. Personagens, tais como
Frankenstein e Werther são exemplos de papéis na literatura que marcaram época e que
expressam o sentimento de devastação perante a falta de sentido na vida. Neles temos a
imagem do homem, submetidos às dores e às ilusões, que Schopenhauer, precursoramente,
também ilustrou em sua filosofia.
O lugar de destaque que Schopenhauer dá ao ser humano vem da compreensão da
Vontade enquanto aquilo que cada homem possui de mais íntimo em si mesmo, e também
porque é no próprio ser humano que Schopenhauer enraíza a descoberta da essência do
mundo. Além do mais, segundo a sua filosofia, é o homem o ser mais capaz de manifestar e
compreender essa essência, mesmo que esse conhecimento não seja a priori.
Todavia, a essência que Schopenhauer nos apresenta não possui tendências
consoladoras e benevolentes, ao contrário disso, ela é cega, livre e não podemos apreendê-la,
senão por intermédio do querer viver, manifestação da vontade, que é o responsável por toda
as contradições e sofrimentos na vida humana. Em linhas gerais, podemos dizer que sofremos
porque queremos.
Para além da soberania da Vontade, Schopenhauer reconhece a importância da
representação no mundo, e alega que existe uma relação entre vontade e representação em
cada fenômeno da natureza, pois enquanto a vontade de vida condiciona e submete tudo o que
existe a fim de satisfazer-se, o intelecto reconhece objetos e media as ações dentro dos limites
do conhecimento. No capítulo dos suplementos “Do primado da Vontade na consciência de si”
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o filósofo reconhece que o “eu” seria um ponto em comum entre aquilo que ele apresenta
como Vontade, mas, também, como representação: “Este eu é o pro tempore idêntico sujeito
do conhecer e do querer [...]” (SCHOPENHAUER, 2015b, Cap. 19, p. 245).
Sendo assim, embora haja uma soberania da Vontade no mundo, posto que essa é
essência de tudo o que há, Schopenhauer coloca a representação como um aspecto também
fundamental, pois a representação é a condição necessária para o conhecimento sobre tudo o
que existe e o ser humano é também um ser de conhecimento.
Procurando situar a filosofia de Schopenhauer a partir da onipresença da vontade
enquanto afirmada, esta pesquisa tem por objetivo apresentar o pensamento do filósofo a
partir da primazia que nele tem o aspecto irracional do mundo a fim de demonstrar de que
modo a existência humana pode ser considerada como uma existência absurda, pautada nos
conflitos e nas lutas motivadas pelo querer em busca de satisfações para as carências
infindáveis.
A presença do absurdo nesta pesquisa surgiu quando, mediante a construção do que
Schopenhauer entende pela existência, estabelecemos contato com o livro O pessimismo e
suas vontades: Schopenhauer e Nietzsche (1998) de José Thomaz Brum, na qual o filósofo e
professor desenvolveu o capítulo “O absurdo de ser homem”.
Nesse capítulo encontramos uma espécie de guia que nos permitiu o acesso a um
material substancial, com tópicos capazes de nos orientar acerca daquilo que gostaríamos de
sintetizar sobre a existência humana na filosofia de Schopenhauer, tais como a relação da
vontade com o intelecto e a imagem do homem enquanto objetivação da Vontade. Mas, além
disso, nos deparamos com a noção do absurdo, um aspecto novo, sobre o qual ainda não
havíamos tido o conhecimento.
Clément Rosset interpretou o pensamento de Schopenhauer sob a perspectiva de um
absurdo. A sua interpretação, rica e com elementos que nos permite compreender de que
maneira a filosofia schopenhaueriana ecoou na contemporaneidade, não foi muito explorada
dentro dos departamentos de filosofia e, por isso, tivemos a missão de levá-la em
consideração mesmo sem a presença suficiente de referenciais bibliográficos que tratem desse
tema.
O absurdo desenvolvido por Rosset está vinculado a uma interpretação acerca do que
o autor do Mundo entendeu pela existência, isso porque Rosset compreendeu que, se tudo
para Schopenhauer está submetido à vontade, a existência também não escaparia dessa mesma
tendência, mas, mais do que isso, Rosset percebe que é a existência mesma que revela o
absurdo, a contradição própria a uma vida cujo embasamento está no querer viver.
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propriamente dizendo a obra de uma física que a cada passo anela uma metafísica” (2015b, p.
18). Seria a Vontade, então, a própria essência, enquanto a representação corresponde apenas
às aparências das coisas para o sujeito que as conhece, à fenomenalidade.
Sabendo que todo o mundo é representação para o sujeito que conhece, é válido
questionar como é possível conhecer e de que a representação é constituída. Para responder
essa questão, Schopenhauer expõe as formas que possibilitam a representação, ou seja, as
formas do princípio de razão, princípio explicitado por Leibniz e retomado por Schopenhauer,
ao qual todo objeto está submetido.
“Princípio de razão” é a forma de todo objeto, “o modo universal de sua aparição
fenomênica, o princípio constitutivo de toda representação” (ROGER, 2013, p. 60) composto
por: sujeito/objeto, tempo, espaço e causalidade.
O fato de a filosofia de Schopenhauer apresentar o sujeito e o objeto como termos
correlatos, sem colocar um ou outro como única causa da representação, o distancia de uma
filosofia materialista, para a qual o objeto é dado como independente do sujeito, e também de
uma filosofia cuja causa esteja inteiramente no sujeito, como no idealismo de Fichte. Assim,
Schopenhauer distingue sujeito e objeto e os coloca como termos relativos para o surgimento
da representação, ou do conhecimento, sendo o sujeito a metade que não se encontra no
espaço e nem no tempo, “pois está inteiro e indiviso em cada ser que representa”; apenas o
seu corpo pode ser encontrado no tempo e no espaço, e, enquanto tal, é objeto, pois objeto é
tudo aquilo que está no tempo e no espaço.
Toda representação é, portanto, conteúdo do princípio de razão, já que a representação
necessita dessas duas partes, sujeito e objeto, e uma dessas metades, o objeto, está
necessariamente no tempo e no espaço. Desta feita, compreendemos que o princípio de razão
pertence ao sujeito, mas só pode ser aplicado ao objeto.
A causalidade, uma das quatro figuras do princípio de razão suficiente, é possibilitada
pela relação entre tempo e espaço, formando uma conexão da qual resulta o entendimento. É
possível dizer que a causalidade seja como uma síntese do espaço e do tempo, pois nela há a
ideia de uma relação de dependência entre a existência temporal e espacial dos objetos de
maneira que aquelas formas se limitam reciprocamente determinando assim o objeto
representado em um tempo e em um lugar.
No decorrer do livro primeiro do MVR, Schopenhauer afirma que toda matéria
consiste em fazer-efeito (wirken), que os corpos possuem a capacidade de fazer efeito uns
sobre os outros e que o entendimento consiste em perceber modificações nos órgãos dos
sentidos, posto que a cada modificação percebida, o entendimento a representa como sendo
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efeito de uma causa. Assim, quando verificamos os outros corpos e constatamos suas
modificações entendemos que, igualmente aos efeitos que percebemos no nosso próprio
corpo, as modificações correspondem aos objetos que atuam sobre ele como causas daqueles
efeitos. Vejamos, nas palavras do autor: “O entendimento [...] possui sempre e em toda parte
a mesma forma simples: conhecimento da causalidade, passagem do efeito à causa e desta ao
efeito, nada mais” (2015a, §6, p. 24).
Sendo assim, a causalidade é a lei que possibilita as condições da percepção do que
está posto – mais do que isso, é ela mesma a “por” os objetos diante do sujeito (Vor-stellen) –,
confundindo-se, identificando-se com a própria atividade do entendimento, que envolve a
dependência entre relações temporais e espaciais dos fenômenos. Logo, caso não houvesse
essa correlação e apenas uma das formas do princípio de razão aparecesse de modo
independente na consciência, não seria possível explicar e nem conhecer os fenômenos.
Schopenhauer assegura que toda intuição é possibilitada e intermediada pelo emprego
da lei da causalidade, e que sem essa condição não chegaríamos à intuição de um mundo
objetivo.
Dessa maneira, todos os animais possuem um conhecimento que está atrelado à
capacidade de conhecer objetos segundo o conhecimento imediato do próprio corpo e de
reconhecer nos objetos modificações segundo a lei de causalidade.
O filósofo indica que, por vezes, nos surpreendemos com o conhecimento animal e dá
exemplos, como o do elefante que se recusa a atravessar uma ponte por intuir que a tal ponte
não suportaria o seu peso, e o do cão pequeno que teme pular da mesa, para ilustrar de que
modo o animal consegue intuir certas relações sem que para tanto lhe seja necessário refletir,
tratando-se, sim, apenas de um conhecimento a priori da relação de causa e efeito.
O conhecimento pela causalidade é a base do que Schopenhauer compreendeu ser o
tipo de conhecimento mais primitivo e comum a todos os animais, o conhecimento intuitivo,
ou representação intuitiva, empírica. Nesse âmbito de representação há uma abertura dos
sentidos e do entendimento, mas que é restrito e não diz respeito à reflexão e ao conceito.
Segundo Clément Rosset, o absurdo já se encontra na concepção de causalidade na
filosofia de Schopenhauer, e é exatamente nesse ponto que Rosset indica o que seria “a maior
absurdidade”: a constatação da ausência de necessidade e de causalidade para a existência em
geral, para a natureza em geral e para o querer em geral. Rosset percebe que em
Schopenhauer só há necessidade e causalidade do ponto de vista fenomenal e este, sendo mera
representação, é mera contingência.
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existem diferentes graus cognitivos entre as espécies animais, e que há desde graus com
bastante proximidade à capacidade intelectual-intuitiva humana até níveis que se aproximam
das plantas, entre as quais não se verifica nenhuma percepção de objetos. Isso se deve ao fato
de que, mesmo estando presente em todos os animais, o intelecto não se manifesta da mesma
maneira, posto que a manifestação fenomenal do intelecto é o cérebro, e a partir da presença
ou não de um sistema nervoso cerebral mais desenvolvido é que se faz possível medir a sua
relativa complexidade.
No ser humano, em especial, Schopenhauer observou um complexo sistema nervoso e
uma ampla variação sobre o intelecto e elucidou que cada homem é possuidor de
características intelectuais distintas, chegando, por isso, até a mencionar que cada indivíduo é
como uma espécie. O filósofo classifica, também, os homens segundo o intelecto e diz haver
variações intelectuais que vão “do obtuso até o gênio”.
A representação abstrata é a passagem da intuição para a reflexão, mas sem que essa
reflexão perca o seu apoio na intuição que consiste em seu conteúdo material inicial, haja
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vista que “todo o edifício do nosso mundo de pensamentos repousa sobre o mundo das
intuições” (2015b, Cap. 7, p. 85).
Na representação abstrata a razão se comporta como uma espécie de reflexo sobre os
fatos, extraindo do material empírico particular elementos universais, promovendo a
capacidade de desenvolver conceitos e raciocínios sobre eles. A razão, pontua Roger, “possui
um papel passivo” (2013, p. 63), posto que ela só “recebe” os dados imediatos e os transforma
em conceitos. Não é raro encontrar a definição da razão, ou do conhecimento abstrato, como
sendo “a representação de uma representação”, pois é assim mesmo que ela se comporta:
como uma faculdade capaz de refletir acerca das representações intuitivas, de modo que o
conhecimento não se restrinja apenas aos dados sensíveis.
O filósofo defendeu que a racionalidade é a responsável pelas construções de
verdades, reflexões, conceitos e linguagens, inclusive por construções interiores, como a
imaginação propositada, tal como encontramos nas fábulas.
Dito de outro modo, Schopenhauer reconhece a representação abstrata como um tipo
de representação comunicável e, também, como um tipo de conhecimento objetivo, capaz de
construir conceitos, enquanto o conhecimento intuitivo se limita ao subjetivo e ao que há de
mais rudimentar, como a autopreservação, não atendendo às demandas comunicativas mais
elaboradas.
Se na representação intuitiva há a presença de impressões sensoriais, na representação
abstrata o que há é o conceito, e é por isso que a filosofia, a ciência e a literatura, por
exemplo, são consequências de representações abstratas, justamente porque exigem
raciocínio, reflexão, linguagem, em uma palavra: comunicabilidade.
Dessa maneira, observamos que quanto mais complexo for o intelecto, mais
complexas serão também as suas atividades, e que há no homem uma diversidade de ofícios,
inclusive com atribuições criativas, enquanto nos animais observa-se apenas tarefas mais
especializadas e repetitivas que condizem com o que há de mais instintivo nos seres dotados
de algum conhecimento: a autopreservação.
Em sua obra magna, Schopenhauer afirma que quanto mais rebuscada e genial for a
obra literária ou filosófica, mais contiguidade com a intuição ela precisará ter. O trabalho do
gênio, de acordo com o autor, é comunicar e desenvolver a sua obra com bastante
proximidade da intuição que origina o conceito, e esse foi o motivo que levou Schopenhauer a
reconhecer que “todas as grandes cabeças sempre pensaram na presença da intuição e em seu
pensamento mantiveram fixa a mirada sobre esta” (2015b, Cap. 7, p. 87).
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impossível, o absurdo, o disparate” (2015b, Cap. 6, p. 82). Dessa maneira, o homem está
sujeito ao erro, ao contrário dos animais, pois neles o intelecto opera em total adequação com
a vontade, enquanto no homem a razão confabula. Segundo Brum (1998, p. 27), “o homem é
doravante passível de erro. Pode imaginar, inventar “motivos imaginários” capazes de
extraviá-lo em um mundo distante de suas necessidades reais”.
Além de induzir ao erro, a razão também intensifica o sofrimento humano, sobre isso,
diz Moraes (2015, p. 162): “A vantagem que tem o homem sobre o restante da natureza, a
razão, potencializa suas dores como se já não bastasse para tanto seu complexo sistema
nervoso, particularmente suscetível à dor em todos os mamíferos”. Isso porque a razão nos
antecipa problemas futuros e nos faz reviver, através da memória, momentos do passado,
despertando dúvidas e remorsos acerca das situações vindouras e passadas.
Mas, Schopenhauer não foi o único a pensar a razão enquanto condição capaz de
intensificar os males, Albert Camus (1913 – 1960), em O mito de Sísifo, também diz que
“começar a pensar é começar a ser atormentado”.
Por fim, é legítimo dizer que, mesmo diante de uma fragilidade racional, a filosofia
schopenhaueriana reconhece uma necessidade humana de formular garantias, elencar
objetivos e compreender as mais diversas causas do mundo a fim de, com isso, estabelecer e
de encontrar consolos e justificativas para existência apoiando-se na razão.
O filósofo considera que é típico e exclusivo do ser humano a razão, mas também o
espanto5, e que, por meio dessas duas qualidades, os homens tendem a buscar justificações
para a própria existência.
É a partir do desejo de desvendar o conhecimento das mais diversas causas que
Schopenhauer compreende a presença de uma necessidade metafísica na vida humana e
classifica o ser humano como animal metaphysicum em virtude da ânsia que possuímos em
encontrar entendimentos acerca da existência. Cito:
[…] se há uma coisa digna de ser desejada no mundo, tão desejável que até
mesmo a turba tosca e grosseira em seus instantes de clareza de consciência
iria valorizar mais que prata e ouro; essa coisa é um raio de luz que caia
sobre a obscuridade do nosso existir e nos dê clareamento sobre esta
enigmática existência. (SCHOPENHAUER, 2015b, Cap. 17, p. 199.)
5 “[...] nenhum ser, excetuando-se o humano, espanta-se com a própria existência” (SCHOPENHAUER, 2015b,
Cap. 17, p. 195).
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sem que jamais um conhecimento racional pudesse alcançar a essência última e absoluta das
coisas e as suas origens? Segundo Schopenhauer, “a mera razão de conhecimento sempre
permanece na superfície” (2015a, §15, p. 82), e jamais pode responder mais profundamente
acerca das questões existenciais sobre as quais nos debruçamos, posto que o princípio de
razão pode responder acerca das aparências, mas é insuficiente para explicar de onde elas
vieram e para que existem.
Em seu ensaio, Schopenhauer, filósofo do absurdo (1967), Rosset defende que a
filosofia de Schopenhauer parte de uma intuição primeira e que essa seria a concepção de um
mundo em oposição completa a toda espécie de razão ou justificação.
Nesse sentido, Rosset acredita que a busca por fundamentações acerca de questões
existenciais em um mundo sem razão, fundamento e causa só reafirma a noção do absurdo,
visto que o ser humano persegue fins e organiza, exaustivamente, meios para alcançar as tais
fundamentações acerca da existência.
Sendo assim, o que Rosset entende por absurdo não se reduz somente a um mundo
onde não exista necessidade nem finalidade, mas, sim, se refere a um mundo no qual essas
condições estão ausentes no que diz respeito a sua existência mesma e, ainda assim, os
homens as perseguem, sem jamais alcançá-las. Nas palavras do autor:
temos em determinar as coisas, não encontramos determinações, mas sim um vazio sobre o
que essas coisas sejam.
O desejo de desvendar o enigma da existência a partir do conhecimento racional seria,
então, uma ilusão que pertence a um extenso cenário de angústias, pois há um sentimento de
insuficiência e de ausência até mesmo diante do desejo de conhecer.
2. O QUERER NA VIDA HUMANA
6 “A vontade, como coisa em si, constitui a íntima, a verdadeira e indestrutível essência do ser humano [...].”
(SCHOPENHAUER, 2015b, Cap. 19, p. 243).
7 “Por outro lado, entretanto, este mesmo mundo, na totalidade das suas aparências é para nós objetidade da
vontade, que, por não ser ela mesma aparência, representação ou objeto, mas coisa em si, não está submetida ao
princípio de razão, a forma de todo objeto; portanto não é determinada como consequência por um fundamento,
logo, não conhece necessidade; em outras palavras, é livre”. (SCHOPENHAUER, 2015a, §55, p. 332).
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conhecimento imediato sobre a vontade, a intuição só nos apresenta fenômenos, nunca a coisa
em si mesma. De acordo com Moraes (2017, p. 350):
Em sua filosofia, Schopenhauer assinala que tudo o que se expressa como vontade e
querer em uma pessoa é expressão de um caráter (Charakter). De acordo com o filósofo, o
caráter é o que há de mais essencial no homem e as ações humanas são apenas exteriorizações
sempre repetidas de um mesmo caráter.
Schopenhauer reconhece que há três considerações acerca do caráter: o inteligível, o
empírico e o adquirido, sendo o caráter inteligível, ou originário, aquele que coincide mais
propriamente com o ato originário da vontade. Nas palavras do filósofo o caráter inteligível “é
a vontade como coisa em si na medida em que aparece num determinado indivíduo e num
determinado grau [...]. O caráter inteligível de cada ser humano deve ser considerado como
um ato extratemporal, indivisível e imutável da vontade” (2015a, § 55, p. 335).
A consideração de Schopenhauer acerca do caráter inteligível indica que existem
características nos humanos que são inatas por não terem sido desenvolvidas em virtude de
influências sociais, culturais ou a partir de métodos de aprendizagem, mas sim pela sua
completa identidade com a vontade. Segundo o filósofo, há uma constância relativa às
peculiaridades de cada indivíduo e nisso há, consequentemente, uma perenidade sobre o que
as pessoas são em si mesmas. Em vista dessa realidade, o modo de agir de cada pessoa está
sempre em conformidade com um caráter originário, isso é, caso a vontade permaneça
afirmada no indivíduo, pois quando há a negação da vontade o caráter da pessoa também é
suprimido.
A permanência do caráter originário de um indivíduo permite que seus traços se
exteriorizem nas mais diversas ações, e essas manifestações do caráter originário na
experiência é o que Schopenhauer compreende como caráter empírico. De acordo com o
autor: “O caráter empírico tem de fornecer num decurso de vida a imagem-cópia do caráter
inteligível e não pode tomar outra direção a não ser aquela que permite a essência desse
último” (2015a, §28, p. 184). Dessa maneira, o caráter originário é livre de aparências e de
fundamentos, mas pode dar sinais de si de acordo com as afecções que cada indivíduo
expressa continuamente em sua própria experiência, em conformidade com o caráter
empírico.
Schopenhauer não percebe a presença de um caráter originário e empírico somente nos
homens, mas até mesmo nos animais e nas plantas. O filósofo considera que as plantas
expressam o seu caráter segundo suas fisionomias, ou figuras, e os animais a partir de suas
ações e esforços. De acordo com o autor, a planta é mais inocente do que o animal e o animal
é mais inocente do que o homem, visto que no homem há a capacidade de dissimulação,
enquanto que nesses outros seres essa característica não existe, ou seja, nos outros seres
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aquilo que é comum à natureza do seu próprio ser pode aparecer até de maneira mais pura do
que nos homens, pois os homens, de acordo com os seus interesses, podem manipular as
aparições dos seus desejos em suas atitudes, enquanto os outros seres expressam em suas
próprias fisionomias aquilo que são.
Todavia, há uma semelhança entre os seres, como entre os animais e plantas, por
exemplo: a presença da vontade de vida que se manifesta a partir de um ímpeto cego pela
existência. Mediante a presença da vontade de vida, portanto, há a presença de um caráter
inteligível e de um caráter empírico que correspondem à vontade que se encontra em cada um
deles.
Já o caráter adquirido, como o próprio nome já indica, é o caráter que se conquista.
Esse caráter é exclusivo aos seres humanos, pois um caráter adquirido depende de uma
reflexão, e a reflexão é exclusiva aos homens e ausente nos outros seres, visto que para refletir
é necessário que haja razão, e os animais não demonstram refletir, portanto, não possuem
razão de acordo com a filosofia de Schopenhauer.
O caráter só pode ser adquirido mediante a consciência daquilo que se apresenta na
própria experiência, sendo assim, essa consideração de caráter depende completamente de um
conhecimento abstrato. Sobre essa consideração de caráter, diz Schopenhauer (2015a, § 55, p.
353):
Schopenhauer indica que com o tempo é que os motivos se apresentam com mais
clareza ao entendimento, e que somente a partir de uma análise sobre as próprias ações no
decorrer do tempo é que se torna possível alcançar uma sabedoria, essa que é pautada na
escolha de meios mais adequados para o melhor agir em conformidade com aquilo que se é.
Mas, ainda assim, é necessário acrescentar que há tendências constantes em cada
pessoa que não podem ser explicadas, visto que cada pessoa é parte comum de uma essência
sem razão, e se a essência é sem fundamento, o caráter dos indivíduos não pode escapar dessa
mesma disposição. Além do mais, há sempre algo em nós mesmos que nos é desconhecido
porque o tempo nem sempre é o bastante para que a experiência do autoentendimento seja
capaz de nos esclarecer detalhes acerca da nossa própria natureza. Desse modo, o
autoconhecimento se dá sempre de modo parcial ao indivíduo.
Portanto, a partir de uma compreensão do que expressamos e desejamos, podemos
mediar as nossas ações de acordo com aquilo que nos é realmente possível e alcançável,
sendo essa via a única possibilidade que há para o aperfeiçoamento de comportamentos.
Concordamos com Debona quando diz que:
É notório como cada um obedece ao seu próprio querer assim como um súdito se
encontra submisso às ordens do seu senhor. Rosset diz que cada pessoa está atada ao próprio
querer assim como uma pedra está condicionada ao seu movimento, não existindo nisso noção
de liberdade. Há, dessa maneira, na filosofia de Schopenhauer uma refutação da liberdade
segundo a qual o homem possa orientar a sua própria vida, visto que, segundo Rosset (1994,
p. 92), a liberdade na filosofia de Schopenhauer “não é outra coisa senão a necessidade
segundo a qual cada um representa suas próprias tendências”, e nada mais do que isso.
De acordo com o sistema schopenhaueriano, a liberdade, no sentido mais extremo, só
seria possível mediante a negação radical da vontade, mas, enquanto ela for afirmada, não
existirá total liberdade de ação, pois o caráter inteligível se apresenta como uma espécie de
fatalidade sobre a qual as pessoas não podem desviar de suas constituições.
9 “As demonstrações claramente sofísticas de Leibniz de que este mundo seja o melhor dos mundos possíveis,
pode-se até mesmo contrapor séria e honestamente a demonstração de que se trata do pior dos mundos
possíveis.” (SCHOPENHAUER, 2015b, Cap. 46, p. 667).
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mais presente do que o de satisfação, pois ele é contínuo, enquanto que o sentimento de
satisfação é apenas momentâneo.
Schopenhauer indica que não há alvo para a vontade, e que o esforço 10, revelado em
diferentes graus de aparecimentos, como, por exemplo, na luta dos indivíduos, seria a sua
própria essência. Por esse motivo, não pode haver nenhuma satisfação final, já que o esforço
pertence à natureza mesma da vontade. Daí o sofrimento estar no âmbito dos constantes
esforços e também na impossibilidade de uma satisfação duradoura, pois a verdade é que para
a vontade nenhuma realização duradoura é possível. Segundo o autor do MVR:
Em O mito de Sísifo (1942), Albert Camus, autor existencialista e reconhecido pela sua
filosofia do absurdo, trata sobre a questão da inutilidade dos esforços, e, assim como
Schopenhauer, ele indica que a existência é marcada por esforços inúteis.
A indicação da inutilidade dos esforços, segundo Camus, surge pela busca de sentido
que o ser humano persegue em um mundo ininteligível. Para expor a inutilidade dos esforços
o autor compara a atividade humana, que está sempre procurando um sentido para justificar a
sua própria existência, ao trabalho de Sísifo, personagem da mitologia grega.
Sísifo foi condenado a empurrar uma pedra até o topo da montanha eternamente, pois
sempre que a pedra estava próxima ao topo, ela voltava rolando até o ponto de partida que se
encontrava anteriormente. Em função disso, Camus compara a existência ao mito e diz que
todo esforço é dispendioso por não haver nele satisfação e nem realização.
Já Schopenhauer compara o trabalho humano ao trabalho da toupeira que está sempre
em permanente atividade, cavando a terra dia e noite, sem que nisso exista uma finalidade a
não ser o próprio ato de cavar.
10 “[...] a vontade em todos graus de seu aparecimento, dos mais baixos aos mais elevado, carece por completo
de um fim e alvo último; ela sempre está se esforçando porque o esforço é sua única essência, e nenhum alvo
alcançado põe um fim a esse esforço [...].” (SCHOPENHAUER, 2015a, §56, p. 357).
36
A necessidade reproduz uma falta, tal como uma lacuna sedenta, e desperta o desejo,
ou o interesse, por algum objeto da representação a fim de suprir o sentimento de ausência
que lhe é comum. Já o tédio é quando não há nenhuma aspiração, nenhuma agitação em vistas
de algum fim que desejamos ou necessitamos. Nesse ponto é interessante notar a diferença
entre satisfação e tédio, pois a satisfação pode ser compreendida como a saciedade por termos
37
atingido algo, ou então como o prazer em possuir o suficiente, sem nisso haver aspirações que
indiquem que nos falta alguma coisa, mas o tédio, ao contrário da satisfação, não reproduz um
bem-estar por não haver o que conquistar. Ao contrário disso, ele reproduz uma angústia, um
sofrimento, em virtude da ausência de aspirações, que dá a sensação de um não passar do
tempo, pois o tédio não toma interesse por nada.
Nesse sentido, encontramos no desejo o cerne do sofrimento, seja pela agitação que
ele desperta, ocasionado pela necessidade, ou pela sua ausência que nos angustia. Sobre a
relação do desejo com o sofrimento, diz Brum (1998, p. 37):
O sofrimento é comum em toda natureza, mas no ser humano ele toma uma forma
mais acabada, pois no humano o pensamento é intermediado pela razão que pode nos
conduzir a uma sensação de dor ainda mais aguda, visto que o pensamento é capaz de
confabular aspectos ainda mais intensos sobre os nossos sofrimentos. É por isso que diante de
algum infortúnio que nos ocorra não pensamos unicamente na representação daquele
infortúnio de acordo com as disposições momentâneas e reais que ele implica no tempo
presente, mas desenvolvemos uma cadeia de pensamentos sobre as consequências daquele
mal para a posteridade, e também pensamos em outras condições adversas que aquela
desventura pode ocasionar. Além do mais, a razão nos possibilita refletir sobre situações que
poderiam ter ocorrido de um modo diferente, o que pode ocasionar sentimentos de
arrependimento ou de insuficiência diante das mais diversas situações, por exemplo.
Dessa forma, Schopenhauer acredita que o sofrimento dos animais é bem inferior ao
sofrimento dos homens, pois “eles não conhecem outra dor senão aquela que é produzida
imediatamente pelo presente” (2015b, Cap. 5, p.71), havendo neles, nos animais, uma certa
inocência sobre as tendências do futuro e uma ausência de desconfiança sobre os infortúnios.
A inocência dos animais, inclusive, nos desperta encantamento, pois eles não possuem
pensamentos que os levem ao sofrimento e, também, não são capazes de articular reflexões
que os faça perceber ou até mesmo praticar a malícia.
Todavia, mesmo sendo capazes de refletir e de uma consciência abstrata,
Schopenhauer também percebe que nem sempre temos consciência acerca daquilo que
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desejamos e tememos, e por isso podemos nos surpreender conosco mesmos, posto que, na
maioria das vezes, diz o filósofo, “estamos completamente enganados sobre o real motivo que
nos leva a fazer ou deixar de fazer alguma coisa” (2015b, §19, p. 254).
A explicação que Schopenhauer elenca para o engano e o desconhecimento dos nossos
próprios desejos não vai de encontro à incapacidade de percepção, mas sim à resistência que
possuímos em nos assumir em determinadas situações como sujeitos não morais, egoístas,
vaidosos, ou como toda sorte de determinações que possam indicar um caráter duvidoso, no
sentido de ser reprovável diante do julgamento das outras pessoas. Fugimos das tendências
duvidosas, diz o filósofo, pois nos falta coragem para assumi-las. Sobre esse ponto, diz ele:
A não aceitação dos desejos mais “sombrios” também nos indica mais um sofrimento
existencial, mas, mais do que isso, ele nos indica uma recusa mesmo, pois as condições
adversas que nos remetem aos sofrimentos demandam uma aceitação racional de um estado
de dor.
Em seu livro O princípio de crueldade, Rosset entende que há uma recusa à dor e
declara que ou nos colocamos em uma posição de inconsciência diante das mais diversas
formas de angústias, como um modo de viver mais tranquilamente, e, consequentemente,
menos conscientes, ou tomamos o conhecimento do pior sem sermos afetados. Rosset declara
que resistimos “a toda informação exterior quando esta não concorda com a ordem da
expectativa e do desejo” (1989b, p. 52), mas que, em consequência disso, nos apartamos da
realidade.
Schopenhauer é pioneiro em explicitar o dilema da existência e apresentá-la como
sofrida diante da insaciabilidade da vontade e do desejo humano, para isso ele cita o mito de
Ixião, personagem da mitologia grega que foi condenado por Zeus, depois de uma traição, a
permanecer girando eternamente em uma roda flamejante, aludindo que, assim como a roda
de Ixião, estamos presos a uma roda do querer que nunca tem fim. Diz o autor: “O sujeito do
querer, consequentemente, está sempre atado à roda de Íxion, que não cessa de girar, está
sempre enchendo os tonéis das Danaides, é o eternamente sedento Tântalo” (2015a, §38, p.
226).
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Rosset observou a mencionada passagem e expressou que os desejos 11, por sempre
serem recomeçáveis e sem fim, criam uma certa inquietude que diz respeito à recorrente
insatisfação. Nesse sentido, a existência humana é comparada a alguns dos piores castigos da
mitologia grega e dada como dolorosa e sofrida pelo eterno ciclo de sua falta de saciedade.
Nesse ponto Rosset diz que não é o mundo que é incompreensível, mas sim a busca cega por
desejos. Cito:
A humanidade situou mal sua inquietação. Ela sofre por sentir que está tudo
além de seu alcance, que ela não pode definir, deter, apropriar-se de tal
objeto de seu desejo ou de sua admiração, apreender ao menos quaisquer
ideias ou bens no decorrer de sua busca cega; e, nada resultando disso, ela
acusa o mundo de escapar, os objetos, de se furtarem tão logo avistados
antes que se tenha podido compreendê-los. Mas é sua busca que é
incompreensível; o mundo, ele mesmo, é simples e claro – ainda que sem
razão de ser. (ROSSET, 1994, p. 85)
A percepção de uma vida cíclica, cheia de altos e baixos, é, inegavelmente, uma visão
fiel sobre a realidade existencial dos seres humanos. No entanto, ainda que possam existir
momentos de satisfação, Schopenhauer os compreende como bastante ocasionais e pouco
recorrentes se comparado aos desprazeres, haja vista que o filósofo entende a presença do
sofrimento como algo que nos acompanha por toda a existência, e assume que “nossa
sensibilidade para dor é quase infinita” (2009, §148, p. 307). Ele percebe que, ao contrário de
muitas outras filosofias, há na sua a compreensão da dor enquanto positiva e da felicidade
como negativa, pois as dores são mais constantes do que a soma das alegrias.
O recorrente ciclo de sofrimentos existe porque estamos condicionados à vontade
cega, sem que jamais nossos esforços tragam saciedade, já que são sempre recomeçáveis e
sem fim, e também porque o intelecto não pode ser capaz de nos libertar dessa submissão,
declara Rosset (1994, p. 90): “nenhum empenho [tentative] intelectual poderá libertar
[affranchir] dessa dependência”.
Rosset admite a constatação dos desprazeres sobre os prazeres na filosofia de
Schopenhauer, e também indica que há um déficit nos prazeres em vistas da constância dos
desprazeres. Ele expõe que é por essa razão que Schopenhauer questiona: “Le jeu en vaut-il
bien la chandelle?”12, demonstrando que a vida não vale a pena ser vivida em consequência
das inumeráveis perdas e frustrações que estão acima das satisfações. Além do mais, dentro
11 O desejo é um aspecto de tanta importância na filosofia de Schopenhauer, que o filósofo entende que a
percepção de um desejo, mediante a satisfação e insatisfação desse, é o que há de mais imediato em cada
consciência. O desejo é transitivo e é próprio do homem que toma interesse por algo, mas ele é conduzido por
um querer intransitivo da vontade de vida.
12 “O jogo vale mesmo a vela?” (SCHOPENHAUER, 2015b, Cap. 45, p. 683).
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dessa mesma perspectiva do desejo e do sofrimento, Rosset constata que, para Schopenhauer,
as alegrias não são somente menos recorrentes, mas são, também, menos reais.
A verificação dos prazeres, ou das alegrias, como menos reais ocorre porque o estado
de dor é tão constante que as satisfações, ou alegrias, são dadas como negativas e só surgem
quando há ausência de necessidade. Sendo assim, os prazeres só podem acontecer em um
curtíssimo intervalo de tempo, pois a necessidade é que é constante na vida humana. Sobre as
alegrias como sendo menos reais, pontua Rosset (1994, p. 66):
De acordo essa asserção, Schopenhauer propõe que o desejo pela vida de forma
absoluta e constante seja o foco da afirmação da vontade. Todavia, esse desejo pela vida
implica numa série de lutas, egoísmo e também no ímpeto sexual que promove uma sucessão
de gerações e, dessa maneira, prolonga a vida das espécies, renovando a vontade de vida.
Na filosofia de Schopenhauer há uma concordância de que a luta pela existência é
comum a todos os seres e condiz com o modo de sobrevivência mais primitivo da natureza,
pois em toda a natureza há “conflito, luta e alternância de vitória”.
A luta pela existência ocorre seja a partir da caça e da predação, ou da conquista por
espaço, tempo e matéria, visto que ela sempre implica na destruição, invasão ou na tomada de
algo. Contudo, Schopenhauer destaca que a luta no reino animal é ainda mais visível do que
no vegetal, e que o homem aparece como o mais cruel de todos os seres, já que, além de
possuir uma dominação sobre as demais espécies, ele mesmo reproduz uma autodiscórdia
sobre si, como no caso do suicídio, no qual Schopenhauer percebe uma contradição interna da
vontade em grau mais elevado. Sobre a discórdia comum aos humanos, diz o autor:
.
No parágrafo §27 do primeiro tomo de sua obra magna, o filósofo esclarece que “a
vontade de vida crava continuamente os dentes na própria carne”. Essa metáfora pode ser
compreendida como a imagem do constante conflito da vontade com ela mesma, dado que
cada objetivação da vontade se encontra em combate com outras objetivações a fim de
afirmar-se.
Na luta de todos contra todos, o caráter egoísta da afirmação da vontade transparece,
pois o ato de afirmar-se implica sempre na negação de uma outra objetivação, diz
Schopenhauer:
O egoísmo é típico da afirmação porque os seres precisam uns dos outros para a sua
conservação, inclusive as plantas, os astros, os elementos químicos etc. E nisso o filósofo atrai
a atenção circundante para o fato de que o interesse é próprio do sujeito do querer dotado de
conhecimento, e que, quanto mais afirmada for a vontade, mais egoísta ela será e mais
sofrimentos despejará no mundo.
Em sua ética, Schopenhauer indica que o extremo egoísmo seria sinônimo de maldade
e que a ausência de egoísmo seria a compaixão, sendo o homem o ser mais capaz de um
extremo egoísmo em virtude do seu desejo de poder e de dominação, uma vez que através
desse ele impõe a sua própria afirmação de vida sobre os outros seres. Mas, por outro lado,
Schopenhauer também entende que o ser humano é o único a desenvolver a compaixão de um
modo consciente, visto que somos capazes de reconhecer que há uma essência comum a nós e
aos demais seres. Todavia, a compaixão condiz com a negação da vontade, e nesse ponto não
nos deteremos, pois aqui nos interessa abordar as consequências de uma vontade afirmada.
Uma vez que Schopenhauer compreende a afirmação da vontade como a manifestação
sempre em vista da conservação de vida, o impulso sexual é identificado como o seu principal
expoente, pois “tem em vista uma série sem fim de gerações”.
A afirmação da vontade, mais do que a conservação do próprio indivíduo, quer a
propagação de vida “absolutamente e por todo tempo” e Schopenhauer reconhece isso,
indicando que o principal foco do querer é a procriação.
Dessa forma, ele reduz os movimentos da vida a meios para a produção de uma série
de gerações, lançando-se sempre para além do próprio indivíduo, e declara que os órgãos
genitais estão para a vontade assim como o cérebro está para a representação, para o
conhecimento.
No capítulo “Metafísica do amor sexual”, Schopenhauer faz uma reflexão acerca do
amor entre humanos e da união entre os sexos. Segundo o autor, toda expressão de amor no
mundo, entre seres humanos de diferentes sexos, ocorre em decorrência da vontade de vida
que quer prolongar-se por todo o tempo, através da procriação, e, também, que nenhum outro
fim se compara ao fim da busca amorosa na vida humana. Diz ele: “todo enamoramento tem
em mira unicamente a procriação de um indivíduo” (2015b, Cap. 44, p. 638).
A forma como Schopenhauer elucida o que entende pela união entre os indivíduos
escapa de uma reflexão romântica, pois, para ele, toda a idealização de um outro, ou de um
43
par, nada mais é do que a manifestação de uma vontade de vida que foge do interesse do
indivíduo para contemplar o interesse da espécie. Embora possa existir alguma dificuldade
para assumir essa posição, de que o amor apenas serve à vontade, de modo a reproduzir e
prolongar a vida, é possível encontrar essa mesma análise em Totem e Tabu (1913), de
Sigmund Freud, onde o psicanalista faz uma reflexão acerca do comportamento sexual dos
povos aborígenes australianos a fim de compreender as crenças que permanecem em nossas
estruturas psíquicas até os dias de hoje. Segundo Freud, entre os aborígenes da Austrália havia
regras, ou limites, com punições severas, sobre as suas relações sexuais.
O modo das relações sexuais entre os aborígenes era a exogamia, pois não era
permitido que o indivíduo se relacionasse com alguém que venerasse o mesmo totem, isso
tudo para evitar o incesto. Inclusive, o descumprimento dessa regra poderia ocasionar até
mesmo a morte do indivíduo que não a respeitasse. Havia outras punições entre os aborígenes,
e uma delas era direcionada aos “romances passageiros” que não resultassem na procriação.
Cito: “Com a mesma severa punição é aplicada também a romances passageiros que não
resultem em filhos [...]” (FREUD, 2012, p. 24).
Nesse último ponto, mais especificamente, encontramos uma regra que a cultura atual
não leva minimamente em consideração, pois o uso de métodos que possam evitar a
reprodução é cada vez mais frequente, além de que há consideráveis avanços tecnológicos no
desenvolvimento dos contraceptivos. No entanto, a regra dos aborígenes sobre evitar relações
passageiras que não tenham finalidade reprodutiva vai ao encontro do que Schopenhauer
reconhece como finalidade da união entre os indivíduos, já que o filósofo admite que a
finalidade das relações sexuais é meramente reprodutiva.
Schopenhauer afirma que a busca da satisfação por intermédio do sexo é o que
introduz inquietude, melancolia, infortúnios, preocupações e necessidades na consciência.
Cito:
[...] a vontade expõe-se ao mesmo tempo como impulso sexual, que tem em
vista uma série sem fim de gerações. Este impulso suprime aquela
despreocupação, jovialidade e inocência, que acompanhariam uma mera
existência individual, na medida em que introduz na consciência inquietude
e melancolia, no curso da vida, infortúnios, preocupações e necessidades.
(SCHOPENHAUER, 2015b, Cap. 45, p. 677)
Na perspectiva da espécie humana Schopenhauer expressa que o que há de menos
individual é o impulso sexual, posto que a conservação é a mais elementar intenção da
natureza, muito embora seja o que determina as ações de modo mais individualizante,
justamente porque está em jogo o aperfeiçoamento da espécie.
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A imagem exponencial da vontade de vida que conduz o indivíduo pode ser ilustrada
em sua vida sexual, já que, nessa condição, existe uma ilusão acerca de uma satisfação que
parece servir ao indivíduo, quando, na verdade, serve à vontade de vida.
De acordo com isso, temos a imagem de uma potência sem razão que se manifesta nas
lutas e fatalidades que recaem sobre os indivíduos a partir de uma mútua devastação e do
sexo, que visam garantir a sobrevivência e a prolongação das espécies no mundo.
Reconhecemos na luta pela existência, seja a partir da discórdia ou do impulso sexual,
o que Rosset descreve sobre sermos, obrigatoriamente, caça e caçador, e que essa condição
nos induz ao “tumulto, privação, miséria e angústia, grito e urro” 13 (ROSSET, 1994, p. 72).
Esse aspecto da filosofia de Schopenhauer reforça que estar submetido às tendências da
vontade ocasiona sofrimentos, mas, além disso, também possibilita o reconhecimento de um
absurdo em sua filosofia.
Segundo Rosset, a absurdidade que podemos identificar na filosofia schopenhaueriana
mediante o querer é que nesse mundo “tudo é tendência”, visto que perseguimos propósitos e
somos motivados a alcançar determinados objetivos, sejam eles bens materiais, saúde,
sucesso, amor etc., através das constantes lutas e esforços, pois tudo o que queremos é “a
existência, o bem-estar, vida e propagação” (SCHOPENHAUER, 2015b, Cap. 19, p. 247).
Porém, mesmo havendo essa constante busca por atingir objetivos, “reina uma potência que
não é tendência” (ROSSET, 1994, p. 67), sendo essa potência o próprio querer, posto que esse
é desnudado de finalidade. “A Vontade”, que Schopenhauer apresenta como sendo a essência
“que tudo governa, não tem nela mesma nem fim, nem origem, nem razão para seu próprio
poder coercitivo, não fazendo outra coisa senão repetir-se eternamente” (ROSSET, 1994, p.
106).
Temos, então, a partir dessa conclusão, a aparição do absurdo da vontade em
Schopenhauer que consiste na presença constante de um querer no mundo sem que esse
querer tenha qualquer fundamento, pois os propósitos que atribuímos a ele não têm existência
real.
13 “[...] l’obligation pour chacun d’être tour à tour chasseur et gibier, tumulte, privation, misère et angoisse, cris
et hurlements, voilà tout ce qui nous apparaît; et tout cela continuera ainsi [...].”
3. ASPECTOS DO ABSURDO NA EXISTÊNCIA HUMANA
Ao iniciar a sua obra Schopenhauer, filósofo do absurdo, Rosset faz uma reflexão
sobre a causalidade schopenhaueriana, pois, segundo o seu entendimento, a importância e a
meditação acerca da causalidade é o ponto de partida de toda filosofia schopenhaueriana.
Como vimos no primeiro capítulo deste trabalho, a causalidade é a forma da intuição
que une as formas de tempo e espaço. Ela é um dos quatro elementos que constituem o
princípio da razão suficiente, base fundamental para a representação no mundo, já que os
objetos exteriores só podem ser apreendidos, ou representados, caso estejam submetidos ao
princípio de razão. Dessa maneira, podemos concluir que a causalidade é um aspecto
fundamental para a possibilidade do conhecimento fenomênico segundo a filosofia de
Schopenhauer.
Em sua interpretação acerca da filosofia schopenhaueriana, Rosset diz que a
causalidade “ocupa um lugar privilegiado”, e que há um mistério, um interesse e um espanto
(étonnement) em torno das relações causais, desde as mais ordinárias até as mais
extraordinárias.
Rosset nos lembra do que diz Schopenhauer logo no início do capítulo sobre a
necessidade metafísica do ser humano, que há dois modos de espanto14, o científico e o
filosófico, sendo o científico aquele que se limita ao interesse pelos fenômenos
extraordinários na natureza constituída, tornando-se objetos de investigações, enquanto o
filosófico é aquele que se interessa pelos fundamentos das coisas ordinárias, o que faz de uma
coisa ser o que ela é, ou o que ela é em si mesma, por exemplo. Sobre a diferença das
investigações filosóficas e científicas, argumenta Schopenhauer:
14 “Há, então, dois níveis muito diferentes de espanto, que podemos chamar de espanto científico em oposição
ao espanto filosófico. O primeiro se interessa pelos fenômenos em uma natureza, na medida em que eles pareçam
uma exceção relativa ao conjunto de suas leis, enquanto que o segundo surge na simples presença desse curso
natural das coisas que, para o cientista [savant], necessitam de explicação final” (ROSSET, 1994, p. 6).
47
O filósofo admite que a maioria das pessoas não é dotada da capacidade de pensar por
si, e por isso prefere acreditar na reflexão de terceiros. Ele qualifica as religiões como um tipo
de “metafísica popular”, pois são cheias de “poesia popular, sabedoria e provérbios” que
permitem que a grande maioria possa ter acesso às explicações de causas a partir da crença.
Contudo, mesmo concordando com a necessidade e com o valor do conhecimento e da
causalidade na vida humana perante a necessidade que temos em conhecer as causas do
mundo e da nossa própria existência, Schopenhauer limita os seus domínios, já que reconhece
que a causalidade só pode ser aplicada aos objetos, fenômenos, ou às aparências, e que as
causas, os porquês da existência, não estão ao alcance do entendimento ou submetidos à lei de
causalidade.
Nesse sentido, o filósofo faz uma crítica aos seus contemporâneos ao dizer em sua
tese, Sobre a quádrupla raiz do princípio razão suficiente (1813; 2ª ed. 1847) que, em virtude
do progresso científico, algumas teorias se tornaram “dissimuladamente causais”, e que essa
atitude resultou numa má aplicação da causalidade em questões que não estão sob seu
domínio.
De acordo com Rosset, o que Schopenhauer exprime em sua tese é que o princípio de
razão possui quatro raízes e apenas uma delas corresponde à necessidade física que se reveste
da forma de causalidade. Desse modo, Schopenhauer indica que podemos ter um
conhecimento causal sobre determinados fenômenos que se dão na experiência com o tempo e
com o espaço, mas não podemos, em nenhuma hipótese, chegar a conhecer algumas ideias
sobre as quais a filosofia se ocupa, pois a etiologia 15 se limita a investigar as relações
fenomenais. Sobre os limites da etiologia, cito Rosset: “A etiologia não informará jamais nada
além das relações que regem os fenômenos, ou da ordem segundo a qual podemos prever sua
manifestação” (1994, p. 10).
Segundo Schopenhauer, a causalidade pode informar sobre as modificações
fenomenais, mas o mundo e a e existência não são explicados quanto à sua origem, somente
são explicados segundo as suas modificações sobre aquilo que já está posto fenomenalmente.
Cito Rosset: “uma causa informa sobre tudo o que interessa à modificação dos fenômenos,
mas não sobre a sua essência, nem sobre as forças naturais graças às quais essas mudanças se
efetuam” (1994, p. 10).
15 “Etiologia em sentido estrito são todos os ramos da ciência da natureza que têm por tema principal, em toda
parte, o conhecimento de causa e efeito: ensinam como, em conformidade com uma regra infalível, a um estado
de matéria se segue necessariamente outro bem definido: como uma mudança determinada necessariamente
produz e condiciona uma outra determinada, cuja prova se chama explanação. Aqui se incluem sobretudo a
mecânica, a física, a química, a fisiologia” (SCHOPENHAUER, 2015a, §17, p. 113).
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Por essa razão é que Schopenhauer recomenda que, ao demonstrar o que entendem
pelo mundo e pela existência, os filósofos devem explicar sob qual forma de necessidade
estão pautadas as suas justificativas, pois, segundo ele, tudo no mundo ocorre
necessariamente, quer no campo dos objetos naturais, das ações ou das relações lógicas, mas
há quatro formas distintas de necessidade: a física (causal), a necessidade lógica, a
matemática e a moral (ROSSET, 1994, p. 9), e seria um erro procurar as causas da existência
do mundo como efeito de um ato de vontade.
Schopenhauer considera que a etiologia é um “objeto de desilusão”, já que ela não
pode contemplar os fenômenos em sua completude, mas apenas em aparência, e, desse modo,
conforme as palavras de Rosset (1994, p. 19), “a explicação causal é incapaz de satisfazer
inteiramente a interrogação filosófica”, pois tudo o que se apresenta é em aparência, enquanto
a “natureza íntima” das coisas, objeto pelo qual a filosofia também se interessa, permanece
insubordinada à causalidade.
Distanciando-se do senso comum, Schopenhauer indica que quanto mais o intelecto
for desenvolvido em um indivíduo, mais misteriosa a existência será para ele, e que o
despertar para o espanto filosófico ocorre quando o indivíduo passa a considerar questões tais
como morte e sofrimento em suas introspecções. Diz o filósofo: “Se a nossa vida fosse sem
fim e sem sofrimento, talvez a ninguém ocorresse perguntar por que o mundo existe e por que
tem precisamente essa índole” (2015b, Cap. 17, p. 196).
É a morte e o sofrimento que nos incitam a pensar acerca da existência e nos acomete
ao espanto diante de dilemas. Schopenhauer considera a morte como “a musa da filosofia”,
pois ela é o que mais provoca a inquietude filosófica nos homens. Sobre a noção da morte
enquanto musa da filosofia schopenhaueriana, explica Cacciola:
Pois se há uma coisa digna de ser desejada no mundo, tão desejável que até
mesmo a turba tosca e grosseira em seus instantes de clareza de consciência
iria valorizar mais que a prata e ouro; essa coisa é um raio de luz que caia
sobre a obscuridade do nosso existir e nos dê um clareamento sobre esta
enigmática existência, na qual nada é claro senão a sua miséria e vaidade.
(SCHOPENHAUER, 2015b, Cap. 17, p. 199)
A contínua necessidade que nós, seres humanos, temos em conhecer a origem da nossa
existência repousa em uma desilusão e, também, em uma angústia, já que, como
demonstramos, as explicações acerca das origens existenciais não estão submetidas às formas
de conhecimento.
O resultado dessa desilusão não é somente uma afirmativa de que a existência não
possui origem, mas também um “sentimento de estranheza perante a simples noção de
existência”16 em um mundo privado de necessidade e de razão, já que não existe
conhecimento filosófico que seja capaz de superar o vazio acerca da insuficiência causal
perante a noção de existência.
Sendo assim, há na metafísica da vontade uma dificuldade em explicar e conhecer o
mundo, uma vez que a perspectiva da vontade é isenta de necessidade, e, dessa maneira, há
um contraste que indica, segundo Rosset, uma absurdidade em Schopenhauer, já que
habitamos em um mundo em que tudo é necessidade, mas, ao mesmo tempo, reina uma
potência isenta de razão suficiente fazendo com que exista um sentimento de estranheza
acerca do mundo, visto que esse é inexplicável e incognoscível.
16 “L’objet de cet essai est montrer que cette intuition relève d’une certaine conception de l’absurde, d’une
vision du monde en opposition complète avec toute espèce de raison ou de justification, d’un sentiment
d’étrangeté absurde devant la simple notion d’existence” (ROSSET, 1994, p. 63).
17 Rosset explica que a ausência de causa é que o mal, e elenca a expressão “mal fundamental” para designar a
ausência de razão, de causa, para o mundo.
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Embora desde os seus primórdios a filosofia procure, em geral, atestar a validade das
coisas a partir de bases “ordenadoras”, arrumando a desordem e fazendo com que as relações
pareçam “constantes e dotadas de inteligibilidade”, como no caso de Anaxágoras, que adotou
o nous como o princípio, ou arché, sob o aspecto de “uma inteligência ordenadora”, há,
também, mesmo que em menor quantidade, a presença de tendências que se opõem a essa
condição e encontram no acaso as suas raízes desde a origem do pensamento filosófico grego.
Vejamos o que diz Rosset na Lógica do pior (1971), uma de suas teses universitárias:
Essas tendências podem ser observadas nos ritos, sobretudo nos dionisíacos, cujo
enfoque estava nas músicas e nas danças desordenadas que cultuavam o deus da embriaguez e
da loucura.
Na interpretação de Nietzsche, no Nascimento da tragédia (1872), o espírito otimista
do homem teorético se comporta tal como um germe da destruição da sociedade, enquanto o
“espírito dionisíaco” pode nos convencer do prazer de existir, pois o coro dionisíaco, segundo
Nietzsche, é a saída que os gregos encontraram para o problema da dor no mundo. Cito:
Sendo assim, ao descobrir qual é o “outro lado” do mundo que se opõe às aparências,
Schopenhauer provoca uma cisão entre o conhecimento e a essência. E, dessa forma, a noção
de uma inteligência ordenadora é dissipada em sua filosofia. Cito Cacciola: “Ao consagrar a
cisão entre o mundo como representação e o mundo como Vontade, correspondente à
distinção entre fenômeno e coisa-em-si, bane de uma vez por todas a noção de uma
inteligência que impusesse seus fins ao mundo” (CACCIOLA, 1994, p. 102).
No capítulo “Da vaidade e do sofrimento da vida” Schopenhauer expressa que, caso
esse mundo não fosse algo que não deveria ser, ele não seria um problema e as pessoas
18 Há algumas exceções, como no caso da metafísica do amor sexual, onde o fim é precisamente determinado.
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também não se espantariam e nem questionariam sobre a sua existência, pois se o mundo não
fosse algo que não deveria ser, ele seria compreensível. Todavia, o filósofo reconhece que
esse mundo possui problemas insolúveis e que “até a mais perfeita filosofia sempre contém
um elemento inexplicável” (2015b, p. 691). Essa condição está totalmente relacionada com a
cegueira essencial da vontade.
Diante de toda realidade de sofrimento e de incompreensão, Schopenhauer expressa
que é um “absurdo gritante” tentar justificar esse mundo como bom, ou como “o melhor dos
mundos possíveis”.
Logo ao iniciar a segunda parte de seu ensaio, intitulada de “A visão absurda”, Rosset
descreve que o seu objetivo naquele escrito é demonstrar que há uma intuição em
Schopenhauer, um pensamento único, que surge de “uma concepção do absurdo, de uma visão
do mundo em total oposição a qualquer espécie de razão” (1994, p. 63-64). A partir da
exposição desse objetivo, fica claro que aquilo que se opõe à razão na filosofia de
Schopenhauer é um aspecto que desperta o interesse de Rosset e o faz pensar na filosofia de
Schopenhauer enquanto uma filosofia do absurdo. Mas, por que Rosset se utiliza desse
aspecto, e não da dor, ou de qualquer outra condição existencial, para justificar um absurdo e
um mal fundamental em Schopenhauer?
A resposta para essa questão está na compreensão de que o pessimismo procede da
irracionalidade, e não o contrário. É por ser sem finalidade, sem causa e sem necessidade, sem
razão, que este mundo é dado como o pior dos mundos possíveis. Rosset esclarece que o
pessimismo de Schopenhauer é superficial frente à irracionalidade, pois essa “repousa sobre
bases muito mais profundas e sólidas”19.
Nesse sentido, a incidência do sofrimento transparece na ausência de razão sobre o que
somos e sobre o que o mundo é, pois a ausência de razão mostra que não há finalidade no
sofrimento, e menos ainda há uma finalidade otimista por trás da dor. Em sua “Epifilosofia”,
diz o filósofo: “Só em minha filosofia é que os males do mundo são honestamente admitidos
em toda a sua enormidade: minha filosofia pode fazer isso porque a sua resposta à questão
sobre a origem dos males coincide com a sua resposta à questão sobre a origem do mundo”
(SCHOPENHAUER, 2015b, Cap. 50, p. 767).
A submissão às tendências que são privadas de necessidade e de causalidade não pode
nos conduzir, senão, a uma condição de existência absurda. Absurda porque, antes de
qualquer outro aspecto que possa justificar a absurdidade que Rosset encontrou em
19 “De fait, si le pessimism schopenhauerien apparaît souvent de surface, son irrationalisme repose sur des
assises beaucoup plus profondes et solides” (ROSSET, 1994, p. 64).
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no segundo capítulo deste trabalho, destacarmos alguns pontos acerca do querer que se fazem
imprescindíveis para a compreensão desta seção. Para isso, reforçaremos três distinções
acerca do querer e da Vontade, e, depois, faremos um breve resumo de aspectos fundamentais
acerca do querer que apresentamos no capítulo anterior para poder relacioná-los à absurdidade
apontada por Rosset, sendo ela, a absurdidade do querer, percebida a partir de duas noções: o
querer enquanto negativo e a ausência de finalidade no querer.
Seguindo essa ordem, devemos, primeiro, destacar que o querer é apenas uma
manifestação fenomênica da Vontade, e que ele não deve ser confundido com a coisa em si,
ou Vontade metafísica. Em segundo lugar, a Vontade mesma, enquanto coisa em si, nada quer,
não há nela nenhuma necessidade, nenhuma finalidade, enquanto que a sua manifestação
fenomênica, o querer, apenas quer. E, por último, a luta pela vida, a afirmação da existência e
toda destruição que lhes são próprias, não pertencem à Vontade mesma, visto que essa é sem
propósitos, porque livre, e indestrutível, mas sim ao querer. A fim de fundamentar esses três
pontos que fazem distinção entre a Vontade e o querer, e que indicam que, sim, a Vontade
mesma nada quer, citamos Pernin:
Como vimos na terceira seção do segundo capítulo deste trabalho, o desejo é parte
comum de toda animalidade, e aquilo que se encontra em cada consciência é a percepção
imediata de um desejo. É a partir das sensações de bem-estar e de mal-estar que se torna
possível distinguir o que sentimos e, dessa forma, podemos tomar conhecimento sobre aquilo
que queremos.21
O conhecimento do próprio querer é um tipo de conhecimento subjetivo e imediato
sobre o qual conhecemos diretamente aquilo que está em nós mesmos, no nosso interior, posto
21 O sujeito do querer, ao contrário do sujeito do conhecimento, pode ser conhecido pelas modificações no
tempo.
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que o querer é o que há de mais íntimo em nós mesmos e se identifica com a nossa essência,
com aquilo que somos.
Dessa forma, ao contrário de uma consciência acerca dos objetos exteriores, ou de um
conhecimento objetivo, temos, com muito mais frequência e diretamente, um conhecimento
interior, subjetivo e imediato do nosso próprio querer. E é por essa razão que Schopenhauer
admite que o conhecimento mais real de todos é o conhecimento do próprio querer.
É pertinente elucidarmos que o querer que se dá em cada pessoa é uma manifestação
completamente espontânea, não sendo possível que o próprio indivíduo venha decidir acerca
do que quer ou do que não quer em seu interior. Além de que, mesmo que o indivíduo não
possa reconhecer o que quer, principalmente enquanto as suas capacidades intelectuais não
tenham sido plenamente desenvolvidas, ele já nasce com o querer. O bebê chora, e chora
porque algo o incomoda, chora porque quer, porque necessita de algo, mas ainda não é capaz
de abstrair acerca daquilo que satisfaria sua carência ou de entender por que chora.
Além de identificar o querer como o elemento mais íntimo do ser humano,
Schopenhauer também reconhece que nós, seres humanos, somos o grau de objetidade mais
perfeito da vontade. Isso porque o filósofo constatou que, no ser humano, a percepção da
satisfação e da insatisfação perante o desejo assume um grau superior, já que a consciência
humana é a única capaz de compreender que é vontade, e que aquilo que se apresenta como
desejo nos indivíduos é reflexo do querer.
É compreensível que, mediante a percepção de um desejo, o indivíduo procure meios
para satisfazê-lo, e que todos os seus movimentos sempre indiquem a busca pelo regozijo,
afinal, recusamos a dor e aspiramos ao prazer constantemente. Nessa busca, faço efeito sobre
as coisas, seja através do egoísmo, da luta por matéria etc., pois o querer que se encontra em
mim demanda movimentos e atividades que visam atingir os seus desejados objetivos, e
nesses movimentos há uma diversidade de impactos sobre o mundo, inclusive com
consequências desastrosas.
Em suma, podemos dizer que toda a realidade que se dá para o indivíduo vai de
encontro aos desígnios do querer que se manifesta no seu interior, visto que o querer é aquilo
que cada pessoa possui de mais íntimo, e, além do mais, nossa vida inteira consiste em servir
ao querer com obediência, pois, como compreendemos a partir do capítulo anterior, o que o
indivíduo quer, em geral, é vida, bem-estar e autoconservação, sendo as suas ações meios que
possibilitam garantir esses propósitos.
O sujeito do querer sempre quer, e mesmo que não saiba o que quer propriamente, ele
está sempre afirmando a sua vontade de vida e se movimentando em vista de algum fim que
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compreende ser como antídoto para as suas aspirações. Nesse sentido, de acordo com
Schopenhauer, não há nada mais relevante do que o querer na vida humana, nem mesmo o
conhecimento, pois o querer não advém do conhecimento e o conhecimento não tem poder
nenhum sobre a Vontade, apenas serve a ela.
Isso considerado, vejamos, agora, de que maneira Rosset compreendeu o querer
schopenhaueriano como um aspecto, talvez o mais relevante, da absurdidade.
Rosset reconhece que, em Schopenhauer, o querer se manifesta como a constatação de
uma ausência, e “que as dores que ele ocasiona no curso de uma vida humana são
inumeráveis”22 (1994, p. 65). Na terceira seção do segundo capítulo deste trabalho
demonstramos que, na filosofia schopenhaueriana, há a constatação de um déficit relativo aos
prazeres, e, por esse motivo, Rosset, assim como Schopenhauer, considera o querer como
responsável pelas dores e pelos sofrimentos, já que aquilo que o querer quer nem sempre é
satisfeito e, quando satisfeito, a duração do prazer é muito curta, é momentânea, e sempre dá
lugar a uma próxima aspiração que se comporta da mesma maneira.
A ideia schopenhaueriana do querer enquanto fonte dos sofrimentos também dá
abertura para a compreensão de que o sofrimento, ao contrário do que muitas vezes estamos
habituado a pensar, não surge de fora, das nossas relações externas com o mundo, mas sim do
nosso próprio interior. O filósofo alega que “cada pessoa carrega em seu interior a fonte
inesgotável do sofrimento. No entanto, constantemente procuramos uma causa exterior
particular como se fora um pretexto para a dor que nunca nos abandona”
(SCHOPENHAUER, 2015a, §57, p. 369).
Rosset compreende que o querer enquanto uma fonte inesgotável de sofrimento é um
dado do absurdo, pois mesmo diante da consciência de seu caráter negativo, em razão de sua
ausência e da sua intrínseca incapacidade de satisfação duradoura, não cessamos de querer e
de atribuir toda a importância e significação das nossas vidas ao que em geral queremos.
Inclusive, diante da realidade de um querer que é “vazio”, e que mesmo assim serve de
sentido e significação para as nossas vidas, Rosset também acaba concordando com uma
inutilidade existencial, haja vista que aquilo que consideramos como mais vultuoso na nossa
existência consiste, apenas, em uma ilusão que não pode se satisfazer por completo e que é
passageira. No entanto, esse caráter negativo ainda é um aspecto superficial da absurdidade do
querer, aponta Rosset.
22 “Le premier caractère du Vouloir se manifeste dans un constat de déficit: les douleurs qu’il occasionne au
cours d’une vie humaine sont innombrables, les plaisirs maigres et rares.”
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Como a citação acima explica, tudo conspira a uma noção de causa. Essa
“conspiração” se deve ao fato de estarmos em um mundo em que os nossos objetivos, ou
nossas buscas por atingi-los, sugerirem alguma finalidade. Em vista disso, nos organizamos a
fim de garantir os nossos propósitos, que são reflexos daquilo que queremos e ansiamos por
usufruir da finalidade que parece convergir nesses propósitos. Trabalhamos, construímos e
desenvolvemos uma série de atividades que visam à satisfação, e recorrentemente nos
apegamos a essas tarefas como fontes de sentido para a nossa própria existência.
Todavia, somos esquecidos, continuamente, de que não há finalidade no querer, e que
a sua atividade é simplesmente se repetir por toda a vida sem que nisso exista qualquer
espécie de explicação e de finalidade última, haja vista que não há causa e não há necessidade
no querer, além de que não existe nenhuma satisfação completa, visto que todo ganho traz
consigo outra necessidade que nos condiciona ao esforço por sua satisfação. Diz Rosset
(1994, p. 66): “Para compreender o querer em sua absurdidade maior é preciso retornar ao
espanto perante a ausência de causalidade e necessidade no seio das forças que regem o
universo”.
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A atividade do querer é se repetir, e por isso ele jamais está satisfeito. Essa condição é
o que permite a entrada do tédio na vida humana, pois a sensação da repetição evidencia uma
dinâmica na qual não existem progressos mediante as aspirações, e nisso reina uma sensação
de um não passar o tempo, acompanhado por insatisfação e por um vazio, resultando em
angústias. Concordamos com Young quando analisa o segundo livro do MVR e diz que:
A noção do querer cíclico que sempre se repete é uma condição comum à existência
humana, mas Rosset, assim como Schopenhauer, também faz alusão a essa mesma imagem
cíclica e repetitiva ao macrocosmo, e a tudo que pertence à natureza:
[…] essa folha de árvore no outono que cai em direção ao solo rodopiando é
a mesma que vi no ano anterior na mesma época e que verei no ano seguinte;
essa mosca que azucrina minhas orelhas, verão após verão, permanece
sempre a mesma mosca; o gato que caminha em meu percurso realiza os
mesmos saltos que seu semelhante há trezentos anos. (ROSSET, 1994, p. 99)
Em suma, Rosset compreende que o absurdo está mesmo no querer, e que, caso o
querer não existisse, o absurdo também não existiria. Tanto é que Schopenhauer assume que,
mediante a negação da vontade, toda dor e contrariedade desapareceriam do indivíduo. Sobre
o desaparecimento do absurdo mediante o desaparecimento do querer, afirma Rosset (1994, p.
95):
Dessa maneira, entendemos que há uma ausência de sentido existencial que resulta de
uma vida cujo embasamento esteja em um “querer viver”, pois não há nada que justifique as
nossas ações e as nossas ânsias individuais.
CONSIDERAÇÕES FINAIS
Todavia, Rosset faz um adendo em seu prefácio à tradução francesa do MVR dizendo
reconhecer em Schopenhauer uma expressão existencialista, chegando até a denominá-lo
como um precursor desse movimento. Vejamos: “Precursor, Schopenhauer também é do
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existencialismo e do seu conceito de facticidade da existência, que nada mais é que uma
verbosidade [délayage] da concepção schopenhaueriana de um mundo absurdo, dado que é
destituído tanto de fundamento como de finalidade” (ROSSET, 2004, p. VI).
É inegável que a união entre os termos “existência” e “absurdo” nos remeta ao
existencialismo do século XX, principalmente a autores como Albert Camus e Jean-Paul
Sartre (1905 – 1980). Todavia, não foi parte da nossa pretensão expor e relacionar o que esses
autores pensaram acerca da existência e do absurdo, posto que o desenvolvimento de tais
considerações extrapolariam os limites desta dissertação.
É importante mencionar que Rosset esclarece que a filosofia de Schopenhauer possui
uma abordagem genealógica, e que nela há uma riqueza de assuntos que são comuns a outros
autores que vieram posteriormente. Ele percebeu, inclusive, em Freud, Nietzsche e em Marx,
mesmo esse último não fazendo qualquer referência a Schopenhauer, continuadores do
pensamento schopenhaueriano.
A delimitação do tema e dos conceitos que aqui foram expostos também se deu em
virtude de que o tema do absurdo em Schopenhauer ainda não fora tratado em outros
trabalhos, tais como dissertações ou teses acadêmicas, ao menos até onde nosso levantamento
foi capaz de buscar. De acordo com essa realidade, achamos que o tema da existência
enquanto absurda fosse o mais específico possível a partir das concepções mais relevantes
tratadas por Rosset e pelo próprio Schopenhauer.
A falta de material bibliográfico sobre o absurdo que Rosset identificou na filosofia de
Schopenhauer, em vez de desanimar e desestimular as nossas buscas, nos impulsionou a
construir uma dissertação que o incluísse, pois consideramos o conteúdo relevante e
esclarecedor para fins de compreensão da existência humana conforme pensada por
Schopenhauer.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
AUDI, Robert. The Cambridge dictionary of philosophy. New York: Cambridge University
Press, 1995.
CAMUS, A. O mito de Sísifo. Trad. Ari Roitman, Paulina Watch. Rio de Janeiro: Record,
2018.
DARWIN, C. A origem das espécies. Trad. Daniel Moreira Miranda. São Paulo: Edipro, 2018.
FREUD, Sigmund. Obras completas, volume 11: Totem e tabu, contribuição à história do
movimento psicanalítico e outros textos (1912 – 1914). Trad. Paulo César de Souza. São
Paulo: Companhia das Letras, 2012.
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. A origem da tragédia. Trad. Joaquim José de Faria. São
Paulo: Centauro, 2004.
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ROSSET, C. Lógica do pior. Trad. Fernando J. F. Ribeiro e Ivana Bentes. Rio de Janeiro:
Espaço e Tempo,1989a.
ROSSET, C. O princípio de crueldade. Trad. José Thomaz Brum. Rio de Janeiro: Rocco,
1989b.
SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e como representação. Tomo II. Trad. Jair
Barboza. São Paulo: UNESP, 2015b.
YOUNG, Julian. Willing and unwilling: a study in the philosophy of Arthur Schopenhauer.
Dordrecht: M. Nijhoff, 1987.