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1 ARISTÓTELES, Poética, Trad., introdução e notas de Paulo Pinheiro, 2ª ed., São Paulo: Editora 34, 2017,
p. 97.
2 Cf. SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e como representação, 1º tomo, trad., apresentação,
notas e índices de Jair Barbosa, São Paulo: Editora UNESP, 2005, pp. 329-30, §51.
3 Cf. idem, ib., p. 333.
combatem entre si e se entredevoram”.4 O apreço de Schopenhauer pelo conhecimento
proporcionado pela arte poética, especialmente a tragédia, está atrelado a uma perspectiva
redentora do mesmo, já que, ao alcançar o perfeito conhecimento da essência do mundo, o
indivíduo, tendo passado pelo processo de purificação e de enobrecimento que são
decorrentes do sofrimento, não mais se deixa iludir pelo fenômeno, chamado no linguajar
schopenhaueriano de véu de Maia. Tal conhecimento gera um efeito que aquieta a vontade
no indivíduo, ao ponto que ele abandona a própria vontade de viver, como se pode ler nos
desfechos de algumas tragédias (Fausto e Hamlet, por exemplo).5
Agora, no parágrafo 38 do segundo volume de sua obra principal, Schopenhauer se
ocupa de preencher uma lacuna com respeito ao valor da história. Afinal de contas, se a
poesia nos permite o conhecimento de nossa essência, a história, por não ser capaz da
mesma coisa, poderia ser vista como desprezível, sem qualquer contribuição relevante para
nós. Atento, o filósofo busca fechar a porta para qualquer mal-entendido, ao nos trazer suas
reflexões sobre o que constitui o valor da história.
De início, Schopenhauer nos chama a atenção para a multiplicidade incontável de
fatos envolvendo seres singulares de todo tipo e gênero possível. Por mais desejoso de
conhecimento que fosse, o espírito de um investigador estaria condenado a se perder no
labirinto dessa miríade de seres em sua diversidade incalculável, caso não houvesse algo
que o auxiliasse a organizar esses múltiplos seres em categorias, de forma a favorecer seu
conhecimento. Assim, logo percebemos a elevada estima de que é digna a ciência, já que
vem em nosso auxílio na tarefa de conhecer o mundo com toda a sua pluralidade, ao
separar os múltiplos seres existentes e reuni-los em conceitos de espécie e de gênero, de
modo a nos proporcionar um conhecimento concernente ao universal e ao particular e,
assim, propício para abarcar a incontável pluralidade das coisas em sua singularidade. A
expectativa é que, com a colaboração das ciências, ao repartir entre si os mais diversos
ramos de investigação do mundo real, tendo como foco as coisas singulares, o espírito do
investigador chegue ao repouso, de posse do conhecimento almejado. Longe de esgotar
suas fichas nas ciências particulares, Schopenhauer nos lembra a superioridade da filosofia,
a qual plana por cima delas como um saber de nível mais elevado em termos de
universalidade e, assim, como “o mais importante, que promete o esclarecimento para o
qual as outras apenas preparam o caminho”.6
4 Ibidem.
5 Cf. Ibid., pp. 333-4.
O que seria, então, a história? Como poderíamos classificá-la? Há lugar para ela na
série das ciências? De acordo com Schopenhauer, a história não tem lugar na classificação
das ciências, pois não possui caráter sistêmico, antes, apenas mostra a coordenação daquilo
que se sabe. Em síntese, em vez de ciência, a história constitui um saber que se limita à
apreensão imediata do singular no âmbito da experiência. Enquanto sistemas de conceitos,
as ciências se ocupam sempre de gêneros, ao passo que a história trata de indivíduos, o que
reforça o argumento do filósofo de que a história não se caracteriza como ciência, já que
“ciência de indivíduos” seria uma contradição em termos. Além disso, o objeto da ciência
em geral é aquilo que sempre é, enquanto que a história lida com o contingente, imerso
numa pluralidade inesgotável, razão pela qual ela configura um saber sempre incompleto,
de caráter parcial. Mesmo que apelássemos para as grandes periodizações ou para os
impérios de que trata a história, teríamos aí tão somente um universal subjetivo, carente da
objetividade científica, envolto na relação parte/todo, mas excluído da relação caso/regra,
característica do científico.7
Na comparação entre história e filosofia, percebemos uma estrutura semelhante, à
medida que a história é retratada como ocupada com o singular, com o fato individual em
sua contingência; por sua vez, a filosofia enxerga as coisas sob o ponto de vista da
universalidade, daquilo que conserva a identidade em meio à singularidade das coisas. Para
o olhar filosófico, a mudança no fenômeno carece de essencialidade, seu foco reside
naquilo que permanece o mesmo no decurso das épocas. Apesar de se deixar levar pela
aparência de novidade do vir-a-ser fenomênico, no fundo, a história acaba por narrar
sempre o mesmo conteúdo, constitutivo da história dos povos, apenas visto sob formas
diversificadas. Trata-se, nos termos do filósofo alemão, unicamente do “longo, pesado e
confuso sono da humanidade”.8 Ocorre que, para Schopenhauer, a realidade está
circunscrita ao curso da vida dos indivíduos, ao passo que a vida dos povos consiste em
simples abstração. Ao curso da vida do indivíduo pertence, de forma exclusiva, unidade,
conexão e sentido verdadeiro, de tal modo que esse curso pode ser visto como instrutivo na
perspectiva moral. Ainda segundo Schopenhauer, cada microcosmo abriga todo o
macrocosmo, pois a vontade de cada indivíduo consiste essencialmente na Vontade mesma,
constitutiva de toda a realidade.
REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA
ARISTÓTELES, Poética, Trad., introdução e notas de Paulo Pinheiro, 2ª ed., São Paulo:
Editora 34, 2017.
CACCIOLA, M. L. Schopenhauer e a questão do dogmatismo. São Paulo: Edusp, 1994.
SCHOPENHAUER, A. Sämtliche Werke. Bd. I, II, III, IV und V. Frankfurt am Main:
Suhrkamp, 1986.
15 Ibidem.