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CONSIDERAÇÕES DE SCHOPENHAUER SOBRE O VALOR DA HISTÓRIA

Eis porque a poesia é mais filosófica e mais nobre do que a


história: a poesia se refere, de preferência, ao universal; a
história, ao particular.1

Colhendo os resultados do parágrafo 51 do primeiro volume de sua obra principal,


Schopenhauer afirma a proeminência da poesia sobre a história, quando se tem em vista o
conhecimento da essência do ser humano. Ali, o autor nos faz entender a centralidade da
poesia para a clara manifestação das ideias (os graus de objetivação da Vontade), cujo
caráter é essencialmente intuitivo. De forma mais precisa, a poesia se encarrega de tornar
manifesta a ideia do homem, apresentando seus esforços e ações nos moldes de uma série
concatenada. De sua parte, a experiência e a história só são capazes de nos proporcionar
uma noção particular em relação ao ser humano, sem nos habilitar para um olhar profundo,
que alcance a interioridade essencial da pessoa. Dessarte, o olhar histórico se restringe aos
moldes da exterioridade, da aparência e da relatividade que envolvem os acontecimentos e
as pessoas ou, em outros termos, ao terreno do fenomênico. Em contrapartida, a arte
poética apreende a própria essência da humanidade, a qual, por sua vez, não se achando
limitada a qualquer relação, nem mesmo ao tempo, revela-se como a objetidade adequada
da coisa-em-si na ideia do homem, que é o seu grau mais elevado. Por conseguinte, o
filósofo entende que a poesia está carregada de verdade com um nível mais profundo de
interioridade e mais autêntica do que a que poderia ser encontrada no solo da história.2
No pico da arte poética está a tragédia, cuja finalidade consiste em apresentar o
lado terrível da vida, “o inominado sofrimento, a miséria humana, o triunfo da maldade, o
império cínico do acaso, a queda inevitável do justo e do inocente”.3 Mediante a tragédia,
recebemos uma indicação de como o mundo e a existência se constituem, a saber, como a
Vontade em seu perpétuo conflito interior. “Trata-se”, nas palavras do filósofo, “de uma
única e mesma Vontade que em todos vive e aparece, cujos fenômenos, entretanto,

1 ARISTÓTELES, Poética, Trad., introdução e notas de Paulo Pinheiro, 2ª ed., São Paulo: Editora 34, 2017,
p. 97.
2 Cf. SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e como representação, 1º tomo, trad., apresentação,
notas e índices de Jair Barbosa, São Paulo: Editora UNESP, 2005, pp. 329-30, §51.
3 Cf. idem, ib., p. 333.
combatem entre si e se entredevoram”.4 O apreço de Schopenhauer pelo conhecimento
proporcionado pela arte poética, especialmente a tragédia, está atrelado a uma perspectiva
redentora do mesmo, já que, ao alcançar o perfeito conhecimento da essência do mundo, o
indivíduo, tendo passado pelo processo de purificação e de enobrecimento que são
decorrentes do sofrimento, não mais se deixa iludir pelo fenômeno, chamado no linguajar
schopenhaueriano de véu de Maia. Tal conhecimento gera um efeito que aquieta a vontade
no indivíduo, ao ponto que ele abandona a própria vontade de viver, como se pode ler nos
desfechos de algumas tragédias (Fausto e Hamlet, por exemplo).5
Agora, no parágrafo 38 do segundo volume de sua obra principal, Schopenhauer se
ocupa de preencher uma lacuna com respeito ao valor da história. Afinal de contas, se a
poesia nos permite o conhecimento de nossa essência, a história, por não ser capaz da
mesma coisa, poderia ser vista como desprezível, sem qualquer contribuição relevante para
nós. Atento, o filósofo busca fechar a porta para qualquer mal-entendido, ao nos trazer suas
reflexões sobre o que constitui o valor da história.
De início, Schopenhauer nos chama a atenção para a multiplicidade incontável de
fatos envolvendo seres singulares de todo tipo e gênero possível. Por mais desejoso de
conhecimento que fosse, o espírito de um investigador estaria condenado a se perder no
labirinto dessa miríade de seres em sua diversidade incalculável, caso não houvesse algo
que o auxiliasse a organizar esses múltiplos seres em categorias, de forma a favorecer seu
conhecimento. Assim, logo percebemos a elevada estima de que é digna a ciência, já que
vem em nosso auxílio na tarefa de conhecer o mundo com toda a sua pluralidade, ao
separar os múltiplos seres existentes e reuni-los em conceitos de espécie e de gênero, de
modo a nos proporcionar um conhecimento concernente ao universal e ao particular e,
assim, propício para abarcar a incontável pluralidade das coisas em sua singularidade. A
expectativa é que, com a colaboração das ciências, ao repartir entre si os mais diversos
ramos de investigação do mundo real, tendo como foco as coisas singulares, o espírito do
investigador chegue ao repouso, de posse do conhecimento almejado. Longe de esgotar
suas fichas nas ciências particulares, Schopenhauer nos lembra a superioridade da filosofia,
a qual plana por cima delas como um saber de nível mais elevado em termos de
universalidade e, assim, como “o mais importante, que promete o esclarecimento para o
qual as outras apenas preparam o caminho”.6

4 Ibidem.
5 Cf. Ibid., pp. 333-4.
O que seria, então, a história? Como poderíamos classificá-la? Há lugar para ela na
série das ciências? De acordo com Schopenhauer, a história não tem lugar na classificação
das ciências, pois não possui caráter sistêmico, antes, apenas mostra a coordenação daquilo
que se sabe. Em síntese, em vez de ciência, a história constitui um saber que se limita à
apreensão imediata do singular no âmbito da experiência. Enquanto sistemas de conceitos,
as ciências se ocupam sempre de gêneros, ao passo que a história trata de indivíduos, o que
reforça o argumento do filósofo de que a história não se caracteriza como ciência, já que
“ciência de indivíduos” seria uma contradição em termos. Além disso, o objeto da ciência
em geral é aquilo que sempre é, enquanto que a história lida com o contingente, imerso
numa pluralidade inesgotável, razão pela qual ela configura um saber sempre incompleto,
de caráter parcial. Mesmo que apelássemos para as grandes periodizações ou para os
impérios de que trata a história, teríamos aí tão somente um universal subjetivo, carente da
objetividade científica, envolto na relação parte/todo, mas excluído da relação caso/regra,
característica do científico.7
Na comparação entre história e filosofia, percebemos uma estrutura semelhante, à
medida que a história é retratada como ocupada com o singular, com o fato individual em
sua contingência; por sua vez, a filosofia enxerga as coisas sob o ponto de vista da
universalidade, daquilo que conserva a identidade em meio à singularidade das coisas. Para
o olhar filosófico, a mudança no fenômeno carece de essencialidade, seu foco reside
naquilo que permanece o mesmo no decurso das épocas. Apesar de se deixar levar pela
aparência de novidade do vir-a-ser fenomênico, no fundo, a história acaba por narrar
sempre o mesmo conteúdo, constitutivo da história dos povos, apenas visto sob formas
diversificadas. Trata-se, nos termos do filósofo alemão, unicamente do “longo, pesado e
confuso sono da humanidade”.8 Ocorre que, para Schopenhauer, a realidade está
circunscrita ao curso da vida dos indivíduos, ao passo que a vida dos povos consiste em
simples abstração. Ao curso da vida do indivíduo pertence, de forma exclusiva, unidade,
conexão e sentido verdadeiro, de tal modo que esse curso pode ser visto como instrutivo na
perspectiva moral. Ainda segundo Schopenhauer, cada microcosmo abriga todo o
macrocosmo, pois a vontade de cada indivíduo consiste essencialmente na Vontade mesma,
constitutiva de toda a realidade.

6 SCHOPENHAUER, A. O mundo como vontade e como representação, segundo tomo, tradução,


apresentação, notas e índices de Jair Barbosa, São Paulo: Editora UNESP, 2015, p. 528, §38.
7 Cf. Idem, ib., pp. 528-9.
8 Ibidem, ib., p. 532.
Neste contexto se acha inserida a controvérsia de Schopenhauer com o
hegelianismo, o qual, na leitura do filósofo, toma a filosofia da história como a finalidade
principal de toda a filosofia. Schopenhauer recomenda Platão aos hegelianos, que
considerava o objeto da filosofia como o imperecível, que permanece para sempre, e não o
contingente, sujeito a mudanças. Esse imperecível, imune às vicissitudes do vir-a-ser, fora
do alcance das garras de Cronos, é a Ideia. Contra os hegelianos, Schopenhauer considera
inadmissível conceber a história nos moldes de um plano de mundo preestabelecido, cujo
escopo seria o melhor ou, dito de modo ainda mais tosco – ao menos para os ouvidos
sensíveis do filósofo de Frankfurt –, como tendo por finalidade a “miserável felicidade
terrena”9 Iludidos com o progresso tecnológico, realistas ingênuos, otimistas rasos,
péssimos cristãos: a lista de adjetivações poderia se estender de forma indefinida, mas
talvez não seja suficiente para expressar o descontentamento de Schopenhauer com uma
filosofia da história nos moldes do hegelianismo.
Em seu livro, Schopenhauer e a questão do dogmatismo, a professora Maria Lúcia
Cacciola nos ajuda a entender o distanciamento de Schopenhauer em relação ao
hegelianismo, especialmente com respeito à filosofia da história. Em linhas gerais, o que
está em causa é a negação, por parte de Schopenhauer, da consistência do sistema que
abrange o todo do mundo. Em outras palavras, o filósofo de Frankfurt não concede a
equivalência entre a conciliação (também denominada conciliação dos opostos) alcançada
na esfera do pensamento e a verdadeira reconciliação, mesmo que fosse deslocada para o
futuro. A essa recusa, que pretende pôr às claras a fragilidade da unidade conceitual do
sistema filosófico hegeliano, está vinculada outra, comprometida em denunciar a ausência
de um telos autêntico, concebido nos termos do “alvo final e absoluto da História mundial
(absolute Endzweck der Weltgeschichte)”.10 Neste registro, Cacciola nos remete a
Horkheimer que, em dois tópicos cruciais, demarca as fronteiras entre Schopenhauer e
Hegel: em primeiro lugar, Schopenhauer considera impossível e carente de verdade uma
reconciliação operada pelo pensamento; de modo mais positivo, o filósofo de Frankfurt só
admite a veracidade de uma reconciliação realizada no plano ético, já que por meio dela
seria possível o reconhecimento do “tudo em um” (Hen kai pan); em segundo lugar, o
caminho da teleologia é vedado pelo ponto de vista, segundo o qual a Vontade consiste de
um esforço carente de finalidade. Por outro lado, há alguns fenômenos que admitem as
causas finais como seu fator explicativo, uma vez que as causas eficientes não dão conta
9 Cf. Ibidem, ib., p. 532.
10 CACCIOLA, M. L. Schopenhauer e a questão do dogmatismo. São Paulo: Edusp, 1994, p. 75.
deles, como é o caso dos organismos. Contudo, a estudiosa, na trilha de Schopenhauer,
ressalta que o ponto de vista da Vontade admite apenas um esforço privado de fim e de
consciência. Assim, a questão que fica por ser respondida “é a de como seria possível
admitir causas finais nessa ‘metafísica da Vontade inconsciente’”.11
Se o valor da história não pode ser encontrado numa espécie de simbiose de
teleologia e teologia, há que se encontrar primeiro o seu âmbito próprio, pois nele reside o
seu valor. Schopenhauer mesmo nos fornece a senha: “A HISTÓRIA ESTÁ PARA O
GÊNERO HUMANO COMO A RAZÃO ESTÁ PARA O INDIVÍDUO”.12 Por causa da
faculdade da razão, o ser humana não fica preso nos estreitos limites do presente intuitivo,
como é o caso do animal; pelo contrário, é capaz de estabelecer vínculos entre o seu
presente e o passado e, igualmente, de elaborar conclusões tendo em mente o futuro. Se
estivesse privado dessa capacidade de reflexão, o ser humano estaria numa situação
semelhante ao animal que vaga entre as pessoas num estado de confusão, desamparo e
dependência, já que se limite à mera intuição do presente. Ampliando a lente, um povo que
desconhece sua própria história também estaria numa limitação análoga, pois se veria
preso à sua geração atual e, nessa condição, impossibilitado de chegar ao entendimento de
seu estado, de seu presente, já que, para tal, seria preciso a habilidade de estabelecer a
devida conexão do presente com o passado. Schopenhauer, então, arremata: “Só através da
história é que um povo torna-se plenamente consciente de si mesmo”.13 Assim, a história
pode ser compreendida nos termos da consciência-de-si racional/refletida do gênero
humano, sendo a causa exclusiva, pela qual “o humano se torna de fato um todo, uma
humanidade”.14 E nisto consiste o valor da história! Seu interesse geral e superior se deve
ao fato de que ela é assunto que envolve todo o gênero humano de forma pessoal. Por fim,
Schopenhauer traça um paralelo entre a linguagem como condição indispensável para o
uso da razão do indivíduo e a escrita como imprescindível para a razão do gênero humano
como um todo. Mediante a escrita, a unidade da consciência do gênero humano,
frequentemente interrompida, fragmentada pelos duros golpes da morte, é restaurada, e
para testemunho desse processo podemos evocar a vasta documentação escrita, bem como
os monumentos pétreos que gerações inteiras nos legaram, a fim de alcançar uma

11 Idem, ib., p. 76.


12 SCHOPENHAUER, A. op. cit., p. 534, §38.
13 Idem.
14 Ibidem, ib., p. 535, §38.
posteridade tardia, travar uma relação com ela e, dessa maneira, “restabelecer a unidade
da consciência da humanidade”.15

REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

ARISTÓTELES, Poética, Trad., introdução e notas de Paulo Pinheiro, 2ª ed., São Paulo:
Editora 34, 2017.
CACCIOLA, M. L. Schopenhauer e a questão do dogmatismo. São Paulo: Edusp, 1994.
SCHOPENHAUER, A. Sämtliche Werke. Bd. I, II, III, IV und V. Frankfurt am Main:
Suhrkamp, 1986.

. O mundo como vontade e como representação, 1º tomo, trad., apresentação,


notas e índices de Jair Barbosa, São Paulo: Editora UNESP, 2005.
. O mundo como vontade e como representação, segundo tomo, tradução,
apresentação, notas e índices de Jair Barbosa, São Paulo: Editora UNESP, 2015.

15 Ibidem.

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