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Resumo: O termo "hermenêutica" aparece apenas três vezes nos cadernos de Nietzsche
e nunca em seus trabalhos publicados. No entanto, os textos de Nietzsche são fontes
férteis de ideias, conceitos e argumentos que se cruzam com a tradição hermenêutica.
Durante todo o período medieval, a tradição hermenêutica se baseava na exegese de textos
bíblicos e religiosos, com diversas estruturas de interpretação textual, mas com uma
finalidade divina muito especifica e de alguma maneira atingível. No entanto, ao haver a
transição histórica para o período moderno, novas linhas herméticas surgem
analogamente a amplitude de novos objetos a serem interpretados. Friedrich Nietzsche
será o pensador que irá romper com o pensamento tradicional europeu-ocidental, e irá
promover uma abordagem genealógica de interpretar não só textos e obras de maneira
autentica, em seu estilo, mas também da cultura, história, e do o mundo como fenômeno
estético.
1 Introdução
2. Acerca da vida
Existe um diferencial nas forças, algo que de alguma maneira conduz essa força
para algo. Esse diferencial chama-se “vontade”. Essa vontade não se exerce
misteriosamente sobre músculos ou sobre nervos, menos ainda sob uma mateira em geral,
e sim, necessariamente sobre uma outra vontade. Nietzsche irá fazer dois tipos de
distinção em termos de qualidade da força e da vontade respectivamente: ativa e reativa
e afirmativa e negativa. A força ativa se refere a força que durante o processo de conflito
conseguiu dominar a outra, portanto, ela foi maior que a força dominada, a força que age;
a força reativa é aquela que em termos de quantidade não teve força suficiente para
dominar, portanto, reage3. A vontade afirmativa se refere à vontade que afirma, aprecia a
vida, diferente da vontade negativa que nega, e deprecia a vida.
1
MOSÉ, V. Nietzsche hoje. 2018. Editora Vozes.
2
DELEUZE, G. Nietzsche e a filosofia.
3
Vale salientar que mesmo que uma força domine a outra, nenhuma das duas perdem sua
característica de força, possuindo ainda intrinsecamente vontade de expansão e dominação.
dominadas, cria-se a possibilidade de analisar este esquema de vários pontos de vista:
histórico; social; político; filosófico, etc..... Entretanto, esse processo de análise só será
possível a partir de uma visão genealógica em qualquer aspecto que seja analisado. A
princípio, genealogia significa ir até as origens em busca dos verdadeiros valores que
conduzem a natureza, fazer uma espécie de arqueologia, um desvelamento do que estiver
sendo investigado.4
4
Nesse momento, portanto, cria-se o principal paralelo entre o conceito de hermenêutica como
interpretação de entidade, e o processo genealógico nietzschiano. O conceito de genealogia como
base hermenêutica será abordado mais à frente.
5
NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal. Op. cit., af. 20.
Portanto, temos três pontos: o alcance da interpretação é algo como a totalidade
da experiência humana; os métodos de interpretação incluem conhecimento amplo, bem
como reversões de perspectiva; e habilidade interpretativa é necessária porque muitas de
nossas interpretações atuais estão profundamente prejudicadas e danificadas.
6
NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal. Op. cit., af. 2
7
NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal. Op. cit., af. 2
os sentidos e as aparências são deixadas de lado, ignoradas, esquecidas, em prol de uma
verdade que está além das coisas físicas, além deste mundo. Logo, os seres humanos
esquecem a vida que de fato possuem e passam a colocar o seu valor em algo fora do
mundo, algo que de acordo com Nietzsche, não existe8. Com isso, a humanidade se afasta
de seu caráter natural e busca o artificial, a criação, aquilo que não é real, apenas para
satisfazer sua vontade de controle:
Por princípio estamos dispostos a sustentar que os juízos mais falsos (e entre estes os
"juízos sintéticos a priori") são para nós mais indispensáveis, que o homem não poderia
viver sem as ficções da lógica, sem relacionar a realidade com a medida do mundo
puramente imaginário do incondicionado e sem falsear constantemente o mundo através
do número; renunciar aos juízos falsos equivaleria a renunciar à vida, a renegar à vida.9
Portanto, o que o filósofo irá propor é a analise não só das estruturas metafisicas,
como o conceito de verdade, e irá afirmar que: “as verdades são ilusões das quais se
esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que
perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como
moedas”10, e que permearam toda a história da civilização, mas também como essas
estruturas não encaixam, e pelo contrário, se afastam, do caráter mais essencial da vida:
a pluralidade, o choque, o conflito. Logo, este será um dos momentos em que Nietzsche
se afasta relativamente da tradição hermenêutica pelo fato de desconsiderar todo e
qualquer pretensão de verdade ou interpretação universal acerca da natureza.
A linguagem é certamente um tema muito criticado por Nietzsche, visto que é pela
linguagem que é possível transmitir, comunicar qualquer tipo de conhecimento ou visão
acerca do mundo. Entretanto, mesmo que a linguagem seja de fato algo intrínseco a
8
O conceito intitulado como “Niilismo”, do latim nihil (nada), significa, de acordo com a filosofia
nietzschiana, negar o valor da vida em prol de outra vida ou algo que não existe, ou seja, o nada. O
filósofo Gilles Deleuze em seu livro “Nietzsche e a filosofia” irá classificar o niilismo nietzschiano
em 4 tipos: O niilismo negativo – que predomina a negação desta vida em nome de uma outra vida
além desta; O niilismo reativo – marcado pela razão cientifica que reage contra a promessa de uma
vida ou de uma verdade transcendental metafisica; O niilismo passivo – aquele que percebe que de
fato não a nada nem nesta vida nem em outra transcendental; e o niilista ativo – representa o momento
em que a negação nega a si mesma, possibilitando assim uma afirmação desta vida de fato como ela
é, aplicando ativa e diretamente a vontade de potência para criar novos valores, ir além do homem.
9
NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal. Op. cit., af. 4.
10
NIETZSCHE, F. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral, p.48.
comunicação, o processo de criação desta linguagem carrega um defeito também
intrínseco dentro de si. Esse “defeito” é produzido no momento da criação do menor
formato de linguagem possível a ser transmitido: a palavra.
11
NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal. Op. cit., af. 268.
12
NIETZSCHE, F. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral
de uma simplificação do mundo. A partir dessa simplificação, cria-se um mundo fictício
que se opõe ao mundo real. Um mundo que esqueceu quem realmente é.
2.2.2. Lógica
Inventar fabulas sobre um outro mundo diferente deste não tem sentido a não ser que
domine em nós um instinto de calunia, de depreciação, de receio: neste caso nos
vingamos da vida com a fantasmagoria de uma outra vida distinta desta e melhor do
que esta13
13
NIETZSCHE, F. Crepúsculo dos ídolos. Op. cit., III – A “razão” na filosofia, af. 6.
14
NIETZSCHE, F. A gaia ciência. Op. cit., af. 112.
isolamos algumas partes. Portanto, ao que parece, todo ato de interpretação torna-se, no
mínimo, limitado.
Logo, será a partir desse momento que se faz presente uma possível intersecção
entre o pensamento nietzschiano e a hermenêutica. Visto que não existe apenas uma
vontade que se apodera das coisas, mas sim, um conjunto de vontades e forças em
constante conflito, Nietzsche se propõe a analisar quais são essas forças, e o que de fato
há por de trás dessas forças, quais são suas verdadeiras intenções. Surge nesse momento,
15
NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal. Op. cit., af. 16.
uma nova forma de interpretação do mundo, uma interpretação que exige o
questionamento, a desconfiança, uma hermenêutica da suspeita.
3. Hermenêutica da suspeita
4.1. Perspectivismo
Como dito anteriormente, os significados dos conceitos não são transparentes para
os agentes. Logo, existe algo por de trás a ser desvelado. As perspectivas que se
perpetuaram através da história são passiveis de analise, de interpretação. E será nesse
momento que Nietzsche mais se aproxima da tradição hermenêutica. A genealogia revela,
assim, que as transições entre esquemas conceituais e a persistência desses esquemas são
explicadas por processos sociais e psicológicos não racionais. Uma das grandes propostas
da genealogia é a compreensão de fenômenos como, por exemplo, a moralidade.
Essa é uma das razões pelas quais é necessária uma abordagem genealógica. A
genealogia traça as conexões históricas contingentes entre os fenômenos, mostrando
como eles emergiram, foram transformados e persistiram. Os fenômenos podem ser
compreendidos e entendidos apenas em seus contextos históricos e sociais. Logo, um
julgamento isolado nunca é verdadeiro em si, nunca é universal, e sim, verdadeiro para
um contexto de desenvolvimento histórico social especifico, não sendo possível, portanto,
estabelecer uma moral ou um julgamento em si que seja o mais correto ou o mais
verdadeiro.
5. Conclusão
Diante de tudo isso, Nietzsche rejeita a ideia de que existem fenômenos naturais,
sociais e avaliativos unitários, nitidamente distinguíveis: o que parece unificado de uma
perspectiva não é de outra, não havendo, portanto, um método hermenêutico que exclua
o caráter contingente histórico. Além disso, ele não oferece nenhum conjunto específico
de procedimentos que se deve seguir. Ele está sempre aberto a revisão. Sempre trata suas
próprias hipóteses como provisórias. Um possível processo hermenêutico que pode ser
atribuído a Nietzsche, é aquele que admite o não verdadeiro como condição de vida:
Portanto, tomando como base o que foi descrito ao decorrer deste ensaio, pode-se
concluir que, a partir de uma interpretação e estudo genealógico acerca das interpretações
históricas consolidadas junto a utilização do caráter mais essencial a vida: a vontade de
potência, Nietzsche se afasta do modelo hermenêutico tradicional e torna possível o
surgimento de uma nova hermenêutica, uma hermenêutica, que considera os opostos, que
considera o “falso”, uma hermenêutica que irá além do homem e qualquer estrutura, uma
hermenêutica para além do bem e do mal.
Referências Bibliográficas
Deleuze, G. (2018). Nietzsche e a filosofia. (Tradução: Mariana de Toledo Barbosa e Ovídio
de Abreu Filho). São Paulo: n-1 edições.
Mosé, V. (2018). Nietzsche hoje: sobre os desafios da vida contemporânea. Petrópolis, RJ:
Editora Vozes.
Nietzsche, F.W. (2001). Além do bem e do mal. (Tradução:
Márcio Pugliesi. Curitiba), PR: Hemus Editora.
____________. (2007). Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral. Organização e
Tradução: Fernando de Moraes Barros.
São Paulo, SP: Editora Hedra.
16
NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal. Op. cit., af. 4.