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A HERMENEUTICA EM NIETZSCHE

Yuri Enilson Rabelo de Araújo


Professor: Tiago Cerejeira Fontes

Resumo: O termo "hermenêutica" aparece apenas três vezes nos cadernos de Nietzsche
e nunca em seus trabalhos publicados. No entanto, os textos de Nietzsche são fontes
férteis de ideias, conceitos e argumentos que se cruzam com a tradição hermenêutica.
Durante todo o período medieval, a tradição hermenêutica se baseava na exegese de textos
bíblicos e religiosos, com diversas estruturas de interpretação textual, mas com uma
finalidade divina muito especifica e de alguma maneira atingível. No entanto, ao haver a
transição histórica para o período moderno, novas linhas herméticas surgem
analogamente a amplitude de novos objetos a serem interpretados. Friedrich Nietzsche
será o pensador que irá romper com o pensamento tradicional europeu-ocidental, e irá
promover uma abordagem genealógica de interpretar não só textos e obras de maneira
autentica, em seu estilo, mas também da cultura, história, e do o mundo como fenômeno
estético.

Palavras chave: Hermenêutica; Nietzsche; Genealógica; Fenômeno estético

1 Introdução

Em termos gerais, a hermenêutica é o estudo e interpretação de entidades


significativas. Portanto, ao analisar um objeto de estudo deve-se questionar primeiro: qual
é o limite em que se pode conhecer algo. Segundo: o que se pode de fato conhecer ou
interpretar. E por último, consequentemente, qual deverá ser o método utilizado para
realizar as outras duas tarefas anteriores. O termo "hermenêutica" aparece apenas três
vezes nos cadernos de Nietzsche e nunca em seus trabalhos publicados. Logo, mesmo a
hermenêutica já possuindo espaço e visibilidade, pode-se assumir que foi de escolha
pessoal e intencional do autor não utilizar este termo para descrever de qualquer maneira
suas obras ou conceitos. Isto se deve ao fato de que o próprio pensamento filosófico
nietzschiano, como será descrito ao decorrer deste ensaio, rompe com qualquer método
concreto, objetivo, de interpretar ou adquirir alguma espécie de verdade universal acerca
de qualquer fenômeno.

Entretanto, mesmo o filósofo se abstendo de qualquer envolvimento direto com a


hermenêutica propriamente dita, existem conexões extremamente semelhantes com a
tradição hermética que podem ser traçadas em diversas obras publicadas, principalmente
no que concerne sua visão acerca do mundo e da experiência humana em sua totalidade.
Para Nietzsche, durante todo o processo histórico de desenvolvimento conceptual e
filosófico do pensamento humano, houve um processo de deturpação e manipulação
daqueles que seriam os reais valores da vida: a vontade de poder. Com isso, desde
Sócrates e Platão, até o período em que vivera, os valores e até mesmo a maneira como
se faz a própria filosofia está completamente prejudicada, sendo necessário desvelar toda
a falsa camada que foi, de certa maneira, imposta a vida pelos grandes filósofos e
cientistas para podermos de fato retornar, ou pelo menos chegar o mais próximo, do que
seria de fato a vida como ela é: fluida, conflitante, diversa, artística.

Portanto, o intuito deste ensaio é analisar e desenvolver os principais conceitos e


críticas do filósofo, a princípio, acerca da vida; expor e exemplificar sua visão a respeito
do processo de construção histórica do pensamento filosófico e suas características; e por
fim, estabelecer quais são as ligações que podem ser feitas entre alguma espécie de
método hermenêutico, se é que ele existe, com o pensamento nietzschiano.

2. Acerca da vida

Um dos eixos fundamentais do pensamento de Nietzsche é a sua visão acerca da


vida. Para o filósofo, a vida é marcada essencialmente por uma pluralidade de fenômenos
vastos e em constante conflito. Desde as formações mais elementares, os seres
unicelulares, as plantas, até os seres mais complexos como os seres humanos, possuem
essa “vontade” intrínseca de se expandir, de querer mais. Esse conjunto de forças que
buscam a vida é o que Nietzsche irá chamar de “vontade de potência”, ou “vontade de
poder”. Se todas as forças da natureza estão em expansão elas se chocam. Na luta por
continuar a se expandir, estes choques produzem a duração, a forma. “Forças são sempre
plurais e são sinônimos de choque. A vida é simultaneamente força e forma. Vida é uma
pluralidade de forças em choque produzindo durações provisórias, formas, corpos. ”1.

2.1 Vontade de poder

A vontade de poder, ou vontade de potência, é certamente a característica mais


marcante e mais essencial da vida de acordo com o pensamento nietzschiano. Ou seja, a
vida sem vontade de poder perde completamente seu valor, sua dignidade, sua
característica primordial, característica esta que sem ela a vida não pode existir. O mundo
é essencialmente marcado por um conjunto de inúmeras forças que de certa forma
emanam de todos os objetos no mundo. Todos os indivíduos, todos os objetos físicos, a
vida como um todo, possui uma espécie de pulsar que é completamente plural, diverso,
variado. Logo, com essa constância de forças possuindo, ao mesmo tempo, uma vontade
incessante de expansão e dominação, algumas forças irão se sobrepor e dominar outras.
Consequente, haverá um processo de hierarquização continua de forças, visto que essas
também variam em sua intensidade. Toda força está, portanto, numa relação essencial
com outra força: “Uma força é dominação, mas é também o objeto sobre o qual uma
dominação se exerce”2.

Existe um diferencial nas forças, algo que de alguma maneira conduz essa força
para algo. Esse diferencial chama-se “vontade”. Essa vontade não se exerce
misteriosamente sobre músculos ou sobre nervos, menos ainda sob uma mateira em geral,
e sim, necessariamente sobre uma outra vontade. Nietzsche irá fazer dois tipos de
distinção em termos de qualidade da força e da vontade respectivamente: ativa e reativa
e afirmativa e negativa. A força ativa se refere a força que durante o processo de conflito
conseguiu dominar a outra, portanto, ela foi maior que a força dominada, a força que age;
a força reativa é aquela que em termos de quantidade não teve força suficiente para
dominar, portanto, reage3. A vontade afirmativa se refere à vontade que afirma, aprecia a
vida, diferente da vontade negativa que nega, e deprecia a vida.

Mesmo o fenômeno da vontade sendo algo especialmente complexo, ao haver o


processo de hierarquização das vontades, forças e vontades que dominam e que são

1
MOSÉ, V. Nietzsche hoje. 2018. Editora Vozes.
2
DELEUZE, G. Nietzsche e a filosofia.
3
Vale salientar que mesmo que uma força domine a outra, nenhuma das duas perdem sua
característica de força, possuindo ainda intrinsecamente vontade de expansão e dominação.
dominadas, cria-se a possibilidade de analisar este esquema de vários pontos de vista:
histórico; social; político; filosófico, etc..... Entretanto, esse processo de análise só será
possível a partir de uma visão genealógica em qualquer aspecto que seja analisado. A
princípio, genealogia significa ir até as origens em busca dos verdadeiros valores que
conduzem a natureza, fazer uma espécie de arqueologia, um desvelamento do que estiver
sendo investigado.4

Portanto, quando se trata de analisar e interpretar algum fenômeno, deve-se levar


em consideração esse caráter plural que reside na totalidade do universo. Ou seja, no que
diz respeito ao leque da hermenêutica, sua resposta parece ser: tudo. Não são apenas
textos, obras de arte e assim por diante que exigem interpretação, mas algo como a
totalidade da experiência humana. Logo, o indivíduo com o intuito de interpretar o mundo
deve agir consoante ao modo plural no qual a natureza se apresenta:

também ele deve ter sido crítico, cético, dogmático e


histórico e ademais, poeta, coletor, viajante e charadista e
moralista e vidente e "espírito livre", tudo enfim para poder
percorrer o circulo dos valores humanos, dos sentimentos de
valor e poder lançar um olhar de múltiplos olhos e múltiplas
consciências da mais excelsa altitude aos abismos, dos baixos
para o alto.5

A interpretação, seja de valores ou de outras entidades, requer conhecimento


abrangente, habilidades diversas e capacidade de mudar entre perspectivas divergentes,
necessitando haver, portanto, uma espécie de sagacidade para conseguir enxergar através
do maior número de expressões possível acerca dos fenômenos.

O conflito, encontrado por Nietzsche, que permeia toda a civilização desde o


período antigo até o moderno, é o fato de que a maneira pela qual os seres humanos
interpretam os fenômenos está completamente danificada e não está de acordo com a
natureza. Logo, o objetivo do filósofo não é só revelar os fenômenos mal interpretados e
prejudiciais, mas também, a forma com que essas interpretações acerca dos fenômenos
surgiram e se consolidaram durante a história.

4
Nesse momento, portanto, cria-se o principal paralelo entre o conceito de hermenêutica como
interpretação de entidade, e o processo genealógico nietzschiano. O conceito de genealogia como
base hermenêutica será abordado mais à frente.
5
NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal. Op. cit., af. 20.
Portanto, temos três pontos: o alcance da interpretação é algo como a totalidade
da experiência humana; os métodos de interpretação incluem conhecimento amplo, bem
como reversões de perspectiva; e habilidade interpretativa é necessária porque muitas de
nossas interpretações atuais estão profundamente prejudicadas e danificadas.

2.2. O preconceito dos filósofos

Em uma de suas obras mais influentes intitulada “Além do bem e do mal”


Nietzsche, ao fazer uma leitura histórica acerca do conhecimento percebe um rompimento
extremamente problemático na estrutura do pensamento humano, com início
precisamente no período da Grécia antiga através de Sócrates e Platão, que se configurará
como a maior chaga do pensamento humano, e se perpetuará até o período em que vivera.
Esse problema Nietzsche denominará: O preconceito dos filósofos.

A longa história da filosofia, aos olhos de Nietzsche é marcada essencialmente pela


metafisica, por ele compreendida como uma estrutura de pensamento cujo alicerce
fundamental é a "crença nas oposições de valores"6. O pensamento filosófico é
considerado metafísico na medida em que é constituído basicamente em torno de
conceitos antagônicos, tais como: essência x aparência; razão x instinto; verdade x
mentira. Essa necessidade criada pelo ser humano de organizar os objetos do mundo em
categorias é marcada pela necessidade que o indivíduo possui em exercer alguma espécie
de controle sob o meio em que vive:

Este é o preconceito característico dos metafísicos de todos os tempos, este gênero de


apreciação se encontra na base de todos seus procedimentos lógicos. A partir desta
"crença" esforçam-se em alcançar um “saber”, criam a coisa que, afinal, será
pomposamente batizada com o nome de "verdade".7

A partir do surgimento do conceito e significado de “verdade” a humanidade torna-


se completamente escrava de uma ambição fervorosa pelo incondicional, pela causa, pela
“coisa em si”, e paralelamente desenvolve uma aversão a tudo aquilo que não se encaixa
nos padrões lógicos instituídos inicialmente pelos metafísicos e posteriormente
estruturado pelos físicos. Com isso, todas as características propriamente naturais como

6
NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal. Op. cit., af. 2
7
NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal. Op. cit., af. 2
os sentidos e as aparências são deixadas de lado, ignoradas, esquecidas, em prol de uma
verdade que está além das coisas físicas, além deste mundo. Logo, os seres humanos
esquecem a vida que de fato possuem e passam a colocar o seu valor em algo fora do
mundo, algo que de acordo com Nietzsche, não existe8. Com isso, a humanidade se afasta
de seu caráter natural e busca o artificial, a criação, aquilo que não é real, apenas para
satisfazer sua vontade de controle:

Por princípio estamos dispostos a sustentar que os juízos mais falsos (e entre estes os
"juízos sintéticos a priori") são para nós mais indispensáveis, que o homem não poderia
viver sem as ficções da lógica, sem relacionar a realidade com a medida do mundo
puramente imaginário do incondicionado e sem falsear constantemente o mundo através
do número; renunciar aos juízos falsos equivaleria a renunciar à vida, a renegar à vida.9

Portanto, o que o filósofo irá propor é a analise não só das estruturas metafisicas,
como o conceito de verdade, e irá afirmar que: “as verdades são ilusões das quais se
esqueceu que o são, metáforas que se tornaram gastas e sem força sensível, moedas que
perderam sua efígie e agora só entram em consideração como metal, não mais como
moedas”10, e que permearam toda a história da civilização, mas também como essas
estruturas não encaixam, e pelo contrário, se afastam, do caráter mais essencial da vida:
a pluralidade, o choque, o conflito. Logo, este será um dos momentos em que Nietzsche
se afasta relativamente da tradição hermenêutica pelo fato de desconsiderar todo e
qualquer pretensão de verdade ou interpretação universal acerca da natureza.

2.2.1. Linguagem e conceitos

A linguagem é certamente um tema muito criticado por Nietzsche, visto que é pela
linguagem que é possível transmitir, comunicar qualquer tipo de conhecimento ou visão
acerca do mundo. Entretanto, mesmo que a linguagem seja de fato algo intrínseco a

8
O conceito intitulado como “Niilismo”, do latim nihil (nada), significa, de acordo com a filosofia
nietzschiana, negar o valor da vida em prol de outra vida ou algo que não existe, ou seja, o nada. O
filósofo Gilles Deleuze em seu livro “Nietzsche e a filosofia” irá classificar o niilismo nietzschiano
em 4 tipos: O niilismo negativo – que predomina a negação desta vida em nome de uma outra vida
além desta; O niilismo reativo – marcado pela razão cientifica que reage contra a promessa de uma
vida ou de uma verdade transcendental metafisica; O niilismo passivo – aquele que percebe que de
fato não a nada nem nesta vida nem em outra transcendental; e o niilista ativo – representa o momento
em que a negação nega a si mesma, possibilitando assim uma afirmação desta vida de fato como ela
é, aplicando ativa e diretamente a vontade de potência para criar novos valores, ir além do homem.
9
NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal. Op. cit., af. 4.
10
NIETZSCHE, F. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral, p.48.
comunicação, o processo de criação desta linguagem carrega um defeito também
intrínseco dentro de si. Esse “defeito” é produzido no momento da criação do menor
formato de linguagem possível a ser transmitido: a palavra.

A palavra para Nietzsche é uma convenção, um conceito criado pelos seres


humanos inicialmente pela necessidade de sobrevivência, mas também por uma grande
capacidade de memória. Contudo, a palavra falha na tentativa de descrever o mundo na
medida em que faz parte da natureza da palavra abreviar, e consequentemente, limitar o
mundo. Portanto, o defeito da palavra, e consequentemente da linguagem, é tonar a
natureza, que é caracteristicamente plural, múltipla, em algo único e singular, criando um
novo mundo que é diferente do mundo real:

A história da linguagem é a de um processo de abreviação. Com base nesse rápido


entendimento as pessoas se unem, cada vez mais estreitamente. Quando é maior o
perigo, maior a necessidade de entrar em acordo, com rapidez e facilidade. [...] Entre
todas as forças que agora dispuseram do ser humano, a mais poderosa deve ter sido a
fácil comunicabilidade da necessidade, que é, em última instância, o experimentar
apenas vivencias medianas e vulgares11

É a partir da palavra que se torna possível o desenvolvimento de qualquer espécie


de linguagem. Um conjunto de sinais que, ao se referirem as coisas, anulam todas as
qualidades essencialmente peculiares a elas: “Tão exatamente como uma folha nunca é
idêntica a uma outra, assim também o conceito de folha foi formado graças ao abandono
deliberado destas características individuais, graças ao esquecimento destas
características12”. Portanto, ao analisar uma obra literária, por exemplo, ou simplesmente
qualquer objeto da natureza, todos os dados contidos para além do texto, para além da
gramatica em si, são anulados, esquecidos, pelo fato de que a própria linguagem em si ao
tentar descrever aquilo que se propõe, falha na falta de capacidade em abarcar todas as
características para além do texto, ou seja, tudo. Quando o humano cria o sistema de
códigos de linguagem, é quando funda também as primeiras leis da verdade; verdade é
utilizar corretamente os códigos, é obedecer a esta convenção. Será nesse momento que
começará a surgir os primeiros sensos da moral. Os conceitos junto a linguagem nascem

11
NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal. Op. cit., af. 268.
12
NIETZSCHE, F. Sobre verdade e mentira no sentido extra-moral
de uma simplificação do mundo. A partir dessa simplificação, cria-se um mundo fictício
que se opõe ao mundo real. Um mundo que esqueceu quem realmente é.

2.2.2. Lógica

A lógica é a forma dada ao discurso de modo a permitir que algum pensamento


enuncie a verdade sobre coisas. A busca do pensamento ocidental foi sempre por um
princípio estável e ordenador no mundo. Isso se deve ao fato de que, diante de toda
complexidade da natureza, o ser humano não consegue lidar com o não controle sobre as
coisas, com a transitoriedade. O indivíduo possui uma necessidade psicológica de
permanência, de duração, de ter controle sobre o mundo. A partir disso, é construído um
novo mundo, que diante da instabilidade da vida, cria formas, filtros, certos esquemas
para delimitar o que é valido daquilo que não é, limitando assim o próprio conhecimento
humano:

Inventar fabulas sobre um outro mundo diferente deste não tem sentido a não ser que
domine em nós um instinto de calunia, de depreciação, de receio: neste caso nos
vingamos da vida com a fantasmagoria de uma outra vida distinta desta e melhor do
que esta13

Um aspecto importante a ser considerado é a suposta relação de causalidade que


existe na natureza. A ideia de que tudo tem uma causa e de que toda a causa tem um efeito
nada mais é do que uma característica do modo como percebemos as coisas. O raciocínio
lógico nos faz crer que por trás de toda ação tem um sujeito que age, ou acredita que age.
Entretanto, na visão nietzschiana, não há sujeito da ação, a ação é tudo. Uma ação é um
conjunto de diversas e inúmeras forças em constante conflito na tentativa de
prevalecerem. Não existe um sujeito, existe um batalhão inteiro de sujeitos: “Causa e
efeito: essa dualidade não existe provavelmente jamais – na verdade temos diante de nós
um continuum do qual isolamos algumas partes14”. Logo, torna-se difícil realizar o ato
interpretativo visto que não existe apenas um elemento causal que paira sobre os objetos,
e sim, uma imensidão de causas em um continuo e constante processo de conflito no qual

13
NIETZSCHE, F. Crepúsculo dos ídolos. Op. cit., III – A “razão” na filosofia, af. 6.
14
NIETZSCHE, F. A gaia ciência. Op. cit., af. 112.
isolamos algumas partes. Portanto, ao que parece, todo ato de interpretação torna-se, no
mínimo, limitado.

Será nesse momento que Nietzsche romperá “intelectualmente” com o filósofo


alemão Arthur Schopenhauer. Mesmo Schopenhauer tendo sido grande fonte de
inspiração para o filósofo do martelo, principalmente no que concerne sua teoria da
vontade forjada em sua obra célebre “O mundo como vontade e representação”, será nessa
mesmo tema, a vontade, que Nietzsche irá além do pensamento Schopenhauriano. De
acordo com Nietzsche, a vontade para Schopenhauer se expressa de maneira singular,
como se houvesse apenas uma única vontade que se apodera dos objetos e do mundo ao
redor do indivíduo. Como dito anteriormente, a vontade é completamente plural e diversa,
não sendo possível haver apenas uma vontade, e sim várias vontades, não só do objeto,
mas principalmente do próprio indivíduo, sendo difícil delimita-lo justamente como
apenas um agente causador:

Ainda há ingênuos acostumados à introspecção que acreditam que existem "certezas


imediatas", por exemplo, o "eu penso" ou, como era a crença supersticiosa de
Schopenhauer, o “eu quero”; como se nesse caso o conhecimento conseguisse
apreender seu objeto, pura e simplesmente, enquanto "coisa em si" sem alteração por
parte do objeto e do sujeito. [...] O Vulgo acredita .que o conhecimento consiste em
chegar ao fundo das coisas; por outro lado, o filósofo deve dizer-se: "Se analiso o
processo expressado na frase “eu penso", obtenho um conjunto de afirmações
arriscadas, difíceis e talvez impossíveis de serem justificadas; por exemplo, que sou
eu quem pensa, que é absolutamente necessário que algo pense, que o pensamento é
o resultado da atividade de um ser concebido como causa, que exista um "eu"; enfim,
que se estabeleceu de antemão o que se deve entender por pensar e que eu sei o que
significa pensar.15”

Logo, será a partir desse momento que se faz presente uma possível intersecção
entre o pensamento nietzschiano e a hermenêutica. Visto que não existe apenas uma
vontade que se apodera das coisas, mas sim, um conjunto de vontades e forças em
constante conflito, Nietzsche se propõe a analisar quais são essas forças, e o que de fato
há por de trás dessas forças, quais são suas verdadeiras intenções. Surge nesse momento,

15
NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal. Op. cit., af. 16.
uma nova forma de interpretação do mundo, uma interpretação que exige o
questionamento, a desconfiança, uma hermenêutica da suspeita.

3. Hermenêutica da suspeita

Desta maneira, surge um novo método interpretativo que consiste em


desmistificar os fenômenos e revelar quais são as forças e vontades por de trás dos
significados e conceitos. O termo “hermenêutica da suspeita” é constantemente atribuído
a Nietzsche devido a uma afirmação do filósofo Paul Ricoeur no qual se referiu que o
filósofo do martelo junto a Marx e Freud pertenciam a uma “escola da suspeita”. Veremos
até que ponto este rotulo pode ser de fato útil.

A hermenêutica da suspeita surge no intuito de analisar e suspeitar acerca de todos


os fenômenos sociais, ou físicos, que foram historicamente instituídos, a ponto de, a partir
dessa suspeita, dessa desconfiança, podermos adentrar o fenômeno analisado e descobrir
quais são de fato as verdadeiras forças, e consequentemente, as intenções por trás do
objeto analisado. Será a partir desta desconfiança que será possível identificar a causa real
que os fenômenos conscientes foram ou não prejudicialmente imergidos.

A princípio, esta forma de interpretação do mundo parece bastante razoável visto


que o ato de suspeitar torna-se gatilho para uma desconsideração daquilo que já estava
instituído e possibilita a interpretação do mundo afim de alcançar alguma espécie de
certeza, causa, ou verdade por detrás dos fenômenos. Entretanto, o problema em
caracterizar Nietzsche a oferecer uma hermenêutica da suspeita é que essa atitude, por
muitas vezes, é facilmente mal interpretada por aqueles que alegam que interpretações
que se perpetuaram, e que se instauraram durante o processo de desenvolvimento
intelectual humano, devem ser desconsideradas ou ignoradas. Pelo contrário, para o
filósofo do martelo elas possuem imensa importância. Visto que Nietzsche é considerado
o filósofo do martelo, é necessário haver algo para se martelar, para desconstruir. Logo,
este pensamento não reflete inteiramente o pensamento nietzschiano pelo fato de que,
como será visto no decorrer deste ensaio, o filósofo tanto rejeita qualquer tipo de certeza
final acerca dos objetos, quanto se interessa ostensivamente pelas interpretações
imediatas e problemáticas instituídas. A ideia de que os motivos atribuídos a um
fenômeno frequentemente diferem dos “verdadeiros” motivos que operam tal fenômeno,
ou seja, o fato sempre haver algo a ser “desvelado”, não é de modo algum inovador.
4. A Genealogia da moral

Com isso, surge o método e o conceito de “Genealogia”, ou seja, o ato de ir até o


cerne, o gene, uma espécie de analise ou estudo da origem. A ideia de que existem
fenômenos simplesmente dados como conceitos, proposições e até mesmo nossas
experiências, têm significado apenas em relação às perspectivas das quais fazem parte.
Nietzsche rejeita a visão de que há um conjunto de conceitos e relações conceituais que
necessariamente impomos à nossa experiência. Em vez disso, ele argumenta que existem
muitos sistemas de conceitos diferentes e incompatíveis entre si. Não temos como avaliar
esses sistemas de um ponto de vista externo e neutro para determinar qual é o melhor.

4.1. Perspectivismo

Nietzsche percebe que, ao analisar os conceitos, símbolos, e estruturas históricas,


certas práticas sociais se repetiam ou estavam presentes em várias outras sociedades ao
mesmo tempo. Entretanto, ao analisar a fundo, o filósofo percebe que essas estruturas ou
símbolos que se perpetuaram só se deram a partir de um desenvolvimento especifico com
certas condições especificas, e que no fundo, em relação aos valores, aos sentidos que
eram atribuídos essas práticas, estas variavam, e muito, entre as sociedades. Logo, o que
existe em si, são diferentes perspectivas que se de deram ao longo da história, e não
conceitos intrínsecos e universais.

Nesse sentido, Nietzsche corta completamente as relações com o pensamento


kantiano no que concerne as estruturas ou formas puras a priori. Segundo Kant, a maneira
como conhecemos o mundo depende das formas puras do entendimento, ou categorias,
que são especificações de nossos conceitos mais fundamentais e das relações entre eles.
Kant argumenta que esses conceitos e relações são uniformes para todos os agentes
racionais. Nietzsche aceita a afirmação kantiana de que os conceitos estruturam a
experiência. No entanto, essas conceitos e estruturas são complemente plurais e diversos,
variando em cada sociedade de inúmeras maneiras possíveis. Não existe uma causalidade
singular. São inúmeras causas, estruturas, que fundamentam a experiência, e
consequentemente, o entendimento humano. Portanto, o que existe no mundo são
inúmeras e diversas perspectivas que tiveram um desenvolvimento muito especifico e se
conservaram durante o tempo.
Dado que nossas experiências são constituídas por essas perspectivas, Nietzsche
acredita que a compreensão destes fenômenos sociais requer atenção à perspectiva no
qual eles fazem parte. Será nesse momento que ele mais se aproximará da tradição
hermenêutica: a partir do método genealógico.

4.2. Método genealógico

Como dito anteriormente, os significados dos conceitos não são transparentes para
os agentes. Logo, existe algo por de trás a ser desvelado. As perspectivas que se
perpetuaram através da história são passiveis de analise, de interpretação. E será nesse
momento que Nietzsche mais se aproxima da tradição hermenêutica. A genealogia revela,
assim, que as transições entre esquemas conceituais e a persistência desses esquemas são
explicadas por processos sociais e psicológicos não racionais. Uma das grandes propostas
da genealogia é a compreensão de fenômenos como, por exemplo, a moralidade.

No momento em que se assume erroneamente que moralidade é um fenômeno


unificado, com partes que se alinham, com objetivo unificado, um significado unificado,
Nietzsche apresenta-o como um conjunto de fatores completamente variado e diferentes
entre si, se conservando apenas por um acidente histórico. O filósofo realiza o mesmo
método acerca dos fenômenos sociais em geral: ele pensa que compreender qualquer
fenômeno social em particular (punição, códigos morais, ideais políticos etc.) requer
situar esse fenômeno em seu contexto histórico. Uma observação muito pertinente em
relação a esses fatores que se conservaram durante a história é o fato de que em muitas
sociedades certos padrões de conduta se repetem, entretanto, com significados e propostas
completamente diferentes. Em relação ao ato de punir: ele escreve que enquanto o
“costume”, “ato” e “drama” da punição é relativamente constante entre as sociedades, “o
significado”, os propósitos, a expectativa associada à execução de tais procedimentos é
fluido. Os mecanismos de punição (restrição, inflição, sofrimento, etc.) são relativamente
constantes, mas o significado não é.

Essa é uma das razões pelas quais é necessária uma abordagem genealógica. A
genealogia traça as conexões históricas contingentes entre os fenômenos, mostrando
como eles emergiram, foram transformados e persistiram. Os fenômenos podem ser
compreendidos e entendidos apenas em seus contextos históricos e sociais. Logo, um
julgamento isolado nunca é verdadeiro em si, nunca é universal, e sim, verdadeiro para
um contexto de desenvolvimento histórico social especifico, não sendo possível, portanto,
estabelecer uma moral ou um julgamento em si que seja o mais correto ou o mais
verdadeiro.

Entretanto, Nietzsche se propõe a realização de um processo de avaliação das


perspectivas. Visto que todas as perspectivas são estabelecidas através da “valoração” das
da natureza, ou seja, tudo é valor, o que o filósofo executa é a avaliação do valor dos
valores. Voltamos, portanto, ao seu conceito de “vontade de poder”. O filósofo tenta
mostrar que certas perspectivas devem ser rejeitadas pois entram em conflito ou negam a
“vontade de poder”. Ou seja, existem certos julgamentos, e consequentemente, certas
“morais” que são contra a própria natureza. A moral que nega a vida é aquela que segue
uma vontade de poder negativa provinda das forças reativas, a moral no qual sempre é
contraria ao que de fato existe, e a favor, daquilo que está fora da vida, da criação, da
fantasia, do que não existe, do niilismo. Portanto, as perspectivas podem ser medidas em
termos de “vontade de poder”. Assim, Nietzsche elabora um processo de crítica imanente
pelo fato de que: a vontade de poder está presente em todas as perspectivas.

Portanto, no método genealógico, a partir de um processo de análise social


histórica, é possível criticar as perspectivas com bases imanentes em termos de vontade
de poder. Isso nos permitirá mostrar, consequentemente, que certas perspectivas são
preferíveis a outras. No entanto, Nietzsche não acha que isso nos dará uma perspectiva
final e única. Sempre haverá perspectivas diferentes e incompatíveis entre si que são
igualmente bem justificadas.

5. Conclusão

Tendo em vista os aspectos observados acerca do pensamento nietzschiano é, de


fato, possível fazer certas relações com a tradição hermenêutica no que tange sua proposta
de interpretação não só da natureza, mas acerca de toda experiência humana. Entretanto,
as conclusões, os métodos, e as formas que o filósofo se utiliza, tendem a uma espécie de
relativismo visto que, como vimos anteriormente, sempre haverá perspectivas diferentes
e incompatíveis entre si que são igualmente bem justificadas. Contudo, mesmo não
possuindo motivos para acreditar que exista uma melhor perspectiva existem perspectivas
melhores e piores do que outras. Ao analisar e criticar as perspectivas tendo como base
imanente a vontade de poder, Nietzsche se afasta do relativismo extremo, e se aproxima,
de alguma forma, a algo mais “concreto”. Esta crítica é sempre historicamente situada.
Não geramos e avaliamos perspectivas ex nihilo, ou seja, a partir do nada.

Diante de tudo isso, Nietzsche rejeita a ideia de que existem fenômenos naturais,
sociais e avaliativos unitários, nitidamente distinguíveis: o que parece unificado de uma
perspectiva não é de outra, não havendo, portanto, um método hermenêutico que exclua
o caráter contingente histórico. Além disso, ele não oferece nenhum conjunto específico
de procedimentos que se deve seguir. Ele está sempre aberto a revisão. Sempre trata suas
próprias hipóteses como provisórias. Um possível processo hermenêutico que pode ser
atribuído a Nietzsche, é aquele que admite o não verdadeiro como condição de vida:

Admitir que o não-verdadeiro é a condição da vida, é opor-se audazmente ao


sentimento que se tem habitualmente dos valores. Uma filosofia que se permita tal
intrepidez se coloca, apenas por este fato, além do bem e do mal. 16

Portanto, tomando como base o que foi descrito ao decorrer deste ensaio, pode-se
concluir que, a partir de uma interpretação e estudo genealógico acerca das interpretações
históricas consolidadas junto a utilização do caráter mais essencial a vida: a vontade de
potência, Nietzsche se afasta do modelo hermenêutico tradicional e torna possível o
surgimento de uma nova hermenêutica, uma hermenêutica, que considera os opostos, que
considera o “falso”, uma hermenêutica que irá além do homem e qualquer estrutura, uma
hermenêutica para além do bem e do mal.

Referências Bibliográficas
Deleuze, G. (2018). Nietzsche e a filosofia. (Tradução: Mariana de Toledo Barbosa e Ovídio
de Abreu Filho). São Paulo: n-1 edições.
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16
NIETZSCHE, F. Além do bem e do mal. Op. cit., af. 4.

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