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O PENSAMENTO DE NIETZSCHE

E O PENSAMENTO PRÉ-SOCRÁTICO¹1

O modo como Friedrich Nietzsche entendeu a filosofia é algo que gera uma pluralidade de mal
entendidos neste nosso tempo pós-moderno. Enquanto filólogo, o autor pôde analisar os textos
antigos dos pensadores gregos pré-socráticos e por isso submergir na cultura helênica. Esta,
permeada pelo heroísmo mitológico, produziu os chamados phisiologoi, sábios que ousaram
produzir definições para a phisis. Tudo isto é deveras distinto da tradição filosófica iniciada após
Platão e a sua Academia. Deixemos que ele mesmo, Nietzsche, nos dê a sua descrição sobre aquelas
pessoas:

os gregos souberam começar no momento propício, e esse aprendizado, o de saber quando


se faz necessário começar a filosofar, ele compreenderam com mais clareza do que
qualquer outro povo. Pois não começaram na miséria como atestam alguns, que derivam a
filosofia do desgosto. Começaram antes afortunados, no momento de sua viril maturidade,
na cálida alegria da robusta e vitoriosa idade adulta. Que os gregos tenham filosofado nesse
momento nos ensina tanto algo sobre o que a filosofia é e o que deve ser, como sobre os
próprios gregos. (NIETZSCHE, 2011, p. 27-28).

Há uma necessidade do pensamento, conforme pode ser percebido na citação, que coloca o
foco do leitor desses primeiros filósofos no seu ato de filosofar. Este é inerente ao modo de vida
daqueles gregos. Sobre o pensamento pré socrático, Leão afirma que “o destino histórico de seu
pensamento não provém da objetividade dos conhecimentos, mas do vigor do pensamento. Por isso
o caminho a seguir é o caminho de um diálogo a partir da própria coisa do pensamento” (LEÃO,
2017, P. 11). O filosofar nascente, portanto, que se espalha desde Tales, em Mileto, na atual Turquia,
até a Itália, é como que uma desinência da própria idiossincrasia daqueles pensadores. Conforme o
jovem Nietzsche escreve em um de seus primeiros livros:

O juízo desses filósofos acerca da vida e da existência em geral diz muito mais do que um
juízo moderno, pois tinham a vida em opulento acabamento diante de si, e porque entre eles
os sentimentos do pensador não se confundiam, como entre nós, na dicotomia entre o
desejo por liberdade, beleza e grandeza de vida e o impulso para a verdade, que pergunta
apenas: qual é, afinal, o valor da vida? (NIETZSCHE, 2011, p. 33).

A pergunta sobre o valor da vida, ou o sentido da vida, e a perseguição da verdade ou de uma


verdade era completamente, se não desconhecido, inconsciente entre os gregos de antes da filosofia
ateniense. Não era um problema posto como, por exemplo, Sócrates a entendeu moralmente. A vida,
1 Este paper foi escrito como conteúdo adicional ao Projeto de Ensino A Metafísica e a Genealogia de Nietzsche e
que aqui neste perfil pode ser encontrado.
entendida a partir da phisis, a natureza, era a fonte dos fenômenos por eles interpretados sem que
uma verdade, ou de um conceito racionalmente encontrado, fosse necessária. Uma vez que a
verdade é uma crença a partir da evidência, o filosofar da vida naquele período é praticamente
natural já que ela mesma é a verdade posta já em todas as suas manisfestações da phisis.
Com Nietzsche, se esta comparação pode ser feita, o pensamento pré-socrático tem uma espécie
de (ao menos foi uma tentativa de) renascimento moderno para comparar com o que ocorreu nos
séculos 15 e 16 no ocidente. Queria ele trazer para o seu tempo, precisamente para contrapor o
paradigma ainda iluminista e sobretudo progressista, a visão cosmológica de um universo fechado
sem linearidades. O vir-a-ser de cunho heraclitiano. Mas o que há de original desta reconstrução de
Nietzsche da filosofia pré-socrática?
Ao contrário de sua época, este modo de pensar está posicionado na trincheira em frente a toda
a tradição metafísica desde Platão incluindo aí obviamente o cristianismo. Não é por acaso que
Nietzsche cunhou a expressão transvaloração de todos os valores. É, preciso que se deixe de lado
concepções do além em favor deste mundo onde tudo retorna sem cessar. Não mais se deve julgar e
condenar esta vida com a esperança de que chegar-se-á na perfeição. O amor fati é a atitude diante
da vida. Cito o autor:

Hoje, qualquer um se permite expressar seu desejo e seus mais diletos pensamentos: então,
também quero dizer o que hoje desejo de mim mesmo e qual o pensamento que este ano
passou primeiro pelo meu coração – qual o pensamento que deve ser, para mim, razão,
garantia e doçura de toda a vida que me resta! Quero aprender cada vez mais, ver o
necessário das coisas como sendo o belo – então, serei um daqueles que tornam das coisas
belas. Amor fati: daqui em diante será esse será o meu amor! Não quero travar uma guerra
contra o feio. Não quero reclamar, não quero nem mesmo reclamar dos que reclamam.
Desviar o olhar deles, será minha única negação! E, abrangendo tudo, em algum momento
ainda quero ser apenas alguém que sempre diz sim! (NIETZSCHE, 2016, p. 270).

A vida não é digna de avaliação, como disse Sócrates. A vida deve ser um critério de avaliação
a partir do qual é inescapável afirmá-la se se considera digno da grande saúde! Assim como na
Grécia dos pré-socráticos, a opulência da vida só pode ser afirmada em toda a sua assombrosidade
dos fenômenos, inclusive do eterno retorno. Ao invés de querer o nada como o cristianismo e a
racionalidade moderna treinam o homem para se manter conservado, a embriaguez vital e a vontade
de potência como superação da décadence ocidental.

BIBLIOGRAFIA
LEÃO, Emmanuel Carneiro. Os Pensadores Originários. Petrópolis: Vozes de Bolso, 2017.
NIETZSCHE, Friedrich. A Filosofia na Era Trágica dos Gregos. Porto Alegre: L&PM Editores,
2011.
NIETZSCHE, Friedrich. A Gaia Ciência. São Paulo: Martin Claret, 2016.

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