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Introdução à Filosofia

A função da Filosofia

É um facto que a filosofia tem gerado, ao longo da história da humanidade, atitudes


contraditórias e de repúdio. Várias são as razões que estão por detrás destas atitudes, e Karl
Jasper expõe algumas:

“A filosofia se vê rodeada de inimigos, a maioria dos quais não tem consciência


dessa [atitude]. A autocomplacência burguesa, os convencionalismos, o hábito de
considerar o bem-estar material como razão suficiente de vida, o hábito de só
apreciar a ciência em função de sua utilidade técnica, o ilimitado desejo do
poder, a bonomia dos políticos, o fanatismo das ideologias, a aspiração a um
nome literário – tudo isso proclama a antifilosofia” (JASPER, 1976: 138).

A atitude negativista e depreciativa da filosofia leva à formulação de afirmações irónicas


sobejamente conhecidas pelos estudiosos da Filosofia. Algumas dessas afirmações são as
seguintes: “A Filosofia é uma ciência com e sem a qual o mundo permanece tal e qual”; “A
filosofia é um simples jogo de linguagem obsoleta”. Estas afirmações podem ser resumidas numa
só frase: “a Filosofia não serve para nada”.

Este posicionamento em relação a filosofia é bem notório na nossa sociedade. Basta notar a
associação do substantivo “filósofo” a alguém sempre distraído, com a cabeça no mundo da lua,
pensando e dizendo coisas absolutamente inúteis e ininteligíveis (CHAUÍ, 2000: 10).

Mas esta forma de pensar sobre a filosofia é infundada. “Se a filosofia fosse alguma coisa de que
radicalmente fosse possível prescindir” – afirma José Ortega Y Gasset – “não se duvida que
durante esses anos teria desaparecido por completo” (ORTEGA Y GASSET, 2007:21). Deste
modo, além de não ser inútil, a filosofia não é tão difícil e complicada, cujo cultivo reservar-se-
ia só para gente ultra-especializada. Na opinião de Gramci (1978:11), “deve-se destruir o
preconceito, muito difundido, de que a filosofia seja algo muito difícil pelo facto de ser a
actividade intelectual própria de uma determinada categoria de cientistas especializados ou de
filósofos especializados e sistemáticos”.

Só superando estes preconceitos do senso comum é que se pode tornar clara a real tarefa da
filosofia no mundo. Várias são as propostas fecundas sobre o papel ou tarefa da filosofia, mas
iremos nos limitar a apontar apenas três, a saber: contemplativa, analítica e praxis ou
interventiva.

1. Função contemplativa

Segundo Edmund Husserl, para quem o método ideal para a pesquisa filosófica é o
fenomenológico, ou seja, a pesquisa das essências, a filosofia foi e sempre será concebida como
contemplação pura das essências das coisas, e escreve:
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Alguns homens começam na Grécia a contemplar o mundo como puros espectadores,


deixando-se apenas levar pelo puro interesse teórico de conhecer o mundo, sem se
preocuparem com a relação que esse conhecimento pudesse ter com a solução dos
problemas práticos pontuais (HUSSERL apud VALERA SANTOS & LIMA, s/a: 8).

Com efeito, a filosofia, nascida na Grécia, surge como um saber voltado fundamentalmente à
procura da verdade, à busca do ideal, sendo o instrumento privilegiado desta pesquisa a razão,
quase sempre associada à intuição, entendida como faculdade de ver e perceber o real. Trata-se
de uma filosofia essencialmente teórica, orientada para a busca de uma verdade universal. Esta
filosofia caracteriza-se pela contemplação desinteressada do mundo, pela admiração e espanto
diante da complexidade da realidade. Três questões se deparavam à filosofia como fundamentais:
o fundamento ou causa originária de tudo que existe; os valores (virtudes) que orientam a acção
humana; e a possibilidade de o homem atingir a verdade.

Portanto, a ideia principal nesta definição é a de que a filosofia é uma investigação que busca as
causas últimas, os princípios fundamentais das coisas, a unidade no meio da diversidade, o saber
sobre o mundo. Não é por acaso que os primeiros filósofos naturalistas, que eram todos
admiradores das maravilhas da natureza, drenaram maior parte de seus esforços na busca dos
fundamentos do universo, com mera finalidade de conhecer a génese e o sustentáculo da
complexa realidade universal, sem nenhum interesse de dominá-la a seu favor.

Hegel, que era grande admirador e filósofo da história, relega à filosofia a tarefa de sintetizar em
conceitos a dinâmica dos acontecimentos e das épocas históricas, que são obra oculta do espírito
absoluto. Para Hegel, o filósofo aparece como um leitor (contemplador) atento de uma história já
concluída – à semelhança da coruja de Minerva que só levanta voo ao entardecer – quando o
trabalho histórico já está concluído, pois é o único ser que não a experimenta e a compreende,
elevando-a a conceito (MERLEAU-PONTY, 1998:64).

Para os defensores desta perspectiva, as crises que a filosofia foi conhecendo ao longo da
história, resultaram da sua desvinculação da função contemplativa, tendo se lhe conferido outros
papeis alheios, tais como: orientar o homem exclusivamente para a produção material, para a
acção política, para a compreensão dos textos sagrados e tratados científicos, etc. Segundo
Martin Heidegger, essa crise da filosofia começou logo na Grécia antiga, quando Platão, através
da sua doutrina das formas, introduziu uma metafísica produtivista que veio a cristalizar-se na
sociedade industrial-capitalista.

2. Função analítica

Aqui, a filosofia perde o estatuto de uma ciência e assume a tarefa de metodologia de


compreensão de outros campos de saber. A perda do estatuto científico da filosofia ocorreu pela
primeira vez na idade média quando ela é conferida a tarefa de iluminar os conceitos e a
linguagem dos textos sacros. A filosofia tornava-se, deste modo, serva da teologia e a razão,
serva da fé.
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Na idade contemporânea, o positivismo de A. Comte, corolário da situação económica, social e


intelectual catapultada pela revolução industrial, reduz a filosofia à metodologia de classificação
e determinação dos limites e progressos das ciências. Já Wittgenestein, inspirador do
neopositivismo e da filosofia analítica, reduz a filosofia à actividade de análise da linguagem, e
escreve:
A filosofia não é uma doutrina mas uma actividade. Uma obra filosófica consiste
essencialmente em elucidações. O resultado da filosofia não é o número de
«proposições filosóficas», mas o esclarecimento das proposições. A filosofia tem por
fim clarificar e delimitar rigorosamente os pensamentos, que de outra forma seriam,
por assim dizer, conturbados e imprecisos. (WITTGENESTEIN apud VALERA
SANTOS & LIMA, s/a: 45).

Seguindo o pensamento de Wittgenestein, o neopositivismo ou positivismo lógico – cujo


núcleo paradigmático era o princípio de verificação, segundo o qual só tem sentido as
proposições que podem ser verificadas empiricamente, através do recurso aos factos da
experiencia – rejeitara o estatuto epistemológico da filosofia e das áreas que a constituem, a
saber, a ética, a metafísica, a lógica, a religião, a matemática, etc.

Para os neopositivistas, porque muitas das proposições da filosofia não podem ser verificadas
(testadas) empiricamente, então, o único trabalho que restou ao filósofo sério é de análise
semântica das proposições científicas, isto é, das relações entre linguagem e realidade à qual
as proposições se referem.

A filosofia analítica estende o campo da intervenção da filosofia, conferindo-a a tarefa de


analisar não somente a linguagem da ciência mas também do senso comum.

3. Função prática

A filosofia manifesta-se não somente como conhecimento das leis gerais da realidade
(contemplação) ou como metodologia para a compreensão dos outros campos do saber humano
(análise), mas também como corpo de entendimento que cria o ideário que norteia a vida humana
em todos os seus momentos. A filosofia não é essencialmente uma interpretação do já vivido ou
do que se vive, mas sim a interpretação de aspirações e desejos do que está por vir. Os filósofos
captam e dão sentido à realidade que está por vir e expressam como um conjunto de ideias e
valores que devem ser vividos, difundidos e buscados. Os filósofos impelem a uma atitude
existencial, a um novo tipo de comportamento, a uma forma de agir e a um viver de forma
autêntica. É isto que torna os filósofos profetas da sociedade, no sentido de indivíduos que são
capazes de ler nos acontecimentos do presente o significado do que está por vir, o que está em
gestação. Deste modo, o pensamento filosófico manifesta-se como impulsionador da acção,
tendo em vista a concretização de determinadas aspirações dos homens, de um povo, de um
grupo ou de uma classe.

É nesta perspectiva que encontramos Marx a operar uma viragem na compreensão do papel da
filosofia. Influenciado pelas condições sociais do seu tempo, Marx entendeu que era urgente
desenvolver um pensamento engajado na libertação do proletariado alienado. Por isso, ele via a
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filosofia não mais como contemplação da realidade (da sociedade europeia já mergulhada nas
teias da injustiça social), mas sim, como actividade prática que visa fundamentalmente
transformar a sociedade e, sobretudo, contribuir politicamente. Criticando os filósofos idealistas,
principalmente Hegel, Marx afirma: “os filósofos até agora se limitaram a interpretar o mundo;
de agora em diante é preciso, pelo contrário, transforma-lo”.

Para Marx, o filósofo não encontra a solução dos seus problemas através da especulação, mas
pela acção criticamente iluminada e dirigida, a acção revolucionária. A tarefa da filosofia não é
interpretar ou contemplar o mundo, mas sim, transforma-lo.

Já Luckesi atribui à filosofia três principais áreas complementares de intervençao, a saber:

a) Inventariar os valores: a primeira tarefa da filosofia é de catalogar os valores que


explicam e orientam a nossa vida e a vida da sociedade, e que dimensionam as
finalidades da prática humana. A filosofia deve indagar os valores que dão sentido e
orientam a vida familiar, política, económica, educativa, etc.. É preciso, pois, tomar-se
consciência das acções, do lugar onde se está e da direcção que toma a vida.

b) Criticar os valores: feito esse inventário, que certamente nunca será completo e é tão
abrangente quanto todos os sectores da vida, é preciso tomar esses valores e submetê-los
a uma crítica radical, questioná-los por todos os ângulos possíveis para verificar se são
significativos e se, de facto, compõem o sentido que queremos dar à existência. Esta
tarefa da filosofia assemelha-se a um “tribunal da razão”, que faz passar pelo crivo da
crítica todos os valores vigentes que dão sentido à nossa existência quotidiana.

c) Construir criticamente os valores: ninguém pode viver exclusivamente da negação, da


sondagem das raízes dos problemas axiológicos. Importa, pois, uma construção crítica
dos valores de modo que sejam significativos para compreender, explicar e orientar
nossas vidas individuais e colectivas; valores que sejam suficientemente válidos para
guiar a acção na direcção que queremos ir.

Portanto, encerramos o texto convocando o filósofo africano Theophile Obenga. Seguindo a


linha do pensamento do filósofo chinês Fun Yu-lan, para quem a filosofia é um “pensamento
reflexivo e sistemático sobre a vida”, Obenga argumenta que todo o pensamento filosófico –
concreto ou abstracto, oral ou escrito – deve estar necessariamente conectado aos problemas da
vida.

Ao filosofarem, os seres humanos procuraram sempre compreender e reinventar o real, o justo, o


bom e o verdadeiro. Este exercício interior pressupõe elevada actividade do espírito, condição
indispensável para a acção prática de todo o ser humano. Por essa razão, mais do que
metodologia, a filosofia é, segundo Obenga, uma tarefa. A filosofia é mais importante na sua
função pragmática que como mera metodologia crítica ou analítica da natureza das coisas.
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Bibliografia para aprofundar a matéria:

CHAUÍ, Marilena, Convite à filosofia, S. Paulo: Àtica, 2000.

JASPER, K. Iniciação filosófica, Lisboa: Guimarães Editores, 1998.


LUCKESI, C. C. Filosofia da Educação, S. Paulo: Cortez, 1994.
MERLEAU-PONTY, Maurice, Elogio da Filosofia, Lisboa: Guimarães Editores, 1998.
OBENGA, Theophile, Egypt: Ancient History of African Philosophy. In: WIREDU, Kwasi, et
all., A Companion to African Philosophy, Oxford: Blackwell Publishing Ltd, 2004.

ORTEGA Y GASSET, J. O que é a filosofia? Lisboa: Cotovia, 1994.


REALE, G. & ANTISERI, D. História da Filosofia: Do romantismo até nossos dias. Vol.3, São
Paulo: Paulus, 2007.
VARELA SANTOS, M. H. & LIMA, T. M., No reino dos porquês: o homem do outro lado do
espelho, Lisboa: Porto editora, s/a.

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