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PROF.

JOHANNES HESSEN

DA UNIVERSIDADE DE COLÓNIA

TEORIA
DO

CONI-IECIMENTO

TRADUÇÃO DE

ANTÓNIO CORREIA
Llce.ncla,:1o em Ciência, Históricas e Filosóficas

8." EDIÇÃO

ARMÉNIO AMADO - EDITORA


TEORIA
DO

CONHECIMENTO
COLECÇÃO STVDIVM
TE MAS FILOSÓFICOS, JURÍDICOS E SOCIAIS

PROF. JOHANNES HESSEN


DA UNIVERSIDADE DE COLÔNIA

TEORIA
DO

CONHECIMENTO

TRADUÇÃO DE
DR. ANTÓNIO CORREIA
Licenciado em Ciências Históricas e Filosóficas

8.& EDIÇÃO

ARMÉNIO AMADO - EDITORA


COIMBRA - PORTUGAL

1987
TrTULO ORIGINAL

ERKEN NTNISTHEORIE

Edição em Ungua alemã de Ferd. Dümmlers Verlag (Bona)

Johannes Hessen, Erkenntnistheorie,


Ferd. Dümmlers Verlag 1926, 125 págs.
(in «Leitfiden der Philosophie», vai. 2.°).

Direitos exclusivos em Ungua portuguesa


de Arménio Amado-Editora -Coimbra-Portugal.

COIMBRA
PRÓLOG o

A exposição que apresentamos da teoria do conhe­


cimento surgiu das lições proferidas pelo autor na
Universidade de Colónia. Isto explica a sua forma
elementar.
Os esforços do autor procuraram não tanto oferecer
simples soluções como expor claramente e de modo racional
o sentido dos problemas e as diversas possibilidades de
os resolver, sem renunciar, naturalmente, a desenvolver
um exame crftico e a adoptar uma posição. O autor
compartilha com NICOLAU HARTMANN a convicção de
que «o último sentido do conhecimento filosófico não é
tanto resolver enigmas como descobrir maravilhas.»
A presente exposição da teoria do conhecimento
distingue-se das outras debaixo de três pontos de
vista.
Em primeiro lugar, porque coloca o método feno­
menológico ao serviço da teoria do conhecimento. Em
segundo lugar, porque apresenta uma discussão porme­
norizada do problema da intuição, o que as outras
6 TEORIA DO CONHECIMENTO

expostçoes não fazem. Finalmente, porque desenvolve


a teoria especial do conhecimento, além da geral.
Oxalá o presente trabalho contribua para fomentar
o interesse, hoje revivido, pelas questões filos6ficas.

Co16nia, Outubro de 1925

J. HESSEN
INTRODUÇÃO

1. Essência da Filosofia

A teoria do conhecimento é wna disciplina


ftlosóftca. Para defmir a sua posição no todo que
é a ftlosofta, temos necessidade de partir de uma
deftnição essencial desta. Porém, como chegar a
esta defmição � Qual o método que devemos utilizar
para defmir a essência da fuosofta �
Poderia, antes de mais, tentar-se obter uma
defmição essencial de ftlosofta partindo do signi­
ftcado da palavra. A palavra ftlosofta procede da
língua grega e equivale a amor pela sabedoria ou,
o que quer diz�r o mesmo, desejo de saber, de
conhecimento. E claro que este signifIcado etimo­
lógico da palavra ftlosofta é demasiado geral para
que dele se possa extrair u:m.a defmição essen­
cial. É necessário, evidentemente, procurar outro
método.
Poderia pensar-se em coligir as diversas deftni­
ções essenciais que os ftlósofos têm dado da ftlosofta
através a história e , comparando-as umas com as
outras, obter uma defmição exaustiva. Mas também
este processo não conduz ao ftm em vista. As
defmições essenciais que encontramos na história
8 TEORIA DO CONHECIMENTO

da filosofia diferem tanto, muitas vezes, umas das


outras, que parece completamente impossível colher
delas uma definição essencial unitária da filosofia.
Compare-se, por exemplo, a defmição de filosofia
que dão PLATÃO e ARISTÓTELES - que definem a
filosofia como a ciência pura e simples - com a
definição dos est6icos e dos epicuristas, para os quais
a filosofia é, respectivamente, uma aspiração à
virtude ou à felicidade. Ou compare-se a definição
que, na Idade Moderna, dá da filosofia CruSTIAN
WOLFF - que a define como scientia possibilium,
quatenus esse possunt - com a definição que dá
FREDERICO ÜBERWEG no seu conhecido Tratado de
Hist6ria da Filosofia, segundo a qual a filosofia é
«a ciência dos princípios». Tais divergências tornam
vão o intento de encontrar por este caminho uma
definição essencial de filosofia. A essa defmição
somente se chegará, pois, prescindindo-se de tais
definições e enfrentando-se o conteúdo histórico
da própria filosofia. Foi GUILHERME DILTHEY quem
pela primeira vez utilizou este método, no seu
ensaio sobre A essência da filosofia. Aqui o segui­
remos com certa liberdade, tentando naturalmente,
pela nossa parte, desenvolver os seus pensamentos.
Porém, o processo que acabamos de apontar
parece destinado a um fracasso, porque encontra
desde logo uma dificuldade. Trata-se de extrair
do conteúdo histórico da filosofia o conceito da
sua essência. Mas, para poder falar de um con­
teúdo histórico da filosofia, necessitamos - parece­
-nos - de possuir já um conceito da fuosofia.
Precisamos de saber o que é a fuosofia para tirar
INTRODUÇÃO 9

o seu conceito dos factos. Na defuúção essencial


da filosofia, na forma em que desejamos obtê-la,
parece haver, portanto, um círculo; este processo
parece, pois, por esta dificuldade, condenado ao
fracasso.
Não acontece no entanto aSSIm. A dificul­
dade que se aponta desaparece se se atende ao
facto de que não partimos de um conceito defi­
nido da filosofia, mas sim da representação geral
que toda a pessoa culta tem dela. Como indica
DILTHEy: «o que primeiramente devemos tentar
é descobrir um conteúdo objectivo comum em
todos aqueles sistemas à vista dos quais se forma
a representação geral da fuosofia».
Estes sistemas existem de facto. Acerca de muitos
produtos do pensamento cabe duvidar se devem
ou não considerar-se como filosofia. Porém, toda
esta espécie de dúvida se apaga quando se trata
de numerosos outros sistemas. Desde o seu apare­
cimento, a Humanidade tem-os sempre conside­
rado como produtos filosóficos do espírito, tem
visto neles a própria essência da filosofia. Esses
sistemas são os de PLATÃO e ARISTÓTELES, DESCARTES
e LEIBNITZ, KANT e HEGEL. Se os aprofundarmos,
neles encontraremos certos traços essenciais comuns,
apesar de todas as diferenças que apresentam. Encon­
tramos em todos eles uma tendência para a univer­
salidade, uma orientação para a totalidade dos
objectos. Em contraste com a atitude dos espe­
cialistas, cuja observação se dirige sempre a um
sector maior ou menor da totalidade dos objectos
do conhecimento, encontramos aqui um ponto de
10 TEORIA DO CONHECIMENTO

vista tmiversal, que abrange a totalidade das coisas.


Tais sistemas apresentam, pois, o carácter da univer­
salidade. A este se junta um segundo traço essencial
comum. A atitude do filósofo em frente da totali­
dade dos objectos é uma atitude intelectual, uma
atitude do pensamento. O fIlósofo trata de conhecer,
de saber. É essencialmente um espírito cognoscente.
Como pontos essenciais de toda a fIlosofia temos
portanto: 1.0, a orientação para a totalidade dos
objectos; 2.°, o carácter racional, cognitivo, desta
orientação.
Assim conseguimos um conceito essencial da
fIlosofia, se bem que muito formal ainda. Enri­
queceremos o conteúdo deste conceito conside­
rando os diferentes sistemas, não separadamente,
mas sim na sua conexão histórica. Trata-se, portanto,
de abranger a total visão hist6rica da fIlosofia nos
seus aspectos fundamentais. Debaixo deste ponto
de vista hão-de aparecer compreensíveis as defi­
nições contraditórias da filosofia a que atrás nos
referimos.
Tem-se designado, não sem razão, SÓCRATES
como o criador da filosofia ocidental. Nele se
manifesta claramente a característica atitude teórica
do espírito grego. Os seus pensamentos e aspi­
rações dirigem-se à construção da vida humana sobre
a reflexão, sobre o saber. SÓCRATES procura fazer
de toda a acção humana uma acção consciente,
um saber. Procura elevar a vida, com todos os
seus conteúdos, à consciência fIlosófica. Esta ten­
dência atinge o seu pleno desenvolvimento com
PLATÃO, o seu maior discípulo. Neste, a reflexão
INTRODUÇÃO 11

filosófica estende-se ao conteúdo total da cons­


ciência huma:p.a. Não se dirige apenas aos objectos
práticos, aos valores e às virtudes, como acontecia
a maioria das vezes com SÓCRATES, mas também
ao conhecimento científico. A actividade do esta­
dista, do poeta, do homem de ciência, apresenta-se
igualmente como objecto da reflexão filosófica.
A filosofia aparece-nos assim, em SÓCRATES e mais
em PLATÃO, como uma auto-reflexão do espírito
sobre os seus supremos valores teóricos e prá­
ticos, sobre os valores do verdadeiro, do bom e
do belo.
A filosofia de ARISTÓTELES apresenta um aspecto
diferente. O espírito de ARISTÓTELES dirige-se de
preferência para o conhecimento científico e seu
objecto: o ser.
Na base da sua fuosofia encontra-se uma ciência
universal do ser, a «filosofia primeira» ou meta­
física, . como se intitulou mais tarde. Esta ciência
ensina-nos acerca da essência das coisas, as conexões
e o principio último da realidade. Se a filosofia
socrático-platónica pode caracterizar-se como uma
concepção do esp{rito, deverá dizer-se de ARISTÓTELES
que a sua fuosofia se apresenta, antes de tudo, como
uma concepção do univ.erso.
A filosofia volta a ser reflexão do espírito sobre
si mesmo na época pós-aristotélica, com os estóicos
e os epicuristas. A concepção socrático-platónica
sofre, sem dúvida, uma limitação, pois somente
as questões práticas entram no espaço visual da cons­
ciência filosófica. A fuosofia apresenta-se, segundo
a frase de CICERO, como a «mestra da vida, a criadora
12 TEORIA DO CONHECIMENTO

das leis, o guia de toda a virtude». Converteu-se,


em suma, numa filosofia da vida.
No princípio da Idade Moderna voltamos a
andar pelos caminhos da concepção aristotélica.
Os sistemas de DESCARTES, ESPINOSA e LmBNITZ
revelam todos a mesma direcção para o conhe­
cimento do mundo objectivo que encontrámos no
Estagirita. A filosofia apresenta-se claramente como
uma concepção do universo. Em KANT, ao con­
trário, revive o tipo platónico. A filosofia toma
de novo o carácter de auto-reflexão, de auto­
-concepção do espírito. É verdade que se mostra
primeiramente como teoria do conhecimento ou
como fundamento crítico do conhecimento cien­
tífico. Porém, não se limita à esfera teórica, pois
prossegue até chegar a um fundamento crítico das
restantes esferas do valor. Ao lado da Crttica da
razão pura apareceu a Crftica da razão prática, que
trata a esfera do valor moral, e a Crftica do juizo,
que faz dos valores estéticos objecto de investi­
gações críticas. Também com KANT se apresenta,
pois, a filosofia como uma reflexão universal do
espírito sobre si mesmo, como uma reflexão do
homem culto sobre a sua total conduta de valores.
No século XIX ressurge o tipo aristotélico da
filosofia nos sistemas do idealismo alemão, prin­
cipalmente em SCHELLING e HEGEL. A forma exal­
tada e exclusivista como ele se manifesta provoca
um movimento contrário igualmente exclusivista.
Este movimento leva, por um lado, a uma com­
pleta desvalorização da filosofia, como a que se
revela no materialismo e no positivismo; e, por
INTRODUÇÃO 13

outro lado, a wna renovação do tipo kantiano,


como a que teve lugar com o neokantismo. O exclu­
sivismo desta renovação consiste na eliminação de
todos os elementos materiais e objectivos, que exis­
tem de modo flagrante em KANT, adquirindo assim
a filosofia um carácter puramente formal e meto­
dológico. Nesta maneira de ver radica por sua
vez o impulso que conduz a um novo movimento
do pensamento filosófico, o qual de novo volta
a dirigir-se principalmente para o material e objec­
tivo, em oposição ao formalismo e metodismo
dos neokantianos e significa, portanto, uma reno­
vação do tipo aristotélico. Encontramo-nos ainda
no meio deste movimento, que levou, por um
lado, a ep.saios de uma metafísica indutiva, como
os empreendidos por EDUARDO DE HARTMANN,
WUNDT e DRmSCH e, por outro, a uma filosofia
da intuição, como a que encontramos em BERGSON e,
sob outra forma, na moderna fenomenologia repre­
sentada por HUSSERL e SCHELER.
Este golpe de vista histórico sobre a evolução
total do pensamento filosófico levou-nos a deter­
minar outros dois elementos no conceito essencial
da filosofia. Caracterizamos um destes elemen­
tos como «concepção do eu» e o outro com. a
expressão «concepção do universo». Entre estes
dois elementos existe um particular antagonismo,
como nos mostrou a história.
Ora se salienta mais um, ora o outro; e quanto
mais um se salienta mais o outro se apaga. A his­
tória da filosofia apresenta-se, em swna, como
um movimento pendular entre estes dois elementos.
14 TEORIA DO CONHECIMENTO

Mas isso prova, precisamente, que ambos os ele­


mentos pertencem àquele conceito essenciaL Não
se trata de uma alternativa (ou um, ou outro), mas
sim de uma acumulação (tanto um como o outro).
A filosofia é simultâneamente as duas coisas: uma
concepção do eu e uma concepção do uni­
verso.
Trata-se agora de ligar os dois elementos
materiais obtidos com as duas notas formais pri­
meiramente apontadas e, assim, conseguir-se uma
completa definição essencial. Verificámos ante­
riormente que os dois caracteres principais de toda
a filosofia eram a direcção para a totalidade dos
objectos e o carácter cognoscivo desta direcção.
O primeiro destes dois caracteres experimenta agora­
uma diferenciação, provocada pelos elementos essen­
ciais que Ultimamente se obtiveram.
Por totalidade dos objectos pode entender-se
tanto o mundo exterior como o mundo interior,
tanto o macrocosmos como o microcosmos.
Quando a consciência filosófica incide sobre o
macrocosmos, teremos a fuosofia no sentido de uma
concepção do universo. pelo contrário, quando o
microcosmos constitui o objecto sobre que incide
a filosofia, verifica-se o segundo sentido desta:
a fuosofia no sentido de uma concepção do eu.
Os dois elementos essenciais Ultimamente obtidos
intercalam-se perfeitamente no conceito formal pri­
meira�ente estabelecido, pois que o completam
e corrIgem.
Podemos agora definir a essência da filosofia,
dizendo: a filosofia é uma auto-reflexão do espí-
INTRODUÇÃO 15

rito sobre o seu comportamento de valor teórico


e prático e, ao mesmo tempo, uma aspiração ao
conhecimento das últimas conexões entre as
COIsas, a uma concepção racional do universo.
Mas podemos ainda estabelecer uma conexão
mais profunda entre os dois elementos essenciais.
Como o provam PLATÃO e KANT existe entre eles
a relação de meio e fim. A reflexão do espírito
sobre si mesmo é o meio e o caminho para chegar
a uma imagem do mundo, a uma visão metafí­
sica do universo. Podemos dizer, pois, em con­
clusão: a filosofia é uma tentativa do esp{rito humano
para chegar a uma concepção do universo por meio
da auto-reflexão sobre as suas funções de valor te6ricas
e práticas.
Conseguimos esta definição de fllosofia por
um processo indutivo. Mas podemos completar
este processo indutivo com um processo dedutivo.
Este consiste em situar a fllosofia no conjunto
das funções superiores do espírito, em assinalar
o lugar que ela ocupa no sistema total da cultura.
O conjunto das funções culturais lança uma nova
luz sobre o conceito essencial que obtivemos de
fllosofia.
Entre as funções superiores do espírito e da
cultura contamos a ciência, a arte, a religião e a
moral. Se colocamos em relação com elas a filo­
sofia, esta parece distanciar-se da esfera da cul­
tura Ultimamente referida, da moral. Se a moral
se refere ao lado prático do ser humano, pois
tem por sujeito a vontade, a filosofia pertence
completamente ao lado teórico do espírito humano.
16 TEORIA DO CONHECIMENTO

Assim, a filosofia parece entrar na vizinhança


da cMncia. E, efectivamente, existe uma afini­
dade entre a filosofia e a ciência, na medida em
que ambas assentam na mesma função do espírito
humano, no pensamento. Porém, ambas se dis­
tinguem, como já dissemos, pelo seu objecto.
Enquanto que as ciências especiais têm por objecto
parcelas da realidade, a filosofia dirige-se ao seu
conjunto. Poderia, no entanto, pensar-se em
aplicar o conceito de ciência à filosofia. Bastaria
distinguir entre ciência particular e ciência uni­
versal e chamar a esta última filosofia. Mas
não é justo subordinar a filosofia à ciência, como
a um género mais elevado, e considerá-la desta
forma como uma determinada ,!spécie de ciência.
A filosofia distingue-se de toda a ciência, não só
gradual mas essencialmente, pelo seu objecto.
A totalidade do existente é mais do que uma
adição das diferentes parcelas da realidade, que
constituem o objecto das ciências especiais.
É em face destas um objecto novo, heterogéneo.
Supõe, portanto, uma nova fimção da parte do
sujeito. O conhecimento filosófico, dirigido para
a totalidade das coisas, e o científico, orientado
para as parcelas da realidade, são essencialmente
distintos, de maneira que entre a filosofia e a ciência
predomina a diversidade, não só em sentido objectivo
mas também no subjectivo.
Que relação tem agora a filosofia com as
duas restantes esferas da cultura, com a arte e a
religião? A resposta é: existe profunda afini­
dade entre estas três esferas da cultura. Todas
INTRODUçAO 17

elas estão ligadas por um vinculo comum, que


reside no seu objecto. Encontra-se o mesmo
enigma do universo e da vida em face da poesia,
da religião e da filosofia. Todas das pretendem
resolver este enigma , dar uma interpretação da
realidade, forjar uma concepção do universo.
O que as distingue é a origem desta concepção.
Enquanto que a concepção filosófica do universo
brota do conhecimento racional, a origem da con­
cepção religiosa do mesmo está na fé religiosa:
O princípio de que procede e que define o seu
espírito é a vivência dos valores religiosos, a expe­
riência de Deus. Por isso, enquanto que a concepção
filosófica do universo pretende ter valor universal
e ser susceptível de uma demonstração racional,
a aceitação da concepção religiosa do universo
depende, de modo deciSIVO, de factores subjectivos.
O acesso a da não está no conhecimento univer­
salmente válido, mas sim na experiência pessoal,
nas vivências religiosas. Existe, pois, uma dife­
rença essencial entre a concepção religiosa do uni­
verso e a filosófica; e, por último, entre a religião
e a filosofia.
A filosofia é também essencialmente distinta
da arte. Tal como a concepção do universo que
tem o homem religioso, a interpretação que dele
dá o artista não procede do pensamento puro.
Também da deve a sua origem muito mais à vivên­
cia e à intuição.
O artista e o poeta não criam a sua obra com
o intelecto, mas da resulta, sim, da totalidade das
forças espirituais. A esta diversidade de funções
2
18 TEORIA DO CONHECIMENTO

subjectivas junta-se algo no sentido objectivo.


O poeta e o artista não estão atentos directa­
mente à totalidade do ser como o está o filósofo.
O seu espírito dirige-se, em primeiro lugar, a um
ser e a um processo concretos. E, ao dar repre­
sentação a estes, elevam-nos à esfera da aparência,
do irreal. O característico desta representação con­
siste no facto de neste processo irreal se manifestar
o sentido do processo real; no processo particular
exprime-se o sentido e o significado do processo
do universo. O artista e o poeta, interpretando
primordialmente um ser ou um processo particulares,
dão indirectamente uma interpretação conjunta do
universo e da vida.
Se desejarmos definir resumidamente a posi­
ção da filosofia no sistema da cultura, devemos
dizer o seguinte: a filosofia tem duas faces; uma
dirige-se à religião e à arte, a outra para a ciên­
cia. Tem de comum com aquelas o dirigir-se
ao conjunto da realidade; com esta o seu carácter
teórico. Portanto, a fuosofIa ocupa o seu posto
no sistema da cultura entre a ciência, por um
lado, e a religião e a arte por outro, ainda
que esteja mais próximo da religião do que da
arte, pois que também a religião se dirige imedia­
tamente à totalidade do ser e procura interpretá-la.
Assim completámos o nosso processo indutivo
com outro dedutivo. Colocando a filosofia dentro
do conjunto da cultura, relacionando-a com as
diferentes esferas da cultura, demos confIrmação ao
conceito essencial de ftlosofIa que havíamos obtido
e salientámos claramente os seus diversos aspectos.
INTRODUÇÃO 19

2. A posição da teoria do conhecimento


no sistema filosófico

A nossa defuúção essencial traz como conse­


quência uma divisão da filosofia em diversas dis­
ciplinas. A filosofia é, em primeiro lugar, como
vimos, uma auto-reflexão do espírito sobre o seu
comportamento (capacidade, atitude, funções) valo­
rativo (valorizador) teórico e prático. Como refle­
xão sobre o comportamento teórico, sobre aquilo
a que chamamos ciência, a filosofia é teoria do
conhecimento científico, teoria da ciência. Como
reflexão sobre o comportamento prático do espí­
rito, sobre o que apelidamos de valores em sentido
restrito, a filosofia é teoria dos valores. Mas a reflexão
do espírito sobre si mesmo não é um fim autónomo,
mas sim um meio e um caminho para chegar a uma
concepção do universo. A filosofia é, pois, em
terceiro lugar, teoria da concepção do universo. A esfera
total da filosofia divide-se, pois, em três partes:
teoria da ciência, teoria dos valores, concepção
do universo.
Uma maior diferenciação destas partes tem como
consequência a distinção das disciplinas filosóficas
fundamentais. A concepção do universo divide-se
em metaflsica (que se subdivide em metafísica da
natureza e metafísica do espírito) e em concepção
ou teoria do universo em sentido restrito, que inves­
tiga os problemas de Deus, a liberdade e a imorta­
lidade. A teoria dos valores divide-se, em re1ação
às diferentes classes de valores, em teoria dos valores
20 TEORIA DO CONHECIMENTO

éticos, dos valores estéticos e dos valores religiosos.


Assim obtemos as três disciplinas chamadas etica,
estética e filosofia da religião. A teoria da ciência,
por último, divide-se em formal e material. Apeli­
damos a primeira de lógica, a última de teoria do
conhecimento.
Deste modo indicamos o lugar que a teoria
do conhecimento ocupa no conjunto da filosofia.
É, como vimos, uma parte da teoria da ciência.
Podemos defini-la como a teoria material da ciincia,
ou, como a teoria dos prindpios materiais do conheci­
mento humano. Enquanto que a lógica investiga
os prindpios formais do conhecimento, isto é,
as formas e as leis mais gerais do pensamento humano,
a teoria do conhecimento dirige-se aos pressupostos
materiais mais gerais do conhecimento científico.
Enquanto que a primeira prescinde da referência
do pensamento aos objectos e considera aquele
puramente em si mesmo, a última dirige-se justa­
mente para a significação objectiva do pensamento,
para a sua referência aos objectos. Enquanto que
a lógica pergunta pela correcção formal do pensa­
mento, isto é, pela sua concordância consigo mesmo,
pelas suas próprias formas e leis, a teoria do conhe­
cimento pergunta pela verdade do pensamento,
isto é, pela sua concordância com o objecto.
Portanto, pode definir-se também a teoria do
conhecimento como a teoria do pensamento ver­
dadeiro, em oposição à lógica, que seria a teoria
do pensamento correcto. Isto põe a claro a impor­
tância fundamental que a teoria do conhecimento
tem para a esfera total da filosofia. É por isso que
INTRODUçAO 21

também se lhe chama, e com razão, a cilnda .filo­


sófica fundamental, philosophia fundamentalis.
É comum dividir-se a teoria do conhecimento
em geral e espedal. A primeira investiga as refe­
rências do pensamento ao objecto em geral.
A última toma por tema de investigações críticas
os princípios e conceitos fundamentais em que
se exprime a referência do nosso pensamento
aos objectos. Principiaremos, naturalmente, pela
exposição da teoria geral do conhecimento. Antes,
porém, lancemos um golpe de vista sobre a história
da teoria do conhecimento.

3. A história da teoria do conhecimento

Não se pode falar de uma teoria do conheci­


mento, no sentido de uma disciplina filosófica
independente, nem na Antiguidade nem na Idade
Média. Na filosofia antiga encontramos nume­
rosas reflexões epistemológicas, especialmente em
PLATÃO e ARISTÓTELES. Mas as investigações epis­
temológicas estão ainda englobadas nos textos meta­
f ísicos e psicológicos. A teoria do conhecimento,
como disciplina autónoma, aparece pela primeira
vez na Idade Moderna. Deve considerar-se como seu
fundador o filósofo JOHN LOCRE. A sua obra ftUlda­
mental, An essay concerning human understanding
(<<Ensaio sobre o entendimento humano»), apare­
cida em 1690, trata de forma sistemática as ques­
tões da origem, essência e certeza do conhecimento
22 TEORIA DO CONHECIMENTO

humano. LEIBNITZ tentou na sua obra Nouveaux


essais sur l'entendement humain (<<Novos ensaios sobre
o entendimento humano»), editada como póstuma
em 1765, uma refutação do ponto de vista epis­
temológico defendido por LOCKE. Sobre os resul­
tados por este obtidos edificaram novas constru­
ções, em Inglaterra, GEORGE BERKELEY, na sua
obra A treatise concerning the principies of human
knowledge (<<Tratado dos princípios do conheci­
mento humano»), em 1710, e DAVID HUME, na
sua obra fundamental A treatise on human nature
(<<Tratado da natureza humana»), em 1739-40, e na
sua obra mais resumida Inquiry concerning human
understanding (<<Investigação sobre o entendimento
humano»), em 1748.
Como verdadeiro fundador da teoria do conhe­
cimento dentro da filosofia continental apresenta-se
MANUEL KANT.
Na sua obra epistemológica capital, a Crltica
da razão pura (1781), trata essencialmente de dar
uma fundamentação crítica do conhecimento cien­
tífico da natureza. Ele próprio chama ao método
de que se serve nela «método transcendental». Este
método não investiga a origem psicológica mas
sim a validade lógica do conhecimento� Não per­
gunta - como o método psicológico - de que
maneira surge o conhecimento, mas sim como é
possível o conhecimento, sobre que bases, sobre
que pressupostos supremos ele assenta. Devido
a este método, a filosofia de KANT chama-se, tam­
bém, abreviadamente, transcendentalismo ou criti­
CIsmo.
INTRODUçAO 23

No sucessor imediato de KANr, FICHTE, a teoria


do conhecimento aparece pela primeira vez com
o título de «teoria da ciência». Mas já nele se mani­
festa essa confusão entre a teoria do conhecimento
e a metafísica, que se acentua francamente em
SCHELLING e HEGEL e que também se encontra de
forma evidente em SCHOPENHAUER e EDUARDO
DE HARTMANN. Em oposição a esta forma meta­
f ísica de tratar a teoria do conhecimento, o neokan­
tismo que surgiu por volta do ano de setenta do
século passado, esforçou-se por traçar uma nítida
separação entre os problemas epistemológicos e
metaf ísicos. Porém, tanto procurou colocar os
problemas epistemológicos em primeiro lugar que
a filosofia correu o perigo de reduzir-se à teoria
do conhecimento. Além disso o neokantismo desen­
volveu a teoria kantiana do conhecimento numa
direcção bem determinada. O exclusivismo por
ele provocado, depressa fez ,surgir várias correntes
epistemológicas contrárias. E assim que hoje nos
encontramos perante uma multidão de direcções
epistemológicas, as mais importantes das quais vamos
passar em revista imediatamente, em conexão siste­
mática.
PRIMEIRA PARTE

TEORIA GERAL DO CONHECIMENTO

Investigação fenomenológica preUminar

o PENÓMENO DO CONHECIMENTO
E OS PROBLEMAS NELE CONTIDOS

A teoria do conhecimento é, como o seu nome


indica, uma teoria, isto é, uma explicação ou inter­
pretação filosófica do conhecimento humano. Mas,
antes de filosofar sobre um objecto, é necessário
examinar escrupulosamente esse objecto. Uma exacta
observação e descrição do objecto dev�m preceder
qualquer explicação e interpretação. E necessário,
pois, no nosso caso, observar com rigor e descrever
com exactidão aquilo a que chamamos conhecimento,
esse peculiar fenómeno de consciência. Fazêmo-lo,
procurando apreender os traços gerais essenciais
deste fenómeno, por meio da auto-reflexão sobre
aquilo que vivemos quando falamos do conhe­
cimento. Este método chama-se fenomenológico e
é distinto do psicológico. Enquanto que este último
investiga os processos psíquicos concretos no seu
26 TEORIA DO CONHECIMENTO

curso regular e a sua conexão com outros processos,


o primeiro aspira a apreender a essência geral no
fenómeno concreto. No nosso caso não descreverá
um processo de conhecimento determinado, não
tratará de estabelecer o que é próprio de um conhe­
CImento determinado, mas sim o que é essencial
a todo o conhecimento, em que consiste a sua estru­
tura geral.
Se empregamos este método, o fenómeno do
conhecimento apresenta-se-nos nos seus aspectos
fundamentais da maneira seguinte (1) :
No conhecimento encontram-se frente a frente
a consciência e o objecto, o sujeito e o objecto.
O conhecimento apresenta-se como uma relação
entre estes dois elementos, que nela permanecem
eternamente separados um do outro. O dualismo
sujeito e objecto pertence à essência do conhe­
cimento.
A relação entre os dois elementos é ao mesmo
tempo uma co"elação. O sujeito só é sujeito para
um objecto e o objecto só é objecto para um sujeito.
Ambos eles só são o que são enquanto o são para
o outro. Mas esta correlação não é reversível. Ser
sujeito é algo completamente distinto de ser objecto.
A função do sujeito consiste em apreender o objecto,
a do objecto em ser apreendido pelo sujeito.
Vista pelo lado do sujeito, esta apreensão apre­
senta-se como uma saída do sujeito para fora da

(I) Cf. para o que se segue a .Análise do Cen6meno do conhecimentoo


que dá NICOLAU HABTMANN, na sua importante obra Fundamentos de _a
MttaJCsica do Conhecimento.
TEORIA GERAL DO CONHECIMENTO 'Z7

sua própria esfera, uma invasão da esfera do


objecto e uma recolha das proprIedades deste.
O objecto não é arrastado, contudo, para dentro
da esfera do sujeito, mas permanece, sim, trans­
cendente a ele. Não no objecto mas sim no sujeito
alguma coisa se altera em resultado da função do
conhecimento. No sujeito surge algo que contém
as propriedades do objecto, surge uma «imagem» do
objecto.
Visto pelo lado do objecto, o conhecimento
apresenta-se como uma transferência das pro­
priedades do objecto para o sujeito. Ao que trans­
cende do sujeito para a esfera do objecto corres­
ponde o que transcende do objecto para a esfera
do sujeito. São ambos somente aspectos distintos
do mesmo acto. Porém, tem nele o objecto predo­
mínio sobre o sujeito. O objecto é o determinante,
o sujeito é o determinado. O conhecimento pode
defmir-se, por último, como uma determinação do
sujeito pelo objecto. Mas o determinado não é o
sujeito pura e simplesmente; mas apenas a imagem
do objecto nele. Esta imagem é objectiva, na medida
em que leva em si os traços do objecto. Sendo
distinta do objecto, encontra-se de certo modo entre
o sujeito e o objecto. Constitui o instrumento pelo
qual a consciência cognoscente apreende o seu
objecto.
Sendo o conhecimento uma determinação do
sujeito pelo objecto, não há dúvida que o sujeito
se conduz receptivamente perante o objecto. Esta
receptividade não significa, contudo, passividade.
Pelo contrário, pode falar-se de uma actividade
28 TEORIA DO CONHECIMENTO

e espontaneidade do sujeito no conhecimento.


Esta não se refere, naturalmente, ao objecto, mas
sim à imagem do objecto, no que a consciência
pode muito bem participar, contribuindo para a
sua elaboração. A receptividade perante o objecto
e a espontaneidade perante a imagem do objecto
no sujeito são perfeitamente compatíveis.
Ao determinar o sujeito, o objecto mostra-se
independente dele, transcendente a ele. Todo o
conhecimento designa (<<intende») um objecto,
que é independente da consciência cognoscente.
O carácter transcendente é próprio , enfim, de
todos os objectos do conhecimento. Dividimos os
objectos em reais e ideais. Chamamos real a tudo
o que nos é dado pela experiência externa ou
interna, ou dela se infere. Os objectos ideais
apresentam-se, pelo contrário, como irreais, como
meramente pensados. Objectos ideais são, por
exemplo, os objectos da matemática, os números
e as figuras geométricas. Pois bem: o interes­
sante é que também estes objectos ideais possuem
um ser em si, ou transcendência, no sentido epis­
temológico. As leis dos números, as relações que
existem, por exemplo, entre os lados e os ângulos de
um triângulo, são independentes do nosso pensamento
subjectivo, no mesmo sentido em que o são os
objectos reais. Apesar da sua irrealidade, fazem-lhe
frente como algo em si determinado e autónomo.
Agora, vejamos: parece existir uma contra­
dição entre a transcendência do objecto ao sujeito
e a correlação do sujeito e do objecto apontada
anteriormente. No entanto esta contradição é
TEORIA GERAL DO CONHECIMENTO 29

apenas aparente. Somente enquanto é objecto do


conhecimento é que ele, objecto, se encontra
incluso na correlação. A correlação sujeito
-objecto só é inseparável dentro do conheci­
mento; mas não em si mesma. O sujeito e o
objecto não se esgotam no seu ser de um para o
outro, pois têm além disso um ser em si. Este
consiste, para o objecto, naquilo que ainda existe
de desconhecido nele. No sujeito encontra-se
naquilo que ele é além de sujeito cognoscente.
Pois, além de conhecer, o sujeito sente e quer.
Deste modo, o objecto deixa de o ser quando sai
da correlação, ao passo que o sujeito, agora isolado,
deixa de ser sujeito cognoscente.
Assim como a correlação do sujeito e objecto
só é inseparável dentro do conhecimento, assim
também só é irreversível como correlação de conhe­
cimento. Em si mesma é muito possível uma inver­
são, a qual tem efectivamente lugar na acção. Na
acção o objecto não determina o sujeito, mas sim
o sujeito ao objecto. O que se altera não é o sujeito
mas sim o objecto. Aquele já não se conduz
receptiva, mas sim espontânea e activamente, enquanto
que este se conduz passivamente. O conhecimento e a
acção apresentam, pois, uma estrutura completa­
mente oposta.
O conceito de verdade relaciona-se intima­
mente com a essência do conhecimento. Verda­
deiro conhecimento é somente o conhecimento
verdadeiro. Um «conhecimento falso» não é prO­
priamente conhecimento, mas sim erro e ilusão.
Mas, em que consiste a verdade do conhecimento I
30 TEORIA DO CONHECIMENTO

Como dissemos, deve assentar na concordância


da «imagenu com o objecto. Um conhecimento
diz-se verdadeiro se o seu conteúdo concorda com
o objecto designado. O conceito de verdade é,
assim, o conceito de uma relação. Exprime uma
relação, a relação do conteúdo do pensamento,
da «imagenu, com o objecto. Este objecto, por sua
vez, não pode ser verdadeiro nem falso; encon­
tra-se, de certo modo, mais além da verdade e da
falsidade. Uma representação inadequada pode ser,
pelo contrário, absolutamente verdadeira. Pois,
ainda que seja incompleta, pode ser exacta, se
os aspectos que contém existem realmente no
objecto.
O conceito de verdade, obtido ao considerar­
mos o conhecimento debaixo do aspe�o feno­
menológico, pode designar-se como conceIto trans­
cendente da verdade. Tem efectivamente como pres­
suposto a transcendência do objecto. É o conceito
de verdade próprio da consciência ingénua e da
consciência científica. Pois as duas aceitam como
verdade a concordância do conteúdo do pensamento
com o objecto.
Mas não basta que um conhecimento seja
verdadeiro; há necessidade de poder alcançar a
certeza de que é verdadeiro. Isto levanta a questão:
em que é que podemos ,Çonhecer se um conhe­
cimento é verdadeiro � E a questão do critério
da verdade. Os dados fenomenológicos nada nos
dizem sobre se existe um critério semelhante.
O fenómeno do conhecimento implica apenas a
sua pretensa existência; mas não a sua existência real.
TEORIA GERAL DO CONHECIMENTO 31

Assim se esclarece o fen6meno do conheci­


mento humano nos seus aspectos principais. Ao
mesmo tempo verificámos que este fen6meno
confina com três esferas distintas. Como vimos,
o conhecimento apresenta três elementos princi­
pais: o sujeito, a «imagem» e o objecto. pelo
sUJeito, o fen6meno do conhecimento toca na
esfera psicológica j pela «imagem», com a 16gica;
pelo objecto, com a ontológica. Como processo
psicol6gico num sujeito, o conhecimento é objecto
da psicologia. Naturalmente, verifica-se que a
psicologia não pode resolver o problema da
essência do conhecimento humano. Pois, na ver­
dade, o conhecimento consiste numa apreensão
de um objecto, como nos revelou a nossa inves­
tigação fenomenol6gica. Agora bem; a psicologia,
ao investigar os processos do pensamento, pres­
cinde por completo desta referência ao objecto.
A psicologia dirige a sua atenção, como já disse,
para a origem e desenvolvimento dos processos
psicol6gicos. Pergunta como tem lugar o conhe­
cimento mas não se é verdadeiro, isto é, se concorda
com o objecto.
A questão da verdade do conhecimento está
fora do seu alcance. Se, apesar de tudo, pro­
curasse resolver esta questão, cairia numa per­
feita lLe:'t'OC�otCJLt; dt; ríXÃo yéuot;, num caminho para
uma ordem de coisas completamente distinta.
Nisto reside. justamente, o erro fundamental do
psicologismo.
pelo seu segundo elemento, o fen6meno do
conhecimento penetra na esfera lógica. A «imagem»
TEORIA DO CONHECIMENTO

do objecto no sujeito é uma entidade 16gica e,


como tal, objecto da l6gica. Mas também se vê
imediatamente que a 16gica não pode resolver
o problema do conhecimento. A 16gica investiga
as entidades 16gicas como tais, a sua arquitectura
íntima e as suas relações mútuas. Como se viu,
ela indaga da concordância do pensamento con­
sigo mesmo e não da sua concordância com o
objecto. O problema epistemol6gico encontra-se
igualmente fora da esfera 16gica. Quando se des­
conhece este facto, então dizemos que se cai no
logicismo.
Pelo seu terceiro elemento, o conhecimento
humano toca a esfera ontol6gica. O objecto aparece
perante a consciência cognoscente como algo que é
- quer se trate de um ser ideal ou de um
ser real. O ser, pelo seu lado, I: objecto da onto­
logia. Mas também aqui se vé que a ontologia
não pode resolver o problema do conhecimento.
Pois, assim como não é possível eliminar-se do
conhecimento o objecto, não pode tão pouco
eliminar-se o sujeito. Pertencem os dois ao con­
teúdo essencial do conhecimento humano, tal
como nos revelaram as considerações fenomeno-
16gicas. Quando isto se ignora e se vê o problema
do conhecimento exclusivamente pelo lado do
objecto, o resultado é cair-se no ontologismo.
Nem a psicologia, nem a 16gica, nem a onto­
logia podem, assim, resolver o problema do conhe­
cimento. Este representa um facto absolutamente
peculiar e aut6nomo. Se desejarmos atribuir-lhe
um nome especial poderemos falar, como NICOLAU
TEORIA GERAL DO CONHECIMENTO 33

HARTMANN de um facto gnoseo16gico. Queremos


com isto significar a referência do nosso pensa­
mento aos objectos, a relação do sujeito e do
objecto, que não cabe em qualquer das três dis­
ciplinas apontadas, como se viu, e que cria, portanto,
uma nova disciplina: a teoria do conhecimento.
Também as considerações fenomenológicas con­
duzem, pois, ao reconhecimento da teoria do
conhecimento como uma disciplina filosófica inde­
pendente.
Poderia pensar-se que a missão da teoria do
conhecimento se cumpre, no essencial, com a des­
crição do fenómeno do conhecimento. Mas não
acontece assim. A descrição do fenómeno não é
a sua interpretação e explicação filos6fica. O que
acabamos de descrever é aquilo que a consciência
natural entende por conhecimento. Vimos que,
segund o a concepção da consciência natural, o
conhecimento consiste em forjar «uma imagem»
do objecto; e a verdade do conhecimento é a
concordância desta «imagell1» com o objecto. Mas
averiguar se esta concepção está justificada é um
problema que se encontra para além do alcance
do problema fenomenológico. O método feno­
menológico só pode dar uma descrição do fenó­
meno do conhecimento. Sobre a base que é esta
descrição fenomenológica, tem de procurar-se uma
explicação e interpr�tação filosóficas, uma teoria
do conhecimento. E esta a missão peculiar da
teoria do conhecimento. Este facto é muitas vezes
esquecido pelos fenomenologistas, que julgam resol­
ver o problema do conhecimento descrevendo
3
34 TEORIA DO CONHECIMENTO

simplesmente o fenómeno do conhecimento. Às


objecções dos filósofos de diferente orientação
respondem limitando-se a considerar os dados
fenomenológicos do conhecimento. Porém, isto
equivale a desconhecer que a fenomenologia e a
teoria do conhecimento são coisas completamente
distintas.' A fenomenologia apenas pode esclare­
cer-nos sobre a efectiva realidade da concepção
natural, mas nunca decidir sobre a sua justeza e
veracidade. Esta questão crítica encontra-se fora
da esfera da sua competência. Também se pode
exprimir esta ideia dizendo que a fenomenologia
é um método mas não é uma teoria do conhe­
cimento.
Em consequência do que se disse, a descrição
do fenómeno do conhecimento tem apenas um
significado preparatório. A sua missão não é resolver
o problema do conhecimento mas sim conduzir-nos
à presença desse problema.
A descrição fenomenológica pode e deve des­
cobrir os problemas que se apresentam no fenó­
meno do conhecimento e fazer com que tomemos
consciência deles.
Se aprofundarmos mais uma vez a descrição
do fenómeno do conhecimento que demos ante­
riormente, verificamos sem dificuldade que são,
antes de mais, cinco problemas principais que impli­
cam os dados fenomenológicos. Vimos já que
o conhecimento significa uma relação entre um
sujeito e um objecto que entram, por assim dizer,
em contacto mútuo; o sujeito apreende o objecto.
O que em primeiro lugar se deve perguntar é,
TEORIA GERAL DO CONHECIMENTO 35

finalmente, se esta concepção da consciência natural


é justa, se realmente tem lugar este contacto
entre o sujeito e o objecto. Pode o sujeito apreen­
der realmente o objecto � Esta é a questão da
possibilidade do conhecimento humano. Deparamqs
com outro problema quando consideramos de
perto a estrutura do sujeito cognoscente. Esta
é uma estrutura dualista. O homem é um ser
espiriru:al e sensíveL Por conseguinte distingui­
mos um conhecimento espiritual e um conhe­
cimento sensíveL A fonte do primeiro é a razão;
a do último a experiência. Pergunta-se de que
fonte tira principalmente, os seus conteúdos a
consciência cognoscente. E a razão ou é a expe­
riência a fonte e a "base do conhecimento humano �
Essa é a questão da origem do conhecimento.
Atingimos o verdadeiro problema central da
teoria do conhecimento quando nos fixamos na
relação do sujeito e do objecto. Na descrição
fenomeno16gica caracterizamos esta relação como
uma determinação do sujeito pelo objecto. Porém,
pode também perguntar-se se esta concepção da
consciência natural é justa. Como veremos mais
adiante, numerosos e importantes fi16sofos defi­
niram esta relação precisamente no sentido con­
trário. Segundo eles, a verdadeira situação, com
efeito, é justamente a inversa: não é o objecto que
determina o sujeito, mas o sujeito que determina o
objecto. A consciência cognoscente não se conduz
receptivamente em presença do seu objecto, mas
sim activa e espontâneamente. Pode perguntar-se,
pois, qual das duas jnterpretações do fen6meno do
36 TEORIA DO CONHECIMENTO

conhecimento é a justa. Poderemos designar resu­


midamente este problema como a questão da ess�n­
cia do conhecimento humano.
Até aqui, ao falar do conhecimento, temos
pensado exclllJivamente numa apreensão racional
do objecto. E natural que se pergunte se, além
deste conhecimento racional, há um conhecimento
de outra espécie, um conhecimento que fosse possível
designar como conhecimento intuitivo, em oposição
ao racional. Esta é a que:stão das formas do conhe­
cimento humano.
Um último problema entrou no nosso campo
de observação no final da descrição fenomeno­
lógica: a questão do critério da verdade. Se há
um conhecimento verdadeiro em que é que pode­
mos conhecer esta verdade � Qual é o critério que
nos diz, concretamente, se um conhecimento é ou
não verdadeiro l
O problema do conhecimento divide-se, pois,
em cinco problemas particulares. Serão adiante
discutidos sucessivamente. Faremos exposição, isola­
damente, das soluções mais importantes que o
problema tenha encontrado através da história da
fIlosofIa, para imediatamente se fazer a sua crítica,
tomar uma posição perante elas e indicar, pelo
menos, a direcção em que nós próprios procuramos
a solução do problema.
I
A POSSIBILIDADE DO CONHECIMENTO

1. O dogmatismo

Entendemos por dogmatismo (de 8oY!L1X = dou­


trina fixada) a posição epistemológica para a qual
não existe ainda o problema do conhecimento.
O dogmatismo tem por supostas a possibilidade
e a realidade do contacto entre o sujeito e o
objecto. É para ele evidente que o sujeito,
a consciência cognoscente, apreenda o objecto.
Tal posição assenta numa confiança na razão
humana, que ainda não está enfraquecida pela
dúvida.
Este facto do conhecimento não constituir um
problema para o dogmatismo assenta numa noção
deficiente da essência do conhecimento. O con­
tacto entre o sujeito e o objecto não pode parecer
problemático a quem não veja que o conheci­
mento representa uma relação. E isto é o que
acontece com o dogmático. Não vê que o conhe­
cimento é essencialmente uma relação entre um
sujeito e um objecto. Crê, pelo contrário, que
38 TEORIA DO CONHECIMENTO

os objectos do conhecimento nos são dados absolu­


tamente e não meramente por obra da função
intermediária do conhecimento. O dogmático não
vê esta função. E isto passa-se não só no terreno
da percepção mas também no do pensamento.
Segundo a concepção do dogmatismo, os objectos
da percepção e os objectos do pensamento são-nos
dados da mesma maneira: directamente na sua
corporeidade. No primeiro caso passa-se por cima
da própria percepção, mediante a qual unicamente
nos são dados determinados objectos; no segundo,
da função do pensamento. E o mesmo acontece
no que se refere ao conhecimento dos valores.
Também os valores existem, pura e simplesmente,
para o dogmático. O facto de que todos os valores
pressupõem uma consciência avaliadora, perma­
nece tão desconhecido para ele como o de que
todos os objectos do conhecimento implicam uma
consciência cognoscente. O dogmático passa por
cima, tanto num caso como no outro, do sujeito
e da sua função.
Em relação com o que acabamos de dizer, pode
então falar-se de dogmatismo te6rico, ético e reli­
gioso. A primeira forma de dogmatismo refere-se
ao conheCImento teórico; as duas últimas, ao conhe­
cimento dos valores. No dogmatismo ético trata-se
do conhecimento moral; no religioso, do conhe­
cimento religioso.
Como atitude do homem ingénuo, o dogma­
tismo é a posição primeira e mais antiga, tanto
psicol6gica como historicamente. No período origi­
nário da filosofia grega domina de um modo quase
A POSSIBILIDADE DO CONHECIMENTO 39

geral. As reflexões epistemológicas não aparecem,


em geral, entre os présocráticos (os filósofos jónios
da natureza, os eleáticos, Heráclito, os pitagó­
ricos). Estes pensadores acham-se animados ainda
por uma confiança ingénua na capacidade da razão
humana. Virados totalmente para o ser, para a
natureza, não sentem que o próprio conhecimento
é um problema. Este problema põe-se com os
sofistas. São estes quem coloca pela primeira vez
o problema do conhecimento e fazem com que
o dogmatismo, em sentido restrito, resulte impos­
sível para sempre dentro da ftlosofia. A partir
de então encontramos em todos os filósofos reflexões
e)?istemológicas debaixo de uma ou de outra forma.
E verdade que Kant julgou dever aplicar a
denominação de «dogmatismo» aos sistemas meta­
físicos do século XVII (DESCARTES, LEIBNITZ, WOLFF) .
Mas esta palavra tem nele um significado mais
estreito, como se vê pela sua definição de dogma­
tismo na Crftica da razão pura (<<O dogmatismo
é o proceder dogmático da razão pura, sem a
crítica do seu próprio poder»). O dogmatismo
é para KANT a posição que cultiva a metafísica
sem ter examinado antes a capacidade da razão
humana para tal cultivo. Neste sentido, os siste­
mas prekantianos da ftlosofia moderna são, com
efeito, dogmáticos. Mas isto não quer dizer que
neles falte também toda a reflexão epistemoló­
gica e que se não sinta ainda o problema do
conhecimento. As discussões epistemológicas em
DESCARTES e LEIBNITZ provam que não acontece
assim. Não pode falar-se portanto de um dogma-
40 TEORIA DO CONHECIMENTO

tismo geral e fWldamental, mas sim de um dogma­


tismo especial. Não se trata de um dogmatismo
lógico, mas sim de um dogmatismo metaftsico.

2. O cepticismo

Extrema se tangunt. Os extremos tocam-se.


Esta afirmação é igualmente válida no campo
epistemológico. O dogmatismo converte-se muitas
vezes no seu contrário o cepticismo (de axén:a6lXt
- enganar, examinar). Enquanto que aquele con­
sidera a possibilidade de um contacto entre o
sujeito e o objecto como algo compreensível por
si mesmo, este nega essa possibilidade. SegWldo
o cepticismo, o sujeito não pode apreender o
objecto. O conhecimento, no sentido de uma
apreensão real do objecto, é impossível para ele.
Portanto, não devemos formular qualquer juízo,
mas sim abster-nos totalmente de julgar.
Enquanto que o dogmatismo desconhece de
certo modo o sujeito, o cepticismo não vê o objecto.
A sua atenção fixa-se tão exclusivamente no sujeito,
na fWlção do conhecimento, que . ignora comple­
tamente a significação do objecto. A sua atenção
dirige-se inteiramente aos factores subjectivos do
conhecimento humano. Observa a forma como
todo o conhecimento sofre a influência da índole
do sujeito e dos seus órgãos do conhecimento,
assim como das cirCWlstâncias exteriores tmeio,
círculo cultural). Desta forma escapa à sua vista
o objecto, que é, sem dúvida, necessário para
A POSSIBILIDADE DO CONHECIMENTO 41

que tenha lugar o conhecimento, pois este repre­


senta uma relação entre um sujeito e um objecto.
Do mesmo modo que o dogmatismo, também
o cepticismo pode referir-se tanto à possibilidade
do conhecimento em geral como à de um conhe­
cimento determinado. No primeiro caso, esta­
mos perante um cepticismo lógico. Também se
lhe chama cepticismo absoluto ou radical. Quando
o cepticismo se refere somente ao conhecimento
metafísico, falamos de um cepticismo metaJfsico.
No domínio dos valores distinguimos um cepti­
cismo ético e um cepticismo religioso. Segundo
o primeiro, é impossível o conhecimento moral ;
segundo o último, o religioso. Finalmente, há
que distinguir o cepticismo metódico e o cepti­
cismo sistemático. Aquele designa um método;
este, uma questão de princípio. As classes de cepti­
cismo que acabamos de enumerar não são mais
do que formas distintas desta questão. O cepti­
cismo metódico consiste em começar por pôr em
dúvida tudo o que se apresenta à consciência natural
como verdadeiro e certo, para eliminar deste modo
todo o (also e chegar a um saber absolutamente
seguro.
O cepticismo encontra-se, principalmente, na
antiguidade. O seu fundador é PIRRÓN DE ELIS
(360-270). Segundo ele, não se consegue , chegar
a um contacto do sujeito com o objecto. A cons­
ciência cognoscente é impossível apreender o seu
objecto. Não há conhecimento. De dois juízos
contraditórios, um é, fmalmente, tão exactamente
verdadeiro como o outro. Isto significa uma
42 TEORIA DO CONHECIMENTO

negação das leis lógicas do pensamento, especial­


mente do princípio de contradição. Como não
existem conhecimento nem juízo verdadeiros, PIRRÓN
recomenda a abstenção de todo o juízo, aéTCox.�.
O cepticismo intermédio ou académico, cujos
principais representantes são ARCESILAO (t 241)
e CARNEADES (t 129), não é tão radical como
este cepticismo antigo ou pirrónico. Segundo o
cepticismo académico, é impossível um saber rigo­
roso. Não temos nunca a certeza de que os nossos
juízos concordem com a realidade. Nunca pode­
remos dizer, pois, que esta ou aquela proposição
seja verdadeira; mas podemos afirmar que parece ser
verdadeira, que é provável. Não existe, portanto,
certeza rigorosa, mas somente probabilidade. O cepti­
cismo intermédio distingue-se do antigo precisamente
porque sustenta a possibilidade de chegar a uma
opinião provável.
O cepticismo posterior, cujos principais repre­
sentantes são ENESIDEMO (século I a. c.) e SEXTO
EMPIRICO (século n) , segue novamente pelo caminho
do cepticismo pirrónico.
Também na filosofia moderna encontramos o
ceptlclsmo. Mas o cepticismo que encontramos
aqui não é, a maior parte das vezes, radical e abso­
luto, mas sim um cepticismo especial. No filósofo
francês MONTAIGNE (t 1592) apresenta-se-nos, prin­
cipalmente, como um cepticismo ético ; em DAVID
HUME, como cepticismo metafísico. Também em
BAYLE não podemos falar apenas de cepticismo,
no sentido de PIRRÓN, mas sim apenas no sentido
do cepticismo intermédio. Em DESCARTES, que
A POSSIBILIDADE DO CONHECIMENTO 43

proclama o direito à dúvida metódica, não existe


um cepticismo de princípio, mas sim justamente
um cepticismo metódico.
É evidente que o cepticismo radical ou abso­
luto se anula a si próprio. Afirma que o conhe­
cimento é impossível. Mas com isto exprime
um conhecimento. Por consequência, considera
o conhecimento como possível de facto e, no
entanto, afirma simultâneamente que é impossível.
O cepticismo cai, pois, numa contradição consigo
próprio.
O céptico poderia, sem dúvida, recorrer a um
subterfúgio. Poderia formular o juízo: «o conhe­
cimento é impossível» por duvidoso, dizendo, por
exemplo : «não há conhecimento e mesmo isto
é duvidoso». Mas também da mesma forma expri­
mia um conhecimento : o de que é duvidoso
que haja conhecimento. A possibilidade do conhe­
cimento é, enfim, afirmada e posta em dúvida
ao mesmo tempo pelo céptico. Encontramo-nos,
pois, no fundo, perante a mesma contradição ante­
nor.
Como já tinham verificado os antigos cépti­
cos, o que pretende defender o cepticismo, somente
abstendo-se de juízo pode fugir à contradição
consigo próprio que acabamos de notar. Mas
isto ainda não é tudo, se virmos as coisas em todo
o seu rigor. O céptico não pode levar a cabo
qualquer acto do pensamento. Logo que o faça,
supõe a possibilidade do conhecimento e, portanto,
envolve-se nessa contradição consigo próprio. A aspi­
ração ao conhecimento da verdade carece de
44 TEORIA DO CONHECIMENTO

sentido e de valor debaixo do ponto de vista


de um rigoroso cepticismo. Mas a nossa cons­
ci�ncia dos valores morais protesta contra esta con­
cepção.
O cepticismo, que não é refutável logica­
mente, enquanto se abstém de todo o juízo e
acto do pensamento - coisa que é, sem dúvida,
pràticamente impossível - sofre a sua verdadeira
derrota no terreno da ética. Criticamos, em
última análise, o cepticismo, não porque o pode­
mos refutar logicamente, mas sim porque o
desfaz a nossa consciência dos valores morais,
que considera como um valor a aspiração à
verdade.
Já tomámos também conhecimento com uma
forma mitigada do cepticismo. Segundo ela, não
há verdade nem certeza, mas apenas probabili­
dade. Não podemos nunca ter a pretensão de
que os nossos juízos sejam verdadeiros, mas apenas
de que sejam prováveis. Mas esta forma de
, cepticismo acrescenta à contradição, inerente em
princípio à posição céptica, uma nova contra­
dição. O conceito de probabilidade pressupõe o
de verdade. Provável é aquilo que se aproxima
do verdadeiro. Quem renuncia ao conceito de
verdade tem, pois, de abandonar também o de
probabilidade.
O cepticismo geral ou absoluto é, assim, uma
posição intimamente impossível. Não se pode
afirmar o mesmo do cepticismo especial. O cepti­
cismo metafísico, que nega a possibilidade do
conhecimento do supra-sensível, pode ser falso,
A POSSIBILIDADE DO CONHECIMENTO 45

mas não encerra nenhuma íntima contradição.


O mesmo se dá com o cepticismo ético e religioso.
Mas talvez não seja lícito incluir esta posição no
conceito de cepticismo. Por cepticismo entende­
mos, em primeiro lugar, efectivamente, o cepti­
cismo geral e de princípio.
Temos, além disso, outras denominações para
as posições citadas. O cepticismo metafísico é
chamado habitualmente positivismo. Segundo esta
posição, que remonta a AUGUSTO COMTE (1798-1857),
devemos limitar-nos ao positivamente dado, aos
factos imediatos da experiência, fugindo de toda
a especulação metafísica. Só há um conhecImento
e um saber, aquele que é próprio das ciências espe­
ciais, mas não um conhecimento e um saber filo­
sófico-metafísicos. Para o cepticismo religioso usamos
a maior parte das vezes a denominação de agnos­
ticismo. Esta posição, fundada por HERBERT SPENCER
(1820 a 1903), afirma a impossibilidade de conhe­
cer o absoluto. O que melhor poderia dar-se-lhe
era a denominação de «cepticismo ético». Mas,
agora, encontramo-nos aqui perante a teoria que
vamos conhecer adiante debaixo do nome de rela­
tivismo.
Por mais errado que o cepticismo seja, não
se lhe pode negar certa importância para o desen­
volvimento espiritual do indivíduo e da Huma­
nidade. É, de certo modo, um fogo purificador
do nosso espírito, que o limpa de prejuízos e
erros e o auxilia na contínua comprovação dos
seus juízos. Quem tenha vivido intimamente o
princípio fáustico «eu sei que não podemos saber
46 TEORIA DO CONHECIMENTO

nada», procederá com a maior circunspecção e


cautela nas suas indagações. Na história da fIlo­
sofIa, o cepticismo apresenta-se como o antípoda
do dogmatismo. Enquanto que este dá aos pensa­
dores e investigadores uma confIança tão ingénua
como exagerada na capacidade da razão humana,
aquele mantém desperto o sentido dos proble­
mas. O cepticismo espeta o aguilhão da dúvida
no peito do fIlósofo, de modo que este não se con­
forma com as soluções dadas aos problemas, mas
luta continuadamente por novas e mais satisfatórias
soluções. .

3. O subjectivismo e o relativismo

O cepticismo diz-nos que não há nenhuma


verdade. O subjectivismo e o relativismo não
vão tão longe. Segundo eles, há uma verdad� ;
mas esta verdade tem uma validade limitada.
Não há qualquer verdade universalmente válida.
O stlbjectivismo, como o seu próprio nome indica,
limita a validade da verdade ao sujeito que
conhece e julga. Este pode ser tanto o sujeito
individual ou o indivíduo humano como o sujeito
geral ou o género humano. No primeiro caso
temos um subjectivismo individual; no segundo,
um subjectivismo geral. Segundo o primeiro, um
juízo é válido Unicamente para o sujeito indivi­
dual que o formula. Se qualquer de nós julga,
por exemplo, que 2 X 2 4, este juízo só é verda­
=

deiro para o próprio segundo o ponto de vista


A POSSIBILIDADE DO CONHECIMENTO 47

do subjectivismo; para os outros pode ser falso.


Para o subjectivismo geral há verdades supra­
-individuais, mas não verdades universalmente váli­
das. Nenhum juízo é válido mais do que para o
género humano. O juízo 2 X 2 = 4 é válido para
todos os indivíduos humanos ; mas é pelo menos
duvidoso que o seja para seres organizados de
modo diferente. Existe, no entanto, a possibili­
dade do mesmo juízo que é verdadeiro para os
homens, ser falso para seres de espécie diferente.
O subjectivismo geral é, assim, idêntico ao psico- ·
logismo ou antropologismo.
O relativismo está aparentado com o subjecti­
vismo. Segundo ele, não há também qualquer
verdade absoluta, qualquer verdade universalmente
válida; toda a verdade é relativa, apenas tem
uma validade limitada. Mas enquanto que o
subjectivismo faz depender o conhecimento humano
de factores que residem no sujeito cognoscente,
o relativismo sublinha a dependência de factores
externos. Como tais, considera, em primeiro lugar,
a influência do meio e do espírito do tempo, o per­
tencer-se a determinado círculo cultural e os factores
determinâtJ.tes nele contidos.
Do mesmo modo que o cepticismo, o subjecti­
vismo e o relativismo encontram-se já na anti­
guidade. Os representantes clássicos do subjecti­
vismo, são, nesta época, os sofistas. A sua tese
fundamental tem· a sua expressão no conhecido
princípio de PROTÁGORAS (século v a. C.): II OCV'r<UV
XP'Y)oc'r<Uv (.LÊ'rpv ocv�p<U7tOç (o homem é a medida
de todas as coisas). Este princípio do homo mensura,
48 TEORIA DO CONHECIMENTO

como se lhe chama abreviadamente, está formu­


lado no sentido de um subjectivismo individual
com a maior probabilidade. O subjectivismo geral,
que é idêntico ao psicologismo, como se disse,
tem encontrado defensores mesmo na actuali­
dade. O mesmo se pode dizer do relativismo.
OSWALDO SPENGLER defendeu-o na sua Decadência
do Ocidente. «Só há verdades - diz-se nesta obra ­
em relação a uma humanidade determinada». O cír­
culo de validade das verdades coincide com o
círculo cultural e temporal do qual procedem os
seus defensores. As verdades ftlosóftcas, mate­
máticas e das ciências naturais só são válidas dentro
do círculo cultural a que pertencem. Não há
uma filosofta, nem um.:i. matemática, nem uma
física universalmente válidas, Plas uma filosofta
fáustica e uma filosofta apolin �a, uma matemá­
tica fáustica e uma matemática apcilinea, etc.
O subjectivismo e o relativismo incorrem numa
contradição análoga à do cepticismo. Este julga
que não há nenhuma verdade e contradiz-se a
si mesmo. O subjectivismo e o relativismo julgam
que não há nenhuma verdade universalmente
válida; mas também há uma contradição. Uma
verdade que não seja universalmente válida repre­
senta um «contra-senso». A realidade universal da
verdade funda-se na sua própria essência. A ver­
dade significa a concordância do juízo com a reali­
dade objectiva. Se existe essa concordância não
tem sentido limitá-la a um número determi­
nado de individuos. Se existe, existe para todos.
O dilema é : ou o juízo é falso, e então não é válido
A POSSIBILIDADE DO CONHECIMENTO 49

para ninguém, ou é verdadeiro, e então é válido


para todos, é universalmente válido. Quem m.;m­
tenha o conceito de verdade e afirme, apesar disso,
que não há nenhuma verdade universalmente válida,
contradiz-se, portanto, a si próprio.
O subjectivismo e o relativismo são, no fundo,
cepticismo. Pois também eles negam a verdade,
se não directamente, como o cepticismo, indi­
rectamente, quando atacam a sua validade uni­
versal.
O subjectivismo contradiz-se também a si
mesmo, quando pretende de facto uma validade
mais do que subjectiva para o seu juízo : «toda a
verdade é subjectiva». Quando formula este juízo,
não pensa certamente : «só é válido para mim,
para os outros não tem validade». Se alguém
dissesse : «com o mesmo direito com que tu dizes
que toda a verdade é subjectiva, digo eu que toda
a verdade é universalmente válida», de certo que
não estaria de acordo com isto. Isso prova que
atribui efectivamente ao seu juízo uma validade
universal. E procede assim porque está conven­
cido de que o seu juízo reproduz uma situação
objectiva. Deste modo, supõe pràticamente a
validade universal da verdade que nega em teoria.
O mesmo se passa com o relativismo. Quando
o relativismo assenta na tese de que toda a ver­
dade é relativa, está convencido de que esta tese
reproduz uma situação objectiva e é, portanto,
válida para todos os sujeitos pensantes. Quando
SPENGLER, por exemplo, formula a proposição acima
citada - «só há verdades em relação a uma huma-
50 TEORIA DO CONHECIMENTO

nidade determinada» -, pretende dar expressão a


uma situação objectiva, que deve reconhecer todo
o homem racional. Vamos a supor que alguém
respondesse: «Em relação com os teus próprios
princípios, este juizo só é válido para o círculo
da cultura ocidental. Mas eu pertenço a um
círculo cultural completamente diferente. Seguindo
o impulso invencível do meu pensamento, tenho
de opor ao teu juízo estoutro : toda a verdade é
absoluta. Em harmonia com os teus próprios
princípios, este juízo é tão plenamente justificável
como o teu. Portanto, dispenso-me, de futuro,
dos teus juizos, que só são válidos para os homens
do círculo da cultura ocidental».
Se alguém falasse assim, SPENGLER protestaria
com todas as suas forças. Porém a coerência
lógica não estaria do seu lado, mas sim do seu
opositor.

4. O pragmatismo

o cepticismo é uma posição essencialmente


negativa. Significa a negação da possibilidade do
conhecimento. O cepticismo toma um aspecto
positivo no moderno pragmatismo (de 7tpocy(.Lcx =

acção). Como o cepticismo, também o pragma­


tismo abandona o conceito da verdade no sentido
da concordância entre o pensamento e o ser.
Porém, o pragmatismo não se detém nesta nega­
ção, mas substitui o conceito abandonado por
um novo conceito de verdade. Segundo ele,
A POSSIBILIDADE DO CONHECIMENTO 51

verdadeiro significa útil, valioso, fomentador da


vida.
O pragmatismo modifica desta forma o con­
ceito de verdade, porque parte de uma determi­
nada concepção do ser humano. Segundo ele,
o homem não é essencialmente um ser teórico
ou pensante, mas sim um ser prático, um ser de
vontade e de acção. O seu intelecto está integral­
mente ao serviço da sua vontade e da sua acção.
O intelecto é dado ao homem, não para inves­
tigar e conhecer a verdade, mas sim para poder
orientar-se na realidade. O conhecimento humano
recebe o seu sentido e o seu valor deste seu destino
prático. A sua verdade consiste na congruência
dos pensamentos com os fms práticos do homem,
em que aqueles resultem úteis e proveitosos para
o comportamento prático deste. Segundo ele, o juízo
«a vontade humana é livre» é verdadeiro porque
- e enquanto - resulta útil e proveitoso para
a vida humana e, em particular, para a vida
social.
Como verdadeiro fundador do pragmatismo
considera-se o filósofo americano WILLIAM JAMES
(t 1910), ao qual se deve também o termo «pra­
gmatismo». Outro notável representante desta cor­
rente é o fIlósofo inglês SCHILLER, que propôs
para ela o nome de «humanismo». O pragma­
tismo encontrou também adeptos na Alemanha.
Entre eles conta-se, em primeiro plano, FREDERICO
NIETZSCHE (t 1900). Partindo do seu conceito natu­
ralista e voluntarista do ser humano, diz : «A verdade
não é um valor teórico, mas apenas uma expres-
52 TEORIA DO CONHECIMENTO

são para designar a utilidade, para designar aquela


função do juízo que conserva a vida e serve a von­
tade do poden>. De modo mais paradoxal ele
exprime esta mesma ideia quando diz: «A falsi­
dade de um juízo não é uma objecção contra
esse juízo. A questão está em até que ponto
estimula a vida, conserva a vida, conserva a espécie,
mesmo, educa a espécie». Também a Filosofia do
como se, de HANS VAIHINGER, pisa terreno pra-
. gmatista. VAIHINGER apropria-se da concepção de
NmTZSCHE. Também, segundo ele, o homem é,
antes de tudo, um ser activo. O intelecto não
lhe foi . dado para conhecer a verdade, mas sim
para actuar. Mas, muitas vezes, serve à acção e
aos seus fins, justamente porque emprega repre­
sentações falsas. O nosso intelecto trabalha de
preferêncIa, segundo VA1HlNGER, com pressupostos
conscientemente falsos, com ficções. Estas apre­
sentam-se como ficções preciosas, desde o momento
em que se mostram úteis e vitais. A verdade é,
pois, «o erro mais adequado». Finalmente, tam­
bém JORGE SIMMEL defende o pragmatismo na
sua Filosofia do dinheiro. Segundo ele, são «verda­
deiras aquelas representações que resultaram em
motivos de acção adequada e vital».
Agora bem; evidentemente que não é lícito
identIficar os conceitos de «verdadeiro» e de «útih>.
Basta examinar com alguma atenção o conteúdo
destes conceitos para ver que ambos têm um
sentido completamente diferente. A experiência
revela também a cada passo que uma verdade
pode actuar nocivamente. A guerra mundial foi
A POSSIBILIDADE DO CONHECIMENTO 53

singularmente instrutiva sobre este aspecto. De


um e outro lado se acreditava ser um dever
ocultar a verdade, porque dela se temiam efeitos
nocivos.
Estas objecções não atingem, sem dúvida, as
posições de NmTzscHE e de VAlHINGER, que man­
têm, como se viu, a distinção entre o «verda­
deiro» e o «útil» . Conservam o conceito de
verdade no sentido da concordância entre o pensa­
mento e o ser. Mas, na sua opinião, não alcan­
çamos nunca esta concor:dância. Não há qual­
quer juízo verdadeiro, a não ser que a nossa cons­
ciência cognoscente trabalha com representações
conscientemente· falsas. Esta posição é, eviden­
temente, idêntica ao cepticismo e anula-se, portanto,
a si mesma. VAlHINGER pretende, com efeito,
que a tese de que todo o conteúdo do conhe­
cimento é uma ficção, é verdadeira. Os conhe­
cimentos que ele expõe na sua Filosofia do como
se pretendem ser alguma coisa mais do que ficções.
Na intenção do autor, pretendem ser a única teoria
exacta do conhecimento humano, e não um «pres­
suposto conscientemente falso».
O erro fundamental do pragmatismo consiste
em não ver a esfera 16gica, em desconhecer o valor
próprio, a autonomia do pensamento humano.
O pensamento e o conhecimento estão certa­
mente na mais estreita conexão com a vida, porque
estão inseridos na totalidade da vida psíquica
humana ; o acerto e valor do pragmatismo radi­
cam-se justamente na contínua referência a esta
conexão. Mas esta estreita relação entre o conhe-
TEORIA DO CONHECIMENTO

cimento e a vida não deve induzir-nos a passar


por cima da autonomia do primeiro e a fazer
dele uma simples função da vida. Isto só é possível,
como se provou, quando se falsifica o conceito
de verdade ou, como faz o cepticismo, quando
se nega esse mesmo conceito. Mas a nossa cons­
ciência lógica protesta contra ambas as coisas.

5. O criticismo

o subjectivismo, o relativismo e o pragma­


tismo são, no fundo, CeptlClsmo. A antítese
deste é, como vimos, o dogmatismo. Mas há
uma terceira posição que transformaria a antí­
tese numa síntese. Esta posição intermédia entre
o dogmatismo e o cepticismo chama-se criticismo
(de KP tvew examinar). O criticismo partilha com
=

o dogmatismo a confiança fundamental na razão


humana. O criticismo está convencido de que é
possível o conhecimento, de que há uma verdade.
Mas enquanto que esta confiança leva o dogma­
tismo a aceitar despreocupadamente, por assim
dizer, todas as afirmações da razão humana e a
não reconhecer limites ao poder do conhecimento
humano, o criticismo, neste caso mais perto do
cepticismo, junta à confiança no conhecimento
humano, em geral, a desconfiança perante todo
o conhecimento determinado. O criticismo examina
todas as aftrmações da razão humana e não aceita
nada despreocupadamente. Onde quer que seja
pergunta pelos motivos e pede contas à razão
A POSSIBILIDADB DO CONHECIMENTO 55

humana. O seu comportamento não é dogmá­


tico nem céptico, mas sim reflexivo e crítico.
É um meio termo entre a temeridade dogmática
e o desespero céptico. Existem sinais de criticismo
onde quer que apareçam reflexões epistemológicas.
Assim acontece na antiguidade com PLATÃO e
ARISTÓTELES e entre os estóicos j na Idade Moderna,
em DESCARTES e LEIBNITZ e ainda mais em Loco
e HUME. O verdadeiro fundador do criticismo
é, sem dúvida, KANr, cuja filosofia se chama
pura e simplesmente «criticismo». KANT chegou
a esta posição depois de ter passado pelo dogma­
tismo e pelo cepticismo. Estas duas posições
são, segundo ele, exclusivistas. Aquela tem «uma
confiança cega no poder da razão humana»;
esta é «a desconfiança pela razão pura, adoptada
sem prévia crítica». O criticismo ultrapassa estes
dois exclusivismos. O criticismo é «o método
de filosofar que consiste em investigar as fontes
das próprias afirmações e objecções e as razões
em que as mesmas assentam, método que dá
a esperança de chegar à certeza». Esta posição
parece a mais aceitável em comparação com as
outras. «O primeiro passo nas coisas da razão
pura, aquilo que caracteriza a inf"ancia da mesma,
é dogmático. O segundo passo é céptico e ajuda
à circunspecção do juízo, impulsionado pela expe­
riência. Mas é necessário um terceiro passo, o do
juízo amadurecido e viril».
Na questão da possibilidade do conhecimento,
o criticismo é a única posição justa. Mas isto
não significa que seja necessário admitir a filo-
56 TEORIA DO CONHECIMENTO

sofia kantiana. É mister distinguir entre · o cntl­


cismo como método e o criticismo como sistema.
Em KANT o criticismo significa ambas as coisas:
não s6 o método de que o fil6sofo se serve
e que opõe ao dogmatismo e ao cepticismo,
mas também o resultado determinado a que chega
com a ajuda deste método. O criticismo de KANT
representa, portanto, uma forma especial do criti­
cismo geral. Ao designar o criticismo como a
única posição justa, pensamos no criticismo geral,
e não na forma especial que ele encontrou em
KANT. Admitir o criticismo geral não significa outra
coisa, em conclusão, que não seja reconhecer
a teoria do conhecimento como uma disciplina
filos6fica independente e fundamental.
Contra a possibilidade de uma teoria do conhe­
cimento, tem-se objectado que esta ciência pre­
tende fundamentar o conhecimento ao mesmo
tempo que o pressupõe, pois ela pr6pria é conhe­
cimento. HEGEL formulou esta objecção na sua
«Enciclopédia» da seguinte maneira : «A investi­
gação do conhecimento não pode ter lugar de
outro modo senão conhecendo; tratando-se deste
pressuposto instrumento, investigá-lo não significa
outra coisa que conhecê-lo. Mas querer conhecer
antes de conhecer é tão absurdo como aquele
prudente prop6sito do escolástico que queria apren­
der a nadar antes de aventurar-se à água».
Esta objecção estaria certa se a teoria do conhe­
cimento tivesse a pretensão de carecer de todo o
pressuposto, isto é, se quisesse provar a pr6pria
possibilidade do conhecimento. Seria uma con-
A POSSIBILIDADE DO CONHECIMENTO 57

tradição, com · efeito, que alguém pretendesse asse­


gurar a possibilidade do conhecimento por meio
de conhecimento. Ao dar o primeiro passo no
conhecimento, daria como implicita tal possibi­
lidade. Mas a teoria do conhecimento não pre­
tende carecer de pressupostos neste sentido. Parte,
pelo contrário, do pressuposto de que o conhe­
cimento é possível. Partindo desta posição entra
num exame crítico das bases do conhecimento
humano, dos seus pressupostos e condições mais
gerais. Nisto não há qualquer contradição e a
teoria do conhecimento não sucumbe à objecção
de HEGEL.
11

A ORIGEM DO CONHECIMENTO

Se formulamos o juízo «o sol aquece a pedra.,


fazêmo-lo fundando-nos em determinadas percepções.
Vemos como o sol ilumina a pedra e comprovamos
ao tocá-la que a aquece paulatinamente. Para
formular este juízo apoiamo-nos, pois, nos dados
dos nossos sentidos - a vista e o tacto - ou, em
suma, na experiência.
Mas o nosso juízo apresenta um elemento que
não está contido na experiência. O nosso juízo
não diz somente que o sol ilumina a pedra e que
esta se aquece mas também afirma que entre
estes dois processos existe uma relação íntima,
uma relação ca�al. A experiência revela-nos que
um processo segue o outro. Nós acrescentamos
a ideia de que um processo resulta de outro, é causado
por outro. O juízo «o sol aquece a pedra» apre­
senta deste modo dois elementos, dos quais um
procede da experiência e o outro do pensamento.
Agora cabe perguntar : qual destes dois factores
é decisivo � A consciência cognoscente apoia-se
de preferência, ou mesmo exclusivamente, na expe­
riência ou no pensamento � De qual das duas fontes ·
de conhecimento tira ela os seus conteúdos � Onde
reside a origem do conhecimento �
60 TEORIA DO CONHECIMENTO

A questão da origem do conhecimento humano


pode ter tanto um sentido psico16gico como um
sentido 16gico. No primeiro caso diz-se : como
tem lugar psicologicamente o conhecimento no
sujeito pensante � No segundo caso : em que se
funda a validade do conhecimento � Quais são
as suas bases lógicas � Estas duas questões não
têm sido separadas a maior parte das vezes na
história da filosofia. Existe com efeito uma íntima
conexão entre elas. A solução da questão da vali­
dade supõe uma concepção psicológica determi­
nada. Quem, por exemplo, veja no pensamento
humano, na razão, a única base do conhecimento,
estará convencido da especificidade e autonomia
psicológicas dos processos do pensamento. Inver­
samente, aquele que fundamente todo o conhe­
cimento na experiência, negará a autonomia do
pensamento, inclusivamente no sentido psicoló­
gICO.

1. O racionalismo

A posIçao epistemológica que vê no pensa­


mento, na razão, a fonte principal do conheci­
mento humano, chama-se racionalismo (de ratio
= razão). Segundo ele, um conhecimento só merece
na realidade este nome quando é logicamente
necessário e universalmente válido. Quando a nossa
razão julga que uma coisa tem que ser assim e
que não pode ser de outro modo, que tem de ser
assim, portanto, sempre e em todas as partes,
então, e só então, nos encontramos ante um
A ORIGEM DO CONHECIMENTO 61

verdadeiro conhecimento, na opinião do raciona­


lismo. Um conhecimento desse tipo apresenta-se­
-nos, por exemplo, quando formulamos o juízo
«o todo é maior do que a parte», ou o juízo
«todos os corpos são extensos». Em ambos os
casos vemos com evidência que tem de ser assim
e que a razão se contradizia a si mesma se
quisesse sustentar o contrário. E porque tem
de ser assim, é também sempre e em todas
as partes assim. Estes juízos possuem, pois, uma
necessidade lógica e uma validade universal rigo­
rosa.
Pelo contrário, sucede uma COIsa muito dife­
rente com o juízo «todos os corpos são pesados>},
ou no juízo «a água ferve a 100 graus». Neste
caso só podemos ajuizar que é assim, mas não que
tem de ser assim. É perfeitamente concebível que
a água ferva a uma temperatura inferior ou supe­
rior ; e também não significa uma contradição
interna representar-se um corpo que não possua
peso, pois a nota do peso não está contida no
conceito do corpo. Estes juízos não têm, pois,
necessidade lógica. E mesmo assim falta-lhes a
rigorosa validade universal. Podemos julgar Unica­
mente que a água ferve a 100 graus e que os
corpos são pesados, até onde podemos comprová-lo.
Estes juízos só são válidos, pois, dentro de limites
determinados. A razão disto é que, nestes juízos,
encontramo-nos limitados à experiência. Isto não
acontece nos juízos primeiramente citados. Formu­
lamos o . juízo «todos os corpos são extensos»
representando o conceito de corpo e descobrindo
62 TEORIA DO CONHECIMENTO

nele a nota da extensão. Este juízo não se fimda,


pois, em qualquer experiência mas sim no pensa­
mento. Daqui resulta, portanto, que os juízos
fimdados no pensamento, os juízos que procedem
da razão, possuem necessidade lógica e validade
universal; os outros, pelo contrário, não a possuem.
Todo o verdadeiro conhecimento se funda deste
modo - assim conclui o racionalismo -, no pensa­
mento. Este é, por conseguinte, a verdadeira fonte
e base do conhecimento humano.
Uma forma determinada do conhecimento serviu
evidentemente de modelo à interpretação raciona­
lista do conhecimento. Não é difícil dizer qual é :
é o conhecimento matemático. Este é, com efeito,
um conhecimento predominantemente conceptual
e dedutivo. Na geometria, por exemplo, todos
os conhecimentos derivam de alguns conceitos e
axiomas supremos. O pensamento impera com
absoluta independência de toda a experiência,
seguindo somente as suas próprias leis. Todos os
juízos que formula, distinguem-se, além disso,
pelas características da necessidade lógica e da vali­
dade universal. Pois bem; quando se interpreta
e concebe todo o conhecimento humano em relação
a esta forma de conhecimento, chega-se ao racio­
nalismo. É esta, com efeito, uma importante
razão explicativa da origem do racionalismo, como
veremos logo que considerarmos de perto a histó­
ria do mesmo. Ela mostra que quase todos os
representantes do racionalismo procedem da mate­
mática.
A ORIGEM DO CONHECIMENTO 63

A forma mais antiga do racionalismo encon­


tra-se em PLATÃO. Este está convencido de que
todo o verdadeiro saber se distingue pelas notas
da necessidade lógica e da validade universal. Pois
bem ; o mlll1do da experiência encontra-se em
contínua alteração e mudança. Por conseguinte,
não pode procurar-se um verdadeiro saber. Como
os eleáticos, PLATÃO está proflll1damente penetrado
da ideia de que os sentidos não podem nlll1ca
conduzir-nos a um verdadeiro saber. O que lhes
d�vemos não é uma &mo..1jfL1J, mas uma �Ó�Ot;
não é um saber mas sim uma simples opinião.
Por conseguinte, se não devemos desesperar da
possibilidade de conhecimento, tem que haver,
além do mlll1do sensível, outro supra-sensível: do
qual tire a nossa consciência cognoscente os seus
conteúdos. PLATÃO chama a este mlll1do supra­
-sensível o mlll1do das Ideias. Este mW1do não
é simplesmente uma ordem lógica, mas ao mesmo
tempo uma ordem metafísica, um reino de essên­
cias ideais, metafísicas. Este reino encontra-se, em
primeiro lugar, em relação com a realidade empí­
rica. As Ideias são os modelos das coisas empíricas,
as quais devem a sua maneira de ser, a sua
essência peculiar, à sua «participação» nas ideias.
Mas o mlll1do das Ideias encontra-se, em seglll1do
lugar, em relação com a consciência cognoscente.
Não só as coisas mas também os conceitos por
meio dos quais . conhecemos coisas, são cópia
das Ideias, procedem do mlll1do das Ideias. Mas
como é isto possível ? PLATÃO responde com a
sua teoria da anamnésis. Esta teoria diz que todo
64 TEORIA DO CONHECIMENTO

o conhecimento é uma reminiscência. A alma con­


templou as Ideias numa existência pré-terrena e
recorda-se delas na ocasião da percepção sensível.
Esta não tem, pois, a significação de um funda­
mento do conhecimento espiritual, mas somente
a significação de um estímulo. A medula deste
racionalismo é a teoria da contemplação das ldeias.
Podemos chamar a esta forma de racionalismo
racionalismo transcendente.
Uma forma um pouco diferente encontra-se
em PLOTINO e SANTO AGOSTINHo. O primeiro
coloca o mundo das ideias no Nus cósmico, ou
seja Espírito do universo. As ideias já não são
um reino de essências existentes por si mas a viva
auto-manifestação do Nus. O nosso espírito é
uma emanação deste Espírito cósmico. Entre ambos
existe, por conseguinte, a mais íntima conexão
metafísica ; e, por consequência, a hipótese de
uma contemplação pré-terrena das Ideias é agora
supérflua. O conhecimento tem lugar simples­
mente recebendo o espírito humano as ldeias do
Nus, origem metafísica daquele. Esta recepção é
caracterizada por PLOTINO como uma iluminação.
«A parte racional da nossa alma é alimentada e
iluminada continuadamente de cima» . Esta ideia
é recolhida e modificada no sentido cristão por
SANTO AGOSTINHO. O Deus pessoal do cristia­
nismo ocupa o lugar do Nus. As ldeias conver­
tem-se nas ideias criadoras de Deus. O conhe­
cimento tem lugar sendo o espírito humano
iluminado por Deus. As verdades e os conceitos
supremos são irradiados por Deus para o nosso
A ORIGEM DO CONHECIMENTO 65

espírito. Mas deve observar-se que SANTO AGOS­


TINHO, sobretudo nas suas últimas obras, reco­
nhece, junto a este saber fundado na iluminação
divina, outro campo do saber, cuja fo�te é a
experiência. Sem dúvida, esta é uma zona infe­
rior do saber e SANTO AGOSTINHO é da opinião
que todo o saber, no sentido próprio e rigoroso,
procede da razão humana ou da iluminação divina.
A medula deste racionalismo é, deste modo, a teoria
da iluminação divina. Podemos caracterizar com
razão esta forma plotino-agostiniana do raciona­
lismo como racionalismo teo16gico.
Este racionalismo intensifica-se na Idade Moderna.
Verifica-se no filósofo francês do século XVII MALE­
BRANCHE. A sua tese fundamental diz : Nous voyons
toutes choses en Dieu. Por choses, entende MALE­
BRANCHE as coisas do mundo exterior. O filósofo
italiano GIOBERTI renovou esta ideia no século XIX.
Segundo ele, nós conhecemos as coisas contem­
plando imediatamente o absoluto na sua activi­
dade criadora. GIOBERTI chama ao seu sistema
ontologismo, porque parte do Ser real absoluto.
A partir de então aplica-se também esta deno­
minação a MALEBRANCHE e outras teorias afms,
de modo que agora entende-se por ontologismo,
em geral, a teoria da intuição racional do abso­
luto como fonte única, ou pelo menos principal,
do conhecimento humano. Esta concepção repre­
senta igualmente um racionalismo teológico. Para
distingui-lo da forma de racionalismo anteriormente
exposta e caracterizá-lo como uma intensificação da
mesma, podemos chamar-lhe teognostidsmo.
5
66 TEORIA DO CONHECIMENTO

Alcançou muito maior importância na Idade


Moderna uma outra forma de racionalismo. Encon­
tramo-la no fundador da filosofia moderna, DES­
CARTES, e no seu continuador LEIBNITZ. É a teoria
das ideias inatas (ideae innatae), de que se desco­
brem já os primeiros vestigios na última época
do Pórtico (Cícero) e que havia de representar
um papel tão importante na Idade Moderna.
Segundo ela, são-nos inatos certo número de
conceitos, justamente os mais imp0rtantes, os con­
ceitos fundamentais do conhecimento. Estes con­
ceitos não procedem da experiência, mas repre­
sentam um património originário da razão. Segundo
DESCARTES, trata-se de conceitos mais ou menos
acabados. LEIBNITZ é da opinião que só existem
em nós em gérmen, potencialmente. Segundo
ele, há ideitas inatas enquanto é inata do nosso
espírito a faculdade de formar certos conceitos
independentes da experiência. LEIBNITZ completa
o axioma escolástico nihil est in intellectu quod
prius non fuerit in sensu com a importante adição
nisi intellectus ipse. Pode-se designar esta forma
do racionalismo com o nome de racionalismo
imanente, em oposição ao teológico e ao transcen­
dente.
Uma última forma de racionalismo apresenta-se­
-nos no século XIX. As formas citadas até aqui
confundem o problema psicológico e o lógico.
O que é válido independentemente da expe­
riência não pode, segundo elas, deixar de ter
surgido também independentemente da experiên­
cia. Mas a forma de racionalismo a que nos estamos
A ORIGEM DO CONHECIMENTO 67

a referir distingue, pelo contrário, rigorosamente


a questão da origem psicológica e a do valor
lógico e limita-se estritamente a investigar o
fundamento deste último. Encontra-o com a ajuda
da ideia da «consciência em geral». Esta é tão
distinta da consciência concreta e individual, a que
o racionalismo moderno atribui as ideias inatas,
como do sujeito absoluto, de que o raciona­
lismo antigo deriva os conteúdos do conheci­
mento. É qualquer coisa de puramente lógico,
uma abstracção, e não significa mais do que o
conjunto dos pressupostos ou princípios supremos
do conhecimento. O pensamento continua sendo,
pois, a única fonte do conhecimento. O con­
teúdó total do conhecimento humano deduz-se
desses princípios supremos de forma rigorosamente
lógica. Os conteúdos da experiência não dão
qualquer ponto de apoio ao sujeito pensante
para a sua actividade conceptual. Assemelham-se
mais ao x das questões matemáticas; são as gran­
dezas que se trata de determin:1r. Pode caracte­
rizar-se esta forma de racionalismo como um racio­
nalismo lógico, no sentido estrito.
O mérito do · racionalismo consiste em ter
visto e feito sobressair com energia o significado
do factor racional no conhecimento humano. Mas
é exclusivista ao fazer do pensamento a fonte única
ou própria do conhecimento. Como vimos, isto har­
moniza-se com o seu ideal de conhecimento, segundo
o qual todo o verdadeiro conhecimento possui
necessidade lógica e validade universal. Mas justa­
mente este ideal é exclusivista, pois é tirado
68 TEORIA DO CONHECIMENTO

de uma forma determinada do conhecimento, do


conhecimento matemático. Outro defeito do racio­
nalismo (com excepção da forma Ultimamente
citada) consiste em respirar o espírito do dogma­
tismo. Julga poder penetrar na esfera metafísica
pelo caminho do pensamento puramente con­
ceptual. Deriva de princípios formais, proposi­
ções materiais; deduz, de meros conceitos, conhe­
cimentos. (Pense-se na intenção de derivar do
conceito de Deus a sua existência; ou de deflllir,
partindo do conceito de substância, a essência da
alma). Justamente este espírito dogmático do racio­
nalismo provocou mais do que uma vez o seu
antípoda, o empirismo.

2. O empirismo

O empirismo (de e(.L7te:�ptcx experiência) opõe


=

à tese do racionalismo (segundo a qual o pensa­


mento, a razão, é a verdadeira fonte de conhe­
cimento), a antítese que diz : a única fonte do
conhecimento humano é a experiência. Na opi­
nião do empirismo, não há qualquer património
a priori da razão. A consciência cognoscente não
tira os seus conteúdos da razão ; tira-os exclu­
sivamente da experiência. O espírito humano
está por natureza vazio ; · é uma tábua rasa, uma
folha em branco onde a experiência escreve. Todos
os nossos conceitos, incluindo os mais gerais e
abstractos, procedem da experiência.
A ORIGEM DO CONHECIMENTO 69

Enquanto que o racionalismo se deixa levar


por uma ideia determinada, por uma ideia de
conhecimento, o empirismo parte dos factos con­
cretos. Para justificar a sua posição, recorre à evolu­
ção do pensamento e do conhecimento humanos.
Esta evolução prova, na opinião do empirismo,
a alta importância da experiência na produção
do conhecimento. A criança começa por ter
percepções concretas. Com base nessas percep­
ções chega, paulatinamente, a formar representações
gerais e conceitos. Estes nascem, por conseguinte,
orgânicamente da experiência. Não se encontra
nada semelhante a esses conceitos que existem
completos no espírito ou se formam com total
independência da experiência. A experiência apre­
senta-se, pois, como a única fonte do conheci­
mento.
Enquanto que os racionalistas procedem da
matemática a maior parte das vezes, a hist9ria
do empirismo revela que os seus defensores pro­
cedem quase sempre das ci�ncias naturais. Isto é
compreensível. Nas ciências naturais a experiência
representa o papel decisivo. Nelas trata-se sobre­
tudo de comprovar exactamente os factos mediante
uma cuidadosa observação. O investigador está
completamente entregue à experiência. É muito
natural que quem trabalha de preferência ou exclu",,:
sivamente com este método das ciências naturais,
tenha tendência para de antemão colocar o factor
empírico sobre o racional. Enquanto que o ftló�
sofo de orientação matemática chega fàcilmente
a considerar o pensamento como a fonte única
70 TEORIA DO CONHECIMENTO

do conhecimento, o filósofo que vem das ciên­


cias naturais tenderá para considerar a expe­
riência como fonte e base de todo o conhecimento
humano.
É uso distinguir-se uma dupla experiência:
a interna e a externa. Aquela consiste na per­
cepção de si próprio, esta na percepção dos sen­
tidos. Há uma forma de empirismo que só admite
esta última. Esta forma de empirismo chama-se
sensualismo (de sensus sentido).
=

Já na antiguidade encontramos ideias empi­


ristas. Encontram-se, primeiro, nos sofistas e,
mais tarde, especialmente entre os estóicos e os
epicuristas. Nos estóicos encontramos pela pri­
meira vez a comparação da alma com uma tábua
por escrever, imagem que desde então se repete
continuamente. Mas o desenvolvimento sistemá­
tico do empirismo é obra da Idade Moderna,
e em especial da filosofia inglesa dos séculos xvn
e XVIII. O seu verdadeiro fundador é JOHN LOCKE
(1632-1704). LOCKE combate com toda a deci­
são a teoria das ideias inatas. A alma é um «papel
em branco», que a experiência cobre pouco a
pouco com os traços da sua escrita. Há uma
experiência externa (sensação) e uma experiência
interna (reflexão). Os conteúdos da experiência
são ideias ou representações, umas vezes simples
e outras complexas. Estas últimas compõem-se
de ideias simples. As qualidades sensíveis primárias
e secundárias pertencem a estas ideias simples. Uma
ideia complexa é, por exemplo, a ideia de coisa
ou de substância, que é o conjunto das proprie-
A ORIGEM DO CONHECIMENTO 71

dades sensíveis de uma coisa. O pensamento não


agrega um novo elemento, pois limita-se a unir
WlS com os outros os diferentes dados da expe­
riência. Por isso é que não existe nada nos nossos
conceitos que não proceda da experiência interna
ou externa. Na questão da origem psicológica
do conhecimento, LOCKE adopta, por conseguinte,
uma posição rigorosamente empirista. Outra coisa
é a questão do valor 16gico. Se bem que todos
os conteúdos do conhecimento procedam da expe­
riência - ensina LOCKE -, o seu valor lógico não
se limita de modo algum à experiência. Há,
pelo contrário, verdades que são completamente
independentes da experiência e, portanto, univer­
salmente válidas. A elas pertencem, antes de tudo,
as verdades da matemática. O fundamento da
sua validade não reside na experiência mas sim
no pensamento. LOCKE infringe, pois, o prin­
cípio empirista, admitindo verdades a priori.
O empirismo de LOCKE foi desenvolvido por
DAVID HUME (1711-1776). Hume divide as «ideias»
(perceptions) de LOCKE em impressões e ideias.
Por impressões ele entende as vivas sensações que
temos quando vemos, ouvimos, tocamos, etc.. Há,
pois, impressões da sensação e da reflexão. Por
ideias, ele entende as representações da memória
e da fantasia, menos vivas do que as impressões
e que surgem em nós baseadas nestas. Pois bem;
HUME baseia-se neste princípio : todas as ideias
procedem das impressões e não são nada mais do
que cópias destas impressões. Este princípio serve­
-lhe de critério para apreciar a validade objectiva
72 TEORIA DO CONHECIMENTO

das ideias. É mister poder assinalar a cada ideia


a impressão correspondente. Dito de outra maneira :
todos os nossos conceitos têm de poder reduzir-se
a qualquer coisa dada intuitivamente. Só então
eles estão justificados. Isto conduz HUME a aban­
donar os conceitos de substância e de causali­
dade. Em ambos deixa de fora � base intuitiva,
a impressão correspondente. Deste modo, também
ele defende o princípio fundamental do empi­
rismo, segundo o qual a consciência cognoscente
tira os seus conteúdos, sem excepção, da expe­
riência. Mas, assim como LOCKE, também HUME
reconhece na esfera matemática um conhecimento
válido. Todos os conceitos deste conhecimento
procedem também da experiência, mas as rela­
ções existentes entre eles são válidas indepen­
dentemente de toda a experiência. As proposições
que expressam estas relações, como por exem­
plo o teorema de Pitágoras, «podem ser desco­
bertas pela pura actividade do pensamento, e não
dependem de coisa alguma existente no mundo.
Ainda que não tivesse existido nunca um triân­
gulo, as verdades demonstradas por EUCLIDES
c?nservariam sempre a sua certeza e evidên­
CIa».
Um contemporâneo de HUME, o filósofo francês
CONDILLAC (1715-1780), transformou o empirismo
no sensualismo. CONDILLAC critica LOCKE por ter
admitido uma dupla fonte de conhecimento ; a expe­
riência externa e a experiência interna. A sua tese
defende, pelo contrário, que só há uma fonte de
conhecimento : a sensação. A alma só tem origi-
A ORIGEM DO CONHECIMENTO 73

nàriamente uma faculdade: a de experimentar sensa­


ções. Todas as outras saíram desta. O pensamento
não é mais do que uma faculdade apurada de experi­
mentar sensações. Deste modo fica instituído um
rigoroso sensualismo.
No século XIX encontramos o empirismo no
filósofo inglês JOHN STUART Mrr.L (1806-1873). Este
ultrapassa LOCKE e HUME, reduzindo também o
cohhecimento matemático à experiência, como única
base do conhecimento. Não há proposições a priori,
válidas independentemente da experiência. Até as
leis lógicas do pensamento têm a base da sua vali­
dade na experiência. Também elas não são mais
do que generalizações da experiência passada.
Assim como os racionalistas tendem para um
dogmatismo metafísico, os empiristas tendem para
um cepticismo metafísico. Isto tem uma relação
imediata com a essência do empirismo. Se todos
os conteúdos do conhecimento procedem da expe­
riência, o conhecimento humano fica encerrado de
antemão dentro dos limites do mundo empírico.
A superação da experiência, o conhecimento do
supra-sensível, é uma coisa impossível. Compreen­
de-se, pois, a atitude céptica dos empiristas perante
todas as especulações metafísicas.
O significado do empirismo para a história
do problema do conhecimento consiste em ter
assinalado com energia a importância da expe­
riência perante o desdém do racionalismo por
este factor do conhecimento. Mas o empirismo
substitui um extremo pelo outro, fazendo da
experiência a única fonte do conhecimento. Pois
74 TEORIA DO CONHECIMENTO

bem; isto não pode fazer-se, como o reconhe­


cem indirectamente os pr6ptios chefes do empi­
rismo, LOCKE e HUME, ao aceitarem um saber
independente de toda a experiência junto ao saber
fundado nesta. Com isto fica abandonado, em
princípio, o empirismo. Pois o decisivo não é a
questão da origem psicol6gica do conhecimento,
mas sim a do seu valor l6gico.

3. () intelectuaJi�o

o racionalismo e o empirismo são antag6-


nicos. Mas onde existem antagonistas, não falta,
geralmente, quem tente entre eles a mediação.
Um destes intentos de mediação entre o racio­
nalismo e o empirismo é a direcção epistemo16-
gica que pode denominar-se intelectualismo. Enquanto
que o racionalismo considera o pensamento como
a fonte e a base do conhecimento e o empirismo
a experiência, o intelectualismo é da opinião que
ambos os factores tomam parte na produção do
conhecimento. O intelectualismo sustenta com o
racionalismo que há juízos logicamente necessá­
rios e universalmente válidos, e não apenas sobre
os objectos ideais - isto é também admitido pelos
principais representantes do empirismo -, mas tam­
bém sobre os objectos reais. Mas enquanto que
o racionalismo considerava os elementos destes
juízos, os conceitos, como um patrim6nio a priori
A ORIGEM DO CONHECIMENTO 75

da nossa razão, o intelectualismo deriva-os da


experiência. Como indica o seu nome (intelli­
gere, de intus legere = ler no interior), a consciência
cognoscente lê na experiência, tira os seus con­
ceitos da experiência. O seu axioma fundamental
é a frase já citada : nihil est intellectu quod prius non
fuerit in sensu. É certo que também o empirismo
invocou repetidamente este axioma. Mas, para
ele, significa alguma coisa completamente dis­
tinta. O empirismo quer dizer com ele que no
intelecto, no pensamento, não existe nada dis­
tinto dos dados da experiência, nada novo. Mas
o intelectualismo afirma justamente o contrário.
Além das representações intuitivas sensíveis há,
segundo ele, os conceitos. Estes, enquanto con­
teúdos da consciência não intuitivos, são essen­
cialmente distintos daquelas, mas estão numa relação
genética com elas, supondo que se obtêm dos con­
teúdos da experiência. Deste modo, a experiência
e o pensamento formam justamente a base do conhe-
'
cimento humano.
Este ponto de vista epistemológico tinha já
sido desenvolvido na antiguidade. O seu fun­
dador é ARISTÓTELES. O racionalismo e o empi­
rismo sintetizam-se de certo modo nele. Como
discípulo de PLATÃO, ARISTÓTELES encontra-se sob
a influência do racionalismo. Como naturalista,
inclina-se, pelo contrário, para o empirismo. Desta
maneira, sentiu-se fatalmente impelido a tentar
uma síntese do racionalismo e do empirismo, que
levou a cabo da seguinte maneira : Segundo a sua
tendência empirista, coloca o mundo platónico
76 TEORIA DO CONHECIMENTO

das Ideias dentro da realidade empírica. As Ideias


já não formam um mundo que flutua livremente ;
já não se encontram por cima, mas dentro das coisas
concretas. As Ideias são as formas essenciais das
coisas. Representam o núcleo essencial e racional
da coisa, núcleo que as propriedades empíricas
encobrem como um véu. Partindo deste prin­
cípio metafísico, procura ARISTÓTELES resolver o
problema do conhecimento. Se as Ideias se encon­
tram incluídas nas coisas empíricas, já não tem
razão de ser uma contemplação pré-terrena daque­
las, no sentido platónico. A experiência alcança,
pelo contrário, uma importância fundamental. Con­
verte-se na base de todo o conhecimento. Por
meio dos sentidos obtemos imagens perceptivas
dos objectos concretos. Nestas imagens sensíveis
encontra-se incluída a essência geral, a ideia da
coisa. Só é preciso extraí-la. Isto tem lugar por
obra de uma faculdade especial da razão humana,
o vou� 1tOLlJ't'LX6�, o entendimento real ou activo.
ARISTÓTELES diz dele que <(1;rabalha como a luz».
Uumina, toma de certo modo transparentes as
imagens sensíveis, de modo que ilumina no fundo
delas a essência geral, a ideia da coisa. Esta é
recebida logo por Vou� 1t�'t'Lx6�, o entendimento
virtual ou passivo, e assim se realiza o conheci­
mento.
Esta teoria foi desenvolvida na Idade Média
por SÃO TOMÁs DE AQUINo. A tese fundamental
deste diz : cognitio intellectus nostri tota derivatur a
sensu. Começamos recebendo das coisas concre­
tas imagens sensíveis, species sensibiles. O intellectus
A ORIGEM DO CONHECIMENTO 77

agens extrai delas as imagens essenciais gerais, as


species intelligibiles. O intellectus possibilis recebe
em si estas e julga assim sobre as coisas. Dos con­
ceitos essenciais assim formados obtêm-se logo,
por meio de outras operações do pensamento,
os conceitos supremos e mais gerais, como os
que estão contidos nas leis lógicas do pensa­
mento (por exemplo, os conceitos de ser e de
não ser, que figuram no princípio de contra­
dição). Também os princípios supremos do conhe­
cimento se radicam, pois, em última análise,
na experiência ; representam relações que existem
entre conceitos procedentes da experiência. SÃO
ToMÁs declara, finalmente, seguindo ARISTÓTELES :
Cognitio principiorum provenit nobis ex sensu.

4. O apriorismo

A história da filosofia apresenta uma segunda


tentativa de mediação entre o racionalismo e o
empmsmo : o aprlOTlsmo. Também este considera
a experiência e o pensamento como fontes do
conhecimento. Mas o apriorismo defme a relação
entre a experiência e o pensamento num sentido
directamente oposto ao intelectualismo. Como o
próprio nome do apriorismo indica, o nosso
conhecimento apresenta, no sentido desta corrente,
elementos a priori, independentes da experiência.
Esta era também a opinião do racionalismo. Mas
enquanto que este considerava os factores a priori
78 TEORIA DO CONHECIMENTO

como completos, como conceitos perfeitos, para


o apriorismo estes factores são de natureza formal.
Não são conteúdos mas formas do conhecimento.
Estas formas recebem o seu conteúdo da expe­
riência e é nisto que o apriorismo se afasta do
racionalismo e se aproxima do empirismo. Os
factores a priori assemelliam-se, em certo sentido,
a recipientes vazios, que a experiência enche
com conteúdos concretos. O princípio do aprio­
rismo diz: «Os conceitos sem as intuições são
vazios, as intuições sem os conceitos são cegas».
Este princípio parece à primeira vista coincidir
com o axioma fundamental do intelectualismo
aristotélico-escolástico. E, com efeito, ambos con­
cordam em admitir um factor racional e um
factor empírico no conhecimento humano. Mas,
por outro lado, definem a relação mútua de ambos
os factores num sentido totalmente distinto. O inte­
lectualismo deriva o factor racional do empírico;
todos os conceitos procedem, segundo ele, da
experiência. O apriorismo nega, do modo mais
categ6rico, semelhante derivação. O factor a priori
não procede, segundo ele, da experiência mas
sim do pensamento, da razão. Esta imprime de
certo modo as formas a priori na matéria empírica
e constitui assim os objectos do conhecimento.
No apriorismo, o pensamento não se conduz
receptiva e passivamente perante a experiência,
como no intelectualismo, mas sim espontânea e
activamente.
O fundador deste apriorismo foi KANT. Toda
a sua filosofia está dominada pela intenção de
A ORIGEM DO CONHECIMENTO 79

mediar entre o racionalismo de LEIBNITZ e WOLFF


e o empirismo de LOCKE e HUME. Assim actua
declarando que a matéria do conhecimento pro­
cede da experiência e que a forma procede do
pensamento. Por matéria entendem-se as sensa­
ções. Estas carecem de toda a regra e ordem e
representam um verdadeiro caos. O nosso pen­
samento cria a ordem neste caos, enlaçando-as
umas com as outras e relacionando entre si os
conteúdos das sensações. Isto verifica-se mediante
as formas da intuição e do pensamento. As formas
da intuição são o espaço e o tempo. A consciência
cognoscente começa por introduzir a ordem no
tumulto das sensações, ordenando-as no espaço e
no tempo, numa justaposição e numa sucessão.
Introduz logo uma nova conexão entre os con­
teúdos da percepção com a ajuda das formas do
pensamento que, segundo KANT, são doze. Enlaça,
por exemplo, dois conteúdos da percepção por
intermédio da forma intelectual (categoria) da causa­
lidade, considerando um como causa e o outro
como efeito, estabelecendo assim entre eles uma
relação causal. Deste modo edifica a consciência
cognoscente o mundo dos seus objectos. Como
se viu já, ela toma as rédeas da experiência.
Mas o modo e a maneira de erigir o edifício,
a estrutura completa da construção, está deter­
minada pelas leis imanentes ao pensamento, pelas
formas e pelas funções a prior; da consciência.
Se colocamos o intelectualismo e o aprio­
rismo em relação com as duas posições antagónicas
entre as quais pretendem mediar, descobrimos
80 TEORIA DO CONHECIMENTO

l<;>go que o intelectualismo se aproxima do empi­


rIsmo ; o apriorismo, pelo contrário, aproxima-se
do racionalismo. O intelectualismo deriva os con­
ceitos da experiência, enquanto que o apriorismo
nega esta derivação e firma o factor racional não
na experiência mas sim na razão.

5. Critica e posição própria

Para completar as observações críticas feitas


ao expor o racionalismo e o empirismo, para
tomar em princípio uma posição entre ambas
as correntes, temos de separar rigorosamente o
problema psico16gico e o problema 16gico. Prin­
cipiemos por atender ao prim .!iro considerando
o racionalismo e o empirismo como duas respos­
tas à questão da origem psico16gica do conheci­
mento humano. E, então, ambos resultam falsos.
O empirismo, que deriva da experiência o con­
teúdo total do conhecimento e que só conhece,
portanto, conteúdos de consciência intuitivos, é
refutado pelos resultados da moderna psicologia
do pensamento. Esta, com efeito, demonstrou
que além dos conteúdos da consciência intuitivos
e sensíveis há outros não intuitivos e intelectuais.
Provou que os conteúdos do pensamento, os con­
ceitos, são algo especificamente distinto das per­
cepções e das representações : são um tipo especial
de conteúdos da consciência. Demonstrou, além
disso, que até nas mais simples percepções está
A ORIGEM DO CONHECIMENTO 81

contido um pensamento; que, portanto, não só


a experiência mas também o pensamento tem
parte na sua produção. Com isto fica eliminado
o empirismo (apreciado psicologicamente). Mas
também o racionalismo não resiste à psicologia.
Esta não sabe nada de conceitos inatos, nem tão
poucos de conceitos dimanados de fontes trans­
cendentes. A psicologia demonstra, pelo contrário,
que a formação dos nossos conceitos sofre a influência
da experiência; que, por conseguinte, na génese
dos nossos conceitos tem lugar, não só o pensa­
mento, mas também a experiência. Por isso, quando
o racionalismo faz derivar tudo do pensamento
e o empirismo tudo da experiência, deve recor­
rer-se aos resultados da psicologia, que demonstrou
que o conhecimento humano é um cruzamento
de conteúdos de consciência intuitivos e não intui­
tivos; um produto do factor racional e do factor
empírico.
Se considerarmos agora o racionalismo e o
empirismo sob o ponto de vista do problema
lógico e virmos neles duas soluções para a questão
da validade do conhecimento humano, chegamos
a um resultado semelhante. Também agora não
poderemos dar razão nem ao racionalismo nem
ao empirismo. Devemos fazer, pelo contrário,
uma distinção entre o conhecimento próprio das
ciências ideais e o que é próprio das ciências
reais. Já a história destas duas posições nos
conduz a esta distinção. Vimos, com efeito,
que os racionalistas procediam, a maior parte
das vezes, da matemática, uma ciência ideal; os
6
82 TEORIA DO CONHECIMENTO

empmstas, pelo contrário, provinham das ciên­


cias naturais, ciências reais. Uns e outros teriam
também inteira razão se limitassem as suas teorias
epistemológicas àquela esfera de conhecimento que
têm à vista. Quando o racionalista ensina que
o nosso conhecimento tem a base da sua validade
na razão, que a validade dos nossos juízos fimda-se
no pensamento, o que ensina está absolutamente
certo, tratando-se das dhJdas ideais. Quando con­
sideramos, por exemplo, uma proposição lógica
(verbi gratia o princípio da contradição) ou mate­
mática (verbi gratia a proposição «o todo é maior
do que a parte») , não necessitamos de perguntar
nada à experiência para conhecer a sua verdade.
Basta comparar entre si os conceitos contidos
nelas para ver com evidência a verdade destas
proposições. Estas proposições são, pois, váli­
das com completa independência da experiên­
cia, ou a priori, como diz a expressão técnica.
LEIBNITZ chama-llies vérités de raison, verdades de
razão.
O caso tem aspecto muito diferente na esfera
das dincias reais, das ciências da natureza e do espí­
rito. Dentro desta esfera é válida, com efeito,
a tese do empirismo ; o nosso conhecimento
descansa na experiência, os nossos juízos têm na
experiência a base da sua validade. Tomemos,
por exemplo, o juízo «a água ferve a 100 graus»
ou o juízo «KANT nasceu no ano de 1 724».
O pensamento puro não pode dizer nada sobre
se estes juízos são ou não verdadeiros. Estes
juízos assentam na experiência. Não são váli-
A ORIGEM DO CONHECIMENTO 83

dos a priori, mas sim a posteriori. São, para


dizer como LEIBNITZ, vérités de fait, verdades de
facto.
Se considerarmos, por último, as duas posi­
ções intermédias, teremos de julgar que se ajustam
aos factos psicológicos. Estes mostram, como
vimos, que na produção do conhecimento tomam
parte tanto a experiência como a razão. Mas
esta é justamente a doutrina do intelectualismo'
e do apriorismo. O nosso conhecimento tem,
segundo ambas, um factor racional e um factor
, .
empmco.
Mais difícil é tomar posição perante ambas
as teorias segundo o ponto de vista do problema
lógico. As duas são neste ponto de opinião que
não s6 há juízos de rigorosa necessidade 16gica
e validade universal sobre os objectos ideais, mas
também sobre os reais. Nisto, estão de acordo
com o racionalismo. Mas o fundamento é em
ambos os casos completamente distinto. O racio­
nalismo necessita de apoiar a validade real dos
juízos referentes a objectos reais, admitindo uma
espécie de harmonia pré-estabelecida entre as ideias
inatas ou dimanadas do transcendente e a reali­
dade. O intelectualismo consegue resolver este
problema mais f ãcilmente, pois coloca a reali­
dade empírica em íntima relação genética com
a consciência cognoscente, fazendo com que os
conceitos se obtenham do material empírico. E ver­
dade que também o intelectualismo apresenta neste
ponto uma hip6tese metafísica, que consiste em
supor que a realidade apresenta uma estrutura
84 TEORIA DO CONHECIMENTO

racional; que em todas as coisas está escondido,


de certo modo, um núcleo essencial e racional, núcleo
que no acto do conhecimento emigra, por assim
dizer, para a consciência.
Falemos de outra hipótese metaf'Isica, que reside
na teoria do intellectus agens. Este último é uma
construção metafísica, determinada pelo esquema
da potência e do acto, que domina toda a meta­
física aristotélico-tomista; mas esta construção não
tem qualquer apoio nos dados psicológicos do conhe­
cimento. O apriorismo evita ambas as dificuldades.
Nem faz aquela suposição metafísico-cosmológica
nem realiza esta construção metaf'Isico-psicológica.
Mas, com isto não se provou ainda que a sua
teoria seja exacta. A esta questão só poderá respon­
der-se quando estiver resolvido o verdadeiro pro­
blema central da teoria do conhecimento, o problema
da essência do conhecimento. Sem dúvida que
poderemos dar já razão ao apriorismo no sentido
de que também o conhecimento próprio das
ciências reais apresenta factores a priori. Não se
trata de proposições logicamente necessárias, da�
que podíamos apontar na lógica e na matemá­
tica ; mas sim de principios muito gerais, que cons­
tituem a base de todo o conhecimento científico.
A priori não significa neste caso o que é logica­
mente necessário ; mas somente o que torna possível
a experiência, isto é, o conhecimento da reali­
dade empírica ou o conhecimento próprio das
ciências reais. Um destes principios gerais de
todo o conhecimento próprio das ciências reais é,
por exemplo, o princfpio da causalidade. Este prin-
A ORIGEM DO CONHECIMENTO 85

cípio diz que todo o processo tem uma causa.


S6 partindo desta suposição podemos chegar a obter
conhecimentos na esfera das ciências reais. Seria
impossível, por exemplo, estabelecer leis gerais nas
ciências da natureza se não supusessemos que
na natureza reinam a regularidade, a ordem e a
conexão. Encontramo-nos neste ponto com uma
«condição da experiência possível&, para falar como
KANT.
m

A ESS:aNCIA DO CONHECIMENTO

o conhecimento representa uma relação entre


um sujeito e um objecto. O verdadeiro problema
do conhecimento consiste, portanto, no problema
da relação entre o sujeito e o objecto. Vimos já
que o conhecimento apresenta-se à consciência
natural como uma determinação do sujeito pelo
objecto. � será justa esta concepção � Não
deveríamos antes falar, inversamente, de uma deter­
minação do objecto pelo sujeito no conhecimento �
Qual é o factor determinante no conhecimento
humano � Tem este o seu centro de gravidade no
sujeito ou no objecto l
Pode-se responder a estas questões sem dizer
nada sobre o carácter ontológico do sujeito e do
objecto. Neste caso encontramo-nos perante uma
solução pré-metaflsica do problema. Esta solução
pode resultar favorável tanto ao objecto como ao
sujeito. No primeiro caso tem-se o objectivismo j
no segundo caso, o subjectivismo. Mas note-se que
esta última expressão significa uma coisa comple­
tamente diferente do que até aqui.
Se se faz intervir na questão o carácter onto-
16gico do objecto, é possível dar-se uma dupla
y

88 TEORIA DO CONHECIMENTO

solução. Ou se admite que todos os objectos


possuem um ser ideal, mental - esta é a tese do
idealismo , ou se afirma que além dos objectos
-

ideais há objectos reais, independentes do pensa­


mento. Esta última é a tese do realismo. Dentro
destas duas concepções fimdamentais, são possíveis,
por sua vez, distintas posições.
Finalmente, pode resolver-se o problema do
sujeito e do objecto remontando-se ao último
princípio das coisas, ao absoluto, e definindo a
partir dele a relação do pensamento e do ser.
Neste caso tem-se uma solução teológica do pro­
blema. Esta solução pode dar-se tanto num sentido
monista e panteísta como num sentido dualista e
teísta.

1. Soluções pré-metaf'uicas

a) O objectivilmo

Segundo o objectivismo, o objecto é o elemento


decisivo entre os dois membros da relação cogni­
tiva. O objecto determina o sujeito. Este tem de
reger-se por aquele. O sujeito toma sobre si,
de certo modo, as propriedades do objecto, repro­
duzindo-as. Isto supõe que o objecto enfrenta
como algo já acabad9 ' algo já definido, a cons­
ciência cognoscente. E nisto que reside justamente
a ideia central do objectivismo. Segundo ele,
os objectos são algo dado, algo que representa
uma estrutura totalmente definida, estrutura que
A BSSaNCIA DO CONHECIMENTO 89

é reconstruida, digamos assim, pela consciência


cognoscente.
PLATÃO foi o primeiro que defendeu o objecti­
vismo no sentido que acabamos de descrever.
A sua teoria das Ideias é a primeira formulação
clássica da ideia fundamental do objectivismo. As
ideias são, segundo PLATÃO, realidades objectivas.
Formam uma ordem substantiva, um reino objectivo.
O mundo sensível tem em frente o supra-sensível.
E assim como descobrimos os objectos do primeiro
na intuição sensível, na percepção, descobrimos os
objectos do segundo numa intuição não sensível :
a intuição das Ideias.
O pensamento básico da teoria plat6nica das
ideias revive hoje na fenomenologia fundada por
EDMUNDO HUSSERL. Como PLATÃO, HUSSERL dis­
tingue também rigorosamente a intuição sensível
da intuição não sensível. Aquela tem por objecto
as coisas concretas, individuais ; esta, pelo contrário,
as essências gerais das coisas.
O que PLATÃO denomina ideia chama-se em
HUSSERL essência. E assim como as ideias repre­
sentam em PLATÃO um mundo existente por si,
as essências quidditates formam em HUSSERL uma
esfera pr6pria, um reino independente. O acesso
a este reino reside, repetimos, numa intuição não
sensível. Se esta foi caracterizada por PLATÃO como
a intuição das ideias, é designada por HUSSERL
como UIIl,a «intuição das essências». HUSSERL emprega
também o termo «ideação», que faz ressaltar mais
claramente ainda o parentesco com a teoria plat6-
nica.
90 TEORIA DO CONHECIMBNTO

A coincidência entre a teoria platónica das


ideias e a teoria de HUSSERL só se refere, porém,
ao pensamento fimdamental, e não ao desenvol­
vimento particular deste. Enquanto HUSSERL se
detém no reino das essências ideais e o considera
como alvo último, PLATÃO avança até atribuir
uma realidade metafísica a estas essências. O caracte­
rístico da teoria platónica das Ideias está em definir
as ideias como realidades supra-sensíveis, como
entidades metafísicas. HUSSERL distingue-se tam­
bém de PLATÃO na substituição da mitológica
contemplação das ideias, que supõe a pré-exis­
tência da alma, pela intuição das essências depen­
dentes do fenómeno concreto, apoiando-se no
qual se realiza. Nisto há uma certa aproximação
com a teoria aristotélica do conhecimento.
O objectivismo fenomenológico alia-se em
HUSSERL com o idealismo epistemológico. HUSSERL
nega, com efeito, o carácter de realidade aos
sustentáculos concretos das essências quidditates.
O objecto, por exemplo, que sustenta a essência
«vermelho., não possui um ser real, independente
do pensamento ; em SCHELER, pelo contrário, o
objectivismo fenomenológico alia-se com o realismo
epistemológico. Isto prova que a solução objecti­
vista é uma solução pré-metafísica.
A BSSaNCIA DO CONHECIMENTO 91

b) O subjectiviano

Para o objectivismo, o centro de gravidade


do conhecimento reside no objecto ; o reino objectivo
das Ideias ou essências é, por assim dizer, o funda­
mento sobre que assenta o ediflcio do conhecimento.
O subjectivismo, pelo contrário, procura fundamen­
tar o conhecimento humano no sujeito. Para isso,
coloca o mundo das Ideias, o conjunto dos princl­
pios do conhecimento, no sujeito. Este apresenta-se
como o ponto de que depende, por assim dizer,
a verdade do conhecimento humano. Mas tenha-se
em .conta que com o sujeito não se pretende significar
o sujeito concreto, individual, do pensamento, mas
sim um sujeito superior, transcendente.
Uma passagem do objectivismo para o subjecti­
vismo, no sentido que acabamos de descrever,
teve lugar quando SANTO AGOSTINHO, seguindo
o precedente de PLOTINO, colocou o mundo
flutuante das Ideias platónicas no Espírito divino,
fazendo das essências ideais, existentes por si, con­
teúdos lógicos da razão divina, pensamento de
Deus. Desde então a verdade já não está fundada
num reino de realidades supra-sensíveis, num mundo
espiritual objectivo, mas numa consciência, num
sujeito. O peculiar do conhecimento já não con­
siste em enfrentar-se com um mundo objectivo,
mas em voltar-se para aquele sujeito supremo.
Dde, e não do objecto, recebe a consciência cognos­
cente os seus conteúdos. Por meio destes supremos
conteúdos, destes princlpios e conceitos gerais,
92 TEORIA DO CONHECIMENTO

levanta a razão o edifício do conhecimento. Este


acha-se fimdado, por conseguinte, no absoluto, em
Deus.
Também encontramos a ideia central desta
concepção na filosofia moderna. Desta vez, porém,
não é na fenomenologia mas justamente no seu
antípoda, o neokantismo, onde encontramos a
dita concepção. A escola de Marburgo é, mais
concretamente, quem defende este subjectivismo.
A ideia central do subjectivismo apresenta-se aqui
despojada de todos os acess6rios metafísicos e
psicol6gicos. O sujeito, em quem o conhecimento
aparece fimdado, em última análise, não é um
sujeito metafísico, mas puramente 16gico. É caracte­
rizado, como já vimos, por uma «consciência
em geral» . Com isto pretende-se significar o con­
junto das leis e dos conceitos supremos do nosso
conhecimento. Estes são os meios por meio dos
quais a consciência cognoscente define os objectos.
Esta definição é concebida como uma produção
do objecto. Não há objectos independentes da
consciência, pois todos os objectos são parte desta,
produtos do pensamento. Enquanto que em SANTO
AGOSTINHO corresponde algo real, um objecto,
ao produto do conhecimento, obtido segundo
as normas e conceitos supremos, numa palavra,
ao conceito, segundo a teoria da escola de Marburgo,
coincidem o conceito e a realidade, o pensa­
mento e o ser. Segundo ela, s6 há um ser
conceptual, mental, e não um ser real, indepen­
dente do pensamento. Também pelo lado do
objecto se nega, pois, toda a posição de reali-
A BSSSNCIA DO CONHECIMENTO 93

dade. Enquanto que o subjectivismo descrito chega


no «platónico cristão» a uma síntese com o realismo,
nos modernos kantianos aparece marcado de um
rigoroso idealismo. Isto prova mais uma vez
que esta posição não implica por si uma decisão
metafísica, mas que representa uma solução pré­
-metafísica.

2. Soluções metaf'ISicas

a) O realismo

Entendemos por realismo a posição epistemo­


lógica segundo a qual há coisas reais, indepen­
dentes da consciência. Esta posição admite diversas
modalidades. A primeira, tanto histórica como
psicologicamente, é o realismo ingénuo. Este realismo
não se acha ainda influenciado por nenhuma
reflexão crítica acerca do conhecimento. O pro­
blema do sujeito e do objecto ainda não existe
para ele. Não distingue em absoluto entre a
percepção, que é um conteúdo da consciência
e o objecto apercebido. Não vê que as coisas
não nos são dadas em si mesmas, imediatamente,
na sua corporeidade, mas somente como conteúdos
da percepção. E como identifica os conteúdos
da percepção com os objectos, atribui a estes
todas as propriedades incluídas naqueles. As coisas
são, segundo ele, exactamente tais como as perce­
bemos. As cores que vemos nelas pertencem­
-lhes como qualidades objectivas. O mesmo se
94 TEORIA DO CONHECIMENTO

passa com o seu sabor e odor, com a sua dureza


ou brandura, etc.. Todas estas propriedades per­
tencem às coisas objectivas e independentemente
da consciência perceptiva.
Diferente do realismo ingénuo é o realismo
natural. Este já não é ingénuo, mas está influen­
ciado por reflexões críticas sobre o conhecimento.
Isto revela-se no facto de que já não identifica
o conteúdo da percepção e o objecto, mas sim
distingue um do outro. Não obstante sustenta
que os objectos correspondem exactamente aos con­
teúdos da percepção. Para o defensor do realismo
natural é tão absurdo como para o realista ingé­
nuo que o sangue não seja vermelho, ou que
o açúcar não seja doce, mas sim que o vermelho
e o doce s6 existam na nossa consciência. Também
para ele estas são propriedades objectivas das
coisas. Por ser esta a opinião da consciência
natural, chamamos a este realismo «realismo natu­
ral».
A terceira forma de realismo é o realismo
cr{tico, que se chama crítico porque assenta em
considerações de crítica do conhecimento. O realismo
crítico não acredita que convenham às coisas todas
as propriedades inseridas nos conteúdos da per­
cepção, mas é, pelo contrárIO, da opinião que
todas as propriedades ou qualidades das coisas
que apreendemos s6 por um sentido, como as
cores, os sons, os odores, os sabores, etc., existem
Unicamente na nossa consciência. Estas qualida­
des surgem quando determinados estímulos externos
actuam sobre os nossos 6rgãos dos sentidos. Repre-
A ESS:aNCIA DO CONHECIMENTO 95

sentam, por conseguinte, reacções da nossa cons­


ciência, cuja índole depende, naturalmente, da
organização desta. Não têm, pois, carácter objectivo,
mas sim subjectivo. É no entanto necessário
supor nas coisas certos elementos objectivos e
causais para explicar o aparecimento destas quali­
dades. O facto do sangue nos parecer vermelho
e o açúcar doce tem de estar fundado na natureza
destes objectos.
Estas três formas de realismo encontram-se
já na filosofia antiga. O realismo ingénuo é a
posição geral no primeiro período do pensamento
grego. Mas já em DEMÓCRITO (470-370) encon­
tramos o realismo crítico. Segundo DEMÓCRITO,
só existem átomos com propriedades quantita­
tivas. Disto se conclui que todo o qualitativo
deve considerar-se como acção dos nossos sen­
tidos. A cor, o sabor e tudo o mais que os con­
teúdos da percepção apresentam além dos elementos
quantitativos de tamanho, forma, etc., deve atri­
buir-se ao sujeito. Esta doutrina de DEMÓCRITO
não conseguiu, no entanto, impor-se na filosofia
grega. Uma das principais causas disso deve
encontrar-se na grande influência exercida por
ARISTÓTELES. Este defende, ao contrário de DEMÓ­
CRITO, o realismo natural. ARISTÓTELES é de opinião
que as propriedades percebidas pertencem também
às coisas, independentemente da consciência cognos­
cente. Esta doutrina manteve o seu predomínio
até à Idade Moderna. Só então reviveu a teoria
de DEMÓCRITO. A ciência da natureza foi quem
favoreceu esta ressurreição. GALILEU foi o pri-
96 TEORIA DO CONHECIMENTO

meiro que defendeu novamente a tese de que a


matéria s6 apresenta propriedades espaciais-tempo­
rais e quantitativas, enquanto que todas as outras
propriedades devem considerar-se como subjectivas.
DESCARTES e HOBBES deram a esta teoria um
fundamento mais exacto. JOHN Loco foi quem
mais contribuiu para a difundir com a sua divi­
são das qualidades sensíveis em primárias e secun­
dárias. As primeiras são aquelas que percebemos
por meio de vários sentidos, como o tamanho,
a forma, o movimento, o espaço, o número.
Estas qualidades possuem carácter objectivo, são
propriedade das coisas. As qualidades secundá­
rias, isto é, aquelas que s6 apercebemos por
um sentido, como as cores, os sons, os odores,
os sabores, a brandura, a dureza, etc., têm, pelo
contrário, carácter subjectivo, ex stem somente na
nossa consciência, ainda que devam supor-se nas
coisas elementos objectivos correspondentes a elas.
Como nos revela esta síntese hist6rica, o
realismo critico fundamenta principalmente toda
a sua concepção das qualidades secundárias (1)
em razões tiradas da ciência da natureza. A flsica
é quem as oferece em primeiro lugar. A física
concebe o mundo como um sistema de subs­
tâncias definidas de um modo puramente quan­
titativo. Nada qualitativo tem direitos de cidadania
no mundo físico, sendo todo o qualitativo expulso
dele ; e também as qualidades secundárias. O físico,
porém, não as elimina simplesmente. Ainda que

(1) Cf. AUGUSTO MEsso. lntrodufão a teoria do conhecimento.


A ESSaNCIA DO CONHECIMENTO 97

considere que só surgem na consciência, concebe-as


causadas por processos objectivos, reais. Assim,
por exemplo, as vibrações do éter constituem o
estímulo objectivo para o aparecimento das sensa­
ções de cor e claridade. A física moderna con­
sidera as qualidades secundárias, deste modo, como
reacções da consciência a determinados estímulos, os
quais não são as próprias coisas, mas sim certas acções
causais das coisas sobre os órgãos dos sentidos.
A fisiologia proporciona ao realismo crítico
novas razões. A fisiologia mostra que também
não apercebemos imediatamente as acções das coisas
sobre os nossos órgãos dos sentidos. O facto de
que os estímulos alcancem os órgãos dos sentidos
não significa que sejam já conscientes. Neces­
sitam de passar primeiro por estes órgãos ou
pela pele para chegar aos nervos transmissores
propriamente da sensação. Estes nervos transmi­
tem-nos ao cérebro. Se nos lembrarmos da estru­
tura extremamente complicada do cérebro, é pouco
provável que o processo que surge finalmente
no córtex cerebral, como resposta a um estí­
mulo físico, tenha ainda alguma analogia com este
estímulo.
Por último, também a psicologia proporciona
ao realismo crítico importantes argumentos. A análise
psicológica do processo da percepção revela que as
sensações não constituem por si só as percepções.
Em toda a percepção existem certos elementos
que não devem considerar-se simplesmente como
reacções a estímulos objectivos, isto é, como sensa­
ções, mas como adições da consciência percep-
'I
98 TEORIA DO CONHECIMENTO

tiva. Se tomarmos, por exemplo, um bocado


de gesso, não temos somente a sensação de branco
e a sensação de peso e suavida.de determinadas,
mas notamos também no objecto gesso uma
forma e extensão determinadas e aplicamos-lhe
determinados conceitos, como os de coisa e pro­
priedade. Estes elementos do conteúdo da nossa
percepção não podem reduzir-se pura e simples­
mente a estímulos objectivos, pois representam
adições da nossa consciência. Ainda que isto não
prove, no entanto, que estas adições devam consi­
derar-se como produtos puramente espontâneos
da nossa consciência e que não eXIste nenhum
nexo entre elas e os estímulos objectivos, seme­
lhantes descobrimentos psicológicos tomam, em
todo o caso, absolutamente inverosímil a tese do
realismo ingénuo, segundo a qual a nossa cons­
Clência ref1ectiria simplesmente, como um espelho,
as coisas exteriores.
O realismo crítico serve-se, pois, de razões
físicas, fisiológicas e psicológicas contra o realismo
,
ingénuo e contra o realismo natural. E certo que
estas razões não ' possuem um carácter absoluta­
mente convincente, mas apenas um carácter de
probabilidade. Fazem parecer a concepção do
realismo ingénuo e natural inverosímil, mas não
impossível. Com efeito, deve dizer-se que o
realismo natural encontrou recentemente uma defesa,
que se funda em todos os conhecimentos da fisiologia
e psicologia modernas (I ) .

(I) Cf. GREDT, Nllestro mllndo exterior, 1920.


A ESS:&NCIA DO CONHECIMENTO 99

Muito mais importante do que a forma pela


qual o realismo crítico defende a sua opinião sobre
as qualidades secundárias (na qual discorda do
realismo ingénuo e natural) é a defesa que faz
da sua tese fundamental, comum ao realismo ingénuo
e ao natural, de que há objectos independentes
da consciênCIa. Os três argumentos segumtes
podem considerar-se como os mais importantes
de que o reahsmo crítico se serve a favor desta tese.
Em primeiro lugar, o realismo crítico serve-se
de uma diferença elementar entre as percepções
e as representações. Esta diferença consiste em que
nas percepções trata-se de objectos que podem
ser apercebidos por vários sujeitos, enquanto que
os conteúdos das representações só são percep­
tíveis para o sujeito que os possui. Se alguém
mostra a outros a pena que leva na mão, esta
é apercebida por uma pluralidade de sujeitos ;
mas se alguém recorda uma paisagem que viu,
ou se representa na sua imaginação uma paisa­
gem qualquer, o conteúdo dessas representações
só existe para ele. Os objectos da percepção
são perceptíveis, pois, para muitos indivíduos ; os
conteúdos da representação somente o são para
um. Esta inter-individualidade dos objectos da per­
cepção só pode explicar-se, na opinião do realismo
crítico, por meio da hipótese da existência de objectos
reais, que actuam sobre os diversos sujeitos e provo­
cam neles as percepções.
Outra razão usada pelo realismo crítico é a indepen­
dinda das percepções relativamente à vontade. Enquanto
que podemos evocar, modificar e fazer desa-
100 TEORIA DO CONHECIMENTO

parecer à vontade as representações, isto não é


possível nas percepções. A sua chegada e a sua
partida, o seu conteúdo e o seu vigor são inde­
pendentes da nossa vontade. Esta il1dependência
tem a sua única explicação possível, segundo o
realismo critico, no facto de que as percepções
são causadas por objectos que existem indepen­
dentemente do sujeito perceptivo, isto é, que existem
na realidade.
Mas a razão de mais peso que o realismo crítico
faz valer é a independincia dos objectos da percepção
relativamente às nossas percepções. Os objectos da
percepção continuam a existir, ainda que tenhamos
subtraído os nossos sentidos à sua influência e,
consequentemente, já não os percebamos. Pela
manhã encontramos no mesmo sítio a mesa de
trabalho que abandonámos na véspera. A cons­
ciência da independência dos objectos da nossa
percepção em relação a esta, torna-se mais clara,
porém, quando os objectos se transformaram durante
o tempo em que não os apercebemos. Vemos
na primavera uma paisagem que admirámos pela
última vez no inverno e encontrámo-la totalmente
modificada. Esta mudança produziu-se sem contar
para nada com a nossa cooperação. A inde­
pendência dos objectos da percepção perante a
consciência perceptiva ressalta neste caso clara­
mente. O realismo crítico conclui daqui que
na percepção encontramo-nos com objectos que
existem fora de nós, que possuem um ser real.
O realismo crítico trata, como se vê, de asse­
gurar a realidade por um caminho racional. Esta
A BSS:aNCIA DO CONHECIMENTO 101

forma de a defender parece, contudo, insuficiente


a outros representantes do realismo. A realidade
não pode, segundo eles, ser provada, mas somente
experimentada e vivida. As experiências da von­
tade são, mais concretamente, as que nos dão a
certeza da existência de objectos exteriores à
consciência. Assim como com o nosso intelecto
estamos em presença do modo de ser das coisas,
a sua essência, existe uma coordenação análoga
entre a nossa vontade e a realidade das coisas,
a sua existência. Se fôssemos puros seres inte­
lectuais, não teríamos consciência alguma da reali­
dade. Devemos esta exclusivamente à nossa von­
tade. As coisas opõem resistência às nossas volições
e desej os, e nestas resistências vivemos a reali­
dade das coisas. Estas apresentam-se à nossa cons­
ciência como reais, justamente porque se fazem
sentir como factores adversos na nossa vida volI­
tiva. A esta forma de realismo é costume chamar-se
realismo volitivo.
O realismo volitivo é um produto da filo­
sofia moderna. Encontramo-lo pela primeira vez
no século XIX. Pode-se considerar como seu
primeiro representante o filósofo francês MAINE
DE BIRAN. O que depois mais se esforçou por
o fundamentar e desenvolver foi GUILHERME DILTHEY.
O seu discípulo FRISCHEISEN KOHLER continuou
a dissertar sobre os seus resultados, procurando
superar, desta posição, o idealismo lógico dos
neokantianos. O realismo volitivo aparece também,
Ultimamente, na fenomenologia de direcção realista,
em especial em MAx SCHBLER .
102 TEORIA DO CONHECIMENTO

Vimos as diversas formas do realismo. Todas


elas têm por base a mesma tese : que há objectos
reais, independentes da consciência. S6 pode­
remos decidir sobre se esta tese tem ou não
razão de ser, depois de termos tido conheci­
mento da antítese do realismo. Esta antítese é o
idealismo.

b) o idealismo

A palavra idealismo usa-se em sentidos muito


diferentes. Temos de distinguir principalmente
entre idealismo no sentido metaJfsico e idealismo
no sentido epistemológico. Chamamos idealismo
metafísIco à convicção de que a realidade tem
por fWl<lamento forças espirituais, potências ideais.
Aqui s6 temos de tratar, naturalmente, do idea­
lismo epistemol6gico. Este sustenta a tese de que
não há coisas reais, independentes da consciência.
Agora bem; como, suprimidas as coisas reais,
s6 ficam duas classes de objectos, os de cons­
ciência (as representações, os sentimentos, etc.),
e os ideais (os objectos da 16gica e da matemática),
o idealismo tem de considerar necessàriamente
os pretensos objectos reais como objectos de
consciência ou como objectos ideais. Resultam
daqui duas formas de idealismo : o subjectivo ou
psicol6gico e o objectivo ou 16gico. Aquele afirma
o primeiro membro da alternativa anterior e este
o segundo.
Consideremos primeiro o idealismo subjectivo
ou psicológico. Toda a realidade está encerrada,
A BSSSNCIA DO CONHECIMENTO 103

segundo ele, na consciência do sujeito. As COISas


não são mais do que conteúdos da consciência.
Todo o seu ser consiste em serem apercebidas
por nós, em serem conteúdos da nossa consciência.
A nossa consciência, com os seus vários conteúdos,
é a única coisa real. Por isso se chama também
a esta corrente consciencialismo (de conscientia = cons­
ciência).
O representante clássico desta corrente é o filósofo
inglês BERKELEY. Ele encontrou a fórmula exacta
para este ponto de vista : esse = percipi, o ser das
coisas consiste em ser apercebidas. A pena que
tenho agora na mão não é, deste modo, outra
coisa que um complexo de sensações visuais e
tácteis. Por detrás destas não se encontra nenhuma
coisa que as provoque na minha consciência, se
não que o ser da pena se esgota no seu ser aper­
cebido. BERKELEY, sem dúvida, só aplicava o seu
princípio às coisas materiais, e não às almas,
às quais reconhecia uma existência independente.
O mesmo acontecia em relação a Deus, a quem
considerava como a causa do aparecimento das
percepções sensíveis em nós. Queria deste modo
explicar a independência das últimas relativamente
aos nossos desejos e volições. O idealismo de
BERKELEY tem, pois, uma base metafísica e teoló­
gica. Esta base desaparece nas novas e novíssimas
formas do idealismo subjectivo. Como taIS são
de citar as seguintes : o empirio-criticismo, defen­
dido por AVENARIUS e MACH, cuja tese diz que
não há senão sensações ; a filosofia da iman�ncia,
de SCHUPPE e de SCHUBERT-SOLDERN, segundo
104 TEORIA DO CONHECIMENTO

a qual todo o ser é imanente à consciência. No


filósofo Ultimamente apontado, o idealismo subjec­
tivo converte-se em solipsismo, que considera a cons­
ciência do sujeito cognoscente como a única existente.
O idealismo objectivo ou lógico é essencialmente
distinto do subjectivo ou psicológico. Enquanto
que este parte da consciência do sujeito indivi­
dual, aquele toma por ponto de partida a cons­
ciência objectiva da ciência, tal como se exprime
nas obras científicas. O conteúdo desta consciência
não é um complexo de processos psicológicos,
mas sim um conjunto de pensamentos, de juízos.
Por outras palavras, não há nada psicológicamente
real, mas sim logicamente ideal ; é um sistema
de juízo. Se se experimenta explicar a realidade
por esta consciência ideal, por esta «consciência
geral», isto não significa fazer das coisas dados
psicológicos, conteúdos da consciência, mas reduzi-las
a algo ideal, a elementos lógicos. O idealista lógico
não reduz o ser das coisas a serem apercebidas,
como o idealista subjectivo, mas distingue entre
o dado da percepção e a própria percepção. Mas
no dado da percepção também não vê uma refe­
rência a um objecto real, como faz o realismo
crítico ; considera antes como uma illcógnita, isto é,
considera como o problema do conhecimento
deftnir logicamente o dado da percepção e con­
vertê-lo, deste modo, em objecto do conheci­
mento. Em oposição ao realismo, segundo o
qual os objectos do conhecimento existem inde­
pendentemente do pensamento, o idealismo lógico
considera os objectos como concebidos pelo pensa-
A ESSaNCIA DO CONHECIMENTO 105

mento. Enquanto, pois, o idealismo subjectivo vê


no objecto do conhecimento algo de psicológico,
um conteúdo da consciência, e o realismo o consi­
dera como algo real, como um conteúdo parcial do
mundo exterior, o idealismo lógico tem-no por algo
lógico, por um produto do pensamento.
Tentemos tornar mais clara a diferença
entre estas concepções com um exemplo. Tome­
mos um bocado de gesso. Para o realista o
gesso existe fora e independentemente da nossa
consciência. Para o idealista subjectivo o gesso
existe só na nossa consciência. O seu inteiro
ser consiste em que o apercebemos. Para o
idealista lógico o objecto gesso não existe nem
em nós nem fora de nós ; não existe pura e simples­
mente, necessita de ser concebido. Mas isto tem
lugar devido ao nosso pensamento. Formando
o conceito de gesso, o nosso pensamento con­
cebe o objecto gesso. Para o idealista lógico
o gesso não é, portanto, nem uma coisa real
nem um conteúdo da consciência ; é um con­
ceito. O ser do gesso não é, segundo ele, nem
um ser real nem um ser consciente, mas um ser
lógico-ideal.
O idealismo lógico é chamado panlogismo,
pois reduz toda a realidade a algo lógico. Hoje
é defendido pelo neokantismo, especialmente pela
escola de Marburgo. No fundador desta escola,
HERMANN COHEN, lemos esta frase, que encerra
a tese fundamental de toda esta teoria do conhe­
cimento : «O ser não descansa em si mesmo ;
o pensamento é quem o faz SurgiDo O neokan-
106 TEORIA DO CONHECIMENTO

tismo pretende encontrar esta concepção em KANr.


Mas como veremos mais concretamente, não
,

poderemos falar a sério disso. Foi antes um sucessor


de KANT, FICHTB, quem deu o passo decisivo para
o aparecimento do idealismo lógico, elevando
o eu cognoscente à dignidade do eu absoluto
e procurando derivar deste toda a realidade.
Mas nele como em SCHELLING, o lógico não
,

está, contudo, absolutamente diferenciado, mas sim


confundido com o psicológico e com o metafí­
sico. Somente HEGEL defuúu o princípio da reali­
dade como uma Ideia lógica, fazendo, portanto,
do ser das coisas um ser puramente lógico e
chegando assim a um panlogismo consequente.
Este panlogismo apresenta ainda, contudo, um
elemento dinâmico-irracional, existente no método
dialéctico. Nisto se distingue o panlogismo hege­
liano do neokantismo, que eliminou este elemento
e instituíu assim um puro panlogismo.
O idealismo apresenta-se, assim, em duas formas
principais : como idealismo subjectivo ou psicoló­
gico e como idealismo objectivo ou lógico. Entre
ambas existe como já vimos uma diferença essen­
cial. Mas estas diversidades movimentam-se dentro
de uma comum concepção fundamental. Esta é
justamente a tese idealista de que o objecto
do conhecimento não é nada real, mas algo
ideal. Pois bem; · o idealismo não se contenta
em assentar nesta tese mas trata até de demons­
trá-la. Para isso argumenta da seguinte maneira:
A ideia de um objecto independente da cons­
ciência é contraditória, pois, no momento em
A BSSSNCIA DO CONHECIMENTO 107

que pensamos num objecto fazemos dele um


conteúdo da nossa consciência: se afirmamos simul­
tâneamente que o objecto existe fora da nossa
consciência, contradizemo-nos com isso a n6s pr6-
prios ; portanto não há objectos reais extra-cons­
cientes, mas toda a realidade acha-se contida na
consciência.
Este argumento, que é o verdadeiro argu­
mento capital do idealismo, encontra-se já em
BERKELEY. Este diz: «O que eu sublinho é que
as palavras exist�ncia absoluta das coisas sem o
pensamento, não têm sentido ou são contradit6rias».
De um modo inteiramente análogo lê-se em
SCHUPPE : «Um ser dotado da propriedade de não
ser (ou de ainda não ser) conteúdo da cons­
ciência, é uma contradictio in se, é uma ideia incon­
cebível». Com este argumento da iman�ncia, como
se lhe chama, procura o idealismo provar que a
tese do realismo é logicamente absurda e que a
sua pr6pria tese é, em rigor 16gico, necessária.
Mas esta tirada arrogante do idealismo deve fazer
desconfiar o ftl6sofo crítico. E, com efeito, o argu­
mento do idealismo não tem consistência. Sem
dúvida que podemos dizer, em certo sentido, que
fazemos do objecto em que pensamos um con­
teúdo da nossa consciência. Mas isto não signi­
ftca que o objecto seja idêntico ao conteúdo da
consciência, mas apenas que o conteúdo da cons­
ciência, quer seja uma representação ou um con­
ceito, me faz presente o objecto, ainda que este
continue sendo independente da consciência. Quando
afIrmamos, pois, que há objectos independentes da
108 TEORIA DO CONHECIMENTO

consciência, esta independência relativa à cons­


ciência é considerada como uma nota do objecto,
ao passo que a imanência à consciência refere-se
ao conteúdo do pensamento que é, com efeito, um
elemento da nossa consciência. A ideia de um
objecto independente do pensamento não encerra,
pois, nenhuma contradição, porque o pensamento,
o ser pensado, refere-se ao conteúdo, ao passo que
a independência relativa ao pensamento, o não
ser pensado, ao objecto. A tentativa feita pelo
idealismo para demonstrar que a posição contrária
é impossível, deve considerar-se, portanto, como
frustrada.

c) o fenomeDalismo

Na questão da origem do conhecimento encon­


tram-se frente a frente, com todo o rigor, o racio­
nalismo e o empirismo ; na questão da essência
do conhecimento, o realismo e o idealismo. Mas
tanto neste como naquele problema, se fizeram
tentativas para reconciliar os dois adversários. O mais
importante destes intentos de reconciliação tem
de novo KANT por autor. KANT procurou con­
ciliar o realismo com o idealismo, igualmente como
o fez entre o racionalismo e o empirismo. A sua
filosofia apresenta-se-nos, sob o ponto de vista
desta anntese, como um apriorismo ou transcen­
dentalismo ; na perspectiva daquela manifesta-se como
um fenomenalismo.
O fenomenalismo (de 'Yom6!l.&VOV phaenome­
non fen6meno, aparência) é a teoria segundo
=
A BSS�NCIA DO CONHECIMENTO 109

a qual não conhecemos as coisas como são em


si, mas como se nos apresentam. Para o feno­
menalismo há coisas reais, mas não podemos
conhecer a sua essência. S6 podemos saber «que»
as coisas são, mas não «o que» são. O feno­
menalismo coincide com o realismo quando admite
coisas reais; mas coincide com o idealismo quando
limita o conhecimento à consciência, ao mundo
da aparência, do que resulta imediatamente a impos­
sibilidade de conhecer as coisas em si.
Para esclarecer esta teoria do conhecimento,
façamos uma comparação entre o fenomenalismo
e o realismo crítico. Também este ensina, como
vimos, que as coisas não estão constituidas da
maneira como as vimos. As qualidades secundá­
rias, como as cores, os odores, o sabor, etc., não
pertencem às pr6prias coisas, segundo a doutrina
do realismo crítico, pois surgem somente na
nossa consciência. Mas o fenomenalismo vai ainda
mais longe. Nega também às coisas as qualidades
primárias, como a forma, a extensão, o movimento e,
por conseguinte, todas as propriedades espaciais
e temporais, e tira-as da consciência. O espaço
e o tempo são, para KANT, Unicamente formas
da nossa intuição, funções da nossa sensibilidade,
que dispõem as sensações numa justaposição e
numa sucessão, ou as ordenam no espaço e no
tempo de uma forma inconsciente e involuntária.
Mas o fenomenalismo não se limita a isso. Tam­
bém as propriedades conceptuais das coisas e não
somente intuitivas, procedem, segundo ele, da
consciência. Quando concebemos o mundo como
110 TEORIA DO CONHECIMENTO

composto de coisas dotadas de propriedades, ou


seja, quando aplicamos aos fenómenos o conceito
de substância ; ou quando consideramos certos
processos como produzidos por uma causa, isto é,
quando empregamos o conceito de causalidade ;
ou quando falamos da realidade, da possibilidade,
da necessidade, tudo isto se funda, na opinião
do fenomenalismo, em certas formas e funções
a priori do entendimento, as quais, excitadas pelas
sensações, entram em acção independentemente da
nossa vontade. Os conceitos supremos ou as
categorias que aplicamos aos fenómenos, não repre­
sentam, por conseguinte, propriedades objectivas
das coisas, pois são formas lógicas subjectivas do
nosso entendimento, o qual ordena com a sua
ajuda os fenómenos e faz surgir deste modo esse
mundo objectivo que, na opinião do homem
ingénuo, existe sem a nossa cooperação e com
prioridade de todo o conhecimento. Assim, na
opinião do fenomenalismo, nós têmo-Ias sempre
com o mundo fenoménico, isto é, com o mundo
tal como nos aparece devido à organização a priori
da consciência, e nunca com a coisa em si.
O mundo em que vivemos é, dito por outras
palavras, um mundo formado pela nossa cons­
ciência. Nunca podemos conhecer como o mundo
está constituído em si, isto é, prescindindo da nossa
consciência e das suas formas a priori. Pois, logo que
tratamos de conhecer as coisas, introduzimo-las, por
assim dizer, nas formas da consciência. Desta maneira,
não temos já perante nós a coisa em si, mas a coisa
como se nos apresenta, ou seja o fenómeno.
A BSSaNCIA DO CONHBCIMENTO 111

Isto é, em breves palavras, a teoria do feno­


menalismo, na forma como foi desenvolvida por
KANT. O seu conteúdo essencial pode resumir-se
a três proposições : 1 . A coisa em si é incognos­
cível. 2. O nosso conhecimento permanece limi­
tado ao mundo fenoménico. 3. Este surge na
nossa consciência porque ordenamos e elaboramos
o material sensível em relação às formas a priori
da intuição e do entendimento.

d) Critica e posição pr6pria

Estamos agora em situação de poder fazer a


crítica do realismo e do idealismo e de tomar
posição na disputa entre ambos. Como vimos
anteriormente, o idealismo não consegue demons­
trar que a posição realista seja contraditória e,
por conseguinte, impossível. Mas, por outro lado,
também o realismo não consegue abater defi­
nitivamente o seu adversário. As razões que
podia fazer valer não eram, como se viu, logi­
camente convincentes, mas simplesmente prová­
veis. Parece, pois, que não pode terminar-se a
disputa entre o realismo e o idealismo. Isto é o
que parece, com efeito, se empregarmos só um
método racional. Nem o realismo nem o idea­
lismo podem provar-se ou refutar-se por meios
puramente racionais. Somente parece ser possível
uma decisão por um caminho irracional. O realismo
volitivo foi quem nos ensinou este caminho.
Frente ao idealismo, que pretendera fazer do
112 TEORIA DO CONHECIMENTO

homem um puro ser intelectual, o realismo voli­


tivo chama a atenção sobre o lado volitivo do
homem e sublinha que o homem é, em primeiro
lugar, um ser de vontade e acção. Quando
o homem, no seu querer e desejar, tropeça com
resistências, vive nestas, de um modo imediato,
a realidade. A nossa convicção da realidade do
mundo exterior não descansa, pois, num racio­
cínio lógico, mas sim numa vivência imediata, numa
experiência da vontade. Com isto fica, com efeito,
superado o idealismo.
Mas o idealismo fracassa também no pro­
blema da existência do nosso eu, da qual estamos
certos por uma auto-intuição imediata. Já SANTO
AGOSTINHO fez referência a este ponto. Poste­
riormente DESCARTES, desenvolveo.ldo as suas ideias,
formulou o seu célebre cogito e�lo sumo No nosso
pensamento, nos nossos actos mentais - esta é a
sua ideia -, nós vivemos como uma realidade,
estamos certos da nossa existência. Paralelamente
ao princípio cartesiano formulou mais tarde MAINE
DE BlRAN o princípio volo ergo sumo Ambos os
princípios procuram exprimir, sem dúvida, a mesma
ideia fundamental : que posstÚmos uma certeza
imediata da existência do nosso próprio eu. Mas,
um parte dos processos do pensamento e, o outro,
dos processos da vontade. Todo o idealismo fracassa,
necessàriamente, contra esta auto-certeza imediata
do eu.
Com isto fica resolvida a questão da exis­
tência dos objectos reais. Mas que pensar da
cognoscibilidade destes objectos � Podemos conhecer
A ESSnNCIA DO CONHECIMENTO 113

a essência das coisas ou - falando a linguagem


de KANT - a coisa em si l Podemos afirmar alguma
coisa sobre as propriedades objectivas dos objectos
ou temos de contentar-nos em poder conhecer a
existincia, mas não a essência das coisas no sentido
do fenomenalismo l A resposta a esta importante
questão depende acima de tudo da concepção que
se tenha da essência do conhecimento humano.
A concepção aristotélica e a concepção kantiana
são as mais opostas neste ponto. Segundo aquela,
os objectos do conhecimento estão já preparados,
têm uma essência determinada e são reproduzidos
pela consciência cognoscente. Segundo esta, não
há objectos do conhecimento feitos, mas os objectos
do conhecimento são produzidos pela nossa cons­
ciência. Naquela, a consciência cognoscente reflecte
a ordem objectIva das coisas ; nesta, cria ela próprIa
essa ordem. Naquela, o conhecimento é consi­
derado como uma função receptiva e passiva; nesta,
como uma função activa e produtiva.
Qual das duas concepções é a justa l Consi­
deremos primeiro a aristotélica. Ela está, com
toda a evidência, em estreita conexão com a
estrutura do esp{rito grego. Com razão fala WINDEL­
BAND no seu Platão de uma «peculiar linútação
de todo o pensamento antigo, que não con­
cebeu a representação de uma energia criadora
da consciência, pois queria linútar todo o conhe­
cimento a uma reprodução do recebido e desco­
berto». Este aspecto peculiar deve atribuir-se ao
sentido estético-plástico dos gregos. Este sentido
vê em todas as partes a forma e a figura. O uine
8
1 14 TEORIA DO CONHECIMENTO

verso apresenta-se-lhes como wn todo harmónico,


como um cosmos. Esta atitude estética perante
o universo influi também na concepção do conhe­
cimento humano. Este é concebido como a con­
templação de uma forma objectiva, como o reflexo
do cosmos exterior. A teoria aristotélica do
conhecimento encontra-se determinada, em último
extremo, pela estrutura espiritual peculiar do mundo
grego.
Devemos assinalar ainda wn outro ponto.
Quando o conhecimento é concebido como uma
reprodução do objecto, representa uma duplicação
da realidade. Esta, de certo modo, existe duas
vezes : primeiro, objectivamente, fora da consciência ;
depois, subjectivamente, na consciência cognoscente.
Não se vê bem, contudo, que sentido teria seme­
lhante repetição e duplicação. Em todo o caso,
uma teoria do conhecimento que não implique
semelhante duplicação, representa wna explicação
mais simples e, portanto, mais provável do fenómeno
do conhecimento.
Outra deficiência da teoria aristotélica do conhe­
cimento reside, finalmente, em que assenta numa
hipótese metaflsica não demonstrada. Esta hipó­
tese consiste em supor que a realidade possui
uma estrutura racional. A teoria aristotélica do
conhecimento, que trabalha com esta hipótese
não demonstrada, está de antemão em desvan­
tagem perante outras teorias do conhecimento,
que passam sem uma hipótese semelhante. Vemos
também que KANT considera como vantagem
fundamental da sua teoria do conhecimento sobre
A ESS�NCIA DO CONHECIMENTO 115

a racionalista justamente o facto de que a sua


não parte, como esta, de uma opinião pre­
concebida sobre a estrutura metafísica da reali­
dade, pois que se abstém de toda a hipótese
metafísica.
Mas, por outro lado, temos de fazer uma
objecção importante à teoria kantiana do coúhe­
cimento. As sensações representam, segundo KANT,
um puro caos. Não oferecem nenhuma ordem;
toda a ordem procede da consciência. Pensar não
significa para KANT outra coisa que ordenar.
Mas esta posição é impossível. Se o material
das sensações carece de toda a determinação,
como utilizamos, ora a categoria de substância,
ora a de causalidade, ora outra qualquer, para ordenar
o dito material � No que é dado deve existir um
fundamento objectivo que condicione o emprego
de uma categoria determinada. Portanto, o quo.
é dado não pode carecer de toda a determinação.
Mas se apresenta certas determinações, há nele
uma indicação acerca das propriedades objectivas
dos objectos. Sem dúvida, estas não necessitam
de corresponder exactamente às nossas formas
mentais, facto muitas vezes ignorado pelo realismo
e pelo objectivismo ; porém, o princípio da incognos­
cibilidade das coisas continua fraco.
Com o que dissemos fica pelo menos indicada
a direcção que se deve tomar para encontrar,
no nosso entender, a solução do problema de
que estamos falando. Não nos parece . possível
fazer mais. Trata-se, com efeito, de um problema
que se encontra nos limites do poder do conhe-
116 TEORIA DO CONHECIMENTO

cimento humano, como revelam as soluções anta­


g6nicas, nas quais há dos dois lados pensadores
profundos. Trata-se, portanto, de um problema
que se escapa a uma solução simples e absoluta­
mente segura por parte do nosso limitado pensa­
mento. Esta posição pode, no entanto, justificar-se
de uma forma mais profunda. Como seres de
vontade e acção estamos sujeitos à antítese do
eu e do não eu, do sujeito e do objecto ; por
isso, não nos é possível superar teoricamente este
dualismo, ou seja, resolver de um modo definitivo
o problema do sujeito e do objecto. Devemos
resignar-nos e considerar como última palavra
da sabedoria a frase de LOTZE, quando fala de um
«abrir-se a realidade como uma flor no nosso
espírito».

3. Soluções teológicas

a) A soluçio moniata e panteiata

Para a solução do problema do sujeito e do


objecto deve remontar-se ao último principio da
realidade, o absoluto, e tratar de resolver o pro­
blema partindo dele. Segundo se concebe o
absoluto como imanente ou como transcendente
ao mundo, assim se chega a uma solução monista
e panteísta ou a uma solução dualista e teísta.
Enquanto que o dualismo nega de certo modo
um dos dois membros da relação do conhecimento,
A BSSSNCIA DO CONHECIMENTO 117

negando-lhe O carácter de real, e o realismo deixa


que ambos coexistam, o monismo trata de os
absorver todos numa última unidade. O sujeito
e o objecto, o pensamento e o ser, a consciência
e as coisas, ' s6 aparentemente são uma dualidade ;
realmente, são uma unidade. São os dois aspectos
de uma mesma realidade. O que se apresenta ao
ponto de vista empírico como uma dualidade é
para o conhecimento metafísICO, que chega à essência,
uma unidade.
Onde encontramos desenvolvida mais clara­
mente esta posição é em SPINOZA. No centro do
seu sistema está a ideia da substância. Esta tem
dois atributos : o pensamento (cogitatio) e a extensão
(extensio). Esta representa o mundo material, aquele
o mundo ideal ou da consciência. Cada atributo
tem, por sua vez, vários modos. Como ambos
os atributos são uma mesma coisa na substância
universal, pois que representam dois aspectos da
mesma, por assim dizer, o sujeito e o objecto, o
pensamento e o ser, têm de concordar plena e
necessàriamente. SPINOZA exprime esta consequência
com esta frase : Ordo et connexio idearum idem est
ac ordo et connexio rerum. cA ordem e a conexão
das ideias é o mesmo que a ordem e a conexão das
coisas».
Numa forma um tanto diferente encontramos
esta solução monista e panteísta do problema do
conhecimento em SCHELLING. A sua fIlosofIa da
identidade define o absoluto como a unidade da
Natureza e do Espírito, do objecto e do sujeito.
Enquanto que SPINOZA ainda reconhecia uma certa
118 TEORIA DO CONHECIMENTO

independência aos atributos, considerando-os como


dois reinos que têm um sustentáculo comum, para
SCHELLING constituem, no fundo, um único reino.
Segundo a situação de quem olha, um único
e mesmo ser se apresenta, umas vezes como
objecto e outras vezes como sujeito. A unidade
do sujeito e do objecto é concebida de um
modo ainda mais rigoroso do que em SPINOZA.
Com ele fica dada definitivamente a solução do
problema do conhecimento. Se o sujeito e o
objecto são absolutamente idênticos, já não existe
o problema do sujeito e do objecto. A teoria do
conhecimento fica, pois, completamente absorvida
pela metafísica. Mas isto significa renunciar a
uma solução científica do problema do conhe­
cimento, pois as especulações de SCHELLING sobre
o absoluto não podem pretender de modo algum
ter um carácter científico, por mais agudas e pro­
fundas que sejam.

b) A solução dualista e teista

Segundo a concepção dualista e teísta do


tmiverso, o dualismo empírico do sujeito e do
objecto tem por base um dualismo metafísico.
Esta concepção do universo mantém a diversi­
dade metafísica essencial do pensamento e do ser,
a consciência e a realidade. Esta dualidade não
é de qualquer modo para ela algo de definitivo.
O sujeito e o objecto, o pensamento e o ser,
vão parar finalmente a um último princípio comum.
A ESSSNCIA DO CONHECIMENTO 119

Este reside na Divindade, que é a fonte comum


do ideal e da realidade, do pensamento e do
ser. Como causa criadora do universo, Deus
coordenou de tal maneira o reino ideal e o
real que ambos concordam e existe uma harmonia
entre o pensamento e o ser. A solução do pro­
blema do conhecimento está, pois, na ideia da Divin­
dade como origem comum do sujeito e do objecto,
da ordem do pensamento e da ordem do ser.
Esta é a posição do teísmo cristão. Vestígios
mais ou menos importantes dela encontram-se
já na antiguidade em PLATÃO e ARISTÓTELES.
Também existe em PLOTINO, pelo menos em
substância, ainda que apareça modificada pela
teoria da emanação. Mas onde alcançou a sua
verdadeira fundamentação e desenvolvimento foi
na Idade Média. SANTO AGOSTINHO e SÃO TOMÁS
DE AQUINO apresentam-se com os seus principais
representantes. Mas também na Idade Moderna
encontrou notáveis defensores. O fundador da
fuosofia moderna, DESCARTES, acha-se no terreno
do teísmo cristão. O mesmo deve dizer-se de
LEIBNITZ. Este resolve o problema da conexão
das coisas, como se sabe, mediante a ideia da harmonia
pré-estabelecida. O universo compõe-se, segundo
ele, de infinitas mónadas, que representam mundos
completamente fechados. Por conseguinte, não é
possível uma acção recíproca entre elas. A conexão
e a ordem do universo descansam numa harmonia
estabelecida originàriamente por Deus. Nela descansa
também a concordância do pensamento e do ser,
do sujeito e do objecto.
120 TEORIA DO CONHECIMENTO

Está claro que esta metafísica teísta não pode


considerar-se como base, mas apenas como coroação
e fecho da teoria do conhecimento. Quando
se resolve o problema do conhecimento no sentido
do realismo, está-se autorizado e também compe­
lido a dar à teoria do conhecimento uma conclusão
metafísica. O que não é permitido é proceder
ao contrário e utilizar a metafísica teísta como
pressuposto e base para a resolução do pro­
blema do conhecimento. Quando se faz isto,
todo o método vem parar a uma petitio principii,
a uma confusão do fundamento da prova com o
seu objectivo.
IV

AS ESPÉCIES DO CONHECIMENTO

1. O problema da intuição e a sua história

Conhecer significa apreender espiritualmente um


objecto. Esta apreensão não é, normalmente, um
acto simples mas representa uma pluralidade de
actos. A consciência cognoscente necessita, por
assim dizer, de dar voltas em tomo do seu objecto,
para o apreender realmente. Põe o seu objecto
em relação com outros, compara-o com outros,
tira conclusões, etc.. Assim procede o especia­
lista quando quer defuúr o seu objecto debaixo
de todos os pontos de vista ; assim faz também
o metafísico quando quer conhecer, por exem­
plo, a essência da alma. A consciência cognos­
cente serve-se em ambos os casos das mais diversas
operações intelectuais. Trata-se sempre de um
conhecimento mediato, discursivo. Esta última expres­
são é singularmente exacta, porque a consciência
cognoscente move-se, com efeito, daqui para
ali.
Pois bem; cabe agora perguntar se há um
conhecimento imediato além do mediato, um
conhecimento intuitivo além do discursivo. O conhe-
122 TEORIA DO CONHECIMENTO

cimento intuitivo consiste, como o seu nome indica,


em conhecer vendo. A sua indole peculiar con­
siste em que nele apreende-se imediatamente o
objecto, como acontece sobretudo na visão. Nin­
guém poderá negar que haja um conhecimento
semelhante. Apreendemos imediatamente, com efeito,
todo o dado da experiência externa ou interna.
Imediatamente percebemos o vermelho ou o verde
que vemos, a dor ou a alegria que experimen­
tamos. Mas quando se fala da intuição não se
pensa nesta intuição sensível, mas numa intuição
não sensível, espiritual. Esta também não se pode
negar. Quando, por exemplo, comparamos o ver­
melho e o verde e pronunciamos o juízo «o vermelho
e o verde são distintos», este juízo assenta numa
intuição espiritual imediata. Numa intuição seme­
lhante assentam também aqueles juízos em que
exprimimos as leis lógicas do pensamento. O prin­
cípio de contradição, por exemplo, afirma que
entre o ser e o não ser existe a relação da
mútua exclusão, relação que nos é intuitiva igual­
mente de um modo espiritual. No ponto inicial
e no ponto fmal do nosso conhecimento acha-se,
pois, uma apreensão intuitiva. Aprendemos de
um modo imediato, intuitivo, tanto o imediata­
mente dado de que parte o nosso conhecimento,
como os últimos princípios, que constituem a base
do mesmo.
Como ficou dito, costuma aplicar-se a deno­
minação de «intuição» e a de «conhecimento
intuitivo» somente à intuição espiritual. Mas deve­
mos ainda fazer outra restrição. Não devemos
AS ESPÉCIES DO CONHECIMENTO 123

também chamar intuição, no sentido rigoroso,


à apreensão imediata da relação entre os con­
teúdos sensíveis ou intelectuais a que acabamos
de nos referir. No caso de querermos conservar
a palavra, devemos falar de uma intuição formal.
Essencialmente distinta desta é a intuição mate­
rial, na qual se não trata de uma mera apreensão
de relações, mas sim do conhecimento de uma
realidade «material», de um objecto ou de um
facto supra-sensível. A esta intuição material é
� ue chamamos intuição, no sentido próprio e
ngoroso.
Esta intuição material pode ser de índole
diversa. A sua diversidade está fundada no mais
profundo da estrutura ps{quica do homem. O ser
espiritual do homem apresenta três forças funda­
mentais : o pensamento, o sentimento e a vontade.
Advirta-se que isto não significa, de modo al gum,
três faculdades da alma independentes, mas sim
três diversas tendências ou direcções da vida
psíquica humana. E, assim, devemos distinguir
uma intuição racional, outra emocional e outra
volitiva. O órgão cognoscente é, na primeira,
a razão ; na segunda, o sentimento ; na terceira,
a vontade. Nos três casos há uma apreensão
imediata de um objecto, e isto é justamente o
que se pretende exprimir com a palavra «intui­
ção». Tendo-se isto presente, não se experimen­
tará nenhuma dificuldade perante a expressão «intui­
ção volitiva) , que parece paradoxal em princípio.
Chegamos à mesma divisão se partirmos da
estrutura do objecto. Todo o objecto apresenta três
124 TEORIA DO CONHECIMENTO

aspectos ou elementos : essência, existência e valor.


Por conseguinte, podemos falar de uma intuição
de ess�ncia, uma intuição da exist�ncia e uma intuição
do valor. A primeira, coincide com a racional;
a segunda, com a volitiva; a terceira, com a emo­
cional.
Para dar às nossas considerações abstractas e
esquemáticas um conteúdo mais concreto, faça­
mos passar resumidamente ante os ollios do nosso
espírito a hist6ria do problema da intuição. PLATÃO
foi o primeiro que falou de uma intuição espi­
ritual, de uma intuição no sentido estrito. Segundo
ele, as Ideias são apercebidas imediatamente, aper­
cebidas espiritualmente pela razão. Trata-se de
uma intuição material, pois o que vemos são deter­
minados conteúdos espirituais, realidades «mate­
riaiS)). Esta intuição deve caracterizar-se, porém,
como uma intuição estritamente racional, pois é
uma fimção do intelecto, representa uma activi­
dade rigorosamente te6rica, intelectual.
Em PLOTINO, o renovador do platonismo,
a intuição do Nus substitui a intuição das Ideias,
como já vimos. Esta intuição do Nus é uma
actividade puramente intelectual, como a intuição
plat6nica das Ideias. Mas PLOTINO conhece, além
da intuição do Nus, uma intuição imediata do
princípio supremo da realidade, do Uno. No
seu tratado «Da contemplação)), que se encontra
nas Enéadas, descreve PLOTINO com palavras entu­
siastas a sublime contemplação do Divino. Esta
mesma descrição revela que a contemplação de
Deus não é em PLOTINO algo puramente racional,
AS ESPÉCIES DO CONHECIMENTO 125

p�>1S está fortemente embebida de elementos emo­


CIonaiS. É uma contemplação nústica, em que
não só toma parte o intelecto como também as
forças activas do homem.
Coisa análoga se passa com SANTO AGOS­
TINHO, que justamente na teoria do conhecimento
está fortemente influenciado por PLOTINO. Para
o padre da Igreja, o Nus coincide com o Deus
pessoal do cristianismo, como já dissemos. O K6G!Lo�
'YO'll"��' o mundus intelligibilis, converte-se deste
modo no conteúdo do pensamento divino. Visto
nesta perspectiva, Deus apresenta-se ao «platónico
cristão» como veTitas aeterna et incommutabilis, que
encerra no seu selO todas as COISas incommutabiliteT
veTa. Em consequência disso SANTO AGOSTINHO
fala de uma visão do inteligível na verdade imutável
ou, ainda, de uma visão desta mesma verdade.
Também para ele se trata de uma intuição pura­
mente racional. Mas, como PLOTINO, também reco­
nhece um grau superior da visão divina : na expe­
riência religiosa, nas vivências religiosas, entramos
em contacto imediato com Deus, vemo-lo de um
modo imediato, nústico. Esta visão nústica de
Deus apresenta-se em SANTO AGOSTINHO - que,
neste ponto, se acha também influenciado pela
Bíblia - como um processo essencialmente emo­
cional, de maneira ainda mais forte que em PLOTINO,
que ainda está demasiadamente ligado ao intelectua­
lismo grego.
O pensamento de uma visão nústica de Deus
passou das obras de SANTO AGOSTINHO para a mística
da Idade Média. Esta apresenta-se como a adver-
126 TEORIA DO CONHECIMENTO

sária da escolástica intelectualista. Enquanto que


esta só admite um conhecimento discursivo racional,
a mística defende o direito da intuição, em espe­
cial da intuição religiosa. «O método frio, abstracto
e impessoal da silogística, com as suas formas
rígidas, regras e argumentos, não é para a mística
o ideal ou o único e exclusivo meio de alcançar
a verdade. A mística vê uma fonte de verdade
tão segura, se não superior, nas vivências e expe­
riências subjectivas, na intuição subjectiva, no videre,
sentire e experiri espiritual, e nos sentimentos e
desejos - em certas ocasiões extraordinàriamente
intensos - que acompanham as vivências e as
intuições Íntimas». (UEBERWEG-BAUMGARTNER, Tra­
tado de Hist6ria da Filosofia).
Ambas estas concenpções se encontram frente
a frente na alta escolástica. A contenda entre o
agostinismo e o aristotelismo, que domina o
século XIII, "não é no fundo outra coisa que uma
contenda em volta dos direitos da intuição, em
especial da intuição religiosa. Os partidános do
agostinismo, com SÃO BOAVENTURA à cabeça, fazem
frente aos defensores do aristotelismo, com SÃo
TOMÁS DE AQUINO como chefe. Aqueles pro­
clamam uma visão imediata mística de Deus ; estes
só admitem um conhecimento mediato, discursivo,
racional, do mesmo. Segundo aqueles, Deus pode
ser experimentado e vivido imediatamente, pode
ser visto espiritualmente; segundo estes, necessita
de ser demonstrado.
Se passarmos à Idade Moderna, o cogito ergo
sum, de DESCARTES, significa o reconhecimento
AS ESPÉCIES DO CONHECIMENTO 127

da intuição como um meio :1utónomo de conhe­


cimento. O princípio cartesiano não encerra, com
efeito, uma inferência, mas uma auto-intuição
imediata. Nos nossos actos do pensamento vivemo­
-nos imediatamente como reais, como existentes.
Este é o seu sentido. Há, pois, aqui, uma
intuição material, que se refere a um facto meta­
físico.
O reconhecimento da intuição como uma fonte
autónoma de conhecimento encontra-se também
em PASCAL, que com a sua afirmação le coeur a
ses raisons, que la raison ne connait pas, põe ao lado
do conhecimento pelo intelecto um conhecimento
pelo coração ; ao lado do conhecimento racional
um conhecimento emocional. Encontra-se também
assim em MALEBRANCHE, cuja tese epistemológica
fundamental, nous voyons toutes choses en Dieu,
já anteriormente mencionámos. Em SPINOZA e
em LEmNITZ, pelo contrário, a intuição não repre­
senta nenhum papel notável na teoria do conhe­
cimento. O mesmo se passa com KANT. Este
só reconhece uma experiência, que consiste na
elaboração conceptual do material empírico. Outra
espécie de experiência, no sentido de uma apreen­
são imediata do objecto, de uma intuição espi­
ritual, não é conhecida dele. Assim como para
o intelectualismo medieval e para o racionalism.o
moderno, também para KANT há só um conhe­
cimento discursivo-racional.
Concepções muito diferentes são as que encon­
tramos na filosofia inglesa anterior a KANT. O seu
mais ilustre representante, DAVID HUME, tem a
128 TEORIA DO CONHECIMENTO

convicção de que a nossa razão não pode conhecer


a existência de coisas, nem tão pouco qual é a sua
essência. Tudo o que ultrapassa o conteúdo da
nossa consciência escapa, segundo ele, ao conhe­
cimento racional. Chamou-se muitas vezes céptico
a HUME por causa disto. Mas o cepticismo
de HUME refere-se exclusivamente ao conheci­
mento te6rico-racional. Segundo HUME, o centro
de gravidade do ser humano não reside no
lado te6rico, mas no prático. Assim, HUME põe
ao lado do 6rgão do conhecimento te6rico e
racional outro 6rgão prático e irracional. É o
que denomina «fé. (belief), e entende por tal uma
apreensão e assentimento intuitivo e emotivo.
«A fé - adverte ele - é muito mais um acto da
parte afectiva da nossa naturez;� do que da sua
parte pensant�. Graças a esta fé, que se radica
num instinto psíquico, alcançamos, segundo HUME,
a certeza da realidade do mundo exterior, que
origina um problema insolúvel para a razão te6rica.
Assim como HUME sustenta que conhecemos
de um modo imediato a realidade, outros filó­
sofos ingleses do século XVIII admitem um conhe­
cimento intuitivo no terreno dos valores. O prin­
cipal representante desta doutrina é um discípulo
de SHAFTESBURY, HUTCHESON. Segundo a sua teona
apreendemos Imediata e emotivamente, tanto os
valores do belo como os do bom. O 6rgão cogni­
tivo no primeiro caso é o «sentido estético. e, no
segundo, o «sentido moraI..
HUTCHESON esforça-se por introduzir na ética
o conceito de moral sense. Os nossos juízos de
AS ESPÉCIES DO CONHECIMENTO 129

valor ético não descansam na reflexão - diz ele ­


mas sim na intuição. O valor ou não valor ético
de uma acção não se conhece aplicando à acção
uma unidade de medida geral, uma forma ética
suprema, e medindo-a com ela, mas sim de uma
maneira imediata, intuitiva. Assim como o nosso
sentido visual se apercebe imediatamente das cores,
o sentido moral apercebe-se das qualidades valiosas
de uma acção ou de uma intenção.
Se passarmos ao século XIX, verificamos que
a intuição representa um importante papel no
idealismo alemão. Enquanto que KANT só tinha
reconhecido uma intuição sensível, negando expres­
samente, pelo contrário, uma intuição não sensível,
intelectual, o seu sucessor FICHTB é de outra
opinião. Segundo ele, há uma intuição espiri­
,
tual, intelectual. E o órgão mediante o qual o
eu absoluto se conhece a si mesmo e conhece as
suas acções. Em FICHTB trata-se, pOIS, de uma
intuição metafísico-racional. Passa-se o mesmo com'
SCHBLLING. A sua filosofia da identidade defme
o absoluto como a unidade da Natureza e do
Espírito. Este absoluto é apreendido por nós
mediante uma intuição intelectual. Nem outra
coisa ensina SCHOPBNHAUBR. Este começa por coin­
cidir com KANT na doutrina de que o nosso enten­
dimento, o nosso conhecimento discursivo-racional,
está encerrado nos limites do mundo fenoménico.
Se não houvesse outro meio de conhecimento,
a essência das coisas permaneceria eternamente
oculta para nós. Mas há outra espécie de conhe­
cimento, e é nisto que SCHOPBNHAUBR se afasta
9
130 TEORIA DO CONHECIMENTO

de KANT. É a intuição espiritual. Por meio dela


apreendemos a essência das coisas e encontramos a
chave da metafísica.
Um conhecimento intuitivo no terreno reli­
gioso é apresentado no século XIX, sobretudo
por FRIES e SCHLEIERMA CHER. O primeiro dis­
tingue três fontes de conhecimento : o saber, a fé
e o pressentimento. «Sabemos dos fenómenos,
cremos na verdadeira essência das coisas, pres­
sentimos esta naqueles». FRIES define o pres­
sentimento como «Um conhecimento por puro
sentimento». Por meio dele apreendemos no tem­
poral o eterno, no terreno o divino. O pressen­
timento é, assim, o órgão do conhecimento religioso.
S CHLEIERMACHER pensa de modo análogo. Perante
o racionalismo e o moralismo insiste em que
a religião não é saber nem fazer. Não tem a sua
sede nem no intelecto nem na vontade, mas
no sentimento. Consiste, por essência, numa apreen­
são emotiva, intuitiva, da unidade e do princípjo
do universo. A religião, declara SCHLEIERMACHER
nos seus conhecidos Discursos sobre a religião,
é «um sentimento e uma intuição do universo».
Lancemos ainda um breve golpe de vista sobre
a posição da filosofia contemporânea perante o
problema da intuição. O neokantismo toma uma
atitude de severa crítica. Isto dá-se muito espe­
cialmente na escola de Marburgo. O seu funda­
dor, HERMANN COHEN, volta-se com inegável animo­
sidade contra os «paladinos da intuição» . Segundo
ele, esta é uma ilusão e, por consequência, a viva
contradição do pensamento científico. E, por con-
AS ESPÉCIES DO CONHECIMENTO 131

seguinte, nWlca se pode tomar em consideração


como meio metódico do conliecimento. Há que
manter, pelo contrário, a exigência de «um método
para um conhecimento». Ou, por outras palavras :
só há um conhecimento racional discursivo e
um método racional dedutivo fWldado nele. Esta
é também a posição da escola de Baden, ainda
que não se exprima de uma maneira tão crua.
Também para ela se não pode considerar a
intuição como meio legítimo de conhecimento.
Opõe-se também ao intuicionismo, negando-o em
todas as suas formas, como mostra especialmente
o livro de RICKERT sobre «a ftlosofta 'da V1da» .
A atitude do realismo crítico perante a intui­
ção é também predominantemente negativa. Assim
declara, por exemplo, JOSE GEYSER : «No que
se refere à intuição como fonte do conheci­
mento, devo fazer as maiores reservas ; pois este
conceito é sumamente equívoco e os que o têm
sempre na boca e vêem na intuição a verdadeira
fonte de luz e de conhecimento do nosso espírito
não o deftnem clara e distintamente. Tal como
eu concebo o nosso conhecimento humano, os
únicos objectos que podemos apreender no seu
ser objectivo, por intuição, isto é, por uma per­
cepção imediata, consistem nas realidades indivi­
duais da nossa percepção externa e interna e nas
formas (ou essências), as relações essenciais e os
outros objectos singulares e gerais análogos, clara­
mente intuíveis naquelas realidades por meio de
uma série de determinados actos do pensamento.
Não admito como fonte do conhecimento uma
132 TEORIA DO CONHECIMENTO

intuição de objectos metafísicos, por exemplo, de


Deus e .da substância psíquica ; ou de objectos
éticos, estéticos, religiosos e outros análogos, em
lugar de inferi-los dos conceitos e juízos obtidos
com base nas distintas realidades conhecidas intui­
tIvamente». GEYSER só admite, assim, uma intuição
racional, que é, portanto, principalmente de natu­
reza formal. Outros representantes do realismo
crítico fazem à intuição maiores concessões. Assim
procede AUGUSTO MESSER. Este reconhece a
intuição principalmente no terreno dos valores.
. Segundo ele, apreendemos de um modo ime­
diato, intuitivo, não só os valores estéticos, mas
também os éticos. A intuição é o único órgão
do seu conhecimento. Também no terreno meta­
físico há, segundo MESSER, um conhecimento intui­
tivo. «Vivemos e temos a intuição imediata,
especialmente da existência do nosso eu e da
nossa liberdade. Temos uma espécie de saber
imediato do nosso eu espiritual e da natureza
dos seus actos, e fundando-nos neste saber atri­
buimos ao nosso eu uma liberdade indetermi­
nada» . A posição de ]UAN VOLKELT perante a
intuição, é ainda mais positiva. VOLKELT entende
por intuição ou certeza intuitiva a vivência imediata
de algo que não se pode experimentar, a certeza
imediata de algo transubjectivo ou transcendente
à consciência. Os objectos que nos são conhe­
cidos pelo caminho da certeza intuitIva são, prin­
cipalmente, o próprio eu, o mundo exterior e
as outras pessoas. Além disso apreendemos intui­
tivamente os valores. Há intuição estética, ética
AS ESPÉCIES DO CONHECIMENTO 133

e religiosa. VOLKELT sublinha que a certeza intui­


tiva é essencialmente diferente, tanto da auto-certeza
imediata da consciência, como da necessidade lógica
do pensamento. Representa «uma modalidade da
certeza, absolutamente peculiar, irredutível e pri­
mitiva». Tem de comum com a auto-certeza
da consciência o ser imediata ; com a necessidade
lógica do pensamento, a validade transubjectiva.
lIA certeza intuitiva é uma fé que se sente
identificada com a coisa. Com fundamento nesta
garantia objectiva, certeza intuitiva e neceSSIdade
lógica devem equivaler-se e ter, até certo ponto,
direitos iguais».
Um mtwclOlllsmo expresso encontra-se hoje
em BERGSON, DILTHEY e na fenomenologia. Segundo
BERGSON, o intelecto é incapaz de penetrar na
essência das coisas. Só pode apreender a forma
matemático-mecânica da realidade, não o seu núcleo
e Íntimo conteúdo. Só a intuição pode apreender
este. A intuição é o «instinto desinteressado e cons­
ciente de si mesmo». Mediante a intuição, alcan­
çamos a realidade por dentro, penetramos no interior
da vida. Mediante ela entramos em contacto, por
assim dizer, com o núcleo e centro de todas as
coisas e «resPiramos alguma coisa deste oceano da
vida». A intuição é assim a chave da metafísica.
A intuição apresenta-se em DILTHEY da mesma
maneira que em BERGSON, como algo absoluta­
mente irracional, como um entrar em contacto
com a realidade de um modo emotivo e volitivo.
Como já vimos, a nossa convicção da realidade
do mlmdo exterior assenta, segundo DILTHEY,
134 TEORIA DO CONHECIMENTO

numa experiência imediata da nossa vontade. Da


mesma forma imediata e irracional apreendemos
a existêncIa do nosso prÓXImo. A intuição repre­
senta além disso um grande papel, segWldo DILTHEY,
na esfera histórica. Em sua opinião, as totalidades
psíquicas tal como nos são reveladas nas perso­
nalidades históricas, só as podemos compreender
emotivamente ; só por intuição podem ser conhe­
cidas. A intuição é, por conseguinte, o verdadeiro
órg�o de conhecimento do historiador.
A intuição tem na fenomenologia um sentido
muito diferente do que tem em BERGSON e DILTHEY.
O objecto da intu� ção imediata não é já a reali­
dade como tal, não � a existência, mas sim a' essência.
O factor existencial: a existentia, é eliminado, «posto
entre parêntesis», pelo fenomenologista. O olhar
deste dirige-se ao modo de ser, à essência, ao eidos
das coisas. O fenomenologista julga apreendê-lo
numa intuição essencial imediata. HUSSERL pro­
cura esclarecer com exemplos como esta se deve
conceber. «Quando nos representamos intuitiva­
mente com plena clareza o que quer dizer «COf» ,
o presente é uma essência, e quando, igualmente
numa pura intuição e talvez relanciando a vista
por esta e aquela percepção, nos representamos
o que é a percepção em si mesma, teremos
então apreendido intuitivamente a essência «per­
cepção». A intuição, a consciência intuitiva, chega
até onde chegue a possibilidade da ideação ou intuição
essencial correspondente» .
Enquanto que HUSSERL só conhece uma intui­
ção racional, a que ele chanla intuição essencial,
AS ESPÉCIES DO CONHECIMENTO 135

SCHELER admite além dessa uma intuição emocional


e vê nela o órgão do conhecimento dos valores.
Estes acham-se, segundo ele, completamente veda­
dos ao intelecto. O intelecto é tão cego para eles
como o ouvido para as cores. Os valores são apreen­
didos imediatamente pelo nosso espírito, de um
modo análogo àquele em que as cores o são pelos
nossos olhos. SCHELER caracteriza este modo de
éonhecer como um «sentir intencional». Nele vislum­
bramos, por assim dizer, os valores. O mesmo
acontece na esfera religiosa. Também Deus é,
segundo SCHELER, conhecido intuitivamente. pelo
caminho metafísico-racional chegamos a um prin­
cípio absoluto do universo, mas nunca a um
Deus, no sentido da religião. O dedo da perso­
nalidade é, com efeito, de uma ímportâncIa essen­
cial para a ideia religiosa de Deus. Mas só
há um meio de poder conhecer uma pessoa :
revelando-se-nos ela. A experiência religiosa é o
que corresponde no sujeito humano a esta auto­
-revelação de Deus. Deste modo, o Deus da
religião só está presente, segundo SCHELER, na
experiência religiosa, numa vivência e intuição
imediatas.

2. Razão e sem razão do intuicionismo

O admitir ou não admitir um conhecimento intui­


tivo paralelamente ao discursivo-racional, depende
antes de tudo do que se pense sobre a essência
136 TEORIA DO CONHECIMENTO

do homem. Quem veja no homem exclusiva


ou preponderantemente um ser teórico, cuja prin­
cipal função é o pensamento, só admItlrá um
conhecimento racional. Quem, pelo contrário, ponha
o centro de gravidade do ser humano no lado
emocional e volitivo, tenderá de antemão para
reconhecer no homem, juntamente com a forma
discursivo-racional do conhecimento, outros tipos ,
de apreensão dos objectos. Estará convencido de
que a uma multidão de aspectos da realidade
corresponde uma pluralidade de funções cognitivas.
A primeira concepção representa evidentemente
um exclusivismo. Procede a maior . parte das vezes
de uma atitude distanciada do mundo e da vida,
como a que se costuma encontrar justamente
entre os filósofos. O filósofo, cuja função própria
na vida é conhecer, conclui com demasiada faci­
lidade «julgando por si mesmo os outros») - como
se costuma dizer - e concebendo o homem, em
geral, como um ser predominantemente cogni­
tivo. Quem está, pelo contrário, em contacto
com as realidades concretas da vida, cedo se
convence de que o verdadeiro centro de gravi­
dade do ser humano não reside nas forças inte­
lectuais, mas nas emocionais e volitivas. Vê que
o intelecto humano se acha incluído, de uma ponta
à outra, na totalidade das forças do espírito
humano e que, portanto, necessIta e depende delas
na sua função. Não é o intelecto, mas sim as
forças emotivas e volitivas do homem que lhe
parecem dominantes nesse jogo de forças a que
chamamos vida.
AS ESPÉCIES DO CONHECIMENTO 137

Entre o ftl6sofos modernos foi DILTHEY quem


primeiro chamou a atenção para este facto. Na
sua Introdução às ciências do esp{rito ataca com
energia esse racionalismo e intelectualismo segundo
o qual «nas veias do sujeito cognoscente não
corre verdadeiro sangue, mas o humor rarefeito
da razão, considerada como mera actividade inte­
lectual». «A preocupação hist6rica e filos6fica com
o homem conduziu-me - declara ele - a tomar
este na variedade das suas forças, a tomar este
ser que quer, sente e representa, também por
base na explicação do conhecimento e dos seus
conceitos». Deste modo chega a pôr ao lado
do conhecimento discursivo-racional outro intuitivo­
-racional.
Mas o reconhecimento da intuição, nã,o signi­
fica o f1m de todo o conhecimento científico l
Não significa abandonar a validade universal e a
demonstrabilidade, que constituem alma ·de todo o
conhecimento científico ?
Per�te esta objecção devemos fazer uma dis­
tinção. E a distinção entre a actividade te6rica
e actividade prática. Na esfera te6rica, a intuição
não pode pretender ser um meio de conhecimento
aut6nomo, com os mesmos direitos que o conhe­
cimento racional-discursivo. A razão tem neste
terreno a última palavra. Toda a intuição tem
de legitimar-se perante o tribunal da razão. Quando
os adversários do intuicionismo exigem isto, estão
no seu pleno direito. Mas a questão é diferente
na esfera prática. A intuição tem neste um signi­
ficado aut6nomo. Como seres que sentimos e
138 TEORIA DO CONHECIMENTO

queremos, a intuição é para nós o verdadeiro órgão


do conhecimento. Enquanto o intuicionismo não
ensma outra coisa que isto, a razão está do seu
lado.
Do que ficou dito conclui-se que devemos
combater a intuição metajfsica no sentido de BERGSON.
Não é porque não h�ja uma intuição meta­
física. A história da metafísica prova a cada passo
o contrário. Revela, com efeito, que todos os
grandes sistemas metafísicos radicam, em última
análise, em certas intuições. Não se pode duvidar,
portanto, do facto psicológico de uma intuição
metafísica. Mas a questão do valor lógico da
intuição é uma coisa muito diferente. E, a este
respeito, devemos sustentar, como consequência
do já dito, que a intuição não pode ser nunca
a base última da validade de nenhum juízo na
esfera teórica nem, por conseguinte, na meta­
física. A última instância nesta esfera é a razão,
e toda a intuição tem de submeter-se ao seu
exame.
Como consequência das afirmações anteriores
devemos também negar a adesão à intuição essen­
cial de HUSSERL. Além desta intuição não ser um
acto tão perfeitamente simples e autónomo como
HUSSERL pretende, mas antes uma pluralidade de
actos do pensamento, como demonstrou princi­
palmente a crítica de VOLKELT e GEYSER, nunca
poderá também arvorar-se em última instância.
Pois, quando fazemos teoria do conhecimento,
exercitamos uma actividade teórica, como o próprio
nome o diz, e, portanto, devemos deixar à razão
AS ESPÉCIES DO CONHECIMENTO 139

a última palavra. Significaria o fIm de toda


a fIlosofIa científica querer alguém, por exemplo,
justifIcar o princípio de causalidade - segundo o
qual todo o processo tem uma causa - dizendo :
«entre os conceitos de processo e de causa existe
uma conexão essencial que eu apreendo imedia­
tamente». Haveria que opor a um tal filósofo
o facto de que quase nenhum dos outros fIló­
sofos consegue apreender esta conexão. O reco­
nhecimento desta intuição essencial privaria a
fIlosofIa da sua validade universal e, portanto,
do seu carácter racional e científico. Também
por esta razão não é admissível justifIcar as
leis supremas do pensamento recorrendo à sua
«imediata evidência». Voltaremos mais tarde a
tratar deste assunto mais pormenorizadamente.
Devemos tomar uma posição muito diferente
perante a intuição existencial de DILTHEY. Esta
não se radica na esfera teórica mas sim na
prática. Como seres de vontade e acção entra­
mos em contacto com a realidade, vivemos a
realidade nas resistências que nos opõem. A ime­
diata e inalterável certeza que acompanha a nossa
convicção da existência do mundo exterior diz­
-nos, com efeito, que esta convicção assenta numa
experiência íntima, numa vivência imediata. Esta
certeza não é explicável debaixo do ponto de
vista do realismo crítico. Como concedem os
próprios defensores desta posição, as provas da
existência do mundo exterior não possuem um
carácter absolutamente convincente. Portanto, se
a nossa convicção da existência de um mundo
140 TEORIA DO CONHECIMENTO

exterior real assentasse em demonstrações e infe­


rências racionais, não possuiria essa certeza imediata
e irresistível que na verdade possui. Já SCHOPE­
NHAUER observou uma vez que meteríamos simples­
mente no manicómio quem ousasse negar a existência
do mundo exterior.
O filósofo MAx FRISCHEISEN-KoHLER, discípulo
de DILTHEY, procurou fundamentar a concepção
que expomos nas discussões muito claras e profundas
da sua obra O problema da realidade. Segundo
ele, ficamos inertes perante o problema da reali­
dade se só admitimos, como KANT, duas fontes
do conhecimento : a sensação e o pensamento.
Deste modo não é possível superar o idealismo.
Em suma, pode-se substituir a construção idealista
por outra construção. Mas então está-se decidi­
damente em desvantagem perante o idealismo,
debaixo do ponto de vista metódico, pois o
idealismo dá uma teoria do conheCImento mUlto
mais simples e unitária, visto que procura explicar
o fenómeno do conhecimento sem a hipótese
de uma realidade extra-consciente. Uma verda­
deira solução do problema só é possível se se
admitir, além da sensação e do pensamento, outra
fonte de conhecimento : a experiência interna e
a intuição. A impordncia desta fonte é evi­
dente quando se considera a história da cultura
humana. A índole das grandes obras religiosas,
filosóficas e artísticas prova que na sua formação
tomaram parte outras funções "da consciência além
da sensação e do pensamento. Estas forças cogni­
tivas irracionais constituem o órgão do conhe-
AS ESPÉCIES DO CONHECIMENTO 141

cimento do moodo exterior. . Este é experimentado


e vivido imediatamente por nós. E o mesmo
se passa com a existência do nosso próximo.
Nem sequer «a intimidade estranha do nosso
próximo é inferida, mas sim vivida de modo
original».
Muito menos discutido que o conhecimento
do moodo exterior é o conhecimento da exis­
tência do nosso eu. A grande maioria dos filó­
sofos sustenta a opinião que DESCARTES formulou
claramente pela primeira vez. Vivemos e apreen­
demos imediatamente a nossa própria eX1stência.
No nosso pensamento e vontade nós vivemos
como seres realmente existentes. Não nos é pre­
ciso qualquer raciocínio : basta-nos uma simples
auto-intuição para nos apercebermos da nossa pró­
pria existência. BERGSON observa exactamente a
este respeito : «Há pelo menos uma realidade
que todos nós compreendemos intimamente, por
intuição e não por simples análise. É o nosso
eu, que existe. Não podemos co-experimentar
intelectualmente nenhuma outra coisa. Mas é
certo que nos experimentamos a nós próprios».
(Introdução à Metaflsica, 1912).
Se passarmos agora às esferas do valor, vemos
que onde a intuição é menos discutida é na
esfera estética. Quase nooca se discutiu a sério
que o valor estético de uma imagem, de uma obra
de arte, de uma paisagem, seja apreendido por
nós de um modo imediato, emocional, ou seja,
que haja uma intuição estética. Basta, com efeito,
uma simples reflexão para vermos que assim é.
142 TEORIA DO CONHECIMENTO

Se quando vivemos, por exemplo, a beleza de


uma paisagem, tentássemos comunicá-la e revelá-la
mediante operações intelectuais a outra pessoa que
não sentisse a beleza, veríamos logo que era
uma tentativa empreendida com meios inade­
quados. Os valores estéticos não podem aper­
ceber-se nem intelectual nem discursivamente, mas
só emocional e intuitivamente. É certa a frase
do poeta : «Se não o sentes é inútil quereres
alcançá-lo».
Já a coisa não é tão simples na esfera ética.
Quando valOrIzamos as intenções e as acções
humanas, dando a um facto o predicado de
«boIll» e a outro o de «mau», este juízo de
valor tem lugar, segundo uma concepção muito
generalizada, aplicando uma unidade de medida,
uma norma moral, às acções correspondentes, que
são medidas de certo modo com ela. Os nossos
juízos morais e de valor assentam, assim, num
conheCimento discursivo-racional. Não se pode
negar que há, com efeito, juízos de valor obtidos
desta maneira. Mas não são os primeiros nem
os fundamentais. Estes baseiam-se antes numa
experiência e apreensão imediata, emocional dos
valores. Isto revela-se também no facto de que
não nos é possível tomar acessíveis esses valores
a outras pessoas por via intelectual. Como observa
exactamente MESSER, «quem, ao comparar um
egoísta com uma pessoa moralmente pura, não
veja com Íntima convicção, com imediata evidên­
cia, o valor objectivo mais elevado desta última,
também não poderá compreendê-lo com provas
AS ESPÉCIES DO CONHECIMENTO 143

intelectuais». (Etica, 1918). E ainda que se con­


ceda que o valor moral de deterllÚnadas formas
de conduta (por exemplo : a justiça, a temperança,
a pureza) pode provar-se, pelo menos até certo
modo, mediante uma consideração racional da
essência e do fim do homem, teremos de concor­
dar, por outro lado, que o íntimo valor, a verda­
deira qualidade valiosa de sentimentos como a
justiça, a temperança e a pureza, só pode experi­
mentar-se e viver-se imediatamente, só pode conhe­
cer-se intuitivamente.
Consideremos fmalmente, em breves palavras,
a esfera do valor religioso. Também há nela
uma concepção muito generalizada que sustenta
que o valor objecto da vida religiosa, o objecto
da rehglão, só pode conhecer-se por via discur­
sivo-racional. Mas a história e a psicologia da
religião demonstram, pelo contrário, que a vivênCIa
e a mtmção também representam um papel pre­
ponderante na esfera religiosa. Na sua obra sobre
A experi�ncia religiosa como problema filos6fico, observa
o psicólogo da religião OESTERREICH : «Onde existIr
uma intensa vida religiosa, encontramos a crença
de estar em imediato contacto de consciência com
Deus. O · divino deixa de ser transcendente, entra
na esfera do imanente, é experimentado e vivido
imediatamente». O mesmo diz VOLKELT no seu
opúsculo, tão valioso, Que é a religião ?, quando
vê o peculiar da vida religiosa em que «criamos
intimidade de modo imediato, isto é, não por
meio do pensamento, nem do raciocínio, nem
da demonstração, com um objecto que se estende
144 TEORIA DO CONHECIMENTO

até à esfera do inexperimentáve1». «De mil maneI­


ras - diz ele - se tem atestado o facto de que
existe uma certeza intuitiva absolutamente peculiar,
ali onde o homem estiver ImedIatamente certo
de sentir-se em união com o Infinito, com o
Absoluto, com o princípIo maIS profundo de todo
o ser, com o etemamento unO».
Ao expor a históóa do problema da intuição,
vimos o papel importante que a teoria do conhe­
cimento intuitivo-nústico de Deus representou na
história da filosofia e da teologia. Desde SANTO
AGOSTINHO, que consolidou a teoria, continuando
PLOTINO, que a introduziu na nústica cristã da
Idade MédIa, corre uma linha quase contínua
até ao presente, em que SCHELER, na sua obra
Do eterno no homem, considera justamente como
o fim dC?s seus esforços na fi.osofia da rehgIão
«apresentar de um modo cada vez mais claro esse
con�acto imediato da alma com Deus, contacto
que SANTO AGOSTINHO se esforçava por seguir
sempre, na experiência do seu grande coração e
exprimir em palavras por meio do pensamento
neo-platónico» (1).
Os defensores do intelectualismo religioso, que
só admitem um · conhecimento dIscursivo-racional
na esfera religiosa, como GEYSER, MESSER e outros,
partem de um pressuposto falso. Confundem a
religião com a metaf{sica. Na esfera metafísica só
há, como vimos, um conhecimento racional. A razão

(1) Mais pormenores sobre este assunto na minha obra Santo Agostinho
e o seu significado na actuali4ade. Sturtgart. 1924.
AS ESpaCIES DO CONHECIMENTO 145

tem a última palavra. Mas os aludidos filósofos


não vêem que Deus não é objecto da metafísica,
mas sim da religião. A metafísica trata exclusi­
vamente do absoluto, do principio do universo.
Mas este absoluto da metafísica é toto coelo dis­
tinto do Deus da reJigião. Aquele é um ser,
este é, em primeiro lugar, um valor. E como
todos os valores, também o valor de Deus nos
é dado exclusivamente pela experiência interna.
Deus não chega à nossa presença na atitude
metaf'Isico-racional, mas só na experiência reli­
giosa.
Devemos opor ao intelectualismo religIOSO o
facto de que a certeza que o homem religioso possui
acerca de Deus é de {ndole completamente distinta
da que se obtém mediante complicados raciocí­
nios metaf'lSicos. Se a fé religiosa em Deus
assentasse em semelhantes bases, não possuiria essa
absoluta invencibilidade que tem, efectivamente,
no homem religioso. Nmguém até hoje se deixou
martirizar por uma hipótese metafísica ; mas milhões
de homens, dentro e fora do cristianismo, derra­
maram a última gota do seu sangue pela sua fé
em Deus. Este facto fala uma linguagem sufi­
cientemente clara para todo aquele que não for
parcial.

10
v

o CRITÉRIO DE VERDADE

1. O conceito de verdade

Resta-nos por investigar uma última questão :


a do critério de verdade. Não é suficiente que os
nossos juízos sejam verdadeiros ; necessitamos da
certeza de que o são. O que nos dá a certeza �
Como é que conhecemos que um juízo é verda­
deiro ou falso � Esta é a questão do critério da
verdade. Antes de poder responder-lhe necessitamos
de ter um conceito claro de verdade.
Falámos já com frequência deste conceito. Na
descrição do fenómeno do conhecimento vimos
que, para a consciência natural, a verdade do
conhecimento consiste na concordância do con­
teúdo do pensamento com o objecto. Designámos
esta concepção como conceito transcendente da
verdade. Mas ao lado deste há outro que pode­
mos designar por conceito imanente da verdade.
Segundo este, a essência da verdade não assenta
na relação do conteúdo do pensamento com algo
que se encontra perante o nosso pensamento, algo
148 TEORIA DO CONHECIMENTO

transcendente ao pensamento, mas sim com algo


que reside dentro do próprio pensamento. A ver­
dade é a concordância do pensamento consigo
mesmo. Um juízo é verdadeiro quando está
formado em relação com as leis e as normas do
pensamento. A verdade significa, deste modo,
algo puramente formal ; coincide com a correcção
lógica.
A decisão sobre qual dos conceitos de verdade
é o justo, encontra-se implícita na posição que
tomámos na discussão entre o idealismo e o
realismo. Julgámos dever decidir esta discussão
a favor do realismo. Isto significa pôr de lado
° conceito imanente da verdade ; pois este con­
ceito pode caracterizar-se igualmente como con­
ceito idealista da verdade. Este conceito só tem
sentido no terreno do idealismo ; pois só se não
há objectos extra-conscientes reais tem sentido
conceber a verdade de um modo puramente
imanente. Esta concepção é então necessária ; pois
se não há objectos independentes do pensamento,
achando-se todo o ser dentro da esfera deste, a ver­
dade só pode residir na concordância mútua dos
conteúdos daquele, na correcção lógica.
O conceito imanente da verdade pode conci­
liar-se também com aquela posição epistemológica
a que EDUARDO HARTMANN chama o «idealismo
inconsequent�, e que nós estudámos sob o nome
de fenomenalismo. Segundo este, há objectos
independentes do pensamento, coisas em si; mas
são completamente incognoscíveis. Por isso não
tem sentido, debaixo deste ponto de vista, consi-
o CRITÉRIO DE VERDADE 149

derar a verdade como a concordância do pensa­


mento com os objectos ; acerca desta concordância
nada podemos dizer, porque não conhecemos os
objectos. A verdade do conhecimento só pode
por conseguinte consistir na produção correcta
- conforme as leis - do objecto, isto é, em
que o pensamento concorde com as suas próprias
leis.
Como vimos, esta posição, defendida por KANT,
não pode sustentar-se. O dilema é : ou se negam
as coisas em si e institui-se um rigoroso idea­
lismo, como fez o neokantismo desenvolvendo
as ideias kantianas, ou se reconhecem objectos
re--caÍs, independentes da consciência, como fez o
próprio KANT. Mas neste caso é impossível pres­
cindir da relação com os objectos nos conceitos
do conhecimento e da verdade. Também em
KANT os objectos representam um papel impor­
tante na explicação genética do conhecimento.
Eles são a causa das sensações, que se produzem
porque as coisas em si afectam a nossa cons­
ciência. É certo que as sensações, segundo KANT,
carecem de toda a ordem e determinação. Mas,
como já vimos anteriormente, o facto de apli­
carmos às sensações esta ou aquela forma da
intuição ou do pensamento, torna necessário pres­
supor um fundamento objectivo do mesmo no
material das sensações. Ainda que o espaço e o
tempo só existam formalmente na nossa cons­
ciência, devemos admitir que os objectos têm
em si certas propriedades que nos induzem a
empregar essas formas da intuição. E o mesmo
150 TEORIA DO CONHECIMENTO

se pode dizer das formas do pensamento, das


categorias. Ainda que a causalidade seja propria­
mente uma forma do pensamento, necessitamos
supor que tem um fundamentum in re, se queremos
explicar o facto de que determinadas percepções
nos induzem a empregar justamente esta categoria.
ENRIQUE MAIER observa exactamente : «A forma
em que os elementos das nossas representações
da realidade aludem ao trans-subjectivo, força­
-nos a supor neste x certa estrutura, certas pro­
priedades positivas». (Psicologia do pensamento emo­
cional).
Mas, objectar-se-á, esta maneira de ver não
nos faz voltar àquele conceito do conhecimento
que considera este como uma reprodução, uma
cópia do mundo objectivo, e que declarámos
exclusivista e inadmissível � Esta objecção, porém,
é precipitada. Assenta neste dilema : o conheci­
mento é ou uma produção ou uma reprodução
do objecto. Mas esta disjuntiva é incompleta.
Com razão adverte KÜLPE : «Há que precaver­
-nos da disjuntiva incompleta segundo a qual
o conhecimento é, necessàriamente, ou uma criação
ou uma cópia. Há um terceiro termo : uma
apreensão das realidades não dadas, mas que se
revela por meio do dado». (Realização, I). O nosso
conhecimento está e estará em relação com os
objectos. Não há idealismo que possa pôr em
dúvida este ponto. Mas esta relação não neces­
sita de consistir numa reprodução ; basta admitir
que entre o conteúdo do pensamento e o objecto
existe uma coordenação, uma relação regular.
o CRITÉRIO DE VERDADE 151

Os conteúdos do nosso pensamento não são


reproduções, mas sim «símbolos das propriedades
trans-subjectiva$&, para falar como M..AmR. Mas,
acrescente-se, «este conhecimento simb6lico abstracto
é capaz de penetrar profundamente no reino do
trans-subjectivo».
Deste modo vimos confirmar a concepção que
a consciência natural tem do conhecimento humano
e que descrevemos ao princípio. Mas esta con­
firmação significa por sua vez uma depuração
cr(tica daquela concepção. A ideia básica, segundo
a qual o conhecimento representa uma relação
entre um sujeito e um objecto, é sustentável.
Mas com este conceito de conhecimento fica
também justificado, em princípio, o conceito da
verdade que tem a consciência natural. Para
esta é essencial a relação do conteúdo do pensa­
mento com o objecto. Esta relação não significa,
porém, uma reprodução, mas sim uma coordenação
regular, e é aqui onde a concepção natural sofre uma
correcção.
O idealismo representa a tentativa de suprimir
o dualismo do sujeito e do objecto no problema
do conhecimento e de instituir um monismo epis­
temológico. O idealismo faz esta tentativa porque
julga poder suprimir deste modo todas as dificul­
dades inerentes ao problema do conhecimento ;
pois estas parecem-lhe ter a sua origem mais
profunda no dito dualismo. Mas esta interpre­
tação monista do fen6meno do conhecimento,
violenta a realidade. Funda-se, com efeito, em
fazer valer uma s6 das três esferas em que toca
152 TEORIA DO CONHECIMENTO

o fen6meno do conhecimento. Esta esfera é a


16gica. O aspecto psico16gico e o aspecto onto-
16gico do fen6meno do conhecimento são, por
assim dizer, escamoteados em favor do 16gico.
Por isso podemos designar esta posição com o
nome de logicismo.

2. O critério de verdade

A questão do critério de verdade está em


estreita relação com a questão do conceito de
verdade. Isto pode demonstrar-se fàcilmente no
idealismo 16gico. A verdade significa, para ele,
como já vimos, a concordância do pensamento
consigo mesmo. Como poderemos conhecer esta
concordância l A resposta é : na ausência de con­
tradição. O nosso pensamento concorda consigo
mesmo somente quando está livre de contradi­
ções. O conceito imanente ou idealista traz con­
sigo, necessàriamente, o considerar a aus�ncia de
contradição como critério de verdade.
A ausência de contradição é, com efeito, um
critério da verdade ; não um critério geral válido
para todo o conhecimento, mas sim um critério
válido somente para uma classe determinada de
conhecimento, para uma esfera determinada deste.
Toma-se claro qual é esta esfera : é a esfera das
ci2ncias formais ou ideais. Pense-se na 16gica ou
na matemática : o pensamento não se encontra
com objectos reais, mas sim com objectos mentais,
ideais ; permanece, de certo modo, dentro da sua
o CRITÉRIO DB VERDADB 153

própria esfera. É válido, portanto, o conceito


imanente de verdade e, por conseguinte, também
o critério da mesma, com ele dado. O meu
juízo é, neste caso, verdadeiro, quando está for­
mado consoante as leis e normas do pensamento.
E conhecemos que é assim na ausência de contra­
dição.
Mas este critério fracassa logo que se não trate
de objectos ideais, mas sim de objectos reais ou
de objectos de consciência. Para este caso neces­
sitamos de procurar outros critérios de verdade.
Detenhamo-nos antes de tudo nos dados da cons­
ciência. Possuímos uma certeza imediata do ver­
melho que vemos ou da dor que sentimos. Aqui
temos outro critério de verdade. Consiste na
presença ou realidade imediata de um objecto. Segundo
isto, são verdadeiros todos os juízos que assentam
numa presença ou realidade imediata do objecto
pensado. Fala-se também de uma «evidência da
percepção interna» (MEINONG). VOLKELT quer dizer
o mesmo quando fala de uma «auto-certeza da
consciência». Esta é para ele «um princípio de
certeza absolutamente último,. (Certeza e verdade).
Caracteriza esta certeza mais concretamente como
uma certeza pré-16gica. Isto significa que nesta
certeza não toma parte o trabalho do pensa­
mento. VOLKELT inclui nesta classe de certeza,
não só a percepção imediata de determinados
conteúdos da consciência, mas também a das
relações existentes entre eles. No círculo da auto­
-certeza da consciência não só entra o juízo
((Vejo um preto e um branco», mas também
154 TEORIA DO CONHECIMENTO

o juízo «o preto é diferente do branco.. Isto


fWlda-se em que «simultâneamente com estes dois
conteúdos da sensação, a que chamamos preto
e branco, em relação à linguagem usual, é-nos dada
a sua diversidade».
Pois bem ; cabe perguntar se o critério da evidên­
cia imediata é válido, não só para os conteúdos
da percepção, mas também para oS conteúdos
do pensamento. Esta questão equivale à de se além
da evidência da percepção há uma evidência do
pensamento conceptual e se podemos ver nela um
critério de verdade.
Muitos filósofos respondem logo afirmativa­
mente a esta questão. Esta afirmação pode ter
um duplo sentido. Pod.e entender-se por evidên­
cia qualquer coisa de i"acional ou de racional.
No primeiro caso, a eVIdência é sinónimo do
sentimento de evidência, isto é, de uma certeza
emocional imediata. Este sentimento dá-se com
todo o conhecimento intuitivo. Representa algo
subjectlvo, e não pode pretender, portanto, a vah­
dade universal. A peculiaridade da certeza intui...
tiva consiste, justamente, em que não pode ser
provada de um modo logicamente convincente,
universalmente válido, mas que só pode ser vivida
pessoalmente. Mas isto não significa de modo
algum renunciar à objectividade. O juízo «uma
personalidade moralmente pura encarna um valor
moral mais alto que um homem entregue a baixos
prazeres., exprime um facto ético objectivo e pode,
por conseguinte, pretender a objectividade, ainda
que não consiga obter pela força da lógica o seu
o CRITÉRIO DE VERDADE 155

reconhecimento e careça, portanto, de validade


wllversal. Há que distinguir entre a objectividade
e a validade universal. Muitas objecções contra a
intuição e o conhecImento mtuítivo, assentam justa­
mente em não saber distinguir entre a objecti­
vidade e a validade wllversal do conhecimento.
Todo o conhecimento científico possui vali­
dade wllversal. Importa identificar o conheci­
mento científico com o conhecimento wllversalmente
válido. Por conseguinte, não pode tomar-se em
consideração a evidência no sentido descrito, como
critério de verdade, na esfera teórica e CIentífica.
Se alguém qwsesse, por exemplo, justificar as leis
supremas do pensamento recorrendo ao senti­
mento de evidência que acompanha a compreen­
são dessas leias, e dissesse, v. gr., «estes juizos são
verdadeiros porque me sinto intimamente com­
pelido a tê-Ios por verdadeiros», isto significaria
renunciar à validade wllversal e, por conseguinte,
terminar com toda a filosofia científica.
Não obstante, muitos filósofos sustentam que
a evidência é um critério de verdade na esfera
teórica. Mas entendem a evidência no segundo
sentido anteriormente indicado. A evidência não
é para eles algo emocional, irracional, mas sim
intelectual, racional. Significa para eles a visão
imediata do objectivamente dado. Esta evidên­
cia apresenta-se como uma evidência lógica ou
objectiva, em contraste com a evidência psico­
lógica ou subjectiva anteriormente tratada. Mas
esta distinção não conduz ao fim que se pre­
tende. Os filósofos que a fazem não podem
156 TEORIA DO CONHECIMENTO

distinguir, dentro da evidência lógica ou objec­


tiva, entre evidência verdadeira e falsa, real e
aparente, autêntica e apócrifa. Mas isto é aban­
donar a evidência como próprio e último critério
da verdade, pois agora necessitamos de outro cri­
tério que nos diga quando e aonde se trata de
uma evidência verdadeira e autêntica; e quando
e aonde se trata de uma evidência meramente
aparente e apócrifa.
Não é verdadeira solução da dificuldade a
que oferece GEYSER no seu opúsculo Sobre a ver­
dade e a evid�ncia. GEYSER distingue entre a evid�ncia
e a viv�ncia da evid�ncia, e entende pela primeira
o facto objectivo a que se refere o juízo. Esta
solução parece à primeira vista vencer a difi­
culdade, pois a distinção entre evidência autên­
tica e evidência apócrifa, não se referiria então
à própria evidência, mas sim à vivência da evi­
dência. Mas não é lícito colocar a evidência fora
da consciência, como o faz GEYSER. Entenda-se
por evidência o que se quiser; em todo o
caso, nela não se pode prescindir da relação
com a consciência cognoscente, quer se carac­
terize esta relação - a partir do objecto ou do
facto - como um ver claramente, quer se carac­
terize a partir da consciência, como um aperceber
ou ter a intuição. Como GEYSER emprega a
palavra evidência num sentido contrário ao uso
filosófico só aparentemente foge à dificuldade que
existe neste ponto.
Sem dúvida há também uma evidência na
esfera do pensamento. Juízos como «todos os
o CRITÉRIO DE VERDADE 157

corpos são extensos)) ou «o todo é maior do


que a parte» são juízos cuja verdade sobressai
imediatamente. Mas não pode considerar-se a
evidência como a verdadeira base da validade destes
juízos. A evidência só é a forma em que o
lógico se faz sentir na nossa consciência. «A única
coisa que se pode dizer é que a pura necessidade
objectiva do lógico apresenta-se subjectivamente
à nossa consciência sob a forma de uma certeza
imediata. Por isso, quando se trata de funda­
mentar logicamente um juízo, não pode respon­
der-se à pergunta de saber em que consiste o
critério da certeza da fundamentação, dizendo
que consiste na certeza imediata com que o
juízo se Impõe ; deve antes dizer-se que consiste
somente em que o fundamento aduzido fundamente
o juízo em questão de um modo logicamente con­
vincente». (VOLKELT) .
O fundamento lógico dos dois juízos citados
não reside na evidência, mas sim nas leis lógicas
do pensamento. Se analisamos o conceito de corpo,
encontramos nele a nota da extensão ; do mesmo
modo encontramos, ao analisar o conceito de
«todo", que ele é necessàriamente maior que a
sua parte. Nestas análises de conceitos dirigem­
-nos as leis lógicas do pensamento, o princípio
de identidade e o princípio de contradição. Nelas
radica a verdade daqueles juízos. Quem não
reconhece aqueles juízos nega indirectamente as
leis lógicas do pensamento. Estas constituem, por
conseguinte, o último fundamento da validade
daqueles juízos.
158 TEORIA DO CONHECIMENTO

Se pergW1tarmos qual é o fundamento das


próprias leis supremas do pensamento, é evidente
que estas leis têm que se fundar em si mesmas.
Mas esta auto-fundamentação não repousa por
sua vez na evidência, mas sim no carácter de pres­
supostos necessários de todo o pensamento e
conhecimento que essas leis têm. Nestas leis
revela-se a estrutura, a essência do pensamento.
Não são outra coisa que formulações das leis
essenciais do pensamento. A sua negação signi­
fica, por conseguinte, a anulação do próprio
pensamento. Todo o pensamento e conhecimento
são impossíveis sem elas. Nisto reside a sua justi­
ficação. É esta a fundamentação que KANr expôs
pela primeira vez, designando-a por «dedução trans­
cendentaI..
Mas há princípios do conhecimento que não
podem reduzir-se às leis lógicas do pensamento.
Tal é, por exemplo, o princfpio de causalidade.
Como veremos mais tarde, não é possível fW1da­
mentar este princípio pelo caminho da análise
dos conceitos. Só é possível dar-lhe também
uma fundamentação transcendental. Consiste esta
no carácter que o princípio de causalidade tem
de pressuposto necessário, não de todo o conhe­
cimento e pensamento, mas de todo o conhe­
cimento científico real, dirigido ao ser e ao vir
a ser reais. Na esfera do ser e vir a ser reais
não podemos dar um só passo de conhecimento
senão partirmos do pressuposto de que tudo
que sucede tem lugar regularmente e está domi­
nado pelo princípio de causalidade. O funda-
o CRITmuO DB VERDADB 159

mento, portanto, também não reside, neste caso,


na evidência, mas sim na significação deste prin­
cipio, destinado a servir de fundamento ao conhe­
cimento. Em geral, podemos dizer como SWlTALSXI:
«o que garante a validade dos principios não é a
vivência matizada da evidência, mas sim a íntima
intuição da fecundidade sistemática dos mesmos•.
(Problemas do conhecimento, n).
SEGUNDA PARTE

TEORIA ESPECIAL DO CONHECIMENTO

1. Seu problema

A teoria do conhecimento estuda a signifi­


cação objectiva do pensamento humano, a relação
deste com os seus objectos. A referência de todo
o pensamento aos objectos constitui o objecto
formal da teoria do conhecimento. Por isso a
caracterizamos também como teoria do pensa­
mento verdadeiro.
Pois bem; enquanto que a teoria geral do conhe­
cimento investiga a relação do nosso pensamento
com os objectos em geral, a teoria especial do conhe­
cimento atende aos conteúdos do pensamento em
que esta relação encontra a sua expressão mais
elementar. Por outras palavras, investiga os conceitos
básicos mais gerais, por meio dos quais procuramos
deftnir os objectos. Estes conceitos supremos cha­
mam-se categorias. A teoria especial do conheci­
mento é, por conseguinte, essencialmente, uma teoria
das categorias.
Enquanto teoria das categorias, a teoria espe­
cial do conhecimento encontra-se na mais estreita
11
162 TEORIA DO CONHECIMENTO

relação com a metafísica geral ou ontologia; pois esta,


como teoria do ser, investiga também, naturalmente,
os conceitos mais gerais que se referem ao ser. Mas
as categorias são tratadas pela teoria esp ecial do
conhecimento e pela metafísica debaixo de pontos
de vista diferentes. «A teoria das categorias», observa
VOLKELT, «está em relação estreita com a meta­
física ; uma e outra investigam os mesmos con­
ceitos, mas a maneira de pôr o problema é
essencialmente diferente em ambas as ciências.
A teoria das categorias fixa a sua atenção na origem
lógica destas formas do pensamento ; investiga como
brotam estes conceitos das leis essenciais do pensa­
mento em concorrência com o carácter do que é
dado empiricamente. Deste modo fica assente que
a teoria das categorias realiza esta investigação exclu­
sivamente do ponto de vista da validade. A discussão
da origem lógica das categorias é por sua vez uma
explicação do carácter da sua validade. A meta­
física tem uma orientação muito diferente ; o ponto
de vista que lhe serve de norma é o do ser. A meta­
física quer chegar a conhecer a estrutura essencial
do universo, os princípios de toda a realidade, par­
tindo dos factos da experiência» . (Certeza e Ver­
dade,).
Na exposição da teoria especial do conheci­
mento procederemos do modo seguinte. Discuti­
remos primeiro a essência das categorias, isto é,
a questão da sua validade objectiva. Ocupar-nos­
-emos em seguida dos diferentes ensaios realiza­
dos para estabelecer um sistema de categorias. Esco­
lheremos depois as duas categorias mais importantes,
TEORIA ESPECIAL DO CONHECIMENTO 163

a substância e a causalidade, para fazê-las objecto


de uma discussão especial. E, como conclusão
examinaremos brevemente a questão da relação
entre a fé e o saber.

2. A essência das categorias

É evidente que a posição epistemológica que


em princípio se adoptou é decisiva para a con­
cepção das categorias. Se o conhecimento humano
é, como ensina ARISTÓTELES, uma reprodução dos
obj.ectos, se estes têm uma forma e uma natu­
reza próprias, então, os conceitos fundamentais
do conhecimento, as categorias, representam pro­
priedades gerais dos objectos, qualidades objec­
tivas do ser. Se, pelo contrário, o pensamento
produz os objectos, como ensina KANT, as cate­
gorias são puras determinações do pensamento,
formas e funções a priori da consciência. Duas
concepções da essência das categorias se encon­
tram, pois, frente a frente : segundo uma, as
categorias são formas do ser, propriedades dos objectos;
segundo a outra, são formas o u determinações do pensa­
mento. Aquela é a concepção realista e objcctivista ;
esta, a idealista e apriorista.
Esta última é hoje defendida pelo neokantismo,
que desenvolveu, como vimos, o idealismo trans­
cendente de KANT num rigoroso panlogismo. Segundo
ele, os objectos são produzidos pela nossa cons­
ciência cognoscente, não só quanto à sua essência
como também quanto à sua existência. Os meios
164 TBORIA DO CONHECIMENTO

principais de que nos servimos para isso são as cate­


gorias. Estas são, por conseguinte, «elementos do
pensamento purO» (COHEN), «funções lógicas funda­
mentaiS» (NATORP). Temos aqui, pois, uma concepção
das categorias rigorosamente idealista e apriorista.
As categorias não são mais do que puras determi­
nações do pensamento.
No terreno da concepção objectivista das cate­
gorias encontram-se hoje a fenomenologia, a teoria
do objecto e o realismo critico. O fundador da
fenomenologia, EDMUNDO HUSSERL, distingue nas
suas ldeias sobre uma fenomenologia pura e uma inves­
tigação fe1lomenol6gica, entre as categorias formais ou
lógicas e as categorias materiais ou regionais. pelas
primeiras entende «aqueles conceitos mediante os
quais se define a essência lógica de um objecto em
geral no sistema total dos axiomas, o que exprimem
as propriedades absolutamente necessárias e cons­
titutivas de um objecto como tal». Diferentes destas
são as categorias materiais ou regionais. «Estes
conceitos não exprimem simples especificações de
categorias lógicas puras, como os conceItos gerais,
mas distinguem-se porque exprimem, em conse­
quência dos axiomas regionais, o peculiar da essência
regional ou, o que é o mesmo, exprimem com u1liver­
salidade eidética o que é por 1lecessidade inere1lte, a priori
e de um modo si1ltético, a um objecto i1ldividual da
reglao». A concepção objectivista ressalta clara­
mente tanto na definição d.as categorias formais
como na das materiais. SCHELER exprime-se 110
mesmo sentido sobre a essência das categorias,
quando aconselha, ao criticar KANT : «Tanto o
TEORIA BSPECIAL DO CONHECIMENTO 165

material das sensações, caótico e informe, como


as fimções de smtese regular (as fWlções das cate­
gorias), que não se encontram por nenhuma parte,
são puras invenções de KANT, uma condição da
outra. As unidades formais que KANT dá como
exemplos das suas categorias e muitas outras que
não aponta, são propriedades dos objectos que per­
tencem ao próprio dado : assim é com a substância
e a causalidade, as relações, as figuras, etc.,.. (Do
eteme} ne} homem).
As categorias apresentam-se também assim como
propriedades dos objectos na moderna teoria do
objecto, fimdada por Auoous MmNONG. Esta teoria
tem por concepção básica, com efeito, a de que a
consciência cognoscente se encontra perante objectos
acabados, defuiidos por si. Daqui resulta, desde logo,
a concepção objectivista das categorias. O filósofo
HANS DRIESCH, fortemente influenciado pela teoria
do objecto, considera assim, coincidindo por completo
com a concepção que impera nesta teoria : «Há que
combater em absoluto a doutrina de que o dado é
um «material,. em bruto, caótico, que eu elaboro
de um modo activo com formas de ordem : eu
.

tenho a intuição do dado nas suas formas de ordem


intuitivas e não intuitivas». (O saber e o pensa­
mento, 1919)�
Salientou-se sobremaneira na tentativa de fWlda­
mentar epistemolôgicamente a concepção objecti­
vista das categorias OSWAL KÜLPE, a quem já conhe­
cemos como um dos principais representantes do
realismo critico. No seu ensaio Sobre a teoria das
categorias, procura defender o objectivismo, fazendo
166 TEORIA DO CONHECIMENTO

sete objecções de princípio à concepção idealista e


apriorista. O idealismo não consegue, · segundo ele,
tomar compreensível para a natureza do pensamento,
nem a diversidade das próprias formas das categorias,
nem a diversidade das suas esferas de validade.
E também não pode explicar o facto «de que as
.

determinações das categorias estão em conexão


regular com outras, e de que a afirmação da exis­
tência de uma categoria ou de um complexo . delas,
em relação a um ou a vários objectos; se faça com
segurança e um rigor que não cedem à compro­
vação das realidades empíricas imediatas». A con­
cepção idealista fica, portanto, perplexa perante o
problema da união das propriedades das categorias
com as restantes inerentes ao objecto. Tamb�
não pode dar uma explicação satisfatória à depen­
dência dos sistemas de categoria em relação às esferas
de objectos, dependência que sobressai de um modo
especialmente claro na fuosofia moderna. A solução
idealista do problema tropeça, finalmente, com
outras duas dificuldades de princípio. A primeira
relaciona-se com a posição lógica dos conceitos das
categorias. «Se as funções do pensamento se limitam
a descobrir as propriedades das categorias nos objectos
e a demonstrar que são qualidades ou relações
destes, pode recorrer-se a uma escala lógica,
subindo até elas ou descendo delas, sem um salto
nem uma mudança de direcção. A validade uni­
versal é então o simples resultado de se encontrar
à cabeça de toda a ordem. Mas se as formas ou
as funções do pensamento são o conteúdo dos
conceitos fundamentais, não se vê fàcilmente
TEORIA ESPECIAL DO CONHECIMENTO 167

como possam obter ou conservar a sua proemi­


nência lógica». A segunda dificuldade está rela­
cionada com a posição da psicologia perante as
categorias. A psicologia considera as categorias,
não como funções psíquicas primárias, como exigia
a concepção idealista, mas sómente como direcções
e operações especiais das mesmas. De tudo isto
resulta que «as determinações categoriais se limitam
a fixar as qualidades e as relações mais gerais inerentes
aos objectos).
KÜLPB tem naturalmente razão ao afirmar que
não é possível obter as categorias mediante o
pensamento puro. Na sua produção, não só toma
parte o pensamento, como também a expenência.
Por consequência, as categorias apontam os objectos
e as propriedades destes. Não há idealismo nem
apriorismo que possa tirar-lhes esta sua referên­
cia aos objectos. Mas com isto não se disse,
no entanto, que as categorias sejam reproduções
adequadas das propriedades dos objectos. Em
relação ao exposto acerca do problema do sujeito
e do objecto, a única coisa que podemos dizer
é que os objectos devem ter tal natureza que nos
induzam a aplicar-lhes determinadas categorias.
Devem existir, por consequência, relações regu­
lares entre o objecto e as categorias. Podemos
resumir também a nossa concepção dizendo, com
EISLBR, «que as propriedades dos conteúdos da
experiência se acham em estreita relação com
modalidades dos factores transcendentes de que
dependem. Ainda que a natureza e as formas
de acção destes factores como tais não sejam
168 TEORIA DO CONHECIMENTO

directamente cognoscíveis - mas sim concebíveis-,


temos pelo menos um conhecimento indirecto,
simbólico, deles, uma tradução do seu ser na lingua­
gem da consci�ncia. Não existe, por conseguinte,
identidade ou igualdade entre a consciência cognos­
cente e a realidade absoluta ; mas existe, sim,
uma coordenacão de determinados elementos do
ser fenoménico com o ser em si das coisas,
na qual assenta a objectividade do conhecimento,
a possibilidade de um conhecimento universalmente
válido dos próprios objectos pelos mais diversos sujeitos».
(Introdução à teoria do conhecimento).

3. O sistema das categorias

No decurso da história da filosofia têm-se


feito muitas tentativas para agrupar as catego­
rias, para formar um sistema de categorias. A pri­
meira foi de ARISTÓTELES. Este distingue dez
«classes de afirmações sobre o ser» ou categorias :
1. Substância ou essência (por exemplo, homem,
cavalo). 2. Quantidade (por exemplo, duas ou
três varas de comprimento). 3. Qualidade (por
exemplo, sábio, culto). 4. Relação (por exem­
plo, menor que este, maior do que aquele).
5. Lugar (por exemplo, no mercado). 6. Tempo
(por exemplo, hoje, ontem). 7. Posição (por
exemplo, está deitado, está sentado). 8. Estado
(por exemplo, está vestido, está armado). 9. Acção
(por exemplo, corta). 1 0. Paixão (por exemplo,
é cortado).
TEORIA BSPECIAL DO CONHECIMENTO 169

ARISTÓTELES obtém esta tabela das categorias


considerando a proposição enunciativa. Os ele­
mentos essenciais da proposição são o sujeito
e o predicado. A categoria aristotélica da subs­
tância não é no fundo outra coisa que o sujeIto
substantivo ; as outras nove categorias, que signi­
ficam puros acidentes são os possíveis predi­
cados. Podem condensar-se as dez categorias numa
frase : «O grande (quantidade) cavalo (substância)
castanho (qualidade) do cavaleiro (relação) está
(posição ou acção ou paixão) arreado (estado) de
manhã (tempo) no pátio (lugar)•.
Contra o sistema aristotélico das categorias
tem-se feito observar com razão que o pressu­
posto que lhe serve de base, o paralelismo entre
as classes das palavras e as categorias, não é exacto.
KANT significa, por conseguinte, um progresso
sobre ARISTÓTELES quando pretende derivar as
categorias, não das classes de palavras, mas das
classes de juízos. Segundo KANT, o entendimento
é a faculdade de julgar. Em toda a classe de
juízo, a união (síntese) do sujeito e do predi­
cado verifica-se sob um determinado ponto de
vista. A categoria indica precisamente este ponto
de vista. Portanto, segundo KANT, podem distin­
guir-se tantas categorias como classes de juízos.
Os juízos dividem-se do seguinte modo : 1.0, pela
quantidade, isto é, a extensão da sua validade,
em singulares (este S é P), particulares (alguns S
são P) e universais (todos os S são P) ; 2.°, pela
qualidade, em afirmativos (S é P), negativos (S não
é PJ e ínflIlÍtos (5 é um não P) ; 3.°, pela rela-
170 TEORIA DO CONHECIMENTO

ção entre as representações enlaçadas, em cate­


góricos (S é P), hipotéticos (se S é P, não
é Q) e disjuntivos (S é ou P ou Q) ; 4.°, pela
mocklidade, isto é, o seu valor cognitivo, em
problemáticos (S é talvez P), as�ertóricos (S é P)
e apodíticos (S é necessàriamente P).
O sistema das categorias corresponde a este
sistema de classes de juízos : 1 .° categorias da
quantidade : unidade, pluralidade, totalidade. 2.°
categorias da qualidade : realidade, negação, limi­
tação. 3.° categorias da relação substância-acidente,
causa-efeito, acção recíproca. 4.° categorias da
modalidade : existência, possibilidade, necessidade.
O que HAUCK diz no seu ensaio sobre A origem
da tabela kantiana dos ju{zos só representa a repro­
dução da opinião, hoje quase geral, acerca da
tabela kantiana das categorias : «O erro de KANT
consiste em querer obter com a tabela dos juízos
um guia seguro para descobrir os conceitos puros
do entendimento, em vez de estruturar este mesmo
guia atendendo · aos conceitos em que está pen­
sando. Se encontra nos juízos o que procura,
é só porque ele mesmo o pôs lá anteriormente».
(Estudos kantianos, XI).
A tentativa de um sistema de categorias mais
importante que se fez depois de KANT foi a de
EDUARDO DE HARTMANN. HARTMANN defme a
essência das categorias do seguinte modo : «Entendo
por categoria - diz no prólogo da sua Teoria
das Categorias uma função intelectual incons­
-

ciente, de natureza e forma determinadas, ou


uma determinação lógica inconsciente que esta-
TEORIA ESPECIAL DO CONHECIMENTO 171

beleça uma relação determinada». As categorias


pertencem, deste modo, à esfera do inconsciente.
S6 entram na esfera da consciência pelos seus
resultados, por certos elementos formais do con­
teúdo da consciência. A reflexão consciente pode
extrair à posteriori, por abstracção, do conteúdo
da consciência, tal como se apresenta constituído
em determinado momento, as formas de relação
que intervieram na formação desse conteúdo e
obter assim os conceitos categoriais. Estes são,
pois, «os representantes na consciência das funções
das categorias inconscientes inferidas intuitivamente».
O método de que HARTMANN se serve para desco­
brir as categorias é, assim, a análise psicológica
do conteúdo da consciência.
HARTMANN divide as categorias em catego­
rias da sensibilidade e categorias do pensamento.
As primeiras dividem-se, por sua vez, em cate­
gorias da sensação e da intuição. Na esfera da
sensação, a qualidade é a primeira que se apre­
senta como o resultado de uma síntese incons­
ciente de intensidades de sensações, e, por con­
seguinte, como uma autêntica categoria. Outras
categorias são a «quantidade intensiVa» e a «quan­
tidade extenSIva» ou temporalidade. Na esfera
da intuição apresenta-se a «quantidade extensiVa»
ou espacialidade como resultado de uma função
sintética e, por conseguinte, como autêntica cate­
goria. As categorias do pensamento dividem-se
em categorias do pensamento reflexivo e do
especulativo. A «categoria fundamental» é a rela­
ção. Todas as outras categorias são, em últIma
172 TEORIA DO CONHECIMENTO

análise, «meras determinações desta categoria fimda­


mental». Às categorias do pensamento reflexivo
pertencem, antes de tudo, as categorias do pensa­
mento comparativo. As suas categorias princi­
pais são a identidade e o contraste ; as secwlClárias
são a igualdade, a seme1hança, a diferença e a negação.
A seguir vêm as categorias do pensamento divisor
e unificador. As suas categorias principais são
a pluralidade e a unidade ; as secWldárias, o todo,
a parte, a totalidade e a categoria calguns-.
Depois, vêm as categorias do pensamento men­
surativo. Categoria principal é o número ; a cate­
goria secWldária, a infinidade. Em segwda, as
categorias do pensamento discursivo. Categoria
principal, a determinação lógica ; como catego­
rias secWldárias apresentam-se as diversas formas
de determinação lógica (a dedução e a indução).
Fmalmente, vêm as categorias da modalidade :
realidade, necessidade, casualidade, possibilidade e
probabilidade. As categorias do pensamento espe­
culativo formam o segWldo grupo das categorias
do pensamento. Estas são três : causalidade, finali­
dade, substancialidade. Esta última é a principal
e a mais importante categoria : é o topo de todo
o sistema de categorias.
Como se disse, HARTMANN serve-se do método
psicológico para deduzir as categorias, analisando
o conteúdo da consciência, procurando os seus
elementos formais. Mas nesta análise intervêm
também hipóteses metafísicas, como o prova quase
cada página da obra de HARTMANN. Ora, sabe-se
que as categorias, como conceitos fWldamentais
TEORIA ESPECIAL DO CONHECIMENTO 173

do conhecimento científico, não podem ser fixadas


por via psicológico-metafísica, mas sim somente
por via lógica. Por isso significa, em prin­
cípio, um progresso sobre HARTMANN o facto de
GUILHERME WINDELBAND, no seu ensaio Sobre
o sistema das categorias, aplicar o método lógico­
-transcendental ao problema das categorias. WINDEL­
BAND vê na teoria das categorias de HARTMANN
«decididamente o ensaio mais importante e original
desde HEcEU. Se a combate é porque «a sua
notável arquitectura está baseada, em última análise,
sobre hipóteses metafísicas». Com razão, adverte
que, contràriamente a isto, o sistema das catego­
rias «só pode assentar em puros princípios lógicos».
Partindo desta ideia, desenvolve WINDELBAND no
ensaio citado o seu sistema de categorias. Define
as categorias como «as relações com que a cons­
ciência sintética une entre si os conteúdos intui­
tivamente dados». Encontramos um princípio para
deduzir as categorias «quando desenvolvemos as
possibilidades que estão contidas na essência da
unidade sintética do múltiplo e diverso e cons­
tituem as condições do exercício destas funções».
WINDELBAND divide as categorias em refle­
xivas e constitutivas. Estas últimas são relações
que convêm aos conteúdos no seu ser inde­
pendente da consciência e que, por conseguinte,
esta se limita a recolher e a repetir ; as pri­
meiras, pelo contrário, são relações em que os
conteúdos se apresentam só porque e enquanto
a consciência re1acionante os põe entre si numa
conexão que não lhes convém em si e inde-
174 TEORIA DO CONHECIMENTO

pendente desta. WINDELBAND explica esta dis­


tinção do seguinte modo : «Quando pensamos,
por exemplo, uma coisa com uma propriedade
inerente a ela (no juízo predicativo ou num
conceito de substância), a categoria da inerência,
então activa, pode considerar-se por sua vez como
uma relação real dos conteúdos da representação
tmidos sinteticamente pela consciência. Quando,
pelo contrário, julgamos sobre a igualdade ou
a diferença de duas impressões não há neces­
sidade de existir a menor conexão real entre
estas (como, por exemplo, entre um som e
uma cor) ; nunca pertence à realidade em si
de um conteúdo o ser igual a outro ou dife­
rente de outro , e a categoria é neste caso, por
conseguinte, uma relação em que os conteúdos
só entram por estarem representados juntos na
mesma consciência».
As categorias reflexivas fundamentais são, segundo
WINDELBAND, a diferença e a igualdade. Quando
se trata de uma igualdade relativamente fraca,
pode falar-se de semelhança. Todas as outras
categorias reflexivas resultam da acção recíproca
entre o diferenciar e o igualar. Essas outras
categorias são matemáticas ou lógicas. As pri­
meiras são as do número ou quantidade, o grau,
a medida e o tamanho. Como categorias lógicas
apresentam-se em primeiro lugar as funções que
tomam parte na formação da ideia geral : abs­
tracção e determinação, subordinação e coorde­
nação, divisão e disjunção. Em segundo lugar
vêm as categorias da silogística. WINDELDAND
TEORIA ESPECIAL DO CONHECIMENTO 175

entende por estas «as classes da relação de prin­


cipio a consequência ou as formas da depen­
dência lógica em virtude das quais a validade
das premissas traz consigo a da conclusão». O prin­
cipio geral que serve de base às categorias cons­
titutivas é a relação da consciência com o ser.
As suas espécies fundamentais são a objectividade
e a causalidade. WINDELBAND julga poder derivar
também estas categorias fundamentais da essên­
cia da unidade sintética da consciência, partindo
novamente da acção reciproca entre o diferen­
ciar e o igualar, mas combinando-a logo com
a relação entre a consciência e o ser. A cate­
goria fundamental da objectividade divide-se nas
categorias secundárias da inerência (relação dos
elementos com a unidade que os liga), a proprie­
dade (ou qualidade), o atributo, o modo, o estado,
a substância e a coisa em si. A categoria funda­
mental da causalidade implica como categorias
secundárias o aparecer e o desaparecer, a evolu­
ção e a acção, a força e a faculdade, a dependência
causal e a teleológica (naquela, o estado prece­
dente determina o que se segue ; nesta, dá-se o
contrário), e a lei (dependência de uma regra
geral).
Comparando a tabela de categorias de WIN­
DELBAND com a de HARTMANN, a primeira aparece­
-nos mais pobre. Faltam nela, sobretudo, o espaço
e o tempo. Revela-se também nela claramente
uma concepção idealista e apriorista das cate­
gorias ; o que WINDELBAND diz sobre a essência
das categorias constitutivas, apenas parece conci-
176 TEORIA DO CONHECIMENTO

liável com esta concepção. Apesar destes defeitos,


devemos, como GEYSER, considerar correcto na
sua ideia fundamental o caminho empreendido por
WINDELBAND para deduzir as categorias. cO método
para descobrir e definir as categorias deve con­
sistir, assim, na união de duas operações : a pri­
meira é a observação das funções e exigências
do pensamento, enlaçadas com a essência do nosso
conhecimento judicioso, e a segunda, é a aplicação
destas funções ao dado e aos objectos do conhe­
cimento logicamente possívei�. (Bases da lógica e
teoria do conhecimento, 1909).
Nós não podemos tentar o esboço de uma
nova tabela de categorias. Dada a dificuldade
do problema, um esboço semelhante nunca é
definitivo. Mas indicaremos uma distinção que
nos parece ser defmitiva. Encc ntramo-Ia tanto
em WINDELBAND como em HARTMANN. É a
divisão das categorias em categorias do pensa­
mento reflexivo e categorias do pensamento espe­
culativo (HARTMANN) ou em categorias reflexivas
e categorias constitutivas (WINDELBAND). Esta divisão
pertencerá no futuro ao fundo permanente da
teoria das categorias.
Como as categorias constitutivas são as mais
importantes para o conhecimento do ser, vamos
dedicar-lhes um exame mais pormenorizado. Mas
limitar-nos-emos às duas categorias fundamentais
da substancialidade e da causalidade.
TEORIA ESPECIAL DO CONHECIMENTO 177

4. A substancialidade

Quando consideramos wn objecto, por exem­


plo, wna árvore, podemos atribuir-lhe diversas
propriedades. A árvore tem wna forma e wn
tamanho determinados, possui ramos e folhas, etc.
Todas estas propriedades convêm ao objecto, ou
seja, neste caso, à árvore ; estão de certo modo
aderentes a ele. Por isso se chamam também
acidentes (de accidere = cair sobre outra coisa,
ligar-se). Para o diferenciar delas chama-se ao
próprio objecto substância (de substare = estar debaixo,
servir de base). Enquanto que os acidentes não exis­
tem por si, mas estão sempre noutro objecto, as
substâncias existem em si, possuem wn ser inde­
pendente e, por isso, podem ser por sua vez susten­
táculos dos acidentes. Costwna designar-se esta
relação da substância com os acidentes como subsis­
tência, e a relação dos acidentes com a substância
como inerência (de inhaerere = estar ligado).
No conceito de substância entra wna segunda
característica além da de independência, que acaba­
mos de assinalar. Se voltarmos a ver no inverno
a árvore que vimos pela última vez no verão
- prosseguindo com o exemplo antes escolhido -,
encontramo-la mudàda. O seu adorno de folhas
desapareceu ; está nua e, na sua aparência, morta.
E se tornarmos a vê-la passado wn ano ou mais,
talvez tenham também mudado a sua forma e o
seu tamanho, tendo-se feito mais alta e mais larga.
No entanto, apesar desta mudança, não duvidamos
t2
178 TEORIA DO CONHECIMENTO

de que se trata da mesma árvore. Perante os acidentes


mutáveis, a substância apresenta-se como estável e
permanente. O conceito de substância apresenta,
assim, além da nota de independfncia, a nova caracte­
rística da perman�ncia.
A filosofia moderna com frequência exagerou
a nota da independência no conceito de substância.
Assim, DESCARTES define a substância como res
quae iia existit ut nulla alia re indigeat ad existen­
dum. A substância é, deste modo, uma coisa que
não precisa de nenhuma outra para existir. Este
conceito, tomado rigorosamente, só tem aplicação
no ser absoluto, em Deus. SPINOZA tirou com todo
o rigor esta conclusão. A nota essencial da substân­
cia reside, segundo ele, na existência por si. Por
consequência, só há uma substância : Deus sive natura.
A posição epistemológica adoptada, em prin­
cípio, é naturalmente decisiva para a concepção
lógica e epistemológica da categoria de substância.
Para o idealismo subjectivo, a substância é somente
uma representação em nós, um conteúdo de
consciência. Para o idealismo lógico, significa
uma pura relação lógica : a relação mútua entre
as notas de um conceito. O conceito de função
matemática substitui o conceito de substância.
Para o fenomenalismo, a substância é uma forma
do pensamento, uma forma sintética do nosso
entendimento, mediante a qual este introduz ordem
e conexão no caos das sensações. Finalmente,
para o realismo, a substância representa uma reali­
dade metafísica objectiva ou independente da cons­
ciência cognoscente.
TEORIA ESPECIAL DO CONHECIMENTO 179

A substancialidade, ou mais exactamente, a rela­


ção de inerência e de subsistência, não é um dado
da experiência, mas um produto do pensamento
que intervém na experiência. Somos nós que insti­
tuímos essa relação de inerência e de subsistência,
respondendo a uma exigência do nosso pensamento.
Esta exigência tem a sua expressão no princípio
de identidade, segundo o qual todo o objecto
do pensamento é idêntico a si mesmo. Apli­
cando este princípio aos fenómenos, chegamos a
formar o conceito de substância. Mas o facto
de que apliquemos este princípio ao conteúdo
da experiência deve estar fundado nesta. O con­
teúdo da experiência apresenta aspectos que nos
induzem a aplicar o princípio e, por conseguinte,
a formar o conceito de substância. Este último
corresponde, portanto, a propriedades objectivas
das coisas. O idealismo lógico e o fenomenalismo
passam isto por alto. Perante eles devemos sustentar
que o conceito de substância possui um fundamento
objectivo, fundamentum in re.

5. A cau salidade

a) O conceito de causalidade

Assim como o conjunto dos conteúdos da


experiência nos induz a formar o conceito de
substância, a sua mudança, o seu aparecer e
desaparecer induzem-nos a formar o conceito
de causalidade. Para esclarecer o seu sentido,
180 TEORIA DO CONHECIMENTO

partamos do juizo utilizado anteriormente como


exemplo : «o sol aquece a pedra». Este juizo
apoia-se na experiência. Tem por base uma dupla
percepção. Apercebemo-nos, em primeiro lugar,
de como o sol ilumina a pedra; e verificamos
depois, tocando nesta, que se põe cada vez mais
quente. A nossa percepção diz-nos que há aqui
uma sucessão temporal de dois processos. Mas
o nosso juizo encerra mais alguma coisa. Não
afirma simplesmente que um processo segue o
outro, mas também que é causado por ele. Por
outras palavras, não afirmamos somente um post
hoc, mas também ao mesmo tempo, um propter
hoc; não somente uma sucessão temporal, mas
também um íntimo enlace, um vínculo necessário,
um nexo causal. O primeiro processo é para nós
uma causa; o segundo, um efeito.
Assim como a substancialidade, também a causa­
lidade não é um dado da experiência. Não nos é
possível perceber essa íntima conexão, esse laço
causal. DAVID HUME foi o primeiro que reconheceu
e expôs isto claramente. Se, não obstante, afir­
mamos a existência de um nexo causal, é porque
obedecemos a uma exigência do nosso pensa­
mento. Enquanto que na categoria de substanciali­
dade era o principio de identidade que aplicávamos
aos conteúdos da experiência, agora é o principio
da razão suficiente que nos guia. O nosso pensa­
mento leva-nos a procurar um fundamento objectivo
para o novo processo que observamos, a concebê-lo
intimamente condicionado pelo processo que o
.precede. Desde modo chega o nosso pensamento
TEORIA ESPECIAL DO CONHECIMENTO 181

a formar o conceito de causalidade, elaborando


os conteúdos da experiência. «Anàlogamente ao
que se passava tratando-se da substancialidade, não
tomamos da experiência a categoria de causa­
lidade, mas sim criamo-la para satisfazer as exigên­
cias do nosso pensamento. Mas criamo-Ia para
a aplicar à experiência». (GBYSER).
A experiência interna é que nos serve de modelo
tanto para a formação do conceito de subs­
tância como para a formação do conceito de
causa. Pela nossa vida interior sabemos o que
significa ser sujeito de propriedades, pois temos
a nossa pr6pria vivência de sujeitos de uma vida
interior. HERMAN LOTSJl expressa-o exactamente
assim : «Na consciência de n6s pr6prios vivemos
imediatamente o eu como sujeito da vida interior.
de tal forma que ao mesmo tempo vivemos o
que significa ser um sujeito semelhante». Pois
assim como o nosso eu se vive como sujeito de
determinadas propriedades, vive-se também como
causa de determinados processos. É o que acon­
tece em toda a autêntica volição. A percepção
interna diz-nos que o nosso eu é o autor de
determinados actos. Tanto a causalidade como a
substancialidade são-nos dadas, pois, pelo menos
até certo ponto, na experiência interna. Por analogia
com estes dados da nossa vida interior formamos
os dois conceitos das categorias.
Exactamente como o conceito de substância,
também o conceito de causalidade carece de
significação objectiva, de validade real, para
o idealismo. Para o subjectivo, a causalidade
182 TEORIA DO CONHECIMENTO

é uma simples representação ; para o lógico, uma


relação lógica. O realismo, pelo contrárIo, vê
nela um nexo real existente na realidade. Esta
concepção é a justa. O conceito de causali­
dade refere-se, com efeito, a um facto ohjectivo :
este facto, que não podemos definir mais con­
cretamente, dá no entanto o conceito da Causa­
lidade, transposto para a linguagem do nosso
pensamento.

b) o princípio da causalidade

O princípio de causalidade está em estreita


relação com o conceito de causalidade. Refere-se
à validade ou, mais exactamente, à esfera de vali ...

dade deste conceito. Cabe perguntar se devemos


supor uma causa onde tem lugar uma mudança.
O princípio de causalidade signifIca a afirmação
desta pergunta. Toda a mudança, todo o processo
tem uma causa ; este é o conteúdo do princípio de
causalidade.
Isto suscita a questão do carácter lógico e epis­
temológico deste princípio. É evidente de um
modo imediato, ou meramente de um modo
mediato, de forma que necessite ser provado l
Ou talvez - pois também existe esta possibili­
dade - não seja imediata nem mediatamente evi­
dente, pois que se deve considerar como um
pressuposto que é necessário admitir, se se quiser
chegar a um conhecimento científico da reali­
dade l
TEORIA ESPBCIAL DO CONHECIMENTO 183

Os filósofos que consideram o principio de


causalidade como imediatamente evidente, formu­
lam-no, geralmente, assim : «todo o efeito tem
uma causa.. Assim se lê, por exemplo, na Meta-
flsica de JORGE HAGEMANN: «A verdade deste
principio é imediatamente evidente. A propo­
sição todo o efoito tem uma causa é um juízo
analítico, no qual o predicado deriva do con­
ceito do sujeito. Não é possível pensar no conceito
de efeito sem pensar por sua vez no de causa.
Para negar este principio, era necessário poder
pensar num efeito como efeito e ao mesmo
tempo como não efeito, com desprezo pelo prin­
cípio de contradição.. O princípio de causa­
lidade é, por conseguinte, imediatamente evi­
dente.
GEYSER aduz, com razão, o seguinte contra
a formulação indicada do princípio de causali­
dade. Este principio «exprime-se não raras vezes
na forma nullus effectus sine causa. Esta propo­
sição é, sem dúvida alguma, imediatamente evi­
dente e verdadeira; assim como não pode haver
filhos sem pais, também não há efeito sem causa.
Mas esta proposição é absolutamente estéril na
sua aplicação científica; quando sabemos que uma
coisa é um efeito, o nosso conhecimento desta
coisa não aumenta em nada, se se nos diz que
tem uma causa. Quando sabemos de uma coisa
que é um efeito, já não necessitamos inftrir que
existe uma causa da mesma, pois isto acha-se
incluído naquele saber. O verdadeiramente impor­
tante para a investigação dos factos da natureza
184 TEORIA DO CONHECIMENTO

é a inferência de que este e aquele outro elemento


da natureza são, respectivamente, um efeito e
uma causa. Para poder fazer com sentido esta
inferência, a ciência necessita de um princípio
de conteúdo muito diferente daquele de que todo
o efeito tem uma causa». (Filosofia geral do ser
e da natureza). Na sua obra Sobre as bases de
uma prova cosmológica válida da existência de Deus,
ISENKRAHE caracteriza exactamente o princípio de
causalidade na formulação anterior como «um prin­
cípio puramente idiomático, linguístico», que afirma
que causa e efeito são conceitos correlativos.
«Mas de uma regra idiomática semelhante não
se conclui que uma coisa determinada C, nem
mesmo que uma só coisa das existentes no mundo,
seja um «efeito) e tenha, por conseguinte, uma
«cauSa». Como também não se pode tirar da
mesma regra das correlações a conclusão de que
no globo terrestre viva actualmente um homem
que seja «avô» e, por conseguinte, tenha pelo menos
um meto».
A formulação do princípio de causalidade a
que nos referimos está, por conseguinte, errada.
Mas então falha também a tese do carácter imedia­
tamente evidente do princípio fundado nesta formu­
lação. Talvez a segunda possibilidade é que seja
a exacta e o princípio de causalidade tenha uma
evidência, se não imediata, pelo menos mediata.
Este será o caso, se o princípio de causalidade for
uma proposição analítica, em que o predicado
não pode tirar-se directamente do conceito do
sujeito, mas sim indirectamente, isto é, mediante
TEORIA ESPECIAL DO CONHECIMENTO 185

determinadas operações do pensamento. Tal é,


em geral, a posição do neo-escolasticismo. Este con­
sidera o princípio de causalidade como uma proposição
analitica mediata, cuja verdade pode demonstrar-se
por via dedutivo-conceptual.
Os neo-escolásticos diferem, no entanto, uns
dos outros na forma da demonstração. Enquanto
que uns tratam de demonstrar a verdade deste
princípio por intermédio dos conceItos mais gerais,
outros fazem-no com a ajuda dos princípios supre­
mos. No primeiro caso analisam o conceito de
procedência e reduzem-no a outros conceitos mais
gerais. Trata-se de demonstrar que no conceito
de procedência está contido o conceito de ser
não necessário ou - dito de um modo posi­
tivo - contingente. Este conceito - prosseguem os
ditos fIlósofos - é idêntico ao conceito de objecto
indiferente ao ser e ao não ser. Depois deste é
que se tira a característica de causalidade.
Esta teoria encontra-se desenvolvida com bastante
clareza e detalhe em JOSE GEYSER, que passa actual­
mente por ser o representante mais característico
do neo-escolasticismo na Alemanha. Na sua obra
O problema filosófico de Deus esboça o seu método
demonstrativo do seguinte modo : «A análise do
conceito de procedência dá como primeiro resul­
tado o conceito de começo temporal de alguma
coisa. Comparando em seguida os conceitos de
algo que não tenha existido sempre, mas que
pudesse ter sempre existido, conclui-se o conceito
de ser contingente ou indiferente em si ao ser
e ao não ser. Tira-se daqui, como conclusão,
186 TEORIA DO CONHECIMENTO

a necessidade lógica de admitir que um objecto


tal deve ter sido determinado a existir por outro
seno GEYSER desenvolve mais pormenorizadamente
esta espécie de ideias, dizendo : «o que existe
não pode ao mesmo tempo não existir no mesmo
momento em que existe, como se compreende
por si mesmo ; é, portanto, diferente para o
segundo membro do par de contrários, o ser
ou não ser. E pergunta-se : Esta diferenciação
para o ser, deve-a o objecto existente a si mesmo
ou a outro ? . . Se o objecto é diferenciado,
isto é, determinado a existir por outro ser, tem
uma causa. Mas do que se trata é do problema
de se é logicamente possível que um objecto ou
uma propriedade comecem a existir, sem que sejam
determinados à existência, de certo modo desde
o exterior. . . Ora bem ; é evidentemente impos­
sível que pensemos como não existente um objecto
pensado por nós como existente e como existente
com independência de qualquer causa externa, ou
seja, por íntima necessidade ; contradiríamos o
nosso próprio conceito, formando primeiramente
o conceito de um objecto, que existiria neces­
sàriamente, isto é, que não poderia não existir
simplesmente por ser este objecto, e dizendo
em seguida que o mesmo objecto não existe
em certo momento. . . Por conseguinte, tudo o
que tem origem ou tudo o que começa a ser
depois de não ter sido, não pode existir por
necessidade íntima ou diferenciação, pois deve
conduzir-se indiferentemente para o ser ou o
não ser, não necessitando existir, enquanto se
TEORIA ESPECIAL DO CONHECIMENTO 187

toma a ele somente em consideração . . . No entanto,


é uma contradição evidente que uma coisa, que
em si mesma é indiferente a outra, possa ser
ao mesmo tempo diferente em si mesma dessa
outra, pois a segunda proposição é contraditória
da primeira. Mas como tudo o que existe é diferente
para o ser, necessita ter recebido esta determinação
de outro lado, isto é, necessita de ter uma causa.
Por conseguinte, estamos logicamente obrigados a
reconhecer que tudo o que se origina, origina-se
em virtude de uma causa».
Se analisarmos esta demonstração de GEYSER,
que, de uma forma um pouco diversa, se encon­
tra também na sua obra O conhecimento da
natureza e o princlpio de causalidade, conclw-se o
seguinte : GEYSER quer demonstrar que tudo o
que se origina tem uma causa. Com este objectivo
analisa o conceito de procedência. Neste encontra-se
implicito o conceito de começo temporal e, por
sua vez, neste, o conceito de ser contingente. Este
último é sinónimo do conceito de ser indiferente
ao ser e ao não ser. Por meio deste último, procura
GEYSER tirar o conceito de causa do de origem.
Logo que algo existe, já não é indiferente ao ser
ou ao não ser, mas diferente para o ser. GEYSER
pergunta então : «Esta diferenciação para o ser,
deve-a o objecto existente a si mesmo ou a outro
ser �,. Estamos aqui perante um evidente salto
lógico. Origem significa mudança do estado de
indiferença ao ser e não ser ao de diferença para
o ser, ou, em suma, diferença em seguida a indi­
rença. E foi isto e só isto que GEYSER até agora
188 TEORIA DO CONHECIMHNTO

demonstrou. Mas o até agora demonstrado não


implica absolutamente em nada que esta mudança
seja obra de a1go, ou seja, que se possa falar de
uma diferenciação. Quando GEYSER pergunta : a que
se deve a diferenciação ?, dá, pois, um salto lógico
e supõe desde logo que existe uma diferenciação.
Mas esta suposição é simplesmente outra fórmula
do princípio de causalidade. Com efeito, se substi­
tuirmos o diferenciar pela difinição que o pró­
prio GEYSER dá deste conceito (<<determinar uma
coisa a existir»), «ser diferenciado por algo» não
significa outra coisa que «ser determinado a existir
por algo», dito em breves palavras : ter uma causa.
GEYSER supõe e emprega, pois, na fundamentação
do princípio de causalidade, este mesmo princípio.
Faz do objectivo da demonstração o fimdamento
da mesma, e pratica assim aquela falta lógica que se
chama petitio principii, ou também, círculo vicioso.
O segundo método demonstrativo encontra-se
na Filosofia geral do ser e da natureza, de GEYSER.
Nesta obra procura demonstrar a necessidade lógica
e a validade universal do princípio de causalidade,
tomando 'por auxiliar o princípio da razão sufi­
ciente. «É um procedimento contraditório, lê-se
nesta obra, o que faz com que um objecto pri­
meiro não exista e logo depois exista. O pensa­
mento contradiz-se a si próprio se responde primeiro
à exigência de negar a existência de certo objecto
e logo depois à de afirmar a existência do mesmo
objecto. Mas este procedimento contraditório só
é logicamente possível, para o pensamento, quando
a razão que ordena a negação desaparece e dá
TEORIA ESPECIAL DO CONHECIMENTO 189

lugar a outra razão que exige dele a afirmação.


Por sua vez, um procechmento contraditório e
infundado do pensamento judicativo repugnaria
à própria essência do mesmo. . . Portanto, se o
procedimento contraditório do ser tivesse lugar
puramente por si mesmo na esfera real, o ser e
e o pensamento estariam entre si em contradição».
Mas nesta possibilidade só pode «acreditar aquele
que tenha urna representação totalmente falsa do
ser. O homem tem uma primeira representação
do ser partindo da relação que existe entre o
intelecto humano fuúto e a natureza. Nesta
relação, em que a natureza é em tão grande medida
a parte dadora, pode sem dúvida parecer que
ambos os membros existem independentemente
um do outro e têm leis próprias completamente
distintas. Mas esta relação do pensamento e do
ser é só derivada, é secundária. Tem por base
outra relação mais primitiva e ampla do pensa­
mento e do ser ; uma relação na qual o pensa­
mento - como já acontece na esfera limitada
da matemática até certo ponto com o espirito
humano - é infinito e abarca a maior variedade
possivel com absoluta clareza e distinção, isto é,
com urna ordem e integridade absolutamente
perfeitas. Perante este conteúdo do pensamento
não há ser dador, pois que todo o ser é receptor
ou criado. Esta é, por conseguinte, a raiz maiS
profimda da harmonia entre o pensamento e o
ser. E esta raiz toma impossivel admitir a hipó­
tese de que a esfera do pensamento e a esfera do ser
se contradigam na sua essência mais profimd..u.
190 TEORIA DO CONHECIMENTO

A medula desta demonstração é a ideia de


que o princípio 16gico de razão suficiente tem
também de ser válido para a esfera real, porque
o pensamento e o ser concordam. Ora bem ;
GEYSER prova que isto é assim recorrendo à razão
divina que coordenou o pensamento e o ser,
como fonte comum de ambos. E agora per­
gunta-se : qual é o valor 16gico desta prova �
Ê claro que s6 se pode usar como apoio a exis­
tência de Deus se esta se encontra já provada.
Mas, segundo a concepção de GEYSER, o princípio
da causalidade serve justamente para afiançar a
existência de Deus. Esta última não é, por con­
seguinte, fundamento, mas objecto da demons­
tração do princípio de causalidade. GEYSER utiliza,
pois, na demonstração do princípio de causalidade,
a existência de Deus como fundamento da demons­
tração, apoiando na existência de Deus a base
suprema do princípio, a harmOlúa entre o pensa­
mento e o ser ; e toda a sua argumentação vem de
novo cair numa petitio principii.
Não é possível, portanto, demonstrar o prin­
cípio de causalidade por via dedutivo-conceptual.
Por outras palavras : o prindpio de causalidade não
é uma proposição anaUtica. O pr6prio GEYSER adere
hoje a esta opinião. Na sua Teoria do conhecimento,
aparecida em 1922, renuncia ao carácter analítico
do princípio de causalidade e considera-o como
um juízo sintético. Mas o que esta renúncia signi­
fica logo se vê quando se pensa nesta frase de
GEYSER : «A possibilidade de compreender o universo
depende logicamente da categoria da causalidade».
TEORIA ESPECIAL DO CONHECIMENTO 191

(Bases da lógica e da teoria do conhecimento, 1909).


Não se pode, pois, fazer wna demonstração lógica
convincente do princípio de causalidade. Esta
demonstração, naturalmente, só poderia ser con­
ceptual-dedutiva, e não empírico-indutiva, porque
esta última só origina a probabilidade. Mas disto
conclui-se que não pode demonstrar-se a possibili­
dade de compreender o universo. É evidente que
esta consequência é fatal para todos os argumentos
cosmológicos, que utilizam o princípio de causa­
lidade como premissa maior, pois pressupõem a
estrutura racional da realidade e pretendem chegar
daqui a um princípio do universo, a um ser absoluto.
As duas primeiras possibilidades de conceber
o princípio de causalidade revelaram-se, deste modo,
como irrealizáveis. Fica apenas a terceira possibi­
lidade. Consiste esta em conceber o princípio de
causalidade como um pressuposto necessário a todo
o conhecimento científico da realidade. Esta con­
cepção, a única justa, é actualmente defendida,
sobretudo, por AUGUSTO MESSER e ERIC BECHER.
O primeiro diz, na sua Introdução à teoria do conhe­
cimento, o seguinte : «Para que as mudanças se
tornem compreensíveis, é necessário referi-las às
suas causas. Supomos a priori, por conseguinte,
que toda a mudança tem a sua causa. Este prin­
cípio é válido na sua universalidade não por funda­
mentar-se na experiência (a posteriori), pois então
deveríamos ter provado já a sua validade em todas
as experiências possíveis. Mas, por outro lado,
não devemos temer que possa ser desmentido pela
primeira experiência que se apresente. Se não
192 TEORIA DO CONHECIMENTO

pudéssemos encontrar para uma mudança nenhuma


causa não nos contentaríamos em pensar que esta
não existe, mas julgaríamos que a causa nos é
provisoriamente desconhecida. O princípio é por­
tanto válido independentemente da experiência
(a priori). Mas, por outro lado, acha-se na mais
estreita relação com ela ; existe por assim dizer
só para ela. Com efeito, só porque fazemos
a suposição de que é absolutamente válido, chega­
mos a obter um conhecimento científico das mudan­
ças. Este princípio contribui, pois, para tomar
possível a experiência ; é uma condição da expe­
riência possíveL . . Mas se podemos considerar deste
modo o princípio de causalidade como uma con­
dição a priori da experiência, nem por isso é válido
a priori exactamente no mesmo sentido em que
o são os princípios da matemática. pura e da lógica.
Não é, com efeito, logicamente necessário como
estes, de tal modo que a sua negação implique
uma contradição. O conceito de mudança não
contém o conceito de causa até ao ponto de que
contradisséssemos o conteúdo deste conceito se
afirmássemos que uma mudança não tinha causa.
O que não poderíamos obter era qualquer conhe­
cimento científico de uma tal mudança ; esta seria
para nó� um puro milagre ; perante ela, ficava-nos
parado, por assim dizer, o intelecto. Mas esta afir­
mação de que todo o existente tenha de ser compreen­
sível para nós, não é uma proposição logicamente
necessária; é também somente um pressuposto e, por
conseguinte, o princípio da causalidade só tem o
valor epistemológico de um pressuposto•.
CONCLUSÃO

A FÉ E O SABER

O fim dos nossos esforços era aprofundar e


fimdamentar filosoficamente o saber humano.
Vimos que o conhecimento humano não se
limita ao mundo fenoméruco, pois avança mais
para diante, até à esfera metafísica, para chegar
a uma visão filosófica do wllverso. Mas também
a fé religiosa dá uma interpretação do sentido do
wllverso. Cabe, pois, perguntar como se rela­
cionam entre si a religião e a filosofia, a fé reli­
giosa e o conhecimento filosófico, a fé e o saber.
Esta relação tem sido definida de muitas maneiras
no decurso da história da filosofia. Podem distin­
guir-se quatro tipos principais de defmições. Os
dois primeiros sustentam uma identidade essencial
e os dois últimos uma diferença essencial entre
a religião e a filosofia, entre a fé e o saber. Aquela
identidade pode em primeiro lugar ser total.
A fórmula diz então : ou que a religião é filosofia,
ou que a filosofia é religião, isto é, ou se reduz
a religião à filosofia ou, pelo contrário, a filosofia
à religião. No primeiro caso pode-se falar de
um sistema gnóstico da identidade. A religião e a
ta
194 TEORIA DO CONHECIMENTO

filosofia, seg1.Uldo de, são a mesma coisa. Ambas


querem conhecer ; trata-se para ambas de alcançar -

uma gnose. Existe ndas wn mesmo impulso para


o conhecimento. A única diferença que existe
é que a religião é wn grau inferior do conheci­
mento filos6fico, pois não fala de conceitos abstractos,
tratando s6 de representações concretas. Esta con­
cepção encontra-se na antiguidade, principalmente
no budismo, no neoplatonismo e no gnosticismo ;
na Idade Moderna, em SPINOZA, FICHTE, SCHELLING,
HEGEL, e HARTMANN. No seg1.Uldo caso temos
o sistema tradicionalista da identidade. Seg1.Uldo ele,
toda a filosofia se reduz à religião. Os fil6sofos
foram beber as suas ideias à tradição religiosa.
A filosofia, portanto, não existe independente­
mente da religião, pois que, no fundo, coincide
com da. Esta concepção foi defendida particular­
mente pelos fil6sofos e te6logos franceses DE
MAISTRE, DE BONALD e LAMENNAIS.
Em lugar de uma identidade total entre a reli­
gião e a filosofia pode também sustentar-se
uma identidade parcial. Ambas se identificam par­
cialmente, porque têm determinada esfera comum.
Esta esfera comum é a «teologia natural. (Esco­
lástica) ou a «teologia racional. (filosofia da Uus­
tração). A missão desta teologia consiste em
demonstrar a existência de Deus e definir a
sua essência mediante as forças naturais da razão.
Com isto determina a base da fé sobrenatural.
Esta tem, portanto, um fundamento racional. A reli­
gião repousa materialmente na filosofia ; a fé no
saber. SÃO TOMÁS DE AQUINO e a filosofia e teologia
A FÉ E O SABER 195

orientadas por ele foram, principalmente, quem


definiu neste sentido a relação entre a fé e o
saber.
Aos sistemas da identidade opõem-se os siste­
temas dualistas. Pode tratar-se de um dualismo
extremo ou de um dualismo moderado. O primeiro
separa completamente as duas esferas. A esfera
do saber é o mundo fenoménico ; a esfera da
fé é o mundo supra-sensível. Não há um saber
deste último. A metafísica é impossível como
ciência. KANr foi o fimdador desta concepção.
A teologia protestante do século xx, na sua maior
parte, foi dominada por ela. Sucede assim prin­
cipalmente com RrrSCHL e a sua escola. Segundo
o dualismo moderado, a religião e a filosofia são
duas esferas essencialmente distintas, que se tocam,
porém, num ponto : este ponto de contacto é a
ideia do absoluto. Segundo a concepção do
dualismo moderado, a metaflsica é possível como
ciência e esta ciência pode levar-nos até ao abso­
luto, até ao princípio do universo. Este, por
conseguinte, constitui o objecto comum da reli-
- gião e da filosofia. Mas cada uma o define segundo
pontos de vista inteiramente distintos : a filosofia,
sob um ponto de vista cosmológico-racional ; a reli­
gião, sob um ponto de vista ético-religioso. Naquela,
o resultado é a ideia de um princípio espiri­
tual do universo ; nesta, é a ideia de um Deus
pessoal. Esta concepção tem sido defendida várias
vezes na filosofia moderna e, Ultimamente, de
uma forma consciente e sistemática, por SCHELBR,
que lhe deu o nome de «sistema da conformidadC).
196 TEORIA DO CONHECIMENTO

Se tomarmos wna posição critica relativamente


às diversas definições da relação, teremos de con­
cordar com o que SCHELER diz contra os sistemas
de identidade : «Hoje que as posições religiosas
diferem mais do que nunca, nada se admitiu
com maior unanimidade e segurança, por todos
que se ocupam de um modo inteligente da
religião, do que isto : que a origem da religião
no espírito humano é radical e essencialmente distinta
da filosofia e da metafísica; que os fimdadores
das religiões, os grandes homines religiosi, têm
sido tipos do espírito humano completamente
distintos dos metafísicos e dos filósofos ; e que
as grandes transformações históricas devidas a eles
nunca, nem em parte alguma, tiveram lugar por
virtude de wna nova metafísica, mas de wna
forma completamente diferente». (Do eterno no
homem).
Com isto fica demonstrada não só a inexac­
tidão do sistema da identidade total, como tam­
bém parcial. Este último assenta igualmente num
desconhecimento da diferença entre a religião e
a metafísica, a que já nos referimos anteriormente.
Quando os defensores da teologia natural ou raclO­
nal julgam poder chegar até ao objecto da reh­
gião, o Divino, pelo caminho das demonstrações
metafísico-racionais, não vêem que a religião e a
metafísica são esferas essencialmente distintas e
que, por consequência, é impossível a passagem
de wna para a outra. Também fica . demonstrado
que o principal meio de que se servem os
defensores da teologia natural, o princípio da
A FÉ E O SABER 197

causalidade, não tem o carácter lógico e epIs­


temológico que deveria ter para atingir o fim
que se propõe. Finalmente, pode mostrar-se sem
dificuldade que as supostas demonstrações meta­
físicas puramente racionais, na realidade, nascem
de uma atitude religiosa, de forma que se pode
dizer com SCHELER que tais raciocínios e demons­
trações não servem de base à religião, antes
pelo contrário, baseiam-se na religião. Isto explica
o facto psicológico, incompreensível de outra forma,
de que as provas da existência de Deus, tidas
como tão rigorosas, só impressionem os que já
são crentes e se encontram em atitude religiosa,
fracassando justamente com aqueles que estão em
atitude puramente racional e crítica. Esta psico­
logia peculiar das provas da existência de Deus
lança uma clara luz sobre o seu carácter lógico
e epistemológico.
Perante todos os intentos para confundir a
religião com a fuosofia, a fé com o saber, temos
de insistir com toda a energia em que a religião
é uma efêra de valor completamente autónoma. Não
repousa em outra esfera de valor, mas descansa
integralmente sobre bases próprias. Não tem o
fimdamento da sua validade na filosofia, nem na
metafísica, mas em si própria, na certeza imediata
peculiar do conhecimento religioso. O reconhe­
cimento da autonomia epistemológica da religião
depende, pois, de que se admita um conhecimento
religioso especial. Quando, ao tratar do problema
da intuição, pusemos em evidência este conheci­
mento, que se caracterizou mais concretamente
198 TEORIA DO CONHECIMENTO

como wn conhecimento imediato intuitivo da reli­


gião, assentamos a base teórica da autononúa da
religião, que afirmamos e defendemos agora.
SCHELER replica com razão aos filósofos e
teólogos que se opõem a fundamentar a religião
sobre as suas próprias bases : «Como poderá a
religião, de entre todas as disposições e potências
do espírito humano aquela que, subjectivamente,
tem raizes mais profundas, assentar sobre uma
base mais firme que sobre si mesma, sobre a sua
essrocia ?
. . Como é estranha a desconfiança no
poder e evidência próprios da consciência reli­
giosa, que se revela no intento de fundar as suas
primeiras e mais evidentes afirmações noutra coisa
que não seja o conteúdo essencial dos objectos
desta mesma consciência». (Do eterno no homem).
Esta desconfiança tem a sua raiz mais pro­
funda naquela confusão da objectividade e da
validade universal que já mencionámos anterior­
mente. Opina-se que wn juízo que não seja demons­
trável de wn modo universalmente válido, isto é,
logicamente convincente, não pode ter qualquer
aspiração à objectividade. Na admissão de uma
forma especial do conhecimento e certeza reli- '
giosa não se vê, por conseguinte, nada mais
que subjectivismo, ainda que, na realidade, wn
juízo possa possuir uma absoluta objectividade,
sem ser por isso universalmente válido, como se
demonstrou anteriormente. A maioria das objec­
ções que AUGUSTO MESSER faz na conclusão da
sua Introdução à teoria do conhecimento contra a
definição dualista da relação entre a fé e o saber,
A FÉ B O SABER 199

descansa na insuficiente distinção entre objectivi­


dade e validade universal. A razão mais profimda
desta deficiente distinção reside nessa forma inte­
lectualista de pensar que s6 reconhece o que pode
apoiar-se em fimdamentos racionais, em suma, no
que pode demonstrar-se.
Muitos fil6sofos são de opinião que a filosofia
presta à religião o maior dos serviços, assegurando
a sua verdade mediante racioclnios metafísicos.
Mas estes fil6sofos esquecem que a concepção
da relação entre a religião e a filosofia, defendida
por eles, s6 é de aproveitar quando e enquanto
o conhecimento filos6fico se move nas correntes
de um sistema completo e incorporado, de certo
modo, na religião. Pelo contrário, se o impulso
para o conhecimento filos6fico se apoia sobre as
suas pr6prias bases e faz abalar as bases do sistema
recebido, existe o perigo de que também a pr6pria
religião se tome problemática com o fimdamento
filos6fico, e que a suposta pedra fimdamental da
religião se converta na pedra de moinho que a
arraste ao abismo do cepticismo. Livros como
A fé e o saber, de AUGUSTO MBSSER, ou O homem
religioso e os seus problemas, de JOÃo MAIuA VERWEYEN,
mostram bem o perigo que existe aqui para a reli­
gião. O abandono da fé religiosa depende, em
última análise, tanto num autor como no outro,
da confusão entre a religião e a filosofiá e o
intelectualismo religioso consequente dela.
Assinalemos em breves palavras, para concluir,
uma consequência pedag6gica prática resultante da
nossa concepção da rdação entre a religião e a
200 TEORIA DO CONHECIMENTO

filosofia, a fé e o saber. Se há uma esfera própria,


religiosa, do valor e, consequentemente, um conhe­
cimento religioso especial, ou seja, de certo modo,
um órgão religioso especial, conclui-se que o cultivo
da religião só pode ter lugar por meios religiosos.
Não nos fazemos religiosos mediante uma activi­
&de intelectual, nem mediante reflexões filosó­
ficas, nem estudos e lucubrações teológicas, mas
somente se consegue isso desenvolvendo e pondo
a descoberto o fimdo religioso recebido de Deus,
muitas vezes escondido por uma errónea educação
e ensino religioso ; trata-se, por assim dizer, de
afmar e desenvolver o órgão religioso. Assim
como não se aprende a ver nem a sentir artisti­
camente com o estudo da estética, também não
se faz ninguém realmente religioso com o estudo
de obras teológicas ou sobre filosofia da religião.
Tanto num caso como no outro trata-se antes de
pôr em actividade as disposições recebidas, desen­
volvendo-as e libertando-as. Se se faz isto, o mundo
dos valores religiosos penetra cada vez mais viva
e poderosamente na consciência do homem; até
que esta chega fmalmente, no terreno religioso,
a viver por completo no Divino, recebendo deste
modo certezas, sempre renovadas, que o fazem
triunfar com santa alegria de todas as angústias
críticas do intelecto oprimido pelos problemas.
Concluo com uma passagem do Microcosmos,
de LOTZE, que encerra todo um programa filo­
sófico :
«A essência das coisas não consiste em ideias
e o pensamento não é capaz de compreendê-la ;
A FÉ B O SABER 201

mas O espírito inteiro vive porventura em outras


formas da sua actividade e da sua emotividade
o sentido essencial de todo o ser e actuar ; o pen­
samento serve-lhe como um meio de pôr o
vivido naquela ordem exigida pela sua natureza
e de o viver mais intensamente na medida em
que se faz dono desta ordem. São erros muito
antigos os que se opõem a esta concepção . . .
A sombra da antiguidade, a sua nefasta sobreva­
lorização do logos, ainda se estende largamente
sobre nós e não nos deixa ver, nem no real, nem
no ideal, aquilo por que ambos são mais alguma
coisa do que toda a razão».
íND ICE
fNDICE

Págs.
PRÓLOGO • • 5

INTIlODUÇÃO
1. Essência da filosofia • 7

2. A posição da teoria do conhecimenro no sistema filosófico 9

3. A história da teoria do conhecimento . . . . . . . . . • 21

PRIMEIRA PARTE

Teoria geral do Conhecimento

Investigação fenomenol6gica preliminar. O fen6meno do conhecimento


e os problemas nele contidos • 25

I - A possibilidade do conhecimento
1. O dogmatismo • • • . • 37

2. O cepticismo . . . . . . 40
3. O subjectivismo e o realismo 46
4. O pragmatismo . 50
5. O criticismo • . 54

D - A origem do conhecimento
1. O racionalismo • 60

2. O empirismo • • . 68

3. O intelectualismo • 74
4. O apriorismo . • • 77
5. Critica e posição pr6pria 80
206 TEORIA DO CONHECIMENTO

m - A esslncia do cOllhtdmtnto

1. Soluções pré-metafísicas:
a) O objectivismo . 88
h) O subjectivismo • 91

2. Soluções metafísicas:
a) O realismo . . . 93
b) O idealismo . • • 102
c) O fenomenalismo 108
ti) Critica e posição própria . 111

3. Soluções teológicas:
a) A solução monista e panteísta. 117
b) A solução dualista e tefsta 119

IV - As espécies do conhecimento
1. O problema da intuição e a sua história 121
2. Razão e sem razão do intuicionismo 136

v - O critério de verdade
1. O conceito de verdade 147
2. O critério de verdade . 152

SEGUNDA PARTE

Teoria especial do conhecimento

1. Seu problema . . . . • • 161


1. A essência das categorias . 163
3. O sistema das categorias • 168
4. A substancialidade . • • . 177
5. A causalidade:
a) O conceito da causalidade 179
b) O princípio da causalidade • 182

CONCLUSÃO:

A f� e o saber . 193
Composto e impresso
na Gráfica de Coimbra
Tiragem, 5000 ex. - Dezembro de 1987
Depósito Legal n.O 1 9266/ 87
o Autor procurou não tanto oferecer sim­
ple s soluções como expôr claramente e de
modo racional o sentido dos problemas e as
diversas possibilidades de os resolver, sem
renunciar, naturalmente, a desenvolver um
exame crítico: e a aâoptar uma · posição.
Para ele, «o último sentido do conhecimento
filosófico não é tanto: resolver enigmas como
descobrir maravilhas». A presente exposição
da teoria do conhecimentO' distingue-se de
outras sob três potntos de vista: em primeiro
lugar, colocando o método fenomenológico
ao serviço da teoria do conhecimento; em
segundio lugar, apresentando uma discussão
pormenorizada do problemaJ da intuição; fi­
naJmente, desenvolvendo a teOría especial do
conhecimento, além da geral .

Do mesmo Autor estão publicadas nesta


Colecçã'O as obras «FILOSOFIA DOS VALO­
RES» (wertphilosophie) e «LUTERO VISTO
PELOS CATÓLICOS» (Luther in Katolis­
cher Sicht).

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