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INSTITUTO SÉCULO XXI

PSICANÁLISE

SIRLEIDE CORDEIRO CINTRA

A PSICANÁLISE E SEU LUGAR ENTRE AS CIÊNCIAS

Trabalho de conclusão de curso


apresentado como requisito parcial à
obtenção do título de especialista em
Psicanálise.

SÃO PAULO – SP
2021
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A PSICANÁLISE E SEU LUGAR ENTRE AS CIÊNCIAS

Sirleide Cordeiro Cintra 1

RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo identificar o contexto científico que permitiu o surgimento da
psicanálise, bem como as primeiras ideias freudianas voltadas a colocar suas descobertas a serviço
das ciências naturais, como foi dado como certo no projeto de uma psicologia para neurologistas.
Posteriormente, definem-se os desdobramentos teóricos e clínicos que permitiram a Freud abandonar
seu "ideal de cientificidade", construindo um método de investigação de fenômenos psíquicos
inacessíveis de outras formas. Por fim, após a releitura do cogito cartesiano por Lacan, especifica-se
a diferença radical entre o objeto psicanalítico e o objeto da ciência, concluindo com isso que a
psicanálise guarda um lugar estimável entre as ciências. Dessa forma, como metodologia de estudo
optou-se por um levantamento bibliográfico sobre a psicanálise, sua história e as críticas
epistemológicas. De tal modo que foram utilizados como aporte teórico as contribuições de alguns
especialistas deste campo do saber.

Palavras-chave: Psicanálise. Freud. Método. Lacan. Objeto. Ciência

1. INTRODUÇÃO

Os conhecedores da obra de Freud não podem negar que seu pensamento


foi fortemente influenciado pela racionalidade positivista de sua época e, portanto,
suas descobertas anteriores à formalização da psicanálise preservam essa nuance;
portanto, suas observações clínicas iniciais são baseadas em aspectos biológicos
(KUHN, 2014).
Para Focchi (2017), no final do século XIX e início do século XX, os homens
de espírito científico eram fortemente direcionados a se protegerem dentro do
paradigma positivista, isto como um esforço para se opor à metafísica, às
concepções mágicas e são os espiritualistas da época. Nesse contexto, podem-se
identificar nos primeiros escritos freudianos várias passagens cujo esforço para
situar suas descobertas no campo das ciências naturais foi indiscutível.
O que o próprio Freud disse em 1895 parecia não antecipar o revés que seu
pensamento acabaria por causar, na época em que percebeu que o conhecimento
produzido pelas ciências naturais era insuficiente para explicar as chamadas – até
então – doenças nervosas. Essa descoberta lhe permitirá traçar suas primeiras
hipóteses voltadas para o estabelecimento de um método capaz de lidar e explicar
esses fenômenos. Os mesmos desconfortos que ocorreram no corpo que revelaram
1
E-mail: sih.cintra79@gmail.com
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seu limite para a ciência de sua época abriram as portas da pesquisa freudiana para
a construção de um saber próprio (KUHN, 2014).
O pensamento freudiano elaborado durante 1873 e 1882 que contempla o
período mais forte de sua formação médica, foi enormemente influenciado pela
fisiologia de Brücke, levando-o até a aceitar sem preconceitos que o organismo vivo
é um sistema dinâmico que se aplicam às leis da física e química. Daí talvez o seu
profundo interesse, durante os primeiros esboços teóricos, por conduzir as suas
formulações no quadro de uma ciência exata. Podemos ver alguns outros vestígios
de suas formulações neste campo em seus escritos sobre a "histeria" de 1888, onde
destaca a forma teórico-prática de seu comportamento com seus pacientes, que em
nada discordam das "técnicas" utilizadas por Charcot e Breuer com o mesmo
propósito. Porém, por volta de 1886, logo após concluir sua estada em Paris com
Charcot, já havia dado sinais do caminho que mais tarde seguiria liderado por suas
teorias clínicas ((KUHN, 2014).).

2 CONTEXTO POSITIVISTA E OBJETIVIDADE CIENTÍFICA

A obra intitulada "O discurso do método", escrita por René Descartes durante
o século XVII, lançou as bases do que viria a receber o nome de ciência moderna. A
constatação desta resultou na hipótese de que, para construir um conhecimento
verdadeiramente científico sobre os fenômenos ocorridos no mundo, era necessário
manter o caráter de objetividade em sua abordagem (ASKAFARÉ, 2012).
É preciso reconhecer que a proposta cartesiana do cogito também favoreceu
o avanço de um pensamento que acabaria por conseguir tirar do discurso religioso o
critério da verdade sobre os objetos. Para Japiassu (2009), o cogito cartesiano foi a
proposta que permitiu dar o passo decisivo para colocar a racionalidade científica
acima do dogmatismo religioso, o mesmo que serviu na Idade Média como forma
categórica de explicar todos os fenômenos.
Nessas coordenadas floresceu a chamada ciência moderna, na época em
que a proposta do cogito cartesiano se posicionava como a fórmula de toda
representação do sujeito no pensamento ocidental, aludindo ao propósito de
encontrar um pilar indubitável que daria o passo para a construção de um
conhecimento sobre os objetos.
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Ao longo do tempo e sob essa lógica, a pesquisa científica conseguiu fazer do


pensamento a evidência da existência dos objetos, ao preço de reduzir a
subjetividade a uma racionalidade desprovida de representação, conduzindo a uma
espécie de mentalismo autocentrado (ASKAFARÉ, 2012).
Ou seja, o cogito cartesiano permitiu lançar os alicerces de um conhecimento
necessário à ciência e que a longo prazo conseguiria cercar a questão da verdade
em relação à constituição do conhecimento, porém, o preço que teve que pagar foi o
de desnudar a este novo sujeito de todas as suas paixões, isto é, de seus atributos
subjetivos.
Com a tese proposta por Descartes sobre a existência de uma única verdade
para cada coisa, a construção do conhecimento sobre os objetos foi reduzida à
implementação de um método, e este como o caminho mais sólido do próprio
fundamento da ciência (ASKAFARÉ, 2012).
A partir disso, a lógica se estabelecerá em um racionalismo dual, por um lado,
um sujeito que pensa e, por outro, um objeto que pode ser pensado. Para Japiassu
(2009), essa fórmula de conhecimento e racional sobre o mundo levará a ciência da
época à criação de mecanismos tendentes a preservar sua materialidade radical.
Sob a separação clara entre o sujeito e o objeto, o ideal de objetividade científica
será construído, ao custo de se ater quase exclusivamente a estudos “factuais” e
explicações de natureza causal.
Para Lacan (2008) a física aristotélica foi o antecedente racional do método
científico proposto por Descartes, este por sua vez promoveu o paradigma positivista
de que no final do século XVIII e início do século XIX daria às ciências naturais o
arcabouço perfeito para se legitimar como a forma única de construir conhecimento
sobre os fenômenos do mundo, por meio da experiência rigorosamente controlada.
Em outras palavras, para o positivismo, a única forma de construir um
conhecimento sistematizado a partir de toda especulação é atentar para a
neutralidade de valor do pesquisador, por meio de procedimentos confiáveis, na
abordagem do objeto em estudo. A premissa que sustenta esse postulado é a que
indica que entre sujeito-objeto é possível uma separação simples e radical, como se
nenhuma relação mediadora operasse entre esses elementos (ASKAFARÉ, 2012).
Nesse sentido, Le Bouch (2015) argumenta que essa definição de
objetividade nas ciências positivas nada mais é do que uma visão confusa da
realidade, que coloca o pesquisador em uma posição deliberadamente cega, o que o
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obriga a enfrentar o objeto em uma perspectiva mecanizada. Outros autores


criticaram fortemente essa racionalidade ao determinar que esse ideal de
objetividade científica ainda é impreciso e se apoia em pressupostos inteiramente
questionáveis, oriundos de teorias psicológicas pouco rigorosas.
Por outro lado, Kuhn (2014) afirma que o avanço do conhecimento sobre a
realidade humana só é possível na medida em que as disciplinas dedicadas ao seu
estudo renunciam ao ideal de objetividade e neutralidade, por outro lado Le Bouch
(2015) será mais radical ao apontar que, se no campo da subjetividade humana se
aceitarmos essa apreciação positivista da objetividade, estaremos sem dúvida
fadados ao fracasso.
No quadro dessas reflexões, nota-se que o critério de objetividade adotado
pelas ciências positivistas tem permanecido condicionado por ideologias sociais,
políticas e econômicas de acordo com cada momento histórico.
Dito isso, o discurso científico da época que Freud teve que viver estava
enquadrado nos triunfos da racionalidade positivista, tal paradigma floresceu como
alternativa para abordar metodologicamente os fatos em seu caráter autônomo e
assim se distanciar da racionalidade espiritualista com que o romantismo enfeitiçou
as personalidades de espírito científico da época (ASKAFARÉ, 2012).
Essa doutrina sustentava que a única forma de produzir conhecimento
objetivo era respondendo a hipóteses por meio de procedimentos empíricos
cuidadosamente observados, controlados e verificados. O sucesso desta corrente
era tal na medida em que a ideia de que esse método poderia ser transferido sem
modificação para outras áreas do conhecimento dedicadas a abordar fenômenos
não objetiváveis (ASKAFARÉ, 2012).
Assim, no final do século XIX, pelo menos na Europa, os estudos voltados
para a solução dos problemas sociais e humanos foram fortemente influenciados e
realizados sob uma notável nuance positivista (ASKAFARÉ, 2012).
Nesse sentido, Le Bouch (2015), aponta que as ciências sociais, na ânsia de
distanciar-se do pensamento religioso mítico e da subjetividade dos processos
humanos, desde o início buscavam resguardar-se do nascente paradigma
positivista, aliado a este e em suas aspirações por procedimentos com validade
científica, caíram no erro do excessivo metodologismo, causando a separação das
qualidades de seu objeto de estudo.
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O resultado acima descrito foi o que Freud superou, não sem a preocupação
de se separar dessa doutrina com a qual por muitos anos manteve uma interlocução
constante, produto de suas tentativas de legitimar suas descobertas sob tais regras.
Uma vez minados seus anseios de objetividade científica, Freud insistirá em apontar
que suas hipóteses não são fruto de mera especulação, pelo contrário, surgem de
uma laboriosa investigação de cada paciente e são conduzidas sob extremo
cuidado. Em outras palavras:

Os conceitos freudianos são validados tanto por uma necessidade


lógica que os legitima ao tornar inteligível um campo de fenômenos,
de outra forma inexplicável, quanto pela evidência clínica fornecida
por pesquisas realizadas com o método analítico (ASKAFARÉ, 2012,
p. 213).

Em suma, o encontro com o contingente de seus pacientes indicava a Freud o


caminho a seguir para o estudo da subjetividade, uma investigação que lhe
permitiria formular um corpo teórico rigoroso e, com o tempo, a formalização de um
método capaz de estudar os processos psíquicos indisponíveis por outras vias.
Para autores como Lacan (2008), o inventor da psicanálise vai localizar muito
cedo no discurso de seus histéricos um “saber” que mesmo para eles ficou fora de
seu próprio domínio, embora a descoberta desse saber não possa ser atribuída a
Freud, sim, sua maneira de abordá-lo.
Antes da invenção da psicanálise, esse conhecimento não era um interesse
das disciplinas biomédicas, pelo contrário, tornou-se para elas uma dificuldade
teórico-metodológica (KUHN, 2014).
Em todo o passado, podemos apontar que esse obstáculo científico
impulsionou o surgimento da psicanálise, ou seja, onde a medicina enfrentou o
problema criando novos mecanismos que visavam separar esses sujeitos do mundo
pelo seu isolamento nos espaços hospitalares, Freud fundou a “cura pela palavra”
(KUHN, 2014).
Sabemos historicamente que os hospitais eram o cenário perfeito para a
exclusão dos histéricos, mas, paradoxalmente, esses mesmos "pacientes" seriam os
encarregados de cativar o interesse de Martín Charcot, um dos mais destacados
neurologistas da época. Graças à aplicação da hipnose, este médico parisiense
conseguiu demonstrar a existência de leis "não orgânicas" que operavam sobre a
produção de fenômenos histéricos, mas coincidindo com sua racionalidade
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biológica, apresentará sua descoberta como uma deficiência científica, na ausência


de uma explicação por via órgão desses mal-estares (KUHN, 2014).
Será assim que as primeiras manifestações clínicas do conhecimento
subjetivo serão rejeitadas pela ciência dita natural, ao contrário, o caminho que se
seguirá será a elaboração de tabelas descritivas que, como dados, permitirão
posteriormente a elaboração de uma classificação diagnóstica (KUHN, 2014).
Para Le Bouch (2015), essa forma de proceder teve que custar a influência de
uma doutrina positiva que se propunha então como única alternativa para a
produção de um conhecimento sistematizado sobre os objetos, fossem eles naturais
ou não. Assim, a ciência médica em geral assumiu sem hesitar manter o ideal de
objetividade proposto por esse paradigma, formulando-se a posteriori como o único
discurso autorizado a construir um conhecimento "exato e verdadeiro" sobre os
desconfortos que ocorrem no corpo.

3 O PROJETO FREUDIANO

Como apontamos anteriormente, Freud como médico não era estranho ao


espírito positivista de sua época, pelo menos ele o considerou “parcialmente” em
1895, ano em que escreveu um dos documentos mais importantes para a
germinação de suas ideias, o mesmo que depois de sua morte foi publicado com o
nome de "Projeto de uma psicologia para neurologistas" (OSÓRIO, 2015).
O trabalho desenvolvido neste empreendimento não terá os resultados
científicos a que aspirava Freud, apesar do esforço despendido neste trabalho.
Tomando como referência a correspondência completa de S. Freud a W.
Fliess Masson em 1985 e que constitui um testemunho da pré-história da
psicanálise, podemos dar a prova da dedicação que o psicanalista vienense
depositou durante a gestação. Deste escrito, temos que, em carta de 1895, afirmou
que sentia certa teimosia quanto à tarefa de uma psicologia para neurologistas, a tal
ponto que a ela se dedicou todo o seu tempo. Um mês depois destas afirmações, vai
dar a esta obra o estatuto de “paixão dominante” e que, segundo ele, viu cada dia
mais perto de ser concluída com sucesso, no entanto essas expectativas logo
sucumbiram. Em sua carta do mesmo ano, ele afirmará que essa psicologia é
realmente um calvário; por fim, em sua correspondência no fim do ano, expressava
a ideia de mandar o documento para dormir na gaveta, porém, em janeiro de 1896
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entregaria a Fliess algumas das elaborações fundamentais adotadas no referido


projeto.
O documento enviado a Fliess ficará esquecido até 1936, nesse ano e no
contexto da comunicação que Marie Bonaparte 2 teve com Freud, ela dirá a ele o
seguinte: “Hoje um Sr. Stahl de Berlim me procurou. Ele obteve suas cartas e
manuscritos da viúva de Fliess" (OSÓRIO, 2015, p. 20), algum tempo depois Freud,
referindo-se a este documento, responderá o seguinte: “Não gostaria que nada disso
chegasse ao conhecimento da chamada posteridade[...]” (OSÓRIO, 2015, p. 20).
No contexto referido, a recusa de Freud em tornar públicas as suas ideias
contidas no "Projeto" faz sentido se considerarmos o "impasse" que produziu na
altura de colocar nas mãos de Fliess um documento que hoje sabemos que ficou
esquecido por longos anos. Para Jones (2007), uma das causas que levaram ao
abandono deste livro monumental está fortemente ligada aos propósitos não
realizados de Freud de introduzir a “psicologia” por uma porta tão estreita quanto
são as ciências naturais.
Porém, as diretrizes formais das ideias contidas neste empreendimento não
deixarão de estar presentes, principalmente no seu interesse genial em explicar de
forma satisfatória os fenômenos clínicos revelados em sua prática. Embora esses
fatos à luz do "projeto" busquem fortemente uma explicação biológica, a partir do
tratamento de seus histéricos, seu olhar será levado a dar maior atenção à sua
escuta clínica (OSÓRIO, 2015).
Nesse caminho Freud superou, não sem altos e baixos, uma série de
contratempos manifestados em seu "projeto" o estudo sobre "A Interpretação dos
Sonhos", que lhe rendia frutos, liberando seus postulados de certo peso quantitativo
e neurológico. Essa proposta dita "metapsicológica" propunha uma nova explicação
sustentada por uma estrutura de representações (OSÓRIO, 2015).
Sendo uma série de ideias que não se sustentavam em uma representação
real, mas na verificação de uma operação subjetiva, esse novo modelo apresentava
seu próprio obstáculo, esse obstáculo deslizava cada vez mais a obra de Freud para
fora dos cânones de qualquer ciência natural. O empecilho teórico será resolvido
posteriormente com o desenvolvimento e esclarecimento do ponto de vista

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Entre 1882-1962, discípula favorita de Freud; obteve as cartas e manuscritos que se originaram
durante o período de correspondência entre Freud e Fliess.
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econômico, segundo Jones (2007) foi graças ao fato de que nessa perspectiva
Freud se dedicou a pesar a função da experiência de satisfação sobre o objeto.
Dito isto, apesar das recusas expressas por Freud de que as ideias contidas
em seu "projeto" não vieram à luz pública, os postulados aí expressos claramente
tornaram-se uma espécie de matriz de trabalho pelo menos até a elaboração das
"Obras de Metapsicologia" estabelecidas por volta de 1915.

4 PARA UMA INVESTIGAÇÃO EM PSICANÁLISE

As ciências enquadradas na tradição positivista pretendem manter fechada a


manifestação subjetiva do pesquisador no momento da abordagem do objeto em
estudo, isto por meio de uma estratégia racional e normalizada que possa
salvaguardar o sujeito de qualquer tipo de apreciação singular em decorrência dessa
interação (BROUSSE, 2011).
Este aparato científico pretende, no quadro da neutralidade, tornar a
experiência humana da investigação um processo objetivo, controlável, repetível e
verificável. Contrariando essa rigidez racional, a psicanálise nos mostrou que a
realidade do pesquisador não pode ser desarticulada dos processos de subjetivação
que constituem sua própria posição de sujeitos dispostos a produzir conhecimento.
Freud desde o início de sua pesquisa clínica levantou a existência inseparável
entre ele e seus pacientes, inclusive, ele se refere a ter observações valiosas sobre
si mesmo em suas investigações (BROUSSE, 2011).
Freud ao longo de sua obra formulou insistentemente um conjunto de
reflexões e discussões com o propósito de dar um corpo teórico ao efeito derivado
da relação médico-paciente, disse ser impossível separar-se de seus efeitos no
momento de sua implantação a investigação do inconsciente (BROUSSE, 2011).
Essa relação que mais tarde estabeleceria como transferência tem a
qualidade de escapar a qualquer operação racional. O inventor da psicanálise será
radical ao propor a transferência dentro da pesquisa psicanalítica como o ponto
nodal para colocar o conhecimento inconsciente em ação e acessá-lo (MILNER,
2015).
Impulsionado pelo desafio imposto por sua disciplina na geração de
evidências que posteriormente foram traduzidas em noções diagnósticas, Charcot,
por meio da hipótese de uma cena traumática e contando com a técnica hipnótica,
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provocará episódios demonstrativos em seus pacientes. Ao superestimar seu


interesse científico pelo sofrimento de seus pacientes e descartar por completo a
elaboração subjetiva que em todo caso havia mobilizado a relação terapêutica, o
médico parisiense deixará de ouvir o que mais tarde abrirá as portas para Freud
formalizar seu método.

Um dia, nesse ato de demonstração, Charcot produziu uma contratura da


língua e da laringe (...), como consequência a paciente afônica sofre cãibras
no pescoço, ao mesmo tempo em que o jogo teatral é internalizado, quando
ela recupera a fala a paciente exclama: 'Você me disse que me curaria, que
me faria diferente. Você queria que eu falhasse, você consegue o que quer
saber de mim' (MILNER, 2015, p. 59).

Nas palavras do paciente, pode-se vislumbrar o procedimento de uma ciência


médica que, com a firme intenção de produzir conhecimento sobre o objeto que
estuda, perde de vista suas qualidades, minando qualquer formulação possível em
torno da relação subjetiva entre o assunto que estuda e o objeto investigado. Essa
demanda da paciente a Charcot representa o que Freud soube desde cedo para
suspeitar, ou seja, o saber do médico está preso quando se trata das singularidades
dos histéricos (JONES, 2007).
Em outras palavras, o que o caso sintetiza é uma racionalidade médica
científica que não conseguiu produzir novos saberes sobre os corpos como efeito de
sua intervenção e que paradoxalmente no momento em que Freud se distanciava
desse saber anteriormente configurado, lançou as bases da psicanálise.
O trabalho de Breuer e Freud (1893-95/1992) identifica o reconhecimento que
eles fazem a Pierre Janet por sua destacada pesquisa sobre as consequências
terapêuticas derivadas da relação médico-paciente, no entanto, também é possível
observar que a forma de enfrentá-lo não foi diferente da posição científica de Jean-
Martin Charcot (JONES, 2007).
O que descrevemos como a emergência de um “conhecimento subjetivo”
derivado da relação sujeito-objeto causado pela ciência médica, mas não previsto ou
assumido por ela, será para Le Bouch (2015) o “acidente científico” que conduz aos
esquemas teórico-práticos que mais tarde permitiram a Freud formular uma nova
disciplina longe de duas racionalidades contemporâneas possíveis; a primeira
decorrente de um paradigma positivista dominante e a segunda derivada de uma
visão metafísica do mundo que resistia ao seu declínio.
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Com o passar do tempo e assumindo o desafio que para ele representava a


explicação dos fenômenos ocorridos em cada paciente, por volta do ano de 1895
resolveu iniciar suas investigações pela técnica das "associações livres",
abandonando cada vez mais a mecânica da sugestão deliberada.
Esta operação clínica consiste basicamente em convidar o paciente a dizer
tudo o que lhe ocorre sem censurar nada, ditas produções são interpretadas
segundo Freud apenas no contexto do tratamento e sob a lógica da transferência,
anos depois ele o declarará em termos metodológico quem decide ingressar na
investigação dos fenômenos psíquicos achará necessário enfrentar essa prática com
a assimilação de sua própria análise (JONES, 2007).
O exposto permite especificar que dentro do campo da pesquisa psicanalítica,
além de considerar um certo neutralismo controlável por meio de um procedimento
normativo e externo, a tese é apelada de que o sujeito que empreende o percurso
de pesquisa neste campo vivencia os efeitos de sua análise, com a firme intenção
de que suas intervenções não sejam prejudicadas por seus sintomas.
Dito isso, a análise pessoal possibilita ao pesquisador questionar-se sobre as
dificuldades que surgem em sua prática clínico-investigativa, ou seja, não basta
intervir, é preciso conhecer os efeitos dessas intervenções. A título de exemplo,
temos que, no caso "Dora" publicado por Freud em 1905, o pai da psicanálise soube
especificar e trazer à luz as dificuldades transferenciais que surgiram durante a
abordagem ao paciente. Posteriormente, proporá que as projeções que se
manifestaram durante o tratamento foram motivadas pela relação pessoal
estabelecida com ela, encontrando aí a estrutura comum que essa relação contém.
Porém, também concluirá que graças a esse vínculo se gera uma diferença radical
que coloca o analista no lugar privilegiado de "sujeito suposto saber" e do qual se
pode tirar proveito na análise, desde que seu desejo de saber não seja um suporte
para as identificações daquilo que ele causa (JONES, 2007).

5 CONCLUSÃO

A validade e objetividade do dispositivo psicanalítico como um todo, tanto na


teoria quanto na prática, foram duramente criticadas ao longo de sua história, porém,
graças aos seus efeitos, a maioria de seus postulados ainda são vigentes.
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As primeiras ideias freudianas sobre os fenômenos que afetam o corpo não


eram aceitas por seus contemporâneos, mesmo antes de o termo psicanálise ser
cunhado. Com o tempo, o alvo do desprezo generalizou-se contra sua pessoa, por
mais estoicamente que ele assumisse as consequências de sua causa, ao preço de
trazer à tona a verdade inescapável da constituição humana e que a ciência exata
havia rejeitado.
Essa nova fórmula, além de romper abruptamente com o pensamento de sua
época, colocou sobre a mesa uma nova noção de objeto, investindo-o daquelas
qualidades que o discurso da ciência moderna havia despojado até então. Nessa
nova forma de pensar a realidade dos objetos e em decorrência de sua prática
clínica, o pai da psicanálise acabará por estabelecer uma nova causalidade lógica, a
saber, que somos sempre responsáveis por nossa posição de sujeitos.
Por outro lado, a clareza teórico-prática de Freud e a postura ética com que
se conduziu em todos os momentos da história de seu movimento não deixam
dúvidas de que suas descobertas foram sistemáticas e rigorosas, no entanto, à
medida que se desenvolveu a pesquisa na singularidade de cada caso não permite
a comparação com uma prática investigativa onde o objeto em estudo pode ser
apreensível, observável e quantificável.
A decisão de Freud de colocar as suas descobertas a serviço das ciências
naturais e aquela do “projeto” dava sinais claros de ter sido sufocada, podendo
antecipar que o destino desta nova disciplina não estava nos domínios da
cientificidade exata. Porém, como dirá Lacan anos depois, a psicanálise não poderia
ter visto a luz sem o surgimento do sujeito cartesiano, contudo sob a condição de
sua subversão.
Nesse sentido, o lugar que a psicanálise ocupa entre as ciências pode ser
compreensível à luz do que ela produz como efeito de sua prática.
Não foi por acaso que Lacan, após a subversão do cogito cartesiano, assumiu
o compromisso adquirido por Freud de delimitar o campo da pesquisa psicanalítica.
A determinação de Lacan em redirecionar o desejo de Freud e que ao mesmo tempo
impulsionou sua expulsão da “Associação Psicanalítica Internacional” trouxe como
consequência uma clareza plausível, ao colocar no centro do estudo da
subjetividade humana, os efeitos que surgem no momento de colocar em jogo a
relação sujeito-objeto.
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Dito isso, onde a ciência pressupõe que por meio de um controle racional do
sujeito sobre o objeto, se propicia a condição necessária para posteriormente
elaborar um conhecimento exato sobre ele, a psicanálise assumirá que o objeto
(também sujeito) não pode ser submetido a esses controles e, portanto, o
conhecimento sobre eles só podem ser parciais.
Ou seja, ao contrário da soberba racionalidade científica de circunscrever o
pesquisador e o objeto a uma mecânica orquestrada para congelar suas qualidades,
a psicanálise colocou como essa suposta autoridade de controle é ilusória e, pior
ainda, historicamente, tem indicado que tudo o que diz respeito ao pesquisador traz
efeitos ao abordar seu objeto.
Por outro lado, uma das críticas mais fortes que Lacan propôs para definir
mais claramente a distância que a psicanálise mantém em relação à ciência
moderna foi a tese de que em seu objeto esta esconde o próprio cerne da verdade
que estrutura e, portanto, em sua abordagem há sempre algo que lhe escapa.
Essa observação coloca o objeto da psicanálise como “indefinido” para a
investigação científica. A fórmula que Freud tentou construir, a fim de estabelecer
um método capaz de trazer à tona aquilo que ao próprio sujeito aparece como – a
internamente excluído – e que pela palavra pode atingir seu aspecto de causa
material, parece que à luz dos nossos dias, não atingiu maior determinação. Nesse
sentido, a responsabilidade assumida por Freud e Lacan de conceder à psicanálise
um lugar de exclusão no que diz respeito à dita ciência, não foi plenamente
alcançada, o que se confirma ao nos encontrarmos hoje com as chamadas práticas
psicanalíticas com claras aspirações objetivistas e carentes de rigorosidade
metodológica.

REFERÊNCIAS

ASKAFARÉ. S. Da Ciência à Psicanálise. Trad. Vera Pollo. Rio de Janeiro: Jorge


Zahar, 2012.

BROUSSE, M. H. Pesquisa, psicanálise e educação Parte I: posição metodológica


e epistemológica. Rio de Janeiro: Imago, 2011.

FOCCHI, M. Psicanálise: uma ética para o século XXI. São Paulo: Perspectiva,
2017.
14

JAPIASSU, Hilton. Psicanálise: Ciência ou Contra-ciência? Rio de Janeiro: Imago,


2009.

JONES, Ernest. Vida e Obra de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,
2007.

KUHN, T. S. A objetividade das ciências naturais. Rio de Janeiro: Jorge Zahar,


2014.

LACAN, J. A Ciência e a Verdade. Escritos. Trad. Vera Ribeiro. Rio de Janeiro:


Jorge Zahar, 2008.

LE BOUCH, M. Validade e vigência da psicanálise de Freud. São Paulo:


Perspectiva, 2015.

MILNER, Jean Claude. A anomalia histérica na origem da psicanálise. São


Paulo: Perspectiva, 2015.

OSÓRIO, Ryan Assunção. A repetição e o Projeto de 1895: gérmen de um


conceito. São Paulo: Perspectiva, 2015.

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