3
Veja em O crepúsculo da escravidão no mundo antigo de E. Cicciotti (1897), em Escritos sociológicos,
ob. cit., p. 198.
2. Da economia à sociologia
Laureando-se em engenharia na Escola Politécnica de Turim em 1870,
Pareto, antes de ser chamado à cátedra de economia política da
Universidade de Lausane (em 1893), exercera, por quase vinte anos, a
profissão de engenheiro, primeiro, em uma empresa ferroviária em
Florença e, depois, nas ferrovias de San Giovanni Valdarno. Mas, ao
mesmo tempo, estava voltado ao estudo de assuntos econômicos,
participando ativamente da batalha em defesa do livre comércio contra a
política protecionista do governo italiano. Por mais que fosse chegado aos
estudos econômicos, não por meio do habitual processo acadêmico, mas
impulsionado por uma forte paixão política, entrou na área como autodidata
sem ser apenas um amador, com uma segura vocação científica, nutrido de
bons estudos humanísticos, guarnecido por uma preparação matemática, de
longe, superior à dos colegas italianos e dominado por uma férrea
exigência de rigor metodológico.
Exortou, com um discurso lido na R. Academia dos Georgofili4 em 1877,
com apenas 29 anos, a defesa da economia como ciência, onde, entre outras
coisas, proclamou o próprio ideal de uma ciência neutral e não prescritiva,
ao qual permaneceria fiel por toda a sua vida: “... quando, mesmo que por
pouco tempo, tem trégua a luta em torno das questões práticas, não é inútil
subir um pouco nas regiões serenas da ciência pura, depondo as armas já
contestadas em nosso favor, esquecendo as suas paixões e voltando-se a
mente – mais do que propugnar uma determinada doutrina – para aquelas
mesmas investigações, das quais ela recebe forma e vida” 5. Colaborador do
“L’Economista” até 1876, do “Journal des Economistes” desde 1897, do
“Giornale degli Economisti” desde 1890, onde manteve, de 1891 a 1897,
uma coluna de crônicas corrosivas da vida pública italiana, quando, entre
1896 e 1897, saíram os dois volumes do Curso de Economia Política6 no
4
Famosa escola agronômica de Florença.
5
Da lógica das novas escolas econômicas (1877), em Escritos sociológicos, ob. cit., p. 127-128.
6
Cours d’économie politique no original francês.
qual havia reunido as lições ministradas na Universidade de Lausane, a sua
fama internacional de economista já estava consolidada.
O Cours poderia ser uma meta, mas representou apenas uma etapa. No
vasto e ambicioso programa paretiano de reduzir à ciência rigorosa o
estudo dos fenômenos sociais e a economia política que, entre todas as
ciências socias, era a metodologicamente mais avançada, representava
apenas a primeira parte. Pareto tinha bem claro em mente, desde o início,
que o pressuposto fundamental para um estudo científico da sociedade
globalmente considerada era, no caso, que a sociedade se constituía em um
sistema de fenômenos mutuamente interdependentes, para os quais se
deveriam buscar as leis de equilíbrio. Entre os dois modelos de sistema que
as ciências mais desenvolvidas podiam oferecer ao sociólogo, o modelo do
sistema mecânico, próprio das ciências físicas, e o modelo do sistema
orgânico, próprio das ciências biológicas, Pareto preferiu adotar o primeiro.
Concebida a sociedade com um sistema de todas as ações sociais do
homem, a economia política, que estudava uma particular espécie destas
ações, retirava dela apenas um aspecto: a esfera das ações econômicas
constituía uma parte do todo, hoje se diria (embora Pareto jamais tenha
usado a expressão) um subsistema. Dois capítulos do Cours, dedicados
respectivamente aos temas da evolução social e da fisiologia social, já
deixavam entender que ele não tinha nenhuma intenção, na realização de
seu próprio projeto, de parar no meio do caminho. A esfera, para a qual a
economia política voltava as suas pesquisas, era a das ações que o homem
realizava para satisfazer, adotando os meios mais adequados para atingir os
fins, ou seja, os seus próprios interesses: são as ações que podem ser
chamadas de racionais (que Pareto chama de lógicas). Max Weber nos
mesmos anos denunciava no capitalismo moderno, que havia dado origem
à ciência econômica, o grande processo de racionalização da sociedade
moderna, que culminava na organização da grande empresa e no estado
burocrático.
Um homem apaixonado, mais do que qualquer outro, não obstante a
máscara de impassibilidade com a qual ele adorava se disfarçar, Pareto não
tinha dúvidas sobre a parte importante ou até mesmo preponderante que os
motivos não racionais desempenhavam na conduta dos homens. Se as
tivesse tido, o espetáculo que lhe era oferecido pela cena política, da qual
ele foi, desde os primeiros anos, atentíssimo e, acima de tudo, imparcial
expectador, e os exemplos que ele extraía do estudo assíduo da história
política e da história das religiões, antigas e modernas (considerava as
várias ideologias solidaristas, pacifistas, humanitárias e o socialismo, em
todas as suas ramificações, como formas modernas de religiosidade),
imediatamente as teria dissipadas. Que um homem fosse um animal
racional era, ou uma bela fábula antiga, que somente poderia ter nascido da
cabeça dos filósofos, que estão acostumados a converter os seus próprios
desejos em realidade, ou o sonho dos economistas trancados em sua
cidadela, que estendiam demais o espaço destinado ao homo oeconomicus a
tal ponto que se confundia com o homem em sua integralidade. Quem se
propusesse a estudar o sistema social em seu conjunto, não poderia
evidentemente se deter na análise da parte racional da ação humana,
deveria inserir o estudo parcial da economia política no estudo global de
todas as forças internas e externas, das quais são gerados os movimentos do
sistema social.
7
Cartas a Maffeo Pantaleoni, Roma, Banco Nacional do Trabalho, 1960, vol. II, p. 73.
esta segunda caracterização, que serve para distinguir o mundo humano do
mundo animal, a grande dicotomia paretiana se resolve na distinção entre
as ações objetivamente adequadas aos fins e as ações adequadas aos fins
apenas subjetivamente, isto é, apenas na crença de que quem as realiza tem
nelas.
No âmbito da grande dicotomia, a hipótese fundamental da qual Pareto
parte é a de que, das duas classes de ação, a segunda é, no conjunto das
relações humanas, muito mais importante do que a primeira. Os homens
não são, na sua maioria, seres racionais. Quem acredita na racionalidade
deles, deixa escapar a esfera mais preponderante da conduta humana;
poderá construir castelos metafísicos como fizeram, a seu tempo, os
jusnaturalistas, mas não são capazes de fazer avançar nem mesmo um
milímetro o estudo científico da sociedade. O estudo das ações não-lógicas
cabe à sociologia que, desse modo, antes de se articular, como seria
desejável, em disciplinas mais específicas, está destinada a recortar, por
muito tempo ainda, a maior parte dos fenômenos sociais.
Com essas ideias em mente, Pareto ainda não tinha terminado o Cours que
já é abandonado, com entusiasmo juvenil, ao projeto de escrever um tratado
sobre sociologia. A partir o segundo semestre de 1897, foi-lhe confiado o
encargo de ensinar, além de economia, também a sociologia. Ele aproveita
a oportunidade para mergulhar de cabeça na leitura de livros de sociologia,
dos quais extrai a convicção de que, no que diz respeito à economia, a
sociologia ainda se encontra em estado infantil. O que reaviva o seu ardor.
Rechaça a maior parte dos autores que lê, porque fazem pouca ciência e
muita metafísica, e acaba em pregação. Desconstrói, porque
“lamentavelmente” pouco rigoroso8, um livro como O Suicídio de Émile
Durkheim, que foi considerado, por comum consenso, uma obra
antecipadora da localização científica da sociologia. Tem a impressão de
atravessar uma floresta virgem e de ser chamado para fazer um trabalho
pioneiro. Mas justamente por isso se dá conta imediatamente de que a nova
empreitada, na qual ele está preste a embarcar, exige tempo e paciência. Em
14 de junho de 1897, escreve ao amigo Maffeo Pantaleoni: “Quanto à
8
Veja em O Suicídio de E. Durkheim, publicado na “Zeitschrift für Sozialwissenschaft”, I, 1898, in
Escritos sociológicos, ob. cit., p. 204.
Sociologia, vai levar alguns anos até que eu a publique. É necessário antes
meditar, trabalhar, recolher os documentos etc. etc.” 9. Enquanto isso, ele
começa a preparar o terreno, publicando na então recém-nascida “Revista
Italiana de Sociologia” alguns artigos de argumento sociológico: A tarefa
da sociologia entre as ciências sociais (1897), que é um discurso ao curso
lausanense, O problema da sociologia (1899), Uma aplicação das teorias
sociológicas (1900), que contém, em poucas palavras, os principais temas
do futuro tratado, que, aliás, o autor disse esperar “que lhe seja dado
terminá-lo e publicá-lo”10.
Lendo os livros dos sociólogos e dos reformadores sociais, Pareto ficava
cada vez mais convencido de que a principal razão do atraso da ciência
social residia no fato de que quem aplicava a sua engenhosidade se deixava
geralmente conduzir mais pelo sentimento do que pela observação das
coisas. Para bem aprender a lição dos fatos, a maquiavélica “verdade
efetiva das coisas”, é necessário dar-se conta de que os fenômenos sociais,
à diferença dos naturais, se apresentam ao investigador sob dois aspectos,
um aspecto objetivo, que é o fato real, e um aspecto subjetivo, que é a
forma sob a qual a mente humana o representa, e é frequentemente, por
múltiplas razões, uma representação deformada. Muito frequentemente, os
sociólogos confundiam a representação subjetiva com o fenômeno
objetivo; a interpretação que os outros sociólogos antes deles, ou em geral
os que transmitiam a memória dos fatos, davam do que tinha acontecido
com a coisa acontecida; e as justificações póstumas com os reais
movimentos da ação. Para fazer com que a ciência progrida, era necessário,
antes de tudo então, quebrar a crosta da representação subjetiva do
fenômeno social e chegar ao ponto de captar o fenômeno objetivo por atrás
dela: consequentemente, uma sociologia científica deveria, antes de tudo,
limpar o campo de pesquisa de todas as teorias pseudocientíficas
precedentes.
Entre estas teorias, predominavam, nos anos da virada de século, pelo vigor
polêmico, pela força persuasiva e pela pretensão de se valer como ciência,
9
Cartas a Maffeo Pantaleoni, ob. cit., II, p. 83.
10
Uma aplicação das teorias sociológicas, na “Revista Italiana de Sociologia”, IV, 1900, p. 402 (agora
também em Escritos sociológicos, ob. cit., p. 233).
as teorias socialistas. Eram os anos em que eclodira na Itália, entre Antonio
Labriola e Benedetto Croce, com a intervenção de Giorgio Sorel (de todos
e entre estes personagens, Pareto foi um sincero admirador), o primeiro
grande debate sobre marxismo teórico. Como prova da crítica das teorias
não científicas, Pareto optou pelas teorias socialistas.
Em setembro do ano acadêmico 1898-1899, elabora um curso sobre a
história das doutrinas socialistas antigas e modernas. Em pouco menos de
dois anos de trabalho, foi capaz de escrever e publicar Les systèmes
socialistes, em dois volumes, respectivamente em 1902 e 1903. Embora
prescindindo do fato de que a Introdução contém um resumo do futuro
tratado, e ali se fala pela primeira vez das élites e da sua circulação, estes
dois volumes densos devem ser considerados, no longo itinerário rumo à
obra conclusiva, como uma etapa obrigatória. Por meio de uma
amostragem de doutrinas extremamente variada e duvidosa, Pareto coloca
sob prova de fogo (um fogo sempre crepitante mesmo quando não
consegue ser destrutivo) a sua segunda grande dicotomia, aquela entre
teorias lógico-experimentais e teorias não lógico-experimentais (preste
atenção na simetria de formulação entre esta dicotomia e a precedente).
Esta terminologia, para dizer a verdade, aparecerá apenas no Tratado; mas
a coisa mais importante já se mostra clara desde já. Criticando as teorias
não científicas, Pareto dá uma aula de metodologia.
Uma teoria para ser científica deve respeitar duas regras fundamentais: a)
valer-se de um material experimental, isto é, dos fatos objetivamente
verificados; b) relacionar estes fatos entre si com raciocínios rigorosos.
Pertencem, portanto, à vasta categoria das teorias não lógico-experimentais,
as que se fundam em fatos objetivos mas os relacionam com raciocínios
distorcidos, as que raciocinam corretamente sobre fatos, que, porém, não
foram corretamente verificados, e naturalmente as que não são nem
factualmente nem logicamente corretas. Por outro lado, as teorias lógico-
experimentais são as que superam vitoriosamente a prova dos dois critérios
de verdade, o critério da verdade empírica e o da verdade ou o da validade
lógica; as teorias não lógico-experimentais são as que não conseguem
superar nem uma, nem outra ou nem todas as outras duas. Isso não significa
que não possam ser avaliadas com outros critérios, como são as da força
persuasiva e da utilidade social. Aliás, Pareto exprime repetidamente a sua
firme convicção de que uma teoria falsa tenha geralmente muito mais
eficácia e frequentemente seja mais útil socialmente do que uma teoria
factual e logicamente verdadeira. Uma vez que os homens, geralmente, não
se comportam de um modo racional, as doutrinas que fazem apelo aos seus
sentimentos têm maior probabilidade de serem acolhidas do que as teorias
científicas que contam com a sua capacidade de observação e de raciocínio.
Dessa forma, as duas grandes dicotomias se relacionam perfeitamente uma
com a outra.
11
Publicado primeiramente pela G. Sensini, em Correspondência de Vilfredo Pareto, Pádua, Cedam,
1948, p. 143-162; portanto, com o acréscimo das Questões de sociologia, por G. Busino, Sommaire du
cours de sociologie suivi de Mon Journal, Genebra, Droz, 1967; trad. it., em Escritos sociológicos, ob.
cit., p. 347-371, dos quais cito. O trecho citado está na p. 348.
12
Ob. cit. p. 348.
fenômenos sociais, observa que “esta teoria, que seria a mais útil, é a que,
até o presente, foi a menos estudada”13.
Nesta contraposição entre o problema da mútua dependência dos
fenômenos sociais e o problema da evolução da sociedade, está claramente
esboçada a concepção paretiana da sociedade como sistema global. Pareto
parece dizer, até aqui, que os sociólogos, atraídos pelo problema, talvez
mais sugestivo e certamente mais apelativo, das várias fases através das
quais se passou das sociedades primitivas às sociedades evoluídas ou
civilizadas, se esqueceram de estudar quais são os elementos constitutivos
de uma sociedade e como uns reagiram com os outros, para permitir a eles
sobreviver e se desenvolver; deram maior ênfase aos problemas do
desenvolvimento do que aos problemas do equilíbrio. De Comte a Spencer
e até a Durkheim, os sociólogos demonstraram ser os herdeiros diretos dos
filósofos (ou dos teólogos) da história: os Princípios de sociologia de
Spencer, que Pareto conhecia bem e que, por algum tempo, foram uma das
principais fontes de seus conhecimentos sociológicos, tinham sido uma
grande tentativa de descrever a evolução social como último momento, mas
bem concatenado com os momentos precedentes, da evolução natural. Na
obra de Marx, hoje, tende-se a pôr em relevo também o aspecto da teoria
do sistema social, em particular da forma de produção capitalista (por parte
dos intérpretes que vão em direção à redescoberta de Marx partindo das
teorias estruturalistas); mas, por marxismo, entende-se principalmente – e
certamente se entendia à época de Pareto – uma teoria do desenvolvimento
histórico, sobretudo do desenvolvimento econômico da sociedade feudal à
sociedade capitalista, da sociedade capitalista à sociedade socialista.
Erigindo a tema principal da sociologia o do sistema social, Pareto
imprimia aos estudos sociológicos um direcionamento que fazia coro com
o que acontecia em outras áreas do conhecimento, a exemplo da linguística
e do direito. Em 1916 (o mesmo ano da publicação do Tratado paretiano),
foi publicado postumamente o Cours de linguistique générale de Ferdinand
Saussurre14, que está na origem da linguística estrutural. Entre 1910 e 1920,
Hans Kelsen elabora, com um grupo de discípulos, uma teoria do direito
como sistema normativo. Mas não se deve esquecer a tentativa de construir
uma teoria sistemática do direito – tentativa sob certos aspectos análoga à
de Kelsen, apesar de permanecer em grande parte ignorada – do colega
13
Ob. cit., p. 367.
14
Na introdução aos Escritos sociológicos, ob. cit., Busino observa “o quanto Pareto tinha sido
incardinado no clima espiritual dominado por De Saussurre.
lausanense de Pareto, Ernest Roguin, que é um dos poucos juristas citados
com honra no Tratado15.
15
Sobre as relações entre Pareto e Roguin, cf. G. BUSINO, Contribuições à história do pensamento
político contemporâneo. 1. Ernest Roguin e Vilfredo Pareto, em Cahiers Vilfredo Pareto, n. 4, 1964, p.
189-210.
Agradando a Deus, à censura e aos serviços de postagem, você receberá,
algum tempo depois, um exemplar dela”16.
A gestação foi longa e difícil; mas veio à luz um trabalho grandioso. Dois
volumes de grosso formato com mais de mil e setecentas páginas, divididas
em dois mil seiscentos e doze parágrafos. E, no entanto, a máquina que
estava agora em movimento não parou mais. Com a ajuda de Pierre Boven,
seu discípulo, Pareto preparou, logo em seguida, a tradução francesa, que
foi publicada em dois volumes, o de 1917 e o de 1919, com muitas
correções e aditamentos, especialmente no segundo volume; então a
segunda edição italiana em três volumes foi publicada quase sem
modificações relativamente à edição francesa, alguns meses depois da sua
morte, em 1923.
Pareto passou os últimos anos da sua vida comentando os grandes e
trágicos acontecimentos da sociedade europeia – a Primeira Guerra
Mundial, a Revolução Soviética e o advento do fascismo na Itália –
trabalhando como chave de interpretação (a seu juízo, infalível) as teorias
do tratado, mostrando que a maior parte das suas previsões aconteceram,
porque estavam, afinal, fundadas em uma ciência exata da sociedade. Parte
desses ensaios e artigos ele mesmo reuniu em dois volumes, Fatos e
teorias (1920) e Transformação da democracia (1921). Considerava o
modo com o qual a guerra tinha acabado como uma vitória da plutocracia
demagógica (que se beneficia da participação das massas no poder) contra
a plutocracia militar e burocrática (que apoia o próprio poder em grandes
aparatos do exército e da burocracia). Mas também o poder da plutocracia
demagógica, não obstante a arte (que ele admirava sobretudo em Lloyd
George e Giolitti) de “saber tornar inócuas as medidas que aparentemente,
em seu próprio prejuízo, deve tomar”17, talvez tivesse chegado ao
crepúsculo. Interpreta as lutas sociais do imediato pós-guerra como um
fenômeno talvez inapelável de “desintegração do poder central”, como um
sinal da crise do parlamentarismo. Ele achava que a humanidade estivesse
no limiar de um novo medievo. E em abril de 1922 se perguntava: “Resta
saber até quando esta desintegração continuará, se o futuro não tiver na
manga um César, um Otávio Augusto, um Bonaparte, ou outros homens
semelhantes”18. O advento do fascismo não o pega de surpresa. Tornava-se
realidade uma das teses da qual ele se orgulhava: a inelutável circulação
das elites. Em um artigo publicado em 10 de outubro de 1922, escreveu: “o
16
Cartas a Maffeo Pantaleoni, ob. cit., III, p. 194.
17
Dois homens de estado (1921), em Escritos sociológicos, ob. cit., p. 1069.
18
Previsão dos fenômenos sociais (1922), em Escritos sociológicos, ob. cit., p. 1139.
ciclo da plutocracia demagógica não pode se prolongar por muito tempo.
Cedo ou tarde, a circulação das elites lhe porá termo”.19
8. Os resíduos e as derivações
19
O futuro da Europa (1922), em Escritos sociológicos, ob. cit., p. 1153.
abordagem se estende por dois capítulos (o nono e o décimo). O longo e o
denso capítulo seguinte (o décimo primeiro) examina, concretamente, o
modo das suas ações, por meio de um estudo da sua respectiva importância,
das relações de recíproca influência entre uns e outros, das consequências
que derivam das suas várias combinações para a composição, o
desenvolvimento e a crise de um sistema social; e põe, dessa forma, os
pressupostos para a elaboração de uma teoria da “forma geral da
sociedade”, para a qual é dedicado o penúltimo capítulo, que também é o
capítulo fundamental e, em certo sentido, conclusivo. O último capítulo (o
décimo terceiro) é uma espécie de apêndice histórico, em que a teoria do
sistema social foi verificada por meio de uma investigação histórica, no que
diz respeito particularmente à história romana (a Pareto, constantemente, é
sugerida a analogia entre a crise da sociedade burguesa e a decadência da
sociedade antiga).
Não é fácil afirmar os critérios com base nos quais Pareto chegou à
classificação dos resíduos e das derivações. Das seis classes de resíduos,
duas estão ligadas às duas categorias fundamentais da sociologia, a
mudança (“o instinto das combinações”) e a conservação (“a persistência
dos agregados”); duas, aos dois polos de atração de todo sistema social, o
indivíduo (“integridade do indivíduo e suas dependências”) e a sociedade
(“resíduos em relação com a socialidade”); uma, em um nível mais baixo,
na medida em que exprime mais claramente aos outros uma necessidade
biológica, está sozinha (“resíduo sexual”) e foi, portanto, completamente
negligenciada na sucessiva análise sociológica e histórica do sistema social;
uma outra parece ter sido introduzida unicamente para permitir ao autor
fazer algumas variações sobre o tema da exaltação religiosa (“necessidade
de manifestar com atos externos os sentimentos”). As quatro classes de
derivação parecem se distinguir pelo grau de maior ou menor
complexidade: passa das derivações, que consistem em uma pura e simples
afirmação, para as que fazem apelo à autoridade (de um ou mais homens,
da tradição ou de uma entidade divina), para as que fazem apelo a valores
geralmente compartilhados, enfim, para as que se valem das manipulações
verbais.
Qualquer que seja a validade desta classificação (sobre a qual nenhum
crítico conseguiu, até agora, dizer uma só palavra com clareza), o ponto
central a ser considerado é que, para Pareto, a forma de uma sociedade, isto
é, um sistema social, é caracterizada pelos instintos ou sentimentos
primordiais revelados pelos resíduos e não pelas derivações. Os resíduos
manifestam os elementos simples de que se constituem todas as sociedades,
o dado natural, não ulteriormente decomponível e condicionável. Quem
quiser compreender o mecanismo e, portanto, os funcionamento de um
dado sistema social deverá procurar identificar estes elementos simples, por
meio de vários modos com os quais os homens se expressam, prestando
atenção para distinguir as racionalizações, que são a parte mais variável e
menos importante das manifestações dos instintos ou dos sentimentos dos
quais emerge ou deve emergir, a partir do que os homens dizem o que os
homens são na realidade, e como se comportam nas suas relações
recíprocas.
Dado que estes elementos comuns a todo sistema social, isto é, os instintos
e os sentimentos, são, como foi visto, múltiplos e variadíssimos entre si,
aliás, são, muitas vezes, contraditórios (como o instinto das combinações e
o da persistência dos agregados) e, além disso, são variada e desigualmente
distribuídos (mas sobre o porquê dessa desigual distribuição, Pareto não
disse nada de exato e a constata com um dado, de fato, imodificável), disso
se segue que toda sociedade é heterogênea. Neste particular, surge um dos
princípios fundamentais da sociologia paretiana, o princípio da
heterogeneidade social: “Agrade ou não agrade a certos teóricos, o fato é
que a sociedade humana não é homogênea, que os homens são diferentes
física, moral e intelectualmente” (§ 2025)20. A desigualdade é aumentada
pelo fato de que, em todo ramo da atividade humana, há alguns que têm
indicadores mais altos e outros têm indicadores mais baixos de capacidade.
Os que têm os indicadores mais altos constituem, em todo ramo de
atividade, a classe eleita, ou seja, a elite. Toda sociedade, portanto (e esta é
a última grande dicotomia paretiana), é composta por elites e por não-elites.
A fim de estudar a forma e o movimento de uma sociedade, Pareto
considera isolar, como mais relevante, a classe eleita do governo, a elite
política. “O mínimo que podemos fazer é dividir a sociedade em dois
estratos, isto é, um estrato superior, em que comumente estão os
governantes, e um estrato inferior, onde estão os governados” (§ 2047) 21.
Com esta delimitação, o problema do equilíbrio social se resolve no
problema das relações entre classe governante e classe governada.
20
V. p. 75.
21
V. p. 80.
Toda sociedade caracteriza-se pela diferente composição da classe
governante e da classe governada, e pela maneira diferente com que
acontece a mudança entre uma e outra.
A esta renovação Pareto dá o nome de “circulação das elites”. A circulação
das elites é o maior indicador das diversas formas que pode assumir o
equilíbrio social. Onde é escassa ou nula a circulação, o equilíbrio é
estático; onde é gradual e regular, isto é, onde acontece uma passagem
contínua de elementos da classe governada à classe governante, o equilíbrio
é dinâmico; quando a circulação se interrompe, gera-se um desequilíbrio,
que pode levar à substituição de um sistema social por um outro
(revolução). Não há nenhum sistema social destinado a durar além de um
certo limite de tempo. “As aristocracias não duram. Qualquer que seja a
causa delas, é incontestável que, depois de um certo tempo, desaparecem. A
história é um cemitério de aristocracia” (§ 2053) 22. De forma sintética e
imaginativa: “Por meio da circulação das classes eleitas, a classe eleita de
governo está em um estado de contínua e lenta transformação, ela escorre
como um rio e esta de hoje é diferente da de ontem. Às vezes, observam-se
repentinas e violentas perturbações, como seriam as inundações de um rio
e, depois, a nova classe eleita de governo volta a se modificar lentamente; o
rio, voltando ao seu leito, escorre novamente ao leito regular” (§ 2056)23.
Se, todavia, esta passagem de uma forma de sistema social para outra
acontece de acordo com uma certa ordem de progresso ou
desenvolvimento, não há o interesse de Pareto. Ao lado de uma teoria de
equilíbrio social não existe na obra parentiana uma teoria do progresso ou
do desenvolvimento: ao contrário, há continuamente uma controvérsia, ora
raivosa, ora zombeteira, contra todas as filosofias da história, ou mitologias
do progresso, que pretendem explicar onde começou e onde terminará o
curso histórico da humanidade. Todas as filosofias da história,
compreendidas as que pretendiam ser científicas, como o materialismo
histórico e o darwinismo social, são, em última análise, metafísicas, isto é,
não estão de acordo com os fatos. Daí deriva um outro dos princípios
fundamentais da sociologia paretiana: os fenômenos sociais têm uma forma
“de ondas”, isto é, vão para cima e para baixo, procedendo em sobe e desce
como as ondas do mar; estão, com outra não menos frequente expressão,
em contínua “oscilação”. As mais ilustres filosofias da história, do
Iluminismo ao positivismo, do positivismo ao marxismo, têm em comum a
ideia de que uma das linhas mais constantes e estabelecidas do progresso
passa da idade do mito à idade da ciência, dos reinos sacerdotais às
22
V. p. 82.
23
V. p. 82.
sociedades livres. Pareto não acredito nisso. Entre espírito religioso e
espírito científico, vê, no passar dos séculos e das sociedades, uma contínua
oscilação. “Em pouco mais de um século... vimos o ceticismo voltairiano,
ao qual se seguiu o humanismo de Rousseau, a religião revolucionária,
depois o retorno da religião cristã, portanto, de novo o ceticismo, o
positivismo e assim, de novo, começava uma nova oscilação no sentido
místico-nacionalista” (§ 1681). Daí, a conclusão: “Não se progride
consideravelmente, nem em um sentido nem em outro, por mais que se
diga respeito às opiniões sociais se deixem de lado as ciências naturais”
(id.).
Aos cientistas lógico-experimentais, que querem afirmar apenas o que pode
ser verificado com os fatos, a história parece, ao menos até prova em
contrário, uma repetição monótona, sem um desenho aparente, dos mesmos
fenômenos. Seria contraditório, de resto, atribuir uma solução racional de
uma questão cujos protagonistas são seres prevalentemente irracionais,
como exatamente são os homens.
NOTA BIOGRÁFICA
Nascido em Paris, onde o pai, Raffaele, se exilou por motivos políticos, em
15 de julho de 1848, Vilfredo Pareto formou-se em Engenharia pela Escola
Politécnica de Turim em 1870. Empregado junto à Sociedade Anônima das
Estradas de Ferro, em Florença, de 1870 a 1873; empregado e, então,
diretor da Sociedade da Indústria do Ferro, depois Sociedade Italiana do
Ferro, em San Giovanni Valdarno de 1877 a 1890, candidata-se duas vezes
(em 1880 e em 1882) a eleições para a Câmara dos Deputados, mas não é
eleito. Patrocinador, a partir de 1874, da Sociedade Adam Smith, que se
propõe a favorecer o livre comércio, colabora ativamente, a partir de 1876,
com revistas de economia, como “L’Economista”, o “Journal des
Economistes”, o “Giornale degli Economiste”, onde mantém, entre 1891 e
1897, uma aguerrida coluna de Crônicas da vida política italiana. Com o
apoio do amigo Maffeo Pantaleoni, é nomeado professor de economia
política na Universidade de Lausane em 1893, no lugar deixado vago por
Léon Waldras. Em Lausane, tem início uma década de febril e fecundíssima
operosidade científica que o coloca em evidência entre os maiores
economistas de seu tempo: em 1896 e em 1897, publica, respectivamente, o
primeiro e o segundo volumes do Cours d’économie politique; em 1902 e
em 1903, respectivamente o primeiro e o segundo volumes de Les systèmes
socialistes; em 1906, o Manuale di economia politica (do qual foi
publicada uma edição francesa em 1909). Segue-se uma década de quase
silêncio, dedicada, em grande parte, à redação do tratado de sociologia,
idealizado desde o ano de 1897, ele foi designado pela Universidade de
Lausane para o cargo de professor, além de economia, de sociologia. Neste
intervalo de tempo, em 1911, depois de reiterados pedidos, aposentou-se.
Em 1916 publica, em dois volumes, o Tratado de Sociologia Geral (do
qual também é feita uma tradução francesa em dois volumes,
respectivamente em 1917 e 1919). Passa os últimos anos na vila de
Céligny, perto de Genebra, escrevendo, prevalentemente, como nos vinte
anos precedentes, quando residiu em Lausane, ensaios e artigos de crítica
política, reunidos em dois volumes, Fatos e teorias (1920) e
Transformação da democracia (1921). Morre em 21 de agosto de 1923,
com 75 anos de idade.
BIBLIOGRAFIA
Principais obras de Vilfredo Pareto:
Cours d’économie politique, em dois volumes, Lausane, F. Rouge, 1896-
1897; nova edição por G.H. Bousquet e G. Busino, Genebra, Droz, 1964.
Trad. it. De R. Fubini, Turim, Einaudi, 1942 (e reimpressões sucessivas).
Les systèmes socialistes, em dois volumes, Paris, V. Giard & E. Brière,
1902-1903; nova edição por G. Busino, Genebra, Droz, 1965. Trad. it. De
C. Arena, Turim, Utet, 1954.
Manuale d’economia politica, Milão, Società editrice libraria, 1906; nova
edição, por L. Amoroso, Roma, Bizzarri, 1965. Edição francesa: Manuel
d’économie politique, Paris, V. Giard & E. Brière, 1909; nova edição,
Genebra, Droz, 1966.
Trattado di sociologia generale, em dois volumes, Florença, Barbera, 1916;
segunda edição em três volumes, por N. Bobbio, Milão, Edizioni di
Comunità, 1964. Trad. francesa de Pierre Boven, em dois volumes, Paris,
Payot, 1917-1919; nova edição, por R. Aron, Genebra, Droz, 1968.
A maior parte dos escritos de argumento sociológico foi reunida no volume
Escritos sociológicos, de Vilfredo Pareto, por G. Busino, Turim, Utet,
1966. Para ser integrado com a coleção das Cronache italiane, por C.
Mongardini, Brescia, Morcelliana, 1965.
Para conhecer o personagem Pareto, os seus ódios e seus amores, são de
grande interesse as numerosas coleções de cartas, da quais as duas mais
importantes são:
Lettere a Maffeo Pantaleoni, em três volumes, por G. de Rosa, Roma,
Banca Nazionale del Lavoro, 1960.
Lettere ai Peruzzi, por T. Giacalone-Monaco, I vol. (1872-1877), II vol.
(1878-1900), Roma, Edizioni di storia e letteratura, 1968.
1. Critérios de método
13. Não pretendemos, nem um pouco, afirmar que o caminho pelo qual
estamos, pois, seguindo é melhor do que os outros; não seria outro porque o
melhor resultado final, neste caso, não faz sentido nenhum. Não é possível
nenhuma comparação entre teorias inteiramente contingentes e teorias que
admitem o absoluto; são coisas heterogêneas que sempre permanecerão
dissociadas.
Se alguém quiser trabalhar com certos princípios teológicos, ou
metafísicos, ou, como fazem os contemporâneos, com os princípios de
“progresso democrático”, para compor uma Sociologia, não discutiremos
com ele, e certamente não falaremos mal da sua obra. A batalha se tornará
inevitável apenas quando, em nome dos princípios, alguém quiser nos
impor qualquer resultado que caia no domínio da experiência e da
observação.
Voltando ao exemplo precedente, quando Santo Agostinho afirma que as
Cartas Sagradas foram inspiradas por Deus, não temos nada a objetar em
relação a esta proposição, sobre as quais, de resto, nem sequer temos muito
entendimento; mas quando, nas Cartas, alguém quer encontrar a
demonstração de que não existem antípodas25, não nos ocuparemos por
nada das suas razões, uma vez que esta pergunta pertence à experiência e à
observação.
14. Nós trabalhamos em um campo restrito, isto é, no da experiência e no
da observação; não negamos que existem outros, mas aqui não nos
ocuparemos deles. Nosso objetivo é descobrir teorias que abranjam os fatos
da experiência e da observação e, no presente estudo, recusamos a nos
debruçar sobre outros. Quem agir nebulosamente em relação a esse ponto,
quem quiser partir em viagem para fora do campo lógico-experimental, que
vá buscar outra companhia, e esqueça a nossa, que não é de seu estilo.
15. Nós diferimos totalmente de muitos daqueles que seguem um caminho
análogo ao nosso, pelo que não negamos a utilidade social de teorias
diversas da nossa, porém, em certos casos, acreditamos que lhe podemos
ser muito úteis. A união da utilidade social de uma teoria com a sua verdade
experimental é justamente um dos princípios a priori que refutamos. Estas
duas coisas estão ou não estão sempre juntas? A tal pergunta, só a
observação dos fatos pode responder e, enquanto ela segue adiante nas
investigações, vão se encontrando as provas de que estas duas coisas
podem estar, em certos casos, desarticuladas.
16. Peço, então, aos leitores que tenham sempre presente que, onde eu
afirmo o absurdo de uma doutrina, não pretendo, de jeito nenhum, afirmar
implicitamente que ela é nociva à sociedade; ao contrário, pode ela ser
muito útil. Por outro lado, onde afirmo que uma teoria é útil à sociedade,
não quero, de forma alguma, afirmar, de modo implícito, que ela seja
experimentalmente verdadeira. Em suma, uma mesma doutrina pode ser, ao
mesmo tempo, ridícula do ponto de vista experimental, mas respeitada à luz
da utilidade social e vice-versa.
17. O autor que expõe certas teorias costuma querer que sejam elas
acolhidas e tomadas como próprias por todos os outros; nele, reúnem-se o
pesquisador da verdade experimental e o apóstolo. Neste livro, eu os separo
inteiramente; o primeiro permanece, mas o segundo é excluído. Disse e
repito que o meu único escopo é a busca das uniformidades (leis) sociais; e
acrescento que exponho aqui os resultados de tal busca, porque penso que,
pelo número restrito de leitores que este livro pode ter e pela cultura
científica nele pressuposta, esta exposição não pode causar nenhum dano;
mas me absteria disso, onde pudesse razoavelmente acreditar que esta obra
poderia se tornar um livro de cultura popular.
25
Em Botânica, diz-se de cada uma das três células que se localizam no saco embrionário do óvulo dos
vegetais superiores, em polo oposto àquele em que se encontra o gameta feminino.
2. As ações não-lógicas
4. Mas a parte (b), ainda que secundária, também produz efeito neste
equilíbrio. Às vezes, este efeito pode ser tão pequeno que pode ser igual a
zero, como quando se justifica a perfeição do número seis, dizendo que é
igual a soma das suas partes alíquotas; mas pode este efeito ser também
significativo, como quando a Inquisição queimava as pessoas que caíam em
um erro qualquer de deduções teológicas.
As teorias (c), da qual o sentimento faz parte, que unem qualquer coisa à
experiência, que estão além da experiência, se decompõem analogamente
em uma parte (a), constituída pela manifestação de certos sentimentos, e
uma parte (b), constituída pelos raciocínios lógicos, pelos sofismas e,
igualmente, por outras manifestações dos sentimentos adotadas para extrair
deduções de (a). Sendo assim, há correspondência entre (a) e (A), entre (b)
e (B) e entre (c) e (C). Aqui não nos ocuparemos senão das teorias (c) e
deixaremos de lado as teorias científicas experimentais (C).
8. Admitida a parte (a), pode ser constituída, com método dedutivo, a parte
(b), ou melhor, (B), razão pela qual o seu estudo é muito mais fácil do que o
da parte (a). Ele produziu as únicas ciências sociais que são hoje
desenvolvidas e rigorosas, isto é, a ciência das construções jurídicas e a
economia pura. Este estudo da parte (b) será tanto mais perfeito quanto
mais for constituído por uma única lógica, tanto mais será imperfeito, ao
contrário, quanto mais nele se insinuarem e forem acolhidos princípios não
experimentais, que deveriam adequadamente permanecer na parte (a).
Além disso, posto que esta parte (a) ou também (A) é a que dá, ou pode dar,
lugar a dúvidas e a incertezas, quanto menor será e tanto mais rigorosa
poderá ser a ciência que dela se deduz.
9. A economia pura tem, justamente, a vantagem de poder extrair as suas
deduções de pouquíssimos princípios experimentais e usa com tanto rigor a
lógica, que pode dar forma matemática aos seus raciocínios, que também
têm a enorme vantagem de se ocupar com a quantidade. A ciência das
construções jurídicas tem também o mérito de necessitar de poucos
princípios, mas não tem a vantagem de poder raciocinar com quantidades.
Isto talvez ainda seja um grave inconveniente para a Sociologia, mas é
necessário pelo menos remover o outro inconveniente, o da interferência da
parte (a) na parte (b).
10. Em geral, certos princípios (a) podem ser arbitrariamente aceitos, desde
que sejam exatos, se puder extrair deles um conjunto de doutrina (c); mas é
evidente que, se os princípios (a) nada tiverem a ver com a realidade, a
parte (c) nada talvez terá a fazer com o concreto. Convém, então, quando se
quer constituir uma ciência, escolher judiciosamente os princípios (a), de
modo que se aproximem o máximo possível da realidade, embora sabendo
que uma teoria (c) nunca poderá reproduzi-la em toda sua particularidade.
11. Há outras teorias sociológicas com as quais se tenta constituir um corpo
de doutrina rigorosamente científico, mas infelizmente sem conseguir tal
intento, isto porque os princípios, dos quais se extraem as deduções, se
afastavam muito da experiência.
12. Uma destas teorias é o darwinismo social. Se se permite, sempre e
excetuadas as oscilações temporais, que as instituições de uma sociedade
sejam as que melhor correspondam às circunstâncias em que se encontram
tais sociedades e que as sociedades que não têm instituições daquele gênero
acabam por desaparecer, tem-se um princípio apto a receber
desenvolvimentos lógicos importantes e tudo mais que possa constituir uma
ciência. Este estudo foi feito e, por algum tempo, se pode esperar que se
tenha, afinal, uma teoria científica (c) da Sociologia, já que parte das
deduções (b) foram constatadas pelos fatos. Mas tal doutrina decaiu com
aquela na qual ela teve a sua origem, isto é, com a teoria darwiniana da
produção das espécies animais e vegetais. Note-se que, por muitas vezes,
foi possível dar explicações verbais dos fatos. Todas as formas de
instituições sociais ou de seres viventes deviam ser explicadas junto com a
utilidade que produzia e, para conseguir isso, se extraíam as utilidades
arbitrárias e imaginárias que estavam em jogo. Sem que se percebesse isso,
retornava-se, assim, à antiga teoria das causas finais. O darwinismo social
ainda permanece um conjunto de doutrina (c) muito bem estruturado, mas
ainda tem de mudar bastante para coadunar-se com os fatos. Ele não
determina as formas das instituições; determina somente certos limites que
elas não podem ultrapassar.
13. Uma outra teoria (b) é o materialismo histórico. Se este for entendido
no sentido de que o estado econômico de uma sociedade determina
completamente todos os outros fenômenos sociais, haverá ali um princípio
(a), do qual se podem extrair muitas deduções, de modo que se constitua
uma doutrina. O materialismo histórico foi um notável progresso científico,
porque ajudou a esclarecer o caráter contingente de certos fenômenos,
como o fenômeno moral e o fenômeno religioso, aos quais se dava e ainda
se dá bastante um caráter absoluto. Ademais, tem ele certamente uma
parcela de verdade, que está na interdependência do fenômeno econômico e
dos outros fenômenos sociais; o erro está em ter mudado esta
interdependência em uma relação de causa e efeito.
14. Ainda uma outra teoria, que se pode dizer de Spencer e dos seus
seguidores, de onde se tiram as muitas partes metafísicas de suas obras, se
poderia chamar de teoria dos limites. Ela assume por princípio (a) que
todas as instituições sociais tendem para um limite, são semelhantes a uma
curva que tem uma assíntota. Conhecida a curva, pode-se determinar a
assíntota; conhecida a realização histórica de uma instituição, pode-se
determinar o limite dela; na verdade, isso é feito mais facilmente do que no
problema muito mais simples da determinação matemática das assíntotas,
uma vez que, para esta, não basta conhecer poucos pontos da curva, deve-
se fazer a equação dela, isto é, conhecer-lhe o caráter intrínseco; enquanto
forem dados alguns pontos da curva que representa uma instituição, pode-
se, ou melhor, acredita-se que se pode determinar ipso facto o seu limite.
15. Este princípio (a) é suscetível de deduções científicas (b) e dá, portanto,
um corpo extenso de doutrina. Ele pode ser visto na Sociologia de Spencer
e em outras obras análogos. Nós nos aproximamos muito, com estas
doutrinas, do método experimental – abstração feita sempre pelas partes
metafísicas de tais obras – uma vez que, no final, é dos fatos que tiramos as
conclusões. Infelizmente, não é só dos fatos, há, ademais, a intromissão
daquele princípio de que as instituições têm um limite e daquele outro de
que tal limite pode ser determinado conhecendo alguns estados sucessivos
das instituições.
Acrescente-se que, para um caso que seria verdadeiramente estranhíssimo
se fosse fortuito, o limite, que um autor supõe ser determinado
exclusivamente pelos fatos, identifica-se com aquele que o autor traça dos
seus próprios sentimentos e desejos. Se ele for pacifista, como Spencer o é,
os fatos complacentes demonstram para ele que o limite do qual se
aproximam as sociedades humanas é o da paz universal; se ele for
democrático, não há nenhuma dúvida de que o limite estará no triunfo
completo da democracia; se ele for coletivista, no triunfo do coletivismo e
assim por diante. Outrossim, nasce e se fortifica a dúvida de que os fatos
servem só para esconder os mais poderosos motivos de persuasão.
De qualquer forma, os motivos das deduções de tal modo adotadas por
estes positivistas não correspondem aos fatos e isso vicia todas as deduções
extraídas. Há, então, o grave defeito, que, aliás, com o tempo, poderia ser
corrigido, de que estamos bem longe de ter agora as notícias históricas que
seriam estritamente indispensáveis para poder usar o referido método.
16. De uma índole diversa da teoria de que acabamos de fazer referência,
são as que, assumindo um princípio (a) totalmente falho de precisão,
indefinido e nebuloso, extraem dele, com aparente rigor de lógica,
conclusões, que não são, pois, outras senão a expressão dos sentimentos do
raciocinador, e às quais o raciocínio que as conecta a (a) não confere nem
sequer uma mínima força de demonstração. De fato, é muito frequente o
caso em que, de um mesmo princípio (a), um raciocinador extrai certas
conclusões, enquanto um outro extrai dele conclusões inteiramente opostas.
Pouco se tem a dizer, em geral, sobre o raciocínio, pois o princípio é, neste
caso, imprestável, na medida em que, como se fosse uma borracha elástica,
você pode puxá-la para o lado que quiser.
17. Alcançado este ponto, temos, pela indução, os elementos de uma teoria.
Deve-se, agora, constituí-la, isto é, deve-se substituir a via indutiva pela via
dedutiva, e ver quais são as consequências dos princípios que encontramos
ou acreditamos ter encontrado. Compararemos, então, estas deduções aos
fatos; se estiverem de acordo, conservaremos a nossa teoria; se não
estiverem de acordo, nós a abandonaremos.
18. Já vimos que, nas teorias da ciência lógico-experimental, se encontram
elementos (A) e (B) que, em parte, são semelhantes aos elementos (a) e (b)
das teorias que não são puramente lógico-experimentais e, em parte, são
diferentes deles.
Nas ciências sociais, como as que até agora estão sendo estudadas,
encontram-se elementos que mais se aproximam de (a) do que de (A),
porque não se evita a intromissão dos sentimentos, de preconceitos, de
artigos de fé e de outras semelhantes inclinações, postulados e princípios,
que nos levam para fora do campo lógico-experimental.
19. A parte dedutiva das ciências sociais como as que até agora estão sendo
estudadas, às vezes, se aproxima muito de (B) e não nos faltam exemplos
em que o uso de uma lógica rigorosa a faria combinar integralmente com
(B), se não fosse a falta de precisão das premissas (a), que tolhe o rigor do
raciocínio. Mas muitas vezes, nestas ciências sociais, a parte dedutiva se
aproxima muito de (b), porque nela há muitos princípios não-lógicos e não-
experimentais e pode haver muitas inclinações, preconceitos etc.
20. Vamos estudar agora, propositalmente, os elementos (a) e (b). O
elemento (a) corresponda talvez a certos instintos do homem, ou melhor
dizendo, dos homens, porque (a) não tem existência objetiva e é diversa
segundo os homens e, provavelmente, é assim porque corresponde a estes
instintos que é quase constante nos fenômenos. O elemento (b) corresponde
ao trabalho da mente para se tornar raciocínio do elemento (a) e é, por isso,
que é muito mais variável, uma vez que reflete o trabalho da fantasia.
21. Mas se a parte (a) corresponde a certos instintos, está bem longe de a
todos abranger; e isso é visto do mesmo modo com o qual ela foi
encontrada. Analisamos os raciocínios e buscamos a parte constante; então,
podemos somente ter encontrado os instintos que dão origem aos
raciocínios e não podemos encontrar os que não estão cobertos de
raciocínios. Permanecem, portanto, todos, os meros apetites, os gostos, as
disposições e, nos fatos sociais, aquela categoria muitíssima significativa: a
dos interesses.
22. Além disso, podemos ter encontrado apenas uma parte de uma das
coisas (a), a outra parte permanecendo um mero apetite. Por exemplo, se o
instinto sexual tendesse só a aproximar os sexos, não apareceriam nas
nossas investigações. Mas tal instinto, muitas vezes, está encoberto e se
esconde sob a veste do ascetismo; há pessoas que pregam a virtude para ter
a oportunidade de parar de pensar sobre conjunções carnais. Quando
examinamos os raciocínios delas, encontramos, então, uma parte (a) que
corresponde ao instinto sexual e uma parte (b) que é um raciocínio com o
qual ele é encoberto. Talvez, procurando atentamente, encontrar-se-iam
partes análogas aos apetites dos alimentos e das bebidas, mas, por isso, a
parte do simples instinto é, de todo modo, muito mais significativa do que a
outra.
23. O ser previdente, ou imprevidente, depende de certos instintos e de
certos gostos e, sob tal aspecto, não se encontraria nas coisas (a); mas a
imprevidência deu lugar, especialmente nos Estado Unidos da América, a
uma teoria, com a qual se se prega às pessoas que deve gastar tudo o que
ganha; e, então, se examinarmos tal teoria, encontraremos uma coisa (a),
que será a imprevidência.
24. Um político é estimulado a propugnar a teoria da solidariedade, com o
objetivo de conseguir dinheiro, poder e honra. No estudo dessa teoria,
aparecerá, só de relance, tal objetivo, que é, pois, o de quase todos os
políticos, eles afirmam ou o branco ou o preto, mas, ao contrário, eles
sustentarão primeiro os princípios (a) que são válidos para persuadir os
outros. É óbvio que se o político dissesse: “Acredite nessa teoria, porque
isso me tornará rico, poderoso e honrado” provocaria risos e não
persuadiria ninguém; ele deve, portanto, ter por fundamento certos
princípios que possam ser acolhidos por quem o ouve.
Se nós nos fixarmos nesta observação, poderia parecer que, no caso
examinado, as (a) seriam encontradas não nos princípios para os quais a
teoria foi propugnada, mas sim naqueles para os quais foi acolhida; mas,
adiante, ver-se-á que tal distinção não se sustenta, porque frequentemente
quem quer persuadir os outros, começa por persuadir a si mesmo; e ainda
que se baseie principalmente na própria vantagem, acaba por acreditar que
se baseia no propósito do bem comum. Raro e pouco apto para persuadir é
o apóstolo descrente; por outro lado, comum e mais apto a persuadir é o
apóstolo crente, e tanto mais será a sua obra quanto mais ele for crente.
Então, as partes (a) da teoria se encontram tanto junto a quem a recebe
quanto junto a quem a propugna; mas a elas devem-se acrescentar os
ganhos tanto destes quanto daqueles.
25. Quando analisamos uma teoria (c), devem-se ter bem distintas as
investigações sob o aspecto objetivo e sob o aspecto subjetivo. Muitíssimas
vezes, no entanto, se confundem e se ocultam, assim, dois erros cruciais.
Primeiro, e já discutimos muitas vezes sobre isso, confunde-se o valor
lógico-experimental de uma teoria com a sua força de persuasão ou com
sua utilidade social. Depois, e é especialmente um erro moderno, substitui-
se ao estudo objetivo de uma teoria o estudo subjetivo do como e do porquê
ela foi produzida pelo seu autor. Este segundo estudo é certamente
importante, mas deve ser somente acrescentado e não para substituir o
primeiro. Saber se um teorema de Euclides é verdadeiro ou falso, e saber
como Euclides o descobriu, são investigações separadas e, como tais, uma
não exclui a outra. Se, por um acaso, os Principia de Newton fossem de um
autor desconhecido, perderiam, em razão disso, o seu valor?
Assim, estão confundindo dois dos aspectos, sob os quais pode ser
considerada a teoria de um autor, isto é: 1) Como o autor a pensava, o seu
estado psíquico e como este foi determinado; 2) o que quis dizer em um
determinado trecho. O primeiro aspecto, que é pessoal, subjetivo para o
autor, confunde-se com o segundo, que é impessoal e objetivo. A isso
convém, muitas vezes, que se considere a autoridade do autor, uma vez
que, estimulado pelo sentimento, se admite a priori que o que ele pensa e
no que ele acredita deve necessariamente ser “verdadeiro” e que, por isso,
tanto vale investigar os pensamentos dele, quanto examinar se o que quis
dizer é “verdadeiro”, ou seja, se está de acordo com a experiência, no caso
das ciências lógico-experimentais.
26. O estudo da parte (b) de uma teoria é justamente aquele da parte
subjetiva; mas esta pode ser ainda dividida em duas, isto é, deve distinguir
as causas gerais das causas especiais, para as quais uma teoria é produzida
ou adquire crédito. As causas gerais são as que operam para um tempo não
muito restrito e que valem para um número significativo de indivíduos; as
causas especiais são as que operam essencialmente de modo contingente.
Se uma teoria é produzida porque convém a uma classe social, ela tem uma
causa geral; se é produzida, ou porque o seu autor foi pago, ou porque,
consigo, manifesta o seu despeito contra um rival, ela tem uma causa
especial.
No estudo que faremos das teorias (b), nós nos ocuparemos somente das
causas gerais; o estudo das outras é secundário e pode vir depois.
27. As coisas que têm muito poder sobre o ordenamento social dão lugar a
teorias e, portanto, as encontraremos quando procurarmos as (a). A estas,
como agora dizemos, devem-se acrescentar os apetites e os interesses; e
teremos então o complexo de coisas que operam sensivelmente para
determinar o ordenamento social, com a advertência, aliás, de que o próprio
ordenamento reage sobre elas e de que, dessa forma, ainda não temos uma
relação de causa e efeito, mas de interpendência. Se supusermos, como
parece provável, que os animais não fazem teoria, não poderá existir para
eles parte (a) nenhuma, nem mesmo sequer interesses, e permanecem
somente os instintos. Os povos selvagens, ainda que próximos dos animais,
têm certas teorias e, dessa forma, para eles, existe uma parte (a); há
certamente mais instintos e interesses. As teorias dos povos civilizados
superam, em muito, seus instintos e interesses e, dessa forma, a parte (a)
encontra-se em quase toda a vida social.
28. Antes de seguir em frente, talvez seja bom dar nomes às coisas (a) e às
coisas (b), bem como às coisas (c), porque, ao indicá-las com as letras do
alfabeto, prejudica muito o discurso e o torna menos claro. Por este e por
outros motivos, chamaremos de resíduos as coisas (a), de derivações as (b)
e de derivadas as (c). Mas deve-se ter sempre presente que nada –
absolutamente nada – existe para extrair o sentido próprio dos nomes, das
suas etimologias e que o seu significado é exclusivamente o das coisas (a),
(b) e (c).
4. Resíduos e derivações
11. Por isso, o leitor dever pôr na cabeça que procuramos, e procuraremos
sempre, explicar os fatos do passado com outros que nos sejam dados a
observar sempre, ao se partir do mais conhecido para o menos conhecido.
Aqui não nos ocupamos com as origens, porque não é ainda pergunta
historicamente importante, mas porque, para a busca das condições de
equilíbrio social, a que agora pretendemos, pouco ou nada servem as
origens, ao passo que são de grande valia os instintos e os sentimentos que
correspondem aos resíduos.
(I-4 β) Estado feliz unido a coisas boas; estado infeliz unido a coisas ruins.
(II-γ) Persistência das relações de um morto e das coisas que eram suas
enquanto estava vivo.
(II-η) Personificação.
(IV-β 3) Neofobia.
(IV-δ 2) Fazem com que os outros tomem parte dos seus próprios bens.
(IV-ζ) Ascetismo.
13. Muitas vezes nos deparamos com derivações, ainda que não façamos
uso destes termos; e todos são encontrados sempre que se colocar na
cabeça as maneiras com as quais os homens visam dissimular, mudar e
explicar as características que, de forma adequada, têm seus modos muito
peculiares de operar.
CLASSE I – AFIRMAÇÃO.
(I-β) Sentimentos.
CLASSE II – AUTORIDADE.
(IV-β) Termo que indica uma coisa e que faz nascer sentimentos
acessórios, ou sentimentos acessórios que fazem escolher um termo.
Vamos supor, então, que, em cada ramo da atividade humana, seja atribuído
a um indivíduo qualquer um indicador que aponte a sua capacidade, quase
como são atribuídos os pontos nos exames das várias matérias em uma
escola. Por exemplo, ao bom comerciante, será dado 10; ao que não
consegue ter um cliente, daremos 1 para poder dar zero a quem é um
absoluto cretino. A quem soube ganhar milhões, não importa como,
atribuiremos dez; a quem ganhar milhares de liras, daremos 6; a quem
consegue apenas não morrer de fome, daremos 1; a quem está em um
albergue para mendigos, daremos zero. À mulher política que, como
Aspásia de Péricles, Madame de Maintenon de Luís XIV Madame de
Pompadour de Luís XV, soube conquistar um homem poderoso e ter
participação no governo em que ele administra a coisa pública, daremos um
número alto qualquer como 8 ou 9; para a prostituta que satisfaça só os
desejos de tais homens e não trabalha em nada para favorecer a coisa
pública, daremos zero. Ao caloteiro valentão que se mete no meio das
pessoas e sabe escapar ao código penal, atribuiremos 8, 9 ou 10, segundo o
número de otários que ele soube pegar na rede e o dinheiro que soube
arrancar deles; ao pobre ladrão de galinhas que rouba um talher do
restaurante e, além isso, é levado preso pela polícia, daremos 1. A um poeta
como Carducci, daremos 8 ou 9, de acordo com o gosto de cada um; a um
canastrão que faz as pessoas saírem correndo ao recitar os seus sonetos,
daremos zero. Para os jogadores de xadrez, poderemos ter indicadores mais
precisos, cuidando apenas de quantos e quais jogos eles venceram. E assim
por diante, para todos os ramos da atividade humana.
22. Não se deve confundir o estado de direito com o estado de fato; só este
último, ou quase só, importa para o equilíbrio social. Há muitíssimos
exemplos de castas legalmente fechadas, nas quais ocorrem, com efeito,
muitas infiltrações. De outro lado, de que adianta abrir uma casta no plano
do direito, se faltam condições factuais que permitam nela entrar? Se
alguém ficar rico, fará parte da classe governante; mas se ninguém ficar, é
da natureza dessa classe que ela seja fechada; e se poucos se enriquecem, é
como se a lei pusesse grandes obstáculos de acesso a ela. Um fenômeno
desse tipo se vê no final do Império Romano. Quem se tornasse rico,
entrava para a Ordem dos Curiais; porém, poucos, à época, conseguiam tal
intento.
Em teoria, poderíamos considerar muitos grupos; na prática, entretanto,
deveríamos nos limitar necessariamente aos grupos mais importantes.
Devemos, então, proceder com o método das aproximações sucessivas,
passando do simples para o composto.
23. A CLASSE SUPERIOR E A CLASSE INFERIOR EM GERAL. O
mínimo que podemos fazer é dividir a sociedade em dois estratos, isto é,
um estrato superior, no qual estão comumente os governantes, e um estrato
inferior, onde estão os governados. Este fato, bem como o fato da
circulação dos indivíduos por entre esses dois estratos, são tão evidentes
que, ao tempo todo, se impõem, até mesmo para aquele observador menos
atento; quando Platão ouviu falar desse assunto, quis regulá-lo
artificialmente; muitos discutiram sobre homens novos, sobre os novos
ricos, e há um grande número de estudos literários sobre eles. Vamos dar,
agora, contornos mais precisos a considerações que estão sendo analisadas
há algum tempo. Já mencionamos as diferentes repartições dos resíduos nos
vários grupos sociais e, principalmente, na classe superior e na classe
inferior. Tal heterogeneidade social é um fato que toda observação, até
mesmo a mais limitada, permite conhecer.
24. As mudanças dos resíduos da classe I e da classe II, que acompanham
os estratos sociais mais importantes, dizem respeito à determinação do
equilíbrio. O observador vulgar nos adverte sobre isso de um modo
especial, isto é, sob a forma de mudanças, no estrato superior, dos
sentimentos ditos “religiosos”; notou-se que houve tempos em que eles
diminuíam e outros em que eles aumentavam, sendo que tais ondas
correspondiam a mudanças sociais significativas. De um modo mais
preciso, pode-se descrever o fenômeno dizendo que, no estrato superior, os
resíduos da classe II vão diminuindo pouco a pouco, até que eles voltam a
aumentar em razão de uma maré que se move a partir do estrato inferior.
25. No final da República Romana, as classes altas já não tinham mais
tantos sentimentos religiosos ou, quando tinham, eram eles muitos fracos.
Tais sentimentos tiveram um incremento significativo, quando chegaram às
classes altas homens das classes baixas, isto é, os forasteiros, os libertos e
outros mais que o Império Romano introduziu nas classes altas. Novo e
forte incremento ocorreu quando, ao tempo do baixo império, o governo
passou para uma burocracia proveniente das classes baixas e para uma
plebe militar; e foi o tempo em que a prevalência dos resíduos da classe II
se manifestou com a decadência da literatura, das artes e das ciências, e
com a invasão das religiões orientais, principalmente do cristianismo.
26. A Reforma Protestante no século XVI, a Revolução Inglesa ao tempo
de Cromwell, e a Revolução Francesa de 1789 demonstram grandes marés
religiosas que, nascidas nas classes inferiores, levam a pique o ceticismo
das classes superiores. Em nossos dias, os Estados Unidos da América,
onde é muito intenso o movimento que leva para o alto os indivíduos das
classes inferiores, nos mostram um povo em que têm muito poder os
resíduos da classe II. Nele, nascem abundantemente religiões excêntricas,
em contraste com todo sentimento científico, como seria a Ciência Cristã, e
onde se têm leis hipócritas para impor a moral, semelhantes àquelas do
Medievo europeu.
27. No estrato superior da sociedade, na classe eleita, estão nominalmente
certos agregados, às vezes não tão bem definidos, e que se dizem
aristocracias. Há casos em que o maior número dos que pertencem a tais
aristocracias tem as características para nelas permanecer, e há outros casos
em que um número significativo de seus componentes são delas privados.
Podem ter participação, em maior ou em menor medida, na classe eleita de
governo, ou serem dela excluídos.
28. Em sua origem, as aristocracias guerreiras, religiosas e comerciais, as
plutocracias, salvas poucas exceções que sequer levamos em conta, deviam
fazer parte da classe eleita e, às vezes, a constituíam por inteiro. O
guerreiro vitorioso, o comerciante próspero e o plutocrata enriquecido eram
certamente homens de tal envergadura que todos eles, na sua arte, eram
superiores ao vulgo. Naquela época, a marca registrada da aristocracia
correspondia ao seu caráter efetivo; mas então, com o passar do tempo,
ocorreu uma cisão que, muitas vezes, foi apenas significativa e, às vezes,
foi muito significativa; enquanto, de outro lado, certas aristocracias que, na
origem, tinham grande participação na classe eleita de governo acabaram
por constituir só uma parte mínima dela e isto se segue, principalmente,
para a aristocracia guerreira.
29. As aristocracias não duram. Qualquer que sejam as suas causas, é
incontrastável que, depois de um certo tempo, desaparecem. A história é
um cemitério de aristocracia. O povo ateniense era uma aristocracia se
comparado ao restante da população de metecos e de escravos;
desapareceu, sem deixar descendência. Desapareceram as várias
aristocracias romanas. Desapareceram as aristocracias bárbaras. Onde
estão, na França, os descendentes dos conquistadores francos? A genealogia
dos Lordes ingleses está corretíssima: permanecem pouquíssimas famílias
que descendem dos aliados de Guilherme, o Conquistador, desaparecendo
todas as outras. Na Alemanha, a aristocracia atual é, em grande parte,
constituída pelos descendentes dos vassalos dos antigos senhores. A
população dos Estados europeus cresceu, enormemente, por muitos séculos
nesta região; todavia, é certo, certíssimo, que as aristocracias não cresceram
na mesma proporção.
30. A decadência das aristocracias não se mostra somente
quantitativamente, mas também qualitativamente, no sentido de que, nelas,
diminui a energia e se modificaram as proporções dos resíduos que a elas
favoreceram para conquistar e conservar o poder; mas sobre isso vamos
falar mais à frente. A classe governante foi restaurada não só em número,
mas, e isso é o que mais interessa, na qualidade das famílias que vêm das
classes inferiores, que ostentam nela a energia e as proporções dos resíduos
necessários para se manter no poder. Também se restaura pela perda de
seus componentes que, em sua maior parte, decaíram.
31. Onde um destes movimentos cessa e, pior ainda, onde ambos cessam, a
parte governante começa a ir em direção à ruína que, frequentemente, leva
a reboque também a de toda nação. É causa poderosa de perturbação do
equilíbrio o acúmulo de elementos superiores nas classes inferiores e, vice-
versa, de elementos inferiores nas causas superiores. Se as aristocracias
humanas fossem iguais às raças selecionadas de animais que se reproduzem
por longo tempo, mais ou menos com as mesmas características, a história
da raça humana seria totalmente diferente da que conhecemos.
32. Por meio da circulação das classes eleitas, a classe eleita de governo
está em um estado de contínua e lenta transformação, ela escorre igual a
um rio e a classe eleita de hoje é diferente da de ontem. Às vezes,
observam-se repentinas e violentas perturbações, como seriam as
inundações de um rio e, depois, a nova classe eleita de governo volta a se
modificar lentamente: o rio retorna ao seu leito, escorre, de novo,
regularmente.
33. As revoluções acontecem, porque, seja pelo atraso no processo de
circulação da classe eleita, seja por outra causa, acumulam-se, nos estratos
superiores, elementos decadentes que não têm mais os resíduos capazes de
mantê-los no poder e que recusam o uso da força, ao passo que aumentam,
nos estratos inferiores, elementos de qualidade superior que possuem os
resíduos aptos a exercer o governo e que estão dispostos a fazer uso da
força.
34. Geralmente, nas revoluções, os indivíduos dos estratos inferiores são
capitaneados pelos indivíduos dos estratos superiores, porque, nestes, estão
as qualidades intelectuais úteis para dispor a batalha, ao passo que lhes
faltam os resíduos que são ministrados, de forma precisa, pelos indivíduos
dos estratos inferiores.
35. As mudanças violentas ocorrem em espasmos e, portanto, o efeito não
segue imediatamente a causa. Quando uma classe governante ou uma nação
são mantidas a longo prazo pela força e se enriquecem, podem ainda
subsistir um pouco de tempo mais sem a força, comprando a paz dos
adversários e pagando não só com o ouro, mas também com o sacrifício do
decoro e com a reverência de que até então haviam gozado e que
constituem um certo capital. Nos primeiros, o poder se mantém com as
concessões e nasce o erro de que se possa fazer isso a toda hora. Assim, o
Império Romano, em decadência, comprava a paz dos bárbaros com a
moeda e com as honras; assim, Luís XVI da França, consumindo em
pouquíssimo tempo a herança ancestral do amor, do respeito e da
reverência quase religiosa pela monarquia, pôde, cedendo a toda hora, ser o
rei da revolução; assim, a aristocracia inglesa pôde prolongar o seu poder
desde a última metade do século XIX até a aurora da sua decadência,
assinalada pelo Parliament Bill, do início do século XX.
6. O Sistema Social
7. A Utilidade Social
9. O regime político
1. Entre os diferentes e complexos fenômenos que se observam em uma
sociedade, é muito importante o do regime político, que está estreitamente
ligado a outro de índole da classe governante, sendo que ambos estão em
relação de interdependência com os outros fenômenos sociais.
2. Via de regra, é dada, frequentemente, uma demasiada importância à
forma, negligenciando um pouco a substância, de modo que foi
considerada, em grande medida, a forma sob a qual se manifesta o regime
político. Por outro lado, especialmente na França, sob o reinado de
Napoleão III e, principalmente entre os economistas, manifesta-se a
inclinação de dar pouco ou nenhum valor não só à forma do regime
político, mas à própria substância deste regime. Passava-se, assim, de um
extremo a outro e a teorias exclusivamente políticas da sociedade,
opunham-se teorias exclusivamente econômicas, entre as quais o
materialismo histórico, caindo no mesmo erro de negligenciar a mútua
dependência dos fenômenos sociais.
3. Para aqueles que dão suma importância à forma do regime político é
uma grande oportunidade para solucionar a questão: “Qual é a melhor
forma de regime político?”. Mas ela tem pouco ou nenhum sentido, senão
dizer a qual sociedade ela deve se adaptar e senão esclarecer o que significa
o termo “melhor”, que menciona de um jeito muito indeterminado nas
inúmeras e variadas utilidades individuais e sociais que ele encerra.
Embora, tanto ali quanto aqui, isso, às vezes, possa ser perfeitamente
intuído, a consideração sobre as formas do regime político deu lugar a
derivações sem fim, que apontam para vários mitos; e que, junto com estes,
não têm nenhum valor sob o aspecto lógico-experimental; enquanto aqueles
e estes, ou melhor, os sentimentos que manifestam, podem ter efeitos, por
um bom período de tempo, para estimular os homens a agir. É certo que os
sentimentos manifestados pela fé, monárquica, republicana, oligárquica,
democrática etc. tiveram e ainda têm participação não pequena nos
fenômenos sociais, como, do mesmo modo, se pode observar dos
sentimentos manifestados pelas outras religiões. O “direito divino” de um
príncipe, o de uma aristocracia, o do “povo”, da plebe, da maioria e de
quantos outros que se possam imaginar não tem o mínimo valor
experimental; devemos, então, considerá-lo somente do ponto de vista
extrínseco, com fatos e manifestações dos sentimentos, os quais, como as
outras características dos homens que constituem uma da sociedade,
operam para determinar o seu modo e a sua forma. Não se deve então
esquecer de que a observação de qualquer um desses “direitos” não tem
fundamento na experiência, não lhe é minimamente ferida a utilidade que
dela pode ser reconhecida para a sociedade. Feriria sim, se a proposição
fosse uma derivação, sendo que, em tais raciocínios, geralmente se
subentende que “tudo isso que não é racional é nocivo”, mas deixa
incólume a consideração da utilidade, quando a proposição é lógico-
experimental, uma vez que nela não é, em hipótese nenhuma, subentendida
a afirmação ora mencionada. O estudo das formas de regime político
pertence essencialmente à sociologia; aqui nós só nos ocuparemos de
investigar a sua substância, que está coberta pelas derivações, e para
estudar as relações das várias composições da classe governante com os
outros fenômenos sociais.
4. Neste, como em outros argumentos semelhantes, desde até os primeiros
passos que queremos dar, nós nos deparamos com o obstáculo da
terminologia; e é natural, posto que, para as investigações objetivas que
queremos realizar, precisamos de uma terminologia objetiva, enquanto,
para os raciocínios subjetivos que se fazem, usualmente ocorre uma
terminologia subjetiva, que é a vulgar. Por exemplo, todos reconhecem que,
nos dias de hoje, a “democracia” tende a se tornar o regime político de
todos os povos civilizados. Mas qual é o significado exato deste termo
“democracia”? Ele é também mais indeterminado do que o
indeterminadíssimo termo “religião”. Ocorre, então, que vamos deixá-lo de
lado e vamos direcionar o estudo aos fatos que o encobre.
5. Vejamos, portanto, os fatos. Antes de tudo, temos uma acentuada
tendência dos modernos povos civilizados de usar uma forma de governo
em que o poder de fazer as leis compete, em grande parte, a uma
assembleia eleita, ao menos em parte, pelos cidadãos. Pode-se acrescentar
que há uma inclinação para aumentar este poder e aumentar o número dos
cidadãos que elegem a assembleia.
6. Excepcionalmente, na Suíça, o poder de fazer leis pela assembleia eleita
é restringido pelo referendum popular, e tem, nos Estados Unidos da
América, o obstáculo das Cortes Federais. Uma tentativa feita na França
para restringi-lo por meio de plebiscitos, foi obra de Napoleão III, e não
teve sucesso exitoso, sem que se possa afirmar, com segurança, que isso
acontecesse por seu próprio vício, uma vez que o regime de que se
originava foi destruído pela força armada de uma nação inimiga. A
tendência de aumentar o número dos participantes nas eleições é geral; este
é um caminho que, por enquanto, não tem mais volta. Amplia-se, ao tempo
todo, o sufrágio, depois de tê-lo dado aos homens adultos, quer-se concedê-
lo às mulheres; não se exclui que se alargue também no que se refere à
idade.
7. Formalmente, apesar de iguais perante todos os povos civilizados, há
uma grande diversidade na substância, e se dão nomes semelhantes a coisas
dessemelhantes. Vemos, por exemplo, que o poder da assembleia legislativa
eleita passa de um máximo para um mínimo. Na França, a Câmara e o
Senado, sendo eletivos, podem ser considerados, para a investigação que
aqui estamos fazendo, como uma assembleia única, e se pode dizer que é
inteiramente soberana e que não há limites para o seu poder. Na Itália, ao
poder da Câmara dos deputados, há um limite teórico no Senado e efetivo
na monarquia. Na Inglaterra, havia, ao poder da Câmara dos Comuns, um
limite efetivo na Câmara dos Lordes, agora enfraquecido, e um outro limite
na monarquia, agora também feita de uma forma muito leve. Nos Estados
Unidos da América, o presidente eleito, independentemente da Câmara,
limita, com efeito, o poder desta. Na Alemanha, os Conselhos dos Estados
e mais ainda o imperador, com o auxílio da casta militar, limitam, em larga
medida, o poder da Reichtag. Assim, de grau em grau, chega-se à Rússia,
onde a Duma tinha pouco poder, e ao Japão, onde a assembleia eleita
também tem pouquíssimo poder. Deixemos de lado a Turquia e as
repúblicas da América Central, onde as assembleias legislativas são um
pouco quiméricas.
8. Não nos detenhamos na ficção da “representação popular”, esta
tagarelice toda não faz farinha; prossigamos ainda e vejamos qual é a
substância que se encontra sob as várias formas de poder da classe
dominante. Retiradas as exceções, que são em pequeno número e que
duram pouco tempo, tem-se, em toda parte, uma classe governante pouco
numerosa, que se mantém no poder, em parte com a força e em parte com o
consenso da classe governada, que é muito mais numerosa. As diferenças
estão principalmente no que se refere à substância, nas proporções de força
e de consenso; no que se refere à forma, nos modos com os quais se usa a
força e se obtém o consenso.
9. Como já observamos (cap. VIII), se o consenso fosse unânime, o uso da
força não seria necessário. Este ponto extremo nunca se vê por aí. Um
outro ponto extremo tem alguns casos concretos, e é aquele de um déspota
que se mantém no poder com os seus soldados contra uma população hostil
e é fenômeno que pertence ao passado; ou aquele de um governo forasteiro
que subjuga um povo relutante, e é fenômeno do qual ainda existem muitos
exemplos nos dias de hoje. O motivo pelo qual, no primeiro caso, o
equilíbrio é muito mais instável do que no segundo deve ser buscado na
existência de diferentes resíduos. Os que vivem em torno do déspota não
têm resíduos essencialmente diferentes daqueles do povo subjugado, de
modo que falta fé que mantenha e, a um só tempo, contenha o uso da força,
e os que vivem em torno do déspota dispõem, com facilidade e
caprichosamente, do poder, como fizeram os pretorianos, os janízaros e os
mamelucos, ou abandonam a defesa do déspota contra o povo. Por outro
lado, o povo dominador, geralmente, tem usos e costumes e, às vezes,
língua e religião diferentes do povo subjugado, de modo que há uma
diferença de resíduos e não falta fé para usar a força. Mas nem aos
subjugados ela falta para resistir à opressão, e isso explica como, a longo
prazo, o equilíbrio pode ser rompido.
10. Por conta justamente do termo desse eventos, é que acontece de os
povos dominadores procurarem se assimilar aos povos subjugados e,
quando conseguem tal intento, é o melhor modo de assegurar o próprio
domínio; mas, muitas vezes, fracassam, porque querem modificar
violentamente os resíduos ao invés de se valerem dos que já existem. Roma
teve uma exímia habilidade nesta arte e, por isso, pôde assimilar-se a
muitos outros povos que a circundavam no Lácio, na Itália e na bacia do
Mediterrâneo.
11. Muitas vezes, já nos deparamos incidentalmente com a observação de
que a ação dos governos é muito mais eficaz e melhor quando sabem se
valer dos resíduos existentes e, muito menos, quando ignoram tudo isso, e
totalmente ineficaz quando visam a modificá-los de forma violenta; e, de
fato, quase todos os raciocínios sobre o porquê de certos atos dos governos
conseguem um sucesso próspero ou adverso quando pensam neste
princípio.
12. Muitos se esquivam em reconhecer tal fato por causa das derivações.
Por exemplo, se A é a derivação com a qual se expressam certos
sentimentos dos subjugados, facilmente se encontra uma outra derivação B
que, em essência, expressa igualmente os sentimentos da classe dominante,
apesar de esta consideração ser uma óbvia e evidente refutação de A e, em
tal fé, acredita-se que será fácil impor B aos subjugados, na medida em que,
ao final e ao cabo, é só constrangê-los a abrir seus olhos e a conhecer o que
evidentemente é verdadeiro. À disputa dos sentimentos, substitui-se, dessa
forma, uma disputa de derivações, ou seja, uma logomaquia. Outros se
aproximam um pouco mais da realidade, mas usam de sofismas. Insistem
longamente sobre a utilidade, para um povo, de ter uma unidade de fé em
certas matérias e negligenciam inteiramente a consideração da
possibilidade de conseguir isso sem ir ao encontro de sérios prejuízos que
podem anular e, até mesmo, superar os benefícios esperados. Outros ainda
supõem implicitamente que, quem se vale dos sentimentos de outrem com
os quais não consente, deve necessariamente fazer isso com vistas a um fim
desonesto e nocivo à sociedade e, portanto, condenam, sem dúvida, tal ação
como aquela dos hipócritas malvados. Mas tal modo de pensar é próprio de
um pequeno número de moralistas, sendo muito raro de se observar nos
homens práticos.
13. Valer-se de sentimentos existentes em uma sociedade para obter certos
fins não é, intrinsicamente, nem bom nem ruim para a sociedade; os
benefícios e os prejuízos dependem, portanto, dos fins a que se visa; se eles
convêm à sociedade, há assim um benefício, se a prejudicam, há, então, um
dano. No entanto, não se pode concluir que, quando a classe governante
tende a um fim que lhe é vantajoso, sem se atentar para o que é vantajoso
para a classe subjugada, esta necessariamente padece de um dano; porque
são muitíssimos os casos em que a classe governante, visando
excessivamente ao seu próprio bem, fez, além disso, o bem da classe
governada. Enfim, valer-se dos resíduos existentes em uma sociedade é só
um meio e vale o que vale o resultado ao qual ele nos leva.
14. Aos resíduos, como meio de se governar, devem-se acrescentar os
interesses e, às vezes, estes podem abrir o único caminho que existe para
modificar aqueles. Convém, no entanto, ponderar que os interesses
sozinhos, não encobertos pelos sentimentos, são, antes de tudo, um
poderoso instrumento para agir sobre aqueles em que prevalecem os
resíduos da classe II e, portanto, sobre o maior número dos que compõem a
classe governada. Em geral, pode-se dizer, muito a grosso modo, que a
classe governante enxerga melhor os seus próprios interesses, porque a
cortina dos sentimentos é menos espessa; que as classes governadas os
enxerga menos nitidamente, porque a cortina dos sentimento, ao contrário,
é mais espessa; e, disso se segue, que a classe governante pode enganar a
classe governada e levá-la a tornar os seus interesses os mesmos da classe
governante, os quais, aliás, não são necessariamente opostos aos da classe
governada, pelo contrário, frequentemente, se confundem, de modo que o
engano consegue ser vantajoso, até mesmo, para a própria classe
governada.
15. No curso de toda história, surgem o consenso e a força como meios
para se governar. Ambos aparecem, desde as lendas da Ilíada e da Odisseia,
para assegurar o poder dos reis gregos, e são vistos também nas lendas dos
reis romanos; depois, na época histórica, em Roma, operam tanto na
República quanto no principado; e não fica devidamente demonstrado que
o governo de Augusto obteve menor consenso da classe governada, do que
puderam ter os vários governos do fim da república. Avançando um pouco
mais, dos reis bárbaros e das repúblicas medievais, até os reis de direito
divino, dois ou três séculos atrás, e, por fim, até os regimes democráticos
modernos, ao tempo todo, tem-se esse misto de força e consenso.
16. Do mesmo modo que as derivações são muito mais variáveis do que os
resíduos demonstram ser, as formas, sob as quais surge o uso da força e do
consenso, são muito mais variáveis do que os sentimentos e os interesses
dos quais se originaram, e as várias proporções do uso da força e do
consenso têm, em larga medida, origem nas inúmeras proporções dos
sentimentos e dos interesses. Vigora ainda a similitude entre as derivações e
as formas de governo; e tanto aquelas quanto estas agem muito pouco sobre
o equilíbrio social, do que agem os sentimentos e os interesses dos quais
elas se originaram. Isso tudo foi intuído por muitos estudiosos, os quais, de
resto, foram um pouco mais além argumentando que a forma de governo é
indiferente.
17. A classe governante existe em todo e qualquer lugar, mesmo onde há
um déspota, mas são inúmeras as formas pelas as quais ela aparece. Nos
governos absolutos, está sobre o palco apenas um único soberano; nos
governos ditos democráticos, um parlamento; mas atrás das cortinas, estão
os que, de fato, têm participação efetiva no governo. Com certeza, eles, às
vezes, devem abaixar a cabeça aos caprichos dos soberanos ou dos
parlamentos, ignorantes e prepotentes, dos quais são muitos maiores os
efeitos políticos, mas logo voltam, tenazes, pacientes e perseverantes, ao
trabalho. Temos no Digesto ótimas constituições nas mãos de péssimos
imperadores, assim como, atualmente, temos códigos discretos aprovados
por parlamentares, até certo ponto, desconhecidos; tanto naquele quanto
neste caso, a causa, de fato, é a mesma, isto é, que o soberano permitia que
os jurisconsultos os fizessem; em outros casos, o soberano nem sequer sabe
o que eles o fazem fazer, e os parlamentares sabem isso menos ainda do
que qualquer líder ou rei. Muito menos ainda toma conhecimento das
coisas o soberano Demos e isso, às vezes, o ajudou a obter, contrariamente
ao que os seus preconceitos afirmam, melhorias na vida social, bem como
providências oportunas para a defesa da pátria: o bom Demos acredita que
eles obedecem à sua vontade, mas, na verdade, é ele quem obedece à
vontade de seus governantes. Mas isso, muitas vezes, só serve aos
interesses desses governantes que, desde os tempos de Aristófanes até hoje,
usam amplamente da arte de enganar o Demos; os nossos plutocratas, como
já fizeram os plutocratas ao final da República romana, se dedicam a
ganhar dinheiro, seja para o seu próprio benefício, seja para saciar a
ganância de seus partidários e cúmplices e, além do mais, pouco ou nada é
dedicado ao pensamento. Entre as derivações que adotam para demonstrar
a utilidade, para a nação, do seu poder, é notável a que afirma que o povo
pode julgar muito melhor as questões gerais do que as especiais. Na
verdade, é justamente o contrário. Basta raciocinar um pouco com pessoas
pouco cultas para ver que elas entendem bem melhor as questões especiais,
que são, via de regra, mais concretas do que as gerais, que são abstratas, via
de regra. Mas as questões abstratas têm a vantagem, para os governantes,
de que, qualquer que seja a solução que dará a ela o povo, eles saberão
extrair as consequências que quiserem. Por exemplo, o povo elege homens
que querem abolir o fruto dos capitalistas, a mais-valia das indústrias e
controlar a ganância dos especuladores (questões gerais); e estes homens,
direta e indiretamente, ajudando os outros, aumentam enormemente o
déficit público e, assim, os frutos pagos a este capital, conservam, ou
melhor, aumentam a mais valia de que gozam os industriais, muitos dos
quais se tornam ricos com a demagogia e confiam o governo do Estado aos
especuladores, dos quais se veem certos líderes se tornarem diplomatas
como Volpi que celebrou a paz em Lausane, ou ministros, como Caillaux e
Lloyd George.
18. A classe governante não é homogênea; tem ela própria um governo e
uma classe mais restrita ou um líder, um comitê que, efetiva e na prática,
eles mesmos comandam. Às vezes, tal realidade é manifesta, como foi para
os Éforos em Esparta, o Conselho dos Dez em Veneza, os ministros
favoritos de um soberano absoluto ou os patrões de um parlamento; tal
realidade, outras vezes, está em parte oculta, como para o Caucus na
Inglaterra, as convenções nos Estado Unidos e os dirigentes dos
“especuladores”, que operam na França, na Itália etc. A inclinação para
personificar as abstrações ou tão-somente dar a elas uma realidade objetiva
faz sim com que muitos considerem a classe governante quase como uma
pessoa ou, pelo menos, como uma unidade concreta e supõem que ela tenha
uma única vontade e que, por meio de providências lógicas, leve a efeito os
projetos concebidos. Assim, muitos antissemitas se mostram semitas e
muitos socialistas, burgueses; enquanto outros mais próximos da realidade,
enxergam a burguesia como uma ordem que opera, até certo ponto, sem
que estejam conscientes disso os burgueses. As classes governantes, como
outras coletividades, realizam ações lógicas e ações não-lógicas e parte
importante do fenômeno é o ordenamento, não ainda a vontade consciente
dos indivíduos, os quais, com efeito, em certos casos, podem, pelo
ordenamento, ser arrastados para onde a vontade consciente não os levaria.
Quando discorremos sobre os “especuladores”, não foi necessário
considerá-los como personagens de um melodrama, que, com artifícios
tenebrosos, levando a efeito projetos perversos, regem e governam o
mundo. Isso não seria mais real do que uma fábula mitológica. Os
“especuladores” são homens que se dedicam exclusivamente à sua própria
realidade, e que, tendo em si os poderosos resíduos da classe I, eles os
utilizam para ganhar dinheiro e transitam pelo caminho de menor
resistência, como fazem, afinal de contas, todos os homens. Ele não tem
assembleia para deliberar sobre os projetos comuns e nem de nenhuma
outra forma, aliás, deliberam sobre eles; mas o acordo acontece
espontaneamente, porque se, em dadas circunstâncias, houver uma via com
benefícios maiores e com menor resistência, a maioria deles que a
procuram, encontrá-la-ão, e cada qual, seguindo por sua própria conta,
parecerá, se bem que assim não o seja, que a seguem de comum acordo,
mas outras vezes acontecerá que, enquanto forem estimulados pelas forças,
do ordenamento de que fazem parte, a vontade deles será relutante e
seguirão involuntariamente o caminho que comporta o seu ordenamento.
‘Há cinquenta anos atrás, os “especuladores” ignoravam completamente o
presente estado das coisas, ao qual a sua ação os conduziu; o caminho
seguido é o resultado de uma infinidade de pequenas ações, cada uma delas
determinada pela vantagem do tempo presente; como acontece com todos
os fenômenos sociais, ele é o resultado de certas forças que operam em
meio a certos vínculos e a certos obstáculos. Quando dizemos, por
exemplo, que agora os “especuladores” preparam, ao tempo todo, a guerra
com as despesas crescentes, não pretendemos minimamente afirmar que
são culpados dessa situação toda. Longe disso. Preparam a guerra com
despesas, a toda hora, crescentes e suscitando conflitos econômicos, porque
nisso encontram uma vantagem direta, mas esta causa, apesar de
importante, não é a principal, há uma outra causa de maior relevo, isto é, a
de se valer, como meio para governar, dos sentimentos de patriotismo
existente na população. Ademais, os “especuladores” dos vários países
estão em concorrência e se valem dos armamentos para obter concessões
dos rivais. Outras causas semelhantes existem e todas estimulam o aumento
dos armamentos, sem que isso siga um projeto pré-concebido. Por outro
lado, aqueles, em que há abundância de resíduos da classe I, intuem, sem
que ocorram, para isso, raciocínios e teorias, que aconteceria uma grande e
uma terrível guerra; entre os casos possíveis, há também o que deveria
ceder o lugar aos homens em que há abundância de resíduos das classe II;
e, por isso, pelo mesmo instinto que faz o cervo fugir do leão, são
contrários a tal guerra, enquanto aceitam alegremente as pequenas guerras
coloniais, as quais podem supervisionar sem nenhum perigo para si. Desses
seus interesses e sentimentos, e não por causa da vontade deliberada e pré-
estabelecida, segue a sua ação, que, por último, então, pode pensar onde se
quer chegar, mas que poderia também levá-los aonde nunca teria vontade
de ir. Poderá também acontecer que um dia ecloda a preparada e a não
desejada guerra, que será consequência da ação passada dos
“especuladores”, mas não desejada por eles, nem agora nem nunca.
Semelhantemente, os “especuladores” da Roma antiga prepararam a queda
da república e o poder de César e de Augusto, mas sem saber e sem querer
se se podiam, por tal caminho, minimamente chegar a tal fim. No que diz
respeito aos “especuladores”, assim como no que diz respeito aos outros
elementos do ordenamento social, o aspecto ético e o aspecto da utilidade
social devem ser muito bem distinguidos. Os “especuladores” não devem
ser condenados, sob o aspecto da utilidade social, porque realizam ações
reprovadas por uma das éticas que estão em curso; nem devem ser
absolvidos, sob o aspecto desta ética, porque são úteis socialmente. Deve-
se também salientar que a existência de tal utilidade depende das
circunstâncias em que se executa a ação dos especuladores e
designadamente a das suas proporções, seja na totalidade da população,
seja na classe governante, com os indivíduos em que os resíduos da classe
II são poderosos: para conhecer e avaliar tal utilidade, temos de resolver
um problema quantitativo, e não qualitativo. Nos dias de hoje, por
exemplo, o enorme desenvolvimento da produção econômica, a ampliação
dos processos civilizatórios a países novos e o notável aumento do conforto
das populações civilizadas se devem, em grande parte, às ações dos
especuladores; mas eles puderam realizá-la porque sugiram de populações
em que os resíduos da classe II ainda eram abundantes; e permanece
incerto, aliás é pouco provável, que benefícios semelhantes possam
acontecer, onde a população, ou até mesmo na classe dominante apenas, os
resíduos da classe II diminuam bastante.
19. A classe governante recruta, para manter o seu poder, indivíduos da
classe governada, que podem ser separados em duas categorias,
correspondentes aos dois principais meios com os quais tal poder é
assegurado, isto é, uma categoria usa a força, como seriam os soldados, os
agentes de polícia e os bravos do século passado; a outra usa a arte e, desde
a clientela dos políticos romanos, até chegar à dos nossos políticos
contemporâneos. Estas duas categorias não faltam mais, mas não existem
nas mesmas proporções reais e ainda menos nas mesmas proporções
aparentes. A Roma dos pretorianos ocupa um extremo, onde o principal
meio real de governo, e mais ainda meio aparente, é a força armada; os
Estados Unidos ocupam o outro extremo, onde, na realidade, o principal
meio de governo, e um pouco menos em aparência, são as clientelas
políticas. Nestas, age-se por muitos meios; o principal é o menos óbvio,
isto é, o governo cuida dos interesses dos “especuladores”, ainda que não
haja nenhum acordo explícito entre eles neste sentido. Por exemplo, um
governo protecionista goza da confiança e do auxílio dos industriais
protegidos, sem que se tenha feito um acordo explícito entre todos eles,
podendo haver, no máximo, algum acordo somente entre os diretores e os
chefes. O mesmo acontece nos serviços públicos; aliás, o acordo com os
grandes empreendedores se torna a regra. Há então meios mais conhecidos
e menos importante sob o aspecto social, mas que são, ao contrário,
reputados mais importantes sob o aspecto ético e dos quais agora fazem
parte as corrupções políticas de eleitores, de eleitos, de governantes, de
jornalistas e de similares, aos quais fazem correspondência, nos governos
absolutistas, as corrupções das cortesãs, dos concubinos e das concubinas,
das governantas, dos generais etc., os quais, no entanto, não desapareceram
completamente. Tais meios foram utilizados em todos os tempos, da época
da antiga Atenas e da Roma republicana, chegando até os nossos dias, mas
eles são propriamente a consequência do governo de uma classe que, com
astúcia, se impõe para reger um país; e é, por isso, que as inumeráveis
tentativas feitas para reprimir-lhe o uso foram e permanecem vão; pode-se,
até mesmo, cortar, se quiser, a grama, mas ela volta a crescer, exuberante,
se permanecer incólume a raiz. As nossas democracias, na França, na Itália,
na Inglaterra e nos Estados Unidos, inclinando-se, a todo momento, mais
para um regime de plutocracias demagógicas e talvez, desse modo, estão a
caminho de alguma transformação radical, semelhante a uma daquelas que
já foram observadas no passado.
20. Salvo poucas exceções, das quais a principal e a das honras que um
governo pode conceder, ocorrem despesas para assegurar tanto a formação
de forças armadas quanto a de clientela; não basta apenas querer tais meios,
também é necessário poder utilizá-los, o que está em relação direta com a
produção de riqueza, sendo que tal produção de riqueza não é independente
do modo com o qual se utilizam as forças armadas e as clientelas. O
problema, portanto, é complexo e, como tal, deve ser considerado
sinteticamente. Do ponto de vista analítico, pode-se dizer que, em muitos
casos, as forças armadas custam menos do que as clientelas; mas pode
acontecer também que, em certos casos, estas sejam mais favoráveis à
produção da riqueza e isso deve ser levado em conta neste processo de
síntese.
21. A evolução “democrática” aparece em estrita dependência com o
aumento dos meios para se governar que recorrem à arte e à clientela, se
comparados com os meios que recorrem à força. Já se vê isso no final da
República, em Roma, em que houve o contraste justamente entre esses dois
meios e, com o Império, a força, definitivamente, venceu. Isso se vê melhor
nos dias atuais, em que o regime de muitos países “democráticos” poderia
ser definido como um feudalismo, em grande parte, econômico, onde,
como meio de governo, se usa principalmente a arte das clientelas políticas;
enquanto o feudalismo guerreiro do Medievo usava, principalmente, a força
dos vassalos. Um regime em que o “povo” expresse o seu “querer” – dado
e não concedido que ele tenha um dele – sem clientelas, nem brigas, nem
negociatas, só existe como desejo piedoso dos teóricos, mas não se observa
na realidade, nem no passado, nem no presente, nem nas nossas terras, nem
na dos outros.
22. Estes fenômenos, por muitos já advertidos, costumam ser descritos
como um desvio, uma “degeneração” da “democracia”; mas quando e onde
já se viu o estado perfeito ou, pelo menos, bom, no qual esta se desviou ou
se “degenerou”, ninguém soube dizer. Pode-se apenas observar que,
quando a democracia era partido de oposição, não tinha tantas máculas
quantas ela tem no presente, mas esta é uma característica comum a quase
todos os partidos da oposição, aos quais, por más razões, faltam, se não a
vontade, pelo menos, o poder.
23. Note-se, ademais, que os erros dos vários regimes políticos podem ser
muito diferentes, mas que, no geral, não se pode afirmar que há gêneros
destes regimes que, sob tal aspecto, se diferenciam bastante uns dos outros.
As críticas que são feitas à democracia moderna não se diferenciam muito
das que se dirigiam às democracias antigas, como, por exemplo, à
ateniense; e se há muitos fatos de corrupção naquelas e nestas, não seria
difícil revelar que são iguais nas monarquias absolutas, nas monarquias
moderadas, nos governos oligárquicos e em outros regimes.
24. Se olharmos todos estes fatos um pouco de cima, libertando-nos tanto
quanto possível dos vínculos das paixões sectárias e dos preconceitos
nacionais, partidárias, perfeitas, ideais e outras coisas semelhantes, vamos
ver que, em essência, os homens que governam, qualquer que seja a forma
de regime, têm, em termos médios, uma certa inclinação para usar do seu
poder para manter-se no lugar e abusar dele para conseguir vantagens e
ganhos particulares, que, às vezes, nem mesmo se distinguem muito bem
dos ganhos e vantagens do partido, e que também se confundem quase
sempre com as vantagens e os ganhos da nação. Disso se segue: 1) Que,
sob tal aspecto, não haverá grande diferença entre as várias formas de
regimes. As diferenças são de substância, isto é, nos sentimentos da
população; onde esta é mais (ou menos) honesta, encontra-se também um
governo mais (ou menos) honesto. 2) Que usos e abusos serão tanto mais
amplos quanto mais for a intromissão do governo em questões privadas;
aumentando a matéria a ser explorada, aumenta também o que se pode
extrair dela. Nos Estados Unidos, em que se quer impor a moral com a lei,
veem-se enormes abusos, que não acontecem onde tal imposição não existe
ou acontecem em menores proporções. 3) Que a classe governante se
assegura de apropriar dos produtos de outras pessoas, não só para uso
próprio, mas também para desses produtos tomem parte alguns da classe
governada que a defenderão e lhe assegurarão o poder, seja com as armas,
seja com a astúcia, com aquele mesmo auxílio que o cliente dá ao patrão. 4)
Que, na maioria das vezes, nem os patrões, nem os clientes estão
plenamente conscientes das suas transgressões às regras da moral existente
na sua sociedade, e que, mesmo quando se tornam conscientes delas, são
eles facilmente desculpados, seja em razão de que, no final das contas,
outras pessoas fariam a mesma coisa, seja em razão do cômodo pretexto de
que os fins justificam os meios; e para eles, isso tudo, no fundo, só pode ser
uma excelente maneira de se manterem no poder; aliás, é de total boa fé
que muitos deles os confundem com os outros que vão salvar a pátria.
Também pode haver pessoas que creem defender a honestidade, a moral e o
bem público, enquanto, ao contrário disso tudo, o trabalho delas encobre os
maus feitos de quem visa somente a ganhar dinheiro. 5) Que a máquina
governamental consome, de alguma forma, uma certa quantidade de
riqueza, que está em relação não só com a quantidade total de riqueza
pertencentes a assuntos privados nos quais o governo se envolve, mas com
os mesmos meios de que a classe governante lança mão para se manter no
poder e, portanto, com as proporções de resíduos da classe I e da classe II,
na parte da proporção que governa e naquela que é governada.
25. Voltemo-nos agora à apreciação dos diversos partidos na classe
governante. Podemos, em qualquer um desses, distinguir três categorias, a
saber: (A) Homens que visam resolutamente a fins ideais, que seguem
rigidamente certas regras de condutas que lhe são próprias; (B) Homens
que têm por escopo conquistar seus próprios benefícios e os de sua
clientela. Estes se dividem em duas categorias, a saber: (B-α) Homens que
se contentam com o simples gozo do poder e com as honras dele advindas,
e que deixam à sua clientela os benefícios materiais; (B-β) Homens que
buscam para si e para a sua clientela os benefícios materiais, geralmente em
dinheiro. Os que são simpáticos ao partido dizem que os homens de A de
seu partido são “honestos” e os admiram; os que são hostis a tal partido
dizem que são fanáticos, sectários e os abominam. Os homens de (B-α)
geralmente são considerados honestos por seus correligionários, mas vistos
com indiferença no que diz respeito à honestidade pelos inimigos. Os
homens de (B-β), quando se descobre a sua existência, são chamados de
“desonestos” por todos; mas os seus amigos procuram, de todas as formas,
que tal existência não seja descoberta e, para conseguir esse intento, são
capazes de negar, até mesmo, a luz do sol. Via de regra, os homens de (B-α)
custam ao país muito mais do que os homens de (B-β), visto que, com o seu
verniz de honestidade, tornam possível toda sorte de operações dirigidas a
retirar os bens das outras pessoas, para que a sua clientela política usufrua
deles. Convém acrescentar que, entre os homens de (B-α), muitos se
dissimulam que nunca tomam nada para si, mas que utilizam de todos os
meios para tornam a sua família rica. A proporção das categorias ora
elencadas depende, na maioria das vezes, da proporção dos resíduos da
classe I e da classe II. Nos indivíduos (A) prevalece, em larga medida, os
resíduos da classe II e, por isso, podem se dizer honestos, fanáticos e
sectários, segundo o aspecto sob o qual eles são considerados; nos
indivíduos (B) prevalecem os resíduos da classe I e, por isso, são os mais
aptos a governar, e quando chegam ao poder, os indivíduos (A) são para
eles um lastro, que, de resto, é útil para dar uma certa tinta de honestidade
ao partido, todavia, para tal escopo, servem muito mais os indivíduos da
categoria (B-α); estes, porém, são um mercadoria não muito abundante e
procuradíssima pelos partidos. As proporções dos resíduos da classe I e da
classe II, na clientela, nos homens do partido que não estão no governo e
nos eleitores correspondem, sem que, de resto, sejam idênticas, à da parte
governante, no estado maior. Só um partido onde são abundantes os
resíduos da classe II pode eleger muitos indivíduos da categoria (A); mas
elegem também, sem ter consciência disso, outros da classe (B), posto que
estes são espertos, prudentes e mestres na arte das combinações e
facilmente induzem ao erro os eleitores ingênuos em que há bastante os
resíduos da classe II. Nos nossos ordenamentos políticos, os partidos
políticos devem se dividir em duas grandes classes, a saber: (I) Partidos que
se alternam no governo; quando um está, o outro lhe faz oposição; (II)
Partidos intransigentes, que nunca chegam ao governo. Segue, do quanto já
observamos até agora, que nos partidos (I) haverá um mínimo de (A) e um
máximo de (B) e, vice-versa, para os partidos (II). Isso, em outros termos,
se expressa dizendo que os partidos que não chegam ao governo são,
frequentemente, mais honestos, mas são também mais fanáticos e sectários
do que aqueles que chegam ao governo; é o sentido daquele dito popular
comum francês, segundo o qual a República era linda sob a vigência do
Império. Tal acontecimento depende, essencialmente, dos ordenamentos.
Nos partidos que chegam ao governo, uma primeira escolha é feita nas
eleições. Salvo exceções que não são de grande número, não se torna
deputado a não ser pagando, concedendo e, mais ainda, prometendo favores
governamentais; isso forma uma rede que deixa passar muito poucos
indivíduos da categoria (A). Os que mais se aproximam dos indivíduos da
categoria (A) são os candidatos que são muito ricos para comprar para si o
cargo de deputado, o que para eles (A) é um luxo. É estranho dizer isso,
mas é verdade também que essas pessoas são, depois de (A), as mais
honestas entre os políticos. Eles, neste momento, são poucos, porque os
custos para comprar os eleitores são enormes e quem faz isso com dinheiro
próprio, vai depois querer compensar com os ganhos, e quem não pode e
não quer fazer, é colocado no governo mediante a forma de concessão ou
mediante favores de várias espécies. Nisso tudo, grande é a concorrência e
só sobrevivem os homens em que abundam os instintos de combinação
(resíduos da classe I). Uma segunda e mais rigorosa escolha se faz entre os
deputados que se tornam ministros; os candidatos a deputado têm de
prometer aos seus eleitores, os candidatos a ministro têm de prometer aos
deputados e passar a confiança de que estão lutando pelos bens destes
últimos e da sua clientela política. Os ingênuos creem que, para fazer isso,
basta não ser honesto; enganam-se, pois são necessários raros dotes de
prudência e de habilidade em todo tipo de combinação. Os ministros não
têm cofres dos quais se possa retirar, aos punhados, o dinheiro para
distribuir aos seus fautores; é necessário, então, com uma arte sútil,
encontrar, na parte econômica, combinações de proteção econômica, de
benefício aos bancos e aos trusts, de monopólios, de reformas fiscais etc. e,
nas demais partes, combinações de pressão sobre os tribunais, de
distribuição de títulos honoríficos etc., que beneficiam aqueles que
asseguram o poder. Além disso, é útil procurar também promover um
processo de degradação dos indivíduos da classe (A) dos outros partidos.
Quem tem uma fé oposta aos de (A) dificilmente conseguirá este objetivo,
mas quem não tem fé nenhuma, que tem quase só os resíduos da classe I,
poderá operar muito melhor sobre os de (A) e se valer da mesma fé deles
para cooptá-los ou, pelo menos, tolher a eficácia de sua oposição. Pode-se,
então, estar seguro de que, nos partidos que se aproximam do governo,
existe uma enorme prevalência dos resíduos da classe I. Não pode ser
diferente nos ordenamentos políticos atuais, razão pela qual estes se
inclinam, cada vez mais, para uma plutocracia demagógica. Os diversos
partidos, muitas vezes, se calam mutuamente sobre a desonestidade. Estão
certos ou errados, segundo o aspecto sob o qual os fatos são considerados.
Quase todos os partidos têm os seus (B-β), assim, quem os considera
exclusivamente, pode tachar, de forma justa, o partido de desonestidade;
eles têm também os seus (B-α), e quem os considera pode ou não pode
tachar o partido de desonestidade, dependendo do sentido que se dá a este
termo. Por fim, poucos são os partidos que não têm os seus (A), e quem os
considera exclusivamente, dirá que o partido é honesto. Caso queira, então,
cuidar da proporção de (A) e de (B), encontram-se certos casos em que
prevalecem certamente os de (A), motivo pelo qual o partido poderá, então,
se dizer “honesto”; mas em muitos outros casos, não se sabe dizer
exatamente se, nos diversos partidos que disputam o governo, haja grande
diferença entre as proporções dos de (A) e dos de (B); pode-se dizer,
portanto, que os de (A) são mais escassos. Nas classes inferiores da
população, há ainda, em grande quantidade, os resíduos da classe II, de
forma que os governos que, no fundo, se movem por simples interesses
materiais, devem fazer de conta, ao menos, que esperam por alguns fins
ideais e os políticos devem se encobrir de um véu, para dizer a verdade,
muitas vezes, bastante sutil, de honestidade. Quando um deles é pego com
a boca na botija, o partido adversário faz um enorme estardalhaço,
procurando valer-se do fato como uma arma, um trunfo, para os seus
próprios fins; o partido ao qual pertence o suposto culpado procura, antes
de tudo, defendê-lo e, depois, se isso parecer muito difícil ou impossível, o
exclui do partido, como o navio em meio à tempestade se desfaz de sua
carga. A população acompanha o desenrolar dos fatos como acompanha o
desenrolar de uma peça teatral; e se puder haver uma pitada de sentimento
e de amor, meio mundo se diverte com este espetáculo gratuito. Os
incidentes insignificantes se tornam, de fato, o principal; e o principal, isto
é, o ordenamento que tem, por consequência, tais fatos, é totalmente
negligenciado. Se um ministro se deixar apanhar fazendo pressão em um
magistrado, todos gritam até perderem o fôlego, mas ninguém exige que os
magistrados, que são, inequivocamente, caracterizados por sua
independência, deixem de se imiscuir nos trabalhos dos ministros. Isto
acontece, para derrubar do poder, os rivais, mas estes objetivarão, depois,
quando forem eles, fazer justamente o mesmo; e isto acontece porque o
vulgo não entende senão os fatos concretos e particulares, e não sabe
transcender até as considerações das normas abstratas e gerais. Assim, aos
“escândalos” se sucedem outros, saindo do tempo em que eles se acham;
enquanto um estoura, o outro amadurece e está prestes a estourar, e as
pessoas se comovem a cada caso novo, considerando incomum o que, na
verdade, é perfeitamente comum e consequência dos ordenamentos
desejados ou tolerados por essas mesmas pessoas. Os éticos creem que os
fatos acontecem acidentalmente, na medida em que um homem desonesto
foi colocado no poder, e que esse fato é perfeitamente semelhante ao de um
caixa de banco que rouba o seu patrão. Não é bem assim; não é um caso
fortuito que deu poder a um homem dessa laia, mas a escolha é
consequência dos ordenamentos; e caso queira fazer comparação com o
caixa do banco, deve-se acrescentar que este não foi escolhido como
usualmente se diz, mas que o patrão andou procurando-o entre as pessoas
mais tendentes a levar embora o dinheiro do caixa e aptas a fazer isso por
conta da esperteza e de outras coisas análogas.
26. Se quisermos resolver o problema posto no § [20], devemos, antes de
tudo, levar em conta todas as derivações das quais, até agora, temos visto
alguns exemplos e, em seguida, ter presente a complexidade do fenômeno e
proceder à investigação de suas partes mais significativas. Entre estas,
certamente há partes que já foram consideradas, isto é, os efeitos sobre a
prosperidade econômica e social, os da defesa de agressões que poderiam
vir do exterior, da segurança pública, de uma boa e rápida justiça, de certos
serviços públicos e de muitos outros ofícios governamentais; mas de igual
importância, se não maior, são também os efeitos da circulação das classes
eleitas e do estímulo ou da depressão que, indiretamente, experimenta a
economia nacional em relação aos modos de governo. É necessário ter em
mente que, muitas vezes, os governantes, visando a certos efeitos,
conseguem, indiretamente, outros deles, entre os quais há alguns efeitos
que não são previstos nem desejados. Por exemplo, os governantes que,
para proporcionar ganhos para a sua clientela, instituem a proteção
aduaneira e conseguem o efeito, em que não tinham pensado nem um
pouco, de favorecer a circulação das classes eleitas. Sob o aspecto ético,
uma medida pode ser julgada de forma dissociada dos outros fenômenos
sociais; sob o aspecto da utilidade, não se pode fazer assim; é preciso ver,
no conjunto, como esta medida modifica o equilíbrio. Uma medida
reprovável sob o aspecto ético pode ser louvável sob o aspecto da utilidade
social; e, em sentido contrário, uma medida louvável do ponto de vista
ético pode ser reprovável do ponto de vista da utilidade social. Mas sob tal
aspecto, convém que a parte comandada da população pense, ao contrário,
que há, necessariamente, identidade entre o valor ético de uma medida e a
sua utilidade social. Longo e difícil seria fazer um estudo desta matéria
levando-se em conta, ao menos, os principais detalhes; contentemo-nos
aqui com o florescimento dela, procurando obter algum conceito geral.
Para o objeto desse estudo, vamos levar em consideração certos tipos de
governo que a história nos faz conhecer. I. Governos que usam
principalmente a força material e a dos sentimentos religiosos ou de outros
sentimentos análogos. Por exemplo, os governos das cidades gregas na
época dos “tiranos”, de Esparta e de Roma ao tempo de Augusto e de
Tibério, da República de Veneza nos últimos séculos de sua existência, de
muitos estados europeus do século XVIII. Ali corresponde uma classe
governante em que prevalecem os resíduos da classe II, em comparação
com os da classe I; a circulação das partes eleitas é geralmente lenta. São
governos de baixo custo, mas que, por outro lado, não estimulam a
produção econômica, seja porque, por sua própria índole, refutam a
novidade, seja porque não premiam, mediante a circulação das classes
eleitas, os que mais têm instinto de combinações econômicas. Se, de resto,
tal instinto dura na população, pode-se obter uma discreta prosperidade
econômica (Roma nos tempos do Alto Império), haja vista que os governos
não opuseram a ela obstáculo; mas frequentemente, a longo prazo, há
obstáculo, porque o ideal dos governos, desta feita, é uma nação enrijecida
nas suas instituições (Esparta, Roma aos tempos do Baixo Império, Veneza
à época de sua decadência). Podem elas se enriquecer com as conquistas
(Esparta e Roma), mas, tendo em vista que de tal modo não se produz nova
riqueza, tal enriquecimento é inevitavelmente precário (Esparta e Roma).
Além disso, pelo que já aconteceu no passado, nota-se frequentemente que
estes regimes políticos se transviaram em governos de uma turba armada
(pretorianos e janízaros), apta somente a desperdiçar a riqueza.
27. II. Governos que usam principalmente a arte e a astúcia. (II-a). Se
estas estiverem destinadas principalmente a operar sobre os sentimentos,
teremos governos teocráticos, os quais, neste momento, inexistem por
completo em nossas terras, e dos quais, portanto, podemos deixar de nos
ocupar. Talvez deles poderiam, ao menos em parte, se aproximar os
governos dos antigos reis da Grécia e da Itália, mas são muito pouco
conhecidas as suas histórias para poder afirmar isso. (II-b) Se a arte e a
astúcia são destinadas principalmente aos interesses, o que, de resto, não
quer dizer que os sentimentos foram negligenciados, teremos os governos
muito parecidos com o dos demagogos em Atenas, da aristocracia romana
em inúmeras épocas da república, com o de muitas repúblicas medievais e,
por fim, o tipo mais importante do governo dos “especuladores” dos dias de
hoje.
28. Os governos de todos os gêneros II, também os que operam sobre os
sentimentos, têm uma classe governante em que prevalecem os resíduos da
classe I, em comparação aos da classe II, dado que, para operar
validamente com a arte e com a astúcia tanto sobre os interesses quanto
sobre os sentimentos, deve-se ter em alto grau o instinto de combinação e
não ser contido por muitos escrúpulos. A circulação das classes eleitas
costuma ser lenta no subgênero (II-a), mas, por outro lado, é rápida e, às
vezes, muito rápida no subgênero (II-b); no governo dos nossos
“especuladores” atingem um ponto máximo. Os governos do subgênero (II-
a) são comumente de baixo custo, porém são poucos produtivos; mais do
que qualquer outro, anestesiam as populações e tolhem todos os estímulos
para a produção econômica. Não usando de maneira significativa a força,
não conseguem complementar a produção com o que é obtido pelas
conquistas, na verdade, tornam-se presas fáceis dos seus vizinhos que
sabem usar a força, assim, desaparecem ou em razão das tais conquistas ou
em razão de sua decadência interna. Os governos do subgênero (II-b)
custam caro e, via de regra, muito caros, mas também produzem muito e, às
vezes, muitíssimo, de forma que pode existir um excesso de produção sobre
as tais despesas para assegurar uma grande prosperidade ao país; mas não é
certo, de jeito nenhum, que tal excesso, com o aumento das despesas, não
possa ser reduzido a proporções mais modestas, desaparecer e, quem sabe
talvez, ser alterado para um déficit. Isso depende de condições e
circunstâncias infinitas. Estes regimes podem degenerar em governos de
astutos covardes, que são facilmente abatidos pela violência, venha ela de
dentro ou de fora. Isso foi visto em muitos governos democráticos das
cidades gregas e teve, ao menos, uma participação notável na queda da
República romana e na da República de Veneza.
29. No plano concreto, encontram-se combinações destes vários tipos, em
que, às vezes, prevalece ou um ou outro. Os governos em que, com uma
significante quantidade do tipo (I) se tem uma discreta proporção do tipo
(II-b), podem ter longa duração, ficando protegidos pela força, sem que
lhes falte a prosperidade econômica. A este tipo misto, aproxima-se o Alto
Império Romano. Eles encaram o perigo da degeneração do tipo (I) e,
igualmente, aquele perigo que neles faz reduzir bastante a proporção do
tipo (II-b). Os governos nos quais, com uma pequena quantidade do tipo (I)
se tem uma significativa proporção do tipo (II-b), podem ter longa duração,
porque têm também uma certa força para se defender, enquanto conseguem
uma importante prosperidade econômica. Eles encaram o perigo da
degeneração de (II-b) e, igualmente, aquele perigo que neles faz reduzir
bastante a proporção do tipo (I), que os expõe quase certamente ao perigo
da invasão estrangeira. Este fenômeno contribuiu para a destruição de
Cartago e na conquista da Grécia levada a efeito pelos Romanos.
30. É também oportuno observar que um misto dos tipos (I) e (II-b) pode
ser obtido em um governo que usa, principalmente, a força nas relações
com o exterior e a arte nas relações internas. A tal gênero, aproxima-se o do
governo da aristocracia romana, nos bons tempos da República.
ÍNDICE
Nota introdutória...........................................................................................1
Pareto e o sistema social..............................................................................5
1. A vocação científica de Pareto..................................................................5
2. Da economia à sociologia..........................................................................7
3. As ações lógicas e as ações não-lógicas....................................................9
4. Os estudos de sociologia e a preparação do “Tratado”...........................11
5. As teorias lógico-experimentais e as teorias não lógico-experimentais..12
6. A sociedade come sistema global............................................................14
7. A publicação do “Tratado” e os últimos escritos....................................17
8. Os resíduos e as derivações.....................................................................19
9. O princípio da heterogeneidade social e a teoria das “elites”.................22
10. Os diversos tipos de sistemas sociais....................................................24
11. O equilíbrio social e a utilidade social..................................................27
12. O movimento ondulatório dos fenômenos sociais e a concepção
paretiana da história.....................................................................................30
Nota biográfica..........................................................................................33
Bibliografia.................................................................................................35
Principais obras de Vilfredo Pareto.............................................................35
Escritos sobre Vilfredo Pareto.....................................................................36