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Nota introdutória

A tarefa aqui proposta, a de apresentar uma antologia do Tratado geral de


sociologia, de Vilfredo Pareto, que, para as exigências da coleção da qual
faz parte, se reduz a menos de um décimo do volume da obra, pode parecer
temerária. Na realidade, o Tratado é uma obra extensa, pela quantidade de
amplificações e digressões, que podem ser omitidas sem dano excessivo
para a compreensão das ideias fundamentais ali expostas. O critério que
segui na antologia foi o de apresentar, sem nenhuma adição de minha parte
e, portanto, exclusivamente com os trechos originais, os principais e mais
recentes termos da sociologia parentiana, que foram expostos e
devidamente esclarecidos na Introdução. A minha intervenção no texto foi
muito limitada: eu suprimi as referências frequentes, que aqui seriam
incompreensíveis, além de inúteis, a outros parágrafos da obra; eliminei
todas as notas de rodapé, nas quais Pareto costuma ilustrar, com exemplos,
as teorias expostas no texto; e, naturalmente, modifiquei a numeração dos
parágrafos, sempre começando com o número 1. A antologia que se segue
pode ser considerada quase como uma ilustração da introdução, assim
como a introdução pode ser considerada quase como um comentário à
antologia.
O Tratado está dividido em treze capítulos: 1. Preliminares; 2. As ações
não-lógicas; 3. As ações não-lógicas na história das doutrinas; 4. As
teorias que transcendem à experiência; 5. As teorias pseudocientíficas; 6.
Os resíduos; 7. Os resíduos (continuação); 8. Os resíduos (continuação);
9. As derivações; 10. As derivações (continuação); 11. Propriedade dos
resíduos e das derivações; 12. Forma geral da sociedade; 13. O equilíbrio
social na história. Destes trezes capítulos, eu eliminei o terceiro, que serve
para ilustrar, com exemplos, o conteúdo do segundo, isto é, a principal
dicotomia entre ações lógicas e ações não-lógicas; o quarto e quase todo o
quinto, que constituem um imenso repertório de exemplos de teorias não
lógico-experimentais; o sétimo e o oitavo, que analisam as várias classes de
resíduos, e o décimo que faz o mesmo para as derivações; o décimo
terceiro que busca uma confirmação das principais teses do Tratado por
meio da análise de alguns períodos históricos particularmente
significativos.
Dos nove capítulos em que a minha antologia foi dividida, o primeiro e o
segundo, Critérios de método e As ações não-lógicas, reproduzem os
parágrafos, que eu reputei essenciais, dos capítulos I e II do Tratado. O
terceiro, As duas partes de toda teoria, reproduz os parágrafos finais do
capítulo V, do qual Pareto extrai as consequências da análise crítica,
conduzida no capítulo IV e em grande parte no próprio capítulo V, às
teorias não lógico-experimentais, e prepara o terreno para expor a grande
dicotomia. O capítulo IV, Resíduos e derivações, reúne parágrafos dos
capítulos VI e IX, voltados a definir os dois conceitos fundamentais de
resíduo e de derivação. O capítulo V, As elites e a sua circulação,
compreende os parágrafos finais do capítulo XI, em que, da análise das
inúmeras combinações dos resíduos e das derivações em todo sistema
social, Pareto extrai o princípio de que cada sociedade é heterogênea e de
que a manifestação essencial dessa heterogeneidade é a presença, em cada
sociedade, das elites e das não-elites. Por fim, os capítulos VI, VII, VIII e
IX apresentam quatro temas fundamentais do capítulo XII, que é
certamente a parte mais conhecida do Tratado: mais especificamente, o
capítulo VI, O sistema social, dá conta dos elementos, das propriedades e
dos fins de todo sistema social; o capítulo VII analisa o problema
específico da utilidade social; o capítulo VIII, O uso da força na sociedade,
e o capítulo IX, O regime político, reproduzem duas partes do mesmo
capítulo XII, que ostentam no Tratado o mesmo título e têm o escopo de
mostrar a aplicação das teorias até aqui elaboradas para a análise dos
fenômeno político em particular, bem como, mais claramente do que em
qualquer outro lugar, o aspecto ideológico do pensamento paretiano. Para
quem quiser consultar na fonte, dou aqui, na sequência, o número original
dos parágrafos do Tratado, acolhidos nesta antologia:
Cap. I (1.2) (4...6) (8.9) (12...14) (68...73) (86).
Cap. II (145...155).
Cap. III (798...804) (824...833) (846) (848...855) (860...861) (868).
Cap. IV (869.870) (872...877) (885....888) (1397) (1399...1403)
(1413...1419).
Cap. V (2025…2059).
Cap. VI (2060...2068) (2078...2086) (2015...2110).
Cap. VII (2111...2139).
Cap. VIII (2170...2201).
Cap. IX (2237...2254) (2257...2261) (2267.2268) (2267.2268)
(2274...2278).
A Introdução faz referência aos principais conceitos-chave apresentados na
antologia: em particular, à dicotomia entre ações lógicas e ações não-
lógicas, o § 3.º; àquela entre teorias lógico-experimentais e teorias não
lógico-experimentais, o § 5.º; e àquela entre resíduos e derivações, o § 8.º.
O princípio da heterogeneidade social, das elites e da sua circulação é
ilustrado no § 9.º e no § 10; e o tema do sistema social e da utilidade social,
no § 11. A ordem em que foram tratados os problemas na Introdução reflete
mais ou menos a ordem em que os mesmos problemas foram apresentados
na antologia.
PARETO E O SISTEMA SOCIAL

1. A vocação científica de Pareto

No discurso proferido em 6 de julho de 1917, por ocasião das honrarias a


ele atribuídas pela Universidade de Lausane pelos vinte e cinco anos de
magistério, Pareto afirmou: “o principal escopo dos meus estudos sempre
foi o de aplicar às ciências sociais – das quais as ciências econômicas são
apenas uma parte – o método experimental que deu, sim, resultados
promissores nas ciências naturais”1. Desse modo, ele esclareceu:
“Impulsionado pelo desejo de aportar um complemento indispensável aos
estudos da economia política e, sobretudo, inspirando-me, por exemplo, nas
ciências naturais, eu fui induzido a escrever o meu Tratado de sociologia,
cujo único escopo – digo único e insisto nesse ponto – é de pesquisar a
realidade experimental por meio da aplicação às ciências sociais dos
métodos que produzem suas provas em física, em química, em astronomia,
em biologia e em outras ciências semelhantes”2.
Ateu de todas as religiões, como ele mesmo se definia, Pareto fazia, com
esta declaração, já no limiar dos setenta anos, a sua profissão de fé. Não
diferentemente de seu grande quase contemporâneo Max Weber, mas com
uma acrimônia maior pela maneira com que as coisas iam pelo mundo,
rendia homenagem à “ciência como profissão e como vocação”.
Por toda a vida, a imagem que Pareto adorou mostrar de si mesmo foi
aquela do fustigador apaixonado de todas as paixões humanas que
obstaculiza o caminho do conhecimento científico da sociedade; de um
irrisório incrédulo de todas as crenças mais absurdas que alimentavam as
1
Discurso pelo Jubileu (1917), em Escritos sociológicos, de G. Busino, Turim, Utet, 1966, p. 730.
2
Ob. cit., p. 736.
metafísicas sociais (muitas das quais se fazem passar por ciência); de
lúcido, sempre racional, impassível observador da recorrente, e por muitos
execrada e sempre renascente, loucura humana. Uma das suas antíteses
preferidas era aquela entre o dogmatismo de todas as fés e o “ceticismo
científico”. A Ettore Ciccotti, doutrinado no verbo de Marx, recomendava
“pôr inteiramente de lado a fé nas questões científicas” e de estender “às
questões econômicas o mesmo ceticismo científico” que muito
sensatamente já usava nas questões históricas3. Pensava que uma atitude
cética diante da história dos homens fosse a pré-condição, e ainda junto
com ela o resultado, da pesquisa científica. O caminho da ciência estaria
aberto apenas aos que estivessem dispostos a não reconhecer outra
autoridade senão a da razão e da experiência, e concordassem, em nome
destas autoridades, em colocar continuamente em discussão as próprias
descobertas.

3
Veja em O crepúsculo da escravidão no mundo antigo de E. Cicciotti (1897), em Escritos sociológicos,
ob. cit., p. 198.
2. Da economia à sociologia
Laureando-se em engenharia na Escola Politécnica de Turim em 1870,
Pareto, antes de ser chamado à cátedra de economia política da
Universidade de Lausane (em 1893), exercera, por quase vinte anos, a
profissão de engenheiro, primeiro, em uma empresa ferroviária em
Florença e, depois, nas ferrovias de San Giovanni Valdarno. Mas, ao
mesmo tempo, estava voltado ao estudo de assuntos econômicos,
participando ativamente da batalha em defesa do livre comércio contra a
política protecionista do governo italiano. Por mais que fosse chegado aos
estudos econômicos, não por meio do habitual processo acadêmico, mas
impulsionado por uma forte paixão política, entrou na área como autodidata
sem ser apenas um amador, com uma segura vocação científica, nutrido de
bons estudos humanísticos, guarnecido por uma preparação matemática, de
longe, superior à dos colegas italianos e dominado por uma férrea
exigência de rigor metodológico.
Exortou, com um discurso lido na R. Academia dos Georgofili4 em 1877,
com apenas 29 anos, a defesa da economia como ciência, onde, entre outras
coisas, proclamou o próprio ideal de uma ciência neutral e não prescritiva,
ao qual permaneceria fiel por toda a sua vida: “... quando, mesmo que por
pouco tempo, tem trégua a luta em torno das questões práticas, não é inútil
subir um pouco nas regiões serenas da ciência pura, depondo as armas já
contestadas em nosso favor, esquecendo as suas paixões e voltando-se a
mente – mais do que propugnar uma determinada doutrina – para aquelas
mesmas investigações, das quais ela recebe forma e vida” 5. Colaborador do
“L’Economista” até 1876, do “Journal des Economistes” desde 1897, do
“Giornale degli Economisti” desde 1890, onde manteve, de 1891 a 1897,
uma coluna de crônicas corrosivas da vida pública italiana, quando, entre
1896 e 1897, saíram os dois volumes do Curso de Economia Política6 no
4
Famosa escola agronômica de Florença.
5
Da lógica das novas escolas econômicas (1877), em Escritos sociológicos, ob. cit., p. 127-128.
6
Cours d’économie politique no original francês.
qual havia reunido as lições ministradas na Universidade de Lausane, a sua
fama internacional de economista já estava consolidada.
O Cours poderia ser uma meta, mas representou apenas uma etapa. No
vasto e ambicioso programa paretiano de reduzir à ciência rigorosa o
estudo dos fenômenos sociais e a economia política que, entre todas as
ciências socias, era a metodologicamente mais avançada, representava
apenas a primeira parte. Pareto tinha bem claro em mente, desde o início,
que o pressuposto fundamental para um estudo científico da sociedade
globalmente considerada era, no caso, que a sociedade se constituía em um
sistema de fenômenos mutuamente interdependentes, para os quais se
deveriam buscar as leis de equilíbrio. Entre os dois modelos de sistema que
as ciências mais desenvolvidas podiam oferecer ao sociólogo, o modelo do
sistema mecânico, próprio das ciências físicas, e o modelo do sistema
orgânico, próprio das ciências biológicas, Pareto preferiu adotar o primeiro.
Concebida a sociedade com um sistema de todas as ações sociais do
homem, a economia política, que estudava uma particular espécie destas
ações, retirava dela apenas um aspecto: a esfera das ações econômicas
constituía uma parte do todo, hoje se diria (embora Pareto jamais tenha
usado a expressão) um subsistema. Dois capítulos do Cours, dedicados
respectivamente aos temas da evolução social e da fisiologia social, já
deixavam entender que ele não tinha nenhuma intenção, na realização de
seu próprio projeto, de parar no meio do caminho. A esfera, para a qual a
economia política voltava as suas pesquisas, era a das ações que o homem
realizava para satisfazer, adotando os meios mais adequados para atingir os
fins, ou seja, os seus próprios interesses: são as ações que podem ser
chamadas de racionais (que Pareto chama de lógicas). Max Weber nos
mesmos anos denunciava no capitalismo moderno, que havia dado origem
à ciência econômica, o grande processo de racionalização da sociedade
moderna, que culminava na organização da grande empresa e no estado
burocrático.
Um homem apaixonado, mais do que qualquer outro, não obstante a
máscara de impassibilidade com a qual ele adorava se disfarçar, Pareto não
tinha dúvidas sobre a parte importante ou até mesmo preponderante que os
motivos não racionais desempenhavam na conduta dos homens. Se as
tivesse tido, o espetáculo que lhe era oferecido pela cena política, da qual
ele foi, desde os primeiros anos, atentíssimo e, acima de tudo, imparcial
expectador, e os exemplos que ele extraía do estudo assíduo da história
política e da história das religiões, antigas e modernas (considerava as
várias ideologias solidaristas, pacifistas, humanitárias e o socialismo, em
todas as suas ramificações, como formas modernas de religiosidade),
imediatamente as teria dissipadas. Que um homem fosse um animal
racional era, ou uma bela fábula antiga, que somente poderia ter nascido da
cabeça dos filósofos, que estão acostumados a converter os seus próprios
desejos em realidade, ou o sonho dos economistas trancados em sua
cidadela, que estendiam demais o espaço destinado ao homo oeconomicus a
tal ponto que se confundia com o homem em sua integralidade. Quem se
propusesse a estudar o sistema social em seu conjunto, não poderia
evidentemente se deter na análise da parte racional da ação humana,
deveria inserir o estudo parcial da economia política no estudo global de
todas as forças internas e externas, das quais são gerados os movimentos do
sistema social.

3. As ações lógicas e as ações não-lógicas

A primeira grande dicotomia que domina a teoria paretiana do sistema


social é a distinção entre ações lógicas e ações não-lógicas; ela cumpre a
mesma função da dicotomia weberiana, elaborada nos mesmos anos, da
qual, aliás, Pareto não teve nenhum indício, entre ações racionais que
dizem respeito aos fins e ações racionais que dizem respeito aos valores.
Em uma carta de 17 de maio de 1897, justamente no início do curso de
sociologia, escreve a Pantaleoni: “... diga-se entre parêntesis, o princípio da
minha sociologia está justamente em separar as ações lógicas das não-
lógicas e em fazer ver que, para a maioria dos homens, a segunda categoria
é muito maior do que a primeira”7.
Por “ações lógicas”, Pareto entende as ações que; a) estabelecem um meio
objetivamente adequado aos fins; b) são cumpridas com a consciência desta
adequação. Em sentido contrário, são “ações não-lógicas” tanto as que
estabelecem meios não objetivamente, isto é, apenas subjetivamente,
adequados aos fins, como, por exemplo, fazer um sacrifício a Netuno para
ter uma boa navegação (quem cumpre uma ação tal acredita cumprir uma
ação adequada ao fim, mas, de fato, tal ação não é, objetivamente,
racional), quanto as que estabelecem meio adequados, mas sem que o
agente tenha consciência disso, como são as ações instintivas dos animais,
que não interessam ao estudo do sistema social humano. Deixando de lado

7
Cartas a Maffeo Pantaleoni, Roma, Banco Nacional do Trabalho, 1960, vol. II, p. 73.
esta segunda caracterização, que serve para distinguir o mundo humano do
mundo animal, a grande dicotomia paretiana se resolve na distinção entre
as ações objetivamente adequadas aos fins e as ações adequadas aos fins
apenas subjetivamente, isto é, apenas na crença de que quem as realiza tem
nelas.
No âmbito da grande dicotomia, a hipótese fundamental da qual Pareto
parte é a de que, das duas classes de ação, a segunda é, no conjunto das
relações humanas, muito mais importante do que a primeira. Os homens
não são, na sua maioria, seres racionais. Quem acredita na racionalidade
deles, deixa escapar a esfera mais preponderante da conduta humana;
poderá construir castelos metafísicos como fizeram, a seu tempo, os
jusnaturalistas, mas não são capazes de fazer avançar nem mesmo um
milímetro o estudo científico da sociedade. O estudo das ações não-lógicas
cabe à sociologia que, desse modo, antes de se articular, como seria
desejável, em disciplinas mais específicas, está destinada a recortar, por
muito tempo ainda, a maior parte dos fenômenos sociais.

4. Os estudos de sociologia e a preparação do “Tratado”

Com essas ideias em mente, Pareto ainda não tinha terminado o Cours que
já é abandonado, com entusiasmo juvenil, ao projeto de escrever um tratado
sobre sociologia. A partir o segundo semestre de 1897, foi-lhe confiado o
encargo de ensinar, além de economia, também a sociologia. Ele aproveita
a oportunidade para mergulhar de cabeça na leitura de livros de sociologia,
dos quais extrai a convicção de que, no que diz respeito à economia, a
sociologia ainda se encontra em estado infantil. O que reaviva o seu ardor.
Rechaça a maior parte dos autores que lê, porque fazem pouca ciência e
muita metafísica, e acaba em pregação. Desconstrói, porque
“lamentavelmente” pouco rigoroso8, um livro como O Suicídio de Émile
Durkheim, que foi considerado, por comum consenso, uma obra
antecipadora da localização científica da sociologia. Tem a impressão de
atravessar uma floresta virgem e de ser chamado para fazer um trabalho
pioneiro. Mas justamente por isso se dá conta imediatamente de que a nova
empreitada, na qual ele está preste a embarcar, exige tempo e paciência. Em
14 de junho de 1897, escreve ao amigo Maffeo Pantaleoni: “Quanto à
8
Veja em O Suicídio de E. Durkheim, publicado na “Zeitschrift für Sozialwissenschaft”, I, 1898, in
Escritos sociológicos, ob. cit., p. 204.
Sociologia, vai levar alguns anos até que eu a publique. É necessário antes
meditar, trabalhar, recolher os documentos etc. etc.” 9. Enquanto isso, ele
começa a preparar o terreno, publicando na então recém-nascida “Revista
Italiana de Sociologia” alguns artigos de argumento sociológico: A tarefa
da sociologia entre as ciências sociais (1897), que é um discurso ao curso
lausanense, O problema da sociologia (1899), Uma aplicação das teorias
sociológicas (1900), que contém, em poucas palavras, os principais temas
do futuro tratado, que, aliás, o autor disse esperar “que lhe seja dado
terminá-lo e publicá-lo”10.
Lendo os livros dos sociólogos e dos reformadores sociais, Pareto ficava
cada vez mais convencido de que a principal razão do atraso da ciência
social residia no fato de que quem aplicava a sua engenhosidade se deixava
geralmente conduzir mais pelo sentimento do que pela observação das
coisas. Para bem aprender a lição dos fatos, a maquiavélica “verdade
efetiva das coisas”, é necessário dar-se conta de que os fenômenos sociais,
à diferença dos naturais, se apresentam ao investigador sob dois aspectos,
um aspecto objetivo, que é o fato real, e um aspecto subjetivo, que é a
forma sob a qual a mente humana o representa, e é frequentemente, por
múltiplas razões, uma representação deformada. Muito frequentemente, os
sociólogos confundiam a representação subjetiva com o fenômeno
objetivo; a interpretação que os outros sociólogos antes deles, ou em geral
os que transmitiam a memória dos fatos, davam do que tinha acontecido
com a coisa acontecida; e as justificações póstumas com os reais
movimentos da ação. Para fazer com que a ciência progrida, era necessário,
antes de tudo então, quebrar a crosta da representação subjetiva do
fenômeno social e chegar ao ponto de captar o fenômeno objetivo por atrás
dela: consequentemente, uma sociologia científica deveria, antes de tudo,
limpar o campo de pesquisa de todas as teorias pseudocientíficas
precedentes.

5. As teorias lógico-experimentais e as teorias não lógico-experimentais

Entre estas teorias, predominavam, nos anos da virada de século, pelo vigor
polêmico, pela força persuasiva e pela pretensão de se valer como ciência,
9
Cartas a Maffeo Pantaleoni, ob. cit., II, p. 83.
10
Uma aplicação das teorias sociológicas, na “Revista Italiana de Sociologia”, IV, 1900, p. 402 (agora
também em Escritos sociológicos, ob. cit., p. 233).
as teorias socialistas. Eram os anos em que eclodira na Itália, entre Antonio
Labriola e Benedetto Croce, com a intervenção de Giorgio Sorel (de todos
e entre estes personagens, Pareto foi um sincero admirador), o primeiro
grande debate sobre marxismo teórico. Como prova da crítica das teorias
não científicas, Pareto optou pelas teorias socialistas.
Em setembro do ano acadêmico 1898-1899, elabora um curso sobre a
história das doutrinas socialistas antigas e modernas. Em pouco menos de
dois anos de trabalho, foi capaz de escrever e publicar Les systèmes
socialistes, em dois volumes, respectivamente em 1902 e 1903. Embora
prescindindo do fato de que a Introdução contém um resumo do futuro
tratado, e ali se fala pela primeira vez das élites e da sua circulação, estes
dois volumes densos devem ser considerados, no longo itinerário rumo à
obra conclusiva, como uma etapa obrigatória. Por meio de uma
amostragem de doutrinas extremamente variada e duvidosa, Pareto coloca
sob prova de fogo (um fogo sempre crepitante mesmo quando não
consegue ser destrutivo) a sua segunda grande dicotomia, aquela entre
teorias lógico-experimentais e teorias não lógico-experimentais (preste
atenção na simetria de formulação entre esta dicotomia e a precedente).
Esta terminologia, para dizer a verdade, aparecerá apenas no Tratado; mas
a coisa mais importante já se mostra clara desde já. Criticando as teorias
não científicas, Pareto dá uma aula de metodologia.
Uma teoria para ser científica deve respeitar duas regras fundamentais: a)
valer-se de um material experimental, isto é, dos fatos objetivamente
verificados; b) relacionar estes fatos entre si com raciocínios rigorosos.
Pertencem, portanto, à vasta categoria das teorias não lógico-experimentais,
as que se fundam em fatos objetivos mas os relacionam com raciocínios
distorcidos, as que raciocinam corretamente sobre fatos, que, porém, não
foram corretamente verificados, e naturalmente as que não são nem
factualmente nem logicamente corretas. Por outro lado, as teorias lógico-
experimentais são as que superam vitoriosamente a prova dos dois critérios
de verdade, o critério da verdade empírica e o da verdade ou o da validade
lógica; as teorias não lógico-experimentais são as que não conseguem
superar nem uma, nem outra ou nem todas as outras duas. Isso não significa
que não possam ser avaliadas com outros critérios, como são as da força
persuasiva e da utilidade social. Aliás, Pareto exprime repetidamente a sua
firme convicção de que uma teoria falsa tenha geralmente muito mais
eficácia e frequentemente seja mais útil socialmente do que uma teoria
factual e logicamente verdadeira. Uma vez que os homens, geralmente, não
se comportam de um modo racional, as doutrinas que fazem apelo aos seus
sentimentos têm maior probabilidade de serem acolhidas do que as teorias
científicas que contam com a sua capacidade de observação e de raciocínio.
Dessa forma, as duas grandes dicotomias se relacionam perfeitamente uma
com a outra.

6. A sociedade como sistema global

Depois da publicação do Systèmes socialistes, a elaboração do Trattado


prossegue sem trégua, salvo a interrupção devida à redação do Manual de
economia política, que sai na edição italiana de 1906 e na edição francesa
de 1909, com um longo capítulo intitulado Introduzione alla scienza
sociale, e dedicado, uma vez mais, à crítica das teorias sociais que,
sobrepondo as relações subjetivas às relações objetivas, têm, até agora,
tornado impossível o desenvolvimento da sociologia como ciência. Em
1904, Pareto participa do segundo Congresso internacional de filosofia em
Genebra com um relatório sobre o tema O individual e o social. Em 1905,
escreve um Programme et somaire du Cours de sociologie, em que, depois
de ter declarado, de forma polêmica, o desejo de “fazer um estudo
exclusivamente científico”11, propõe-se a examinar quatro pontos: a) qual é
a natureza dos fenômenos sociais; b) qual foi a sua evolução; c) quais são
as mútuas dependências; d) como a modificação de um destes fenômenos
repercute sobre outros. Entre os pontos deste programa e o corpo do
tratado, que saiu onze anos depois, o fosso ainda é enorme: basta dizer que
não se compara nenhuma referência à teoria dos resíduos e das derivações
que ocupa o corpo central da obra maior. Mas ali aparece reiterada, pela
primeira vez, com firmeza, a tese fundamental que dá à obra paretiana o
caráter de uma verdadeira mudança na história da sociologia. “Geralmente,
confunde-se – ele diz – a sociologia com o estudo do desenvolvimento ou,
como foi dito, da evolução da sociedade humana”. E, logo depois,
especifica: “Esta não é senão uma parte da ciência: é uma descrição da
dinâmica dos fenômenos. A outra parte, muito mais importante, consiste no
estudo das mútuas dependências destes fenômenos”12. No Programme, o
tema da evolução da sociedade ocupa apenas um capítulo em cinco deles.
Iniciando o capítulo dedicado ao tema da mútua dependência dos

11
Publicado primeiramente pela G. Sensini, em Correspondência de Vilfredo Pareto, Pádua, Cedam,
1948, p. 143-162; portanto, com o acréscimo das Questões de sociologia, por G. Busino, Sommaire du
cours de sociologie suivi de Mon Journal, Genebra, Droz, 1967; trad. it., em Escritos sociológicos, ob.
cit., p. 347-371, dos quais cito. O trecho citado está na p. 348.
12
Ob. cit. p. 348.
fenômenos sociais, observa que “esta teoria, que seria a mais útil, é a que,
até o presente, foi a menos estudada”13.
Nesta contraposição entre o problema da mútua dependência dos
fenômenos sociais e o problema da evolução da sociedade, está claramente
esboçada a concepção paretiana da sociedade como sistema global. Pareto
parece dizer, até aqui, que os sociólogos, atraídos pelo problema, talvez
mais sugestivo e certamente mais apelativo, das várias fases através das
quais se passou das sociedades primitivas às sociedades evoluídas ou
civilizadas, se esqueceram de estudar quais são os elementos constitutivos
de uma sociedade e como uns reagiram com os outros, para permitir a eles
sobreviver e se desenvolver; deram maior ênfase aos problemas do
desenvolvimento do que aos problemas do equilíbrio. De Comte a Spencer
e até a Durkheim, os sociólogos demonstraram ser os herdeiros diretos dos
filósofos (ou dos teólogos) da história: os Princípios de sociologia de
Spencer, que Pareto conhecia bem e que, por algum tempo, foram uma das
principais fontes de seus conhecimentos sociológicos, tinham sido uma
grande tentativa de descrever a evolução social como último momento, mas
bem concatenado com os momentos precedentes, da evolução natural. Na
obra de Marx, hoje, tende-se a pôr em relevo também o aspecto da teoria
do sistema social, em particular da forma de produção capitalista (por parte
dos intérpretes que vão em direção à redescoberta de Marx partindo das
teorias estruturalistas); mas, por marxismo, entende-se principalmente – e
certamente se entendia à época de Pareto – uma teoria do desenvolvimento
histórico, sobretudo do desenvolvimento econômico da sociedade feudal à
sociedade capitalista, da sociedade capitalista à sociedade socialista.
Erigindo a tema principal da sociologia o do sistema social, Pareto
imprimia aos estudos sociológicos um direcionamento que fazia coro com
o que acontecia em outras áreas do conhecimento, a exemplo da linguística
e do direito. Em 1916 (o mesmo ano da publicação do Tratado paretiano),
foi publicado postumamente o Cours de linguistique générale de Ferdinand
Saussurre14, que está na origem da linguística estrutural. Entre 1910 e 1920,
Hans Kelsen elabora, com um grupo de discípulos, uma teoria do direito
como sistema normativo. Mas não se deve esquecer a tentativa de construir
uma teoria sistemática do direito – tentativa sob certos aspectos análoga à
de Kelsen, apesar de permanecer em grande parte ignorada – do colega

13
Ob. cit., p. 367.
14
Na introdução aos Escritos sociológicos, ob. cit., Busino observa “o quanto Pareto tinha sido
incardinado no clima espiritual dominado por De Saussurre.
lausanense de Pareto, Ernest Roguin, que é um dos poucos juristas citados
com honra no Tratado15.

7. A publicação do Tratado e os últimos escritos

Entre 1906 e 1912, Pareto abandona o magistério de economia política para


dedicar-se exclusivamente a escrever o Tratado que, por meio de uma
contínua proliferação de ideias sempre novas e de uma contínua pesquisa
de sempre novas fontes de documentação, cresce dia a dia em suas mãos.
Renuncia quase que completamente à colaboração, até então muita assídua,
a revistas e jornais políticos. Como faz transparecer nas dolorosas
correspondências aos seus amigos, a redação desta obra se torna, de ano em
ano, a razão de sua vida e também de seu desespero. Em 1910, escreve de
forma bem rápida e em 1911 publica um divertido panfleto contra os
fanáticos adoradores da virtude, perseguidores da literatura imoral, a quem
ele chama, com um neologismo, de “virtuosistas”: Le mythe vertuiste et la
littérature immorale. Não se tratou de uma interrupção do trabalho
principal, mas apenas uma digressão que se enquadram no desenho geral da
sociologia que estuda, como veremos daqui a pouco, os “resíduos”, isto é,
as manifestações dos elementos fundamentais que determinam o
movimento social, por meio das “derivações”, isto é, por meio dos
raciocínios mais ou menos sofísticos com que foram transmitidos e
justificados. As doutrinas “virtuístas” são um bom exemplo de derivações,
que revelam um poderoso resíduo, o sexual. O Tratado é cheio de
digressões muito semelhantes às do texto contra o “virtuísmo”.
A redação do Tratado termina no final de 1912; mas por causa do tamanho
da obra, das dificuldades que ocorreram depois da eclosão da guerra (a obra
foi publicada na Itália, ainda que o autor continuasse a viver na Suíça), da
insatisfação de Pareto que, ao corrigi-lo, acrescenta e reescreve algumas
coisas, da redação dos preciosíssimos indicadores, indispensáveis para
orientar-se naquele labirinto, a correção dos esboços dura quatro anos.
Finalmente, em 20 de novembro de 1916, pôde ele escrever a Pantaleoni:
“A propósito, o Barbera publica a minha Sociologia no próximo dia 25.

15
Sobre as relações entre Pareto e Roguin, cf. G. BUSINO, Contribuições à história do pensamento
político contemporâneo. 1. Ernest Roguin e Vilfredo Pareto, em Cahiers Vilfredo Pareto, n. 4, 1964, p.
189-210.
Agradando a Deus, à censura e aos serviços de postagem, você receberá,
algum tempo depois, um exemplar dela”16.
A gestação foi longa e difícil; mas veio à luz um trabalho grandioso. Dois
volumes de grosso formato com mais de mil e setecentas páginas, divididas
em dois mil seiscentos e doze parágrafos. E, no entanto, a máquina que
estava agora em movimento não parou mais. Com a ajuda de Pierre Boven,
seu discípulo, Pareto preparou, logo em seguida, a tradução francesa, que
foi publicada em dois volumes, o de 1917 e o de 1919, com muitas
correções e aditamentos, especialmente no segundo volume; então a
segunda edição italiana em três volumes foi publicada quase sem
modificações relativamente à edição francesa, alguns meses depois da sua
morte, em 1923.
Pareto passou os últimos anos da sua vida comentando os grandes e
trágicos acontecimentos da sociedade europeia – a Primeira Guerra
Mundial, a Revolução Soviética e o advento do fascismo na Itália –
trabalhando como chave de interpretação (a seu juízo, infalível) as teorias
do tratado, mostrando que a maior parte das suas previsões aconteceram,
porque estavam, afinal, fundadas em uma ciência exata da sociedade. Parte
desses ensaios e artigos ele mesmo reuniu em dois volumes, Fatos e
teorias (1920) e Transformação da democracia (1921). Considerava o
modo com o qual a guerra tinha acabado como uma vitória da plutocracia
demagógica (que se beneficia da participação das massas no poder) contra
a plutocracia militar e burocrática (que apoia o próprio poder em grandes
aparatos do exército e da burocracia). Mas também o poder da plutocracia
demagógica, não obstante a arte (que ele admirava sobretudo em Lloyd
George e Giolitti) de “saber tornar inócuas as medidas que aparentemente,
em seu próprio prejuízo, deve tomar”17, talvez tivesse chegado ao
crepúsculo. Interpreta as lutas sociais do imediato pós-guerra como um
fenômeno talvez inapelável de “desintegração do poder central”, como um
sinal da crise do parlamentarismo. Ele achava que a humanidade estivesse
no limiar de um novo medievo. E em abril de 1922 se perguntava: “Resta
saber até quando esta desintegração continuará, se o futuro não tiver na
manga um César, um Otávio Augusto, um Bonaparte, ou outros homens
semelhantes”18. O advento do fascismo não o pega de surpresa. Tornava-se
realidade uma das teses da qual ele se orgulhava: a inelutável circulação
das elites. Em um artigo publicado em 10 de outubro de 1922, escreveu: “o

16
Cartas a Maffeo Pantaleoni, ob. cit., III, p. 194.
17
Dois homens de estado (1921), em Escritos sociológicos, ob. cit., p. 1069.
18
Previsão dos fenômenos sociais (1922), em Escritos sociológicos, ob. cit., p. 1139.
ciclo da plutocracia demagógica não pode se prolongar por muito tempo.
Cedo ou tarde, a circulação das elites lhe porá termo”.19

8. Os resíduos e as derivações

No Tratado, surge e se destaca a terceira dicotomia fundamental do


pensamento paretiano, aquela entre resíduos e derivações. Na verdade, o
Tratado pode ser considerado como um longo, mas nem sempre retilíneo,
complexo (bem como complicado) discurso em torno dos pressupostos
teóricos, das fontes materiais, da construção conceitual, das possíveis
utilizações para uma teoria do sistema social e desta grande dicotomia.
Após um capítulo preliminar sobre o método científico, a obra segue os
passos da primeira dicotomia, ou seja, da distinção entre ações lógicas e
não-lógicas (às quais são dedicados o segundo e o terceiro capítulos). Dado
que a melhor maneira para a identificação e a descrição das ações não-
lógicas é a de partir das suas manifestações verbais, que são as teorias não-
lógico-experimentais (a que se refere a segunda dicotomia), a obra procede
a uma análise de um material abundante de teorias de toda espécie, que
foram separadas nas teorias que transcendem a experiência (capítulo
quarto) e nas teorias pseudocientíficas (capítulo quinto), segundo as quais a
intervenção dos princípios não experimentais está explícita ou apenas
implícita e, portanto, mais ou menos dissimulada.
A conclusão desta análise é que as teorias não lógico-experimentais se
compõem de duas partes: uma parte mais variável, que consiste em um
complexo de argumentações quase lógicas com as quais os homens tendem
a dar uma justificação racional, a raciocinar post factum, os próprios
instintos ou sentimentos; uma parte mais constante, por meio da qual estes
instintos ou sentimentos foram expressos. À primeira, Pareto dá o nome de
derivação; à segunda, de resíduos, na medida em que são o que restou de
toda teoria depois de ela ter sido depurada pelos argumentos de justificação
ou, para seguir uma das metáforas preferidas de Pareto, de ter-lhe sido
retirada a casca de “verniz lógica”.
Aos resíduos e às derivações, é dedicado o coração do Tratado: seis de
treze capítulos, cerca da metade de toda a obra. Os resíduos estão divididos
em seis classes e a sua abordagem se desenvolve em três capítulos (o sexto,
o sétimo e o oitavo); as derivações estão divididas em quatro classes e a sua

19
O futuro da Europa (1922), em Escritos sociológicos, ob. cit., p. 1153.
abordagem se estende por dois capítulos (o nono e o décimo). O longo e o
denso capítulo seguinte (o décimo primeiro) examina, concretamente, o
modo das suas ações, por meio de um estudo da sua respectiva importância,
das relações de recíproca influência entre uns e outros, das consequências
que derivam das suas várias combinações para a composição, o
desenvolvimento e a crise de um sistema social; e põe, dessa forma, os
pressupostos para a elaboração de uma teoria da “forma geral da
sociedade”, para a qual é dedicado o penúltimo capítulo, que também é o
capítulo fundamental e, em certo sentido, conclusivo. O último capítulo (o
décimo terceiro) é uma espécie de apêndice histórico, em que a teoria do
sistema social foi verificada por meio de uma investigação histórica, no que
diz respeito particularmente à história romana (a Pareto, constantemente, é
sugerida a analogia entre a crise da sociedade burguesa e a decadência da
sociedade antiga).
Não é fácil afirmar os critérios com base nos quais Pareto chegou à
classificação dos resíduos e das derivações. Das seis classes de resíduos,
duas estão ligadas às duas categorias fundamentais da sociologia, a
mudança (“o instinto das combinações”) e a conservação (“a persistência
dos agregados”); duas, aos dois polos de atração de todo sistema social, o
indivíduo (“integridade do indivíduo e suas dependências”) e a sociedade
(“resíduos em relação com a socialidade”); uma, em um nível mais baixo,
na medida em que exprime mais claramente aos outros uma necessidade
biológica, está sozinha (“resíduo sexual”) e foi, portanto, completamente
negligenciada na sucessiva análise sociológica e histórica do sistema social;
uma outra parece ter sido introduzida unicamente para permitir ao autor
fazer algumas variações sobre o tema da exaltação religiosa (“necessidade
de manifestar com atos externos os sentimentos”). As quatro classes de
derivação parecem se distinguir pelo grau de maior ou menor
complexidade: passa das derivações, que consistem em uma pura e simples
afirmação, para as que fazem apelo à autoridade (de um ou mais homens,
da tradição ou de uma entidade divina), para as que fazem apelo a valores
geralmente compartilhados, enfim, para as que se valem das manipulações
verbais.
Qualquer que seja a validade desta classificação (sobre a qual nenhum
crítico conseguiu, até agora, dizer uma só palavra com clareza), o ponto
central a ser considerado é que, para Pareto, a forma de uma sociedade, isto
é, um sistema social, é caracterizada pelos instintos ou sentimentos
primordiais revelados pelos resíduos e não pelas derivações. Os resíduos
manifestam os elementos simples de que se constituem todas as sociedades,
o dado natural, não ulteriormente decomponível e condicionável. Quem
quiser compreender o mecanismo e, portanto, os funcionamento de um
dado sistema social deverá procurar identificar estes elementos simples, por
meio de vários modos com os quais os homens se expressam, prestando
atenção para distinguir as racionalizações, que são a parte mais variável e
menos importante das manifestações dos instintos ou dos sentimentos dos
quais emerge ou deve emergir, a partir do que os homens dizem o que os
homens são na realidade, e como se comportam nas suas relações
recíprocas.

9. O princípio da heterogeneidade social e a teoria das “elites”.

Dado que estes elementos comuns a todo sistema social, isto é, os instintos
e os sentimentos, são, como foi visto, múltiplos e variadíssimos entre si,
aliás, são, muitas vezes, contraditórios (como o instinto das combinações e
o da persistência dos agregados) e, além disso, são variada e desigualmente
distribuídos (mas sobre o porquê dessa desigual distribuição, Pareto não
disse nada de exato e a constata com um dado, de fato, imodificável), disso
se segue que toda sociedade é heterogênea. Neste particular, surge um dos
princípios fundamentais da sociologia paretiana, o princípio da
heterogeneidade social: “Agrade ou não agrade a certos teóricos, o fato é
que a sociedade humana não é homogênea, que os homens são diferentes
física, moral e intelectualmente” (§ 2025)20. A desigualdade é aumentada
pelo fato de que, em todo ramo da atividade humana, há alguns que têm
indicadores mais altos e outros têm indicadores mais baixos de capacidade.
Os que têm os indicadores mais altos constituem, em todo ramo de
atividade, a classe eleita, ou seja, a elite. Toda sociedade, portanto (e esta é
a última grande dicotomia paretiana), é composta por elites e por não-elites.
A fim de estudar a forma e o movimento de uma sociedade, Pareto
considera isolar, como mais relevante, a classe eleita do governo, a elite
política. “O mínimo que podemos fazer é dividir a sociedade em dois
estratos, isto é, um estrato superior, em que comumente estão os
governantes, e um estrato inferior, onde estão os governados” (§ 2047) 21.
Com esta delimitação, o problema do equilíbrio social se resolve no
problema das relações entre classe governante e classe governada.
20
V. p. 75.
21
V. p. 80.
Toda sociedade caracteriza-se pela diferente composição da classe
governante e da classe governada, e pela maneira diferente com que
acontece a mudança entre uma e outra.
A esta renovação Pareto dá o nome de “circulação das elites”. A circulação
das elites é o maior indicador das diversas formas que pode assumir o
equilíbrio social. Onde é escassa ou nula a circulação, o equilíbrio é
estático; onde é gradual e regular, isto é, onde acontece uma passagem
contínua de elementos da classe governada à classe governante, o equilíbrio
é dinâmico; quando a circulação se interrompe, gera-se um desequilíbrio,
que pode levar à substituição de um sistema social por um outro
(revolução). Não há nenhum sistema social destinado a durar além de um
certo limite de tempo. “As aristocracias não duram. Qualquer que seja a
causa delas, é incontestável que, depois de um certo tempo, desaparecem. A
história é um cemitério de aristocracia” (§ 2053) 22. De forma sintética e
imaginativa: “Por meio da circulação das classes eleitas, a classe eleita de
governo está em um estado de contínua e lenta transformação, ela escorre
como um rio e esta de hoje é diferente da de ontem. Às vezes, observam-se
repentinas e violentas perturbações, como seriam as inundações de um rio
e, depois, a nova classe eleita de governo volta a se modificar lentamente; o
rio, voltando ao seu leito, escorre novamente ao leito regular” (§ 2056)23.
Se, todavia, esta passagem de uma forma de sistema social para outra
acontece de acordo com uma certa ordem de progresso ou
desenvolvimento, não há o interesse de Pareto. Ao lado de uma teoria de
equilíbrio social não existe na obra parentiana uma teoria do progresso ou
do desenvolvimento: ao contrário, há continuamente uma controvérsia, ora
raivosa, ora zombeteira, contra todas as filosofias da história, ou mitologias
do progresso, que pretendem explicar onde começou e onde terminará o
curso histórico da humanidade. Todas as filosofias da história,
compreendidas as que pretendiam ser científicas, como o materialismo
histórico e o darwinismo social, são, em última análise, metafísicas, isto é,
não estão de acordo com os fatos. Daí deriva um outro dos princípios
fundamentais da sociologia paretiana: os fenômenos sociais têm uma forma
“de ondas”, isto é, vão para cima e para baixo, procedendo em sobe e desce
como as ondas do mar; estão, com outra não menos frequente expressão,
em contínua “oscilação”. As mais ilustres filosofias da história, do
Iluminismo ao positivismo, do positivismo ao marxismo, têm em comum a
ideia de que uma das linhas mais constantes e estabelecidas do progresso
passa da idade do mito à idade da ciência, dos reinos sacerdotais às
22
V. p. 82.
23
V. p. 82.
sociedades livres. Pareto não acredito nisso. Entre espírito religioso e
espírito científico, vê, no passar dos séculos e das sociedades, uma contínua
oscilação. “Em pouco mais de um século... vimos o ceticismo voltairiano,
ao qual se seguiu o humanismo de Rousseau, a religião revolucionária,
depois o retorno da religião cristã, portanto, de novo o ceticismo, o
positivismo e assim, de novo, começava uma nova oscilação no sentido
místico-nacionalista” (§ 1681). Daí, a conclusão: “Não se progride
consideravelmente, nem em um sentido nem em outro, por mais que se
diga respeito às opiniões sociais se deixem de lado as ciências naturais”
(id.).
Aos cientistas lógico-experimentais, que querem afirmar apenas o que pode
ser verificado com os fatos, a história parece, ao menos até prova em
contrário, uma repetição monótona, sem um desenho aparente, dos mesmos
fenômenos. Seria contraditório, de resto, atribuir uma solução racional de
uma questão cujos protagonistas são seres prevalentemente irracionais,
como exatamente são os homens.

10. Os diversos tipos de sistemas sociais

Uma vez individuados os elementos constitutivos de todo sistema social e


uma vez estabelecidos a forma e o movimento geral da sociedade, Pareto
considera ter posto as condições para a solução de dois problemas
fundamentais da sociologia: a tipologia das formas históricas dos sistemas
e a tipologia das mutações sociais. O primeiro problema está ligado à
composição da classe eleita; e o segundo, à circulação de uma classe eleita
à outra. Para resolver tanto o primeiro quanto o segundo problema, Pareto
se serve, de um modo particular, das duas primeiras classes de resíduos, a
que revela o instinto das combinações e a que revela os sentimentos em
favor da persistência dos agregados.
Conforme venha a prevalecer, ou um ou outro resíduo, as elites são
progressistas ou conservadoras, inovadoras ou tradicionais, tolerantes ou
autoritários, abertas ou fechadas. No que diz respeito à história passada, as
primeiras correspondem às sociedades mercantis, as segundas, às
sociedades agrícolas. Distinguindo, portanto, em toda a classe eleita entre
os diversos níveis, o da elite política (que a Pareto parece a parte mais
importante na determinação do equilíbrio social), o da elite econômica e o
da elite intelectual, a proeminência de um ou de outro resíduo distingue
entre os pares de elites: ao nível político, a elite que governa
principalmente com a astúcia e a que governa principalmente com a força
(as raposas e os leões de maquiaveliana memória); ao nível econômico (e
no que diz respeito particularmente às sociedades economicamente mais
avançadas do seu tempo), a classe dos especuladores, isto é, daqueles “cuja
entrada é essencialmente variável e depende da sensatez da pessoa ao se
encontrar diante do lucro” (§ 2233), incluindo particularmente os
empreendedores, e a dos rentistas, “cuja entrada é fixa e que, portanto,
pouco depende das engenhosas combinações que se podem engendrar” (§
2234), representados exemplarmente pelos proprietários de terra; ao nível
intelectual, os homens de ciência que tendem ao ceticismo e os homens de
fé que tendem ao dogmatismo.
Por mais que não exista nenhum tipo puro de sociedade, podem-se
conceber abstratamente dois tipos opostos de sociedade, aquela na qual, em
todos os três níveis, prevalecem os representantes da primeira categoria e
aquela na qual prevalecem os representantes da segunda. Tendencialmente,
pode-se dizer que uma sociedade em que a política está nas mãos das
raposas, é também uma sociedade de economia mercantil e de cultura
cética; uma sociedade em que a política é exercitada pelos leões é também
uma sociedade de economia estagnada e de fortes crenças religiosas. Na
realidade, os diversos tipos de elite se combinam de forma variada, dando
lugar às mais diversas combinações que é tarefa para a identificação e para
a descrição histórica.
A sociedade ideal deveria ser aquela em que, a todos e entre os diversos
níveis, os resíduos das duas classes fossem distribuídos de modo que
garantisse também a mutação (da qual provêm os primeiros) e a
continuidade (da qual provêm os segundos). Se essa sociedade ideal
existisse, a história não teria conhecido mudanças bruscas, crises,
convulsões e revoluções. Mas dado que nenhum sistema social durou, até
agora, além de um certo limite de tempo, ocorre que se deve ir buscar a
causa da mudança em razão de um defeito de circulação das classes eleitas.
É um fato o de que as classes eleitas tendem a perpetuar o seu domínio:
mas as primeiras, aquelas dos controladores, acabam, a longo prazo, por
lhes faltar energia suficiente para manter o controle do poder contra os
vários levantes que vêm de baixo; as segundas, aquelas dos agregadores,
acabam, a longo prazo, por lhe serem corroídos os impulsos inovadores que
vêm da classe submetida, muitas vezes guiadas pela deserção da classe
eleita. Um exemplo de crise do primeiro tipo é a decadência do império
romano; um do segundo tipo é a Revolução Francesa. As turbulências que
vão se avizinhando do tempo em que Pareto escrevia repetem o primeiro
mais do que o segundo esquema: um excesso de espírito das combinações
que gera, por reação, o instinto de conservação das massas; um excesso de
inovação econômica que suscita a coalização dos que vivem de renda fixa;
e, por fim, um excesso de espírito cético que provoca ondas de fanatismo
(se não mais religioso, pelo menos, político).
Tudo isso confirma, aos olhos de Pareto, que a mutação social depende do
modo diferente com que acontece a passagem da classe não eleita à classe
eleita. Em geral, os resíduos da classe primeira prevalecem na classe eleita,
enquanto os resíduos da classe segunda prevalecem na classe não eleita: daí
se segue que a combinação das duas classes de resíduos na classe eleita
acontece, segundo a medida que consente na mudança e na continuidade
(ou seja, o equilíbrio dinâmico), só quando há uma constante e regular
transfusão de indivíduos da classe não eleita na classe eleita. Quando se
detém esta transfusão, o sistema social tende a perpetuar um tipo uniforme
de classe eleita, isto é, entra naquela fase que, não consentindo mais em
uma mutação gradual, leva pouco a pouco à mutação radical. Composição e
circulação da classe eleita são, portanto, dois fenômenos estritamente
conexos. A boa composição é assegurada apenas pela boa circulação: onde
a circulação é defeituosa, a composição também é defeituosa.
Inversamente, onde a composição é defeituosa, também se detém a
circulação: neste sentido, pode-se muito bem dizer igualmente que uma boa
circulação é assegurada apenas por uma classe eleita não homogênea.

11. O equilíbrio social e a utilidade social

Uma teoria global da sociedade, como a de Pareto, compreende tanto uma


teoria do sistema social ou teoria do equilíbrio (dimensão sincrônica)
quanto uma teoria da transformação de um sistema em outro (dimensão
diacrônica) ou, em outras palavras, tanto uma teoria da forma ou estrutura
da sociedade, quanto uma teoria do movimento ou das mudanças sociais.
Para se ter uma ideia do lugar que a obra sociológica de Pareto ocupa na
história da sociologia do último século, pode ser útil fixar algumas
características que a distinguem no que diz respeito tanto ao primeiro
quanto ao segundo problema.
Quanto à teoria do sistema social, dos grandes modelos que detiveram o
domínio por séculos, o modelo orgânico e o mecânico, Pareto refuta o
primeiro e aceita o segundo. A imagem que ele tem do sistema social não é
a de um grande organismo, ou de um superorganismo, segundo a tradição
que vai de Comte a Spencer, mas de uma grande máquina, segundo a
tradição que provém do racionalismo utilitário do jusnaturalismo e deságua
na teoria do equilíbrio econômico da escola clássica (da qual Pareto é um
acólito). O primeiro modelo deriva da biologia; o segundo, da física. A
concepção orgânica da sociedade dá uma interpretação essencialmente
teleológica da sociedade, daí a importância que ela atribui aos fins últimos
(como, por exemplo, o da sobrevivência) a que estão subordinados todos os
fins intermediários. Uma concepção mecânica, como a de Pareto, coloca
ênfase mais sobre as relações de interdependência entre os vários
fenômenos sociais, sem se preocupar com os fins e muito menos com os
fins últimos, que em uma teoria lógico-experimental não são determináveis.
Em uma concepção orgânico-teleológica da sociedade, o conceito-chave é
o da função; em uma concepção mecânico-causal, tornada preponderante,
como na sociologia paretiana, o princípio da “mútua interdependência dos
fenômenos sociais”.
No que diz respeito ao problema dos fins da sociedade, Pareto introduz
uma discussão sobre o tema nos parágrafos do Tratado onde fala da
utilidade social. Enquanto em economia, faz sentido falar de utilidade
econômica (que Pareto chama “ofelimidade”24), não só do máximo de
ofelimidade para uma coletividade, em sociologia se pode falar de
utilidade, isto é, justamente de utilidade social, se se estabelecerem apenas
preliminarmente os valores com base nos quais se distingue o que se
considera socialmente útil ou inútil. Mas não há nenhum critério objetivo,
isto é, que pode ser obtido pelo método lógico-experimental, para
estabelecer, por exemplo, se é mais útil para uma sociedade a prosperidade
material ou o poder militar. Uma avaliação deste gênero depende do
“sentimento” e não da razão, em geral do sentimento ou dos interesses da
classe dominante, ainda que a classe dominante com derivações mais ou
menos sensatas tenha a intenção de fazer passar os próprios valores como
valores da sociedade inteira. Além disso, enquanto na economia se pode
falar apenas do máximo de utilidade-ofelimidade para uma coletividade,
em sociologia existe tanto o máximo de utilidade para uma coletividade
quanto o máximo de utilidade de uma coletividade. Com a primeira
expressão, Pareto sugere o máximo de utilidade de todos os membros da
coletividade; com a segunda, o máximo de utilidade da comunidade
24
Termo que designa o valor de uso de uma mercadoria, isto é, a capacidade de determinado bem
satisfazer necessidades humanas. Segundo a terminologia proposta pelo economista e sociólogo V. Pareto,
a utilidade, em sentido econômico, isto é, a vantagem e o prazer subjetivos, oriundos da posse ou da
fruição de um bem.
considerada como um todo, que pode não coincidir com o máximo de
utilidade de todos os seus membros. As classes governantes tendem
geralmente a fazer crer que o máximo de utilidade da coletividade (que é
geralmente o máximo de utilidade da própria classe governante) se
identifica com o máximo de utilidade para a comunidade.
Quando Pareto escrevia, a contraposição dos dois modelos era, em grande
parte, superada pelas maiores teorias dos seus contemporâneos: mais do
que para dois modelos alternativos para a interpretação dos fenômenos
sociais, a teoria sociológica vinha-se orientando pela utilização dos dois
modelos como esquemas interpretativos de duas formas diversas e
recorrentes da sociedade, seja a que tratava da grande dicotomia de Tönnies
(acolhida também por Max Weber) entre comunidade (ou sociedade de tipo
orgânico) e associação (ou sociedade de tipo mecânico), seja a que tratava
da grande dicotomia de Durkheim entre a sociedade fundada sobre a
solidariedade mecânica e a fundada sobre a solidariedade orgânica.
Partindo da economia política, que ele pusera, sob seus os olhos, como o
tipo mais perfeito de sociedade mecânica e como é a sociedade de mercado,
Pareto achava que podia utilizar o modelo mecânico para compreender o
sistema social na sua totalidade e não mostra nenhum interesse para o
estudo das formas comunitárias da sociedade, como a família, a sociedade
primitiva, as comunidades das aldeias, étnicas ou nacionais. O enorme
interesse que ele tem para os fenômenos religiosos decorre da importância
que atribui não à comunidade religiosa enquanto tal, mas à natureza dos
sentimentos que o fenômeno religioso revela e à parcela de participação
que eles têm na formação do equilíbrio social. Com isso, não se quer
afirmar que a teoria paretiana não tinha também ela a sua grande
dicotomia; mas trata-se de uma dicotomia que se forma, como já se disse,
no interior da concepção mecânica da sociedade, entre sociedade em que
prevalecem os instintos das combinações e aquela em que prevalecem os
sentimentos de persistência dos agregados. Em última instância, a primeira
se assemelha à Gesellschaft (sociedade) e a segunda, à Gemeinschaft
(comunidade) tönnesiana. Mas o critério de distinção é diferente: não está
tanto no tipo de vínculo que une os membros do grupo, mas sim na
diferente composição das classes dirigentes. O lugar central que a teoria da
classe eleita ocupa no sistema paretiano torna evidente sempre que se
considera que a dicotomia paretiana, a que permite a eles distinguir duas
formas históricas de sociedade, é fundada na distinção entre dois tipos de
classes eleitas.
12. O movimento ondulatório dos fenômenos sociais e a concepção
parentiana da história

Por mais que faça referência à teoria do desenvolvimento, Pareto mais do


que aceitar uma das teorias precedentes, como a vichiana dos cursos e dos
recursos, ou a Iluminista do progresso indefinido, ou a positivista da
evolução, ou a marxiana da passagem de uma forma de produção à outra
por meio da explosão das contradições entre as forças produtivas e as
relações de produção, refuta o próprio conceito de desenvolvimento.
Contrapõe a uma teoria do desenvolvimento histórico uma teoria cíclica,
segundo a qual, na história, se alternam, de acordo com um ritmo
absolutamente imprevisível, sociedades mais combinatórias e sociedades
mais agregativas. A única constante, que um estudioso das sociedades
humanas adepto do método lógico-experimental pode aceitar, é que toda
sociedade contém em si mesma os germes da sua degeneração e, portanto,
a uma sociedade de um tipo, sucede, ou é destinada a suceder, uma
sociedade de outro tipo. Como a hobbesiana, também a concepção
parentiana da história é uma concepção essencialmente diádica e, portanto,
não dialética, segundo a qual a história é uma passagem contínua de uma
tese a uma antítese ou vice-versa, sem que nunca se atinja o momento da
síntese. Além disso, diferentemente de Hobbes e, em geral, dos teóricos da
concepção cíclica da história, Pareto põe ênfase mais no momento da
desagregação da sociedade que está por terminar do que no momento da
constituição da sociedade nova. Diante da grandeza e da decadência das
nações, os dois temas dominantes da filosofia da história de todos os
tempos, Pareto é atraído muito mais pelo segundo do que pelo primeiro. O
seu olhar desencantado se debruça, com maior intensidade e com
complacência satisfeita, sobre as civilizações que morreram do que sobre as
que se recompuseram. Diferentemente de Saint-Simon, ele é um teórico e
um historiador das eras críticas e não das orgânicas: a decadência do
Império Romano, a crise do Medievo e a dissolução, que está acontecendo
sob seus olhos, da sociedade burguesa.
Sob este aspecto, o Tratado revela também a sua natureza ideológica. Não
obstante a pretensão de estar acima da refrega, Pareto imergiu até o
pescoço nas lutas e nas paixões políticas de seu tempo. Apresentou a sua
obra, em especial o Tratado, como uma análise objetiva dos fenômenos
sociais, que estuda fatos e não dá juízos de valor, que descreve e não
prescreve, como uma prova de ascetismo científico, como um exercício de
imperturbabilidade teórica e de indiferença prática. Mas foi muito pouco
imperturbável por estar sempre cheio de demônios da polêmica, foi muito
pouco indiferente por se encontrar sempre na primeira linha, ao tomar
posição sobre os assuntos do dia.
Na realidade, o distanciamento aparentemente desapaixonado também foi
uma atitude da qual não é difícil descobrir o contexto emotivo. Herança da
grande civilização liberal e burguesa do Dezoito, Pareto prevê,
prematuramente, o seu fim, fascinado e também horrorizado pela entrada
em cena dos que (as massas e os seus demagogos) a ela dariam o tiro de
misericórdia. Nos primeiros anos da sua batalha política, defende
obstinadamente os princípios da democracia política e do libertarismo
econômico contra os políticos corruptos e empreendedores econômicos que
vivem debaixo da proteção do estado. Nos momentos de maior tensão,
como em 1898, aceita inclusive a companhia dos socialistas aos quais,
aliás, combate do ponto de vista que considera rigorosamente científicas as
teorias sociais e econômicas. Mas quando concebe e escreve o Tratado,
diante da crise crescente da civilização burguesa (é iminente e, depois,
eclode a Primeira Guerra Mundial), já tinha assumido a atitude de quem
contempla o formigueiro humano com o distanciamento do entomologista.
Por trás desta atitude de observador imparcial, transparece, até muito
claramente, o estado de ânimo de quem se dá conta de que as ilusões dos
anos de militância foram irremediavelmente derrubadas e a civilização, da
qual ele foi, uma vez e outra, crítico e defensor, já se encaminhava para o
colapso, e uma nova classe eleita bate à porta. Para os que veem se
aproximar o fim de uma época, com a qual compartilhou os valores
fundamentais, a história pode muito bem parecer como uma sucessão de
ascensão e queda sem realizar e sem concluir algo, como o grande campo
em que agem as forças irracionais que se compõem e se recompõem sem
ordem e sem fim.

NOTA BIOGRÁFICA
Nascido em Paris, onde o pai, Raffaele, se exilou por motivos políticos, em
15 de julho de 1848, Vilfredo Pareto formou-se em Engenharia pela Escola
Politécnica de Turim em 1870. Empregado junto à Sociedade Anônima das
Estradas de Ferro, em Florença, de 1870 a 1873; empregado e, então,
diretor da Sociedade da Indústria do Ferro, depois Sociedade Italiana do
Ferro, em San Giovanni Valdarno de 1877 a 1890, candidata-se duas vezes
(em 1880 e em 1882) a eleições para a Câmara dos Deputados, mas não é
eleito. Patrocinador, a partir de 1874, da Sociedade Adam Smith, que se
propõe a favorecer o livre comércio, colabora ativamente, a partir de 1876,
com revistas de economia, como “L’Economista”, o “Journal des
Economistes”, o “Giornale degli Economiste”, onde mantém, entre 1891 e
1897, uma aguerrida coluna de Crônicas da vida política italiana. Com o
apoio do amigo Maffeo Pantaleoni, é nomeado professor de economia
política na Universidade de Lausane em 1893, no lugar deixado vago por
Léon Waldras. Em Lausane, tem início uma década de febril e fecundíssima
operosidade científica que o coloca em evidência entre os maiores
economistas de seu tempo: em 1896 e em 1897, publica, respectivamente, o
primeiro e o segundo volumes do Cours d’économie politique; em 1902 e
em 1903, respectivamente o primeiro e o segundo volumes de Les systèmes
socialistes; em 1906, o Manuale di economia politica (do qual foi
publicada uma edição francesa em 1909). Segue-se uma década de quase
silêncio, dedicada, em grande parte, à redação do tratado de sociologia,
idealizado desde o ano de 1897, ele foi designado pela Universidade de
Lausane para o cargo de professor, além de economia, de sociologia. Neste
intervalo de tempo, em 1911, depois de reiterados pedidos, aposentou-se.
Em 1916 publica, em dois volumes, o Tratado de Sociologia Geral (do
qual também é feita uma tradução francesa em dois volumes,
respectivamente em 1917 e 1919). Passa os últimos anos na vila de
Céligny, perto de Genebra, escrevendo, prevalentemente, como nos vinte
anos precedentes, quando residiu em Lausane, ensaios e artigos de crítica
política, reunidos em dois volumes, Fatos e teorias (1920) e
Transformação da democracia (1921). Morre em 21 de agosto de 1923,
com 75 anos de idade.

BIBLIOGRAFIA
Principais obras de Vilfredo Pareto:
Cours d’économie politique, em dois volumes, Lausane, F. Rouge, 1896-
1897; nova edição por G.H. Bousquet e G. Busino, Genebra, Droz, 1964.
Trad. it. De R. Fubini, Turim, Einaudi, 1942 (e reimpressões sucessivas).
Les systèmes socialistes, em dois volumes, Paris, V. Giard & E. Brière,
1902-1903; nova edição por G. Busino, Genebra, Droz, 1965. Trad. it. De
C. Arena, Turim, Utet, 1954.
Manuale d’economia politica, Milão, Società editrice libraria, 1906; nova
edição, por L. Amoroso, Roma, Bizzarri, 1965. Edição francesa: Manuel
d’économie politique, Paris, V. Giard & E. Brière, 1909; nova edição,
Genebra, Droz, 1966.
Trattado di sociologia generale, em dois volumes, Florença, Barbera, 1916;
segunda edição em três volumes, por N. Bobbio, Milão, Edizioni di
Comunità, 1964. Trad. francesa de Pierre Boven, em dois volumes, Paris,
Payot, 1917-1919; nova edição, por R. Aron, Genebra, Droz, 1968.
A maior parte dos escritos de argumento sociológico foi reunida no volume
Escritos sociológicos, de Vilfredo Pareto, por G. Busino, Turim, Utet,
1966. Para ser integrado com a coleção das Cronache italiane, por C.
Mongardini, Brescia, Morcelliana, 1965.
Para conhecer o personagem Pareto, os seus ódios e seus amores, são de
grande interesse as numerosas coleções de cartas, da quais as duas mais
importantes são:
Lettere a Maffeo Pantaleoni, em três volumes, por G. de Rosa, Roma,
Banca Nazionale del Lavoro, 1960.
Lettere ai Peruzzi, por T. Giacalone-Monaco, I vol. (1872-1877), II vol.
(1878-1900), Roma, Edizioni di storia e letteratura, 1968.

Escritos sobre Vilfredo Pareto

Por uma introdução geral ao conhecimento da vida e da obra de Pareto é


recomendável: G.H. Bousquet, Pareto (1848-1923), Le savant et l’homme,
Lausane, Payot, 1960; para uma iniciação ao estudo particularmente da
sociologia paretiana, G. Perrin, Sociologie de Pareto, Paris, Presses
Universitaires de France, 1966 e a excelente introdução de S. E. Finer à
antologia, Escritos sociológicos de V. Pareto, Londres, Pall Mall Press,
1966, p. 3-91; por uma ampla exposição do pensamento sociológico e
político paretiano, em referência também à crítica, D. Fiorot, O realismo
político de Vilfredo Pareto, Milão, Edizioni di Comunità, 1969. Para quem
quiser aprofundar analítica e criticamente o pensamento sociológico de
Pareto, passagem obrigatória é a leitura das páginas dedicadas a Pareto na
obra de T. Parsons, A estrutura da ação social, Bolonha, Il Molino, 1962,
p. 229-377 (a edição original inglesa é de 1937). Importante na história da
crítica de Pareto sociólogo, também: F. Borkenau, Modern Sociologists:
Pareto, Londres, Chapman & Hall, 1936; L. J. Henderson, Pareto’s
General Sociology: a Physiologist’s interpretation, Cambridge, Mass.,
Havard University Press, 1936; G. Eiserman, Vilfredo Pareto als
Nationallókonom und Soziologe, Tübingen, Mohr, 1961; R. Aron, Les
grandes doctrines de sociologie historique. II. Emile Durkheim-Vilfredo
Pareto-Max Weber, Paris, CDU, 1962, p. 99-174.
Por uma história do destino e da crítica da sociologia paretiana é
fundamental G. Busino, Introduction à une histoire de la sociologie de
Pareto, Genebra, Droz, 1966 (e sucessivas edições). Para completar com os
três ensaios sucessivos do mesmo autor: Cinquenta anos de estudos sobre a
vida e sobre a obra de Vilfredo Pareto (1960-1965), em “Nova Revista
Histórica”, LI, 1967, p. 621-686; Vilfredo Pareto entre a hagiografia e a
crítica, em Pesquisas históricas e econômicas em memória de Corrado
Barbagallo, Nápoles, Edizioni Scientifiche Italiane, 1970, vol. III, p. 255-
236; e Vilfredo Pareto sociólogo da burguesia e do desenvolvimento
capitalista?, em “Revista histórica italiana”, LXXXIII, 1971, p. 385-438.

DO “TRATADO DE SOCIOLOGIA GERAL”

1. Critérios de método

1. A sociedade humana é objeto de muitos estudos. Alguns constituem


disciplinas especiais, como, por exemplo, os que dizem respeito ao direito,
à economia, à história política, à história das religiões e semelhantes; outros
ainda não existem com nomes distintos. À sua síntese, que visa estudar, em
geral, a sociedade humana, pode-se dar o nome de sociologia.
2. Tal definição é muito imperfeita; talvez possa ser melhorada, mas não
muito, uma vez que, no final, de nenhuma ciência, nem sequer das diversas
ciências matemáticas, tem-se uma definição rigorosa; nem se pode ter,
porque o objeto do nosso conhecimento, só por causa da nossa
conveniência, se divide em várias partes, e tal divisão é artificial e varia
com o tempo. Quem saberia dizer onde estão as fronteiras entre a química e
a física, entre a física e a mecânica? E com a termodinâmica, o que
devemos fazer? Se quisermos colocá-la na física, não será de todo ruim; se
preferirmos dar a ela lugar na mecânica, não ficará estranho; e então, se
quisermos fazer dela uma ciência distinta, ninguém nos culpará por isso.
Mas, em vez de perder tempo para saber onde ela deve ter lugar, será
melhor conselho estudar os fatos dos quais ela se ocupa. Esqueçamos os
nomes e olhemos as coisas.
Semelhantemente, temos mais o que fazer do que perder tempo
investigando se a Sociologia é ciência autônoma ou não, se é outra coisa
senão a filosofia da história, com outro nome; ou pensando longamente
sobre os métodos a serem seguidos em seu estudo. Nós nos ocupamos da
busca das relações entre os fatos sociais e, então, deixamos que a tal estudo
se dê o nome que se queira, e que, com um método qualquer, seja obtido o
conhecimento dessas relações. A nós interessam os fins, muito pouco ou
quase nada os meios que para eles são invocados.
3. De duas maneiras bem distintas, podem-se expor os princípios que um
autor quer seguir, são elas: 1) Pode-se indagar se esses princípios são
aceitos como verdade demonstráveis; caso em que toda a sua consequência
lógica também se terá por demonstrada; 2) Podem-se, ao contrário, pôr
esses princípios como simples indicação de um caminho entre tantos outros
que se poderiam seguir; caso em que toda a consequência lógica não
demonstra nada de concreto, só sendo hipotética quanto e como as
premissas das quais se trata. Por isso mesmo, deverá abster-se de extrair
tais consequência, deixar-se-á de lado essa parte dedutiva do argumento e
as relações terão as suas conclusões feitas diretamente dos fatos.
Vejamos um exemplo. Suponhamos que te seja exposto o postulado de
Euclides em forma de um teorema. Tu deverás discutir sobre esse ponto;
porque, se tu aceitares o teorema, toda a geometria Euclidiana fica
demonstrada e não poderás opor-lhe mais nada. Mas suponhamos, ao
contrário, que te seja proposto o postulado como uma hipótese; tu não terás
mais o que discutir sobre isso; também permita que o geômetra extraia as
consequências lógicas dele; se estas estiverem de acordo com o concreto, tu
as aceitará, e se a ti elas não parecerem de acordo, tu as refutarás; a sua
liberdade de escolha não se vincula a uma concessão preventiva.
Considerem as coisas deste modo, existem outras geometrias não-
Euclidianas e tu podes estudá-las sem te vincular, de forma alguma, a sua
liberdade de escolha com base na realidade concreta.
Notemos que, se aos geômetras coubesse, antes de prosseguir nos estudos,
a faculdade de decidir se o postulado de Euclides corresponde, ou não, ao
concreto, a geometria sequer existiria hoje.
Estas observações são genéricas. Todas as ciências avançaram, na medida
em que os homens, ao invés de discutirem sobre os princípios, discutiram
os resultados. A mecânica celeste é constituída com a hipótese da lei da
atração universal. Hoje se duvida de que a atração pode ser diferente do
que se acreditava; mas quando também isso fosse apurado, por meio de
novas e melhores observações, os resultados aos quais a mecânica celeste
chegou permaneceriam os mesmos e seria necessário apenas fazer alguns
retoques e acréscimos.
4. Ensinados pela experiência, queremos pôr à prova o uso, no estudo da
Sociologia, dos meios que foram tão úteis ao estudo de outras ciências.
Assim, não pressupomos, como premissa de nosso estudo, nenhum dogma,
e a exposição dos nossos princípios é tão-somente uma indicação da via
que, entre muitas que se poderiam escolher, vamos seguir. Por isso, quem
conosco, por meio dela, se põe a caminhar, não a renuncia para seguir
outra.
Desde as primeiras cartas de um tratado de geometria, é imperioso ao autor
que faça saber a quem lê se ele vai expor a geometria de Euclides, ou, por
exemplo, a geometria de Lobacefschi; mas isso é um simples aviso; e se ele
expõe a geometria de Lobacefschi, não quer dizer que ele negue o valor da
outra. Neste sentido, e não diversamente, deve-se entender a declaração de
princípio que aqui estamos fazendo.
5. A Sociologia foi, até agora, quase sempre exposta dogmaticamente. Não
se enganem com o nome positiva impingido por Comte para a sua filosofia:
a sua Sociologia é tão dogmática quanto o Discours sur l’histoire
universelle de Bossuet é. São religiões diferentes, mas ainda sim religiões;
e sobre este gênero se encontram também as obras de Spencer, de De
Graef, de Letourneau e de inúmeros outros autores.
A fé, por sua própria índole, é exclusiva. Quem crê possuir a verdade
absoluta, não pode permitir que outras verdades existam no mundo. Por
isso, são, e devem ser, igualmente intolerantes, o cristão fervoroso e o
combativo “livre pensador”. Assim, para quem tem fé, um só caminho é
bom, todos os outros são perversos. O muçulmano não quererá jurar sobre
o Evangelho, nem o cristão sobre o Corão; mas quem não tem fé nenhuma,
juraria sobre este ou aquele livro, e também sobre o Contrato Social de
Rousseau, se isso agradasse aos crentes humanitários, e nem sequer
refutaria jurar sobre o Decamerão de Boccaccio, nem que fosse para ver a
cara que Bérenger e os fiéis da religião deste mestre fariam.
Não consideramos inúteis as Sociologias que partem de certos princípios
dogmáticos, da mesma forma que não acreditamos ser menos inúteis as
geometrias de Lobacefschi e de Riemann; somente exigimos que estas
Sociologias usem premissas e raciocínios claros e rigorosos o máximo
possível.
Das Sociologias “humanitárias” as temos aos montes, e são tais quase todas
as que agora estão sendo publicadas; das Sociologias metafísicas não
sofremos nenhuma falta e, entre elas, se inserem todas as “positivistas” e
todas as humanitárias; das Sociologias cristão-católicas e similares as
temos em pequeno número; seja a nós permitido, sem que queiramos
cometer injustiças a todas estas Sociologias, expor aqui uma
exclusivamente experimental, como a química, a física e outras ciências
semelhantes.
Pretendemos, assim, no que se segue, tomar somente por guia a experiência
e a observação.
Por amor à brevidade, onde a experiência não se opõe à observação,
nominá-las-emos como se elas fossem um só termo. Assim, onde dissermos
que uma coisa qualquer se manifesta para nós pela experiência, dever-se-á
entender: e pela observação; e onde discorrermos sobre ciência
experimental, dever-se-á entender: e de observação, e assim por diante.
6. Primeiramente, devemos procurar a classificação das proposições e das
teorias, uma vez que esta é uma operação quase indispensável para bem
conhecer um grande número de objetos variados.
Para não ficar repetindo toda hora: proposições e teorias, nominaremos
daqui para frente somente estas últimas, mas o que dissermos para estas,
valerá também para aquelas, se não for feita nenhuma menção em
contrário.
8. Procuraremos então classificar estas teorias, usando a mesma maneira
precisa que tínhamos se fôssemos classificar insetos, plantas e rochas.
Veremos, no entanto, que uma teoria não é um conjunto homogêneo como
seria um desses corpos que a química chama de simples, mas assemelha-se
mais a uma rocha, na composição da qual estão inúmeros corpos simples.
Em uma teoria, têm-se partes descritivas, afirmações axiomáticas,
intervenção de seres concretos ou abstratos, reais ou imaginários e tudo
isso pode ser entendido como elementos constitutivo da teoria. Há então
raciocínios lógicos ou pseudológicos, apelação aos sentimentos,
elaborações patéticas, intervenção de elementos éticos, religiosos etc., e
tudo isso pode ser entendido como o modo constitutivo com o qual se põem
em prática os materiais que formam o edifício denominado teoria.
Aqui já está, portanto, um aspecto sob o qual se podem considerar as
teorias.
8. No modo ora mencionado, foi construído um edifício, a teoria existe e
esse é um dos objetos que queremos classificar.
Podemos considerá-la sob vários aspectos:
1) Aspecto objetivo. Pode-se considerar a teoria independentemente de
quem a produziu e de quem a acolhe; dizemos objetivamente, mas sem dar
nenhum significado metafísico a este termo.
Para se ter em conta todas as possíveis combinações entre a índole do
material e a do nexo, devem-se distinguir as classes e as subclasses
seguintes:
CLASSE I. Materiais experimentais:
(Ia) Nexo lógico;
(Ib) Nexo não-lógico.

CLASSE II. Materiais não-experimentais:


(IIa) Nexo lógico;
(IIb) Nexo não-lógico.

As subclasses (Ib) e (IIb) contêm sofismas de lógica, ou raciocínios


artificiosos para induzir os outros ao erro. Para o estudo que agora fazemos,
frequentemente têm muito menos importância do que as subclasses (Ia) e
(IIa).
A subclasse (Ia) compreende todas as ciências experimentais; vamos
chamá-la de lógico-experimental. Dois outros gêneros podem ser
distinguidos:
(Ia1) Compreende o tipo rigorosamente puro, só com material experimental
e nexo lógico. As abstrações e os princípios gerais que lá se utilizam são
extraídos exclusivamente da experiência e a ela estão subordinados.
(Ia2) Compreende um desvio do tipo, que nos aproxima de (II).
Explicitamente, o material é sempre experimental e o nexo lógico, mas as
abstrações e os princípios gerais, assumem implícita ou explicitamente um
valor que transcende à experiência.
Este gênero poderia ser chamado de transição; outros semelhantes também
poderiam ser considerados, mas não têm a mesma importância deste. A
classificação ora feita, como qualquer outra que se pudesse fazer, está na
dependência dos nossos conhecimentos. Um homem que considera
experimentais certos elementos que um outro não os considera como tais,
porá na classe I uma proposição que o outro porá na classe II. Quem
acredita usar a lógica e erra, porá entre as proposições lógicas uma
proposição que um outro, que se apercebe do erro, porá entre os não-
lógicas.
Deve-se notar que a classificação agora feita é de tipos de teorias. No
concreto, uma dada teoria pode ser constituída por um misto destes tipos.
Isto é, uma dada teoria poderá ter partes experimentais e partes não-
experimentais, partes lógicas e partes não-lógicas.

2) Aspecto subjetivo. As teorias podem ser consideradas em relação a quem


as produz e a quem as acolhe; e, dessa forma, teremos de considerá-las sob
os aspectos subjetivos que se seguem.
a) Causas para as quais, por um dado homem, se produz uma dada teoria.
Porque um dado homem alega que A é igual a B? Vice-versa: Se ele alega
isso, por quais causas é movido?
b) Causas pelas quais um dado homem acolhe uma dada teoria. Porque um
dado homem aceita a asserção: A é igual a B? Vice-versa: Se ele aceita tal
asserção, por quais causas é movido?
Tais perguntas, dos simples indivíduos, se estendem à coletividade.
3) Aspectos de utilidade. Convém não confundir a teoria e o estado de
ânimo, ou seja, os sentimentos que ela manifesta. Certos homens produzem
uma teoria porque têm certos sentimentos e, então, esta teoria opera, por
sua vez, sobre estes homens ou sobre os outros, para produzir, reforçar e
modificar certos sentimentos.
I) Utilidade, ou dano, dos sentimentos manifestados por uma teoria:
(Ia) Por quem a produz;
(Ib) Por quem a acolhe.
II) Utilidade ou dano de uma dada teoria:
(IIa) Por quem a produz;
(IIb) Por quem a acolhe.
Estas considerações também se estendem à coletividade.
Podemos, então, dizer que consideraremos as proposições e as teorias sob o
aspecto objetivo, subjetivo e da utilidade individual ou social. Mas o
significado de tais termos não deve ser extraído de seu significado
etimológico ou de seu sentido vulgar, mas exclusivamente das definições
dadas no texto.
9. Em suma, dada, por exemplo, uma proposição expressa por A igual a B,
devemos resolver as seguintes perguntas:
1) Aspecto objetivo. Tal proposição está, ou não está, de acordo com a
experiência?
2) Aspecto subjetivo. Por que certos homens dizem que A é igual a B? Por
que outros homens não acreditam nisso?
3) Aspecto de utilidade. Qual utilidade têm os sentimentos manifestados
pela proposição A=B, por quem enuncia a proposição? Por quem a acolhe?
Qual utilidade tem a mesma teoria, segundo a qual A=B, para quem a
produz? Para quem a acolhe?
Em um caso extremo, responde-se sim à primeira pergunta e, depois,
acrescenta, no que diz respeito aos outros: “Os homens dizem, acreditamos
que A=B, porque isso é verdadeiro; os sentimentos por tal modo
manifestados são úteis porque verdadeiros; a mesma teoria é útil porque
verdadeira”.
Neste caso extremo, encontram-se proposições da ciência lógico-
experimental e, dessa forma, verdadeiro quer dizer de acordo com
experiência. Mas ali se encontram, além disso, proposições que não
pertencem, de todo, à ciência lógico-experimental e, em tal caso,
verdadeiro não quer dizer de acordo com a experiência, mas exprime outra
coisa: muito frequentemente um simples acordo com os sentimentos de
quem defende esta tese.
Veremos, pelo estudo experimental que será realizado nos capítulos
seguintes, que nas matérias sociais são frequentes os seguintes casos: a)
Proposições de acordo com a experiência, enunciadas e acolhidas mediante
acordo com os sentimentos, os quais são úteis ou nocivos aos indivíduos e
à sociedade; b) Proposições de acordo com a experiência, rejeitadas porque
em desacordo com os sentimentos, que, se fossem acolhidas, seriam
nocivas à sociedade; c) Proposições que não estão de acordo com a
experiência, enunciadas e acolhidas mediante acordo de sentimentos, que
são úteis, em alguns casos utilíssimos aos indivíduos e à sociedade; d)
Proposições que não estão de acordo com a experiência, enunciadas ou
acolhidas, mediante acordo de sentimentos, que são úteis a certos
indivíduos e nocivos a outros, úteis ou nocivos, à sociedade. De tudo isso,
não podemos saber nada a priori; vamos solicitar à experiência que nos
ensine.
10. Sob o aspecto objetivo, dividimos as proposições ou as teorias em duas
grandes classes, a primeira das quais não sai, de forma alguma, do campo
experimental, a outra que transcende, de qualquer forma, este campo. É
essencial, se se quiser raciocinar com um pouco mais de rigor, mantê-las
em campos bem distintos, porque, em substância, são coisas heterogêneas,
que, de nenhuma forma, nunca devem ser confundidas e que nem sequer
podem ser comparadas.
Cada uma dessas classes tem o seu próprio modo de raciocinar e, em geral,
o seu próprio critério para ser dividida em dois gêneros; um dos quais
compreende as proposições que estão de acordo logicamente com o critério
escolhido e que, como tal, é “verdadeiras”; o outro gênero que compreende
as proposições que não podem estar de acordo com tal critério e que, como
tal, é “falsas”. Estes termos: “verdadeiras” e “falsas” estão, portanto, em
estreita dependência do critério escolhido. Se se quisesse dar a eles um
sentido absoluto, sair-se-ia do campo lógico-experimental, para entrar no
campo metafísico.
O critério de “verdade” para a primeira classe de proposições é obtida
unicamente pela experiência e pela observação; o critério de “verdade”
para a segunda classe está fora da experiência objetiva; pode-se ter em uma
revelação divina; nos conceitos que, como se diz, o espirito humano busca
por si mesmos sem o socorro da experiência objetiva; do consenso
universal dos homens etc.
Não se deve nunca ficar discutindo sobre os nomes; assim, se se der outro
significado aos termos “verdade” e “ciência”, agradar a alguém, da nossa
parte não oporemos a mínima dificuldade; a nós, basta que se faça conhecer
claramente qual é o significado que se pretende dar aos termos que utiliza
e, principalmente, qual é o seu critério para saber se uma proposição é
“verdadeira” ou “falsa”.
11. Todas as ciências naturais, umas mais, outras menos, apontam, pouco a
pouco, os seus estudos em direção ao que as aproxima do tipo lógico-
experimental (Ia1); e a nós ocorre declarar que pretendemos estudar aqui,
do mesmo modo, a Sociologia, isto é, procurando reduzi-la àquele tipo
lógico-experimental.
12. O caminho que queremos seguir, na presente obra, é, então, o seguinte:
1) Não pretendemos nos ocupar, de modo algum, da “verdade” intrínseca
de nenhuma religião, fé, crença metafísica ou moral e assim por diante.
Vamos fazer desse jeito: não seremos movidos por nenhum sentimento
sobre estas coisas, mas só porque são outras as fronteiras nas quais nos
agrada permanecer.
Religiões, crenças e afins, nós as consideramos apenas do ponto de vista
externo, na medida em que são fatos sociais, depois de feita a abstração
inteiramente de seu valor intrínseco. A proposição “A deve ser igual a B, a
despeito de qualquer princípio superior à experiência”, refoge, pois,
completamente de nosso exame; mas estudamos como tal crença nasce e
cresce e quais relações mantém com os outros fatos sociais.
2) O campo em que nos movemos é, portanto, exclusivamente o da
experiência e o da observação. Estes termos, nós os utilizamos no sentido
que eles têm nas ciências naturais, como a astronomia, a química, a
fisiologia etc., e não para indicar as outras coisas que se querem indicar
agora com os termos: experiência íntima, cristã, e que simplesmente
renovam, mudando apenas o nome, a auto-observação dos antigos
metafísicos. Tal auto-observação, nós a consideramos somente como fato
externo, nós a estudamos como fato social, não como nosso fato.
3) Como não invadimos o campo dos outros, não queremos permitir que o
nosso seja invadido. Consideramos tola e vã a obra que opõem a
experiência aos princípios que da experiência transcendem; mas também
rejeitamos o domínio desses princípios sobre a experiência.
4) Nós nos movemos dos fatos para compor a teoria e procuramos sempre
não nos distanciar dos fatos o mínimo que seja. Não sabemos o que é a
essência das coisas e não nos importamos com isso, até porque tal
investigação escapa do nosso campo de estudo. Procuramos as
uniformidades que os fatos apresentam, sendo que, além do mais, às tais
uniformidades damos o nome de lei; todavia, os fatos não se submetem às
leis: são as leis que se submetem aos fatos. As leis não são “necessárias”,
são hipóteses que se destinam a abranger um número mais ou menos
abrangente de fatos e que somente vigoram até quando não forem
substituídas por outras melhores.
5) Toda nossa pesquisa é, portanto, contingente e relativa, cujos resultados
são mais ou menos prováveis e, na melhor das hipóteses, o mais provável.
O espaço em que vivemos, parece adequado dizer, é tridimensional, mas se
alguém disser, um dia, que o Sol e os seus planetas nos levarão a ter um
espaço de quatro dimensões, não responderemos nem que sim nem que
não. Quando buscarmos provas experimentais de tais afirmações, nós a
examinaremos: mas até que estas provas não nos são apresentadas, dessa
pergunta não nos ocuparemos.
Toda e qualquer proposição por nós afirmada, não excluídas as proposições
de pura lógica, deve ser entendida e anunciada com restrições: nos limites
do tempo e da experiência por nós conhecidos.
6) Raciocinamos exclusivamente sobre as coisas e não sobre os
sentimentos que os nomes das coisas suscitam em nós. Em relação a esses
sentimentos, nós os estudamos somente como fatos externos. Assim, por
exemplo, refutamos a discussão se um ato é justo ou não é justo, moral ou
imoral, se antes não deixarmos claramente bem colocadas as coisas às
quais queremos fazer corresponder estes termos. Estudaremos, pelo
contrário, como fato externo, o que os homens de um dado país, em um
dado período de tempo, de uma dada classe social, pretendiam expressar
quando afirmavam que A era um ato justo ou moral; veremos por quais
causas eles se moviam e como a maioria delas frequentemente eram
implementadas sem o conhecimento dos homens que eram por elas
orientados, procuraremos saber quais são as relações existentes entre estes
e outros fatos sociais. Refutamos os raciocínios que usam termos de
precisão insuficiente, porque de premissas não-precisas não se podem
extrair senão consequências não-precisas. Mas quanto aos raciocínios,
estudá-los-emos como fatos sociais e os teremos até mesmo com o
propósito de escolher um problema singular, isto é, o de saber como, de
premissas totalmente fora da realidade, são extraídas conclusões que, da
realidade, não se afastam muito.
7) No que se refere às provas das nossas proposições, nós as buscamos
somente na experiência e nas observações, com as consequências lógicas
que elas comportam, excluindo toda prova por estar de acordo com os
sentimentos, por ser de evidência interna ou por ser ditada pela consciência.
8) Justamente por isso, usaremos somente vocábulos que correspondem a
coisas e onde colocaremos toda nossa preocupação e todo nosso estudo,
porque queremos lhes dar o significado mais preciso possível.
9) Vamos proceder por meio das aproximações sucessivas; isto é, desde o
início considerando o fenômeno no seu conjunto e voluntariamente
negligenciando os detalhes, os quais, então, teremos em conta nas
aproximações sucessivas.

13. Não pretendemos, nem um pouco, afirmar que o caminho pelo qual
estamos, pois, seguindo é melhor do que os outros; não seria outro porque o
melhor resultado final, neste caso, não faz sentido nenhum. Não é possível
nenhuma comparação entre teorias inteiramente contingentes e teorias que
admitem o absoluto; são coisas heterogêneas que sempre permanecerão
dissociadas.
Se alguém quiser trabalhar com certos princípios teológicos, ou
metafísicos, ou, como fazem os contemporâneos, com os princípios de
“progresso democrático”, para compor uma Sociologia, não discutiremos
com ele, e certamente não falaremos mal da sua obra. A batalha se tornará
inevitável apenas quando, em nome dos princípios, alguém quiser nos
impor qualquer resultado que caia no domínio da experiência e da
observação.
Voltando ao exemplo precedente, quando Santo Agostinho afirma que as
Cartas Sagradas foram inspiradas por Deus, não temos nada a objetar em
relação a esta proposição, sobre as quais, de resto, nem sequer temos muito
entendimento; mas quando, nas Cartas, alguém quer encontrar a
demonstração de que não existem antípodas25, não nos ocuparemos por
nada das suas razões, uma vez que esta pergunta pertence à experiência e à
observação.
14. Nós trabalhamos em um campo restrito, isto é, no da experiência e no
da observação; não negamos que existem outros, mas aqui não nos
ocuparemos deles. Nosso objetivo é descobrir teorias que abranjam os fatos
da experiência e da observação e, no presente estudo, recusamos a nos
debruçar sobre outros. Quem agir nebulosamente em relação a esse ponto,
quem quiser partir em viagem para fora do campo lógico-experimental, que
vá buscar outra companhia, e esqueça a nossa, que não é de seu estilo.
15. Nós diferimos totalmente de muitos daqueles que seguem um caminho
análogo ao nosso, pelo que não negamos a utilidade social de teorias
diversas da nossa, porém, em certos casos, acreditamos que lhe podemos
ser muito úteis. A união da utilidade social de uma teoria com a sua verdade
experimental é justamente um dos princípios a priori que refutamos. Estas
duas coisas estão ou não estão sempre juntas? A tal pergunta, só a
observação dos fatos pode responder e, enquanto ela segue adiante nas
investigações, vão se encontrando as provas de que estas duas coisas
podem estar, em certos casos, desarticuladas.
16. Peço, então, aos leitores que tenham sempre presente que, onde eu
afirmo o absurdo de uma doutrina, não pretendo, de jeito nenhum, afirmar
implicitamente que ela é nociva à sociedade; ao contrário, pode ela ser
muito útil. Por outro lado, onde afirmo que uma teoria é útil à sociedade,
não quero, de forma alguma, afirmar, de modo implícito, que ela seja
experimentalmente verdadeira. Em suma, uma mesma doutrina pode ser, ao
mesmo tempo, ridícula do ponto de vista experimental, mas respeitada à luz
da utilidade social e vice-versa.
17. O autor que expõe certas teorias costuma querer que sejam elas
acolhidas e tomadas como próprias por todos os outros; nele, reúnem-se o
pesquisador da verdade experimental e o apóstolo. Neste livro, eu os separo
inteiramente; o primeiro permanece, mas o segundo é excluído. Disse e
repito que o meu único escopo é a busca das uniformidades (leis) sociais; e
acrescento que exponho aqui os resultados de tal busca, porque penso que,
pelo número restrito de leitores que este livro pode ter e pela cultura
científica nele pressuposta, esta exposição não pode causar nenhum dano;
mas me absteria disso, onde pudesse razoavelmente acreditar que esta obra
poderia se tornar um livro de cultura popular.
25
Em Botânica, diz-se de cada uma das três células que se localizam no saco embrionário do óvulo dos
vegetais superiores, em polo oposto àquele em que se encontra o gameta feminino.
2. As ações não-lógicas

1. No capítulo anterior, declaramos as pretensões com quais escrevemos


esta obra e o campo no qual queremos permanecer. Agora vamos estudar as
ações humanas, o estado de ânimo a que correspondem e os modos com os
quais elas se manifestam, para atingir, enfim, o nosso escopo, que é o
conhecimento das formas sociais. Vamos seguir a via indutiva. Não temos
nenhum preconceito, nenhuma noção a priori; nós nos encontramos diante
dos fatos, nós os descrevemos, nós os classificamos, estudamos a sua
índole e vemos se conseguimos descobrir alguma uniformidade (lei) nas
suas relações.
Comecemos, neste capítulo, por nos ocuparmos com as ações.
2. Este é o primeiro passo que damos na via indutiva. Se, por exemplo,
achássemos que todas as ações humanas correspondam às teorias lógico-
experimentais, ou também que tais ações sejam as mais importantes, e que
as outras devam ser consideradas como desvios de um tipo normal, como
fenômenos de uma patologia social, ficaria patente que a nossa via
divergiria completamente da que convém seguir se, ao contrário, muitas
ações humanas, entre as mais importantes, correspondessem às teorias que
não são lógico-experimentais.
3. Estudemos, então, as ações no que diz respeito ao caráter lógico-
experimental. Para isso ser feito, devemos, antes de tudo, procurar
classificá-las e para realizar tal trabalho, nós nos propomos a seguir os
princípios da classificação dita natural em botânica e em zoologia, por
meio da qual se reúnem os objetos que têm um conjunto de características
semelhantes. Assim, em botânica, a classificação de Tournefort foi
razoavelmente abandonada. Ela dividia as plantas em “ervas” e “árvores”,
separando vegetais que são, sim, muito semelhantes entre si; enquanto o
método dito natural, que é agora seguido, elimina toda divisão deste
gênero, tem por norma o complexo dos caracteres dos vegetais, reúne os
vegetais semelhantes e separa os dessemelhantes.
Queremos tentar encontrar, para as ações dos homens, divisões análogas.
4. Não são as ações concretas que temos de classificar, mas os elementos
destas ações. Da mesma forma, o químico classifica os corpos simples e as
suas combinações. As ações concretas são sintéticas; elas têm origem nas
misturas, em proporções variáveis, dos elementos que devemos classificar.
5. Todo fenômeno social pode ser considerado sob dois aspectos, ou seja,
como eles são na realidade e como eles se apresentam ao espírito de certos
homens. O primeiro aspecto será dito objetivo; e o segundo, subjetivo. Esta
divisão é necessária, porque não podemos reunir, em uma mesma classe,
por exemplo, as operações que um químico faz em seu laboratório e as
operações dos que se dedicam à magia, bem como as ações que faziam os
marinheiros gregos, que remavam para impulsionar adiante o navio sobre a
água, e os sacrifícios que ofereciam a Poseidon para obter uma navegação
propícia. Em Roma, a lei das XII Tábuas punia quem fazia sortilégios sobre
as colheitas; nós queremos distinguir tais ações daquela dos que as
incendiavam.
Os nomes dados a estas duas classes não nos devem induzir a erro. Na
realidade, são todas elas subjetivas, porque todo conhecimento humano é
subjetivo e elas se distinguem não por uma diferença de natureza, mas por
uma soma mais ou menos abrangente de conhecimento acerca dos fatos.
Nós sabemos – ou acreditamos saber – que os sacrifícios a Poseidon não
operam, o mínimo que seja, sobre a navegação; nós os separamos, portanto,
de outras ações que, ao menos segundo a nossa consciência, podem sobre
esta operar. Se um dia se viesse a descobrir que nós nos enganamos e que
os sacrifícios a Poseidon são muitos úteis para obter uma navegação
favorável, precisaríamos colocar, de novo, estes sacrifícios junto com as
outras ações que têm tais características. Tudo isso, para dizer a verdade,
não é senão um pleonasmo e se reduz à afirmação de que, qualquer
indivíduo que fizer uma classificação, a faz segundo os conhecimentos que
possui. Não se entende como poderia ser de outra forma.
6. Há ações que consistem em meios adequados aos fins e que unem,
logicamente, os meios aos fins; há outras ações em que falta tal
característica.
Estas duas classes de ação são muito diferentes conforme elas sejam
consideradas sob o aspecto objetivo ou sob o aspecto subjetivo.
Sob este último aspecto, quase todas as ações humanas fazem parte da
primeira classe. Para os marinheiros gregos, os sacrifícios a Poseidon e a
ação de remar eram meios igualmente lógicos para navegar.
É conveniente, para evitar contratempos que poderiam causar incômodos,
dar nomes a estas classes de ação. Como já dissemos, melhor seria talvez se
valer de nomes que não teriam por si mesmos nenhum significado; por
exemplo, das letras do alfabeto. Por outro lado, um tal modo de agir
prejudicaria a clareza de exposição. Devemos, portanto, resignar-nos a usar
os termos da linguagem comum; mas o leitor deve ter bem em mente que
estes nomes – ou as suas etimologias – não servem de nada para conhecer
as coisas que elas indicam. Estas devem ser estudadas diretamente e o seu
nome não é senão uma etiqueta qualquer, que serve para identificá-las.
Sem prejuízo dos nomes já estabelecidos, daremos o nome de ações lógicas
às que unem logicamente as ações aos fins, não somente no que diz
respeito ao sujeito que realiza as ações, mas também àqueles que têm
conhecimento mais amplos, isto é, às ações lógicas que têm subjetiva ou
objetivamente o sentido agora explicado. As outras ações serão chamadas
“não-lógicas”, o que não significa dizer ilógicas. Esta classe se dividirá em
vários gêneros.

7. Convém fazer um quadro sinótico de tal classificação:

GÊNEROS E ESPÉCIE As ações têm um fim lógico?


OBJETIVAMENTE SUBJETIVAMENTE

CLASSE I – Ações lógicas


O fim objetivo é idêntico ao subjetivo.
sim sim

CLASSE II – Ações não-lógicas


O fim objetivo difere do subjetivo.
1.º gênero Não Não
2.º gênero Não Sim
3.º gênero Sim Não
4.º gênero Sim Sim

ESPÉCIE DO 3.º E DO 4.º GÊNEROS


3α , 4α O fim objetivo seria aceito pelo
sujeito, se o conhecesse
3β , 4β O fim objetivo seria rejeitado pelo
sujeito, se o conhecesse
O fim aqui mencionado é um fim direto; a consideração de um fim indireto
é excluída. O fim objetivo é um fim real, posto no campo da observação e
da experiência e não um fim imaginário, colocado fora deste campo. Este
último fim pode ser, ao contrário, um fim subjetivo.
8. As ações lógicas são muito numerosas perante os povos civilizados. As
atividades artísticas e científicas, ao menos para as pessoas que conhecem
estas e aquelas, pertencem a tal classe; para os executores materiais de tais
atividades, que não fazem outra coisa senão executar as ordens dos seus
chefes, há ações da 2.ª classe, 4.º gênero. As ações estudadas pela
Economia política pertencem também elas, em grandíssima parte, àquela
classe. Deve-se colocar, além disso, um certo número de operações
militares, políticas, jurídicas, etc.
9. Eis que a indução nos leva a reconhecer como as ações não-lógicas
ocupa grande parte do fenômeno social, vamos prosseguir, pois, com o seu
estudo; e ao fazermos assim, teremos, no presente capítulo, de raciocinar,
de passagem, sobre os inúmeros argumentos que trataremos, então, de
propósito, na sequência da obra, retornando, portanto, às coisas ora
mencionadas.
10. De início, para melhor conhecer estas ações não-lógicas, vejamos
alguns poucos exemplos; muitos outros terão lugar nos capítulos seguintes.
Eis alguns exemplos de ações da 2.ª classe.
O 1.º e o 3.º gêneros, que não têm fins subjetivos, são muito pouco
importantes para a raça humana. Os homens têm uma tendência
acentuadíssima para dar um verniz lógico às suas ações; elas acontecem
quase todas no 2.º e no 4.º gêneros. Muitas ações impostas pela cortesia ou
pelo costume poderiam pertencer ao 1.º gênero. Mas com muitíssima
frequência os homens alegam um motivo qualquer para justificar as suas
ações, o que os faz passar para o 2.º gênero.
Se deixarmos de lado o motivo indireto resultante do fato de que o homem,
que se afasta dos usos comuns, é censurado e malvisto, encontraremos
algumas ações que serão postas no 1.º e no 3.º gêneros.
Hesíodo disse: “não urinar na foz de um rio que se lança ao mar nem em
uma fonte. É necessário evitar isso. Não alivie nele o ventre, porque é
melhor”. O preceito de não poluir os rios em sua foz pertence ao 1.º gênero.
Não se vê nenhum fim objetivo nem subjetivo na ação de evitar esta
abominação. O preceito de não poluir as fontes pertence ao 3.º gênero. Há
um fim objetivo, que Hesíodo não podia conhecer e que os modernos
conhecem. Ele consiste em evitar a difusão de certas doenças.
É provável que existam, junto aos selvagens e aos bárbaros, inúmeras ações
do 1.º e do 3.º gêneros; mas os viajantes, querendo, a todo custo, conhecer a
causa das ações que eles observam, acabam por obter, de um jeito ou de
outro, alguma resposta que as faz passar para o 2.º e para o 4.º gêneros.
11. Perante os animais, na medida em que admitamos que não raciocinam,
quase todas as ações ditas instintivas tomam lugar no 3.º gênero; alguns
podem também ir para o 1.º.
O 3.º gênero é o tipo puro das ações não-lógicas e o estudo dele junto aos
animais nos ajudará a entender estas ações junto aos homens.

3. As duas partes de toda teoria

1. O longo estudo de teorias, que agora estamos fazendo, tem, em todo


caso, mergulhado de cabeça para reconhecer que as teorias concretas
podem ser divididas em duas partes pelo menos, uma da quais é muito mais
constante do que a outra. Com a intenção de evitar, o máximo possível, que
se raciocine sobre vocábulos em vez de raciocinar sobre fatos, principiemos
com o simples uso das letras do alfabeto, para indicar as coisas para as
quais queremos fazer menção e, somente nos capítulos seguintes,
substituiremos nomes deste modo de notação pouco cômodo. Diremos,
então, que, nas teorias concretas que indicaremos com (c), para além dos
dados de fato, há dois elementos ou partes principais, isto é, um elemento
ou parte substancial, que indicaremos com (a), e um elemento ou parte
contingente, geralmente muito variável, que indicaremos com (b).

A parte (a) corresponde diretamente a ações não-lógicas, ela é a expressão


de certos sentimentos. A parte (b) é manifestação da necessidade de lógica
que tem o homem; ela corresponde, ainda que parcialmente, a sentimentos,
a ações não-lógicas, mas os reveste com raciocínios lógicos ou
pseudológicos. A parte (a) é o princípio que existe na mente do homem, a
parte (b) são as explicações e as deduções desse princípio.

2. Por exemplo, há um princípio ou sentimento que se diz pretender, pelo


qual certos números parecem veneráveis e é a parte principal (a) de um
fenômeno que mais à frente estudaremos. Mas o homem não se satisfaz de
simplesmente juntar sentimentos de veneração com conceitos numéricos,
ele quer, além disso, “explicar” como isso acontece, “demonstrar” que ele é
movido pela força da lógica e, daí então, intervém a parte (b) e se têm as
várias “explicações” e “demonstrações” do porquê certos números são
sagrados.

Existe, no homem, um sentimento que o impede de abandonar, de repente,


antigas crenças e é esta a parte (a) de um fenômeno acima estudado. Mas
ele quer justificar, explicar e demonstrar o seu proceder e, então, intervém
uma parte (b) que, de várias maneiras, mantém as letras daquelas crenças,
mas muda a sua substância.

3. A parte principal do fenômeno é evidentemente aquela para a qual o


homem se dedica com mais vigor e para a qual ele procura, então, se
justificar, isto é, a parte (a), e é, portanto, esta parte que, em grande medida,
nos pressionará pela busca do equilíbrio social.

4. Mas a parte (b), ainda que secundária, também produz efeito neste
equilíbrio. Às vezes, este efeito pode ser tão pequeno que pode ser igual a
zero, como quando se justifica a perfeição do número seis, dizendo que é
igual a soma das suas partes alíquotas; mas pode este efeito ser também
significativo, como quando a Inquisição queimava as pessoas que caíam em
um erro qualquer de deduções teológicas.

5. Dissemos que a parte (b) é constituída, em proporções variáveis, de


sentimentos e de deduções lógicas; vale a pena notar que, em questões
sociais, geralmente, a sua força persuasiva depende principalmente dos
sentimentos, enquanto a dedução lógica é aceita ao máximo, porque
corresponde a estes sentimentos. Na ciências lógico-experimentais, ao
contrário, a parte do sentimento tende-se a reduzir a zero, à medida que elas
se tornam particularmente perfeitas e a força persuasiva está toda ela na
parte lógica e nos fatos. Atingido tal extremo, a parte (b) obviamente muda
de índole e vamos indicá-la como (B). Em outro extremo, há casos em que
a dedução lógica não se manifesta claramente, como no fenômeno dito dos
“princípios latentes” do direito. A fisiologia explica estes casos como obra
do subconsciente ou de outro modo. Nós aqui não queremos subir tão alto;
detenhamo-nos nos fatos, deixando que os outros procurem a sua
explicação.

No meio, estão todas as teorias concretas, que, mais ou menos, se


aproximam de um desses extremos.

6. Apesar de que, nas ciências lógico-experimentais, o sentimento não tinha


muito o que fazer, embora ela invada, um pouco, este campo;
negligenciando, por um momento, tais considerações, podemos dizer que
são indicadas com (C) as teorias concretas da ciência lógico-experimental,
elas podem ser decompostas em uma parte (A), constituída por princípios
experimentais, de descrição e de afirmações experimentais, e uma outra
parte (B), constituída por deduções lógicas, às quais se unem também os
princípios e as descrições experimentais, adotadas para extrair deduções da
parte (A).

As teorias (c), da qual o sentimento faz parte, que unem qualquer coisa à
experiência, que estão além da experiência, se decompõem analogamente
em uma parte (a), constituída pela manifestação de certos sentimentos, e
uma parte (b), constituída pelos raciocínios lógicos, pelos sofismas e,
igualmente, por outras manifestações dos sentimentos adotadas para extrair
deduções de (a). Sendo assim, há correspondência entre (a) e (A), entre (b)
e (B) e entre (c) e (C). Aqui não nos ocuparemos senão das teorias (c) e
deixaremos de lado as teorias científicas experimentais (C).

7. Nas teorias (c) que transcendem a experiência ou que são pseudo-


experimentais, é bem raro que os autores distingam, com suficiente clareza,
as partes (a) e (b); geralmente, eles os confundem como se fossem mais ou
menos a mesma coisa.

8. Admitida a parte (a), pode ser constituída, com método dedutivo, a parte
(b), ou melhor, (B), razão pela qual o seu estudo é muito mais fácil do que o
da parte (a). Ele produziu as únicas ciências sociais que são hoje
desenvolvidas e rigorosas, isto é, a ciência das construções jurídicas e a
economia pura. Este estudo da parte (b) será tanto mais perfeito quanto
mais for constituído por uma única lógica, tanto mais será imperfeito, ao
contrário, quanto mais nele se insinuarem e forem acolhidos princípios não
experimentais, que deveriam adequadamente permanecer na parte (a).
Além disso, posto que esta parte (a) ou também (A) é a que dá, ou pode dar,
lugar a dúvidas e a incertezas, quanto menor será e tanto mais rigorosa
poderá ser a ciência que dela se deduz.
9. A economia pura tem, justamente, a vantagem de poder extrair as suas
deduções de pouquíssimos princípios experimentais e usa com tanto rigor a
lógica, que pode dar forma matemática aos seus raciocínios, que também
têm a enorme vantagem de se ocupar com a quantidade. A ciência das
construções jurídicas tem também o mérito de necessitar de poucos
princípios, mas não tem a vantagem de poder raciocinar com quantidades.
Isto talvez ainda seja um grave inconveniente para a Sociologia, mas é
necessário pelo menos remover o outro inconveniente, o da interferência da
parte (a) na parte (b).
10. Em geral, certos princípios (a) podem ser arbitrariamente aceitos, desde
que sejam exatos, se puder extrair deles um conjunto de doutrina (c); mas é
evidente que, se os princípios (a) nada tiverem a ver com a realidade, a
parte (c) nada talvez terá a fazer com o concreto. Convém, então, quando se
quer constituir uma ciência, escolher judiciosamente os princípios (a), de
modo que se aproximem o máximo possível da realidade, embora sabendo
que uma teoria (c) nunca poderá reproduzi-la em toda sua particularidade.
11. Há outras teorias sociológicas com as quais se tenta constituir um corpo
de doutrina rigorosamente científico, mas infelizmente sem conseguir tal
intento, isto porque os princípios, dos quais se extraem as deduções, se
afastavam muito da experiência.
12. Uma destas teorias é o darwinismo social. Se se permite, sempre e
excetuadas as oscilações temporais, que as instituições de uma sociedade
sejam as que melhor correspondam às circunstâncias em que se encontram
tais sociedades e que as sociedades que não têm instituições daquele gênero
acabam por desaparecer, tem-se um princípio apto a receber
desenvolvimentos lógicos importantes e tudo mais que possa constituir uma
ciência. Este estudo foi feito e, por algum tempo, se pode esperar que se
tenha, afinal, uma teoria científica (c) da Sociologia, já que parte das
deduções (b) foram constatadas pelos fatos. Mas tal doutrina decaiu com
aquela na qual ela teve a sua origem, isto é, com a teoria darwiniana da
produção das espécies animais e vegetais. Note-se que, por muitas vezes,
foi possível dar explicações verbais dos fatos. Todas as formas de
instituições sociais ou de seres viventes deviam ser explicadas junto com a
utilidade que produzia e, para conseguir isso, se extraíam as utilidades
arbitrárias e imaginárias que estavam em jogo. Sem que se percebesse isso,
retornava-se, assim, à antiga teoria das causas finais. O darwinismo social
ainda permanece um conjunto de doutrina (c) muito bem estruturado, mas
ainda tem de mudar bastante para coadunar-se com os fatos. Ele não
determina as formas das instituições; determina somente certos limites que
elas não podem ultrapassar.
13. Uma outra teoria (b) é o materialismo histórico. Se este for entendido
no sentido de que o estado econômico de uma sociedade determina
completamente todos os outros fenômenos sociais, haverá ali um princípio
(a), do qual se podem extrair muitas deduções, de modo que se constitua
uma doutrina. O materialismo histórico foi um notável progresso científico,
porque ajudou a esclarecer o caráter contingente de certos fenômenos,
como o fenômeno moral e o fenômeno religioso, aos quais se dava e ainda
se dá bastante um caráter absoluto. Ademais, tem ele certamente uma
parcela de verdade, que está na interdependência do fenômeno econômico e
dos outros fenômenos sociais; o erro está em ter mudado esta
interdependência em uma relação de causa e efeito.
14. Ainda uma outra teoria, que se pode dizer de Spencer e dos seus
seguidores, de onde se tiram as muitas partes metafísicas de suas obras, se
poderia chamar de teoria dos limites. Ela assume por princípio (a) que
todas as instituições sociais tendem para um limite, são semelhantes a uma
curva que tem uma assíntota. Conhecida a curva, pode-se determinar a
assíntota; conhecida a realização histórica de uma instituição, pode-se
determinar o limite dela; na verdade, isso é feito mais facilmente do que no
problema muito mais simples da determinação matemática das assíntotas,
uma vez que, para esta, não basta conhecer poucos pontos da curva, deve-
se fazer a equação dela, isto é, conhecer-lhe o caráter intrínseco; enquanto
forem dados alguns pontos da curva que representa uma instituição, pode-
se, ou melhor, acredita-se que se pode determinar ipso facto o seu limite.
15. Este princípio (a) é suscetível de deduções científicas (b) e dá, portanto,
um corpo extenso de doutrina. Ele pode ser visto na Sociologia de Spencer
e em outras obras análogos. Nós nos aproximamos muito, com estas
doutrinas, do método experimental – abstração feita sempre pelas partes
metafísicas de tais obras – uma vez que, no final, é dos fatos que tiramos as
conclusões. Infelizmente, não é só dos fatos, há, ademais, a intromissão
daquele princípio de que as instituições têm um limite e daquele outro de
que tal limite pode ser determinado conhecendo alguns estados sucessivos
das instituições.
Acrescente-se que, para um caso que seria verdadeiramente estranhíssimo
se fosse fortuito, o limite, que um autor supõe ser determinado
exclusivamente pelos fatos, identifica-se com aquele que o autor traça dos
seus próprios sentimentos e desejos. Se ele for pacifista, como Spencer o é,
os fatos complacentes demonstram para ele que o limite do qual se
aproximam as sociedades humanas é o da paz universal; se ele for
democrático, não há nenhuma dúvida de que o limite estará no triunfo
completo da democracia; se ele for coletivista, no triunfo do coletivismo e
assim por diante. Outrossim, nasce e se fortifica a dúvida de que os fatos
servem só para esconder os mais poderosos motivos de persuasão.
De qualquer forma, os motivos das deduções de tal modo adotadas por
estes positivistas não correspondem aos fatos e isso vicia todas as deduções
extraídas. Há, então, o grave defeito, que, aliás, com o tempo, poderia ser
corrigido, de que estamos bem longe de ter agora as notícias históricas que
seriam estritamente indispensáveis para poder usar o referido método.
16. De uma índole diversa da teoria de que acabamos de fazer referência,
são as que, assumindo um princípio (a) totalmente falho de precisão,
indefinido e nebuloso, extraem dele, com aparente rigor de lógica,
conclusões, que não são, pois, outras senão a expressão dos sentimentos do
raciocinador, e às quais o raciocínio que as conecta a (a) não confere nem
sequer uma mínima força de demonstração. De fato, é muito frequente o
caso em que, de um mesmo princípio (a), um raciocinador extrai certas
conclusões, enquanto um outro extrai dele conclusões inteiramente opostas.
Pouco se tem a dizer, em geral, sobre o raciocínio, pois o princípio é, neste
caso, imprestável, na medida em que, como se fosse uma borracha elástica,
você pode puxá-la para o lado que quiser.
17. Alcançado este ponto, temos, pela indução, os elementos de uma teoria.
Deve-se, agora, constituí-la, isto é, deve-se substituir a via indutiva pela via
dedutiva, e ver quais são as consequências dos princípios que encontramos
ou acreditamos ter encontrado. Compararemos, então, estas deduções aos
fatos; se estiverem de acordo, conservaremos a nossa teoria; se não
estiverem de acordo, nós a abandonaremos.
18. Já vimos que, nas teorias da ciência lógico-experimental, se encontram
elementos (A) e (B) que, em parte, são semelhantes aos elementos (a) e (b)
das teorias que não são puramente lógico-experimentais e, em parte, são
diferentes deles.
Nas ciências sociais, como as que até agora estão sendo estudadas,
encontram-se elementos que mais se aproximam de (a) do que de (A),
porque não se evita a intromissão dos sentimentos, de preconceitos, de
artigos de fé e de outras semelhantes inclinações, postulados e princípios,
que nos levam para fora do campo lógico-experimental.
19. A parte dedutiva das ciências sociais como as que até agora estão sendo
estudadas, às vezes, se aproxima muito de (B) e não nos faltam exemplos
em que o uso de uma lógica rigorosa a faria combinar integralmente com
(B), se não fosse a falta de precisão das premissas (a), que tolhe o rigor do
raciocínio. Mas muitas vezes, nestas ciências sociais, a parte dedutiva se
aproxima muito de (b), porque nela há muitos princípios não-lógicos e não-
experimentais e pode haver muitas inclinações, preconceitos etc.
20. Vamos estudar agora, propositalmente, os elementos (a) e (b). O
elemento (a) corresponda talvez a certos instintos do homem, ou melhor
dizendo, dos homens, porque (a) não tem existência objetiva e é diversa
segundo os homens e, provavelmente, é assim porque corresponde a estes
instintos que é quase constante nos fenômenos. O elemento (b) corresponde
ao trabalho da mente para se tornar raciocínio do elemento (a) e é, por isso,
que é muito mais variável, uma vez que reflete o trabalho da fantasia.
21. Mas se a parte (a) corresponde a certos instintos, está bem longe de a
todos abranger; e isso é visto do mesmo modo com o qual ela foi
encontrada. Analisamos os raciocínios e buscamos a parte constante; então,
podemos somente ter encontrado os instintos que dão origem aos
raciocínios e não podemos encontrar os que não estão cobertos de
raciocínios. Permanecem, portanto, todos, os meros apetites, os gostos, as
disposições e, nos fatos sociais, aquela categoria muitíssima significativa: a
dos interesses.
22. Além disso, podemos ter encontrado apenas uma parte de uma das
coisas (a), a outra parte permanecendo um mero apetite. Por exemplo, se o
instinto sexual tendesse só a aproximar os sexos, não apareceriam nas
nossas investigações. Mas tal instinto, muitas vezes, está encoberto e se
esconde sob a veste do ascetismo; há pessoas que pregam a virtude para ter
a oportunidade de parar de pensar sobre conjunções carnais. Quando
examinamos os raciocínios delas, encontramos, então, uma parte (a) que
corresponde ao instinto sexual e uma parte (b) que é um raciocínio com o
qual ele é encoberto. Talvez, procurando atentamente, encontrar-se-iam
partes análogas aos apetites dos alimentos e das bebidas, mas, por isso, a
parte do simples instinto é, de todo modo, muito mais significativa do que a
outra.
23. O ser previdente, ou imprevidente, depende de certos instintos e de
certos gostos e, sob tal aspecto, não se encontraria nas coisas (a); mas a
imprevidência deu lugar, especialmente nos Estado Unidos da América, a
uma teoria, com a qual se se prega às pessoas que deve gastar tudo o que
ganha; e, então, se examinarmos tal teoria, encontraremos uma coisa (a),
que será a imprevidência.
24. Um político é estimulado a propugnar a teoria da solidariedade, com o
objetivo de conseguir dinheiro, poder e honra. No estudo dessa teoria,
aparecerá, só de relance, tal objetivo, que é, pois, o de quase todos os
políticos, eles afirmam ou o branco ou o preto, mas, ao contrário, eles
sustentarão primeiro os princípios (a) que são válidos para persuadir os
outros. É óbvio que se o político dissesse: “Acredite nessa teoria, porque
isso me tornará rico, poderoso e honrado” provocaria risos e não
persuadiria ninguém; ele deve, portanto, ter por fundamento certos
princípios que possam ser acolhidos por quem o ouve.
Se nós nos fixarmos nesta observação, poderia parecer que, no caso
examinado, as (a) seriam encontradas não nos princípios para os quais a
teoria foi propugnada, mas sim naqueles para os quais foi acolhida; mas,
adiante, ver-se-á que tal distinção não se sustenta, porque frequentemente
quem quer persuadir os outros, começa por persuadir a si mesmo; e ainda
que se baseie principalmente na própria vantagem, acaba por acreditar que
se baseia no propósito do bem comum. Raro e pouco apto para persuadir é
o apóstolo descrente; por outro lado, comum e mais apto a persuadir é o
apóstolo crente, e tanto mais será a sua obra quanto mais ele for crente.
Então, as partes (a) da teoria se encontram tanto junto a quem a recebe
quanto junto a quem a propugna; mas a elas devem-se acrescentar os
ganhos tanto destes quanto daqueles.
25. Quando analisamos uma teoria (c), devem-se ter bem distintas as
investigações sob o aspecto objetivo e sob o aspecto subjetivo. Muitíssimas
vezes, no entanto, se confundem e se ocultam, assim, dois erros cruciais.
Primeiro, e já discutimos muitas vezes sobre isso, confunde-se o valor
lógico-experimental de uma teoria com a sua força de persuasão ou com
sua utilidade social. Depois, e é especialmente um erro moderno, substitui-
se ao estudo objetivo de uma teoria o estudo subjetivo do como e do porquê
ela foi produzida pelo seu autor. Este segundo estudo é certamente
importante, mas deve ser somente acrescentado e não para substituir o
primeiro. Saber se um teorema de Euclides é verdadeiro ou falso, e saber
como Euclides o descobriu, são investigações separadas e, como tais, uma
não exclui a outra. Se, por um acaso, os Principia de Newton fossem de um
autor desconhecido, perderiam, em razão disso, o seu valor?
Assim, estão confundindo dois dos aspectos, sob os quais pode ser
considerada a teoria de um autor, isto é: 1) Como o autor a pensava, o seu
estado psíquico e como este foi determinado; 2) o que quis dizer em um
determinado trecho. O primeiro aspecto, que é pessoal, subjetivo para o
autor, confunde-se com o segundo, que é impessoal e objetivo. A isso
convém, muitas vezes, que se considere a autoridade do autor, uma vez
que, estimulado pelo sentimento, se admite a priori que o que ele pensa e
no que ele acredita deve necessariamente ser “verdadeiro” e que, por isso,
tanto vale investigar os pensamentos dele, quanto examinar se o que quis
dizer é “verdadeiro”, ou seja, se está de acordo com a experiência, no caso
das ciências lógico-experimentais.
26. O estudo da parte (b) de uma teoria é justamente aquele da parte
subjetiva; mas esta pode ser ainda dividida em duas, isto é, deve distinguir
as causas gerais das causas especiais, para as quais uma teoria é produzida
ou adquire crédito. As causas gerais são as que operam para um tempo não
muito restrito e que valem para um número significativo de indivíduos; as
causas especiais são as que operam essencialmente de modo contingente.
Se uma teoria é produzida porque convém a uma classe social, ela tem uma
causa geral; se é produzida, ou porque o seu autor foi pago, ou porque,
consigo, manifesta o seu despeito contra um rival, ela tem uma causa
especial.
No estudo que faremos das teorias (b), nós nos ocuparemos somente das
causas gerais; o estudo das outras é secundário e pode vir depois.
27. As coisas que têm muito poder sobre o ordenamento social dão lugar a
teorias e, portanto, as encontraremos quando procurarmos as (a). A estas,
como agora dizemos, devem-se acrescentar os apetites e os interesses; e
teremos então o complexo de coisas que operam sensivelmente para
determinar o ordenamento social, com a advertência, aliás, de que o próprio
ordenamento reage sobre elas e de que, dessa forma, ainda não temos uma
relação de causa e efeito, mas de interpendência. Se supusermos, como
parece provável, que os animais não fazem teoria, não poderá existir para
eles parte (a) nenhuma, nem mesmo sequer interesses, e permanecem
somente os instintos. Os povos selvagens, ainda que próximos dos animais,
têm certas teorias e, dessa forma, para eles, existe uma parte (a); há
certamente mais instintos e interesses. As teorias dos povos civilizados
superam, em muito, seus instintos e interesses e, dessa forma, a parte (a)
encontra-se em quase toda a vida social.
28. Antes de seguir em frente, talvez seja bom dar nomes às coisas (a) e às
coisas (b), bem como às coisas (c), porque, ao indicá-las com as letras do
alfabeto, prejudica muito o discurso e o torna menos claro. Por este e por
outros motivos, chamaremos de resíduos as coisas (a), de derivações as (b)
e de derivadas as (c). Mas deve-se ter sempre presente que nada –
absolutamente nada – existe para extrair o sentido próprio dos nomes, das
suas etimologias e que o seu significado é exclusivamente o das coisas (a),
(b) e (c).
4. Resíduos e derivações

1. Como já vimos, os resíduos (a) constituem um conjunto de muitos fatos


que devem ser classificados, de acordo com as analogias que ali se
encontram, de modo que se tenham, então, as classes, os gêneros e as
espécies. Diga-se o mesmo das derivações (b).
2. Os resíduos correspondem a certos institutos dos homens, razão pela
qual lhes falta geralmente a precisão ou a limitação rigorosa. Na verdade,
este caráter poderia quase sempre servir para distingui-los dos fatos e dos
princípios científicos (A), os quais têm, com eles, alguma semelhança.
Muitas vezes, os (A) são nascidos dos (a) mediante uma operação que os
(a) deram precisão. Assim, o termo quente é indeterminado e, ao usá-lo,
pode-se dizer que a água dos poços é quente no inverno e fria no verão.
Mas o termo físico para quente, correspondente aos graus de calor, medidos
com um termômetro, é determinado, e pode-se ver que a água dos poços
não é, neste sentido, particularmente quente no inverno do que é no verão,
uma vez que o termômetro colocado naquela água assinala
aproximadamente a mesma temperatura, ou assinala uma temperatura
menor no inverno do que no verão.
3. Este é o tipo dos raciocínios metafísicos antigos ou modernos. Eles têm
nas premissas termos a que falta toda precisão, das quais, como se fossem
axiomas matemáticos, se querem extrair, com um rigor de lógica,
conclusões seguras. Em regra, eles se dedicam, pois, a estudar não as coisas
como elas são, mas os conceitos que certas pessoas fazem dessas coisas. Há
quem, para extrema concessão, aceita excluir estes raciocínios das ciências
físicas e os querem mantê-los nas ciências sociais; mas nenhum motivo
pode justificar tal diferença, enquanto permanecemos no campo
experimental.
4. Temos aqui um novo exemplo de como os termos a que falta precisão
podem facilmente ser adotados tanto para provar os prós quanto para
provar os contras. As mulheres – diz um dos interlocutores – podem se
vestir mais levemente do que os homens, porque o calor que elas têm no
corpo resiste ao frio. Não – rebate um opositor –, a verdadeira causa é o
frio natural que as mulheres têm no corpo, dado que coisas semelhantes se
combinam reciprocamente.
5. Geralmente, na indeterminação dos resíduos (a), está a principal causa
pela qual não podem as premissas ser de raciocínios rigorosos, como, ao
contrário, podem ser, e realmente são, nas ciências, as proposições (A).
6. Deve-se prestar bem atenção para não confundir os resíduos (a) com os
sentimentos ou com os instintos, aos quais correspondem. Aqueles são a
manifestações destes, como a elevação do mercúrio no tubo de um
termômetro é a manifestação do aumento da temperatura. Só elipticamente,
para tornar mais breve o discurso, dizemos, por exemplo, que resíduos,
além dos apetites, dos interesses etc., têm por função primordial determinar
o equilíbrio social, da mesma forma que dizemos que a água ferve a 100º.
As proposições completas seriam: “Os sentimentos ou os instintos que
correspondem aos resíduos, além dos que correspondem aos apetites, aos
interesses etc., têm por função primordial determinar o equilíbrio social. A
água ferve quando o estado calorífero atinge uma temperatura que indica
100º centígrados no termômetro”.
7. Razão pela qual, por objeto de estudo, pela via da análise, separamos
diversos resíduos (a1), (a2), (a3), ..., ao passo que, no indivíduo, existem os
sentimentos que correspondem aos grupos (a1) (a2) (a3); (a1) (a3) (a4);
(a3) (a5) etc. Estes são compostos relativamente aos resíduos (a1), (a2), ...,
que são mais simples. Poder-se-ia prosseguir e decompor também (a1),
(a2), ..., em elementos mais simples; mas deve-se saber parar no tempo
certo, porque as proposições muito gerais acabam por significar coisa
nenhuma. Assim, as condições da vida sobre o globo são inúmeras e podem
ser reduzidas, em geral, à luz solar, à existência da atmosfera etc.; mas,
para o biólogo, ocorrem condições muito menos gerais, das quais ele possa
extrair um exemplar maior das leis da vida.

8. Acontece, às vezes, que uma resultante (c), que é alcançada partindo-se


de um resíduo (a), por meio de uma derivação (b), transformada, por sua
vez, em resíduo de outros fenômenos, está sujeita a derivações. Por
exemplo, pode ser que o presságio sinistro que se extrai do fato de ter treze
pessoas sentadas à mesa seja uma resultante traçada pelo sentimento de
horror causado pela traição de Judas, seguida de sua morte; mas, daí em
diante, se tornou, por sua vez, um resíduo e as pessoas sentem-se
desconfortáveis ao se sentar a uma mesa para treze convidados, sem que se
pense minimamente em Judas.

9. As investigações sobre a origem dos fenômenos sociais, que até agora


constituem a maior parte da Sociologia, foram muitas vezes, sem que os
autores se dessem conta disso, investigações sobre resíduos. Eles admitiam,
sem serem muito precisos, que o simples devesse preceder ao composto,
que o resíduo devesse ser anterior à resultante. Quando Herbert Spencer
coloca na deificação dos homens a origem cronológica da religião, ele
acredita ter encontrado o resíduo dos fenômenos religiosos, o fenômeno
simples do qual derivam os fenômenos compostos que hoje são observados.

10. Acerca disso, devem-se fazer duas ponderações: 1) Convém observar


que nenhuma prova é dada pela verdade das hipóteses de que o
conhecimento do resíduo seja cronologicamente anterior à da resultante.
Algumas vezes tal fenômeno acontece, mas outras vezes não se tem certeza
disso. Da mesma forma, na química, há compostos que foram conhecidos
depois dos corpos simples dos quais tiveram origem, mas muitos outros
foram conhecidos antes. Na Sociologia, as regras latentes do direito são
um ótimo exemplo de resultantes conhecidas anteriormente aos seus
resíduos. Uma mulher analfabeta das montanhas da Pistoia conhece muito
bem, pela prática, a conjugação de vários verbos italianos, muito melhor do
que certas pessoas cultas, mas não tem nenhum conceito, ainda que muito
distante, das normas das derivações, por meio das quais, desde as raízes,
obtêm-se estas conjugações. 2) Ainda que o conhecimento do resíduo fosse
anterior ao da resultante, convém seguir um caminho diretamente oposto ao
até agora percorrido. A busca cronológica do resíduo (a) é difícil, muitas
vezes impossível, porque, daqueles tempos para nós muito distantes, faltam
documentos e não é lícito suprir-lhes a falta com a fantasia e com o “bom
senso” do homem moderno. Apesar disso, podem-se ter, destarte, teorias
engenhosas, que, todavia, sendo pouco ou nada, correspondem, ao menos,
aos fatos. Querer descobrir, nos tempos primitivos, o resíduo (a), do qual
derivam fenômenos (c) que podemos observar no presente, é querer
explicar o conhecido com o desconhecido. Devem-se, ao contrário, deduzir
dos fatos mais conhecidos os menos conhecidos. Procurar descobrir nos
fenômenos (c), que observamos no presente, os resíduos (a), e depois ver se
nos documentos históricos são encontrados traços de (a). Onde, desse
modo, se encontrasse que (a) existia quando ainda não se conhecia (c),
poder-se-ia concluir que (a) é anterior a (c), e que a origem, neste caso, se
confunde com o resíduo. Mas, onde falta essa prova, não é lícito cometer a
mencionada confusão.

11. Por isso, o leitor dever pôr na cabeça que procuramos, e procuraremos
sempre, explicar os fatos do passado com outros que nos sejam dados a
observar sempre, ao se partir do mais conhecido para o menos conhecido.
Aqui não nos ocupamos com as origens, porque não é ainda pergunta
historicamente importante, mas porque, para a busca das condições de
equilíbrio social, a que agora pretendemos, pouco ou nada servem as
origens, ao passo que são de grande valia os instintos e os sentimentos que
correspondem aos resíduos.

12. Principiemos por classificar os resíduos e, depois, classificaremos as


derivações. Não nos esqueçamos que, nos fenômenos sociais, além dos
sentimentos manifestados pelos resíduos, há os apetites, as inclinações etc.,
e que aqui não nos ocuparemos senão da parte correspondente aos resíduos.
Nela, são encontrados, frequentemente, muitos e, às vezes também,
muitíssimos resíduos simples. Assim, ocorre que as rochas contêm muitos
elementos simples, os quais, pela análise química, são separados. Há
fenômenos concretos, nos quais um resíduo prevalece sobre outros e que,
portanto, podem aproximativamente representar este resíduo. A
classificação que agora fazemos diz respeito ao aspecto objetivo, mas
devemos, às vezes, acrescentar algumas considerações subjetivas.

CLASSE I – INSTINTO DAS COMBINAÇÕES

(I-α) Combinações em geral.

(I-β) Combinações de coisas semelhantes ou opostas.

(I-β 1) Semelhança ou oposição em geral.

(I-β 2) Coisas raras e acontecimentos excepcionais.

(I-β 3) Coisas e acontecimentos terríveis.

(I-4 β) Estado feliz unido a coisas boas; estado infeliz unido a coisas ruins.

(I-5 β) Coisas assimiladas que produzem efeitos semelhantes ao próprio


caráter, raras vezes opostas.

(I-γ) Operação misteriosa de certas coisas e de certos atos.

(I-γ 1) Operações misteriosas em geral.

(I-γ 2) Nomes vinculados misteriosamente às coisas.

(I-δ) Precisa combinar os resíduos.

(I-ε) Precisa de desenvolvimentos lógicos.


(I-ζ) Fé na eficácia das combinações.

CLASSE II – PERSISTÊNCIA DOS AGREGADOS.

(II-α) Persistência das relações de um homem com outros homens e com


lugares.

(II-α 1) Relações de família e de coletividades afins.

(II-α 2) Relações com lugares.

(II-α 3) Relações de classes sociais.

(II-β) Persistência das relações dos vivos com os mortos.

(II-γ) Persistência das relações de um morto e das coisas que eram suas
enquanto estava vivo.

(II-δ) Persistência de uma abstração.

(II-ε) Persistência das uniformidades.

(II-ζ) Sentimentos transformados em realidades objetivas.

(II-η) Personificação.

(II-ϑ) Precisa de novas abstrações.

CLASSE III – NECESSIDADE DE MANIFESTAR OS SENTIMENTOS


COM ATOS EXTERNOS.

(III-α) Precisa operar manifestando-se mediante combinações.

(III-β) Exaltação religiosa.

CLASSE IV – RESÍDUOS EM RELAÇÃO COM A SOCIEDADE.

(IV-α) Sociedades particulares.

(IV-β) Precisa de Uniformidade.


(IV-β 1) Uniformidade obtida operando-se sobre si mesmo.

(IV-β 2) Uniformidade imposta aos outros.

(IV-β 3) Neofobia.

(IV-γ) Piedade e crueldade.

(IV-γ 1) Piedade de si refletida sobre os outros.

(IV-γ 2) Repugnância instintiva pelo sofrimento.

(IV-γ 3) Repugnância racionalizada pelos sofrimentos inúteis.

(IV-δ) Impor a si um mal para o bem dos outros.

(IV-δ 1) Expor a vida.

(IV-δ 2) Fazem com que os outros tomem parte dos seus próprios bens.

(IV-ε) Sentimentos de hierarquia.

(IV-ε 1) Sentimentos de superioridade.

(IV-ε 2) Sentimentos de inferioridade.

(IV-ε 3) Precisa de aprovação da coletividade.

(IV-ζ) Ascetismo.

CLASSE V – INTEGRIDADE DO INDIVÍDUO E DAS SUAS


DEPENDÊNCIAS

(V-α) Sentimentos que contrastam com as alterações do equilíbrio.

(V-β) Sentimentos de igualdade dos inferiores.

(V-γ) Restauração da integridade com operações atinentes aos indivíduos


dos quais a integridade foi ofendida.

(V-γ 1) Sujeitos reais.

(V-γ 2) Sujeitos imaginários ou abstratos.


(V-δ) Restauração da integridade com operações atinentes a quem o
ofendeu.

(V-δ 1) Ofensores reais.

(V-δ 2) Ofensores imaginários.

CLASSE VI – RESÍDUO SEXUAL.

13. Muitas vezes nos deparamos com derivações, ainda que não façamos
uso destes termos; e todos são encontrados sempre que se colocar na
cabeça as maneiras com as quais os homens visam dissimular, mudar e
explicar as características que, de forma adequada, têm seus modos muito
peculiares de operar.

Os homens se deixam persuadir principalmente pelos sentimentos


(resíduos) e, portanto, podem prever – o que depois é confirmado pela
experiência – que as derivações tiram força, não das considerações lógico-
experimentais ou, pelo menos, não exclusivamente destas, mas sim dos
sentimentos. Nas resultantes, o núcleo principal é constituído de um
resíduo ou por um certo número de resíduos, sendo que, em torno de tal
núcleo, se agrupam outros resíduos secundários. Tal agregado se faz nascer
e, quando nasce, se mantêm firme por uma força poderosa, que é a
necessidade de pôr o homem à prova de desafios lógicos, ou pseudológicos,
cuja necessidade se manifesta com os resíduos do gênero (I-ε). Assim, de
tais resíduos, com o acréscimo, depois, de outros, as derivações,
geralmente, retiram suas origens.

14. Já pensamos amplamente sobre os resíduos, e não restaria nada para


nós, no que diz respeito às resultantes, a não ser observar os resíduos
principais e os acessórios. Mas, com isso, teremos considerado somente a
substância das resultantes, e também há outros aspectos sob os quais as
derivações podem ser consideradas. Primeiro, pondo em mente a forma, há
de se notar a relação que a derivação tem com a lógica, isto é, se é um
raciocínio direto ou um sofisma. Tal estudo pertence aos tratados de lógica
e, aqui, não temos o propósito de fazê-lo. Depois, há de se considerar a
relação em que a derivação pode estar com a realidade experimental. Ela
pode ser rigorosamente lógica e, por conta de defeitos nas premissas, pode
não estar de acordo com a experiência; também pode só ser aparentemente
lógica e, por causa da indeterminação dos termos ou por outro motivo, não
ter nenhum sentido experimental, ou ter um sentido que só de longe foi
constatado pela experiência. Acrescentando-se outras dela, devemos
estudá-las agora com um propósito específico sob o aspecto subjetivo da
força persuasiva que elas possam ter.

15. Existem diversos critérios para classificar as derivações, segundo o


aspecto no qual são consideradas. Uma vez que, aqui, devemos prestar bem
atenção no caráter subjetivo das explicações que, com as derivações, são
dadas a certas ações, a certos pensamentos e à força persuasiva de tais
explicações, extraímos da índole destas o critério da nossa classificação.
Onde não existem explicações, faltam também as derivações, mas assim
que se recorre a elas ou se tenta a elas recorrer, nascem as derivações. O
animal, que não raciocina, que realiza somente atos do instinto, não tem
derivações; o homem, por sua vez, experimenta a necessidade de raciocinar
e, além disso, de estender um véu sobre os seus instintos e sobre os seus
sentimentos, de modo que, raramente, lhe falta nem que seja um germe de
derivação, assim como não lhe faltam os resíduos. Estes e aquelas são
encontrados, sempre que se estudam teorias e raciocínios que não são
rigorosamente lógico-experimentais. Daí se segue que nós nos deparamos
com a tipo mais simples de derivação, que existe em preceito puro, sem
motivo nem demonstração. Ele é usado pela criança e pelo ignorante, com
a tautologia: “Faz-se assim, porque se faz assim”, com o qual se expressam
simplesmente os resíduos da socialidade; já que, em essência, isso quer
dizer: “ Faço assim ou senão faço assim, porque na nossa coletividade se
costuma fazer assim”. Depois é que vem uma derivação um pouco mais
complexa, que visa dar razão ao uso, com a qual se diz: “Sim, faz-se assim
porque se deve fazer assim”. Estas derivações que são simplesmente
afirmações constituem a classe I. Mas já na última das derivações ora
observadas, espreitou-se uma entidade indeterminada e misteriosa, isto é, o
dever, e é a primeira menção, de um modo geral, com a qual se estendem
as derivações, que justamente aumentam quando invocadas, sob vários
nomes e sob diversos gêneros de sentimentos. Prosseguindo: os homens
não se satisfazem mais só com estes nomes, querem algo mais concreto e
querem também tornar racionais, de qualquer modo, o porquê de tais
nomes serem adotados. De onde veio este dever? Respondem os
ignorantes, os homens cultos, os filósofos e assim por diante, temos desde
respostas pueris do vulgo às mais obscuras, mas, sob o aspecto lógico-
experimental, não são as melhores as teorias da metafísica. O primeiro
passo se faz chamando, em auxílio, a autoridade dos ditados populares que
tiveram curso na coletividade, a autoridade dos homens e, com alguns
acréscimos novos, a autoridade dos seres sobrenaturais ou de
personificações que sentem e agem como homens. Temos, dessa forma, a
classe II das derivações. O raciocínio adquire novos desenvolvimentos,
torna-se sutil, abstrai-se, quando se fazem intervir interpretações de
sentimentos, entidades abstratas e interpretações dos desejos de seres
sobrenaturais; o que pode dar uma longuíssima cadeia de deduções lógicas
ou pseudológicas e produzir teorias que arejam as teorias científicas, entre
as quais encontramos as metafísicas e as teologias. Temos, desse modo, a
classe III. As derivações ainda não foram exauridas; permanece uma classe
extensa de que se têm provas verbais e será a classe IV. Nela, estão as
explicações de pura forma, que usurpam a aparência de explicações de
substância. Mais à frente, veremos como estas classes se dividem em
gênero e as estudaremos com um propósito específico; mas antes de
prosseguirmos, é necessário que façamos algumas considerações gerais
sobre as derivações e sobre as resultantes.

16. Comecemos por traduzir para a linguagem dos resíduos e das


derivações o que expusemos, adotando notações de letras alfabéticas. As
teorias concretas, nas matérias sociais, se compõem de resíduos e de
derivações. Os resíduos são manifestações de sentimentos. As derivações
compreendem raciocínios lógicos, sofismas, manifestações de sentimentos
adotados para derivar; elas são manifestações da necessidade de raciocinar
que o homem experimenta. Se esta necessidade se satisfizesse só com os
raciocínios lógico-experimentais, não haveria derivações e, em vez deles,
haveria teorias lógico-experimentais; mas a necessidade de raciocínio do
homem se satisfaz de muitos outros modos, isto é: com sentimentos, com
discursos vãos e inconclusivos; e é assim que nascem as derivações. Elas
são falhas para os dois extremos, isto é, para as ações exclusivamente do
instinto e para as ciências rigorosamente lógico-experimentais; elas se
encontram nos casos intermediários.

17. São justamente os raciocínios concretos correspondentes a estes casos


que são conhecidos diretamente. Aqui, fizemos a análise deles, separando
uma parte quase constante (a) e uma parte mais variável (b), às quais,
depois, colocamos os nomes de resíduos e de derivações, e vimos que a
parte de maior importância para o equilíbrio social é a dos resíduos. Mas,
dessa forma, somos contra a opinião comum, a qual, dominada pelo
conceito das ações lógicas, se inclina para inverter a relação acima
mencionada e para dar mais importância às derivações. Quem tem
consciência de uma derivação, acredita que a acolhe – ou que a rejeita – por
considerações lógico-experimentais, e não percebe que, em vez disso,
como de costume, é movido pelos sentimentos, e que o acordo – ou a
colisão – de duas derivações é acordo – ou colisão – de resíduos. Quem
então se dedica a estudar os fenômenos sociais se depara com as
manifestações da atividade, isto é, com as derivações, sem identificar as
causas da atividade em si, isto é, sem identificar os resíduos. Daí se segue
que a história das instituições sociais se tornou a história das derivações e,
muitas vezes, a história das simples verborragias. Acreditou-se fazer a
história das religiões, fazendo a história das teologias; a história da moral,
fazendo a história das teorias morais; a história das instituições políticas,
fazendo a história das teorias políticas. Além disso, tendo em vista que, em
todas estas teorias, a metafísica forneceu elementos absolutos, dos quais se
acreditou, com a pura lógica, extrair conclusões não menos absolutas, a
história de tais teorias se tornou a história dos desvios que, no plano
concreto, são observados de certos tipos ideais existentes na mente do
autor. Vários estudiosos, em nosso tempo, intuíram que tal caminho se
afastava da realidade e, para retornar a ela, substituíram a procura das
“origens” por estes raciocínios, sem se darem conta de que, desta maneira,
muitas vezes, levavam a cabo uma simples substituição de uma metafísica
por outra, explicando o mais conhecido com o menos conhecido,
explicando os fatos sujeitos à observação direta com as imaginações que,
para referir-se a tempos muito remotos, são inteiramente vazias de prova e
que, acrescentando princípios, como o da evolução única, transcendem
inteiramente à experiência.

18. Concluindo, as derivações são o material por todos adotado; mas os


autores lembrados dão às derivações valor intrínseco e as consideram como
diretamente operantes para determinar o equilíbrio social, ao passo que,
aqui, nós damos a elas somente o valor de manifestações e de indícios de
outras forças, que são as que operam, na realidade, para determinar o
equilíbrio social. Até agora, as ciências sociais foram, muitíssima vezes,
teorias constituídas por resíduos e por derivações, que tinham, ademais, um
escopo prático, visando a persuadir outros a operar de uma certa maneira
reputada útil à sociedade; a presente obra é uma tentativa, no entanto, para
levar estas ciências exclusivamente ao campo lógico-experimental, sem
nenhum escopo de utilidade prática imediata, com o só e único intento de
conhecer a uniformidade dos fatos sociais. Quem escreve um livro com o
escopo de estimular os homens a operar de um certo modo, deve
necessariamente recorrer às derivações, uma vez que estas constituem a
linguagem mediante a qual se chega até aos sentimentos dos homens e se
pode, então, modificar a atividade deles. Quem, ao contrário, visa
exclusivamente a um estudo lógico-experimental, deve, com a máxima
atenção, abster-se do uso das derivações, que, para ele, são objeto de
estudo, nunca meio de persuasão.

19. O escopo da derivação está quase sempre presente na consciência, para


quem quer demonstrar alguma coisa, mas é frequentemente inobservado,
para quem concorda com a conclusão da derivação. Quando um escopo é
uma certa norma, quem quer se justificar, procura juntá-lo a certos
resíduos, com raciocínios mais ou menos lógicos, se se visa a satisfazer
principalmente a necessidade de desenvolvimentos lógicos que fazem
prova para os que têm de ser persuadidos; ou com a junção de outros
resíduos, se se visa a operar principalmente seus sentimentos.

20. Tais operações, dispostas segundo a importância, podem ser indicadas


do seguinte modo: 1) O escopo. 2) Os resíduos pelos quais se move. 3) A
derivação. Uma figura gráfica melhor fará entender o fenômeno. Seja B o
escopo, ao qual se chega movendo-se dos resíduos R’, R”, R’’’,..., e por
meio da derivação R’r B, R’t B, R’v B... Por exemplo, nas teorias morais, o
escopo é o preceito que proíbe matar um outro homem. Pode se chegar a tal
escopo com uma derivação muito simples, isto é, com o tabu de sangue;
pode-se partir do resíduo de um deus pessoal e, com muitas e várias
derivações, atingir o escopo; pode-se partir de um resíduo metafísico ou de
utilidade social, ou de utilidade pessoal, ou de algum outro resíduo similar
e, por meio de um número extremamente grande de derivações, conseguir o
escopo.

21. Os teólogos, os metafísicos, os filósofos, os teóricos da política, do


direito, da moral, não concordam, de um modo geral, com a ordem ora
mencionada. Eles são persuadidos a atribuir o primeiro lugar às derivações;
os resíduos, para eles, são axiomas ou dogmas, e o escopo é simplesmente
a conclusão de um raciocínio lógico. Tendo em vista que, no geral, eles não
se entendem sobre a derivação, discutem, até ficar sem fôlego, por causa
dela e se dizem capazes de modificar os fatos sociais demonstrando o
sofisma de uma derivação. Eles se iludem e não compreendem que as suas
disputas não atingem a maioria dos homens, os quais, todavia, não
poderiam, de nenhum modo, entendê-las e que, por isso, não fazem caso
delas, a não ser como artigos de fé, com os quais concordam por meio de
certos resíduos. A Economia política foi e continua sendo, em parte, um
ramo da literatura e, como tal, não escapa das considerações sobre as
derivações. É fato que a prática seguiu um caminho totalmente divergente
da teoria.

22. Estas considerações ostentam para nós importantes conclusões, que


pertencem à lógica dos sentimentos.

1) Se se destrói o principal resíduo a partir do qual se move a derivação e,


se ele não é substituído por um outro, o escopo também desaparece. Isso
ocorre, geralmente, quando se raciocina de forma lógica a partir de
premissas experimentais, isto é, dos raciocínios científicos. Aliás, também
neste caso, pode acontecer de a conclusão permanecer a mesma, quando as
premissas erradas são por outras substituídas. De outra senda, nos
raciocínios não-científicos, é muito comum o caso em que as premissas
abandonadas são substituídas por outras: um resíduo é substituído por
outros. O caso excepcional é aquele no qual essa substituição não tem
lugar. Entre esses casos extremos, há os intermediários. A destruição do
resíduo na qual se movimenta a derivação, não faz desaparecer totalmente
o escopo, mas o arrefece e o estremece; ela permanece, mas é acolhido com
menos fervor. Por exemplo, observou-se nas Índias que os indianos que se
converteram, deixaram a moralidade da sua religião, sem adquirir a da sua
nova religião e a dos novos costumes.

2) Quando se raciocina cientificamente, se se puder demonstrar que a


conclusão não se segue logicamente das premissas, a conclusão cairá por
terra. Ao contrário, no raciocínio não-científico, se se destrói uma das
formas de derivação, logo surge uma outra. Se se mostra a vaidade do
raciocínio que une um certo resíduo a uma conclusão (ao escopo), na
maioria das vezes, o efeito é somente o de substituir a derivação primitiva,
ora destruída, por uma nova. Acontece isso porque principais são o resíduo
e o escopo; secundária, e bastante frequentemente, é a derivação. Por
exemplo, as diversas seitas cristãs têm doutrinas sobre as boas obras e
sobre a predestinação, as quais, sob o aspecto lógico, são totalmente
diferentes e até mesmo opostas e contraditórias; no entanto, em nada são
diferentes da moral prática. Eis um chinês, um muçulmano, um cristão
calvinista, um cristão católico, um kantiano, um hegeliano e um
materialista, os quais se abstêm igualmente de roubar, mas cada um dá,
pelos seus atos, uma explicação diferente. Enfim, são as derivações que
unem um resíduo, que, em todos eles, existe, a uma conclusão que todos
eles aceitam. E se alguém inventar uma nova derivação ou destruir uma das
existentes, não conseguirá praticamente nada, e a conclusão permanecerá a
mesma.

3) Nos raciocínios científicos, as conclusões mais robustas são obtidas por


meio de deduções rigorosamente lógicas e de premissas das quais a
verificação experimental é a mais perfeita possível. Nos raciocínios não-
científicos, as conclusões mais fortes são constituídas por um resíduo
poderoso, sem derivações. Têm-se, enfim, as conclusões obtidas por um
forte resíduo ao qual se acrescentam, na forma de derivação, resíduos não
muito fracos. À medida que se estende o traço que corre entre o resíduo e a
conclusão, à medida que os raciocínios lógicos são substituídos por
resíduos, diminui a força da conclusão, exceto para os poucos estudiosos. O
vulgo é persuadido pela doutrina cristã, nunca pelos sutis debates
teológicos. Estes têm apenas um efeito indireto, isto é, o vulgo os admira
sem entendê-los, e esta admiração lhes confere autoridade, que se estende
às conclusões. Isso acontece nos nossos dias para o Capital de Marx.
Pouquíssimos alemães socialistas o leram, raras como as moscas brancas
são os que puderam compreendê-lo; mas os debates sutis e obscuros do
livro tiveram a admiração dos que estão do lado de fora deles e são os que
acabam conferindo autoridade ao livro. Tal admiração determinou a forma
da derivação, mas não ainda os resíduos, nem as conclusões, que existiam
antes do livro, que continuarão a existir quando o livro for esquecido e que
são comuns tanto aos marxistas quanto aos não-marxistas.

4) Sob o aspecto lógico, duas proposições contraditórias não podem


subsistir conjuntamente; sob o aspecto das derivações não-científicas, duas
proposições que parecem contraditórias podem subsistir conjuntamente
para o mesmo indivíduo, na mesma cabeça. Por exemplo, as proposições
seguintes parecem contraditórias: “Não se deve matar. Deve-se matar. –
Não se deve apropriar dos bens alheios. É lícito apropriar-se de bens
alheios. – Devem-se perdoar as ofensas. Não se devem perdoar as ofensas”.
No entanto, podem ser aceitas, a um só tempo, pelo mesmo indivíduo, por
meio das interpretações e das distinções que servem para justificar a
contradição. Semelhantemente, sob o aspecto lógico, se A é igual a B,
segue-se, rigorosamente, que B é igual a A; mas essa consequência não é
necessária no raciocínio das derivações.

23. Além das derivações, que são constituídas de um grupo de resíduos


principais e de um outro grupo secundário de resíduos que servem para
derivar, temos as simples uniões de mais resíduos, ou de mais outros
grupos, que constituem só um novo grupo de resíduos. Ademais, temos as
consequências lógicas – ou se acredita que sejam – da consideração do
interesse individual ou coletivo, que fazem parte das classes de deduções
científicas, das quais aqui não nos ocupamos.

24. A demonstração das derivações é muitíssimas vezes diferente da razão


que faz acolher as derivações. Algumas vezes, podem coincidir; por
exemplo, um preceito é demonstrado com a autoridade e recebido pela
autoridade. Outras vezes, podem ser inteiramente diferentes; por exemplo,
quem demonstra alguma coisa valendo-se da ambiguidade de uma termo,
certamente não diz: “A minha demonstração é validada por meio do engano
causado pela ambiguidade de um termo”; ao passo que quem acolhe tal
derivação, sem estar ciente disso, equivoca-se pelo raciocínio verbal.

25. Classificação das derivações:

CLASSE I – AFIRMAÇÃO.

(I-α) Fatos experimentais, ou imaginários.

(I-β) Sentimentos.

(I-γ) Misto de fatos e de sentimentos.

CLASSE II – AUTORIDADE.

(II-α) Autoridade do homem, ou de mais homens.

(II-β) Autoridade da tradição, dos usos e dos costumes.

(II-γ) Autoridade de um ser divino, ou de uma personificação.

CLASSE III – ACORDO COM SENTIMENTOS, OU COM PRINCÍPIOS.


(III-α) Sentimentos.

(III-β) Interesse individual.

(III-γ) Interesse coletivo.

(III-δ) Entidades jurídicas.

(III-ε) Entidades metafísicas.

(III-ζ) Entidades sobrenaturais.

CLASSE IV – PROVAS VERBAIS.

(IV-α) Termo indeterminado para indicar uma coisa real, e coisa


indeterminada correspondente a um termo.

(IV-β) Termo que indica uma coisa e que faz nascer sentimentos
acessórios, ou sentimentos acessórios que fazem escolher um termo.

(IV-γ) Termo com vários sentidos, e várias coisas com um só termo.

(IV-δ) Metáforas, alegorias e analogias.

(IV-ε) Termos dúbios, indeterminados, que não têm correspondência com o


concreto.

5. As élites e a sua circulação

1. HETEROGENEIDADE SOCIAL E A CIRCULAÇÃO ENTRE AS


VÁRIAS PARTES. Muitas vezes, já nos deparamos com a consideração
desta heterogeneidade e teremos de nos ocupar mais dela, agora que
direcionamos o nosso estudo para as condições do equilíbrio social; ocorre,
pois, que, para não ter o caminho bloqueado, devemos pensar nelas
deliberadamente.

A heterogeneidade da sociedade e a circulação entre as várias partes


poderiam ser estudadas separadamente, mas, uma vez que, na realidade, os
fenômenos correspondentes estão unidos, será conveniente estudá-las em
conjunto para evitar repetições. Agrade ou não agrade a certos teóricos, o
fato é que a sociedade humana não é homogênea e que os homens são
diferentes física, moral e intelectualmente; aqui queremos estudar os
fenômenos reais, de modo que, de tal fato, devemos nos dar conta. E
também nós devemos nos dar conta de outras coisas de que as classes
sociais não estão inteiramente separadas, nem sequer nos países onde
existem castas e que, nas nações civilizadas modernas, acontece uma
intensa circulação entre as várias classes. É impossível considerar, em toda
a sua extensão, o argumento da diversidade dos muitíssimos grupos sociais
e os tantos outros modos com os quais se mesclam. Portanto, como de
costume, é preciso, não podendo ter o máximo, contentar-se com o mínimo
e procurar tornar o problema mais fácil para torná-lo também mais
administrável. É um primeiro passo dado em um caminho que outro
poderá, nele, prosseguir e percorrer. Vamos considerar o problema somente
em relação ao equilíbrio social e vamos procurar reduzir o máximo possível
o número dos grupos e os modos de circulação, unindo os fenômenos que,
de certo modo, se mostram análogos.

2. AS CLASSES ELEITAS DA POPULAÇÃO E A SUA CIRCULAÇÃO.


Vamos começar dando uma definição teórica do fenômeno, a mais precisa
possível, e depois veremos as considerações práticas que a ela podemos
substituir, para uma primeira aproximação. Deixaremos completamente de
lado, por ora, a consideração de índole boa ou ruim, útil ou nociva,
louvável ou condenável das diversas características dos homens, e
prestamos atenção só no grau que eles possuem, ou seja, se são leves,
médios, grandes e mais precisamente qual indicador pode ser atribuído a
cada homem, tendo em conta o grau de caráter considerado.

Vamos supor, então, que, em cada ramo da atividade humana, seja atribuído
a um indivíduo qualquer um indicador que aponte a sua capacidade, quase
como são atribuídos os pontos nos exames das várias matérias em uma
escola. Por exemplo, ao bom comerciante, será dado 10; ao que não
consegue ter um cliente, daremos 1 para poder dar zero a quem é um
absoluto cretino. A quem soube ganhar milhões, não importa como,
atribuiremos dez; a quem ganhar milhares de liras, daremos 6; a quem
consegue apenas não morrer de fome, daremos 1; a quem está em um
albergue para mendigos, daremos zero. À mulher política que, como
Aspásia de Péricles, Madame de Maintenon de Luís XIV Madame de
Pompadour de Luís XV, soube conquistar um homem poderoso e ter
participação no governo em que ele administra a coisa pública, daremos um
número alto qualquer como 8 ou 9; para a prostituta que satisfaça só os
desejos de tais homens e não trabalha em nada para favorecer a coisa
pública, daremos zero. Ao caloteiro valentão que se mete no meio das
pessoas e sabe escapar ao código penal, atribuiremos 8, 9 ou 10, segundo o
número de otários que ele soube pegar na rede e o dinheiro que soube
arrancar deles; ao pobre ladrão de galinhas que rouba um talher do
restaurante e, além isso, é levado preso pela polícia, daremos 1. A um poeta
como Carducci, daremos 8 ou 9, de acordo com o gosto de cada um; a um
canastrão que faz as pessoas saírem correndo ao recitar os seus sonetos,
daremos zero. Para os jogadores de xadrez, poderemos ter indicadores mais
precisos, cuidando apenas de quantos e quais jogos eles venceram. E assim
por diante, para todos os ramos da atividade humana.

4. Vamos tomar o devido cuidado para que raciocinemos de um estado


factual, não de um estado potencial. Se na prova de inglês, vem alguém e
diz: “Se eu quisesse, poderia saber muito bem inglês; só não sei, porque
não quero aprender”; o examinador responderá: “O porquê ela não sabe,
pouco me importa; se ela não sabe, vou lhe dar zero”. Se, da mesma forma,
dissesse: “Este homem não rouba, não porque ainda não sabe, mas porque é
um homem honesto”, responderemos: “Bem, disso lhe rendemos louvor,
mas, como ladrão, lhe atribuiremos zero”.

5. Há quem goste de Napoleão I como um deus, há quem odeie como o


maior dos malfeitores. Quem tem razão? Não queremos solucionar esta
questão a propósito da existência de argumentos totalmente diferentes uns
dos outros. A despeito de ser bom ou ruim, o certo é que Napoleão I não era
um cretino, nem sequer um homem simplório, como o são milhões de
outros homens: tinha qualidade excepcionais e isso basta para que o
coloquemos em um patamar mais elevado, mas sem querer minimamente
prejudicar a solução das perguntas que se poderia pôr sobre a ética de tais
qualidades, ou sobre sua utilidade social.

6. Em suma, aqui, como de costume, fazemos uso da análise científica, que


disseca os argumentos e os estuda separadamente. Sempre, como
habitualmente, é necessário, no rigor das variações insensíveis dos
números, substituir as variações, por salto, das grandes classes, como nas
avaliações distinguimos os que são aprovados dos que não são aprovados,
como, no que diz respeito à idade, distinguimos as crianças, os jovens e os
idosos.
7. Vamos fazer, então, uma classe dos que têm os indicadores mais
elevados no ramo da sua atividade, à qual daremos o nome de classe eleita
(elite).

8. Para o estudo que esperamos fazer, que é o do equilíbrio social, convém


ainda repartir em duas esta classe, isto é, vamos colocar de uma lado os
que, direta ou indiretamente, participa bastante do governo e constituem a
classe eleita de governo, e o restante será a classe eleita que não é de
governo.

9. Por exemplo, um jogador de xadrez famoso faz certamente parte da


classe eleita; mas é certo também que os seus méritos como jogador de
xadrez não lhe abrem o caminho para operar no governo e, portanto, se
disso não se seguirem outras qualidades suas, ele não fará parte da classe
eleita do governo. Os que adoram soberanos absolutistas, muitas vezes,
fazem parte da classe eleita, seja pela beleza, seja pelos dotes intelectuais;
mas só uma parte deles, que tinha, além de tudo, especial inteligência que
se exige para a política, é que participará do governo.
10. Temos, então, dois estratos na população, isto é: 1) O estrato inferior, a
classe não eleita, da qual, por ora, não investigaremos a função que ela
pode ter no governo; 2) O estrato superior, a classe eleita, que se reparte em
duas, isto é: (a) A classe eleita de governo; (b) A classe eleita que não é de
governo.
11. No plano concreto, não há nenhum estudo que atribuía a cada indivíduo
o seu lugar nestas várias classes e como estes lugares são supridos por
outros meios: com certas marcas registradas que, na melhor das hipóteses,
alcançam esse objetivo. Marcas registradas semelhantes existem também
onde há essas análises. Por exemplo, a marca registrada do advogado indica
um homem que deveria conhecer as leis e que, muitas vezes, as conhece
mesmo, mas que, algumas vezes, não conhece nada sobre elas.
Analogamente, na classe eleita de governo, estão os que têm aquela marca
registrada dos cargos políticos não muito baixos, por exemplo, ministros,
senadores, deputados, chefes de divisão nos ministérios, presidentes das
cortes de apelação, generais, coronéis etc., com as devidas e raríssimas
exceções de quem apenas conseguiu se enturmar no meio deles sem ter
aquelas qualidades correspondentes à marca registrada que ele não obteve.
12. Estas exceções são muito maiores para os advogados, os médicos, os
engenheiros ou para quem se enriqueceu com sua própria arte ou para
quem se mostra brilhante na música, na literatura etc., porque, entre outros
motivos, há o fato de que, em todos esses ramos da atividade humana, as
marcas são obtidas diretamente de cada indivíduo, enquanto, para a classe
eleita, parte de suas marcas é hereditária, como, por exemplo, as da riqueza.
Em outros tempos, houve também os herdeiros na parte eleita de governo,
agora permanecem como tais os soberanos; mas se a herança desapareceu
diretamente, ela ainda permanece poderosa indiretamente e quem tem um
grande patrimônio, facilmente é nomeado senador em certos países ou se
elege deputado, comprando os eleitores e os adulando e, se necessário for,
se mostrará ainda aos outros com uma armadura democrática, socialista ou
anárquica. A riqueza, os parentescos e os relacionamentos também ajudam
em muitos outros casos e fazem pôr a marca da classe eleita, em geral, ou
da classe eleita de governo, em particular, a quem não a deveria ter.
13. Onde a unidade social é a família, a marca do chefe de família também
serve a todos aqueles que a compõem. Em Roma, quem se tornava
imperador geralmente tirava os seus libertos na classe superior, muitas
vezes mesmo na parte eleita de governo. Aliás, poucos ou muitos desses
libertos que tinham participação no governo possuíam boas ou más
qualidades, pelas quais, por virtude própria, a marca que obtinham pelo
favor de César era boa. Nas nossas sociedades, a unidade social é o
indivíduo, mas o lugar que ele ocupa na sociedade também beneficia à sua
esposa, aos seus filhos, aos seus familiares e aos seus amigos.
14. Se todos estes desvios do tipo durassem poucos momentos, eles
poderiam ser negligenciados, como praticamente são negligenciados nos
casos em que, para exercer uma função, se exige um diploma. Sabe-se que
há pessoas que têm tais diplomas sem merecê-los, mas, enfim, a
experiência mostra que, no geral, isso pode não ser levado em
consideração.
15. Ainda se poderiam, ao menos sob certos aspectos, negligenciar tais
desvios, onde permanecessem praticamente constantes, isto é, onde pouco
ou nada fizesse variar a proporção entre o total de uma classe e as pessoas
que têm a marca dela, sem ter as suas qualidades correspondentes.
16. Em vez disso, os casos reais que devem ser considerados nas nossas
sociedades diferem desses dois. Os desvios não são tão poucos assim, que
possam ser negligenciados; o seu número é variável e, de tais variações,
seguem os fenômenos muito importantes para o equilíbrio social; temos,
então, de estudá-los de forma deliberada.
17. Ademais, foi considerado como os vários grupos da população se
mesclam. Quem, de um grupo, passa a um outro, geralmente ostenta certas
inclinações, certos sentimentos, certas atitudes que foram adquiridos no
grupo de origem e devem ser levados em conta nesta circunstância.
18. A tal fenômeno, no caso particular em que consideram só os dois
grupos, isto é, a classe eleita e a classe não eleita, dá-se o nome de
CIRCULAÇÃO DA CLASSE ELEITA (circulation des élites).
19. Diante do exposto, devemos prestar atenção principalmente: 1) Em um
mesmo grupo, na proporção entre o total do grupo e o número dos que
realmente fazem parte dele; 2) Entre os diversos grupos, nos modos com os
quais têm lugar as passagens de um grupo a outro e na intensidade deste
movimento, isto é, na velocidade da circulação.
20. Deve-se notar que tal velocidade de circulação se deve considerar não
só de uma maneira absoluta, mas também em relação à oferta e à procura
de certos elementos. Por exemplo, um país que está sempre em paz, precisa
de poucos guerreiros na classe governante e o que eles vierem a produzir
pode suprir as necessidades desse povo. Se houver um estado de guerra
contínuo, poderá haver muitos guerreiros, a produção, embora
permanecendo a mesma, pode mesmo assim ser deficiente diante das
necessidades. Percebemos, de passagem, que esta foi uma das causas da
destruição de muitas aristocracias.
21. Outro exemplo. Em um país onde há pouca indústria e pouco comércio,
a produção dos indivíduos, que tenham um elevado grau de qualidade
exigida para estes gêneros de atividade, é grande. A indústria e o comércio
se desenvolvem; a produção, embora permaneça a mesma, não é mais igual
à necessidade.

22. Não se deve confundir o estado de direito com o estado de fato; só este
último, ou quase só, importa para o equilíbrio social. Há muitíssimos
exemplos de castas legalmente fechadas, nas quais ocorrem, com efeito,
muitas infiltrações. De outro lado, de que adianta abrir uma casta no plano
do direito, se faltam condições factuais que permitam nela entrar? Se
alguém ficar rico, fará parte da classe governante; mas se ninguém ficar, é
da natureza dessa classe que ela seja fechada; e se poucos se enriquecem, é
como se a lei pusesse grandes obstáculos de acesso a ela. Um fenômeno
desse tipo se vê no final do Império Romano. Quem se tornasse rico,
entrava para a Ordem dos Curiais; porém, poucos, à época, conseguiam tal
intento.
Em teoria, poderíamos considerar muitos grupos; na prática, entretanto,
deveríamos nos limitar necessariamente aos grupos mais importantes.
Devemos, então, proceder com o método das aproximações sucessivas,
passando do simples para o composto.
23. A CLASSE SUPERIOR E A CLASSE INFERIOR EM GERAL. O
mínimo que podemos fazer é dividir a sociedade em dois estratos, isto é,
um estrato superior, no qual estão comumente os governantes, e um estrato
inferior, onde estão os governados. Este fato, bem como o fato da
circulação dos indivíduos por entre esses dois estratos, são tão evidentes
que, ao tempo todo, se impõem, até mesmo para aquele observador menos
atento; quando Platão ouviu falar desse assunto, quis regulá-lo
artificialmente; muitos discutiram sobre homens novos, sobre os novos
ricos, e há um grande número de estudos literários sobre eles. Vamos dar,
agora, contornos mais precisos a considerações que estão sendo analisadas
há algum tempo. Já mencionamos as diferentes repartições dos resíduos nos
vários grupos sociais e, principalmente, na classe superior e na classe
inferior. Tal heterogeneidade social é um fato que toda observação, até
mesmo a mais limitada, permite conhecer.
24. As mudanças dos resíduos da classe I e da classe II, que acompanham
os estratos sociais mais importantes, dizem respeito à determinação do
equilíbrio. O observador vulgar nos adverte sobre isso de um modo
especial, isto é, sob a forma de mudanças, no estrato superior, dos
sentimentos ditos “religiosos”; notou-se que houve tempos em que eles
diminuíam e outros em que eles aumentavam, sendo que tais ondas
correspondiam a mudanças sociais significativas. De um modo mais
preciso, pode-se descrever o fenômeno dizendo que, no estrato superior, os
resíduos da classe II vão diminuindo pouco a pouco, até que eles voltam a
aumentar em razão de uma maré que se move a partir do estrato inferior.
25. No final da República Romana, as classes altas já não tinham mais
tantos sentimentos religiosos ou, quando tinham, eram eles muitos fracos.
Tais sentimentos tiveram um incremento significativo, quando chegaram às
classes altas homens das classes baixas, isto é, os forasteiros, os libertos e
outros mais que o Império Romano introduziu nas classes altas. Novo e
forte incremento ocorreu quando, ao tempo do baixo império, o governo
passou para uma burocracia proveniente das classes baixas e para uma
plebe militar; e foi o tempo em que a prevalência dos resíduos da classe II
se manifestou com a decadência da literatura, das artes e das ciências, e
com a invasão das religiões orientais, principalmente do cristianismo.
26. A Reforma Protestante no século XVI, a Revolução Inglesa ao tempo
de Cromwell, e a Revolução Francesa de 1789 demonstram grandes marés
religiosas que, nascidas nas classes inferiores, levam a pique o ceticismo
das classes superiores. Em nossos dias, os Estados Unidos da América,
onde é muito intenso o movimento que leva para o alto os indivíduos das
classes inferiores, nos mostram um povo em que têm muito poder os
resíduos da classe II. Nele, nascem abundantemente religiões excêntricas,
em contraste com todo sentimento científico, como seria a Ciência Cristã, e
onde se têm leis hipócritas para impor a moral, semelhantes àquelas do
Medievo europeu.
27. No estrato superior da sociedade, na classe eleita, estão nominalmente
certos agregados, às vezes não tão bem definidos, e que se dizem
aristocracias. Há casos em que o maior número dos que pertencem a tais
aristocracias tem as características para nelas permanecer, e há outros casos
em que um número significativo de seus componentes são delas privados.
Podem ter participação, em maior ou em menor medida, na classe eleita de
governo, ou serem dela excluídos.
28. Em sua origem, as aristocracias guerreiras, religiosas e comerciais, as
plutocracias, salvas poucas exceções que sequer levamos em conta, deviam
fazer parte da classe eleita e, às vezes, a constituíam por inteiro. O
guerreiro vitorioso, o comerciante próspero e o plutocrata enriquecido eram
certamente homens de tal envergadura que todos eles, na sua arte, eram
superiores ao vulgo. Naquela época, a marca registrada da aristocracia
correspondia ao seu caráter efetivo; mas então, com o passar do tempo,
ocorreu uma cisão que, muitas vezes, foi apenas significativa e, às vezes,
foi muito significativa; enquanto, de outro lado, certas aristocracias que, na
origem, tinham grande participação na classe eleita de governo acabaram
por constituir só uma parte mínima dela e isto se segue, principalmente,
para a aristocracia guerreira.
29. As aristocracias não duram. Qualquer que sejam as suas causas, é
incontrastável que, depois de um certo tempo, desaparecem. A história é
um cemitério de aristocracia. O povo ateniense era uma aristocracia se
comparado ao restante da população de metecos e de escravos;
desapareceu, sem deixar descendência. Desapareceram as várias
aristocracias romanas. Desapareceram as aristocracias bárbaras. Onde
estão, na França, os descendentes dos conquistadores francos? A genealogia
dos Lordes ingleses está corretíssima: permanecem pouquíssimas famílias
que descendem dos aliados de Guilherme, o Conquistador, desaparecendo
todas as outras. Na Alemanha, a aristocracia atual é, em grande parte,
constituída pelos descendentes dos vassalos dos antigos senhores. A
população dos Estados europeus cresceu, enormemente, por muitos séculos
nesta região; todavia, é certo, certíssimo, que as aristocracias não cresceram
na mesma proporção.
30. A decadência das aristocracias não se mostra somente
quantitativamente, mas também qualitativamente, no sentido de que, nelas,
diminui a energia e se modificaram as proporções dos resíduos que a elas
favoreceram para conquistar e conservar o poder; mas sobre isso vamos
falar mais à frente. A classe governante foi restaurada não só em número,
mas, e isso é o que mais interessa, na qualidade das famílias que vêm das
classes inferiores, que ostentam nela a energia e as proporções dos resíduos
necessários para se manter no poder. Também se restaura pela perda de
seus componentes que, em sua maior parte, decaíram.
31. Onde um destes movimentos cessa e, pior ainda, onde ambos cessam, a
parte governante começa a ir em direção à ruína que, frequentemente, leva
a reboque também a de toda nação. É causa poderosa de perturbação do
equilíbrio o acúmulo de elementos superiores nas classes inferiores e, vice-
versa, de elementos inferiores nas causas superiores. Se as aristocracias
humanas fossem iguais às raças selecionadas de animais que se reproduzem
por longo tempo, mais ou menos com as mesmas características, a história
da raça humana seria totalmente diferente da que conhecemos.
32. Por meio da circulação das classes eleitas, a classe eleita de governo
está em um estado de contínua e lenta transformação, ela escorre igual a
um rio e a classe eleita de hoje é diferente da de ontem. Às vezes,
observam-se repentinas e violentas perturbações, como seriam as
inundações de um rio e, depois, a nova classe eleita de governo volta a se
modificar lentamente: o rio retorna ao seu leito, escorre, de novo,
regularmente.
33. As revoluções acontecem, porque, seja pelo atraso no processo de
circulação da classe eleita, seja por outra causa, acumulam-se, nos estratos
superiores, elementos decadentes que não têm mais os resíduos capazes de
mantê-los no poder e que recusam o uso da força, ao passo que aumentam,
nos estratos inferiores, elementos de qualidade superior que possuem os
resíduos aptos a exercer o governo e que estão dispostos a fazer uso da
força.
34. Geralmente, nas revoluções, os indivíduos dos estratos inferiores são
capitaneados pelos indivíduos dos estratos superiores, porque, nestes, estão
as qualidades intelectuais úteis para dispor a batalha, ao passo que lhes
faltam os resíduos que são ministrados, de forma precisa, pelos indivíduos
dos estratos inferiores.
35. As mudanças violentas ocorrem em espasmos e, portanto, o efeito não
segue imediatamente a causa. Quando uma classe governante ou uma nação
são mantidas a longo prazo pela força e se enriquecem, podem ainda
subsistir um pouco de tempo mais sem a força, comprando a paz dos
adversários e pagando não só com o ouro, mas também com o sacrifício do
decoro e com a reverência de que até então haviam gozado e que
constituem um certo capital. Nos primeiros, o poder se mantém com as
concessões e nasce o erro de que se possa fazer isso a toda hora. Assim, o
Império Romano, em decadência, comprava a paz dos bárbaros com a
moeda e com as honras; assim, Luís XVI da França, consumindo em
pouquíssimo tempo a herança ancestral do amor, do respeito e da
reverência quase religiosa pela monarquia, pôde, cedendo a toda hora, ser o
rei da revolução; assim, a aristocracia inglesa pôde prolongar o seu poder
desde a última metade do século XIX até a aurora da sua decadência,
assinalada pelo Parliament Bill, do início do século XX.

6. O Sistema Social

1. OS ELEMENTOS. A forma da sociedade é determinada por todos os


elementos que sobre ela operam e, uma vez determinada, reopera sobre
esses mesmos elementos; então, pode-se dizer que ocorre uma mútua
determinação. Entre os elementos, podemos distinguir as seguintes
categorias: 1) O solo, o clima, a flora, a fauna, as circunstâncias geológicas,
mineralógicas etc.; 2) Outros elementos externos a uma dada sociedade, em
um dado tempo, isto é, as ações das outras sociedades sobre ela, que são
externas no espaço, e as consequências do estado anterior a essa sociedade,
que são externa a ela no tempo; 3) Elementos internos, entre os quais os
principais são a raça, os resíduos, ou seja, os sentimentos que manifestam,
as inclinações, os interesses e a aptidão para o raciocínio e para a
observação, o estado das consciências etc. As derivações também estão
entre estes elementos.
2. Os elementos cuja existência notamos não são independentes, a maior
parte deles é interdependente. Além disso, entre os elementos, devem ser
postas as formas que se se opõem à dissolução e à ruína das sociedades que
perduram no tempo; então, quando uma destas é constituída sob uma certa
forma determinada pelos outros elementos, age, por sua vez, sobre estes
elementos, que, neste sentido, também devem ser considerados em um
estado de interdependência com ela. Algo semelhante se observa nos
organismos dos animais. Por exemplo, a forma dos órgãos determina o
gênero de vida, mas este, por sua vez, age sobre os órgãos.
3. Para determinar internamente a forma social, seria necessário, antes de
mais nada, conhecer todos estes numerosíssimos elementos e, depois, saber
como eles operam e de forma quantitativa, isto é, seria necessário
estabelecer indicadores para os elementos e para os seus efeitos e
estabelecer a dependência entre eles, enfim, estabelecer todas as condições
que determinam a forma da sociedade, que, com o uso da quantidade, se
exprimiria em equações. Estas deveriam ser em números iguais aos das
incógnitas e as determinariam completamente.
4. Um estudo completo das formas sociais deveria considerar, ao menos, os
principais elementos que as determinam, negligenciando somente aqueles
cuja obra pode ser reputada acessória. Mas isso ainda não é possível
atualmente para as formas sociais, como não o é para as formas animais ou
vegetais e é, portanto, necessário nos restringirmos a um estudo que
investigue só parte do argumento. Felizmente para o nosso estudo, vários
elementos operam sobre as inclinações e sobre os sentimentos dos homens
e, portanto, considerando os resíduos, levaremos indiretamente em conta os
tais elementos.
5. A obra da primeira categoria de elementos indicada no § [1], isto é, do
solo, do clima etc., é certamente muito importante; bastaria para
demonstrar isso a comparação entre a civilização dos povos das regiões
tropicais e a dos povos das regiões temperadas; muitos estudos foram feitos
com este propósito, mas até agora sem render grandes frutos. Vamos passar
a estudar aqui diretamente a ação desses elementos, mas os levaremos em
conta indiretamente, assumindo como dados os resíduos, as inclinações e
os interesses dos homens submetidos à ação de tais elementos.
6. Para evitar maiores dificuldades, restringiremos nosso discurso aos
povos europeus e da bacia do Mediterrâneo, na Ásia e na África. Assim,
deixaremos também de lado as importantes e insolúveis questões relativas à
raça. Das ações dos outros povos sobre um deles, necessariamente devemos
levá-las em conta, dado que os vários povos da região considerada jamais
ficaram isolados; mas o poder militar, político, intelectual, econômico etc.,
com o qual se manifestam tais ações, dependem de elementos dos
sentimentos, das consciências, dos interesses e, portanto, será possível
derivar, pelo menos em parte, desses elementos.
7. De todo modo, seja pequeno ou grande o número dos elementos que
consideramos, vamos supor que eles constituam um sistema, que
chamaremos sistema social, e nos proporemos a estudar a sua índole e a
sua propriedade.
Tal sistema muda a sua forma e a sua característica com o tempo e, quando
o denominamos sistema social, entendemos este sistema considerado tanto
em um momento determinado, quanto nas transformações subsequentes
que ele sofre em um espaço de tempo determinado. Similarmente, quando
se denomina o sistema solar, entende-se tal sistema considerado tanto em
um momento determinado, quanto nos momentos subsequentes que
compõem um espaço de tempo pequeno ou grande.
8. O ESTADO DE EQUILÍBRIO. Primeiramente, se quisermos raciocinar
um pouco mais rigorosamente, devemos definir o estado em que queremos
considerar o sistema social, cuja forma está a toda hora mudando. O estado
real, estático ou dinâmico, do sistema é determinado pelas suas condições.
Vamos supor que, artificialmente, se operem quaisquer modificações na sua
forma (movimentos virtuais), logo se seguirá uma reação no sentido de
reconduzir a forma mutável no seu estado primitivo, tendo em vista a
mutação real. Se não fosse assim, tal forma e as suas mutações reais não
seriam determinadas, mas permaneceria à mercê do acaso.
9. Podemos nos valer de tal propriedade para definir o estado que queremos
considerar, e que, por ora, indicaremos com a letra X. Isto é, diremos que
ele é de tal forma que, se se introduzisse artificialmente uma modificação
qualquer, diferente da que se tenta na realidade, logo se teria uma reação
que tenderia a reconduzi-lo ao estado real. Com isso, foi definido
rigorosamente o estado X.
10. No nosso estudo, vamos nos deter a certos elementos, como o químico
se detém nos corpos simples, mas não afirmamos, de forma alguma, que os
elementos a que nos detivemos não são reduzíveis a um número menor, ou
mesmo a um único, se se preferir; como o químico não afirma que o
número dos corpos simples não são reduzíveis e que, se preferir, não
podem um dia ser reconhecidos como diferentes manifestações de um só
elemento.
11. ORDENAMENTO DO SISTEMA SOCIAL. O sistema econômico é
composto de certas moléculas movidas pelos gostos e submetidas aos
vínculos dos obstáculos para obter os bens econômicos. O sistema social é
muito mais complexo, e ainda que queiramos torná-lo simples o quanto for
possível, sem cair em erros muito graves, devemos, ao menos, considerá-lo
como composto de certas moléculas, onde estão resíduos, derivações,
interesses e inclinações e que, sujeitos a numerosos vínculos, realizam
ações lógicas e ações não-lógicas. No sistema econômico, a parte não-
lógica é inteiramente rejeitada nos gostos e é negligenciada, dado que a
suposição destes gostos já está dada. Pode-se perguntar se o mesmo não
poderia ser feito para o sistema social; isto é, tomar como dados de fato os
resíduos, em que seria rejeitada a parte não-lógica, e estudar as ações
lógicas que de tais resíduos têm origem. Ter-se-ia, de fato, assim, uma
ciência que seria semelhante à Economia pura ou ainda à Economia
aplicada. Mas infelizmente a semelhança cessa no que diz respeito à
correspondência com a realidade. Desta, não se afasta muito a hipótese de
que os homens realizam ações econômicas que, em média, podem ser
consideradas como lógicas, para satisfazer os seus gostos; assim, as
consequências de tais hipóteses dão uma forma geral do fenômeno, cujas
divergências com a realidade são poucas e não muito grandes, exceto em
certos casos, entre os quais o da poupança é o de maior importância. Em
vez disso, afasta-se muito da realidade a hipótese de que os homens
extraem dos resíduos consequências lógicas e segundo estas operam; eles
adotam com muito mais frequência, em tais gêneros de atividade, as
derivações, mais do que até mesmo os raciocínios rigorosamente lógicos,
de modo que, quem, de acordo com estes últimos, quisesse prever as suas
ações, estaria totalmente fora da realidade. Os resíduos não são apenas, a
exemplo dos gostos, a origem das ações, mas eles operam também em
todas as fases subsequentes das ações que partem desde a origem, o que
para nós são exatamente as derivações que substituem ao raciocínio lógico.
Assim, a ciência constituída com a hipótese de que, de certos resíduos
dados, extraem-se as consequências lógicas, seria uma maneira geral do
fenômeno que pouco ou nenhum contato teria com a realidade, seria, mais
ou menos, uma doutrina similar à da geometria não-Euclidiana ou à da
geometria no espaço de quatro dimensões. Se quisermos permanecer na
realidade, devemos procurar, na experiência que nos é dada, conhecer não
só certos resíduos fundamentais, mas também os vários modos com os
quais eles operam para determinar a ação dos homens.
12. Devemos ter sempre em mente as moléculas do sistema social, isto é,
os indivíduos em que estão certos sentimentos manifestados pelos resíduos
e que, para ser breve, serão indicados só com o nome de resíduos.
Poderemos dizer que, nos indivíduos, estão misturas de grupos de resíduos,
que são análogos às misturas de compostos químicos que se encontram na
natureza, enquanto os próprios grupos de resíduos são análogos a tais
compostos químicos. Nós já estudamos, no capítulo anterior, a índole
destas misturas e destes grupos e notamos que, se as partes parecem ser
quase independentes, as partes também são dependentes de um modo que o
acréscimo de um é compensado pela diminuição dos outros e vice-versa.
Mais à frente veremos outros gêneros de dependência. Estas misturas e
estes grupos, independentes ou dependentes que sejam, agora são
considerados como elementos do equilíbrio social.
13. Os resíduos se manifestam com as derivações, que são um indício das
forças que operam sobre as moléculas sociais. Nós as distinguimos em duas
categorias, isto é, as derivações próprias e as manifestações a que elas se
propõem. Aqui, para se ter uma visão panorâmica da sua complexidade,
teremos de considerá-las em seu conjunto.
14. Contrariamente à opinião vulgar que dá grande peso às derivações e,
entre estas, às derivações próprias, as teorias, para determinar a forma
social, vimos, com muitas e extensas pesquisas, que elas diretamente
operam pouco para determinar tal forma e que isto não se vê, porque são
atribuídos às derivações os efeitos que esperam propriamente dos resíduos
por elas manifestados. As derivações, para conseguir uma eficácia
significativa, devem, antes de tudo, se transformar em sentimentos, o que,
aliás, não é tão fácil.
15. No argumento das derivações, é crucial o fato de que elas não
correspondem precisamente aos resíduos dos quais se originaram e, de tal
fato, seguem as principais dificuldades que encontramos para constituir a
ciência social, dado que somente as derivações é por nós conhecidas; e, às
vezes, permanece incerto como se pudesse ela identificar os resíduos dos
quais descendem, o que não aconteceria se as derivações tivessem a índole
das teorias lógico-experimentais. Acrescente-se que, nas derivações, há
muitos princípios que não são invocados explicitamente, que permanecem
implícitos e que, justamente por isso, sofrem com os grandes defeitos de
precisão. Maiores são as incertezas para as derivações próprias do que para
as manifestações, mas estas não estão imunes a incertezas. Para consertar
tal defeito, deve-se reunir um grande número de derivações pertencentes ao
mesmo argumento e procurar nele a parte constante, separando-a da
variável.
16. Mesmo quando haja correspondência, ainda que aproximativa, entre a
derivação e o resíduo, aquela, comumente, ultrapassa o sentido deste e
ultrapassa o sentido da realidade. Ela indica um limite extremo, daqui de
onde o resíduo permanece e, com muita frequência, tem uma parte
imaginária que expressa um fim posto muito além do que se teria se
expressasse rigorosamente o resíduo. Onde então a parte imaginária cresce
e se desenvolve, têm-se os mitos, as religiões, as morais, as teologias, as
metafísicas e as teorias ideais. Isto acontece, principalmente, quando são
entendidos os sentimentos correspondentes a tais derivações e serão muito
mais facilmente entendidos quanto maior for a intensidade.
17. Por isso, tomando o sinal pela coisa, pode-se dizer que os homens são
intensamente estimulados a agir por tais derivações. Mas esta proposição,
entendida literalmente, estaria longe da verdade e deve ser substituída por
outra proposição, a de que os homens são intensamente estimulados a agir
por sentimentos que se expressam em virtude de tais derivações. Em
muitos casos, adotar a primeira ou a segunda proposição se torna
indiferente e são principalmente aqueles casos em que se nota uma
correspondência entre as ações e as tais derivações. A correspondência que
existe entre as ações e a coisa revelada pelas derivações, também existe
entre as ações e as derivações e vice-versa. Em outros casos, a substituição
da primeira pela segunda proposição pode ser a causa de graves erros e são
principalmente aqueles casos em que, querendo modificar as ações,
acredita que se consegue isso modificando as derivações. A modificação do
sinal não modifica necessariamente a coisa com a qual as ações estão em
correspondência e, portanto, não modifica também estas ações.
18. Quando as derivações quiserem se identificar com os resíduos, dever-
se-á ter mente que um mesmo resíduo B poderá ter muitas derivações T, T’,
T”,..., as quais poderão facilmente ser, de forma recíproca, substituídas. Por
isso: 1) Se em uma sociedade existe T, e em outra existe T’, não se pode
concluir que estas duas sociedades têm resíduos correspondentes diferentes,
haja vista que podem, ao contrário, ter o mesmo resíduo B; 2) Pouca ou
nenhuma eficácia, para modificar a forma social, tem a substituição de T
por T’, uma vez que tal substituição não altera os resíduos B, que
determinam muito mais essa forma de derivações; 3) Mas pode ter eficácia
o fato de que quem deve operar, considera ou não considera indiferente tal
substituição, não por tais opiniões intrinsicamente consideradas, mas sim
pelos sentimentos que elas manifestam; 4) Entre as derivações T, T’, T”, ...,
não pode haver contradições. Duas proposições dessa natureza se
destruiriam; assim como duas derivações não podem subsistir juntas, elas
também não podem reforçar uma a outra reciprocamente. Frequentemente,
intervêm outras derivações para eliminar a contradição e estabelecer a
consenso. Este fenômeno tem importância secundária, porque os homens
encontram e acolhem, com muita facilidade, derivações de tal feita
sofísticas; eles têm uma certa necessidade de lógica, mas a satisfazem
facilmente com proposições pseudológicas. Assim, o valor intrínseco
lógico-experimental das derivações T, T’, T”, ... tem, comumente, pouca
relação com a eficácia da ação delas sobre o equilíbrio.
19. AS PROPRIEDADES DO SISTEMA SOCIAL. Um sistema de átomos
e moléculas materiais tem certas propriedades térmicas, elétricas e algumas
outras. Analogamente, um sistema constituído por moléculas sociais
também tem estas mesmas propriedades que devem ser consideradas. Entre
estas, uma que, a todo tempo, é intuída, ainda que de maneira rudimentar, é
aquela a que, com pouca ou nenhuma precisão, se deu o nome de utilidade,
de prosperidade ou outro nome parecido. Agora, devemos procurar nos
fatos se, sob tais expressões indeterminadas, há qualquer coisa de exato e
conhecer a sua índole. A operação que estamos realizando é análoga à já
realizada pelos físicos quando substituíram os conceitos vulgares e
indeterminados de calor e frio pelo conceito exato da temperatura.
20. Tenhamos em mente, antes de tudo, o que se diz sobre as prosperidades
econômica, moral, intelectual, política, do poder militar etc. Se quisermos
raciocinar cientificamente sobre isso, é, então, necessário defini-las
rigorosamente; e se quisermos introduzi-las na determinação do equilíbrio
social, é necessário, de qualquer modo, ainda que com indicadores bem
simples, fazer com que elas tenham correspondência quantitativa.
21. Isso pôde ser feito em Economia pura e foi a causa do progresso dessa
ciência; mas não pode ser igualmente feita em Sociologia. É normal que
superemos tal dificuldade substituindo aproximações grosseiras, que nos
induzem a erro, por dados mais precisos e expressos em números.
Similarmente, quem não tem uma tabela de mortalidade é obrigado a se
contentar com aproximações grosseiras que se dão ao reconhecer que a
mortalidade começa alta nos primeiros anos da infância, depois diminui e,
por fim, aumenta novamente na velhice. É pouco, muito pouco, mas é
sempre melhor que nada; e o caminho para fazer aumentar esse pouco não
é livrar-se dele, mas preservá-lo e fazer-lhe sucessivos acréscimos.
22. Se perguntarmos: “A Alemanha, hoje, em 1913, é mais poderosa militar
e politicamente do que em 1860?”, todos responderão que sim; se então
perguntarmos: “Quanto exatamente?”, ninguém saberá responder. Pode-se
repetir o mesmo para perguntas semelhantes e se compreender então que as
coisas ditas militares, políticas, intelectuais etc., são suscetíveis de
aumentar ou de diminuir, sem que, contudo, nos seja dado atribuir números
precisos que correspondam a elas em seus vários estágios.
23. É ainda menos exata a entidade prosperidade e força de um país, que
resume estes diferentes poderes; no entanto, todos entendem que, por
exemplo, a prosperidade e o poder da França é maior do que da Etiópia e
que é maior agora, em 1913, do que era logo após a guerra de 1870. Todos
entendem, sem nenhuma necessidade de precisão numérica, a diferença
entre Atenas no tempo de Péricles e Atenas depois da batalha de Queroneia,
entre a Roma de Augusto e a Roma de Rômulo Augusto. Até mesmo as
mais tênues diferenças são melhor entendidas e avaliadas, se, por ventura,
nos faltar a precisão dos números, tivermos, ainda assim, um conceito do
fenômeno, desde que não esteja muito longe da verdade. Pode-se, então,
descer aos casos particulares e considerar as várias partes de tal
complexidade.
24. Para se ter um conceito mais preciso, deve-se declarar às quais normas,
em parte arbitrárias, se pretende obedecer para determinar as entidades que
se quer definir. A Economia pura pôde fazer assim. Ela escolheu uma única
norma, isto é, a satisfação do indivíduo e estabeleceu que, para tal
satisfação, ela é o único juiz. Assim, foi definida a utilidade econômica, ou
seja, a ofelimidade. Mas se nos perguntamos sobre qual é o problema,
mesmo que seja muito simples, de saber o que mais convém a um
indivíduo, feita a abstração por seu juízo, logo aparece a necessidade de
uma norma, que é arbitrária. Por exemplo, diremos que a ele convém sofrer
fisicamente para gozar moralmente ou vice-versa? Diremos que convém a
ele buscar somente a riqueza ou se voltar para uma outra coisa? Em
Economia pura, deixamos que ele decida; se, no entanto, quisermos retirar
dele tal tarefa, deveremos encontrar outros a quem atribui-la.

7. A Utilidade Social

1. A UTILIDADE. Qualquer que seja o juiz que se queira escolher,


quaisquer que sejam as normas que alguém decide seguir, as entidades que,
desse modo, se determinam, gozam de certas propriedades comuns, e são
estas que agora estudaremos. Depois de fixadas as normas, pelas quais nós
gostaríamos que fosse estabelecido um certo estado-limite, ao qual se supõe
aproximar um indivíduo ou uma coletividade, e dado um indicador
numérico aos diversos estados que, mais ou menos, se aproximam deste
estado-limite, de um modo que o estado que mais dele está próximo tenha
um indicador maior do que o do estado que mais dele se distancia, diremos
que estes são os indicadores de um estado X. Como de costume, com o
único escopo de evitar o incômodo que nasce do uso, no discurso, de uma
simples letra do alfabeto, substituiremos um nome qualquer pela letra X,
que, comumente, para evitar os muitos e frequentes neologismos,
tomaremos por qualquer fenômeno análogo. Quando se sabe ou se acredita
saber o que “convém” a um indivíduo, a uma coletividade, se diz que isso é
“útil”, que esta e aquele buscam conseguir tal coisa, e se estima que maior
é a utilidade dos que a usufruem quanto mais se aproximam de ter tal coisa.
Assim, por simples analogia e por nenhum outro motivo, daremos o nome
de UTILIDADE à entidade X anteriormente definida.
2. Deve-se atentar para o fato de que, justamente porque o nome é deduzido
de uma simples analogia, a utilidade assim definida pode, às vezes, melhor
combinar-se com a utilidade da linguagem vulgar, mas, em muitas outras
vezes, pode discordar dela, chegando até mesmo a ser o seu próprio oposto.
Por exemplo, se estabelecemos como estado-limite para um povo o da
prosperidade material, a nossa utilidade pouco difere da entidade a que os
homens práticos dão esse nome, mas difere enormemente da entidade a que
põe como objetivo o asceta; em sentido contrário, se estabelecermos por
estado-limite o do perfeito ascetismo, a nossa utilidade coincidirá com a
entidade a que o asceta põe como objetivo, mas diferirá completamente da
que pretende o homem prático.
Enfim, dado que os homens costumam indicar com o mesmo nome coisas
opostas, não resta senão a escolha entre dois modos de se expressar, isto é:
1) Afastar-se resolutamente da linguagem vulgar e dar nomes diferentes a
estas coisas diferentes; 2) Preservar um mesmo nome a estas coisas, com a
advertência de que ele as indica somente de um modo geral, como o nome
de uma classe de objetos, como na química o nome dos corpos simples, na
zoologia o nome dos mamíferos etc., e que as espécies dessas classes serão
estabelecidas subordinadamente ao critério escolhido para determinar a
utilidade.
3. É certamente um problema que um só termo indique coisas diferentes e,
por isso, seria bom evitar o uso do termo utilidade, no sentido definido no §
[1], que coincide com um dos significados desse termo na linguagem
vulgar e de substituir o seu uso por um novo termo, como se faz em
Economia, separando a ofelimidade da utilidade. Acredito que haverá um
tempo em que será necessário se fazer assim; e se aqui me abstenho disso, é
só por temor de se cair no uso abusivo de neologismos.
4. Tenhamos cuidado, porém, para que um único termo novo não nos
atrapalhe totalmente. De fato, mesmo quando se considere uma das únicas
utilidades, no que tange aos fins, por exemplo a que se relaciona com a
prosperidade material, têm-se ainda várias espécies de utilidade, no que diz
respeito às pessoas ou às coletividades, ao modo com o qual se obtêm, ao
conceito que têm dela os homens e a outras circunstâncias similares.
5. Antes de tudo, devem-se distinguir os casos, de acordo com os quais são
pensados o indivíduo, a família, uma coletividade, uma nação e a raça
humana. Não se deve apenas considerar a utilidade desses vários entes, mas
deve-se ainda fazer uma distinção e, assim, separar as suas utilidades
diretas das que indiretamente resultam das suas relações recíprocas. Assim,
negligenciando de outras distinções que talvez conviria fazer e
restringindo-nos às que são propriamente indispensáveis, levaremos em
conta os seguintes gêneros:
(a) Utilidade do indivíduo;
(a-1) Utilidade direta;
(a-2) Utilidade indireta, obtida porque o indivíduo faz parte de uma
coletividade;
(a-3) Utilidade de um indivíduo, em relação à utilidade dos outros;
(b) Utilidade de uma dada coletividade. Para esta, podem ser feitas
distinções análogas às precedentes;
(b-1) Utilidade direta para as coletividades, considerada separada das
outras;
(b-2) Utilidade indireta, obtida pelo reflexo de outras coletividades;
(b-3) Utilidade de uma coletividade, em relação à utilidade das outras.
Estas várias utilidades, bem longe de qualquer consenso, muitas vezes
estão em aberta contradição; e de tais fenômenos já vimos muitos
exemplos. Os teólogos e os metafísicos, por amor ao absoluto, que é único;
os moralistas, para induzir o indivíduo a cuidar dos bens alheios; os
homens de Estado, para induzi-lo a confundir a utilidade própria com a da
pátria; e outras pessoas, por iguais motivos, costumam reduzir, às vezes
explicitamente, muitas vezes implicitamente, todas as utilidades a uma só.
6. Ficando só no campo lógico-experimental, podem ser feitas outras
distinções e consideradas as diversas utilidades, de duas maneiras: isto é,
como um dos membros retrata a coletividade e como um estranho a vê, ou
um dos membros da coletividade que procura, o tanto quanto pode, dar um
juízo objetivo. Por exemplo, um indivíduo que ouve muito a utilidade
direta (a-1) e pouco ou nada a utilidade indireta (a-2) simplesmente buscará
a sua própria comodidade, sem se preocupar com os seus concidadãos; ao
passo que quem julga objetivamente as ações deste indivíduo, verá que ele
sacrifica a coletividade para o seu próprio benefício.
7. Nós ainda não terminamos de fazer distinções. Cada uma das espécies
indicadas no § [5] pode ser considerada de acordo com o tempo, isto é, no
presente e nos vários tempos futuros; nem inferior aos tempos precedentes
pode ser o contraste entre estas várias utilidades e nem sequer inferior pode
ser a diferença para quem se deixa guiar pelo sentimento e para quem as
considera objetivamente.
8. Para dar forma mais concreta ao raciocínio, consideremos especialmente
uma das utilidades, isto é, a que se relaciona com a prosperidade material.
Enquanto as ações humanas são lógicas, pode-se, em estrito rigor, observar
que o homem, que vai à guerra e que ignora se permanecerá nos campos de
batalha ou se voltará à sua casa, trabalha pela consideração de utilidade
individual, direta ou indireta, dado que ele compara a utilidade provável se
volta são e salvo com o dano provável se permanece morto ou ferido. Mas
tal raciocínio não vale mais para o homem que vai à morte certa para a
defesa da pátria. Ele sacrifica deliberadamente a utilidade individual em
favor da utilidade da sua nação. Estamos aqui no âmbito da utilidade
subjetiva indicada no § [7].
9. Na maioria das vezes, o homem realiza tal sacrifício em virtude de uma
ação não-lógica e não tem lugar as considerações subjetivas de utilidade,
permanecendo só as objetivas de que quem observa os fenômenos pode
fazer. Este é o caso dos animais, muitos dos quais se sacrificam, movidos
pelo instinto, para o bem de outros de sua espécie. A galinha que encontra a
morte defendendo os pintinhos; o galo, defendendo a galinha; a cadela, por
defender os seus filhotinhos e assim por diante, sacrificam, pois, a própria
vida, por instinto, para a utilidade da espécie. As espécies animais muitos
prolíficas vencem sacrificando os indivíduos. Os ratos são mortos aos
milhares, mas muitos deles permanecem vivos. A filoxera venceu o homem
e se tornou senhora das vinhas. A utilidade do hoje, frequentemente, se
opõe à dos dias vindouros e o contrário dá origem aos fenômenos bem
conhecidos com o nome de previdência e de imprevidência, para os
indivíduos, para as famílias e para as nações.
10. UTILIDADE COMPLEXA. Sempre que se tenham em conta para um
indivíduo os três gêneros da utilidade indicados no § [5], tem-se em
conclusão a utilidade complexa da qual goza o indivíduo. Por exemplo,
pode ter, de um lado, um dano direto, de outro lado, uma utilidade indireta,
como componente de uma coletividade e esta utilidade indireta pode ser
muito grande para compensar e bem acima do dano direto, de modo que,
em conclusão, permanece uma certa utilidade. O mesmo se diga para uma
coletividade. Se se pudessem ter indicadores para estas várias utilidades,
somando-as, ter-se-ia a utilidade complexa ou total do indivíduo ou da
coletividade.
11. MÁXIMO DE UTILIDADE de UM INDIVÍDUO, OU de UMA
COLETIVIDADE. Dado que a utilidade que agora mencionamos tem um
indicador, poderá acontecer que, em um certo estágio, tenha um indicador
maior do que em estágios próximos, isto é, que tenha um ponto máximo.
Praticamente, embora de modo confuso, os problemas de tal feita são
intuídos. Já em nosso caminho, encontramos um deles, quando procuramos
a utilidade que poderia ter um indivíduo a seguir certas normas existentes
na sociedade, ou mais genericamente, a utilidade que podia conseguir
visando a certos fins ideais. Então, consideramos só a solução qualitativa
dos problemas e nem sequer nesta podemos estimular muitas outras, porque
nos faltava uma rigorosa definição de utilidade. Deve-se, portanto, retornar
a esse argumento.
12. Quando se considera, para um indivíduo, um gênero determinado de
utilidade, têm-se indicadores das utilidades parciais e também um indicador
da utilidade complexa e isto é o que nos permite estimar a utilidade de que
goza o indivíduo em dadas circunstâncias. Ademais, se, com as variações
destas, o indicador da utilidade complexa, depois de ter começado a
crescer, acabar por decrescer, haverá um certo ponto em que se atinge o
grau máximo. Todos os problemas já postos de modo qualitativo se tornam
então quantitativos e conduzem a problemas em grau máximo. Por
exemplo, em vez de pesquisar se, observando certas regras, um indivíduo
alcança a própria felicidade, teremos de pesquisar se, e por quanto aumenta
a sua ofelimidade, e colocados sobre este caminho, iremos pesquisar como
e quando tal ofelimidade se torna máxima.
13. Se o estado de um indivíduo depende de uma certa circunstância a que
se podem atribuir indicadores variáveis e, por qualquer um destes
indicadores, se pode conhecer o indicador da utilidade complexa para um
indivíduo (ou para uma coletividade considerada como um indivíduo),
poderemos conhecer em qual posição do indivíduo (ou da coletividade) tal
utilidade atinge um ponto máximo.
14. Enfim, se repetirmos tal operação para todas as circunstâncias da quais
depende o equilíbrio social, quando são dados os vínculos, teremos tantos
indicadores, entre os quais poderemos escolher um indicador maior de
todos os que a ele estão próximos, e que corresponderá ao máximo de
utilidade, tendo em conta todas as circunstâncias anteriormente
mencionadas.
15. Por mais que estes problemas sejam particularmente difíceis, eles são
teoricamente mais fáceis do que outros que agora devemos mencionar.
16. Até agora, consideramos o máximo de utilidade de um indivíduo
separado dos outros, de uma coletividade separada das outras; ainda
devemos estudar este máximo de utilidade quando se comparam entre si os
indivíduos e as coletividades. Por amor à brevidade, nós nos referiremos,
de agora em diante, só aos indivíduos, mas o raciocínio valerá também para
comparar coletividades distintas. Se as utilidades dos indivíduos em si
fossem quantidades homogêneas e que, portanto, pudessem ser comparadas
e somadas, o nosso estudo não seria difícil, pelo menos teoricamente.
Somar-se-iam as utilidades dos vários indivíduos e se teria a utilidade da
coletividade por eles constituída; retornaríamos, assim, aos problemas já
estudados.
17. A questão, porém, não é tão simples assim. As utilidades dos vários
indivíduos são quantidades heterogêneas e uma soma de tais quantidades
não faz nenhum sentido, não existe, não pode ser considerada. Se se quiser
ter uma soma que esteja em relação com as utilidades dos vários
indivíduos, deve-se, em primeiro lugar, encontrar um jeito de fazer com
que estas dependam da quantidade homogênea, as quais, então, poderão ser
somadas.
18. O MÁXIMO DE OFELIMIDADE para UMA COLETIVIDADE EM
ECONOMIA POLÍTICA. Um problema de índole análoga à do item
anterior aparece na Economia política e deve ser por ela resolvido. Será útil
fazer-lhe uma breve referência, para que nos preparemos para a difícil
solução do problema sociológico. Em Economia política, podemos
determinar o equilíbrio com a condição de que cada indivíduo consiga o
máximo de ofelimidade. Os vínculos podem ser dados de uma maneira tal
que o equilíbrio seja perfeitamente determinado. Se, porém, alguns
vínculos forem suprimidos, esta perfeita determinação cessará, e o
equilíbrio será possível em infinitos pontos em que o máximo de
ofelimidade individual será obtido. No primeiro caso, eram possíveis
somente os movimentos que invocavam um ponto de equilíbrio
determinado; no segundo, também são possíveis outros movimentos. Estes
são de dois gêneros distintos. No primeiro gênero, que chamaremos de P,
os movimentos são tais que, servindo a certos indivíduos, é,
necessariamente, prejudicial a outros; no segundo gênero, que chamaremos
de Q, os movimentos são tais que deles se servem ou por eles são
prejudicados todos os indivíduos, sem exclusão. Os pontos P são
determinados quando se iguala a zero uma certa soma de quantidade
homogênea dependente das ofelimidades heterogêneas.
19. A consideração dos dois gêneros dos pontos P e Q tem enorme
importância para a Economia política. Quando a coletividade está no ponto
Q, da qual ela pode se afastar, quando convém a todos os indivíduos, todos
eles procurando maior benefício, é óbvio que, sob o aspecto econômico,
convém não se deter em tal ponto, mas continuar a se afastar dele, até que
seja conveniente a todos. Quando então se chega a um ponto P, sempre que
isto não seja mais possível, deve-se, tanto para ali ficar parado, quanto para
continuar a prosseguir, recorrer a outras considerações, estranhas à
Economia, isto é, deve-se decidir, mediante considerações de utilidade
social, ética ou de qualquer outra natureza, de que os indivíduos convém se
beneficiar, sacrificando outros. Sob o aspecto exclusivamente econômico,
uma vez que a coletividade atingiu um determinado ponto, é melhor parar.
Este ponto tem, então, no fenômeno, uma parte análoga à do ponto onde se
consegue o máximo de ofelimidade individual e no qual, portanto, o
indivíduo fica parado. Por causa dessa analogia, chama-se ponto de
“máxima ofelimidade individual para coletividade”. Mas, como de
costume, não há nada a deduzir da etimologia destes termos e para evitar o
perigo, sempre iminente, de divagação para tal caminho, continuaremos a
chamá-lo ponto P.
20. Se uma coletividade pudesse ser considerada como uma pessoa, teria o
máximo de ofelimidade, da mesma forma que uma pessoa a tem; isto é,
haveria pontos em que a ofelimidade da coletividade seria máxima. Estes
pontos difeririam dos pontos Q indicados no § [18]. De fato, dado que,
destes pontos, é possível se afastar beneficiando a todos os indivíduos da
coletividade, é óbvio que, desse modo, se pode fazer aumentar a
ofelimidade da coletividade. Mas não se pode dizer que tais pontos
coincidiriam com os pontos P. Vamos considerar então uma coletividade
constituída por dois indivíduos A e B. De um certo ponto P, podemos nos
afastar acrescentando 5 à ofelimidade de A e retirando 2 da ofelimidade de
B, e assim se nos apresentando em um ponto s, ou acrescentando 2 à
ofelimidade de A e retirando 1 da ofelimidade de B, e se nos apresentando
em um ponto t. não podemos saber em qual desses dois pontos s, t será
maior ou menor a ofelimidade de A ou de B; e é justamente por isso que
não se pode comparar, porque são quantidades heterogêneas, em que não
existe o máximo de ofelimidade da coletividade; ao passo que, ao
contrário, pode existir o máximo de ofelimidade para a coletividade, dado
que se determina independentemente de qualquer comparação entre as
ofelimidades de diferentes indivíduos.
21. O MÁXIMO DE UTILIDADE para UMA COLETIVIDADE, EM
SOCIOLOGIA. Vamos estender as considerações precedentes à Sociologia.
Cada indivíduo, enquanto age logicamente, procura conseguir um máximo
de utilidade individual, como foi declarado no § [12]. Se supusermos que
nos foi suprimida, sem que ela fosse substituída por outra, parte dos
vínculos que o poder público nos impõe, tornam-se possíveis infinitas
posições de equilíbrio com as considerações sobre as máximas individuais
anteriormente mencionadas. O poder público intervém para impor ou
excluir algumas delas. Vamos supor que ele opere logicamente e com o só
escopo de conseguir uma certa utilidade. Isso raramente acontece, mas
sobre tal fato não é aqui necessário pensarmos, dado que nós ainda não
estamos considerando um caso real e concreto, mas sim um caso teórico e
hipotético. Nele, o poder público deve necessariamente comparar – não
ocorre agora mencionar por quais critérios – as várias utilidades. Quando,
por exemplo, se encarcera um ladrão, o poder público compara os
sofrimentos ao ladrão impostos com a utilidade, que é consequência desse
sofrimento, para homens honestos, e avalia, ainda que de um modo
grosseiro, que esta última, a utilidade para o homem honesto, compensa,
pelo menos, aqueles outros, os sofrimentos do ladrão; caso contrário,
deixar-se-ia o ladrão andar livremente pelas ruas. Por amor à brevidade,
comparamos aqui só duas utilidades; mas, na melhor das hipóteses, se
entende que, frequentemente, o poder público compara, ainda que
pessimamente, todas aquelas utilidades das quais se possa ter
conhecimento. Em essência, ele realiza, de modo grosseiro, a ação que,
com rigor, a Economia pura realiza e torna homogênea, por meio de certos
coeficientes, quantidades heterogêneas. Feito isso, as quantidades
resultantes podem ser somadas e, assim, determinar os pontos do gênero P.
22. Tudo isso se intui mais ou menos bem – mais mal, mas muito mal
mesmo, na prática – , e se diz que o poder público deve se deter no ponto
em que prosseguir não traria assim tantas “vantagens” a toda a
coletividade; que não deve infligir sofrimento “inúteis” à coletividade
como um todo ou a uma parte dela; que deve a ela beneficiar até onde
puder, sem que falhe na realização dos fins que se tem em vista “para com
a coisa pública”; que o esforço deve ser “proporcional” ao escopo e que
não deve impor graves sacrifícios para obter pequenas “utilidades”. A
definição anterior tem por objeto substituir, por termos mais rigorosos,
aquelas expressões carentes de precisão e enganosas por conta de sua
indeterminação.
23. Em Economia pura, não se pode considerar uma coletividade como
uma pessoa; em Sociologia, pode-se considerar, se não como uma pessoa,
ao menos como uma unidade. A ofelimidade de uma coletividade não
existe; a utilidade de uma coletividade, na melhor das hipóteses, pode ser
sim considerada. Por isso, na Economia pura, não há perigo de confundir o
máximo de ofelimidade para uma coletividade com o máximo de
ofelimidade de uma coletividade, que não existe; enquanto na Sociologia,
deve-se estar bem vigilante para não confundir o máximo de utilidade para
uma coletividade com o máximo de utilidade de uma coletividade, uma vez
que ambos existem.
24. Consideremos, por exemplo, o aumento populacional. Se se colocar na
cabeça a utilidade da coletividade, principalmente para o seu poder militar
e político, será conveniente impulsionar a população até o limite bastante
elevado, além do qual a nação se empobreceria e a raça decairia. Mas se
voltarmos a atenção ao máximo de utilidade para a coletividade,
encontraremos um limite muito menor. Deveremos investigar em quais
proporções as diversas classes sociais usufruirão do tal aumento de poder
militar e político e em qual proporção diferente o adquirem com o próprio
sacrifício. Quando os proletários dizem que não querem ter filhos, os quais
só fazem aumentar o poder e a vigilância das classes governantes, pensam
em um problema máximo de utilidade para a coletividade; as derivações
adotadas, como as da religião do socialismo ou do pacifismo, pouco
interessam: é preciso se atentar para as entrelinhas. Muitas vezes, as classes
governantes respondem confundindo um problema de máximo da
coletividade com o problema de máximo para a coletividade. Procuram
ainda reconduzir o problema à procura de um máximo de utilidade
individual, tentando fazer crer às classes governadas que há uma utilidade
indireta, que, se a levarmos em consideração, transforma o sacrifício, que
desta classe se exige, em vantagem. Isso efetivamente pode acontecer
algumas vezes, mas não acontece sempre, e são muitos os casos em que,
tendo também em conta as utilidades indiretas, já não são mais uma
vantagem, mas sim um sacrifício para as classes governantes. Na realidade,
não há senão as ações não-lógicas que, nestes casos, podem fazer sim com
que as classes governantes, esquecendo-se do máximo de utilidade
individual, se aproximem ao máximo de utilidade da coletividade, ou
somente da classe governante; e isso foi por esta, muitíssimas vezes,
intuído.
25. Vamos supor que haja uma coletividade em condições tais que exista
somente a escolha entre ter uma coletividade muito rica com grande
desigualdade de renda para os seus componentes, ou muito pobre com
renda quase igual entre eles. A busca do máximo de utilidade da
coletividade pode se aproximar do primeiro estado; ao passo que a do
máximo para a coletividade pode se aproximar do segundo. Dizemos pode,
porque o efeito dependerá dos coeficientes usados para tornar homogêneas
as utilidades heterogêneas das várias classes sociais.
26. Há uma teoria – não vamos perquirir agora até que ponto ela está ou
não de acordo com os fatos – segundo a qual a escravidão foi uma condição
necessária para o progresso social, porque – dizem – ela permite que um
certo número de homens viva no ócio e, assim, pode se ocupar de
especulações intelectuais. Admitido isso por um instante que seja, quem
quiser resolver um problema de máxima utilidade da espécie e olha só para
a utilidade da espécie, sentenciará que a escravidão foi “útil”; quem ainda
quiser resolver um problema do mesmo gênero, mas olha só a utilidade dos
homens reduzidos à escravidão, sentenciará que a escravidão foi danosa,
ainda que deixemos de lado, por enquanto, certos efeitos indiretos. Não se
pode perguntar: quem tem razão? Quem está errado? porque estes termos
não fazem o menor sentido, até que não se tenha escolhido um critério para
instituir a comparação entre uma e outra sentença.
27. Por tudo isso, devemos concluir, ainda que não seja impossível resolver
os problemas que consideram, por um tempo, as inúmeras utilidades
heterogêneas, mas sim que, para refletir sobre isso, se deve admitir uma
hipótese qualquer que as torne comparáveis. E quando – como acontece
com muita frequência – isso não é feito, a reflexão sobre tais problemas é
vã e inconcludente, sendo simplesmente uma derivação com a qual se
encobrem certos sentimentos, com os quais, por isso, teremos só de nos
ocupar, sem nos importarmos muito com a roupagem que eles usam.
28. Também nos casos em que a utilidade do indivíduo não se opõe à da
coletividade, os pontos máximos da primeira e os pontos máximos da
segunda, via de regra, não coincidem. Seja, para um dado indivíduo, A o
ponto extremo em que a observação rigorosíssima de todo preceito
existente na sociedade, B, um outro ponto extremo que representa a
transgressão aos preceitos que não são reconhecidos como propriamente
indispensáveis, m n p a curva de utilidade de um indivíduo, que começa a
ter um ganho, que se torna máximo em n, e que, continuando, desaparece e
se transforma em um prejuízo em B. De modo análogo, é s r v a curva de
utilidade que a sociedade obtém pelo fato de que o indivíduo aqui
considerado observa, mais ou menos bem, os preceitos. Tal utilidade tem
um máximo em r. No ponto q, intermediário entre A e B, tem-se, para o
indivíduo, o máximo de utilidade q n, no ponto t, também intermediário
entre A e B, tem-se o máximo de utilidade t r da coletividade, que se obtém,
em razão do indivíduo aqui considerado.
29. Em vez de um só indivíduo, vários deles podem ser considerados, para
os quais teremos, aproximadamente, a mesma curva de utilidade m n p,
razão pela qual a curva s r v de utilidade da coletividade, da qual fazem
parte os indivíduos mencionados, será a que foi levada em conta nas ações
destes indivíduos. Em vez de simples transgressão às regras existentes em
uma

INSERIR O GRÁFICO P. 101

sociedade, consideremos, então, as transformações destas regras e as


inovações que se realizam na sociedade. Há muitos casos em que t está
muito mais próximo de q do que de B, isto é, para certos indivíduos,
convém para a sociedade que a inovação seja maior do que aquela que lhes
daria o máximo de utilidade. Por exemplo, os indivíduos que já são ricos e
poderosos têm muito pouco a ganhar com as inovações, ao passo que a
sociedade pode ganhar muito com as suas inovações. Ainda: para os
indivíduos adeptos de uma vida tranquila, t está muito mais próximo de q
do que de B, isto é, para eles, toda inovação, que também pode ser útil à
sociedade, torna-se desagradável e penosa. Em sentido contrário, para os
“especuladores”, t está muito mais longe de q do que de B, isto é, eles
tendem a inovar mais do que é necessário para o benefício social. Dessa
forma, se considerarmos as várias categorias de indivíduos, perceber-se-á
que, entre as ações, poderá haver uma certa compensação, de modo que,
cada um puxando para o seu lado, o resultado disso será uma posição
próxima à t, em que se tem o máximo de utilidade para a sociedade.
8. O uso da força na sociedade
1. As sociedades, de um modo geral, subsistem porque, na maioria de seus
componentes, estão vivos e são poderosos os sentimentos que
correspondem aos resíduos da sociedade (classe IV); mas, nas sociedade
humanas, também há indivíduos em que, pelos menos, parte de seus
sentimentos se desvanece e chega até mesmo a desaparecer totalmente.
Disso, originam-se dois efeitos muito conhecidos e que, aparentemente, são
opostos, isto é, um que ameaça dissolver a sociedade e o outro que dá
continuidade ao seu progresso civilizatório; em essência, é sempre um
movimento, mas que pode tomar os mais diversos rumos.
2. É evidente que, se a necessidade de uma uniformidade (IV – β) fosse em
um indivíduo tão poderosa a ponto de que nem mesmo um deles divergisse,
de qualquer maneira que fosse, das uniformidades subsistentes na
sociedade em que vive, esta não teria razões internas de dissolução;
ademais, não teria nem sequer necessidade nenhuma de mudar, ainda que
em direção a uma diminuição da utilidade dos indivíduos ou da sociedade.
Contrariamente, se faltasse a necessidade de uniformidade a sociedade não
subsistiria e cada indivíduo viveria por conta própria, a exemplo dos
grandes felinos, das aves de rapina e de outros animais. As sociedades que
subsistem e que mudam estão, portanto, em um estágio intermediário entre
estes dois extremos.
3. Pode-se conceber uma sociedade homogênea, em que a necessidade de
uniformidade seja a mesma em todos os indivíduos e corresponda ao
estágio intermediário ora percebido; mas a observação demonstra que este
não é o caso para as sociedades humanas. Estas são essencialmente
heterogêneas e referido estágio intermediário existe porque, em certos
indivíduos, a necessidade de uniformidade é muito grande, em outros
discreta, em outros, muito pequena e também em alguns pode inexistir
quase que completamente. A média é encontrada, não em cada um dos
indivíduos, mas na coletividade de todos esses indivíduos. Pode-se
acrescentar, como um dado de fato, que o número dos indivíduos, em que a
necessidade de uniformidade é menor do que o correspondente ao estágio
intermediário da sociedade, supera, em muito, o número daqueles em que
esta necessidade é menor, em número muito maior do que naqueles em que
ele está totalmente ausente.
4. Para o leitor que nos acompanhou até aqui, é inútil acrescentar que,
depois de ter percebido os efeitos da maior e da menor potência dos
sentimentos de uniformidade, logo se pode prever que terão dado origem a
duas teologias: uma das quais tornou sagrada a imobilidade em uma certa
uniformidade, real ou imaginária; a outra que tornou sagrado o movimento
para uma certa direção. E isso realmente ocorreu e foram criados os
Olimpos populares em que os deuses se fixaram residência e
estabeleceram, de uma vez por todas, como a sociedade humana deveria
ser, assim como os dos reformadores utópicos, que de suas mentes excelsas
extraíram o conceito da forma pela qual, doravante, a sociedade humana
nunca mais deveria se afastar; ao passo que, de outro lado, os deuses
supremos do movimento para uma certa direção, desde os tempos da antiga
Atenas até os dias de hoje, recolhem as preces dos fiéis e, agora, triunfam
no nosso novo Olimpo, onde impera, majestoso, o onipotente Progresso.
Destarte, o estágio intermediário da sociedade era alcançado, via de regra,
como resultado de muitas forças, entre as quais surgem as duas categorias
já mencionadas, dirigidas para os fins imaginários diversos e que
correspondem a diferentes classes de resíduos.
5. O problema de, se se deve ou não, se se convém ou não, utilizar a força
na sociedade não tem sentido, uma vez que a força usada, tanto por parte
dos que querem conservar certas uniformidades, quanto por parte dos que
querem transgredi-las, e a violência que estes opõem contradiz com a
violência daqueles. Na verdade, quem é favorável à classe governante, diz
que reprova o usa da força, mas na, na realidade, reprova o uso da força por
parte dos dissidentes que querem se subtrair às regras de uniformidade e
diz que aprova o uso da força, mas, na realidade, aprova o uso que fazem
delas as autoridades para constranger os dissidentes da uniformidade. Em
sentido contrário, quem é favorável à classe governada, diz que reprova o
uso da força na sociedade, mas, na realidade, reprova o uso da força por
parte das autoridades sociais, para constranger os dissidentes da
uniformidade e, consequentemente, louva o uso da força, mas que, no
fundo, pretende o uso da força por parte daqueles que querem se subtrair a
certas uniformidades sociais.
6. No entanto, faz um enorme sentido o problema, se convém à sociedade
que se use a força para impor as suas uniformidades existentes, ou se
convém que se use para transgredi-las; dado que é necessário distinguir
entre as várias uniformidades e ver quais são úteis e quais são nocivas à
sociedade. E para dizer a verdade, nem isso basta, posto que também se
deve examinar se a utilidade da uniformidade é tanta que compense o dano
do uso da força para impô-la, ou se o dano à uniformidade é tão grande que
supere os danos do uso da força para destruí-la; e, entre estes vários danos,
não se deve negligenciar o dano gravíssimo da anarquia que seria a
consequência de um uso frequente da força para eliminar as uniformidades
existentes, quanto, entre as utilidades de manter as nocivas, para impor a
força e estabelecer a ordem social. Desta forma, para resolver a questão do
uso da força, não basta resolver a outra sobre a unidade, em geral, de certas
ordens; mas se deve, também e sobretudo, fazer o cômputo de todos os
benefícios e de todos os danos, dos diretos e dos indiretos, por assim dizer.
Tal caminho leva a soluções de um problema científico, mas pode ser e,
efetiva e frequentemente, é diferente da que leva a um acréscimo da
utilidade à sociedade. Assim, convém que, quem a acompanha, tem só de
resolver um problema científico, ou, mas só em parte, certas pessoas da
classe dirigente, enquanto, para a utilidade social, muitas vezes, convém
que, quem está na classe dirigida e que tem de agir, acolhe, conforme o
caso, uma das teologias, isto é, a que se dispõe a manter as uniformidades
existentes ou a que persuade a mudá-las.
7. Tais considerações, além das dificuldades teóricas, valem a pena para
explicar como as soluções que se costumam dar ao problema geral ora
mencionado, pouco ou, às vezes, nada em comum têm com a realidade. As
soluções dos problemas particulares se aproximam melhor, porque,
colocados em um lugar e em um tempo determinado, possuem dificuldades
teóricas menores e porque o empirismo implicitamente leva em conta
muitas circunstâncias que a teoria não pode explicitamente avaliar, desde
que não sejam muito avançadas. Aqui não é o lugar para estudar o uso da
força, desde os tempos antigos até os modernos, nem de examinar
particularidades; nós nos limitaremos ao tempo presente e procuraremos, a
muito grosso modo, se pudermos, encontrar uma fórmula que dê a
configuração geral dos fatos que são observados. Se raciocinássemos sobre
um passado próximo, deveríamos colocar também as transgressões às
normas de uniformidade intelectual e às de ordem material; não está longe
o tempo em que eram movidos aos pares, ou os primeiros eram estimados
mais graves do que os segundos; mas hoje, salvo algumas exceções, tal
relação está invertida e são poucas as normas de uniformidade intelectual
que o poder público visa impor; deve-se então considerá-las separadas das
normas de ordem material. Agora, vamos falar sobre aquelas (sobre as
normas de uniformidade intelectual). Colocando, portanto, em mente as
transgressões de ordem material junto aos povos civilizados modernos,
vamos ver que, no geral, o uso da força para reprimi-las é muito mais
facilmente admitido quanto mais a transgressão pode ser considerada como
uma anomalia individual, que tem por escopo obter vantagens individuais;
quanto menos a transgressão aparece como obra coletiva, mais se tem por
escopo vantagens coletivas e, de um modo especial, visa-se a substituir
certas normas gerais por aquelas existentes.
8. Isso exprime o quanto há de comum aos muitos fatos em que se
distingue o delito privado do delito dito político. Por exemplo, diferencia-
se, geralmente, entre o indivíduo que mata e rouba para benefício próprio e
o que realiza os mesmos atos com a intenção de beneficiar o próprio
partido. Em geral, junto aos povos civilizados, permite-se a extradição do
primeiro e nega-se a do segundo. Semelhantemente, existe, a todo
momento, uma indulgência crescente para os delitos cometidos por ocasião
das greves ou de outros conflitos econômicos, sociais e políticos; inclina-
se, sempre mais, a opor só uma resistência passiva aos agressores, impondo
aos agentes da força pública que não façam mais uso de armas, ou
permitindo este uso somente em casos de extrema necessidade, o que,
porém, na prática, nunca acontece, porque, enquanto o agente viver, se
afirma que a necessidade não é extrema e é propriamente inútil admitir tais
características quando morre e que, por consequência, não pode mais se
valer da concessão benigna de usar as armas. A repressão por meio dos
tribunais também está se tornando cada vez mais lenta; os delinquentes, ou
não são condenados, ou, se condenados, permanecem livres, graças à lei do
“perdão”, ou, se por esta não são beneficiados, os socorrem as reduções de
pena, a graça e a anistia, de modo que pouco ou nada têm eles a temer dos
tribunais. Enfim, de um modo, para dizer a verdade, muito indistinto,
confuso e nebuloso, aparece o conceito de que um governo existente pode
muito bem opor uma certa força aos seus adversários, mas não muito, e que
sempre deve ser condenado se o uso da força incentivar, simbolicamente, a
morte de um número considerável e, muitas vezes também, de um pequeno
número de adversários, mas não muito, ou de um só deles, e nem sequer se
permite que os tire do caminho mantendo-os preso ou de outra forma
qualquer. A esta forma que exprime em abstrato o que acontece em
concreto, opõem-se várias teorias que exprimem o que, segundo os seus
autores, deveria ser seguido. Sobre elas, falaremos mais adiante; agora
vamos nos ocupar com as relações de independência dessa maneira de usar
a força e com outros fatos sociais. Costumeiramente, temos uma sequência
de ações e reações, em que ora o uso da força aparece como causa, ora
como efeito.
9. No que diz respeito aos governantes, devemos considerar, sobretudo,
cinco categorias de fatos, a saber: 1) Um pequeno número de cidadãos,
desde que sejam violentos, pode impor a sua vontade aos governados, que
não estão dispostos a responder tal violência com outra violência. Se os
governantes são movidos principalmente por sentimentos humanitários
para não fazer uso da força, tal efeito acontece muito facilmente; se, ao
contrário, eles não usam a força porque acham que adotar outros meios é o
melhor conselho, tem-se frequentemente o seguinte efeito: 2) Para impedir
a violência ou resistir a ela, a classe governante recorre à astúcia, à fraude e
à corrupção, ou, para dizer isso em poucas palavras, o governo deixa de ser
os leões e passa a ser as raposas. A classe dominada abaixa a cabeça diante
da ameaça de violência, mas cede só na aparência e procura desviar-se dos
obstáculos que não poderia superar sob vigilância. A longo prazo, tal modo
de agir opera poderosamente sobre a classe dominante, da qual são
chamados a fazer parte somente as raposas, rejeitando-se os leões. Quem
melhor conhece a arte de enfraquecer os adversários por meio da
corrupção, retaliá-los com a fraude e com o engodo, o que parecia ter
cedido à força, é excelente entre os governantes; os que têm arroubos de
resistência e não sabe se curvar em certas circunstâncias e em certos
lugares é péssimo entre os governantes e pode permanecer entre eles só se
compensar tal falha de caráter com outras qualidades eminentes; 3) Dessa
forma, nas classes governantes, aumentam-se os resíduos do instinto das
combinações (classe I) e diminuem-se os da persistência dos agregados
(classe II), dado que aos primeiros convém justamente usar a arte de se
curvar, para descobrir as combinações engenhosas que substituem a
resistência aberta, ao passo que os segundos se dirigiriam a esta, e um forte
sentimento de persistência dos agregados lhe retira a flexibilidade; 4) Os
projetos da classe dominante não são estimulados muito com o passar do
tempo; a prevalência dos instintos das combinações e o desvanecimento da
persistência dos agregados faz sim com que a classe governante se satisfaça
mais do presente e se pense menos no futuro. O indivíduo prevalece
bastante sobre a família e o cidadão comum, sobre a coletividade e sobre a
nação. Os interesses do presente ou de um futuro próximo prevalecem
sobre os interesses de um futuro distante e sobre os ideais da coletividade e
da pátria. Busca-se gozar o presente sem se preocupar muito com o futuro;
5) Parte desses fenômenos é observada também nas relações internacionais.
As guerras tornam-se essencialmente econômicas; procura-se evitá-la com
os poderosos e só a irrompem com os fracos; elas são consideradas, acima
de tudo, como uma especulação. Frequentemente, o país entra
inconscientemente nelas, quando dá início aos conflitos econômicos que se
espera nunca transcender para conflitos armados, os quais, então, são,
muitas vezes, impostos a povos nos quais a evolução que leva ao
predomínio dos resíduos da classe I não avançou muito.
10. No que diz respeito aos governados, existem as seguintes relações que,
em parte, correspondem às precedentes: 1) Onde, na classe governada, haja
um certo número de indivíduos dispostos a usar a força e onde eles têm
líderes capazes de orientá-los, observa-se frequentemente que a classe
governante é expulsa e que uma outra lhe toma o lugar. Isso facilmente
acontece onde a classe governante é movida principalmente por
sentimentos humanitários e com muito mais facilidade se não souber
assimilar as partes eleitas que surgem na classe governada: uma aristocracia
humanitária e fechada ou pouco aberta atinge o máximo de instabilidade; 2)
Ao contrário, é mais difícil expulsar uma classe governante que saiba usar,
de forma refletida, a astúcia, a fraude e a corrupção; e é muito mais difícil
se conseguir assimilar o maior número daqueles que, na classe governada,
têm as mesmas habilidades, adotam as mesmas artes e que, portanto,
poderiam ser os líderes dos que estão dispostos a usar a violência. A classe
governada que, para tal objetivo, permanece sem um guia, sem um artifício,
fragmentada, está quase sempre impotente para instituir alguma coisa que
seja durável; 3) Assim, na classe governada, diminuem um pouco os
resíduos do instinto das combinações; mas o fenômeno não é comparável
ao do acréscimo destes resíduos na classe governante, uma vez que esta,
tendo um número muito menor de indivíduos, muda consideravelmente de
índole, onde se acrescenta a ela ou dela se retira um número restrito de
indivíduos, enquanto este número apresenta uma leve mudança em um total
enormemente maior. Além disso, permanecem na classe governada muitos
indivíduos que têm instinto de combinação que não são adotados na
política ou em atividades a ela atinentes, mas somente nas artes que lhe são
independentes. Tal circunstância dá estabilidade à sociedade, posto que
basta à classe governante acrescentar um número restrito de indivíduos
para tirar os líderes da classe governada. Aliás, a longo prazo, cresce a
diferença de índole entre a classe governante e a classe governada; naquela
há a inclinação à prevalência dos instintos de combinação, nesta, dos
instintos de persistência do agregados; e quando a diferença se torna
suficientemente grande, ocorrem as revoluções; 4) Estas, muitas vezes, dão
poder a uma classe nova de governante, em que há um aumento dos
instintos de persistência dos agregados e que, portanto, acrescentam aos
projetos de fruição no presente os dos ideais a serem alcançados no futuro;
o ceticismo, em parte, cede à fé; 5) Estas considerações devem ser
estendidas, em parte, às relações internacionais. Se os instintos de
combinação crescem além de um certo limite proporcionalmente aos
instintos de persistência dos agregados em um certo povo, este pode ser
facilmente vencido em uma guerra por um outro povo, junto ao qual tal
fenômeno não tenha acontecido. O poder de um ideal para guiar à vitória se
observa tanto nas guerras civis, quanto nas guerras internacionais. Quem
perde o hábito de usar a força, quem é avesso a julgar comercialmente uma
operação, segundo o seu dar e o seu receber em dinheiro, é facilmente
induzido a comprar a paz; e pode acontecer que tal operação, considerada
em si mesma, seja boa, porque a guerra teria custado mais dinheiro que o
preço pago pela paz, mas a experiência mostra que, a longo prazo,
considerada com as outras que inevitavelmente aconteçam, faz sim com
que um povo, dessa forma, comece a sua própria ruína. Muito raramente, o
fenômeno ora percebido da prevalência dos instintos das combinações
ocorra para uma população inteira; comumente, ele é observado só nos
extratos superiores e pouco ou pontualmente nos inferiores e mais
numerosos. Assim, quando eclode a guerra, fica-se encantado com a
energia demonstrada pelo vulgo e, considerados somente os extratos
superiores, não se esperava remotamente nada destes últimos. Às vezes,
como aconteceu em Cartago, tal energia não é suficiente para salvar a
pátria, porque se preparou mal para a guerra, que foi mal conduzida pelas
classes dirigentes do país, e bem preparada e bem conduzida pelas do
inimigo. Às vezes também, como aconteceu nas guerras da Revolução
Francesa, a energia popular foi suficiente para salvar a pátria, porque, se a
guerra foi mal preparada pelas classe dirigentes do país, foi ainda pior
preparada e pior conduzida pelas classes dirigentes do inimigo, o que deu
tempo aos extratos inferiores da sociedade de expulsar do poder a sua
classe dirigente e de a substituir por uma outra de maior energia e na qual é
maior a proporção dos instintos de persistência dos agregados. Às vezes
ainda, como aconteceu na Alemanha depois da derrota de Iena, a energia
popular se propaga nas classes superiores e as estimula a uma ação que
pode ser eficaz porque conjuga uma hábil direção como uma fé viva.
11. Os fenômenos ora analisados são os principais, aos quais, no entanto, se
acrescentam muitíssimos outros secundários. Entre estes, convém observar
que, onde a classe governante não sabe, não quer e não pode usar a força
para reprimir as transgressões às uniformidades na vida privada, é
substituída pela ação anárquica dos governados. Na história, sabe-se muito
bem que a vingança privada desaparece ou reaparece, conforme, para a
repressão dos delitos, o poder público faz ou deixa de fazer as vezes dela.
Assim, vê-se reaparecer sob a forma de “linchamento” nos Estados Unidos
e também na Europa. Observa-se, ainda, que, onde é fraca a ação do poder
público, se constituem pequenos Estados dentro do grande Estado,
pequenas sociedades dentro de uma maior. Semelhantemente, onde tem
menos ação da justiça pública, há a sua substituição pela justiça privada e
sectária, ou vice-versa. Nas relações internacionais, sob os adornos das
declamações humanitárias e éticas, permanece só a força. Os chineses se
consideravam e, talvez, até eram mesmo superiores, em termos
civilizacionais, aos japoneses, mas a eles faltavam a força militar que,
graças a um resquício da “barbárie” feudal, não faltou aos japoneses, mas
sim aos chineses, agredidos pelas hordas europeias, cujas façanhas na
China lembram, como bem disse G. Sorel, as dos “conquistadores”
espanhóis na América, depois que o país deles foi submetido a chacinas,
roubos e saques pelos europeus, tiveram, além disso, de pagar uma
indenização, enquanto os japoneses, vitoriosos contra os Russos, são por
todos respeitados. Poucos séculos atrás, a fina arte diplomática dos
senhores cristãos em Constantinopla não os salvou da ruína promovida
contra eles pelo fanatismo e pela força dos “Turcos” e, hoje, em 1913,
justamente no mesmo lugar, os vencedores, decadentes no fanatismo e na
força, fiando-se, por sua vez, nas esperanças falaciosas da arte diplomática,
foram vencidos e derrotados pela força de seus antigos súditos. Gravíssima
ilusão é a dos homens políticos que acham que podem substituir por leis
inermes o uso da força armada. Entre muitos exemplos que se poderiam
apresentar, bastaria o da Constituição de Lúcio Cornélio Sula e da
Constituição conservadora da Terceira República Francesa. A Constituição
de Sula caiu porque a força armada não foi conservada, o que poderia
torná-la respeitada; a Constituição de Augusto durou porque os seus
sucessores tiveram em seu auxílio a força das legiões. Vencida e derrotada
a Comuna, Thiers considerou que o governo devesse se apoiar mais nas leis
do que na força armada; e as suas leis foram espalhadas como folhas ao
vento pela tempestade da plutocracia democrática. Sequer nos recordamos
do exemplo de Luís XVI, da França, que, com o seu veto acreditava que
poderia deter a Revolução porque era apenas uma ilusão tola e pusilânime.
12. Comumente, todos esses fatos aparecem velados pelas derivações. Em
certo sentido, temos as teorias que condenam, em todo caso, a violência
usada pelos governados; em outro sentido, teorias que a reprovam se for
usada pelos governantes.
13. As primeiras teorias, quando não se sente muito a necessidade de usar a
lógica, recorrem simplesmente a sentidos de veneração aos homens que
têm o poder, às abstrações como a do “Estado”, e a sentidos de reprovação
aos que esperam perturbar ou subverter a ordem existente. Quando, então,
se estima útil satisfazer a necessidade de lógica que o homem experimenta,
procura-se estabelecer uma confusão entre o ato de quem, para o seu
próprio e exclusivo benefício, transgride uma uniformidade fixada na
sociedade, e quem a transgride por um interesse coletivo e para substituí-la
por outra; visa-se, assim, a estender ao segundo ato a reprovação que
geralmente atinge o primeiro. No nosso tempo, ocorrem raciocínios que
têm relevância para a teologia do Progresso. Muitos de nossos governos
têm origem revolucionária; como se faz, sem renegá-la, ao condenar as
revoluções que contra elas poderiam ser tentadas? Assegura-se a eles a
atribuição de um novo direito divino: a insurreição era legítima contra os
governos passados, que tinham como fundamento de seu poder a força, não
o é mais contra os modernos que têm por tal fundamento a “razão”. Ou a
insurreição era legítima contra os reis e as oligarquias, não o é, em nenhum
caso, contra o “povo”. Ou ainda: ela pode ser usada onde não existe o
sufrágio universal, não mais onde já existe tal panaceia. E mais: ela é inútil
e, portanto, está condenada, em todos os países em que o “povo” pode
expressar a sua “vontade”. Por fim, para não esquecer de dar uma
satisfação qualquer aos senhores metafísicos: a insurreição não pode ser
tolerada onde existe um “Estado de Direito”. O leitor vai ter de me perdoar
por eu não definir para ele esta bela entidade, porém, por mais pesquisas
que se tenham feito, para mim, ela permanece inteiramente desconhecida e
eu preferiria ter de decifrar a Quimera a explicar o que o tal Estado de
Direito é.
14. Via de regra, todas essas derivações não têm nenhum sentido exato.
Todos os governos usam a força e todos alegam que se fundamentam na
razão. De fato, com ou sem o sufrágio universal, é sempre uma oligarquia
que governa e que sabe dar à “vontade do povo” a expressão que desejar,
da lei régia que dava o imperium aos imperadores romanos aos votos da
maioria de uma assembleia eleita de vários modos, ao plebiscito que deu o
império a Napoleão III e assim por diante, até o sufrágio universal
sabidamente enganado, comprado e manipulado pelos nossos
“especuladores”. Quem é esse novo deus cujo nome é “sufrágio universal”?
Ele não é melhor definido, menos misterioso, menos fora da realidade do
que tantas outras divindades; nem faltam à sua teologia, como nas outras,
aquelas contradições patentes. Os fiéis dos “sufrágio universal” não se
deixa guiar por seu próprio deus, mas são eles quem o guiam, enquanto
proclamam a santidade da maioria, à maioria se impõem com a
“obstrução”, ainda que seja uma pequena minoria; e fazem isso enquanto
queimam incenso à deusa Razão; não abrem mão, o mínimo que seja, do
auxílio da astúcia, da fraude e da corrupção.
15. Em essência, tais derivações exprimem principalmente o sentimento
daqueles que, depois de conquistarem o poder, o querem conservar, e
também o sentimento muito mais geral sobre a utilidade da estabilidade
social. Se, ainda que por um breve período de tempo em uma coletividade
qualquer, pequena ou grande, não fosse suprida de certas normas
estabelecidas para regular a sociedade da qual ela faz parte, e se recorresse
sempre às armas para destruí-las, a própria sociedade se desmantelaria. A
estabilidade social é tão útil que, para mantê-la, considera-se recorrer ao
auxílio de fins imaginários, de várias teologias, entre as quais pode ter
lugar também a do sufrágio universal, e, com isso, aceitar sofrer certos
danos reais. Porque, se a perturbação da estabilidade social for útil para
alguma coisa, os danos advindo disso serão muito graves; e dado que os
homens, não muito afeitos ao raciocínio científico, mas a sentimentos vivos
experimentados com ideais, são eficazmente guiados e podem se beneficiar
dentro de certos limites – e, de fato, têm sido beneficiados – por mais
absurdas cientificamente que sejam as teorias do “direito divino” dos reis,
das oligarquias, do “povo”, da “maioria” e das assembleias políticas e
outras semelhantes.
16. As teorias que autorizam o uso da força por parte dos governados se
coadunam, quase sempre, com as que o reprovam por parte dos
governantes. Poucos sonhadores, em geral, reprovam o uso da força por
qualquer uma das partes; mas essas teorias, ou não têm nenhuma eficácia,
ou só têm aquela eficácia de minar a ação de resistência dos governantes,
deixando o campo livre para a violência dos governados, para que
possamos nos limitar a considerar, de um modo geral, o fenômeno sob tal
aspecto.
17. Não há ocorrência de muitas teorias para estimular os que são, ou
acreditam ser, oprimidos, para a resistência e para o uso da força. Portanto,
as derivações são principalmente voltadas a persuadir os que, no conflito,
seriam neutros, que desaprovam a resistência aos governantes e, portanto, a
querer que esta resistência seja menos intensa, ou também a persuadir disso
tudo os próprios governantes, o que, aliás, não pode, hoje, ter sucesso
próprio, exceto com os que quebram os ossos com a tabes do
humanitarismo. Alguns séculos atrás, poder-se-ia ter até um sucesso
favorável, em nossas terras, com as derivações religiosas, junto aos que
eram sinceramente cristãos; e, em outras terras, com as derivações da
religião que nestas existiam, junto aos que acreditavam firmemente nelas.
Uma vez que o humanitarismo é uma religião, similar à cristã, à
muçulmana etc., podemos dizer que, em geral, se pode conseguir, às vezes,
a ajuda dos neutros e minar a resistência dos governantes, adotando
derivações da religião, qualquer que seja ela, que, por tais pessoas, são
sinceramente professadas. Mas as derivações, prestando-se facilmente a
demonstrar o pró e o contra, tal meio é, muitas vezes, de pouca eficácia,
quando não é apenas um véu que encobre os interesses.
18. Em nosso tempo presente, em que os conflitos são principalmente de
índole econômica, acusa-se o governo de “intervir” em uma disputa
econômica, se quer proteger os patrões e os fura-greves contra a violência
dos grevistas. Se os agentes das forças públicas não se permitem serem
mortos sem usar suas armas, dizer que lhes falta um juízo ponderado, que
eles são “impulsivos, neurastênicos”. Deve ser negado a eles, assim como
aos fura-greves, a faculdade de fazer uso das armas quando são agredidos
pelos grevistas, posto que estes poderiam ser mortos e o delito da agressão,
dado e não autorizado que exista, não merece a pena de morte. Aos juízes
dos tribunais, são levantadas suspeições de que sejam “juízes de classe”; de
qualquer forma, eles são sempre muitos severos. Por fim, ocorre que a
anistia cancela todo registro criminal de tais conflitos. Poder-se-ia acreditar
que, da parte dos fura-greves e dos patrões, se usem derivações diretamente
opostas a estas, haja vista que opostos são os interesses; mas isso não
ocorre, ou ocorre de um jeito extremamente solto e leve. No que diz
respeito aos fura-greves, a causa é que eles geralmente têm pouco ânimo,
não são nutridos por nenhum ideal, quase se envergonham de seu próprio
trabalho, e o fazem, resignadamente, sem levantar a voz. No que diz
respeito aos patrões, a causa é que muitos deles são “especuladores”, que
esperam ser ressarcidos dos danos causados pela greve com a ajuda do
governo e às expensas dos consumidores e dos contribuintes. O litígio deles
com os grevistas são brigas de compadres para dividirem o butil. Os
grevistas, que fazem parte do povo, no qual abundam os resíduos da classe
II, não têm só interesses, mas também um ideal; nos patrões
“especuladores”, que fazem parte da classe enriquecida com as
combinações, abundam, ao contrário, os resíduos da classe I; portanto, eles
têm principalmente interesses e poucos ideais ou ideias de natureza apenas
pontual. Gastam o tempo em atividades muito mais lucrativas, que não são
logicamente a de edificar teorias; entre eles, há vários demagogos
plutocratas, que sabem muito bem como virar a seu favor uma greve que,
aparentemente, foi feita contra eles. Há, então, considerações gerais que se
voltam tanto para os conflitos internos quanto para os internacionais e que
se resumem à invocação dos sentimentos de piedade aos sofrimentos
causados pelo uso da força, fazendo abstração, por inteiro, das causas para
as quais é ela usada, e da utilidade, ou do dano, que o seu uso ou o seu não-
uso teria. Acrescentam-se, às vezes, expressões de veneração ou, na pior
das hipóteses, de compaixão pelo “proletariado”, que nunca pode fazer mal
ou, no mínimo, é escusável em qualquer uma das suas ações. Em outros
tempos, expressões análogas, correspondentes a sentimentos análogos,
eram usadas em favor do poder régio, teocrático e aristocrático.
19. É notável, porque adequadas à índole essencialmente sentimental das
derivações, que as teorias que seriam melhores, sob o aspecto lógico-
experimental, são, usualmente, negligenciadas. Por exemplo, no Medievo,
havia excelentes razões para que elas se apresentassem favoravelmente ao
poder clerical, quando estava em disputa com o poder imperial, régio ou do
baronato, isto é, que era quase o único contrapeso a tais poderes, quase a
única defesa da inteligência, da ciência e da cultura contra as forças
ignorantes e brutais. Mas esta razão era pouco ou nada invocada para o seu
auxílio e os homens preferiam confiar nas derivações extraídas da doutrina
da revelação e das Cartas Sagradas. Hoje, quando os patrões, que gozam da
proteção econômica, desprezam os grevistas porque querem eliminar a
concorrência dos fura-greves, não se adota a resposta de que eles querem
impedir que os outros façam o que eles mesmos fazem quanto tentam
impor o como e o porquê é boa a livre concorrência dos operários e ruim a
dos patrões. Vamos imaginar um indivíduo que queira desafiar os limites
impostos, apresentando, por exemplo, a sacarina à Itália, contra o qual se
mobilizam os fiscais alfandegários; com violência, impediram esta
concorrência com os fabricantes de açúcar, chegando ao cúmulo de fazer
uso das armas e, até mesmo, a matar o contrabandista, de quem ninguém se
compadece; enquanto é graças a esta violência e a estes homicídios que
várias pessoas puderam conquistar generosas riquezas e que, então, a eles
são rendidas homenagens, honrarias e, inclusive, lugar entre os
legisladores. Resta saber porque a violência não pode ser igualmente
adotada para fazer aumentar os salários dos operários.
20. Pode-se objetar que a violência que tutela os interesses dos patrões é
legal e à que recorrem os grevistas contra os fura-greves é ilegal. Por conta
disso, a pergunta passa da utilidade da violência à utilidade do modo com o
qual ela é exercida e é, na verdade, um argumento importante. A violência
legal é efeito das normas existentes em uma sociedade e, em geral, o seu
uso é de maior utilidade ou de menor dano comparado ao da violência
privada, que visa subverter estas normas. Observe-se que os grevistas
poderiam responder e, efetivamente e às vezes, respondem que usam a
violência ilegal porque o caminho deles para usar a violência legal está
bloqueado. Se a lei, com a violência legal, constrangesse os outros a lhes
dar o que eles exigem, não haveria necessidade de se recorrer à violência
ilegal. Isso pode ser repetido em muitos outros casos. Quem usa a violência
ilegal, nada de melhor deseja senão poder transformá-la em legal.
21. Mas o argumento não se exauriu e agora chegamos ao ponto alto da
questão. Deixemos de lado os casos particulares e raciocinemos no plano
geral. É justamente uma disputa entre a astúcia e a força e para decidi-la no
sentido de que nunca, em nenhum caso, ainda que ele, o argumento, seja
excepcional, será útil opor a força à astúcia, seria necessário demonstrar
que sempre, sem nenhuma exceção, o uso desta é mais útil do que o uso
daquela. Vamos supor que, em um país, haja uma classe governante A que
se assemelha aos melhores elementos, no que diz respeito à astúcia, de toda
a população. Em tais circunstâncias, a classe governada B permanece
privada de grande parte de tais elementos, razão pela qual pouca ou
nenhuma esperança pode ter de, algum dia, poder vencer a parte A, até que
se combata com astúcia. Se esta estivesse acompanhada com a força, o
domínio da parte A seria eterno.
Porque onde o argumento da razão se junta à má intenção
e ao poder, nenhum reparo as pessoas poderão fazer nele.
(DANTE, Inferno, XXXI, v. 55-57).
Mas isso acontece para poucos homens; para a maioria deles, quem usa a
astúcia é e torna-se menos apto a usar a violência e vice-versa. Então, o
acúmulo na parte A dos homens que melhor sabem usar a astúcia tem, por
consequência, o acúmulo na parte B dos homens menos aptos a usar a
violência. Dessa forma, seguindo o movimento, o equilíbrio tende a se
tornar instável, uma vez que aos da classe A socorre a astúcia, mas falta
ânimo para usar a força e falta, até mesmo, a própria força; enquanto os da
classe B têm, pelo contrário, esta e aquele, mas lhes falta a arte de fazer uso
deles. Onde, então, se encontram os líderes que possuem esta arte, e a
história nos ensina que, via de regra, eles vêm dos dissidentes da classe A e
têm tudo o que deve ter para conseguir vitória e apear do poder os da classe
A; e sobre isso, temos inumeráveis exemplos na história, desde os tempos
mais remotos até os nossos dias.
22. Deve-se observar aqui que, em geral, tal transformação é útil para a
coletividade; principalmente no caso em que a classe dominante se inclina
cada vez mais para o humanitarismo e, cada vez menos, para ele quando a
classe dominante é constituída por indivíduos que se inclinam cada vez
mais a usar combinações, em vez da força, ainda que indireta, da
prosperidade material da coletividade. Vamos supor que um país em que a
classe governante A tendam, a todo momento, ao humanitarismo, isto é,
acolhem-se somente as mais nocivas persistências dos agregados e
rejeitam-se as outras como preconceitos proibidos e, ainda que esperem o
“reino da razão”, ele se torna, ao tempo todo, mais capazes de usar a força,
isto é, exonera-se do principal dever dos governantes. Este país está a
caminho da mais completa ruína. Mais eis porque a classe governada B se
insurge contra a parte A. Para combatê-la, com palavras, ela adotará as
mesmas derivações humanitárias tão caras às classes B, mas sob estas
derivações estão sentimentos bem diferentes e imediatamente se
manifestam com os aptos. Os da classe B fazem largo uso da força, e não só
expulsam os da classe A, mas também matam vários deles e, para dizer a
verdade, eles realizam, desta forma, um trabalho útil como o daqueles que
destroem os animais nocivos. Eles trazem consigo, para o governo da
sociedade, uma cópia fiel da persistência dos agregados; e pouco ou nada
importa se eles têm vestes diferentes das dos antigos, só importa que eles
estão lá e que, graças a eles, a estrutura social adquire estabilidade e força.
O país se salva da ruína e renasce para uma nova vida. Quem julga
superficialmente, pode ser levado a parar de pensar nos massacres e nos
roubos que acompanham a convulsão, sem indagar se não são as
manifestações, ainda que deploráveis, de forças e de sentimentos sociais
que são, em vez disso, muito úteis. Quem dissesse que tais massacres e tais
roubos, longe de serem condenados, são, ao contrário, a marca que aqueles
que a tiveram de realizar mereciam o poder para a utilidade da sociedade,
expressaria um paradoxo, porque não existe uma relação de causa e efeito e
nem sequer de rigorosa e indispensável interdependência entre tais males e
a utilidade da sociedade; mas neste paradoxo há também um pouquinho de
verdade, manifesta-se a substituição de gente forte e orgulhosa por gente
fraca e vil. Atualmente, descrevemos abstratamente muitas convulsões
concretas, desde aquela que deu o império a Augusto, até a Revolução
Francesa de 1789. Se a classe governante francesa tivesse tido a fé que
concilia o uso da força e a vontade de adotá-la, ela não seria deposta e, em
benefício próprio, teria feito o do país. Uma vez que ela não se dá a tal
trabalho, foi melhor que os outros a substituíssem e, dado que justamente
era o uso da força que faltava, foi uma consequência de uniformidade
bastante genérica, que se dirigisse para o outro extremo, onde, por
necessidade, também outros fazem uso da força. Se Luís XVI não fosse um
homem de pouco juízo e de menos coragem, que se deixou abater sem ao
menos combater, e que, ao cair violentamente com as armas na mão,
preferiu perder a cabeça na guilhotina, talvez pudesse ter sido ele a eliminar
os seus adversários. Se as vítimas dos massacres de setembro, seus parentes
e seus amigos, não fossem, em sua grande maioria, humanitários privados
de toda coragem e de toda energia, seriam eles que destruiriam os
adversários, ao invés de esperarem que fossem destruídos. Era benéfico ao
país que o governo passasse aos que demonstrassem ter a fé e a vontade
necessárias para o uso da força. A utilidade para a sociedade é menos
evidente quando a classe dirigente é composta de pessoas para as quais
prevalecem os instintos de combinação e, de fato, dentro de certos limites,
essa utilidade pode não ser assim tão evidente. Mas onde a classe
governante se despe excessivamente dos sentimentos de persistência dos
agregados, atinge-se com facilidade um ponto em que se torna inapta a
defender não só o próprio poder, mas também, o que é pior, a própria
independência do país. Então, se tal independência se acredita útil, deve
também ser considerado útil que desapareça a classe que não mais sabe
cumprir com o ofício de defendê-la. Via de regra, é da classe governada
que podem surgir o que têm fé e vontade para usar a força em defesa da
pátria.
23. A classe governante A procura defender, de várias maneiras, o próprio
poder e afastar o perigo que os da classe governada B promovem contra
ela, razão pela qual procura se valer da força dos da classe B, o que se
revela um modo muito eficaz de defesa; ou se tenta impedir que seus
dissidentes possam se tornar líderes da classe B, ou melhor, daquela parte
da classe B que está disposta a usar a força; mas isso é bem difícil de se
obter. Os da classe A acrescentam derivações para calar os da classe B,
dizem a eles que “todo poder vem de Deus”, que é “crime” recorrer à
violência, que não há nenhum motivo para que se use a força e para que se
obtenha aquilo que, se for realmente “justo”, pode ser obtido com a
“razão”; estas derivações têm por objetivo principal desviar os da classe B
para um campo de batalha que lhes é totalmente favorável, para atraí-los
para um outro campo, isto é, o campo da astúcia, onde a sua derrota é certa,
lutando eles contra os da classe A que, na astúcia, os superam imensamente.
Mas, via de regra, a eficácia de tais derivações depende, em larga medida,
dos sentimentos persistentes que expressam, e só em pequena medida, dos
sentimentos que criam.
24. A estas derivações, devem ser opostas outras mais que têm eficácia
análoga e convém que parte delas ponha em ação sentimentos que são
acolhidos pelos que se afiguram serem neutros, se bem que eles talvez não
o sejam em realidade, que não gostariam de tomar partido nem para os da
classe A nem para os adversários destes, mas só têm em vista o que é
“justo” e “honesto”. Tais sentimentos se encontram principalmente entre
aqueles que são manifestados pelos resíduos da socialidade (classe IV) e,
acima de tudo, entre os sentimentos de piedade (IV-γ1 e IV-γ2); por isso, a
maior parte das derivações que são favoráveis à violência da classe
governada, não a defendem tanto diretamente, quanto indiretamente, isto é,
condenando a resistência da classe governante em nome da socialidade, da
piedade e da repulsa aos sofrimentos alheios. Estes últimos sentimentos são
quase todos eles os únicos invocados pelos muito pacifistas, os quais, para
defender a própria tese, não sabem fazer outra coisa senão descrever os
“horrores da guerra”. Frequentemente, acrescentam-se, nas derivações
atinentes às disputas sociais, os sentimentos do ascetismo, os quais, às
vezes, operam sobre alguns dos mesmos que fazem parte da classe A e que,
portanto, não podem beneficiar nenhum pouco os da classe B.
25. Em essência, todas as derivações exprimem, sobretudo, os sentimentos
dos que querem mudar o ordenamento social e, portanto, conseguem os
ganhos ou os prejuízos, de acordo com o ganho ou com o prejuízo que tal
mudança ocasione. Quem quiser argumentar que a mudança é sempre
prejudicial e que a estabilidade é o sumo bem deveria, por consequência,
sentir-se capaz de demonstrar ou o benefício de as sociedades humanas
permanecerem sempre em um estado de barbárie, ou que a passagem desse
estado para o estado civilizado atual ocorreu ou “podia” ocorrer sem
guerras e sem revoluções. Esta segunda asserção luta tanto com os fatos,
como a história nos dá mostra sobre isso, que é absurda o seu simples
raciocínio; fica a primeira, que se poderia defender dando um sentido
especial ao termo “utilidade” e apoiando-se nas teorias que celebram as
alegrias do “estado de natureza”. Quem não quiser chegar a tanto, nem
sequer pode admitir a primeira proporção e, por isso, é forçado pelos fatos
e pela lógica a reconhecer que as guerras e as revoluções, às vezes, foram
benéficas, o que, por outro lado, não quer dizer que sempre o foram; e,
reconhecido isto para o passado, falta totalmente todo fundamento para
demonstrar que não ocorrerá igualmente para o futuro.
26. Eis que, então, estamos, como de costume, saindo do campo
qualitativo, para entrarmos no quantitativo da ciência lógico-experimental.
Em geral, não se pode afirmar que a estabilidade seja sempre benéfica, nem
que a mudança seja sempre boa; mas se deve examinar cada caso em
particular, avaliar o benefício e o prejuízo, e ver se aquele supera este ou
vice-versa.
27. Nós já observamos que, em muitos casos, se acredita que a estabilidade
é benéfica; não seria menor o número de casos em que se acharia que as
transgressões às normas existentes são benéficas, se se pusessem juntas as
normas de ordem intelectual e as de ordem material; mas onde elas estão
separadas, ver-se-á que, especialmente nas transgressões de um pequeno
número de indivíduos, há muitíssimos casos em que as transgressões
individuais ou de poucos indivíduos às normas intelectuais são benéficas,
poucos em que tais transgressões às normas de ordem material também são
benéficas. Por isso, os efeitos da fórmula pela qual as transgressões à
ordem material devam ser tanto mais reprimidas quanto mais elas forem
individuais, tanto menos reprimidas quanto mais forem coletivas, em
muitos mais casos não nos levam muito longe do máximo de utilidade
social, como nos levariam se tal fórmula fosse também usada para as
transgressões da ordem intelectual. Esta é, em essência, a principal razão
que se pode apresentar em favor do que se chama “liberdade de
pensamento”.
28. As derivações, entretanto, não são entendidas desse modo. Os
dissidentes defendem a sua própria opinião porque ela é “melhor” do que a
da maioria; e é bom que tenham tal fé, porque é só por meio dela que
podem ter a energia para resistir às perseguições a que quase sempre estão
sujeitos. Até que se reduzam a poucos, exigindo somente um lugarzinho ao
sol para a sua seita; mas, na realidade, anelam pelo momento em que, de
perseguidos, possam se transformar em perseguidores, o que
inevitavelmente acontece logo que eles aumentarem em número para poder
impor a sua vontade. Assim, acaba a utilidade do que antes era uma
dissidência e aparece o dano da nova ortodoxia.
29. No estudo do fenômeno do uso da força, mais ainda do que no estudo
de outros fenômenos sociais, somos obrigados a considerar somente as
relações de causa e efeito, nem que para isso tenhamos, de um jeito ou de
outro, de nos afastar bastante da realidade; uma vez que, ao final, na
sequência da ação e da reação que deve ser considerada, ocupa um lugar
importante a ação da força produtora de certos efeitos. Ademais, convém
não parar por aqui, mas ir além, para ver se há fenômenos mais gerais em
que pensar.
30. Por exemplo, acabamos de comparar a revolução que se seguiu em
Roma nos tempos de Augusto e a que se seguiu na França nos tempo de
Luís XVI, e vimos que, para entendê-las, tivemos de investigar as
derivações, os sentimentos e os interesses mencionados por estas
revoluções. Indo um pouquinho mais longe, dando um passo adiante,
vamos observar que, tanto ao tempo da queda da República romana, quanto
ao da queda da monarquia francesa, a classe governante não sabia ou não
podia usar a força, e foi retirada do poder por uma outra classe que sabia e
que podia usar a força. Esta, em Roma como na França, surgiu do povo e
constituiu, em Roma, as legiões de Sula, de César e de Otávio; na França,
as turbas revolucionárias que debelaram o fraquíssimo poder régio e o
exército que venceu as medíocres tropas das potências europeias. Os líderes
dessa classe, naturalmente, falavam latim em Roma e francês na França e
não menos naturalmente usavam as derivações que se adaptavam aos
sentimentos através dos quais se alterava a substância, mas preservando a
forma; ao povo francês, subministraram derivações que pertenciam à
religião do “Progresso”, tão cara então àquele povo; isso também não foi
diferente ao tempo da Revolução Inglesa, Cromwell e os outros inimigos
da monarquia dos Stuart usaram as derivações bíblicas.
31. As derivações francesas nos são muito mais familiares do que as
romanas, não só por causa da maior quantidade de documentos que a nós
chegaram, mas também, a nós nos parece bastante provável, porque eles
tiveram suas cópias reproduzidas em grande quantidade. Talvez se Otávio
tivesse continuado a ser o defensor do senado, teria feito largo uso dele,
mas quando, em Bolonha, ele se aliou a Antônio e a Lépido, foi o seu
destino exclusivamente confiado às forças das legiões e depositou no
arsenal as derivações, como armas inúteis, que, só depois da vitória, ele
tentou aliviar as ofensivas de que os conservadores romanos poderiam
ressentir pelo nosso principado. Algo de semelhante aconteceu na França,
para Napoleão I, mas, antes dele, os jacobinos, que lhe abriram o caminho,
não poderiam fazer só o trabalho dos leões, mas deveriam recorrer também
às artes da raposa. Otávio estava certo do auxílio de uma tropa armada, sob
sua autoridade e, antes de tudo, com o seu dinheiro, ele lida com aqueles
que, por meio da força, podia extorquir outros; os líderes revolucionários
franceses, não podendo vencer desta forma, desde o início, tiveram de se
munir das tropas revolucionários com as derivações que, exprimindo os
sentimentos de muitos adversários do governo, estes, ao redor deles, se
amontoavam, e que, exprimindo também os sentimentos de quase todos os
governantes, foram capazes de remover inteiramente sua já escassíssima
vigilância, para enfraquecer, ainda mais, a sua já muito fraca resistência.
Daí se segue que, assim que os líderes revolucionários conquistarem o
poder, imitaram os triúnviros, distribuindo para os seus seguidores o
dinheiro e os bens dos seus adversários.
32. Como repetidas vezes já tínhamos notado, se o efeito das derivações é
muito menor do que o dos resíduos, ele não é, contudo, nulo, e as
derivações valem principalmente para dar mais força e eficácia aos
resíduos que elas exprimem. Não se pode então dizer que os historiadores
que estudaram exclusivamente ou também só principalmente as derivações
da Revolução Francesa, puseram na cabeça uma parte inteiramente
inconclusiva do fenômeno, mas erraram ao considerar ao considerar como
principal o que era só secundário; o maior erro foi, então, não investigar
que parte teve, no fenômeno, o uso da força e as causas pelas quais esta não
foi usada por alguns, mas foi usada por outros; os poucos que pensaram no
uso da força, novamente, erraram o caminho, quando reputaram que, por
causa das derivações, os governantes se abstiveram de tal uso; ao passo que
tais abstenções e as derivações tinham origem comum nos sentimentos
destes homens. Entretanto, a quem atentamente observa, o fenômeno
parece realizado, com as provas e as contraprovas. Luís XVI caiu porque
não quis, não soube e não pôde usar a força e, porque os revolucionários
queriam, sabiam e podiam usá-la, triunfaram; dos quais, não a eficácia das
teorias, mas só a da força dos seus partidários fez com que diferentes
legiões alcançassem o poder, até que o Diretório, que foi salvo pela força
na disputa com os mais fracos deles, sucumbisse pela força na disputa com
Bonaparte, fortalecido por suas tropas vitoriosas. E estas duram até que
sejam derrotadas por uma força mais superior dos exércitos aliados. Ao
final de tudo isso então, eis que se sucedem, na França, governos que caem
porque não querem, não sabem e não podem usar a força; e isso se observa
na queda de Carlos X, na de Luís Felipe e no advento de Napoleão III; e
pode-se acrescentar que, se o governo de Versailles pôde se manter em
1871 contra a insurreição da Comuna, isto foi assim porque teve a seu
serviço um exército forte e soube utilizá-lo a seu favor.

9. O regime político
1. Entre os diferentes e complexos fenômenos que se observam em uma
sociedade, é muito importante o do regime político, que está estreitamente
ligado a outro de índole da classe governante, sendo que ambos estão em
relação de interdependência com os outros fenômenos sociais.
2. Via de regra, é dada, frequentemente, uma demasiada importância à
forma, negligenciando um pouco a substância, de modo que foi
considerada, em grande medida, a forma sob a qual se manifesta o regime
político. Por outro lado, especialmente na França, sob o reinado de
Napoleão III e, principalmente entre os economistas, manifesta-se a
inclinação de dar pouco ou nenhum valor não só à forma do regime
político, mas à própria substância deste regime. Passava-se, assim, de um
extremo a outro e a teorias exclusivamente políticas da sociedade,
opunham-se teorias exclusivamente econômicas, entre as quais o
materialismo histórico, caindo no mesmo erro de negligenciar a mútua
dependência dos fenômenos sociais.
3. Para aqueles que dão suma importância à forma do regime político é
uma grande oportunidade para solucionar a questão: “Qual é a melhor
forma de regime político?”. Mas ela tem pouco ou nenhum sentido, senão
dizer a qual sociedade ela deve se adaptar e senão esclarecer o que significa
o termo “melhor”, que menciona de um jeito muito indeterminado nas
inúmeras e variadas utilidades individuais e sociais que ele encerra.
Embora, tanto ali quanto aqui, isso, às vezes, possa ser perfeitamente
intuído, a consideração sobre as formas do regime político deu lugar a
derivações sem fim, que apontam para vários mitos; e que, junto com estes,
não têm nenhum valor sob o aspecto lógico-experimental; enquanto aqueles
e estes, ou melhor, os sentimentos que manifestam, podem ter efeitos, por
um bom período de tempo, para estimular os homens a agir. É certo que os
sentimentos manifestados pela fé, monárquica, republicana, oligárquica,
democrática etc. tiveram e ainda têm participação não pequena nos
fenômenos sociais, como, do mesmo modo, se pode observar dos
sentimentos manifestados pelas outras religiões. O “direito divino” de um
príncipe, o de uma aristocracia, o do “povo”, da plebe, da maioria e de
quantos outros que se possam imaginar não tem o mínimo valor
experimental; devemos, então, considerá-lo somente do ponto de vista
extrínseco, com fatos e manifestações dos sentimentos, os quais, como as
outras características dos homens que constituem uma da sociedade,
operam para determinar o seu modo e a sua forma. Não se deve então
esquecer de que a observação de qualquer um desses “direitos” não tem
fundamento na experiência, não lhe é minimamente ferida a utilidade que
dela pode ser reconhecida para a sociedade. Feriria sim, se a proposição
fosse uma derivação, sendo que, em tais raciocínios, geralmente se
subentende que “tudo isso que não é racional é nocivo”, mas deixa
incólume a consideração da utilidade, quando a proposição é lógico-
experimental, uma vez que nela não é, em hipótese nenhuma, subentendida
a afirmação ora mencionada. O estudo das formas de regime político
pertence essencialmente à sociologia; aqui nós só nos ocuparemos de
investigar a sua substância, que está coberta pelas derivações, e para
estudar as relações das várias composições da classe governante com os
outros fenômenos sociais.
4. Neste, como em outros argumentos semelhantes, desde até os primeiros
passos que queremos dar, nós nos deparamos com o obstáculo da
terminologia; e é natural, posto que, para as investigações objetivas que
queremos realizar, precisamos de uma terminologia objetiva, enquanto,
para os raciocínios subjetivos que se fazem, usualmente ocorre uma
terminologia subjetiva, que é a vulgar. Por exemplo, todos reconhecem que,
nos dias de hoje, a “democracia” tende a se tornar o regime político de
todos os povos civilizados. Mas qual é o significado exato deste termo
“democracia”? Ele é também mais indeterminado do que o
indeterminadíssimo termo “religião”. Ocorre, então, que vamos deixá-lo de
lado e vamos direcionar o estudo aos fatos que o encobre.
5. Vejamos, portanto, os fatos. Antes de tudo, temos uma acentuada
tendência dos modernos povos civilizados de usar uma forma de governo
em que o poder de fazer as leis compete, em grande parte, a uma
assembleia eleita, ao menos em parte, pelos cidadãos. Pode-se acrescentar
que há uma inclinação para aumentar este poder e aumentar o número dos
cidadãos que elegem a assembleia.
6. Excepcionalmente, na Suíça, o poder de fazer leis pela assembleia eleita
é restringido pelo referendum popular, e tem, nos Estados Unidos da
América, o obstáculo das Cortes Federais. Uma tentativa feita na França
para restringi-lo por meio de plebiscitos, foi obra de Napoleão III, e não
teve sucesso exitoso, sem que se possa afirmar, com segurança, que isso
acontecesse por seu próprio vício, uma vez que o regime de que se
originava foi destruído pela força armada de uma nação inimiga. A
tendência de aumentar o número dos participantes nas eleições é geral; este
é um caminho que, por enquanto, não tem mais volta. Amplia-se, ao tempo
todo, o sufrágio, depois de tê-lo dado aos homens adultos, quer-se concedê-
lo às mulheres; não se exclui que se alargue também no que se refere à
idade.
7. Formalmente, apesar de iguais perante todos os povos civilizados, há
uma grande diversidade na substância, e se dão nomes semelhantes a coisas
dessemelhantes. Vemos, por exemplo, que o poder da assembleia legislativa
eleita passa de um máximo para um mínimo. Na França, a Câmara e o
Senado, sendo eletivos, podem ser considerados, para a investigação que
aqui estamos fazendo, como uma assembleia única, e se pode dizer que é
inteiramente soberana e que não há limites para o seu poder. Na Itália, ao
poder da Câmara dos deputados, há um limite teórico no Senado e efetivo
na monarquia. Na Inglaterra, havia, ao poder da Câmara dos Comuns, um
limite efetivo na Câmara dos Lordes, agora enfraquecido, e um outro limite
na monarquia, agora também feita de uma forma muito leve. Nos Estados
Unidos da América, o presidente eleito, independentemente da Câmara,
limita, com efeito, o poder desta. Na Alemanha, os Conselhos dos Estados
e mais ainda o imperador, com o auxílio da casta militar, limitam, em larga
medida, o poder da Reichtag. Assim, de grau em grau, chega-se à Rússia,
onde a Duma tinha pouco poder, e ao Japão, onde a assembleia eleita
também tem pouquíssimo poder. Deixemos de lado a Turquia e as
repúblicas da América Central, onde as assembleias legislativas são um
pouco quiméricas.
8. Não nos detenhamos na ficção da “representação popular”, esta
tagarelice toda não faz farinha; prossigamos ainda e vejamos qual é a
substância que se encontra sob as várias formas de poder da classe
dominante. Retiradas as exceções, que são em pequeno número e que
duram pouco tempo, tem-se, em toda parte, uma classe governante pouco
numerosa, que se mantém no poder, em parte com a força e em parte com o
consenso da classe governada, que é muito mais numerosa. As diferenças
estão principalmente no que se refere à substância, nas proporções de força
e de consenso; no que se refere à forma, nos modos com os quais se usa a
força e se obtém o consenso.
9. Como já observamos (cap. VIII), se o consenso fosse unânime, o uso da
força não seria necessário. Este ponto extremo nunca se vê por aí. Um
outro ponto extremo tem alguns casos concretos, e é aquele de um déspota
que se mantém no poder com os seus soldados contra uma população hostil
e é fenômeno que pertence ao passado; ou aquele de um governo forasteiro
que subjuga um povo relutante, e é fenômeno do qual ainda existem muitos
exemplos nos dias de hoje. O motivo pelo qual, no primeiro caso, o
equilíbrio é muito mais instável do que no segundo deve ser buscado na
existência de diferentes resíduos. Os que vivem em torno do déspota não
têm resíduos essencialmente diferentes daqueles do povo subjugado, de
modo que falta fé que mantenha e, a um só tempo, contenha o uso da força,
e os que vivem em torno do déspota dispõem, com facilidade e
caprichosamente, do poder, como fizeram os pretorianos, os janízaros e os
mamelucos, ou abandonam a defesa do déspota contra o povo. Por outro
lado, o povo dominador, geralmente, tem usos e costumes e, às vezes,
língua e religião diferentes do povo subjugado, de modo que há uma
diferença de resíduos e não falta fé para usar a força. Mas nem aos
subjugados ela falta para resistir à opressão, e isso explica como, a longo
prazo, o equilíbrio pode ser rompido.
10. Por conta justamente do termo desse eventos, é que acontece de os
povos dominadores procurarem se assimilar aos povos subjugados e,
quando conseguem tal intento, é o melhor modo de assegurar o próprio
domínio; mas, muitas vezes, fracassam, porque querem modificar
violentamente os resíduos ao invés de se valerem dos que já existem. Roma
teve uma exímia habilidade nesta arte e, por isso, pôde assimilar-se a
muitos outros povos que a circundavam no Lácio, na Itália e na bacia do
Mediterrâneo.
11. Muitas vezes, já nos deparamos incidentalmente com a observação de
que a ação dos governos é muito mais eficaz e melhor quando sabem se
valer dos resíduos existentes e, muito menos, quando ignoram tudo isso, e
totalmente ineficaz quando visam a modificá-los de forma violenta; e, de
fato, quase todos os raciocínios sobre o porquê de certos atos dos governos
conseguem um sucesso próspero ou adverso quando pensam neste
princípio.
12. Muitos se esquivam em reconhecer tal fato por causa das derivações.
Por exemplo, se A é a derivação com a qual se expressam certos
sentimentos dos subjugados, facilmente se encontra uma outra derivação B
que, em essência, expressa igualmente os sentimentos da classe dominante,
apesar de esta consideração ser uma óbvia e evidente refutação de A e, em
tal fé, acredita-se que será fácil impor B aos subjugados, na medida em que,
ao final e ao cabo, é só constrangê-los a abrir seus olhos e a conhecer o que
evidentemente é verdadeiro. À disputa dos sentimentos, substitui-se, dessa
forma, uma disputa de derivações, ou seja, uma logomaquia. Outros se
aproximam um pouco mais da realidade, mas usam de sofismas. Insistem
longamente sobre a utilidade, para um povo, de ter uma unidade de fé em
certas matérias e negligenciam inteiramente a consideração da
possibilidade de conseguir isso sem ir ao encontro de sérios prejuízos que
podem anular e, até mesmo, superar os benefícios esperados. Outros ainda
supõem implicitamente que, quem se vale dos sentimentos de outrem com
os quais não consente, deve necessariamente fazer isso com vistas a um fim
desonesto e nocivo à sociedade e, portanto, condenam, sem dúvida, tal ação
como aquela dos hipócritas malvados. Mas tal modo de pensar é próprio de
um pequeno número de moralistas, sendo muito raro de se observar nos
homens práticos.
13. Valer-se de sentimentos existentes em uma sociedade para obter certos
fins não é, intrinsicamente, nem bom nem ruim para a sociedade; os
benefícios e os prejuízos dependem, portanto, dos fins a que se visa; se eles
convêm à sociedade, há assim um benefício, se a prejudicam, há, então, um
dano. No entanto, não se pode concluir que, quando a classe governante
tende a um fim que lhe é vantajoso, sem se atentar para o que é vantajoso
para a classe subjugada, esta necessariamente padece de um dano; porque
são muitíssimos os casos em que a classe governante, visando
excessivamente ao seu próprio bem, fez, além disso, o bem da classe
governada. Enfim, valer-se dos resíduos existentes em uma sociedade é só
um meio e vale o que vale o resultado ao qual ele nos leva.
14. Aos resíduos, como meio de se governar, devem-se acrescentar os
interesses e, às vezes, estes podem abrir o único caminho que existe para
modificar aqueles. Convém, no entanto, ponderar que os interesses
sozinhos, não encobertos pelos sentimentos, são, antes de tudo, um
poderoso instrumento para agir sobre aqueles em que prevalecem os
resíduos da classe II e, portanto, sobre o maior número dos que compõem a
classe governada. Em geral, pode-se dizer, muito a grosso modo, que a
classe governante enxerga melhor os seus próprios interesses, porque a
cortina dos sentimentos é menos espessa; que as classes governadas os
enxerga menos nitidamente, porque a cortina dos sentimento, ao contrário,
é mais espessa; e, disso se segue, que a classe governante pode enganar a
classe governada e levá-la a tornar os seus interesses os mesmos da classe
governante, os quais, aliás, não são necessariamente opostos aos da classe
governada, pelo contrário, frequentemente, se confundem, de modo que o
engano consegue ser vantajoso, até mesmo, para a própria classe
governada.
15. No curso de toda história, surgem o consenso e a força como meios
para se governar. Ambos aparecem, desde as lendas da Ilíada e da Odisseia,
para assegurar o poder dos reis gregos, e são vistos também nas lendas dos
reis romanos; depois, na época histórica, em Roma, operam tanto na
República quanto no principado; e não fica devidamente demonstrado que
o governo de Augusto obteve menor consenso da classe governada, do que
puderam ter os vários governos do fim da república. Avançando um pouco
mais, dos reis bárbaros e das repúblicas medievais, até os reis de direito
divino, dois ou três séculos atrás, e, por fim, até os regimes democráticos
modernos, ao tempo todo, tem-se esse misto de força e consenso.
16. Do mesmo modo que as derivações são muito mais variáveis do que os
resíduos demonstram ser, as formas, sob as quais surge o uso da força e do
consenso, são muito mais variáveis do que os sentimentos e os interesses
dos quais se originaram, e as várias proporções do uso da força e do
consenso têm, em larga medida, origem nas inúmeras proporções dos
sentimentos e dos interesses. Vigora ainda a similitude entre as derivações e
as formas de governo; e tanto aquelas quanto estas agem muito pouco sobre
o equilíbrio social, do que agem os sentimentos e os interesses dos quais
elas se originaram. Isso tudo foi intuído por muitos estudiosos, os quais, de
resto, foram um pouco mais além argumentando que a forma de governo é
indiferente.
17. A classe governante existe em todo e qualquer lugar, mesmo onde há
um déspota, mas são inúmeras as formas pelas as quais ela aparece. Nos
governos absolutos, está sobre o palco apenas um único soberano; nos
governos ditos democráticos, um parlamento; mas atrás das cortinas, estão
os que, de fato, têm participação efetiva no governo. Com certeza, eles, às
vezes, devem abaixar a cabeça aos caprichos dos soberanos ou dos
parlamentos, ignorantes e prepotentes, dos quais são muitos maiores os
efeitos políticos, mas logo voltam, tenazes, pacientes e perseverantes, ao
trabalho. Temos no Digesto ótimas constituições nas mãos de péssimos
imperadores, assim como, atualmente, temos códigos discretos aprovados
por parlamentares, até certo ponto, desconhecidos; tanto naquele quanto
neste caso, a causa, de fato, é a mesma, isto é, que o soberano permitia que
os jurisconsultos os fizessem; em outros casos, o soberano nem sequer sabe
o que eles o fazem fazer, e os parlamentares sabem isso menos ainda do
que qualquer líder ou rei. Muito menos ainda toma conhecimento das
coisas o soberano Demos e isso, às vezes, o ajudou a obter, contrariamente
ao que os seus preconceitos afirmam, melhorias na vida social, bem como
providências oportunas para a defesa da pátria: o bom Demos acredita que
eles obedecem à sua vontade, mas, na verdade, é ele quem obedece à
vontade de seus governantes. Mas isso, muitas vezes, só serve aos
interesses desses governantes que, desde os tempos de Aristófanes até hoje,
usam amplamente da arte de enganar o Demos; os nossos plutocratas, como
já fizeram os plutocratas ao final da República romana, se dedicam a
ganhar dinheiro, seja para o seu próprio benefício, seja para saciar a
ganância de seus partidários e cúmplices e, além do mais, pouco ou nada é
dedicado ao pensamento. Entre as derivações que adotam para demonstrar
a utilidade, para a nação, do seu poder, é notável a que afirma que o povo
pode julgar muito melhor as questões gerais do que as especiais. Na
verdade, é justamente o contrário. Basta raciocinar um pouco com pessoas
pouco cultas para ver que elas entendem bem melhor as questões especiais,
que são, via de regra, mais concretas do que as gerais, que são abstratas, via
de regra. Mas as questões abstratas têm a vantagem, para os governantes,
de que, qualquer que seja a solução que dará a ela o povo, eles saberão
extrair as consequências que quiserem. Por exemplo, o povo elege homens
que querem abolir o fruto dos capitalistas, a mais-valia das indústrias e
controlar a ganância dos especuladores (questões gerais); e estes homens,
direta e indiretamente, ajudando os outros, aumentam enormemente o
déficit público e, assim, os frutos pagos a este capital, conservam, ou
melhor, aumentam a mais valia de que gozam os industriais, muitos dos
quais se tornam ricos com a demagogia e confiam o governo do Estado aos
especuladores, dos quais se veem certos líderes se tornarem diplomatas
como Volpi que celebrou a paz em Lausane, ou ministros, como Caillaux e
Lloyd George.
18. A classe governante não é homogênea; tem ela própria um governo e
uma classe mais restrita ou um líder, um comitê que, efetiva e na prática,
eles mesmos comandam. Às vezes, tal realidade é manifesta, como foi para
os Éforos em Esparta, o Conselho dos Dez em Veneza, os ministros
favoritos de um soberano absoluto ou os patrões de um parlamento; tal
realidade, outras vezes, está em parte oculta, como para o Caucus na
Inglaterra, as convenções nos Estado Unidos e os dirigentes dos
“especuladores”, que operam na França, na Itália etc. A inclinação para
personificar as abstrações ou tão-somente dar a elas uma realidade objetiva
faz sim com que muitos considerem a classe governante quase como uma
pessoa ou, pelo menos, como uma unidade concreta e supõem que ela tenha
uma única vontade e que, por meio de providências lógicas, leve a efeito os
projetos concebidos. Assim, muitos antissemitas se mostram semitas e
muitos socialistas, burgueses; enquanto outros mais próximos da realidade,
enxergam a burguesia como uma ordem que opera, até certo ponto, sem
que estejam conscientes disso os burgueses. As classes governantes, como
outras coletividades, realizam ações lógicas e ações não-lógicas e parte
importante do fenômeno é o ordenamento, não ainda a vontade consciente
dos indivíduos, os quais, com efeito, em certos casos, podem, pelo
ordenamento, ser arrastados para onde a vontade consciente não os levaria.
Quando discorremos sobre os “especuladores”, não foi necessário
considerá-los como personagens de um melodrama, que, com artifícios
tenebrosos, levando a efeito projetos perversos, regem e governam o
mundo. Isso não seria mais real do que uma fábula mitológica. Os
“especuladores” são homens que se dedicam exclusivamente à sua própria
realidade, e que, tendo em si os poderosos resíduos da classe I, eles os
utilizam para ganhar dinheiro e transitam pelo caminho de menor
resistência, como fazem, afinal de contas, todos os homens. Ele não tem
assembleia para deliberar sobre os projetos comuns e nem de nenhuma
outra forma, aliás, deliberam sobre eles; mas o acordo acontece
espontaneamente, porque se, em dadas circunstâncias, houver uma via com
benefícios maiores e com menor resistência, a maioria deles que a
procuram, encontrá-la-ão, e cada qual, seguindo por sua própria conta,
parecerá, se bem que assim não o seja, que a seguem de comum acordo,
mas outras vezes acontecerá que, enquanto forem estimulados pelas forças,
do ordenamento de que fazem parte, a vontade deles será relutante e
seguirão involuntariamente o caminho que comporta o seu ordenamento.
‘Há cinquenta anos atrás, os “especuladores” ignoravam completamente o
presente estado das coisas, ao qual a sua ação os conduziu; o caminho
seguido é o resultado de uma infinidade de pequenas ações, cada uma delas
determinada pela vantagem do tempo presente; como acontece com todos
os fenômenos sociais, ele é o resultado de certas forças que operam em
meio a certos vínculos e a certos obstáculos. Quando dizemos, por
exemplo, que agora os “especuladores” preparam, ao tempo todo, a guerra
com as despesas crescentes, não pretendemos minimamente afirmar que
são culpados dessa situação toda. Longe disso. Preparam a guerra com
despesas, a toda hora, crescentes e suscitando conflitos econômicos, porque
nisso encontram uma vantagem direta, mas esta causa, apesar de
importante, não é a principal, há uma outra causa de maior relevo, isto é, a
de se valer, como meio para governar, dos sentimentos de patriotismo
existente na população. Ademais, os “especuladores” dos vários países
estão em concorrência e se valem dos armamentos para obter concessões
dos rivais. Outras causas semelhantes existem e todas estimulam o aumento
dos armamentos, sem que isso siga um projeto pré-concebido. Por outro
lado, aqueles, em que há abundância de resíduos da classe I, intuem, sem
que ocorram, para isso, raciocínios e teorias, que aconteceria uma grande e
uma terrível guerra; entre os casos possíveis, há também o que deveria
ceder o lugar aos homens em que há abundância de resíduos das classe II;
e, por isso, pelo mesmo instinto que faz o cervo fugir do leão, são
contrários a tal guerra, enquanto aceitam alegremente as pequenas guerras
coloniais, as quais podem supervisionar sem nenhum perigo para si. Desses
seus interesses e sentimentos, e não por causa da vontade deliberada e pré-
estabelecida, segue a sua ação, que, por último, então, pode pensar onde se
quer chegar, mas que poderia também levá-los aonde nunca teria vontade
de ir. Poderá também acontecer que um dia ecloda a preparada e a não
desejada guerra, que será consequência da ação passada dos
“especuladores”, mas não desejada por eles, nem agora nem nunca.
Semelhantemente, os “especuladores” da Roma antiga prepararam a queda
da república e o poder de César e de Augusto, mas sem saber e sem querer
se se podiam, por tal caminho, minimamente chegar a tal fim. No que diz
respeito aos “especuladores”, assim como no que diz respeito aos outros
elementos do ordenamento social, o aspecto ético e o aspecto da utilidade
social devem ser muito bem distinguidos. Os “especuladores” não devem
ser condenados, sob o aspecto da utilidade social, porque realizam ações
reprovadas por uma das éticas que estão em curso; nem devem ser
absolvidos, sob o aspecto desta ética, porque são úteis socialmente. Deve-
se também salientar que a existência de tal utilidade depende das
circunstâncias em que se executa a ação dos especuladores e
designadamente a das suas proporções, seja na totalidade da população,
seja na classe governante, com os indivíduos em que os resíduos da classe
II são poderosos: para conhecer e avaliar tal utilidade, temos de resolver
um problema quantitativo, e não qualitativo. Nos dias de hoje, por
exemplo, o enorme desenvolvimento da produção econômica, a ampliação
dos processos civilizatórios a países novos e o notável aumento do conforto
das populações civilizadas se devem, em grande parte, às ações dos
especuladores; mas eles puderam realizá-la porque sugiram de populações
em que os resíduos da classe II ainda eram abundantes; e permanece
incerto, aliás é pouco provável, que benefícios semelhantes possam
acontecer, onde a população, ou até mesmo na classe dominante apenas, os
resíduos da classe II diminuam bastante.
19. A classe governante recruta, para manter o seu poder, indivíduos da
classe governada, que podem ser separados em duas categorias,
correspondentes aos dois principais meios com os quais tal poder é
assegurado, isto é, uma categoria usa a força, como seriam os soldados, os
agentes de polícia e os bravos do século passado; a outra usa a arte e, desde
a clientela dos políticos romanos, até chegar à dos nossos políticos
contemporâneos. Estas duas categorias não faltam mais, mas não existem
nas mesmas proporções reais e ainda menos nas mesmas proporções
aparentes. A Roma dos pretorianos ocupa um extremo, onde o principal
meio real de governo, e mais ainda meio aparente, é a força armada; os
Estados Unidos ocupam o outro extremo, onde, na realidade, o principal
meio de governo, e um pouco menos em aparência, são as clientelas
políticas. Nestas, age-se por muitos meios; o principal é o menos óbvio,
isto é, o governo cuida dos interesses dos “especuladores”, ainda que não
haja nenhum acordo explícito entre eles neste sentido. Por exemplo, um
governo protecionista goza da confiança e do auxílio dos industriais
protegidos, sem que se tenha feito um acordo explícito entre todos eles,
podendo haver, no máximo, algum acordo somente entre os diretores e os
chefes. O mesmo acontece nos serviços públicos; aliás, o acordo com os
grandes empreendedores se torna a regra. Há então meios mais conhecidos
e menos importante sob o aspecto social, mas que são, ao contrário,
reputados mais importantes sob o aspecto ético e dos quais agora fazem
parte as corrupções políticas de eleitores, de eleitos, de governantes, de
jornalistas e de similares, aos quais fazem correspondência, nos governos
absolutistas, as corrupções das cortesãs, dos concubinos e das concubinas,
das governantas, dos generais etc., os quais, no entanto, não desapareceram
completamente. Tais meios foram utilizados em todos os tempos, da época
da antiga Atenas e da Roma republicana, chegando até os nossos dias, mas
eles são propriamente a consequência do governo de uma classe que, com
astúcia, se impõe para reger um país; e é, por isso, que as inumeráveis
tentativas feitas para reprimir-lhe o uso foram e permanecem vão; pode-se,
até mesmo, cortar, se quiser, a grama, mas ela volta a crescer, exuberante,
se permanecer incólume a raiz. As nossas democracias, na França, na Itália,
na Inglaterra e nos Estados Unidos, inclinando-se, a todo momento, mais
para um regime de plutocracias demagógicas e talvez, desse modo, estão a
caminho de alguma transformação radical, semelhante a uma daquelas que
já foram observadas no passado.
20. Salvo poucas exceções, das quais a principal e a das honras que um
governo pode conceder, ocorrem despesas para assegurar tanto a formação
de forças armadas quanto a de clientela; não basta apenas querer tais meios,
também é necessário poder utilizá-los, o que está em relação direta com a
produção de riqueza, sendo que tal produção de riqueza não é independente
do modo com o qual se utilizam as forças armadas e as clientelas. O
problema, portanto, é complexo e, como tal, deve ser considerado
sinteticamente. Do ponto de vista analítico, pode-se dizer que, em muitos
casos, as forças armadas custam menos do que as clientelas; mas pode
acontecer também que, em certos casos, estas sejam mais favoráveis à
produção da riqueza e isso deve ser levado em conta neste processo de
síntese.
21. A evolução “democrática” aparece em estrita dependência com o
aumento dos meios para se governar que recorrem à arte e à clientela, se
comparados com os meios que recorrem à força. Já se vê isso no final da
República, em Roma, em que houve o contraste justamente entre esses dois
meios e, com o Império, a força, definitivamente, venceu. Isso se vê melhor
nos dias atuais, em que o regime de muitos países “democráticos” poderia
ser definido como um feudalismo, em grande parte, econômico, onde,
como meio de governo, se usa principalmente a arte das clientelas políticas;
enquanto o feudalismo guerreiro do Medievo usava, principalmente, a força
dos vassalos. Um regime em que o “povo” expresse o seu “querer” – dado
e não concedido que ele tenha um dele – sem clientelas, nem brigas, nem
negociatas, só existe como desejo piedoso dos teóricos, mas não se observa
na realidade, nem no passado, nem no presente, nem nas nossas terras, nem
na dos outros.
22. Estes fenômenos, por muitos já advertidos, costumam ser descritos
como um desvio, uma “degeneração” da “democracia”; mas quando e onde
já se viu o estado perfeito ou, pelo menos, bom, no qual esta se desviou ou
se “degenerou”, ninguém soube dizer. Pode-se apenas observar que,
quando a democracia era partido de oposição, não tinha tantas máculas
quantas ela tem no presente, mas esta é uma característica comum a quase
todos os partidos da oposição, aos quais, por más razões, faltam, se não a
vontade, pelo menos, o poder.
23. Note-se, ademais, que os erros dos vários regimes políticos podem ser
muito diferentes, mas que, no geral, não se pode afirmar que há gêneros
destes regimes que, sob tal aspecto, se diferenciam bastante uns dos outros.
As críticas que são feitas à democracia moderna não se diferenciam muito
das que se dirigiam às democracias antigas, como, por exemplo, à
ateniense; e se há muitos fatos de corrupção naquelas e nestas, não seria
difícil revelar que são iguais nas monarquias absolutas, nas monarquias
moderadas, nos governos oligárquicos e em outros regimes.
24. Se olharmos todos estes fatos um pouco de cima, libertando-nos tanto
quanto possível dos vínculos das paixões sectárias e dos preconceitos
nacionais, partidárias, perfeitas, ideais e outras coisas semelhantes, vamos
ver que, em essência, os homens que governam, qualquer que seja a forma
de regime, têm, em termos médios, uma certa inclinação para usar do seu
poder para manter-se no lugar e abusar dele para conseguir vantagens e
ganhos particulares, que, às vezes, nem mesmo se distinguem muito bem
dos ganhos e vantagens do partido, e que também se confundem quase
sempre com as vantagens e os ganhos da nação. Disso se segue: 1) Que,
sob tal aspecto, não haverá grande diferença entre as várias formas de
regimes. As diferenças são de substância, isto é, nos sentimentos da
população; onde esta é mais (ou menos) honesta, encontra-se também um
governo mais (ou menos) honesto. 2) Que usos e abusos serão tanto mais
amplos quanto mais for a intromissão do governo em questões privadas;
aumentando a matéria a ser explorada, aumenta também o que se pode
extrair dela. Nos Estados Unidos, em que se quer impor a moral com a lei,
veem-se enormes abusos, que não acontecem onde tal imposição não existe
ou acontecem em menores proporções. 3) Que a classe governante se
assegura de apropriar dos produtos de outras pessoas, não só para uso
próprio, mas também para desses produtos tomem parte alguns da classe
governada que a defenderão e lhe assegurarão o poder, seja com as armas,
seja com a astúcia, com aquele mesmo auxílio que o cliente dá ao patrão. 4)
Que, na maioria das vezes, nem os patrões, nem os clientes estão
plenamente conscientes das suas transgressões às regras da moral existente
na sua sociedade, e que, mesmo quando se tornam conscientes delas, são
eles facilmente desculpados, seja em razão de que, no final das contas,
outras pessoas fariam a mesma coisa, seja em razão do cômodo pretexto de
que os fins justificam os meios; e para eles, isso tudo, no fundo, só pode ser
uma excelente maneira de se manterem no poder; aliás, é de total boa fé
que muitos deles os confundem com os outros que vão salvar a pátria.
Também pode haver pessoas que creem defender a honestidade, a moral e o
bem público, enquanto, ao contrário disso tudo, o trabalho delas encobre os
maus feitos de quem visa somente a ganhar dinheiro. 5) Que a máquina
governamental consome, de alguma forma, uma certa quantidade de
riqueza, que está em relação não só com a quantidade total de riqueza
pertencentes a assuntos privados nos quais o governo se envolve, mas com
os mesmos meios de que a classe governante lança mão para se manter no
poder e, portanto, com as proporções de resíduos da classe I e da classe II,
na parte da proporção que governa e naquela que é governada.
25. Voltemo-nos agora à apreciação dos diversos partidos na classe
governante. Podemos, em qualquer um desses, distinguir três categorias, a
saber: (A) Homens que visam resolutamente a fins ideais, que seguem
rigidamente certas regras de condutas que lhe são próprias; (B) Homens
que têm por escopo conquistar seus próprios benefícios e os de sua
clientela. Estes se dividem em duas categorias, a saber: (B-α) Homens que
se contentam com o simples gozo do poder e com as honras dele advindas,
e que deixam à sua clientela os benefícios materiais; (B-β) Homens que
buscam para si e para a sua clientela os benefícios materiais, geralmente em
dinheiro. Os que são simpáticos ao partido dizem que os homens de A de
seu partido são “honestos” e os admiram; os que são hostis a tal partido
dizem que são fanáticos, sectários e os abominam. Os homens de (B-α)
geralmente são considerados honestos por seus correligionários, mas vistos
com indiferença no que diz respeito à honestidade pelos inimigos. Os
homens de (B-β), quando se descobre a sua existência, são chamados de
“desonestos” por todos; mas os seus amigos procuram, de todas as formas,
que tal existência não seja descoberta e, para conseguir esse intento, são
capazes de negar, até mesmo, a luz do sol. Via de regra, os homens de (B-α)
custam ao país muito mais do que os homens de (B-β), visto que, com o seu
verniz de honestidade, tornam possível toda sorte de operações dirigidas a
retirar os bens das outras pessoas, para que a sua clientela política usufrua
deles. Convém acrescentar que, entre os homens de (B-α), muitos se
dissimulam que nunca tomam nada para si, mas que utilizam de todos os
meios para tornam a sua família rica. A proporção das categorias ora
elencadas depende, na maioria das vezes, da proporção dos resíduos da
classe I e da classe II. Nos indivíduos (A) prevalece, em larga medida, os
resíduos da classe II e, por isso, podem se dizer honestos, fanáticos e
sectários, segundo o aspecto sob o qual eles são considerados; nos
indivíduos (B) prevalecem os resíduos da classe I e, por isso, são os mais
aptos a governar, e quando chegam ao poder, os indivíduos (A) são para
eles um lastro, que, de resto, é útil para dar uma certa tinta de honestidade
ao partido, todavia, para tal escopo, servem muito mais os indivíduos da
categoria (B-α); estes, porém, são um mercadoria não muito abundante e
procuradíssima pelos partidos. As proporções dos resíduos da classe I e da
classe II, na clientela, nos homens do partido que não estão no governo e
nos eleitores correspondem, sem que, de resto, sejam idênticas, à da parte
governante, no estado maior. Só um partido onde são abundantes os
resíduos da classe II pode eleger muitos indivíduos da categoria (A); mas
elegem também, sem ter consciência disso, outros da classe (B), posto que
estes são espertos, prudentes e mestres na arte das combinações e
facilmente induzem ao erro os eleitores ingênuos em que há bastante os
resíduos da classe II. Nos nossos ordenamentos políticos, os partidos
políticos devem se dividir em duas grandes classes, a saber: (I) Partidos que
se alternam no governo; quando um está, o outro lhe faz oposição; (II)
Partidos intransigentes, que nunca chegam ao governo. Segue, do quanto já
observamos até agora, que nos partidos (I) haverá um mínimo de (A) e um
máximo de (B) e, vice-versa, para os partidos (II). Isso, em outros termos,
se expressa dizendo que os partidos que não chegam ao governo são,
frequentemente, mais honestos, mas são também mais fanáticos e sectários
do que aqueles que chegam ao governo; é o sentido daquele dito popular
comum francês, segundo o qual a República era linda sob a vigência do
Império. Tal acontecimento depende, essencialmente, dos ordenamentos.
Nos partidos que chegam ao governo, uma primeira escolha é feita nas
eleições. Salvo exceções que não são de grande número, não se torna
deputado a não ser pagando, concedendo e, mais ainda, prometendo favores
governamentais; isso forma uma rede que deixa passar muito poucos
indivíduos da categoria (A). Os que mais se aproximam dos indivíduos da
categoria (A) são os candidatos que são muito ricos para comprar para si o
cargo de deputado, o que para eles (A) é um luxo. É estranho dizer isso,
mas é verdade também que essas pessoas são, depois de (A), as mais
honestas entre os políticos. Eles, neste momento, são poucos, porque os
custos para comprar os eleitores são enormes e quem faz isso com dinheiro
próprio, vai depois querer compensar com os ganhos, e quem não pode e
não quer fazer, é colocado no governo mediante a forma de concessão ou
mediante favores de várias espécies. Nisso tudo, grande é a concorrência e
só sobrevivem os homens em que abundam os instintos de combinação
(resíduos da classe I). Uma segunda e mais rigorosa escolha se faz entre os
deputados que se tornam ministros; os candidatos a deputado têm de
prometer aos seus eleitores, os candidatos a ministro têm de prometer aos
deputados e passar a confiança de que estão lutando pelos bens destes
últimos e da sua clientela política. Os ingênuos creem que, para fazer isso,
basta não ser honesto; enganam-se, pois são necessários raros dotes de
prudência e de habilidade em todo tipo de combinação. Os ministros não
têm cofres dos quais se possa retirar, aos punhados, o dinheiro para
distribuir aos seus fautores; é necessário, então, com uma arte sútil,
encontrar, na parte econômica, combinações de proteção econômica, de
benefício aos bancos e aos trusts, de monopólios, de reformas fiscais etc. e,
nas demais partes, combinações de pressão sobre os tribunais, de
distribuição de títulos honoríficos etc., que beneficiam aqueles que
asseguram o poder. Além disso, é útil procurar também promover um
processo de degradação dos indivíduos da classe (A) dos outros partidos.
Quem tem uma fé oposta aos de (A) dificilmente conseguirá este objetivo,
mas quem não tem fé nenhuma, que tem quase só os resíduos da classe I,
poderá operar muito melhor sobre os de (A) e se valer da mesma fé deles
para cooptá-los ou, pelo menos, tolher a eficácia de sua oposição. Pode-se,
então, estar seguro de que, nos partidos que se aproximam do governo,
existe uma enorme prevalência dos resíduos da classe I. Não pode ser
diferente nos ordenamentos políticos atuais, razão pela qual estes se
inclinam, cada vez mais, para uma plutocracia demagógica. Os diversos
partidos, muitas vezes, se calam mutuamente sobre a desonestidade. Estão
certos ou errados, segundo o aspecto sob o qual os fatos são considerados.
Quase todos os partidos têm os seus (B-β), assim, quem os considera
exclusivamente, pode tachar, de forma justa, o partido de desonestidade;
eles têm também os seus (B-α), e quem os considera pode ou não pode
tachar o partido de desonestidade, dependendo do sentido que se dá a este
termo. Por fim, poucos são os partidos que não têm os seus (A), e quem os
considera exclusivamente, dirá que o partido é honesto. Caso queira, então,
cuidar da proporção de (A) e de (B), encontram-se certos casos em que
prevalecem certamente os de (A), motivo pelo qual o partido poderá, então,
se dizer “honesto”; mas em muitos outros casos, não se sabe dizer
exatamente se, nos diversos partidos que disputam o governo, haja grande
diferença entre as proporções dos de (A) e dos de (B); pode-se dizer,
portanto, que os de (A) são mais escassos. Nas classes inferiores da
população, há ainda, em grande quantidade, os resíduos da classe II, de
forma que os governos que, no fundo, se movem por simples interesses
materiais, devem fazer de conta, ao menos, que esperam por alguns fins
ideais e os políticos devem se encobrir de um véu, para dizer a verdade,
muitas vezes, bastante sutil, de honestidade. Quando um deles é pego com
a boca na botija, o partido adversário faz um enorme estardalhaço,
procurando valer-se do fato como uma arma, um trunfo, para os seus
próprios fins; o partido ao qual pertence o suposto culpado procura, antes
de tudo, defendê-lo e, depois, se isso parecer muito difícil ou impossível, o
exclui do partido, como o navio em meio à tempestade se desfaz de sua
carga. A população acompanha o desenrolar dos fatos como acompanha o
desenrolar de uma peça teatral; e se puder haver uma pitada de sentimento
e de amor, meio mundo se diverte com este espetáculo gratuito. Os
incidentes insignificantes se tornam, de fato, o principal; e o principal, isto
é, o ordenamento que tem, por consequência, tais fatos, é totalmente
negligenciado. Se um ministro se deixar apanhar fazendo pressão em um
magistrado, todos gritam até perderem o fôlego, mas ninguém exige que os
magistrados, que são, inequivocamente, caracterizados por sua
independência, deixem de se imiscuir nos trabalhos dos ministros. Isto
acontece, para derrubar do poder, os rivais, mas estes objetivarão, depois,
quando forem eles, fazer justamente o mesmo; e isto acontece porque o
vulgo não entende senão os fatos concretos e particulares, e não sabe
transcender até as considerações das normas abstratas e gerais. Assim, aos
“escândalos” se sucedem outros, saindo do tempo em que eles se acham;
enquanto um estoura, o outro amadurece e está prestes a estourar, e as
pessoas se comovem a cada caso novo, considerando incomum o que, na
verdade, é perfeitamente comum e consequência dos ordenamentos
desejados ou tolerados por essas mesmas pessoas. Os éticos creem que os
fatos acontecem acidentalmente, na medida em que um homem desonesto
foi colocado no poder, e que esse fato é perfeitamente semelhante ao de um
caixa de banco que rouba o seu patrão. Não é bem assim; não é um caso
fortuito que deu poder a um homem dessa laia, mas a escolha é
consequência dos ordenamentos; e caso queira fazer comparação com o
caixa do banco, deve-se acrescentar que este não foi escolhido como
usualmente se diz, mas que o patrão andou procurando-o entre as pessoas
mais tendentes a levar embora o dinheiro do caixa e aptas a fazer isso por
conta da esperteza e de outras coisas análogas.
26. Se quisermos resolver o problema posto no § [20], devemos, antes de
tudo, levar em conta todas as derivações das quais, até agora, temos visto
alguns exemplos e, em seguida, ter presente a complexidade do fenômeno e
proceder à investigação de suas partes mais significativas. Entre estas,
certamente há partes que já foram consideradas, isto é, os efeitos sobre a
prosperidade econômica e social, os da defesa de agressões que poderiam
vir do exterior, da segurança pública, de uma boa e rápida justiça, de certos
serviços públicos e de muitos outros ofícios governamentais; mas de igual
importância, se não maior, são também os efeitos da circulação das classes
eleitas e do estímulo ou da depressão que, indiretamente, experimenta a
economia nacional em relação aos modos de governo. É necessário ter em
mente que, muitas vezes, os governantes, visando a certos efeitos,
conseguem, indiretamente, outros deles, entre os quais há alguns efeitos
que não são previstos nem desejados. Por exemplo, os governantes que,
para proporcionar ganhos para a sua clientela, instituem a proteção
aduaneira e conseguem o efeito, em que não tinham pensado nem um
pouco, de favorecer a circulação das classes eleitas. Sob o aspecto ético,
uma medida pode ser julgada de forma dissociada dos outros fenômenos
sociais; sob o aspecto da utilidade, não se pode fazer assim; é preciso ver,
no conjunto, como esta medida modifica o equilíbrio. Uma medida
reprovável sob o aspecto ético pode ser louvável sob o aspecto da utilidade
social; e, em sentido contrário, uma medida louvável do ponto de vista
ético pode ser reprovável do ponto de vista da utilidade social. Mas sob tal
aspecto, convém que a parte comandada da população pense, ao contrário,
que há, necessariamente, identidade entre o valor ético de uma medida e a
sua utilidade social. Longo e difícil seria fazer um estudo desta matéria
levando-se em conta, ao menos, os principais detalhes; contentemo-nos
aqui com o florescimento dela, procurando obter algum conceito geral.
Para o objeto desse estudo, vamos levar em consideração certos tipos de
governo que a história nos faz conhecer. I. Governos que usam
principalmente a força material e a dos sentimentos religiosos ou de outros
sentimentos análogos. Por exemplo, os governos das cidades gregas na
época dos “tiranos”, de Esparta e de Roma ao tempo de Augusto e de
Tibério, da República de Veneza nos últimos séculos de sua existência, de
muitos estados europeus do século XVIII. Ali corresponde uma classe
governante em que prevalecem os resíduos da classe II, em comparação
com os da classe I; a circulação das partes eleitas é geralmente lenta. São
governos de baixo custo, mas que, por outro lado, não estimulam a
produção econômica, seja porque, por sua própria índole, refutam a
novidade, seja porque não premiam, mediante a circulação das classes
eleitas, os que mais têm instinto de combinações econômicas. Se, de resto,
tal instinto dura na população, pode-se obter uma discreta prosperidade
econômica (Roma nos tempos do Alto Império), haja vista que os governos
não opuseram a ela obstáculo; mas frequentemente, a longo prazo, há
obstáculo, porque o ideal dos governos, desta feita, é uma nação enrijecida
nas suas instituições (Esparta, Roma aos tempos do Baixo Império, Veneza
à época de sua decadência). Podem elas se enriquecer com as conquistas
(Esparta e Roma), mas, tendo em vista que de tal modo não se produz nova
riqueza, tal enriquecimento é inevitavelmente precário (Esparta e Roma).
Além disso, pelo que já aconteceu no passado, nota-se frequentemente que
estes regimes políticos se transviaram em governos de uma turba armada
(pretorianos e janízaros), apta somente a desperdiçar a riqueza.
27. II. Governos que usam principalmente a arte e a astúcia. (II-a). Se
estas estiverem destinadas principalmente a operar sobre os sentimentos,
teremos governos teocráticos, os quais, neste momento, inexistem por
completo em nossas terras, e dos quais, portanto, podemos deixar de nos
ocupar. Talvez deles poderiam, ao menos em parte, se aproximar os
governos dos antigos reis da Grécia e da Itália, mas são muito pouco
conhecidas as suas histórias para poder afirmar isso. (II-b) Se a arte e a
astúcia são destinadas principalmente aos interesses, o que, de resto, não
quer dizer que os sentimentos foram negligenciados, teremos os governos
muito parecidos com o dos demagogos em Atenas, da aristocracia romana
em inúmeras épocas da república, com o de muitas repúblicas medievais e,
por fim, o tipo mais importante do governo dos “especuladores” dos dias de
hoje.
28. Os governos de todos os gêneros II, também os que operam sobre os
sentimentos, têm uma classe governante em que prevalecem os resíduos da
classe I, em comparação aos da classe II, dado que, para operar
validamente com a arte e com a astúcia tanto sobre os interesses quanto
sobre os sentimentos, deve-se ter em alto grau o instinto de combinação e
não ser contido por muitos escrúpulos. A circulação das classes eleitas
costuma ser lenta no subgênero (II-a), mas, por outro lado, é rápida e, às
vezes, muito rápida no subgênero (II-b); no governo dos nossos
“especuladores” atingem um ponto máximo. Os governos do subgênero (II-
a) são comumente de baixo custo, porém são poucos produtivos; mais do
que qualquer outro, anestesiam as populações e tolhem todos os estímulos
para a produção econômica. Não usando de maneira significativa a força,
não conseguem complementar a produção com o que é obtido pelas
conquistas, na verdade, tornam-se presas fáceis dos seus vizinhos que
sabem usar a força, assim, desaparecem ou em razão das tais conquistas ou
em razão de sua decadência interna. Os governos do subgênero (II-b)
custam caro e, via de regra, muito caros, mas também produzem muito e, às
vezes, muitíssimo, de forma que pode existir um excesso de produção sobre
as tais despesas para assegurar uma grande prosperidade ao país; mas não é
certo, de jeito nenhum, que tal excesso, com o aumento das despesas, não
possa ser reduzido a proporções mais modestas, desaparecer e, quem sabe
talvez, ser alterado para um déficit. Isso depende de condições e
circunstâncias infinitas. Estes regimes podem degenerar em governos de
astutos covardes, que são facilmente abatidos pela violência, venha ela de
dentro ou de fora. Isso foi visto em muitos governos democráticos das
cidades gregas e teve, ao menos, uma participação notável na queda da
República romana e na da República de Veneza.
29. No plano concreto, encontram-se combinações destes vários tipos, em
que, às vezes, prevalece ou um ou outro. Os governos em que, com uma
significante quantidade do tipo (I) se tem uma discreta proporção do tipo
(II-b), podem ter longa duração, ficando protegidos pela força, sem que
lhes falte a prosperidade econômica. A este tipo misto, aproxima-se o Alto
Império Romano. Eles encaram o perigo da degeneração do tipo (I) e,
igualmente, aquele perigo que neles faz reduzir bastante a proporção do
tipo (II-b). Os governos nos quais, com uma pequena quantidade do tipo (I)
se tem uma significativa proporção do tipo (II-b), podem ter longa duração,
porque têm também uma certa força para se defender, enquanto conseguem
uma importante prosperidade econômica. Eles encaram o perigo da
degeneração de (II-b) e, igualmente, aquele perigo que neles faz reduzir
bastante a proporção do tipo (I), que os expõe quase certamente ao perigo
da invasão estrangeira. Este fenômeno contribuiu para a destruição de
Cartago e na conquista da Grécia levada a efeito pelos Romanos.
30. É também oportuno observar que um misto dos tipos (I) e (II-b) pode
ser obtido em um governo que usa, principalmente, a força nas relações
com o exterior e a arte nas relações internas. A tal gênero, aproxima-se o do
governo da aristocracia romana, nos bons tempos da República.

ÍNDICE
Nota introdutória...........................................................................................1
Pareto e o sistema social..............................................................................5
1. A vocação científica de Pareto..................................................................5
2. Da economia à sociologia..........................................................................7
3. As ações lógicas e as ações não-lógicas....................................................9
4. Os estudos de sociologia e a preparação do “Tratado”...........................11
5. As teorias lógico-experimentais e as teorias não lógico-experimentais..12
6. A sociedade come sistema global............................................................14
7. A publicação do “Tratado” e os últimos escritos....................................17
8. Os resíduos e as derivações.....................................................................19
9. O princípio da heterogeneidade social e a teoria das “elites”.................22
10. Os diversos tipos de sistemas sociais....................................................24
11. O equilíbrio social e a utilidade social..................................................27
12. O movimento ondulatório dos fenômenos sociais e a concepção
paretiana da história.....................................................................................30

Nota biográfica..........................................................................................33
Bibliografia.................................................................................................35
Principais obras de Vilfredo Pareto.............................................................35
Escritos sobre Vilfredo Pareto.....................................................................36

Do “Tratado de sociologia geral”.............................................................37


1. Critérios de método.................................................................................37
2. As ações não-lógicas...............................................................................47
3. As duas partes de toda teoria...................................................................52
4. Resíduos e derivações.............................................................................61
5. As elites e a sua circulação......................................................................75
6. O sistema social.......................................................................................84
7. A utilidade social.....................................................................................91
8. O uso da força na sociedade..................................................................102
9. O regime político...................................................................................121

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