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A série se chama “Introdução Relaxada a

Kant” e tem como objetivo apresentar o


pensamento kantiano de forma descontraída
(beirando no tosco), politicamente incorreta
(beirando no ofensivo) e engraçada (a gente
tenta). Enfim, uma introdução a Kant
que eu faria se fosse professor. Não se trata de
uma introdução superficial do pensamento
kantiano, mas de uma introdução
minimamente substancial(porém não exaustiva)
das partes da Crítica da Razão Pura intituladas
“Estética Transcendental” e “Analítica
Transcendental” (eu sei, talvez você não tenha
ideia do que isso signifique. Tudo ficará claro
mais para frente). A minha motivação para essa
série é multifocal. Noto que a maioria das
introduções ao pensamento kantiano (em sites,
blogs, livros de escola e até aulas de filosofia na
academia) são insuficientemente robustas e a
maioria está carregada de erros interpretativos
(não que não existam diferentes interpretações da
filosofia kantiana, mas os erros aos quais me
refiro são crassos) que contribuem para a má
compreensão da filosofia kantiana como
sendo absurdamente idealista ou estupidamente
subjetivista. O que não é o caso. É óbvio que
não será extremamente fácil compreender seu
pensamento (estamos falando de um dos
pensadores mais profundos da história da
filosofia), mas onde eu puder ser o mais claro e
direto o possível, serei.
Uma outra motivação é a de que eu
pretendo divulgar uma nova interpretação da
filosofia kantiana com base (mas não a mesma)
na interpretação sellarsiana (vocês conhecerão
Sellars logo logo) que chamo de novo
kantianismo. E, relacionado a isso, também
pretendo introduzir o pensamento de Wilfrid
Sellars (1912-1989), um dos maiores dos filósofos
analíticos, em uma outra série semelhante, e
entender o pensamento de Kant ajuda bastante a
entender o pensamento de Sellars e
sua famosa crítica ao Mito do Dado. É preciso
enfatizar que esse blog não é apenas voltado
a introduções à filosofia e a filósofos, também
será voltado para assuntos concernentes às
ciências naturais em geral (física quântica e seus
sub-ramos, biologia ~principalmente
evolucionária e molecular~, um foco pesado em
neurociência cognitiva e teoria da mente) e das
ciências sociais e humanas também (psicologia
cognitiva, comportamental, sociologia, economia,
política, relações internacionais, etc.) e áreas
consagradas da filosofia analítica,
(meta)epistemologia, (meta)ontologia,
(meta)ética, filosofia da mente, filosofia da
linguagem, filosofia do direito, filosofia da
ciência, etc.) e, claro, será voltada
ao pragmatarianismo e a outras correntes pós-
libertárias que pretendo introduzir e elucidar.
Será voltado também a tudo que me interessa e
me der na telha. Trarei postagens de fácil
acessibilidade e leitura e postagens avançadas e
técnicas também. Trarei algumas séries
interessantes como a série “encontros filosóficos
inusitados” (Unlikely Philosophical
Encounters) onde eu discorro sobre como seria
o encontro filosófico entre dois ou mais filósofos
que, pelos mais diferentes motivos, nunca
sonharíamos que se encontrariam (como, o que
eu mais me diverti fazendo, o encontro:
“Deleuze meets Wittgenstein” ~Deleuze
encontra Wittgenstein~ e o encontro:”Hayek
meets Sellars” ~Hayek encontra Sellars~) e
séries sobre o pensamento de Friedriech Hayek
(1899-1992) e Ludwig Lachmann (1906-1990), dois
pensadores da Escola Austríaca que me
influenciam profundamente e que são muito
negligenciados no mainstream libertário (pelo
menos, no caso de Hayek, no que diz respeito a
sua epistemologia e teoria da mente que é
crucial para o entendimento de suas concepções
sobre regras implícitas e catalaxia).
Dito isso, vamos ao que interessa, vamos a
Kant:

Immanuel Kant (1724-1804) é, sem dúvida,


um dos filósofos mais influentes da modernidade
e sua influência na Filosofia Contemporânea pode
ser percebida tanto na Filosofia Analítica, em
neo-kantianos como P.F Strawson, Wilfrid
Sellars, Hilary Putnam, Robert Hanna, Michael
Friedman, Patricia Kitcher, etc., como também na
chamada Filosofia Continental, mesmo que
apenas, às vezes, de forma crítica e revisionista,
vide Husserl, Heidegger, Gadamer, Foucault,
Deleuze, Brassier, etc. (Se você não conhece
nenhum desses nomes e se desconhece também a
diferença entre Filosofia Analítica e Continental,
don’t panic! Pretendo falar sobre tais temas e
sobre cada um deles e outros mais neste blog).
Na minha opinião Kant é o maior pensador da
história da filosofia moderna (assim como, de
novo, na minha opinião, Wittgenstein, Sellars e
Heidegger são os maiores da Filosofia do século
XX, Tomás de Aquino é o maior da Filosofia
Medieval e Aristóteles é o maior da Filosofia
Antiga) e eu estou preparado para defender essa
asserção. Só que não nesta postagem. O meu
propósito aqui é o de introduzir o pensamento
kantiano de forma clara e acessível aos
minimamente letrados em filosofia ou até mesmo
aos leigos que querem aprender ou que estão
estudando para alguma prova de filosofia do
Ensino Médio (isso mesmo, eu quero apresentar
o pensamento kantiano de forma inteligível o
suficiente para jovens cursando o Ensino Médio –
aos já conhecedores de filosofia avançada, lidarei
com temas complexos e avançados da filosofia
kantiana em outras postagens, não se
preocupem).
Os escritos de Kant são notoriamente
conhecidos pela sua dificuldade e
complexidade. Isto porque Kant era um pensador
sistemático que pretendeu que sua filosofia, a
qual chamou de Filosofia Transcendental (mais
sobre o termo transcendentala seguir), formasse
um corpo unificado de conhecimento
internamente e logicamente consistente. Além
disso, Kant procurou sempre cunhar novos
termos e utilizar palavras já consagradas na
história da filosofia de forma nova e
condizente com o seu sistema. Portanto, antes de
mais nada, é de suma importância, além de
esclarecer a terminologia kantiana e identificar as
principais distinções conceituais que Kant faz,
entender a natureza do projeto kantiano e
seus objetivos. E é para esta tarefa que iremos nos
voltar agora:
1. Natureza e Objetivos do Projeto Kantiano
1.1 Racionalismo e Empirismo
Kant viveu em uma época onde a metafísica
(o estudo mais geral sobre os assuntos mais
gerais concernentes à realidade, fiquemos com
essa definição provisória) estava acometida por
uma série de conflitos e brigas internas entre as
diferentes escolas de pensamento filosófico.
Nesta mesma época, era comum analisar os
assuntos filosóficos segundo o prisma da
epistemologia. A epistemologia é o estudo sobre a
natureza do conhecimento (suas origens, relações
e natureza geral) e da justificação do
conhecimento (o que justifica o meu saber que p?
– onde p é uma proposição qualquer). E existiam
três principais correntes de epistemologia: a
racionalista, a empirista e a cética. Os
racionalistas continentais, assim chamados por
serem principalmente de países do continente
europeu (em contraposto aos empiristas
britânicos), acreditavam que boa parte do
conhecimento humano era alcançado através da
intelecção pura, isto é, de um processo
puramente racional de análise do conteúdo
sensorial (mais sobre isso lá na frente) e que
possuíamos ideias inatas, como a ideia de Deus
ou a de que existimos. Eles não negavam que
adquiríamos também conhecimento através da
experiência, eles apenas frisavam que tal
conhecimento era confuso,
infinitamentecomplexo e, principalmente,
incerto. Apenas a razão poderia nos dar
conhecimento certosobre a realidade, Deus,
liberdade, ego, dentre outras coisas. Famosos
expoentes do racionalismo europeu foram René
Descartes (1596-1650), Nicolas Malebranche
(1638-1715), Baruch de Espinoza (1632-1677) e
Gottfried Leibniz (1646-1716).

Já o empirismo britânico (digo britânico e


não inglês porque nem todos eles foram ingleses,
temos escoceses e irlandeses também) reforçava a
ideia de que todo conhecimento humano é
oriundo da experiência, isto é, dos dados dos
sentidos. Assim, a mente humana seria como
uma tábula rasa que, sofrendo o impacto dos
estímulos sensoriais externos (também
chamados, por Hume, de impressões), formaria
ideias e, assim, seria capaz de pensar. Os maiores
representantes do empirismo britânico foram
Francis Bacon (1561-1626), Thomas Hobbes (1578-
1679), John Locke (1632-1704) e George Berkeley
(1685-1753). Um desses empiristas britânicos, o
escocês David Hume (1711-1776), é de especial
importância. Não só por ser um dos expoentes da
próxima corrente epistemológica que iremos
analisar (o ceticismo), mas também por ser o
responsável pelo despertar de Kant de seu sono
dogmático. Kant, antes de seu encontro com a
filosofia humeana, era um adepto do
racionalismo alemão de vertente Leibniziana.
Muito influente em sua época, era o pensador
Christian Wolff (1679-1754) que havia
formalizado um sistema racionalista contra o
qual Kant se rebelaria mais tarde (apesar da forte
influência de Wolff sobre o jovem Kant). Não é
interessante, no momento, discorrermos sobre
essa vertente particular do racionalismo. Iremos
ter a oportunidade de entende-la melhor com
base nas críticas que Kant fará à mesma.

1.2 O Ceticismo Empirista de Hume

Mas qual era o cerne da filosofia humeana


que tanto impressionou Kant? Pois bem, Hume
acreditava que uma análise mais detalhada da
experiência humana revelaria que não há nela
qualquer vestígio de conceitos
como substância, ego, causalidade e necessidade.
Ou seja, se você abstrai de um objeto da
experiência todas as suas propriedades primárias
e secundárias ~~propriedades primárias são as
que, supostamente, pertencem ao objeto-em-si,
como a propriedade de extensão no espaço,
forma geométrica, impenetrabilidade, etc. e
propriedades secundárias são as que não
pertencem ao objeto-em-si, mas são fruto ou de
potencialidades já presentes no objeto
de causar certas impressões no sujeito, como
achava Locke, ou que só existem como a nossa
forma particular de perceber tais objetos, como
achava Berkeley e o próprio Hume (de certa
forma), tal como cor, cheiro, sabor, etc.~~ não
resta absolutamente nada que subsista
como substância. Por exemplo, se você retira da
Nutella as propriedades secundárias de ser
marrom, de ser uma delícia e de ter um cheiro
específico (aquele cheiro de Nutella sabe?) e as
propriedades primárias de extensão espacial
(pleonasmo, meh), maleabilidade, grudeza
(inventei agora, a qualidade de ser grudenta), o
que resta? Parece que a Nutella é apenas o
conjunto de suas propriedades primárias e
secundárias, né?
Da mesma forma, se você analisa o fluxo de
sua consciência, você não consegue perceber na
experiência um “eu” ou um “ego” que
está tendo tal experiência. Pare e analise você
mesmo o fluxo da sua experiência. Cadê você, no
fluxo de sua experiência da realidade? É claro que
você vai dizer: “eu tô aqui né, duhhhhh”. Não,
não. Eu me refiro ao cadê “do” (sic, rs)
você no fluxo dessa experiência? Não está, né? E
se você analisa a experiência de alguém atirando
o pau no gato (não façam isso, é feio) e o
“fazendo” gritar e correr, você não percebe nessa
experiência o conceito de causa. Tudo que você
pode dizer é que você teve uma impressão (de
alguém atirando o pau no gato) que foi seguida
por outra impressão (a do gato gritando e
correndo). E, segundo Hume, você forma
a ideia de causa a partir da associação habitual de
sempre, pelo menos até agora, ter visto um gato
gritar e correr toda vez que atiram um pau nele, a
não ser que o gato seja de pelúcia (espero que
essas não sejam impressões muito comuns para
você).
Mas eis a questão: nenhum conhecimento
empírico é necessário (de acordo com Hume),
pois as coisas sempre poderiam ter sido
diferentes do que são agora. É possível imaginar
um mundo onde gatos, após terem paus atirados
em sua direção, correm pra fazer carinho e rosnar
para o seu agressor. É possível também imaginar
um mundo onde o Sol não “se levanta” toda
manhã. Isto porque o conhecimento empírico
lida com o que Hume chama de matérias de
fato e as mesmas são sempre contingentes, ou
seja, sempre podemos imaginar um mundo
(possível, bjs Kripke
Ele contrapõe tais matérias de fato
às relações de ideias que são os juízos da lógica e
da matemática. Por exemplo, que 1+1 = 2, que o
todo é sempre maior que as suas partes ou que
todo cantor ruim é um cantor (mesmo sendo
ruim). Hume, dessa forma, corta as pernas do
racionalismo continental pois este último
afirmava ter
conhecimento certo e necessário sobre
as causas primeiras do universo e sobre
a substância que compunha a realidade e
o ego humano. Além de dizer ter conhecimento
intuitivo sobre Deus, a liberdade e a composição
última das coisas. Assim, Hume resume o seu
ataque ao racionalismo dogmático: “Se tomarmos
em nossas mãos qualquer volume, de teologia ou
metafísica escolástica, por exemplo, deixemo-nos
perguntar: ‘Será que ela contém algum raciocínio
abstrato a respeito de quantidade ou número?’
(Relações de ideias) Não. ‘Contém algum
raciocínio experimental a respeito de matéria de
fato e existência?’ (Matérias de fato) Não,
cometê-la, em seguida, para as chamas, pois ele
pode conter nada além de sofismas e ilusões”.
Hume era, assim, um pensador “anti-
metafísico”.

1.3 O Despertar do Sono Dogmático e a


Reação de Kant Contra o Ceticismo Humeano
Kant, até então um racionalista de viés
wolffiano, após ler Hume, fica estupefato. Kant
percebe que as críticas humeanas, apesar de
conterem falhas fundamentais (falhas que
veremos mais na frente), eram extremamente
pertinentes e apontavam para um erro
sistemático no seio da metafísica racionalista de
seu tempo. Em especial, três coisas sobre a
situação da metafísica e da filosofia em geral de
sua época chamavam a atenção de Kant:
l) A pluralidade de sistemas metafísicos
racionalistas diferentes. Enquanto Descartes dizia
que existiam duas substâncias, a res cogitans
(mente) e a res extensa (matéria), Espinoza dizia
que existia apenas uma (Deus) com dois modos
principais (mente e matéria) e atributos de
modos, já Leibniz dizia que existiam apenas
mônadas (que seriam como “átomos”
indestrutíveis e indivisíveis que continham em si
uma representação de todo o universo e que
compunham todos os corpos). Além desses três
principais expoentes, existiam centenas de
sistemas diferentes e mesclados que eram
defendidos nas universidades da época de Kant.
Ninguém conseguia decidir qual era o mais
correto, a ponto da metafísica, segundo Kant, se
tornar uma “ciência desprestigiada”.

ll) O sucesso da física newtoniana. Kant


enxergava a física newtoniana como um exemplo
perfeito de ciência. Apesar de discordar das ideias
de Newton sobre o espaço e o tempo, Kant
estudou bastante a física newtoniana e se
impressionou com a exatidão e a capacidade de
previsão da mesma. Kant também notou que tal
física possuía, em seu aspecto puro, alguns juízos
sintéticos sobre a realidade que aparentavam,
para ele, ser a priori, isto é, independentes, para a
sua validade, da experiência. (Mais sobre os
conceitos de puro, juízo sintético e a priori lá na
frente). Uma das perguntas de Kant era: será que
a metafísica poderia, por algum acaso, ser posta
em fundações tão certas a ponto de ter a mesma
exatidão e prestígio que a física newtoniana?

lll) A crítica contundente de Hume ao


racionalismo. Kant acreditava que Hume estava
certíssimo em sua crítica ao racionalismo
dogmático, pelo menos na medida em que Hume
deixou explícita a falta de justificativa para o que
os mesmos defendiam. Os racionalistas estavam
realmente “soltando adoidado” afirmações que
não podiam fazer. Os racionalistas estavam
falando pelos cotovelos sobre coisas como Deus,
a alma, a substância última da realidade, as
causas da origem do universo, dentre outras
coisas sobre as quais justificações coerentes não
conseguiam dar. No entanto, Kant também
acreditava que Hume estava equivocado em
rejeitar de uma vez certos conceitos do
racionalismo, como os de necessidade, substância
e causalidade. Em outras palavras, Kant
acreditava que Hume havia jogado o bebê junto
com a água da banheira, ou melhor, que Hume
havia jogado fora a Destiny Child com a Beyoncé
junto.

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