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Introdução à leitura da

Política de Aristóteles

versão ultrapreliminar

Alberto Alonso Muñoz

Centro Brasileiro de Análise e Planejamento – CEBRAP


Nota preliminar

O texto a seguir reúne os dois primeiros capítulos (de um total de sete) de um livro em
elaboração sobre a Política de Aristóteles, financiado pela Fapesp através de uma bolsa de Jovem
Pesquisador em Centros Emergentes, cujo projeto se desenvolve na área de filosofia do Cebrap.
Trata-se fundamentalmente de um trabalho de apresentação, pelo viés da Filosofia Política, do
pensamento político aristotélico. Trabalho de apresentação, sem pretensões de originalidade –
aliás, qualidade difícil quando estamos diante de uma longa tradição de leitura de um texto
clássico que remonta há mais de dois milênios. Meu objetivo foi, essencialmente, indicar uma
trilha que permitisse ao leitor não-especialista iniciar o desbravamento de um dos maiores
tratados políticos da Antigüidade, lembrado por haver sistematizado pela primeira vez as
categorias de nossa linguagem política e cujas teses e argumentos ainda chamam a atenção de
várias correntes da Teoria Política contemporânea, particularmente do que se costuma chamar de
“comunitarismo”.
E trabalho no qual um viés muito claro foi escolhido: o da Filosofia Política. Isso significa a
escolha, em princípio, de não examinar o texto de Aristóteles a partir de uma perspectiva
exclusivamente história (perspectiva tradicional e perfeitamente legítima), comentando suas
análises do sistema institucional do mundo grego, conectando sua obra a eventos que a
precederam ou contextualizando-a no âmbito da estrutura socioeconômica ateniense. Significa
também que a maneira como a assim chamada “Teoria Política” examina esta obra de Aristóteles
ficará também em segundo plano. Interessará menos examinar como Aristóteles foi o primeiro a
criar, ou ao menos a sistematizar, um conjunto de categorias que nos permitem, até hoje,
comentar as configurações políticas ou as transformações de um desejo institucional para outro (a
teoria da revolução e da decadência dos regimes políticos, por exemplo). Ao contrário, fincando as
pilastras no solo da Filosofia Política, o trabalho tem em vista examinar, primeiramente, as
conexões argumentativas entre a Política e outras regiões do pensamento de Aristóteles –
particularmente as teses de sua teoria ética e, mais ao longe, de sua metafísica. A primeira lição a
aprender será, talvez, que não há pensamento político que não esteja carregado de
compromissos (e aqui não estamos falando apenas de compromissos ideológicos, mas
propriamente ontológicos).
O foco metodológico, portanto, é aquele próprio ao historiador da filosofia: reconstrução da
argumentação que conduziu Aristóteles às teses de base que operam em seu pensamento
político. O que não significa desprezo ou desnecessidade de análises históricas ou políticas. E,
vale repetir, trata-se de um texto de apresentação. Não pretende ser um texto estritamente
acadêmico, destinado a um público de especialistas familiarizado com as dificuldades de um
pensamento que nos antecede em dois milênios. Apesar da ambição de voltar-se para um público
mais amplo que aquele dos aristotelisants, por vezes não foi possível prescindir de precisões tão

1
caras ao historiador da filosofia. E isso particularmente no tocante a certos conceitos, expressos
em palavras de uma língua morta há séculos e cuja tradução para qualquer idioma moderno é
sempre cheia de armadilhas. Nesse caso, não hesitei em manter o termo grego, quando
necessário, mas sempre que possível esboçando uma tradução, ainda que sabidamente
inadequada, deixando ao sabor da sensibilidade do leitor perceber a nuance ali presente.
O plano da obra, da qual o leitor verá aqui o andar térreo, é grosso modo o seguinte. Nos
primeiros capítulos, trata-se de mostrar o que poderiam ser as bases metafísicas e éticas que
permitem a Aristóteles a elaboração de um padrão de julgamento valorativo das configurações
institucionais de seu tempo. Aristóteles pode valorar os regimes de governo porque constrói, e
depende, de um modelo do que é, para ele, o pleno florescimento do que poderíamos chamar de
“natureza humana”, cujos traços e pressupostos são descritos nos primeiros capítulos deste
trabalho. Em seguida, o trajeto parte para identificar o uso operatório desse macroconceito na
crítica que Aristóteles elabora dos sistemas utópicos e artificiais de sociedade propostos em seu
tempo (o platônico à frente). É apenas porque formulou um conceito operatório pretensamente
concreto de natureza humana e estabeleceu que apenas o regime que propicia seu integral
desenvolvimento é política e moralmente legítimo que Aristóteles poderá, a seguir e por contraste,
contrapor-se àqueles que não conduzem a esse resultado e, portanto, merecem ser rejeitados.
Por fim, o trabalho examina agora as formas políticas concretas, cuja classificação – a mais
célebre contribuição de Aristóteles para a Teoria Política – só faz sentido à luz de um esforço por
julgar os regimes concretos. Verifica-se que não há um regime único que permite atingir o
desenvolvimento integral da natureza humana, mas vários. A escolha entre eles só pode ocorrer a
partir da introdução de um novo fator: o da maior ou menor estabilidade de uma arquitetura
institucional.
Fica o agradecimento a José Arthur Giannotti por suportar minhas teimosias no debate
constante dos resultados deste trabalho.

2
Introdução

Nota Bobbio que as teorias das formas de governo possuem, quase sempre, dois
objetivos: um descritivo e outro prescritivo. A função descritiva permite classificar os vários tipos
de constituição política, extraindo, a partir de dados retirados da observação histórica, a maneira
como as sociedades organizaram a si mesmas. “No entanto”, diz ele, “não há tipologia que tenha
exclusivamente uma função descritiva”1. Um botânico pode interessar-se apenas pela descrição e
prescindir da escolha entre as diversas espécies descritas. Um escritor político, contudo,
geralmente postula um outro problema: “o de indicar, de acordo com um critério que difere de
autor para autor, quais das formas descritas são boas, quais delas são más; quais as melhores e
as piores; por fim, qual é a melhor de todas, e a pior”2. Exprime, portanto, um juízo de valor e,
particularmente, na medida em que escreve – em que não guarda apenas para si mesmo tal
valoração, mas a torna pública –, faz isso “com a finalidade de modificar o comportamento alheio
no sentido por [ele] desejado”, ou seja, “a fim de suscitar nos outros uma atitude de aprovação ou
desaprovação e, por conseguinte, de orientar sua escolha”3. O cientista político (na acepção mais
ampla possível desta expressão) “crê poder interferir diretamente nas transformações da
sociedade”, diz ele; “o emprego axiológico de qualquer conceito está ligado”, nesse caso,
“estreitamente à idéia de que uma mudança na estrutura da realidade, à qual o conceito se refere,
é não só desejável mas possível”4. E Bobbio conclui de maneira exemplar a descrição da
diferença entre o cientista da natureza e o cientista social:

Em suma, para concluir – extraindo as conseqüências extremas do afastamento entre o


cientista natural e o cientista social e exibindo-o em toda a sua evidência –, ninguém se
espanta quando um pesquisador social (que, de acordo com o ideal científico naturalista,
deveria só “descrever, explicar” e eventualmente “rever”) nos oferece um projeto de
reforma da sociedade; mas todos veriam com compreensível desconfiança o físico que
apresentasse um projeto de reforma da natureza (Bobbio 2000: 34).

Tais afirmações de Bobbio são sem dúvida corretas para a maioria dos casos, mas é
preciso matizá-la ao empregá-la para examinar a filosofia política de Aristóteles. Pois a Política
não é, apesar do nome, apenas uma obra de teoria política. Não consiste apenas na formulação
de uma teoria sobre as constituições – uma teoria do Estado, como diríamos hoje –, em que, após
a elaboração de tipos descritivos da realidade política, Aristóteles julgaria qual o melhor ou
elaboraria um modelo ideal. Não que Aristóteles deixe de realizar essa tarefa; ao contrário, boa
parte da Política consiste justamente em formular modelos políticos e em valorá-los. Mas a
Política não é apenas uma teoria política nesse sentido – este é, talvez, o ponto mais

1
Bobbio 2000: 33
2
Bobbio 2000: 33
3
Bobbio 2000: 34
4
Bobbio 2000: 34

3
negligenciado dessa obra. Boa parte dela (e, a meu ver, a crucial) preocupa-se não apenas em
descrever as formas de governo ou a estrutura dos Estados conhecidos, e em posicionar-se, mas
também em responder a uma outra questão, muito mais fundamental para a teoria política, e que
a condiciona desde as raízes: por que, afinal, os homens vivem em sociedade? Noutras palavras,
a Política, longe de ser apenas uma obra de teoria política, é também – e antes disto – uma teoria
da sociabilidade.

Neste ponto, contudo, a fronteira entre o trabalho do biólogo, do metafísico e o do cientista


político torna-se imprecisa. Sabemos que algumas versões do contratualismo, a partir do século
XVII, defenderam que o “estado natural” do ser humano seria (real ou ficticiamente, pouco
importa) a-social. O homem, assim, não seria sociável naturalmente, mas artificialmente. A
sociedade como agrupamento de indivíduos mantendo relações recíprocas surgiria quando o
indivíduo solitário e desprotegido tentasse, no grupo, satisfazer de maneira mais eficaz suas
necessidades, formulando assim o Estado. Partindo, pois, do pressuposto de que naturalmente o
homem não é social – seja isto um postulado da teoria, como em Hobbes, seja algo que
admitamos ter ocorrido nos primórdios dos tempos –, seria possível formular uma explicação para
o problema de porque os homens vivem em sociedade e qual a natureza do vínculo que os
mantém unidos. Tratar-se-ia, portanto, de um contrato tácito, feito por cada um com todos os
demais, em que cada indivíduo voluntariamente (ainda que tacitamente) se obrigaria a obedecer
certas regras e receberia da sociedade, em troca, certos direitos, ou melhor, certas prerrogativas.
O vínculo, portanto, não seria natural, mas artificial; não seria a realização, no nível coletivo, de
certo conjunto de tendências já naturais do homem. A sociedade é, isto sim, um artefato, um
produto humano. E não é nem um pouco surpreendente que considerassem que explicar a
sociabilidade e explicar a necessidade do Estado fossem tarefas intimamente vinculadas, se é que
não são uma única e mesma tarefa.

Este conjunto de premissas está inteiramente ausente na Política de Aristóteles. A


sociedade, para Aristóteles, existe. É, sem dúvida, um fato a ser explicado e desempenha uma
função: oferecer aos indivíduos, em grupo, aquilo que estes não poderiam obter sozinhos. Mas o
paralelo entre o contratualismo moderno e Aristóteles cessa nesse ponto. Pois a sociedade, dirá
Aristóteles desde o início da Política, não é um produto artificial, um artefato. Produtos artificiais
são as instituições, não a própria sociedade – objeção que Aristóteles poderia perfeitamente
lançar a Hobbes ou Rousseau: de que confundiram a construção de um regime político com a
origem natural da própria comunidade. Os indivíduos vivem em agrupamentos humanos (são
políticos, isto é, vivem em coletividades, as poleis), mas isso porque os homens são antes de tudo
uma espécie de animais cuja essência é gregária. Esse é o sentido correto da célebre definição
do homem como um animal que vive em coletividades, animal social5 – zôon politikon, expressão

5
Outra possibilidade seria “gregário”, mas, como veremos, no tratado Historia animalium (“Investigação
sobre os animais”), Aristóteles distinguirá o animal social do animal gregário, este sendo o gênero de que
“social” será a espécie.

4
que aparece diversas vezes na Política. A sociedade não é um artefato humano, mas um produto
natural.

Mais adiante teremos oportunidade de examinar com maior detalhe essa expressão de
Aristóteles: “animal social”. Desde já, contudo, tenhamos em mente que a Política não é apenas
uma obra de teoria política. É também, e antes de tudo, um exame de como e porquê o homem é
um animal que vive em comunidades, por oposição a outros animais que vivem solitários, outros
que vivem em bandos, mas não têm um objetivo comum, e outros animais que, como o homem,
também formam naturalmente sociedades tendo em vista determinada finalidade, mas sem dela
serem conscientes. Ora, se é assim, é preciso acautelar-se e não opor tão fortemente o trabalho
do cientista natural e aquele do cientista político. Em Aristóteles, tanto a explicação última da
razão porque os homens constituem diferentes espécies de coletividades (boa parte do trabalho
“empírico” da Política, em que nosso autor se empenha por examinar os diversos tipos de Estado
existentes em sua época), quanto a crítica aos diversos projetos e a formulação de um modelo
ideal de Estado terão sua base nesse exame preliminar da natureza gregária do homem. Mas, por
mais paradoxal que possa parecer-nos, acostumados que estamos tanto ao modelo contratualista
quanto às diversas críticas que sofreu a partir do século XIX, a teoria política de Aristóteles, tanto
quanto sua ética (passo preliminar à política), apóiam-se em última instância numa teoria da
natureza humana elaborada a partir de elementos biológicos e psicológicos que são alinhavados a
partir de uma matriz conceitual metafísica. A indiferença do biólogo diante das diversas espécies
que estuda deverá cessar, contudo, tão logo encontre a espécie peculiar a que pertencemos: a
humana, capaz de organizar-se em formas mais ou menos adequadas à perfeita atualização de
sua natureza. Em contrapartida, o cientista político, chamado a emitir juízos de valor sobre as
diversas conformações sociopolítica, ao mesmo tempo terá de fundamentá-los, detendo sua
valoração naquilo que é o fundamento último da sociabilidade.

Noutras palavras, estamos diante de uma teoria da natureza humana muito peculiar,
porque empresta elementos da biologia, da fisiologia e da psicologia humana para formular-lhe
uma base prescritiva. Esse quadro biológico geral de que Aristóteles se serve para formular sua
antropologia filosófica (descritiva e, em seguida, prescritiva) é, convém frisar insistentemente,
inteiramente diverso daquela da biologia de nossos dias. A biologia de Aristóteles apóia-se
inteiramente na noção de essência (ou ousia, termo muitas vezes traduzido por substância), que
assume a forma ora de “natureza” de um certo tipo de ente, ora de sua “forma”, ora de seu “ser”
(aquilo que ele é e, se o processo de sua formação não for embotado, aquilo que ele deverá ser),
conforme a função conceitual que estiver exercendo. Ora, esse conceito desempenha diversas
funções no quadro conceitual de Aristóteles6, origina-se em problemáticas diversas (lógica,
metafísica, física do movimento e da geração, epistemologia, biologia) e termina por tornar-se o

6
Cf. Angioni 2000.

5
que podemos denominar um conceito operatório de sua filosofia: uma noção que ao mesmo
tempo permite comentar, analisar e alinhavar os diversos resultados de pesquisa.

Numa primeira acepção, a essência de um indivíduo corresponde ao conjunto de


propriedades que o indivíduo possui que o fazem pertencer a determinada classe, sem distingui-lo
de outros semelhantes, e permitindo com que permaneça o mesmo ao longo do tempo e da
passagem de propriedades transitórias que não o tornam diverso do que é. Sócrates e Teeteto
têm em comum a mesma essência, pois ambos são homens e, portanto, possuem uma faculdade
que, em resumo, é a racionalidade, traço que os distingue dos animais não-humanos restantes. O
mesmo não ocorre entre um cavalo e uma abelha, ou um homem e um leão. Aristóteles passará,
ao final do livro Z e no livro H da Metafísica, a identificar esse conceito, lógico e metafísico em
primeiro lugar, com a forma, isto é, a estrutura fundamental do organismo específica de sua
classe. A essência de Sócrates ou Teeteto é aquilo que somente esses indivíduos possuem de
peculiar face a outros animais: certas funções de determinadas faculdades superiores de suas
almas que estão presentes apenas na espécie humana. O intelecto, notadamente.

Embora todos compartilhem de uma estrutura comum aos animais, o que quer dizer que
são seres vivos que sentem e se movem, tal estrutura geral é de tal forma genérica que não
permite identificar dois indivíduos como pertencendo à mesma espécie, ou como dizendo aquilo
que eles são. Poderíamos ir até mais longe e chegar a um gênero, o de ser vivo, que englobaria
plantas e animais, bastando permanecer com as funções de reprodução e alimentação. O tratado
Da alma, de Aristóteles, apesar do título que recebeu e que na língua portuguesa encobre
inteiramente seu conteúdo, é uma tentativa de examinar a essência humana deste ponto de vista.
Nela vemos uma obra em diversas etapas, caminhando a análise do mais geral e comum a todos
os seres vivos (e que constitui, em última análise, a vida, essência do ser vivo, e que se identifica
com a forma de um corpo que tem a vida em potência, isto é, a alma), passando pelo que
distingue os animais das plantas (a presença de uma faculdade fundamental: a sensibilidade)
para, finalmente, especificar a especificidade da essência humana, dotada de um conjunto de
faculdades ausentes de qualquer outro ser vivo.

Num segundo sentido, que permitirá a passagem do descritivo ao normativo, a essência é


aquilo para que deverá tender certo ente em formação se nada o impedir de atingir esse ponto de
chegada, e se todas as condições suficientes estiverem presentes. É o estado final, pleno,
acabado e terminado, se tudo o permitir e nada o impedir. É de esperar-se que o cavalo atinja
determinada altura ao final de seu crescimento, se nada se opuser a que se desenvolva nessa
direção e se as condições para tanto estiverem presentes. Aquilo que caracteriza Sócrates ou
Teeteto como tais – seres humanos – é também aquilo para onde tende, ao desenvolver-se, a
estrutura do organismo de uma criança, enquanto especificamente humano. A essência, nesse
caso, não deve ser confundida com a totalidade das capacidades humanas, mas apenas com a
totalidade das capacidades propriamente humanas (que são peculiares apenas ao homem). Um

6
recém-nascido é potencialmente um adulto pleno e perfeito. Nada garante que virá a sê-lo – para
tanto, além de uma boa constituição natural e das condições higiênicas e alimentares necessárias,
uma formação psicológica e intelectual será fundamental – mas, presentes as condições, pode-se
esperar que o indivíduo adulto realize plenamente a promessa que era quando ainda “em
formação”.

Finalmente, essência pode ser entendida no sentido daquilo que coordena e guia o
desenvolvimento e a manutenção do indivíduo enquanto pertencente a certa espécie. Aquilo que
faz com que perdure no seu ser, por assim dizer – que, constituindo seu ser, faz com que continue
sendo o que é. Ela, por assim dizer, administra o desenvolvimento do organismo rumo a seu
estado final, plena e perfeitamente desenvolvido. É aquilo que, nele presente, coordena as fases
por que irá passar até atingir seu ponto de chegada. Aristóteles nunca é inteiramente claro a
respeito do que seria esta forma coordenadora que gere teleologicamente o desenvolvimento do
indivíduo. O que Aristóteles tem em mente é a estrutura específica de uma certa disposição inicial
dos elementos de que o mundo material é composto (fogo, terra, ar e água), que o mantém num
certo equilíbrio estrutural peculiar e forma um sistema teleologicamente orientado, fazendo com
que preserve e perdure no seu ser.

A essência, no segundo sentido da palavra, é aquilo que irá nos interessar mais
propriamente ao longo deste trabalho. Seu conceito descreve não apenas aquilo para que tende
naturalmente o homem, caso seu desenvolvimento não seja impedido ou bloqueado por qualquer
fator crítico, presente ou ausente, como também aquele estado que devemos esforçar-nos por
alcançar. Há um salto deliberado do “ser” ao “dever-ser”, que muitos não cessarão,
posteriormente, de rejeitar, sobretudo a partir de Hume e Kant. O modelo aristotélico, entretanto, é
bastante claro. Em nosso percurso, examinaremos primeiro o que é um ser humano,
perfeitamente desenvolvido, que atualizou todas as potencialidades propriamente humanas que
poderiam nele desabrochar. Ora, dirá Aristóteles, justamente este modelo de ser humano pleno é
o que cada um deverá perseguir individualmente, o que a educação deverá propiciar e,
fundamentalmente, a função para que existe a sociedade. A constituição de uma sociedade será
julgada, então, conforme sua capacidade de produzir uma “boa vida” (no sentido altamente moral
da expressão), o que nada mais quer dizer do que ser capaz de produzir “homens plenos”. O
primeiro livro da Política é, entre outras coisas, um esforço por mostrar que a natureza humana só
se realiza plenamente na sociedade, ou melhor, mais ainda, em determinados tipos de
sociedades, sendo justamente essa a razão porque os seres humanos são por natureza sociais.
Pois sozinhos, se isso for concebível, serão seres que não completaram seu desenvolvimento, ou
seres tão superiores que já não são humanos.

Vê-se, é claro, como a política aristotélica depende de uma teoria biológica do homem, ou
melhor, de uma antropologia, sendo e não sendo, ao mesmo tempo, uma “biologia do social”. É
uma biologia do social, mas no sentido aristotélico preciso: uma teoria que explica porque o

7
homem vive em sociedade, apoiada num conceito que a biologia de nossos dias se esforçou
intensamente em abandonar: o de essência ou natureza de um indivíduo. O conceito de uma
forma essencial que determina os indivíduos, lhes guia o desenvolvimento e se estabelece como o
fim para o qual tendem cada vez mais desaparece de uma biologia onde a própria palavra
“indivíduo” parece assumir um significado bem diverso. Para alguns, o indivíduo, do ponto de vista
da biologia atual, é apenas uma unidade metodológica, mero ponto de passagem das informações
genéticas de um instante a outro.7 Seja ou não representativo das revoluções da biologia de
nossos dias esse conceito de indivíduo, o certo é que a noção aristotélica de essência é um
conceito com o qual essa ciência, desde o século XVIII, se sentiu bem pouco à vontade. Ao
dizermos que a filosofia política de Aristóteles é, na realidade, uma biologia política, é preciso
acrescentar que ela não o é no nosso sentido de biologia.8 A “biologia política” de Aristóteles é a
reunião de uma teoria a respeito do homem que lhe identifica a essência, necessitando, para
tanto, de elementos da biologia comentados a partir desse conceito operatório, e que revelará,
agora no plano do dever ser, o que deverá ser a melhor forma de sociedade para se viver, onde o
homem possa tornar-se aquilo que é: tornar-se plenamente humano.

Podemos, então, reduzir as considerações acima a uma única expressão: a filosofia


política de Aristóteles pressupõe uma teoria da natureza humana. O que significa, portanto, que o
homem possua uma natureza única. Isso não é inteiramente verdade, pois por vezes, como
veremos, o escravo é descrito por Aristóteles como possuidor de uma natureza humana
incompleta ou diversa daquela de seu senhor, daí porque haja, para ele, seres (“humanos”)
naturalmente destinados a obedecer, e outros destinados a comandar. Mas não é isso que nos
interessa no momento. O que quero salientar é que tal noção conduz a uma concepção das
espécies como imutáveis (o que sabemos que não ser verdade, diante da teoria da evolução) bem
como a uma separação nítida e permanente entre elas (o que, novamente, também não é
verdade, diante dos resultados da genética molecular), a um conceito unívoco do que seja a
natureza humana (o que mais uma vez não é verdade, diante da diversidade do patrimônio
genético humano) e, finalmente – eis a crítica que a ética de Aristóteles mais sofreu – a uma
concepção do que seja o homem pleno que correspondia àquilo que a cidade ateniense concebia
como seu padrão de cidadão, e que dificilmente seria aproveitável no mundo moderno.9

Além disso, e ainda na linha desta última objeção, houve quem afirmasse que só existe
natureza humana historicamente determinada. Que seria uma ilusão considerar que o homem do
modo de produção escravista e aquele do modo de produção capitalista, ou da sociedade Nuer e
do mundo ocidental moderno teriam a mesma natureza. Independentemente do que valham tais

7
Hull 1975: 71-98.
8
Nem, dispensado dizer, menos ainda uma bioantropologia, reunião da ecologia humana, da antropologia
biológica e de outras ciências que ganharam fôlego com o aparecimento da antropologia como ciência
autônoma no final do século XIX.
9
Veja-se, a esse respeito, MacIntyre 1991: 20-21, que propõe ser possível reconstruir um modelo da
racionalidade prática aristotélica independente do conjunto de valores que assumiu na época de sua
formulação.

8
objeções – que exigem que se admita muito mais do que seu valor de face poderia sugerir à
primeira vista –, o certo é que nos alertam para uma apropriação apressada e ingênua da teoria
ética e política de Aristóteles. Ao contrário do que se possa crer, não é trivial acreditar que, para
além da maneira como o homem aparece nas sociedades e na história, exista um invariante que
define um padrão, que determine o que o homem é, que devamos procurar realizar e que nos
permita julgar as ações, suas conseqüências e as instituições políticas, tomando-o como ponto
fixo.

* * *

O trabalho a seguir focaliza três perspectivas diferentes, porém complementares, com que
se pode ler a filosofia política de Aristóteles. Não é, nem pretende ser, uma análise detalhada da
Política, mas apenas, como o título deixa claro, uma introdução. A Política é um texto meandroso
que permite as mais diversas leituras. O leitor terá, aqui, o mapa de uma senda que me parece
possível para iniciar o desbravamento dessa obra, à primeira vista maçante. Mas outras vias de
acesso são igualmente viáveis e a conclusão deste trabalho indicará, tanto quanto possível, vários
trabalhos a que o leitor poderá reportar-se para ingressar na Política por outras entradas.

A primeira parte é o que se costuma denominar uma reconstrução dos fundamentos. Não é
outra coisa senão mostrar a coerência entre outras teses filosóficas de Aristóteles e aquelas da
sua teoria política, e tentar descobrir quais são seus pressupostos e sua concatenação
argumentativa. É o trabalho típico do historiador da filosofia, interessado na coerência do
pensamento de um autor e nas cadeias discursivas que unem as diversas partes de sua obra.
Para tanto, visitaremos alguns textos de Aristóteles que examinam a natureza gregária do homem,
outros que descrevem a essência do homem e sua especificidade perante outros animais, e
outros, finalmente, que erigem o ser humano plenamente desenvolvido como padrão ético.
Elaboraremos, assim, os contornos gerais da antropologia filosófica de Aristóteles, com seus
elementos biológicos, fisiológicos e psicológicos, e que serve de base para sua teoria política, que
considero ser a porta de entrada propriamente filosófica para a Política.

A segunda parte descreve outros modelos políticos propostos na época e que Aristóteles,
armado do esquema anterior, procurou combater. Um alvo fundamental aqui é a doutrina política
da República de Platão, e sua reformulação nas Leis. Ambas são objeto da crítica de Aristóteles
que, como veremos, se ancora num modelo do homem e do Estado cujas premissas acabamos
de examinar. Aristóteles pode agora opor-se a Platão, e a outros que formularam projetos
políticos, e elaborar seu próprio modelo a partir dos pressupostos por ele avançados.

Na parte final, veremos que este esquema, contudo, não é tão simples como parece: não
estamos diante de uma “dedução a priori do Estado a partir da natureza humana”. Pois uma
antropologia filosófica pode ajudar-nos a examinar instituições concretas, detectar suas falhas e
propor outras novas, mas apenas enquanto nos oferece o quadro mais geral em que é possível
realizá-la. Diante de sua generalidade, é possível conceber diferentes regimes concretos que

9
satisfariam o modelo ou se aproximariam dele. Por outro lado, é preciso descobrir as causas da
degeneração das instituições. Como tudo o que existe no mundo sublunar e, sobretudo, é criação
humana, elas sujeitam-se ao desgaste, à depreciação, à obsolescência e ao perecimento,
exigindo um permanente trabalho de manutenção. Daí porque iremos deixar o terreno da
antropologia filosófica, de um lado, e da crítica aos projetos de sociedade, de outro, para vermos
Aristóteles deslocar-se para um exame das instituições concretas existentes, da corrupção por
que tendem a passar e daquelas que, por construção ideal ou por inspiração concreta, devem ser
consideradas as melhores.

Ao longo deste trabalho peço que o leitor tenha em mente, no exame da filosofia política de
Aristóteles, um ponto norteador que Bobbio exprimiu com a clareza que lhe é peculiar, e que deve
acompanhar-nos por nosso percurso. Dizia ele que um texto de filosofia política é, no mais das
vezes, elaborado “a fim de suscitar nos outros uma atitude de aprovação ou desaprovação e, por
conseguinte, de orientar sua escolha”. Não nos esqueçamos de que a Política foi um texto político,
antes de tudo, e como tal deve ser lido.

10
I

O homem-animal

Homem: animal social

Na Política, Aristóteles por várias vezes refere-se ao homem como “animal social” (ou
“político”, numa tradução que é literal apenas na superfície). Por exemplo, o livro I da Política
apresenta um trecho em que o contexto é o exame das etapas que conduzem à formação de
comunidades humanas, partindo da unidade de produção familiar como associação primária para
as necessidades da vida e chegando, finalmente, a uma cidade-estado. Nessa passagem, uma
das conclusões a que chega é a seguinte:

É evidente que a cidade-estado é uma das coisas da natureza e que o homem é, por
natureza, um animal social (zôon politikon). Além disso, aquele que é, por natureza, a-
social, e isso não por uma casualidade, ou é ruim, ou é superior ao homem (Política, I, 1,
1253a2-5).10

Pouco mais adiante, numa passagem a que retornaremos, Aristóteles dirá, numa das diversas
vezes em que afirmará esse princípio, que “a natureza nada faz em vão”. Sendo assim, o homem,
único dentre os animais que possui a linguagem, é capaz de descobrir o que lhe é vantajoso e o
que lhe é prejudicial e, a partir daí, o justo e o injusto, o bem e o mal. Dado que, portanto, o
homem é o único animal consciente da função desempenhada pela vida social, o homem é
naturalmente social, como as abelhas ou outros animais sociais, mas mais social do que eles
(Política, I, 1, 1253a10-11). Finalmente, no livro III, pouco antes de afirmar que a finalidade última
da existência da sociedade é permitir que cada cidadão viva a “boa vida” (to zên kalos), Aristóteles
retomava os resultados do livro I e dizia novamente que “por natureza o homem é um animal
social” (Política, III, 4, 1278b19).

Que o homem é um animal social, não resta dúvida. Que ele seja por natureza um animal
social é um fato já não tão óbvio. Antes de examinarmos com detalhe a função que a vida em
sociedade desempenha, segundo a Política, será conveniente examinarmos alguns elementos da
antropologia aristotélica. Pois se é verdade que apenas em sociedade o homem pode completar
seu desenvolvimento plenamente, é preciso saber de que essência humana estamos falando. Não
é apenas na Política que Aristóteles se refere ao homem como social: além, como já se poderia
esperar, dos trabalhos éticos (Ética a Nicômaco e Ética a Eudemo), que examinaremos no

10
Saunders (1995: 69), mencionando a passagem da Ética a Nicômaco VII, 2, 1169b18-19, pergunta-se
como, se o homem nasce para viver em sociedade, sendo portanto naturalmente politikon, seria possível
conceber um indivíduo “por natureza sem estado”. Na realidade, se entendo bem o que Aristóteles quer
dizer, trata-se antes de um indivíduo cuja natureza é contrária à vida em sociedade, tal como o psicopata
de que o mesmo livro da Ética a Nicômaco irá tratar.

11
próximo capítulo, o homem é descrito como social num trabalho tipicamente biológico de
Aristóteles – a “Investigação sobre os animais” (Historia animalium, título latino pelo qual é mais
conhecido e de que me servirei a partir de agora). Por outro lado, o trabalho que melhor descreve
a especificidade biológica do homem perante os outros animais é conhecido como “Tratado sobre
a alma” (De anima, a partir de agora). Essa obra procede numa escalada, investigando primeiro o
que é a vida e as características daquilo que, presente num organismo, o torna vivo (a “alma”, ou
psuche, mas num sentido muito preciso), as propriedades específicas dos animais
(fundamentalmente, a presença da sensação e, assim, do desejo e da mobilidade) e, finalmente,
aquilo que torna o homem um animal especial diante dos demais. Para entendermos porque o
homem é um animal social vale a pena começarmos por compreender antes que tipo de animal
ele é. Os traços gerais de sua essência, cuja face propriamente moral será revelada nos trabalhos
éticos, emergirá ao final de nosso percurso.

Cabe alertar o leitor que a seguir estaremos apenas diante de um esboço de alguns traços
gerais da ética de Aristóteles. Muito do que se verá a seguir está longe de ser pacífico entre os
comentadores (se é que há algo que o seja). Ainda assim, o esforço é necessário para chegarmos
às portas da Política, sem o que esse trabalho perde, em diversos momentos, sua clareza. Seja
como for, que o leitor fique desde já advertido: o caminho a seguir constitui, por diversas vezes,
uma solução possível para diversos problemas de interpretação da ética de Aristóteles. Outras
são possíveis. Mencioná-las, ainda que às principais, e discuti-las está longe do alcance deste
trabalho.

Animais gregários

O capítulo primeiro do primeiro livro da Historia animalium é uma descrição das partes dos
animais, suas espécies, gêneros, e as diferenças entre eles quanto à forma, ao caráter e ao modo
de viverem. Quanto a este último critério, os animais podem ser classificados em aqueles que, ao
chegarem à vida adulta, vivem sozinhos, aqueles que vivem em grupos e aqueles que
compartilham, de alguma forma, das duas características (Historia animalium, I, 1, 487b32-
488a14). O pombo, a grou e o cisne são exemplos de pássaros gregários e, entre os peixes, o
atum, o bonito e um peixe chamado pelamus, além, particularmente, daqueles que passam por
uma fase migratória. O urso, o lobo e o leão são exemplos, para Aristóteles, de animais que vivem
independentes, que não são gregários (Historia animalium, VI, 18, 571b29-31), pois viveriam
sozinhos. O homem, diz Aristóteles, pode ser qualquer uma das duas coisas.

O gênero “gregário” divide-se em duas espécies: os animais sociais (e o termo aqui, note-
se, é politikon) e os demais. Animais sociais, como a abelha, a formiga, a vespa e a grou, e
evidentemente o homem, caracterizam-se por unirem-se tendo em vista um fim comum (Historia
animalium, I, 1, 488a7-8) e Aristóteles insiste que nem todos os animais gregários são assim. Há,
portanto, animais que vivem em bandos mas cuja vida comum não tem a função de alcançar

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determinado objetivo coletivamente, e outros cuja vida em grupo visa determinado fim. Além
disso, alguns animais sociais submetem-se a uma liderança, enquanto que outros, não: a grou e
as abelhas possuem um chefe ou uma abelha-rainha, enquanto que as formigas, para ele, não
possuem nenhum líder.

O que chama a atenção nessa passagem da Historia animalium é o fato de que, em


princípio, não há diferença entre abelhas, vespas ou formigas, e o homem. O que os caracteriza
como “sociais” neste primeiro instante é o fato de perseguirem um objetivo comum. Viver em
grupo não implica necessariamente procurar alcançar coletivamente algo que individualmente não
pode ser obtido. Desse ponto de vista, pode-se dizer que os animais gregários que não são
sociais são, na verdade, gregários apenas, para utilizar um conceito caro a Aristóteles, por
acidente. Embora costumem ser encontrados em grupos, até mesmo migrem juntos, não
cooperam entre si tendo em vista um fim comum. A natureza que, como repetirá Aristóteles
inúmeras vezes, nada faz em vão, pode ter escolhido agrupar indivíduos porque suas
necessidades de proteção, alimento ou reprodução seriam assim facilitadas. Isso não significa
necessariamente que cooperem entre si. Podem viver, cada um, individualmente – mas em grupo
– sem que suas ações persigam um fim coletivo. Coisa inteiramente diversa ocorre, por exemplo,
entre as abelhas, animais sociais por excelência para Aristóteles. Há uma divisão social do
trabalho entre elas: algumas produzem cera, outras, mel, outras ainda, geléia real, outras moldam
os favos, algumas trazem água e misturam-na ao mel, e assim por diante (Historia animalium, IX,
40). Cada uma se especializa numa função cujo produto coletivo é diverso daquilo que resulta de
seu trabalho individual. É, portanto, a colaboração tendo em vista um fim benéfico para todos que
caracteriza os animais que vivem em sociedades, por oposição àqueles que, mesmo vivendo em
grupos, buscam um resultado só para si.

Aristóteles emprega uma palavra, na Historia animalium, para descrever essa colaboração
de todos os indivíduos tendo em vista determinado fim: o adjetivo que qualifica essa obra coletiva
é a palavra koinon, “comum”, “coletivo”, “geral”, “partilhado por todos”. Desse adjetivo forma-se
uma palavra fundamental presente na Política: koinônia.

Vemos que toda cidade-estado é um tipo de associação (koinônia) e que toda associação
(koinônia) se constitui tendo como finalidade um determinado bem (pois todo mundo faz
algo porque lhe parece ser bom). É evidente, portanto, que todas as associações visam a
um bem, e principalmente a associação a mais soberana de todas e que contém todas as
demais é aquela que visa o mais soberano de todos os bens. Essa é a que se costuma
denominar de cidade-estado (polis) e associação política (politikê koinônia) (Política, I, 1,
1252a1-8).

Koinônia, neste trecho, é uma das palavras mais traiçoeiras para se traduzir. “Comunidade”, como
preferem Reeve (Reeve 1998: 1) e Jowett (Barnes 1991: 1986) e vários tradutores em língua
portuguesa, manteria o sentido do adjetivo koinon, de onde deriva, mas sob o preço alto de

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perdermos o amplo uso que a palavra possui em grego e que não se faz presente nas línguas
modernas: os sócios de um empreendimento, que cooperam entre si para alcançar determinado
objetivo comum, formam uma koinônia, mas não soa correto dizer (a não ser metaforicamente)
que são uma “comunidade”. “Sociedade” seria uma possibilidade, salvo pelo fato de que poderia
evocar as teorias contratualistas modernas e também porque teríamos problemas ao entender o
que seria uma politikê koinônia (“sociedade social”?). Rackham, na sua tradução, preferiu
“parceria” (partnership), mas cuidou de acrescentar uma nota lembrando que “a palavra grega não
tinha adquirido a conotação especialmente política que tem a palavra inglesa ‘community’”
(Rackham 1990: 2). Finalmente (e só para citar um último caso), Saunders, na sua cuidadosa
tradução comentada dos livros I e II da Política, prefere “associação” (Saunders 1995: 1), que foi a
escolha que, hesitando, segui acima, embora tal termo me pareça esconder o fato de que também
os animais que vivem em bandos formam uma koinônia, sem que, naturalmente, possamos falar
numa “associação de animais” (exceto, quem sabe, num sentido seguramente bem diferente).

Na verdade, pouco importa a tradução, desde que permaneçamos cientes de que estamos
diante de uma associação, sociedade, comunidade ou o que se quiser na qual ações coordenadas
dos diversos membros produzem um resultado que, sozinhos, não poderiam obter. Além disso, a
koinônia humana suprema é um fato natural antes de mais nada: a natureza, que nada faz em
vão, faz com que o homem viva numa sociedade que existe para que determinado fim seja
alcançado. Isto abre-nos duas questões: a primeira é entender porque a sociedade é natural e não
um produto artificial do próprio homem. Afinal – e boa parte da filosofia política moderna não
cessará de insistir nisso – se, como quer Aristóteles, as coletividades humanas diferem daquelas
das abelhas pelo fato de o homem tornar-se consciente de sua finalidade, enquanto que abelhas
ou formigas visam a um fim inconscientemente, por que não prescindir dessa hipótese bem pouco
óbvia da “naturalidade” da vida social e admitir de uma vez que é por um pacto que a sociedade
estabelece seus fins e, assim, surge? Um segunda questão diz respeito aos fins que a vida social
deve permitir alcançar. Noutras palavras: o que se ganha, havendo sociedade, que não seria
possível obter se ela não existisse? O que ela efetivamente deve poder proporcionar? De maneira
muito genérica já sabemos que se trata do “pleno desenvolvimento” da natureza humana, que não
poderia desabrochar inteiramente em outro ambiente. Mas concretamente o que significa isso
para Aristóteles?

Ambas as questões convergem para o ponto de saber como o homem se desenvolve e


para onde se desenvolve. O que exige que esbocemos, ainda que muito rapidamente, em que
consiste o animal que o homem é e que a natureza faz que viva numa coletividade.

A natureza do animal humano

No De Anima, Aristóteles caminha de um princípio geral – aquilo que, num organismo, o


torna vivo é denominado por ele de psuche ou “alma” – para o mais particular: as faculdades que

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estão presentes apenas no homem e o tornam específico perante os animais. Os seres dotados
deste princípio são vivos, os privados dele, inanimados. Os seres vivos, contudo, diferirão em
virtude da complexidade das faculdades vitais neles presentes, tal como, dirá Aristóteles, a divisão
de uma figura geométrica como o quadrado produz duas figuras geométricas mais “simples” –
dois triângulos. Uma planta, por exemplo, pode crescer, bem como envelhecer, que é o processo
inverso. Se ela cresce, nutre-se e, portanto, há nela um movimento (da raiz, bem entendido) rumo
à busca de alimento. A planta, assim, ilustra a forma mais simples de vida: um ser cujas
faculdades vitais resumem-se a nutrir-se e, assim, crescer, enquanto houver alimento, envelhecer
e morrer, quando não mais houver, e reproduzir-se (De anima, II, 2, 413a25-413b1).

Animais diferem de plantas, ou melhor, de seres “meramente vivos”, pelo fato de


possuírem percepção sensível. A mais básica de todas é o tato, mas além dele podem ter o
paladar, olfato, audição e visão. Onde há percepção sensível, diz Aristóteles, há também desejo e,
onde há desejo, há movimento – que nada mais é do que a faculdade de ir buscar o objeto
desejado, percebido ou imaginado. Animais, portanto, possuem uma complexa variedade de
faculdades a serviço, entre outras coisas, da nutrição. Finalmente, alguns animais (os humanos)
possuem, além dessas, o pensamento e o intelecto (De anima, II, 3, 414a32-414b20).

A nutrição, a faculdade mais fundamental de todos os seres vivos, é entendida como uma
capacidade ampla que engloba a reprodução e o que Aristóteles chama de “o uso da comida”, que
é o que entenderíamos hoje propriamente como sendo sua função fundamental. A reprodução é
uma tendência natural de qualquer ser vivo, é a “função mais natural nas coisas vivas”, desde que
perfeitas, não mutiladas ou não produzidas por geração espontânea. “Um animal produz um
animal, uma planta, uma planta”, diz Aristóteles, e dessa forma participam “do eterno e do divino”.
Antes que se leve muito longe esta última metáfora, lembremos que o que Aristóteles está
querendo dizer é apenas que, ao tenderem a reproduzir-se, os seres vivos estão perpetuando a
espécie e, nesse sentido, ganhando uma espécie de imortalidade (seguramente não individual).
Participar “do eterno e do divino” é participar da eternidade da espécie enquanto tal. Ao lado
dessa função reprodutiva da nutrição, há a alimentação (busca e distribuição de alimento pelo
corpo) pela qual o organismo se mantém e cresce. Aristóteles coloca as duas funções a cargo de
uma única faculdade porque a reprodução termina por produzir um indivíduo semelhante ao que
procria, enquanto a nutrição mantém ou preserva (coordena a regeneração) o indivíduo, fazendo
com que continue semelhante a si próprio:

Já que é correto denominar qualquer coisa a partir de seu ponto de chegada, e o ponto de
chegada é gerar algo como a si próprio, a alma primária seria aquela capaz de gerar algo
como a si própria (De anima, II, 4, 416b23-25).

Os animais possuem esta faculdade “apetitiva” e, além dela, a faculdade “sensitiva” – os


órgãos dos sentidos (tato, paladar, olfato, audição, visão). Animais humanos e não-humanos
possuem as duas, embora nem todos os sentidos estejam presentes em todos os animais. Já o

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intelecto é uma faculdade presente apenas em humanos. Ele é o responsável pela abstração da
forma de um objeto e seu reconhecimento nas ciências matemáticas. É também a faculdade que
nos permite ver os primeiros princípios, tanto nas ciências teóricas como nas ciências práticas
(ética e política), após um processo indutivo (a epagôgê), função crucial para a política, como
veremos mais adiante. Assim, no caso específico das ciências matemáticas, para além deste ou
daquele triângulo percebido, por exemplo, é graças a essa faculdade que chego a compreender o
que seja um triângulo. Este “triângulo em geral” não é este triângulo, nem aquele, nem qualquer
um que tenha visto. Não é nem mesmo uma imagem em minha mente, produzida pela
imaginação, embora não possa chegar ao triângulo em geral sem a mediação de uma imagem
concreta de um triângulo. É, simplesmente, o triângulo quando entendo o que ele seja. Além
disso, os animais são capazes de emitir juízos. Assim, embora todo animal seja capaz de associar
automaticamente determinado estímulo perceptivo às sensações de prazer ou de dor e, portanto,
associar propriedades a certos tipos de objetos, a capacidade de chegar a generalizações
depende da presença do intelecto, o que é privativo do homem. Por outro lado, os animais
possuem também a capacidade de deslocarem-se no espaço (movimento). Esse tipo de
movimento está associado ao desejo ou à aversão (o animal deseja ou foge de algo e, assim,
movimenta-se para obtê-lo ou afastar-se: comida ou perigo, por exemplo) e à imaginação (pela
qual forma uma imagem daquilo que vem a desejar ou rejeitar).

O desejo, assim, é responsável por muitos dos movimentos animais. No homem, além do
desejo mais imediato de, por exemplo, comida, intervém um fator capaz de alterar o
comportamento. Esse fator é o que podemos traduzir por o “querer”, um tipo de desejo muito
peculiar porque se dirige à realização de um “preceito normativo”, uma concepção do que deve
ser feito. O querer, dirá Aristóteles num texto, advirta-se, cuja interpretação está longe de ser
incontroversa, é uma associação do desejo a algo que o intelecto lhe coloca como sendo o correto
e, muitas vezes, em oposição a outro desejo tendendo a um objeto diferente e imediato (De
anima, III, 9, 432b13-433a9). Alguém com uma formação sólida de caráter terá em si um desejo
guiado pelo intelecto, que o porá diante do que é melhor ser feito e, assim, fará com que pratique
o melhor e, talvez, um segundo desejo dirigindo-se à realização de um prazer imediato, não
necessariamente voltado para o bem. Portanto, conclui Aristóteles, a causa do movimento animal
irá depender de se estamos diante de um animal não-humano que, desprovido de intelecto, só
pode ser movido pelo desejo da satisfação de suas necessidades imediatas, ou se estamos diante
de um homem, caso em que poderá ser movido por um desejo iluminado pelo intelecto – o
“querer” ou boulêsis

O intelecto humano possui dois usos distintos: um teórico e outro prático. O primeiro, para
Aristóteles, não tem repercussão no terreno da ação. Compreender o que é um planeta e porque
se move em órbita circular em torno da Terra, situada no centro do cosmo, satisfaz uma
necessidade humana – nossa ânsia por conhecimento, nossa curiosidade intelectual –, mas não
tem repercussão prática. Já saber qual a melhor conduta a seguir, tendo em vista o que é o

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melhor, é algo próprio ao ser humano no uso prático de seu intelecto. O querer, assim, toma o
objeto do intelecto (o bem) como ponto de partida de um raciocínio prático e, recuando, chega
progressivamente às condições mais imediatas da prática de uma ação. Isso porque o intelecto é
a faculdade que oferece os primeiros princípios, atingidos por um procedimento complexo de
“indução” (epagôgê) em que chegam a ser “vistos” como tais e como evidentes ao final de uma
“limpeza de terreno” – uma análise e uma crítica das diversas teses e evidências disponíveis – a
que se dá o nome de dialética. Esse processo vale não somente para as ciências naturais, mas
também para as disciplinas éticas e políticas. Tais preceitos com respeito ao que é melhor seguir
são complementados pela deliberação (bouleusis) a respeito dos meios para implementá-los. Nem
sempre o resultado a que se chega é seguido pois a imaginação é sedutora e pode pôr diante do
desejo não o verdadeiro bem, mas apenas um bem que é bom somente em aparência – o “bem
aparente” (phainomenon agathon). Nada obriga, portanto, que o indivíduo siga, ainda que saiba
qual é, aquele que seria o melhor caminho.

Chegamos, assim, ao seguinte quadro, ainda abstrato:

1. Seres vivos: faculdade nutritiva (= alimentação + reprodução)

2. Animais: faculdade sensitiva (órgãos dos sentidos) e, portanto, prazer e dor e,


portanto, desejo e aversão.

3. Animais humanos: intelecto nas suas funções teórica e prática e, portanto, também
deliberação.

O quadro caminha num crescendo, de modo que os animais possuem necessariamente faculdade
nutritiva, comum a todos os seres vivos, e humanos possuem, além dela, todas aquelas próprias
aos animais não-humanos. Assim, a diferença entre uma planta e um ser humano é, sob esse
aspecto, para Aristóteles, uma diferença entre elementos pressupostos: a planta possui menos
faculdades (e é, portanto, mais imperfeita comparativamente) do que os homens, mas as
faculdades nutritivas são precondição para a existência de um animal, por exemplo. O modelo
proposto por Aristóteles no De Anima é aquele da divisibilidade das figuras geométricas. Um
quadrado, por exemplo, é potencialmente divisível em dois triângulos isósceles. Sem esses dois
triângulos componentes não há quadrado, de modo que são condição necessária dessa figura.
Por outro lado, a divisão aqui é apenas potencial, pois o quadrado não é, em ato, dois triângulos,
embora o seja em potência. A relação anterior-posterior, portanto, permite a Aristóteles explicar a
relação que as almas mantêm entre si, uma pressuposto da outra, mas não justapostas
simplesmente.

Assim, seres humanos vivem, no sentido mais básico do verbo (alimentam-se e


reproduzem-se), percebem e desejam. Mas o que caracteriza com maior especificidade a
humanidade é a presença das faculdades superiores da alma. Com maior especificidade significa:
aquilo que é propriamente humano, próprio do homem e não presente nos outros seres vivos. O

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ser humano é capaz de agir conforme o melhor e, mais importante de tudo, tese crucial com que a
Política se abrirá, de conhecer esse melhor. É capaz também de descobrir, diante das
circunstâncias, qual a maneira de obter o bem, dado que é capaz de saber o que é o bem e o que
é o mal.

Um ser humano pleno é aquele em que tais faculdades foram inteiramente desenvolvidas.
A pergunta que se coloca, então, é óbvia: sob quais circunstâncias é possível ao ser humano
atingir seu pleno desenvolvimento, nesse sentido preciso? A resposta, ainda genérica, é que o ser
humano atingirá seu pleno desenvolvimento num ambiente em que lhe seja garantida a
alimentação e reprodução, a satisfação dos desejos, e, sobretudo, o pleno desabrochar daquilo
que constitui sua especificidade face aos demais animais não-humanos. Tal ambiente propício
não será qualquer um: além de ser um ambiente em que se vive em sociedade (para satisfazer
um impulso natural), esta deverá possuir determinadas características. Não é, pois, qualquer
regime social e político que permitirá que o homem seja inteiramente um ser humano. Alguns o
reduzirão à condição análoga à de escravo.

Funções da vida social

Vimos que Aristóteles abria a Política afirmando que a sociedade devia servir para alguma
coisa (toda associação tem em vista alcançar algum benefício para os associados). Sendo uma
associação natural e não artificial, a sociedade deve permitir alcançar algum bem posto como tal
pela natureza. Mais ainda: sendo esta a associação que congrega todas as outras, é também de
esperar-se que aquilo que procura proporcionar a seus membros seja algo muito mais geral,
comum e fundamental, que aquilo que associações mais restritas tentam obter. A diferença,
portanto, é de natureza, não de grau, entre associações limitadas e a sociedade (Política, I, 1,
1252a1-19).

Se se trata de encontrar, portanto, a especificidade da sociedade perante outras formas de


associação que ela congrega e, além disso, o objetivo último a que ela serve, nada melhor, diz
Aristóteles, do que seguir o método habitual, analisar as partes para, paulatinamente, chegar ao
todo e partir do princípio para as fases posteriores de desenvolvimento (Política, I, 1, 1252a19-26).
Inicialmente basta, portanto, raciocinar de trás para frente: haveria humanidade sem a existência
da união entre homem e mulher e, assim, de casais? A união entre o homem e a mulher é
necessária para a reprodução que é, como vimos, uma das faces da parte mais fundamental do
homem, que ele compartilha com os demais seres vivos. A aproximação entre homem e mulher,
formando casais e, em seguida, famílias, é condição de possibilidade da satisfação de um aspecto
da natureza humana anteriormente examinado. Aliás, tal aproximação sequer é um propósito
deliberado, pois também os animais não-humanos e as plantas visam a deixar atrás de si um
outro ser semelhante a eles (Política, I, 1, 1252a26-30). Portanto, a primeira dimensão da vida
social é, para Aristóteles, a família, que satisfaz a necessidade humana de reprodução.

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O segundo elemento deve satisfazer a finalidade de preservação recíproca, que engloba
as necessidades de alimentação, vestuário, abrigo, etc. Esta dimensão irá originar a relação
senhor-escravo. O primeiro é capaz por natureza de prever o que irá ocorrer em determinadas
circunstâncias graças a seu pensamento, e o segundo, de realizar, com o trabalho do seu corpo, o
necessário para produzir aquilo que se precisa ou evitar aquilo que se antevê que poderá ocorrer.
Surge, assim, uma simbiose entre dois seres diversos – pois um tem a capacidade de prever
desenvolvida, o outro, não, e um o corpo apto para o trabalho, enquanto que o outro, menos – que
poderão sobreviver em conjunto. Um desempenhará funções subalternas, cumprirá as ordens do
senhor. O outro, planejará, organizará, dirigirá e controlará as ações de seus escravos. Juntos,
põem-se em segurança. Sozinhos, perecem.

Dessa forma, a escravidão em Aristóteles não poderia ser outra coisa senão uma
instituição natural, derivada da naturalização da divisão horizontal e vertical do trabalho. A
natureza nada faz em vão, diz Aristóteles, e assim homem e mulher, senhor e escravo, são
distintos. Quem não possui escravos tem, ao menos, um boi, que é o escravo do pobre, diz
Aristóteles, mencionando um verso de Os trabalhos e os dias, de Hesíodo:

Dessas duas associações (koinôniai) nasceu o estabelecimento doméstico (oikia) inicial, e


é correto o que disse Hesíodo, quando escreveu que “primeiro de tudo a casa (oikia), a
mulher e o boi para arar”, já que o boi, para o pobre, está no lugar do servo (Política, I, 1,
1252b9-13).

O estabelecimento doméstico grego – o oikos - era fundamentalmente uma unidade de produção


familiar. Deveria, na medida do possível, atender a todas as necessidades básicas de seus
habitantes (senhor, esposa e filhos, de um lado, e escravos, de outro). Ora, sendo a polis formada
por estas unidades autônomas de produção, não é nem um pouco surpreendente que Aristóteles
a considere como pedra fundamental da sociedade. Examinando, por sua vez, a dupla dimensão
que a compõe – uma produtiva, outra reprodutiva –, não é também nem um pouco surpreendente
que tivesse naturalizado (ou seja, postulando uma diferença entre naturezas) as relações
assimétricas entre coordenadores e executores. Aristóteles, assim, entenderá a escravidão em
primeiro lugar como algo inevitável, decorrente da necessidade de definir funções de comando e
de execução (quando as lançadeiras fiarem sozinhas, diz Aristóteles numa passagem tocante e
profética, não haverá mais necessidade da escravidão11). Dado que a natureza nada faz em vão e
que toda função deve encontrar um órgão que a desempenhe, se a função execução deve ser
desempenhada por alguém para que o homem possa satisfazer suas necessidades vitais, deve

11
Esta passagem, junto com outras na Política, é notável porque indica já a existência, nesta época, de
uma oposição ideológica à escravidão que, como se depreende, Aristóteles se viu forçado a rebater. Nela,
Aristóteles afirma que se um instrumento pudesse fazer seu trabalho quando ordenado sozinho (sem um
executor), ou vendo antes o que deve fazer “como as estátuas de Dédalo na história, como os tripés de
Hefesto que, diz o poeta, ‘entram, movidos a si próprios, em companhia divina’, se, enfim, as lançadeiras
fiassem e as harpas tocassem sozinhas os artesãos não teriam necessidade de assistentes nem os
senhores, de escravos” (Política, II, 2, 1253b33-1254a5).

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haver, por outro lado, alguém naturalmente destinado a ela. O mesmo valerá para o senhor. Ainda
no livro I, Aristóteles tentará encontrar sinais físicos para essa diferença que ele acredita ser
natural: mentes mais fracas e corpos mais brutos e fortes para os que são naturalmente
destinados a serem escravos, uma mente mais forte e um corpo mais débil para os senhores.
Encontrando escravos nesta última condição estaremos provavelmente diante de uma injustiça,
daí porque ele se posicionará contra a escravidão por dívidas ou por conquista, em que se torna
escravos indiferentemente seres destinados a sê-lo e seres destinados à liberdade.

A primeira função que deve desempenhar a vida social é, portanto, esta: permitir a
sobrevivência da espécie e dos indivíduos (reprodução e conservação). Ela é assegurada pela
instituição do casamento e da escravidão na unidade mínima de produção autônoma que é o
oikos. Portanto, um dos bens que a sociedade deve proporcionar é a vida, no sentido mais
elementar e primário do termo – a sobrevivência. Caso contrário, este expediente em que a
natureza colocou o homem não teria razão de ser. Como ela nada faz em vão, os homens,
desprovidos de garras, presas e outros meios de defesa, teriam, como no mito do Protágoras de
Platão, de ser compensados de alguma forma. Tal como as abelhas ou formigas, a vida
comunitária proporcionou-lhes uma força, como espécie, que não possuiriam como indivíduos
isolados.

As unidades familiares têm, como uma de suas funções, a reprodução. Isso significa que,
cedo ou tarde, irão originar outras unidades, que constituem, assim, os primeiros vilarejos. Há
aqui, portanto, uma espécie de cissiparidade das unidades de produção que origina novas
unidades, colônias das anteriores. Tendo-se tornado grande demais, o oikos divide-se, o que
permite aos filhos do senhor encontrarem outros parceiros para formarem casais e garante a
sobrevivência (pela via da escravidão) dos descendentes de todos. Como continuavam a ser filhos
do “paterfamilias” original, era natural que as primeiras cidades gregas, bem como muitas dos
estrangeiros, fossem governadas por reis que eram, assim, apenas os descendentes dos pais ou
avós originais. Isso explicaria também, diz Aristóteles, porque se imagina os deuses governados
por um rei, já que, ao lhes ser dada uma forma humana, projeta-se neles o modo de vida dos
homens.

A formação de vilarejos nada mais é do que um passo intermediário para a formação da


polis. Esta surge a partir da aglutinação de diversos deles e irá atender às necessidades últimas
que não podem ser satisfeitas no espaço estreito do vilarejo ou do oikos. O surgimento de
vilarejos garantia a perpetuidade da espécie, permitindo a continuidade da formação de pares
familiares e evitando uma crise de hipertrofia da unidade de produção. Por outro lado, e é para
isso que aponta a estrutura do livro I da Política, que conclui examinando a arte da riqueza, as
trocas de produtos surgem para satisfazer necessidades de consumo que não podem ser
satisfeitas exclusivamente pela produção interna do oikos (e o dinheiro, na sua função primeira,
para facilitar tais trocas). Assim, com o surgimento da cidade-estado a sociedade atinge seu limite

20
máximo. Nela devem poder ser satisfeitas todas as necessidades humanas básicas, bem como o
desenvolvimento pleno das faculdades superiores. Quanto à produção e reprodução, ela deve ser
inteiramente auto-suficiente: ela deve, no sentido preciso do termo empregado por Aristóteles,
tornar-se uma autarkeia, uma entidade que subsiste por si porque seu princípio reside nela
própria. A cidade-estado é, portanto, o estágio final de desenvolvimento de um ser natural que se
inicia pelo oikos. Sendo a cidade-estado aquilo para onde tende a associação fundamental que
constitui o oikos, e visto que o homem faz parte do oikos, naturalmente o bem último do oikos será
seu pleno desenvolvimento. Não chegar até onde poderia ter-se desenvolvido é, seguramente, um
mal para um ser. Significa frustrar uma sua potencialidade, fazer com que ele não chegue a ser
aquilo que deveria ser. Sendo a auto-suficiência aquilo para onde tende o oikos, e sendo o oikos
composto de homens, a vida em sociedade é, em conclusão, o sumo bem para o homem:

Por isso, toda polis existe por natureza, visto que também existem por natureza as
primeiras associações. Pois a polis é o ponto de chegada (telos) delas. A natureza, por
outro lado, é o ponto de chegada, pois diz-se que a natureza de cada coisa é aquilo que
ela é ao haver terminado sua gênese, como a natureza do homem, do cavalo ou da casa.
Além disso, a finalidade e o ponto de chegada são o sumo bem, sendo a auto-suficiência
ponto de chegada e sumo bem. É evidente, portanto, a partir de tudo isso que a polis é
uma coisa da natureza e o homem é, por natureza, social (Política, I, 1, 1252b31-1253a4).

Assim, uma das funções da vida em sociedade é permitir a sobrevivência dos indivíduos e da
espécie. É para isso que ela serve e é o estágio máximo de desenvolvimento. Por outro lado,
ainda que ela sirva para permitir a vida (Aristóteles afirma, algumas linhas antes, que ela tem por
finalidade a vida), ela não se esgota nisso. Pouco antes da passagem acima Aristóteles, numa
frase lapidar, diz que a sociedade, “tendo surgido para a vida, existe, contudo, para a boa vida (eu
zên)”. O que falta, contudo, a essa descrição, que a torna, ainda, incompleta? Em que a vida se
distingue da boa vida?

Para responder a essa questão é preciso recuar ao início de onde partimos. Vimos que
animais gregários como a abelha ou a vespa também se reúnem em comunidades, tendo em vista
um bem coletivo. Nisto, o homem em nada difere de uma abelha ou uma formiga. Entretanto,
apenas o homem é capaz de ter consciência dessa finalidade coletiva a que a vida social serve.
Quanto a isso, portanto, o homem é um animal muito mais social do que os demais. O homem
possui a linguagem, que, nos animais, apenas atinge o grau rudimentar de grunhidos de prazer ou
dor. A natureza nada faz em vão e, se o homem possui a linguagem, deve esta estar a serviço de
alguma finalidade precisa. A linguagem, diz Aristóteles, está a serviço de apresentar o que é útil e
o que é nocivo para outros indivíduos. Daí, portanto, indicar o certo e o errado e, assim, o justo e o
injusto. Permite, portanto, efetuar juízos públicos de valor e juízos normativos. Ora, isso só é
possível porque o homem, à diferença dos outros animais, é capaz de conhecer o bem e o mal, o
justo e o injusto, e todas as demais qualidades morais. Ora, a polis e o oikos nada mais são do

21
que associações visando alcançar tudo isso. Segue-se, portanto, que, para além de algum
processo instintivo que conduzisse o homem a viver em sociedade, este possui ainda seu
intelecto e a linguagem que, dando-lhe a capacidade de conhecer os fins a que se dirige a vida
social, pode reforçar os laços que unem os homens.

Isso mostra, mais uma vez, como Aristóteles está longe de qualquer forma de
contratualismo. Pois um contratualista poderia concordar com Aristóteles que a capacidade que o
homem possui de compreender o que é de seu interesse e o que lhe é prejudicial impele-o à
criação de uma associação visando fins coletivos. Mas os passos seguintes de Aristóteles um
contratualista não poderia admitir. Um contratualista não poderia defender, por exemplo, que, visto
que a natureza nada faz em vão, a linguagem, proporcionada ao homem por ela, serve para a
troca de juízos de valor e juízos normativos e, assim, para reforçar e realizar algo que já é
instintivo nele. Pois isso é já admitir que a vida social é natural, que ela não decorre de um acordo
inter-individual (ainda que tácito). Nem que do fato de a natureza ter provido o homem da
capacidade de descobrir o que lhe é melhor e o que lhe é prejudicial (função prática do intelecto)
decorra que a sociedade é um estado natural. A vida social, para Aristóteles, é toda ela apoiada
neste fato, biológico antes de tudo, de que é a natureza que destina o homem a viver em
coletividade. Ela o faz para viver socialmente. Só assim ele se torna inteiramente aquilo para o
que está destinado.

Viver bem, portanto, significará, neste momento ainda inicial de nosso percurso, viver
plenamente. Faltava para completar o rol das capacidades humanas desenvolver as capacidades
superiores. No aspecto prático do intelecto, portanto, somente em sociedade o homem pode viver
plenamente. É bem verdade que, para a vida contemplativa (face teórica do intelecto) vale a pena,
muitas vezes, ter uma vida solitária (é o que faz transparecer freqüentemente a Ética a
Nicômaco). Seja como for, o intelecto prático só pode desenvolver-se num meio em que todos
conscientemente (diferentemente das abelhas) se comportem no sentido de atingir um resultado
coletivo benéfico para todos. Isso supõe coordenação de esforços e, portanto, linguagem, juízos
de valor (que julgam as ações que estão sendo praticadas), juízos normativos (que exprimem os
fins que devem ser atingidos) e assim por diante. Ora, como o homem, as abelhas e as formigas
não são capazes de viver isoladamente (à diferença dos leões, ursos ou lobos), mas apenas
quando há mútua cooperação, a sociedade será logicamente anterior ao indivíduo. “Logicamente”
aqui significa apenas que a sociedade pode viver sem um indivíduo, mas um indivíduo não pode
viver sem ela. Quando o corpo inteiro perece, diz Aristóteles, perecem as partes e um ser humano
que é capaz de viver solitário, sem o auxílio da sociedade é ou uma monstruosidade, ou um deus
(Política, I, 1, 1253a19-30).

Aos trabalhos éticos de Aristóteles caberá determinar àquilo que essa teoria da natureza
humana estabeleceu genericamente. A eles agora.

22
II

A virtude propriamente humana: ética e política

O Soberano Bem

Toda atividade humana, diz Aristóteles no primeiro livro da Ética a Nicômaco, é feita para
alcançar algum benefício, real ou aparente, para aquele que a pratica. Pode haver, inclusive,
conjuntos de regras para obter determinadas finalidades tidas como benéficas para o homem – a
medicina, por exemplo, é uma “técnica” (um conjunto de regras) cuja finalidade é produzir a
saúde; a arte de construir barcos tem em vista produzir navios; a arte da estratégia procura a
vitória; a economia, a riqueza, e assim por diante. Toda ação humana voluntária procura alcançar
algo útil para aquele que a pratica. É verdade que por vezes esse fim perseguido é apenas o que
Aristóteles denomina um “bem aparente”. Possui apenas uma “aparência” de bem, não o sendo,
contudo, na realidade. É por isso, diz Aristóteles, que já se chegou a afirmar que o bem (real ou
ilusório) é aquilo para que todas as coisas tendem (Et. Nic. I, 1, 1094a3 e segs.).

Pode-se imaginar algum fim das nossas atividades que exista por si, como “fim último”,
não como meio para a obtenção de um outro fim? Ou melhor, colocando a questão de uma outra
maneira: toda ação pretende atingir determinado resultado. Nesse sentido, as ações são meios
para obter determinadas finalidades. Por vezes, contudo, ocorre que tais finalidades terminam por
ser novos meios que visam obter outros fins. Por exemplo, a técnica que visa obter riqueza
monetária, dirá Aristóteles no livro I da Política, pretende oferecer os meios para ganhar dinheiro.
Possuir dinheiro, porém, não é, de maneira nenhuma, a última finalidade perseguida por aquele
que procura endinheirar-se, mas sim possuir o suficiente para poder trocá-lo por bens (terras,
mercadorias, serviços, escravos, o que for). Esses, por sua vez, também não podem ser fins
últimos: a riqueza não-monetária serve para obter conforto, este sim a finalidade última
perseguida. Há, portanto, o que podemos chamar de “fins intermediários” ou “fins parciais”, que
são, uma vez alcançados, novos meios para novos fins e assim sucessivamente até atingirmos
algo que vale “por si mesmo” (e não para obter outra coisa). E assim podemos imaginar um fim
último que perseguimos “por si mesmo”, não para obter outra coisa diferente dele próprio. Saúde,
por exemplo, não é produzida para obter algo diferente dela própria: é um fim último. Ao Bem que
englobasse em si mesmo a totalidade desses fins últimos parciais a Ética a Nicômaco denominará
de “Soberano Bem”.12

12
Os comentadores discutem a reconstrução do argumento aristotélico, cuja forma é aparentemente
falaciosa e parte de “toda ação pretende atingir um bem” e conclui por “há um fim que toda ação pretende
atingir”. A primeira proposição não se compromete com a existência de um único bem a que todas, em
última análise, tenderiam. Poderia, inclusive, haver fins a que as ações tendem e que seriam contraditórios
entre si. A segunda proposição, contudo, é muito mais forte do que a primeira e introduz um único bem
último a que toda ação tenderia em última instância. Tal dificuldade liga-se ao problema de saber se o

23
Ora, diz Aristóteles, para a condução de nossa vida, conhecer o que é esse Soberano Bem
seria uma das coisas mais importantes. Como os arqueiros, que miram um alvo, seria possível
procurar atingir o fim último da nossa vida. Portanto – eis o objetivo de boa parte da Ética a
Nicômaco e, em particular, do livro I –, conclui Aristóteles que é necessário tentar encontrar a
natureza, ainda que geral, desse Soberano Bem. Sendo aquele objetivo último a que tendem
todas as ações (ainda que não o percebam, perseguindo um bem que é apenas aparentemente
esse Soberano Bem), sua ciência será “a ciência suprema e arquitetônica por excelência” (Et. Nic.
I, 1, 1094a27). Noutras palavras, conhecendo-o, saberemos como devemos agir, aquilo que
devemos sempre procurar alcançar, o que temos de tentar obter. Ora, o nome da ciência que
estuda e dispõe sobre o Soberano Bem poderia, a princípio, surpreender-nos: é a política.

Evidentemente que ela é a política, pois é ela que determina quais as ciências necessárias
nas cidades e quais cada um deve aprender, bem como com que profundidade. Vemos,
além disso, que dependem dela as capacidades (dunameôn) mais valorizadas, como a
estratégia, a economia ou a retórica. E sendo ela necessária às ciências restantes, e
também estabelecendo as regras daquilo que devemos fazer e de que nos devemos
abster, seu fim pode conter aquele das demais ciências, e portanto este seria o bem
humano. Pois se o fim é o mesmo para o indivíduo ou para a cidade, é claro que é mais
importante e mais perfeito apreender e salvaguardar o bem da cidade. Pois se é amável
para o indivíduo sozinho, é ainda mais nobre e divino para um povo e para a cidade (Et.
Nic. I, 1, 1094a27-b11).

São vários os argumentos de Aristóteles nessa passagem e vale a pena examinarmos um a um.

A política, entendida como a ciência dos fins a que se destina a sociedade, deverá
determinar quais são as ciências necessárias para que esta possa alcançá-los. Se há fins a serem
buscados, podemos perguntar-nos quais são os meios de obtê-los. Será a ciência dos fins últimos
da sociedade que irá definir quais são, portanto, as competências que os indivíduos deverão
possuir para que tais fins sejam alcançados. Logo, as capacidades mais valorizadas, aquelas
necessárias nas cidades para a realização dos fins a que as comunidades humanas se destinam,
serão objeto da política. Além disso, a política terá, como ciência dos fins da sociedade, que
dispor a respeito daquilo que os indivíduos devem buscar com suas ações, e daquilo que eles
devem evitar. Pois é claro que se a política é a ciência dos fins últimos dos agrupamentos
humanos (fim este a ser examinado a seguir com maiores detalhes), ela deverá ser, também, a
ciência que estabelece normativamente quais os fins que cada indivíduo, ao viver em sociedade,
deve perseguir. Em outras palavras: se ela tem uma função descritiva – descrever a finalidade da
sociedade –, terá também uma função prescritiva – prescrever como os indivíduos devem agir,
isto é, o que devem perseguir com suas ações.

Soberano Bem é um “fim inclusivo” – isto é, o conjunto de todos os fins últimos – ou um “fim dominante” –
um único fim a que todos os demais se subordinariam. Um excelente estudo sobre o tema é apresentado
em Zingano (1994).

24
Ora, se, como dizia a Política, a finalidade última da sociedade é assegurar, aos
indivíduos, que alcancem seu pleno desenvolvimento, o fim último da sociedade engloba os fins
últimos de quaisquer sociedades que a componham. É, portanto, o fim dos fins, fim supremo.
Serve de condição de possibilidade para que os indivíduos persigam fins particulares,
apresentando algo como um “fim comum” que interessa a todos. O fim último, que é descrito pela
política, é também, portanto, o fim último das ações humanas: o mais geral, porque o que vale não
para este ou para aquele homem determinado, mas para todos. O Bem Supremo coincide,
portanto, com o fim último para que a sociedade serve.

Natureza do Bem Supremo

Nem toda ciência tem o mesmo grau de perfeição. Há ciências cujos objetos, por serem
privilegiados (meramente formais), permitem que o corpus científico assuma a forma de um
sistema axiomático. Noutras palavras, atingidos alguns princípios de base, o restante das
proposições dessa ciência seguem-se dedutivamente, com a necessidade das inferências
próprias à lógica. A ciência por excelência em que isso ocorre é a matemática, que serve de ideal
ao modelo de ciência formulado por Aristóteles.13 Aliás, a bem dizer, a matemática é,
seguramente, a única assim. Em outras ciências devemos contentar-nos com farrapos de
axiomatizações, que não assumem a forma de um todo único. É o caso da física e da astronomia,
por exemplo, em que encontramos, é certo, inferências (a teoria do movimento local, no livro V da
Física, por exemplo, apresenta muitos argumentos dedutivos, “more geometrico”, ou partes do
Tratado do Céu, para citar alguns exemplos). Noutros terrenos encontramos, contudo, apenas
princípios que organizam certos terrenos, sem que possamos construir um sistema dedutivo. Esse
é, diz Aristóteles, o caso da ética e, a fortiori, da política.

Ética e política lidam com ações humanas que têm em vista fins. Diante da complexidade e
da contingência do mundo das ações humanas, muito diferente daquele mundo simples das
propriedades geométricas ou aritméticas abstraídas dos objetos, é de esperar-se muito mais
divergência e incerteza. Não é o que ocorre com a riqueza ou a coragem, consideradas bens a
que o homem deve aspirar mas que, em certas circunstâncias, causaram a morte daqueles que as
tinham (Et. Nic. I, 1, 1094b15-20)? Diante de um campo em que das mesmas coisas podem
resultar efeitos diversos, o máximo que se pode extrair são esquemas gerais, princípios genéricos,
aproximações, esboços. Esse é o sentido mais concreto da palavra grega que Aristóteles
emprega para referir-se ao campo da política: tupôi, que se opõe à akribeia, a precisão, a
acuidade. O que se pode fazer é um esboço – não o perfeito, sem exceção –, algo que abarcará
“o que ocorre na maioria das vezes” (epi to polu, diz Aristóteles) mas não sempre, o que é
habitual, mas admite exceção. Assim, embora sejam essas as características do bem
“propriamente humano”, alguém pode esforçar-se por atingi-las e conseguir (pois o mundo é

13
Sobre a matemática como modelo para a ciência veja-se Porchat (2001).

25
contingente) justamente o contrário do que pretendia. Logo, a ciência da política não será
demonstrativa. Não irá apresentar aquilo que ocorre sempre e necessariamente, sem exceção.
Ela admite exceções e não se deve pedir dela mais do que pode oferecer. Não nos
decepcionemos, pois: esta ciência é humana, não exata.

Ora, para julgar os resultados a que se chegou é preciso conhecer um pouco dos
“negócios humanos”. É preciso ter vivido um pouco, ter tido um rol de experiências que torne o
ouvinte alguém capaz de entender o que irá ser descrito. Uma criança inexperiente não poderá
aprender ética ou política – poderá ser educado para a virtude, o que é muito diferente. Aprender
significa, aqui, compreender o que é e, obviamente, também o que deve ser. Exige, portanto, uma
capacidade de compreensão, uma capacidade cognitiva e não moral. Na verdade, e esse é um
dos pontos que Aristóteles nunca deixará de enfatizar contra Sócrates e Platão, conhecer o que é
o bem não nos levará necessariamente a tornar-nos virtuosos. Podemos perfeitamente saber
como deveríamos agir (para sermos virtuosos) em determinadas circunstâncias. Ainda assim, e
isso porque quem nos faz agir não é o intelecto, mas o desejo, podemos perseguir um fim
totalmente diferente e comportarmo-nos mal. Para sermos virtuosos deve haver uma prévia
educação das faculdades que nos movem: o desejo e o intelecto, como vimos no capítulo
passado. Devemos ser habituados a desejar o bem com determinação suficiente para persegui-lo
sem titubear diante de outros desejos que possam aparecer e entrar em conflito com ele. A um
jovem, portanto, muito mais do que lhe ser ensinado o que é o bem, devem ser dadas as
capacidades propriamente psicológicas de conseguir alcançá-lo. Uma educação do desejo é o
que ele precisa, não apenas uma educação da inteligência.

Mas há uma outra razão porque é inútil para o jovem estudo da ética e da política, muito
mais importante para compreendermos a investigação aristotélica do Bem Supremo. É que é
preciso – insisto mais uma vez – para entender o que é a ética e a política, o que é a virtude e o
que são as virtudes, como se delibera, como uma família funciona e como se vive em sociedade,
enfim, como é a vida humana, que se tenha vivido. É preciso um pouco de experiência para
compreender (i) o discurso sobre os princípios da ética e da política e (ii) porque estes são os
princípios, e não outros quaisquer. Um jovem poderia, diante de sua inexperiência, crer que o
prazer é o sumo bem, por exemplo. Sem conhecer as conseqüências muitas vezes nefastas de
uma vida dedicada a desfrutá-los sem freio não há como mostrar que não são eles o verdadeiro
bem, embora apareçam, e com muita força, como tal. Sendo a vida boa o ponto de partida e o
objeto dos argumentos dessas ciências, é de esperar-se que só possam compreendê-la
verdadeiramente (não apenas verbalmente, mas de fato) aqueles que já viveram um pouco.
Ciência paradoxal essa, digamos de passagem, pois para o velho, capaz de compreendê-la e
dificilmente passível de uma educação das paixões a esta altura, será inútil; para o jovem,
contudo, a que ela será mais útil, é impossível compreendê-la. Mas o paradoxo é aparente se
lembrarmos do caráter exortativo de toda a ética: texto político, não nos esqueçamos nunca. Pode

26
tornar conscientes comportamentos virtuosos naqueles que agem naturalmente assim, “sem
pensar”, e podem, quem sabe, instar aqueles que estão em posições decisórias a estabelecer
uma ordem (fundamentalmente uma educação, a Política insistirá) conforme o melhor.14

Ora, se formalmente aquilo a que todas as ações tendem é o Bem Soberano, do ponto de
vista de seu conteúdo os homens perseguem a eudaimonia, ou seja, aquilo que costumamos
traduzir por “felicidade”. O termo é apropriado desde que excluamos alguns sentidos que
poderiam aparecer associados ao conceito, e incluamos outros. Não é o desfrute do prazer,
obviamente, pois muitos prazeres conduzem ao avesso do bem, e a busca exclusiva do prazer
pode perfeitamente impedir o pleno desenvolvimento das capacidades humanas. Um animal não-
humano, com efeito, nada mais faz do que buscar o prazer e fugir da dor. Cada vez que sente
fome ou frio busca alimento ou abrigo. Nisso, um animal não-humano e um ser humano não se
distinguiriam. Novamente: se há algo no homem diverso dos demais animais, que é preciso
desenvolver plenamente para que o homem seja efetivamente homem, seguramente não é a
satisfação obsessiva do prazer que o permitirá. E sobretudo, como nota Kraut (1997: 58),
eudaimonia não deve ser confundida com um fato psicológico, com um sentimento ou um estado
subjetivo.

Outra alternativa seria imaginar que a felicidade se identifica com o reconhecimento de


nosso valor por outros indivíduos – o que poderíamos chamar de “honra”. Ficamos satisfeitos
quando somos valorizados, mas será isso a felicidade? Se for, estamos diante de algo que vem e
vai, que depende da imagem que projetamos nos demais. É a virtude típica daqueles que
desempenham uma vida ativa, que esperam reconhecimento por aquilo que fazem – mas que
podem, contudo, não obter. Identificar, portanto, a felicidade com a honra é fazer com que
dependa dos outros, não de nós mesmos, quando, na verdade, ser valorizado pelos outros deve
ser conseqüência de ser alguém de valor, não causa. Ninguém quer ser valorizado por gente sem
valor, mas sempre por gente de bem, gente por quem vale a pena ser valorizado. O que tais
pessoas encontrarão em nós, se formos realmente dignos de valor, será a virtude. Portanto, mais
uma vez, honra é conseqüência, não causa, da felicidade.

Quanto à riqueza, sabemos que sem uma certa quantidade dela é impossível ser feliz –
vida de penúria é vida de sofrimento e de atrofia –, de modo que ela é condição da felicidade,
ainda que não da virtude. A virtude é, como veremos, a única condição da felicidade que depende
de nós. Os bens da fortuna (isto é, do acaso, incluindo riquezas, um bom nascimento, amigos, etc)

14
Note-se que Aristóteles considera que pouco importa a idade daquele que conhecerá esta ciência: a
insuficiência diz respeito fundamentalmente ao fato de lançar-se sempre à perseguição de suas paixões, o
que pode ser um traço de adultos que não amadureceram. Por outro lado, é preciso notar também que, na
formação do caráter, a educação do desejo supõe que se possa ensinar (e o discípulo, compreender) o
que é o Bem. Isso não significa que seja capaz, ainda, de chegar a eles dialeticamente. Como o discípulos
do geômetra, no livro I dos Segundos Analíticos, ele deverá primeiro exercitar-se em algo que ainda não
compreende inteiramente – ou seja, deve agir, por enquanto, sem justificação ulterior – para, depois,
poder atingi-los por outro meio.

27
são condições exteriores sem as quais não há felicidade, embora possa haver virtude. Mas note-
se: condição, não a própria felicidade, pois ela é antes de tudo um meio que permite atingi-la,
condição sine qua non da vida plena, mas não condição suficiente. O que é preciso encontrar, que
nos dará a natureza da felicidade como Bem Supremo, é um fim que os indivíduos escolheriam
por si mesmo, não como meio para outro fim. Que não são o prazer, a riqueza ou a honra,
Aristóteles crê que é evidente, pois, na melhor das hipóteses, essas três coisas que os homens
procuram são meios para ela, não fins últimos. Ninguém escolhe a riqueza pela riqueza; escolhe-a
para ter conforto, por exemplo. O bem a que deveremos chegar, que nos propiciará a felicidade,
deverá ser um fim perfeito que basta a si mesmo e que não existe, na verdade, para que um outro
fim possa existir.

Por que parece que a felicidade é esse fim último? Como podemos afirmar que o Bem
Supremo se identifica à eudaimonia, à felicidade nesse sentido preciso? A demonstração de
Aristóteles, de uma elegância argumentativa admirável, parte do princípio de que o que constitui
um fim último é algo que é escolhido não como meio para atingir outro fim (caso em que este
outro fim se tornaria um fim último), mas é escolhido por si mesmo e todos os outros fins são
sempre meios, fins parciais para atingi-lo. O que é preciso encontrar, portanto, é algo que, ao ser
examinado, apareça como fim último. Algo que, posto diante de um indivíduo, ele o escolheria, o
preferiria não como meio, mas como fim. Preferiria tê-lo a ter qualquer outra coisa. E, se o temos,
qualquer coisa a mais que venhamos a possuir não nos acrescentará nada.15 Façamos o teste
com algumas coisas e, antes de tudo, com a primeira delas: a felicidade.

A felicidade é algo que, tendo-a, ninguém precisa de mais nada, diz o senso comum. Ela
também não existe para que se obtenha outra coisa diferente dela. Basta-se a si mesma, é
portanto o fim último, não um meio para alcançar um fim. Entre tê-la e ter outra coisa, qualquer ser
humano preferirá a ela e não a outra coisa. Por exemplo: felicidade ou riqueza. É certo que não
pode haver felicidade sem riqueza, mas, tendo felicidade, um acréscimo de riqueza ou uma
diminuição que não a comprometa não alterará em nada o estado de coisas. Entre, portanto, uma
diminuição de meu patrimônio e a felicidade, escolheríamos a felicidade. Entre a glória e a
felicidade? Ter glória, mas ser infeliz, ou ter felicidade, mas ser desconhecido?

Em outros casos, contudo, a escolha não será tão simples, o que mostrará que estamos
diante de algo que é um elemento que compõe a felicidade. Por exemplo, não há escolha possível
entre honra e felicidade: se perco a honra, perco a felicidade automaticamente. Significa que os
demais não me estão valorizando, não me consideram digno de valor, desprezam-me, portanto.
Nesse caso a honra é condição da felicidade, embora não seja a própria felicidade (é apenas um
elemento, que consiste na sua face exterior, da felicidade). Portanto, desejamos ser felizes e

15
Essa é uma das características fundamentais da eudaimonia: ela não pode ser acrescida
quantitativamente. Veja-se, a respeito, Zingano (1994).

28
honrados, o que mostra que a honra é condição necessária de uma vida de valor, não, contudo,
condição suficiente. Daí a definição final de Aristóteles desse fim último que todas as ações
humanas perseguem, e que a vida em sociedade deve permitir alcançar: a eudaimonia é aquilo
que, ponto de lado todo o resto, torna a vida desejável e não precisa de nada mais (Et. Nic. I, 5,
1097b15). Tendo-a, qualquer coisa que seja acrescentada (mais bens, mais reconhecimento, etc.)
não a alterará quantitativa ou qualitativamente. Como o conjunto dos números naturais, que
continua infinito se lhe “acrescentamos” um número, a felicidade é algo que, se possuída, tudo o
mais passa a ser acessório.

Felicidade e natureza humana

Vimos que na Política Aristóteles insistia, numa frase que se tornou quase um ditado a
caracterizar seu pensamento biológico, que “a natureza nada faz em vão”. O homem possui um
coração, cuja função é distribuir alimento para as partes do organismo. Possui pulmões, espécies
de foles desempenhando o papel de refrigeradores do organismo, contrabalançando o calor
presente no coração e impedindo que o animal se consuma pelo fogo ali presente, e assim por
diante. Todo órgão está associado a uma função e Aristóteles não admite a existência de partes
animais desprovidas de função; nem, e justamente por isso, a existência de órgãos residuais.
Essa tese de Aristóteles foi, como já tive ocasião de mencionar na Introdução, fortemente criticada
na biologia moderna, pois introduziria um princípio metafísico ali onde não se deveria ver mais do
que um preceito metodológico da pesquisa: investigue os órgãos como se tivessem uma função
(até, e para, descobri-la). Também se viu nessa tese uma possível “antropomorfização” da
natureza,16 atribuição a ela de uma teleologia encontrada apenas no finalismo das ações
humanas. Afinal, seria estranho, primeiro, introduzir um conceito abstrato e amplo de “natureza”
para designar o conjunto do mundo material, ou talvez, mais restritivamente, do mundo material
dotado de vida (os dois sentidos estão presentes em Aristóteles). Aristóteles não apresentaria os
critérios para considerar esse conjunto do mundo material uma entidade autônoma. Em segundo
lugar, ao afirmar que ela nada faz em vão estaria entendo-a como um artífice que construiria seus
artefatos tendo em vista determinados fins (no caso, a homeostase).

Guardadas as críticas, e aplicando o princípio ao mundo social, vimos Aristóteles repetir


que o homem é por natureza social, que a natureza o faz viver em comunidade, e assim por
diante. Nada fazendo em vão, deveríamos então perguntar-nos qual a função estabelecida pela
natureza para a existência social do homem. Qual a finalidade (natural, bem entendido) a que
responde a vida social? Se o coração possui uma função detectável, seria preciso encontrar a
função própria da sociedade – aquilo para que serve sua existência. E a resposta, ainda abstrata,

16
Ver a esse respeito Angioni (2000).

29
que havíamos encontrado era que a sociedade existia, justamente, para que o homem pudesse
alcançar seu máximo desenvolvimento.

Vimos, contudo, que a Ética a Nicômaco examinava as ações do ponto de vista finalístico,
associando a cada uma delas um fim perseguido pelo indivíduo que o pratica e que podia ser
último ou mediato. Como quer que seja, existia algo perseguido – o Bem Supremo – que devia
conter todos os fins últimos, um fim tal que sua posse bastasse àquele que o tivesse, sem que
nada de relevante pudesse ser acrescentado. Aristóteles identificava esse Bem Supremo com a
eudaimonia, com a felicidade entendida num sentido bastante restrito: algo que o indivíduo
preferiria por si e não para obter algo diferente, e que em seguida passa a identificar como a
atividade que expressa a virtude. Mas sabemos que Aristóteles admite a existência de uma
essência propriamente humana, que permite distingui-lo do restante dos animais a partir de um
conjunto de faculdades que apenas ele possui. Usar essas faculdades, tê-las “em ação” é aquilo
que o caracteriza. Note-se bem: “em ação”, pois não basta possui-las adormecidas, como algo à
disposição mas que não é usado. Pois não desempenharem a função que lhes é própria, mesmo
que as tenhamos, ou simplesmente não as possuir (como o restante dos animais) é exatamente a
mesma coisa. Um animal não-humano não age conforme a razão, pelo simples fato que não a
possui (é irracional); um homem que não a usa, ainda que a tenha, agirá tal como um bicho.

Pois é justamente na segunda parte (a partir do capítulo 6) da Ética a Nicômaco que


Aristóteles passará a examinar objetivamente em que consiste a eudaimonia e a identificará,
finalmente, ao exercício pleno das faculdades próprias ao homem, isto é, que fazem com que este
seja o que ele é: humano e não apenas um animal. Sabemos, diz Aristóteles, que o Soberano
Bem, que todos perseguem, é a felicidade. Que a felicidade congrega todos os fins tomados por si
mesmos, como condições necessárias de sua existência. Que ele é preferível a qualquer um
deles sozinho, e a qualquer outro bem que sirva como meio para alcançá-la. Mas, fora isso, o que
é a eudaimonia?

O argumento de Aristóteles foi muitas e muitas vezes objeto das mais diversas críticas.
Aristóteles afirma que, se um flautista, um escultor ou um artista qualquer possuem uma atividade
que lhes é própria (tocar flauta, esculpir, produzir um objeto artístico qualquer), é razoável supor
que, num nível de generalidade mais elevado, caiba examinar qual é a atividade própria do
homem. Assim, flautista, escultor e artista desempenhariam, antes de serem flautista, escultor ou
artista, uma atividade própria a um ser humano (ou ao menos deveriam desempenhá-la, claro).
Essa primeira passagem não é óbvia, mas é razoável na medida em que, como vimos, Aristóteles
havia, no De Anima, mostrado quais faculdades estão presentes tanto nos animais quanto no
homem, e quais são privativas deste. Dessa forma, embora brusco, o argumento pode ser
completado recorrendo-se a certo conjunto de propriedades que só estão presentes no homem e
que o especificam. Como Aristóteles identifica essas propriedades com um conjunto de

30
capacidades próprias ao homem – notadamente, as funções teorética e deliberativa do intelecto,
pelo que o homem é capaz de ciência e de conhecimento e ação conforme o bem –, o uso efetivo
dessas capacidades deverá ser aquilo que lhe oferecerá sua marca característica, definindo sua
humanidade.17

A segunda passagem do argumento de Aristóteles é a seguinte: se há uma atividade


própria ao homem, então realizar efetivamente essa atividade é o bem próprio do homem. É
preciso tomar muito cuidado com o argumento, evitando afirmar que Aristóteles está dizendo
aquilo que ele, de fato, não está querendo dizer. É óbvio (e a Ética a Nicômaco o afirma
claramente no capítulo 6 do livro I) que o ser humano compartilha, com os vegetais e demais
animais, uma série de atividades, na medida em que é um ser vivo e dotado de sensibilidade. O
bem para o homem deverá consistir em permitir a realização dessas atividades, também e entre
outras, mas – eis o ponto crucial – não exclusivamente. É bom para um animal (humano ou não),
por exemplo, alimentar-se ou sentir. É mau – porque se trata de uma privação – a cegueira num
animal que estaria destinado por natureza a enxergar. Ser capaz de realizar essa atividade é, crê
Aristóteles, bom para ele, mau caso contrário, pois não está realizando sua natureza. O exercício
da vida racional, agora focalizando o homem, acrescenta, a esse bem propriamente animal (ou
mesmo vegetal), um elemento a mais. Pois é justamente o exercício da vida racional aquilo em
que consistirá o bem propriamente humano, ainda que o bem humano seja mais do que isso. O
bem humano engloba as atividades do ser humano na medida em que é um ser vivo e em que é
um animal. O bem propriamente humano (a palavra “propriamente” é a chave) é aquele que
caracteriza este animal (homem) por oposição aos demais, e que consiste, diz Aristóteles, em
viver um certo tipo de vida, “isto é, numa atividade da alma e nas ações acompanhadas de razão”
(Et. Nic. I. 6, 1098a12).

Isso porque o homem deixaria de ser aquilo para que a natureza o destina se não
exercesse essa capacidade. Tal como a cegueira ou a prisão são males para aqueles que, por
natureza, deveriam ver ou poder movimentar-se, não exercitar a razão, no seu duplo uso (teórico
e prático) é um mal para o homem, que o reduz à condição de mero animal. A contrario sensu,
exercitá-la é alcançar o bem propriamente humano. O argumento de Aristóteles (Ética a Nicômaco
I, 7, 1097b22-1098a20) para identificar a atividade correspondendo à função propriamente
humana com a felicidade é complexo e merece uma análise detalhada, pois é crucial em seu
argumento. Examinemos com cuidado.

17
Costuma-se objetar que Aristóteles teria cometido a falácia de considerar que o todo deve ter
características diversas das partes (o que é tão falacioso quanto acreditar que o todo seja a simples soma
das partes), na medida em que se pergunta, na Ética a Nicômaco, se, tendo os diversos órgãos do corpo
humano suas atividades próprias, não seria necessário supor uma atividade própria ao homem como tal.
Uma coisa, afirma-se, não implica a outra, pois a atividade “própria” do homem poderia ser apenas o
somatório das atividades das partes. Mas se acompanharmos o movimento do texto veremos Aristóteles
retomar o argumento do De Anima: a atividade própria do homem tem de ser algo que é desempenhado
por uma faculdade apenas nele presente, o intelecto.

31
O primeiro passo é encontrar a função própria do ser humano. Pode parecer estranho à
primeira vista, pois flautas e agulhas possuem funções, mas falar numa função própria do ser
humano é um tanto estranho. Mas ocorre que podemos dizer que seres humanos treinados para
determinadas atividades podem desempenhá-las, pura e simplesmente, ou podem, também,
desempenhá-las bem. Tome-se um músico. Um músico pode tocar. Mesmo uma pessoa que não
é música pode “tentar” tocar algo numa flauta ou numa cítara. Entre simplesmente estar tocando,
e tocar bem, há uma diferença. Pois a “função” do músico é tocar, e pode, portanto, ser
desempenhada bem. Agora, num grau maior de generalidade – não do músico ou do carpinteiro –
qual a função própria do homem? Pois é claro que a atividade bem executada do flautista consiste
e depende da atividade particular que desempenha.18

Pois bem: se olhos, braços, carpinteiros e músicos têm atividades próprias, características,
que podem ser desempenhadas bem, qual é aquela própria do homem? Poderia acontecer que
ele não tivesse função alguma peculiar, ainda que o conjunto dos órgãos e faculdades que o
compõem tenham, cada uma por si. E, em particular, cumpre lembrar que o todo não é
necessariamente a soma das partes. Ora, dado que meramente viver é algo compartilhado com
plantas e animais, essa atividade não pode ser aquela propriamente humana. O mesmo vale para
a percepção sensível. Resta aquela que é a parte da alma humana por excelência: a razão. Logo,
se há uma atividade propriamente humana, só pode ser aquela que expressa a razão ou, no
mínimo, a requer.

Seja, então, um citarista. Sua função própria, enquanto citarista, é a mesma, enquanto
gênero, daquela de um bom citarista. Ambos não se distinguem por tocarem cítara – nisso, a
atividade característica é a mesma: citaristas tocam cítara, não necessariamente bem ou mal –
mas por tocarem-na bem ou mal. A função de ambos, no sentido da atividade que lhes é
característica é, portanto, a mesma, ainda que desempenhada de modo diverso. Ora, se a função
humana é viver certo tipo de vida, que consiste, em última instância, numa certa atividade da alma
acompanhada de razão, segue-se que, analogamente à diferença entre tocar cítara e tocar bem é
aquela que distingue um citarista de um exímio citarista, o desempenho dessa função bem
caracterizará o homem excelente.19

Ora, finalmente, o que é um virtuose? É justamente alguém que realiza sua atividade (ou,
ao menos, é capaz de realizá-la, no que se refere às capacidades técnicas) com excelência.
Analogamente, o “virtuose” humano será aquele que realiza sua atividade própria com excelência.
Cada atividade própria é realizada bem quando sua realização expressa a virtude. Logo, o bem
propriamente humano é (i) uma atividade da alma, específica do ser humano (não a nutrição, não
a percepção sensível) e (ii) que expressa a virtude (isto é, não viver humanamente simplesmente,

18
Aqui e nos tópicos a seguir baseei-me na interpretação de Irwin (1985: 303 e segs.).
19
Essa é a interpretação de Irwin (1985: 306-7), que reproduzo aqui.

32
não simplesmente tocar cítara, mas viver uma vida acompanhada de razão). Viver bem, para um
ser humano, é viver virtuosamente, isto é, viver conforme aquilo que é mais propriamente
humano: numa atividade que exprime a razão.

Assim, dizemos que somos felizes, para Aristóteles, se conseguimos ser aquilo que somos
– se a vida que levamos é aquela que um ser humano deveria e poderia levar, exercendo as
faculdades que lhe são próprias e não vivendo uma vida em que estão privadas de atualizarem-
se. Noutras palavras, Aristóteles identifica o Bem Supremo com a eudaimonia e esta com o
exercício da atividade própria do homem. Não a exercer é não ser um homem, ou ser menos que
um homem, pois não alcançamos aquilo que poderíamos ser. Essa “frustração” das expectativas
da natureza é uma privação, uma interrupção do próprio desenvolvimento natural do homem. A
vida social, como veremos, serve, em última instância, para permitir que o homem exercite suas
faculdades próprias e se torne, assim, aquilo que ele deve ser.

A função da vida social

Vimos que a política (como ciência) deve mostrar qual o fim supremo das ações humanas.
É ela que indica o fim último de qualquer associação, cujos fins são sempre menos gerais e mais
particulares em comparação com aquela sociedade natural dos homens cuja finalidade é a mais
geral e mais comum a todos. Ora, dirá Aristóteles, cabe à política explicar como é possível tornar
os homens capazes de ações nobres e bons (Et. Nic. I, 1, 10, 1099b30), isto é, mostrar como é
possível que levem uma determinada vida. Compete a ela, portanto, mostrar como os homens
podem, em sociedade apenas, exercer plenamente uma vida guiada pela razão. A função da
política, como disciplina, portanto, é examinar como é possível encontrar os meios socio-
institucionais para propiciar aos homens uma vida propriamente humana. Não uma vida qualquer:
Aristóteles formula um padrão bastante exigente. Não basta que o homem viva, genericamente, a
vida de um homem. É preciso que ele a viva da melhor maneira como lhe é possível viver. Essa
expressão, que aponta para um máximo de perfeição, designa aquilo que Aristóteles entenderá
por “excelência”, isto é, o grau mais alto possível de perfeição no exercício dessa atividade que
caracteriza o homem e o distingue dos demais animais. “Excelência” ou, como em geral se
costuma traduzir o termo aretê, “virtude”.

Assim, dirá Aristóteles,

Já que a eudaimonia é uma determinada atividade da alma de conformidade com uma


virtude perfeita, cabe investigar a virtude, pois talvez assim poderíamos investigar melhor a
respeito da eudaimonia. Ora, parece que o verdadeiro político é aquele que se tem
dedicado a ela, pois deseja tornar seus cidadãos bons e obedientes às leis. Temos como

33
exemplo deles os legisladores dos cretenses e dos lacedemônios, e alguns outros que
foram assim (Et. Nic. I, 13, 1102a4-10).

Portanto, o político deverá conhecer a estrutura do homem, digamos, “conhecer sua natureza”.
Não “conhecer a natureza humana”, como se costuma dizer, na medida em que se pretende agir
com astúcia política e, em geral, manipular os indivíduos para obter aquilo que se quer num jogo
de poder. “Conhecer a natureza humana” tem aqui um peso fortemente normativo. É,
fundamentalmente, saber aquilo que um homem deve vir a tornar-se, o estágio derradeiro de seu
desenvolvimento, se todas as condições necessárias estiverem presentes, se for possível que
chegue a tanto. Portanto, qualquer um que pretenda tornar-se legislador, deliberar numa
assembléia ou ocupar um cargo numa das magistraturas (na Grécia, eram os cargos públicos
preenchidos por sorteio), deve conhecer aquilo que deve pretender tornar seus cidadãos. Isso
supõe que, como o médico, conheça a fundo com o que está lidando.

Noutras palavras, a política é, para Aristóteles, a ciência que deverá responder a uma
dupla questão. A primeira delas é apontar a finalidade para que a sociedade existe. Vimos que
essa função da sociedade consiste em permitir que o homem atinja – graças a ela – seu pleno
desenvolvimento. A segunda questão é oferecer um padrão para a formulação daquilo que
chamaríamos hoje de “políticas e instituições”. Esse padrão, mais uma vez, é apenas aquele
estado de pleno desenvolvimento que o homem pode atingir. Concretamente isso significa permitir
que as faculdades superiores do homem desenvolvam-se (exercendo suas funções) por completo
e no mais alto grau de perfeição (a virtude consistindo justamente nisso). Concretamente, essas
faculdades, como vimos consistem na capacidade de atingir conhecimentos teóricos pelo
exercício da razão, ou de calcular as conseqüências das ações e ponderar seus efeitos tendo em
vista a idéia do bem.20

Da ética à política

O último capítulo da Ética a Nicômaco (X, 9) costuma ser lido como uma transição da ética
para a política. Lembremos que o núcleo da Ética a Nicômaco havia sido a discussão das diversas
virtudes, do modo como o comportamento é determinado (ou não) por essa disposição que revela
uma excelência das atividades que caracterizam particularmente o homem. Era assim que, por
exemplo, o livro V examinava com cuidado a justiça, a face propriamente social, expressão
objetiva da virtude; os livros VIII e IX, a amizade, fundamento da vida em comunidade, e assim por

20
Há, evidentemente, um caráter “reflexionante” na ética de Aristóteles, pois o uso excelente da razão tendo
em vista fins é, ele próprio, fim na medida em que é seu exercício o que torna o homem plenamente
humano. De certo modo, em Aristóteles a posse das virtudes tem em vista justamente (e não poderia ser
diferente) nada mais do que a própria posse das virtudes. É o que evita que se entenda a eudaimonia
como meio para atingir determinado fim outro que ela mesma. Ela é, por assim dizer, meio para atingir a si
mesma, fim em si mesma, portanto.

34
diante. Mas qual é o papel da ética? Noutras palavras, de que serve escrever um livro – ou
melhor, proferir um conjunto de aulas, em seguida consolidadas num conjunto de textos – sobre
como o homem deve comportar-se, se, afinal, para tanto exige-se uma educação do desejo?
Aristóteles repete diversas vezes no livro I da Ética a Nicômaco: habituar-se, ser habituado a agir
de determinada forma, de tal forma a fazê-lo com naturalidade ao atingir a idade adulta. Se, afinal,
é graças à disciplina do caráter por que passa o indivíduo quando jovem, e não por um
aprendizado estritamente intelectual do que seja a virtude, que utilidade há, digamos assim, seguir
um “curso de ética”? Pois os incontinentes não são justamente aqueles que, conhecendo muito
bem o bem, agem como embriagados pronunciando vacuamente versos de Empédocles, sem
consciência do que fazem e dizem?

Na realidade, a ética servirá, em primeiro lugar, para aqueles que, já sendo “em si”
virtuosos, se tornem agora virtuosos “para si”: para que “tomem consciência” da virtude que guia
suas ações sem que dela estejam plenamente cientes. Nesse sentido, a ética terá um papel
fundamentalmente exortativo daqueles que já possuem por natureza um bom caráter e são
dotados de “nobreza moral”. Para a grande maioria, contudo, a ética de nada serve, sendo
inteiramente impotente para exortá-los a ações moralmente nobres. A grande maioria dos homens
não é capaz de ser tocado de maneira nenhuma pela “dignidade moral” (para traduzir um termo
difícil: kalokagathia) nem se abstém de atos vergonhosos por causa de sua baixeza. A grande
maioria, diz Aristóteles, obedece apenas ao medo e ao temor de castigos (Et. Nic. X, 9, 1179b10-
15). Tais homens são dominados pela paixão, perseguem suas próprias satisfações e os meios de
realizá-las, evitam as dores opostas e não possuem qualquer idéia do que é nobre moralmente.
Para tais indivíduos – repetindo: a grande maioria – nenhum argumento será capaz de mudar os
hábitos neles inveterados. Argumentos não ajudam, nesse caso, nem, aliás, ter nascido com uma
“boa natureza”, um temperamento predisposto à virtude, pois é preciso ainda, mesmo tendo todas
as condições “naturais”, que ela venha a ser desenvolvida nele, como uma semente num solo fértil
(Et. Nic. X, 9, 1179b25-27). É condição necessária, claro, mas não suficiente.

Como, então, pensar que esta ética venha a ter qualquer efetividade? Estamos, neste
ponto, num círculo vicioso? Para uma vida ética, além das condições naturais (um temperamento
predisposto, com o qual nascemos), é preciso uma educação do caráter. Ora, para garantir a
educação do caráter não há outra saída, se o indivíduo não pode “auto-educar-se”, pois o
conhecimento da virtude não garante que o indivíduo se comporte moralmente, senão apelar para
mecanismos de coerção social. A paixão não cede ao argumento, mas à coerção (Et. Nic. X, 9,
1179b27-30). Evidentemente, portanto, é apenas vivendo numa sociedade organizada conforme
leis e instituições apropriadas para o florescimento da virtude que o indivíduo se desenvolverá
moralmente. Essa é, finalmente, a saída do paradoxo: é apenas mediante uma educação pública
e um certo modo de vida regulados por leis e instituições que se poderá formar o caráter, tornando
um comportamento moral, difícil de ser seguido, sobretudo quando se é jovem, algo habitual e que
se segue sem sofrimento. A condição de efetividade da ética, portanto, é a política. A vida moral,

35
vimos, é apenas a atualização de uma potencialidade propriamente humana. Ser moral é ser
humano plenamente. Mas uma vida propriamente ética pressupõe a política, e isso sob um duplo
ponto de vista.

Em primeiro lugar, sem uma sociedade organizada de maneira adequada o indivíduo não
poderá ser habituado a agir conforme a plena natureza humana. Por melhor, por mais bem
predisposto que seja um indivíduo, ninguém nasce naturalmente virtuoso. Sob esse ponto de vista
Aristóteles e Rousseau não poderiam ser mais opostos. Não é um certo tipo de sociabilidade –
uma sociabilidade do artifício e da aparência, da máscara, como em Rousseau – que torna o
homem perverso; ao contrário, é algo como uma “tendência natural” em todos a seguir as paixões,
sempre muito mais sedutoras e fortes, tendência essa que apenas uma vida social adequada
poderá reverter para seu correto rumo. Numa sociedade perversa não é estranho que sejam
produzidos sistematicamente indivíduos perversos. São as leis e instituições de determinada
sociedade que conduzem, ou não, uma sociedade a habituar os indivíduos a lidar racionalmente
com suas paixões e seus desejos. Sem essa formação emocional, sem esse “habituamento” não
haverá, ao final, um indivíduo capaz de resistir-lhes e redirecioná-los na direção correta. Não
haverá, a bem dizer, homens plenamente humanos.

O segundo aspecto, mais evidente, é que não basta que a sociedade eduque
emocionalmente seus jovens, preparando-os para uma vida adulta virtuosa. É preciso garantir-
lhes que viverão conforme leis que permitem e mesmo alimentam sua virtude. É por isso, diz
Aristóteles, que instituições e leis justas são necessárias também para que a virtude seja mantida
na vida adulta. Se as instituições contrariarem uma educação virtuosa é de esperar-se que os
homens terminem por reverter ao vício. Mais ainda: a maior parte dos homens, mesmo recebendo
uma educação adequada, obedece muito mais à possibilidade da sanção do que à razão, a
castigos do que ao bem. Como garantia do comportamento moralmente adequado faz-se
necessário, portanto, um conjunto de instituições legais que bloqueiem a possibilidade mesma do
desvio. Que, por outro lado, realimentem permanentemente a vida virtuosa.21

Instituições sociais dessa espécie terão, infelizmente, de deixar de lado as particularidades


individuais. Os indivíduos são diferentes, e um tipo de educação próprio para um deles pode ser
impróprio para outro, e da mesma forma que o professor de pugilato oferece um treinamento
individualizado para cada aluno, o ideal seria educar cada indivíduo conforme suas características
particulares. No interior da família isso é possível, pois o pai, diz Aristóteles, pode levar em conta
as particularidades de seus filhos ao educá-los. No âmbito propriamente social é preciso encontrar
aquilo que vale para todos os indivíduos, tomados na sua generalidade. Ora, é óbvio que, se a

21
O regime política que Aristóteles defenderá deverá, portanto, permitir que o indivíduo controle suas
paixões. Trata-se, portanto, de construir meios institucionais que permitam e incitem a uma vida de
autocontrole e, para empregar uma feliz expressão de Renato Janine Ribeiro, à “repressão de algo que
passa por horrível: o desejo” (2000: 16), que é justamente aquilo que a aristocracia consegue e de que a
plebe (os “muitos”, os polloi) carece. Donde sua rejeição da democracia, como veremos adiante, entendida
como o regime do desejo irrefreado e irracional, contra os regimes da virtude (Ribeiro 2000: 13).

36
função legislativa é elaborar leis que produzam uma sociedade cujos indivíduos atingem o padrão
ético que vimos anteriormente, é preciso que os legisladores possuam um conhecimento moral
adequado – não meramente empírico, de algumas regularidades casuais entre fenômenos, cujas
causas por trás deles lhes são desconhecidas. É apenas, portanto, conhecendo o que é o homem,
como ele deve ser, que se pode formular um projeto político. Pois a vida social, como vimos
anteriormente, de nada mais serve do que para permitir que o homem atinja esse padrão de
humanidade plenamente desenvolvida. O legislador, portanto, deve conhecer as bases da ética,
que se situam, como vimos, no que poderíamos denominar uma “análise biopsicológica” do
homem.

Do padrão ético examinado, portanto, segue-se um projeto político. Mas é crucial – e este
é, a meu ver, uma das contribuições mais importantes de Aristóteles, freqüentemente esquecida –
que de saber qual tipo de sociedade é a melhor se saiba como torná-la real. A afirmação de
Aristóteles é surpreendente sob vários aspectos. O primeiro alvo, e explícito, é a sofística, que
oferecia como mercadoria comprável o ensino de como alguém pode tornar-se um bom político
(isto é: é possível ensinar alguém a tornar-se um político hábil). A experiência mostra que a
política não é uma técnica, como a medicina ou a pintura, por exemplo, que pode ser transmitida
de professor a aluno. Não é um conjunto de procedimentos que, se seguidos, produziriam
determinado resultado. Não que a retórica, técnica que os sofistas se especializaram em ensinar,
não tenha nenhuma utilidade – Aristóteles escreveu uma Retórica e a reconheceu como técnica
útil para a persuasão. Ocorre que a sagacidade política só aparece após uma ampla experiência
dentro da vida política, que nos faz esperar que, sob certas circunstâncias, em certas condições,
os homens (na vida pública) reajam de determinada maneira, e tudo isso no plano apenas do
provável (Et. Nic. X, 9, 1180b28-1181a9). A única maneira de desenvolver as habilidades políticas
de um Péricles, o modelo ateniense do grande político, é submeter o jovem à participação na vida
pública. É o que explica que, os sofistas, pretendendo ser capazes de ensinar alguém a tornar-se
um bom (= hábil) político, não sejam nem eles próprios, nem seus filhos, bons políticos. Se tal
habilidade fosse ensinável eles deveriam ser os primeiros – e não os últimos, como costuma
ocorrer – a possui-la.

Esse é um dos pontos recorrentes em toda a obra de Aristóteles, e remete também,


surpreendentemente, para uma crítica de algumas das pretensões da “ciência política”. É bem
verdade que, para alguns, a ciência política – um estudo empírico sobre o funcionamento efetivo
das instituições e o comportamento real (não-normativo, bem entendido) dos agentes políticos –
deve ser vista como uma “ciência neutra”, que não possui nem pretensões normativas
(geralmente deixadas, com certo desprezo, para a “filosofia política”), nem pretensões
propriamente práticas (deixadas, estas, para a prática política efetiva). Mas há quem considere
que o conhecimento do funcionamento do político engendre a habilidade da prática política eficaz.
Nada mais falso, dirá Aristóteles. Um bom político, capaz de efetivamente implementar um projeto
de sociedade, pode ignorar os resultados teóricos a que chega o estudo empírico da política. A

37
habilidade política consiste fundamentalmente em ser capaz de agir estrategicamente, não em ser
capaz de explicitar como se age ou costuma agir no espaço político. Daí porque muitos “bons
diagnósticos” políticos podem ser inteiramente incapazes de gerar práticas políticas eficazes. Um
excelente cientista político, capaz de descrever (ou até predizer) a conjuntura em determinado
momento pode ser inteiramente incapaz de fazer política, vendo suas melhores intenções sempre
sistematicamente frustradas. Ser hábil para agir politicamente não implica ser capaz de descrever
as características dessa habilidade; ser capaz, eventualmente, de descrever os comportamentos
políticos não implica ser capaz de agir com eficácia política.

O segundo alvo, agora implícito, é Platão. Ao menos na República (diversas passagens


das Leis parecem apontar para algo mais refinado), Platão concebia como suficiente para a ação
política o conhecimento, pelos agentes, do projeto político ideal a ser implementado. Noutras
palavras, e é seguramente esta uma das cruzes do platonismo, não basta saber o que fazer, é
preciso saber (e isto não se ensina) como fazer. Um projeto político, por melhor que este seja, por
mais adequado àquilo que o homem é, não acarreta sua automática implementação. É bem
verdade que qualquer um que vá a público e proponha um programa político está pretendendo
que esse programa se torne realidade. Pretende, assim, como diz Bobbio, persuadir os demais
interlocutores do valor do que está propondo e, particularmente, que esses ajam conforme aquilo
que propõe. Mas conhecer o melhor não implica agir conforme o melhor, essa é a tese central do
livro VII da Ética a Nicômaco. Dessa forma, um político bom (= um político com um bom projeto)
não é o mesmo que um bom político (= um político hábil). E, o que é pior, ainda que um bom
projeto político possa ser ensinado, habilidade política não se ensina: se aprende participando
dela.

Há, portanto, uma virtude própria daquele que age na vida pública e é capaz de
implementar um bom projeto político. Essa virtude recebe o nome de phrônesis, “sabedoria
prática” ou, como se costuma traduzir desde os latinos, “prudência”. Tal como a eudaimonia não é
propriamente “felicidade”, phrônesis tampouco é inteiramente “prudência”, no nosso sentido atual.
Entendemos por “prudência”, atualmente, antes uma certa cautela no agir, de modo a evitar
conseqüências indesejadas. O prudente, para nós, é também aquele que sabe esperar, e é
também o previdente (no nosso sentido), o que se previne contra um mal futuro agindo agora.
Pois o “prudente” aristotélico não é apenas isso, embora tampouco deixe de sê-lo. Aquele que
possui a phrônesis é antes alguém que é capaz de, ciente do que é melhor para ele e para os
homens (Et. Nic. VI, 5, 1140a24-1140b19), saber calcular como implementar esse bem. O modelo
de homem “prudente” de Aristóteles é Péricles, aquele que (i) é capaz de ver o que é o melhor
para eles e para os demais cidadãos e (ii) é capaz de fazê-lo, governando um Estado. Aliás, diga-
se já, a phrônesis não é outra coisa senão uma virtude, ou seja, o estado de excelência de uma
capacidade propriamente humana: a capacidade de calcular conforme a fins que, neste caso, são
o bem propriamente humano.

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Mais tarde, Maquiavel denominará a essa capacidade de implementação de uma política,
nos Discorsi, bem entendido, de virtù. Mas a “virtuosidade” de Maquiavel difere fundamentalmente
daquela de Aristóteles. É certo que Aristóteles considera que a ação prática e a ação poiética
(fabricação de objetos) diferem fundamentalmente por seus objetivos últimos: na segunda, a
finalidade perseguida é fabricar, ao passo que, na primeira, a finalidade é a própria ação
praticada. Ela é fim em si mesma. Ser, portanto, prudente no sentido aristotélico é saber como
proceder, e como fazer para assim proceder. Para Maquiavel haverá também uma virtude do
“saber como fazer”. Mas aqui a semelhança entre ambos alcançará seu limite. Pois Maquiavel, ao
menos nos Discorsi, pensa a ação política, à diferença de Aristóteles, como fundamentalmente
poiética. Ela deve servir para fabricar e manter a existência de instituições criadas pela ação
política. Sem dúvida, essas instituições devem garantir, por sua vez, o exercício de ações
virtuosas, que para ele, nessa obra que sob diversos aspectos se distancia de O Príncipe,
consiste na dedicação à vida ativa na República. Essa identificação entre reiterada reprodução e
manutenção das instituições políticas, de um lado, e a ação política, de outro, está ausente de
Aristóteles. Nele vemos as instituições como permitindo a ação virtuosa, mas não como
constituindo-a. Em Maquiavel, agir virtuosamente é sustentar a República, um artefato
institucional; em Aristóteles, é simplesmente agir, as instituições sendo apenas a estrutura legal
que permite tal ação, ou mesmo a proporciona. Fabricadas, elas devem servir à ação, e não se
tornar uma criatura cujo criador deve permanentemente reparar seu artefato das investidas do
tempo.

O bom cidadão, portanto, é o bom homem, o homem pleno. Estamos, assim, diante de
uma face propriamente “psicológica” do padrão ético. Ele consiste, repetimos à exaustão, “no
pleno desenvolvimento humano”, no “exercício efetivo das faculdades próprias ao homem”, na
realização daquilo que o homem pode e, portanto, deve ser. Esse salto do ser ao dever ser, como
já pude salientar, será objeto de crítica pela filosofia posterior. Afinal, por que eu deveria escolher
desenvolver todas as faculdades que poderia fazer florescer? Por que uma sociedade deveria
buscar o “homem pleno” e não, por exemplo, o prazer? A única resposta, dirá Moore nos Ensaios
Éticos, é apenas a re-afirmação desse imperativo: ou um círculo vicioso, ou uma petição de
princípio. Do ser – que o homem pode desenvolver suas potencialidades plenamente, sob certas
condições – ao dever ser – que ele o deva fazer – há um salto a que se convencionou chamar de
“falácia naturalista”. Kant, algumas décadas antes, argumentará num sentido semelhante contra a
moral da eudaimonia.

Guarde-se a crítica. Como quer que seja, ainda que saibamos que o homem se distingue
dos animais por possuir uma faculdade superior, a “razão”, que possui dois usos diversos, um
prático e um teórico, ainda não podemos ver com clareza que tipo de homem, socialmente
falando, emergiria desse pleno desenvolvimento. A face, agora, deve ser não mais
psicoantropológica, mas propriamente social. Um homem pleno mantém que tipo de relações com

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outros indivíduos numa sociedade? Diante de tudo o que vimos, o que é um bom cidadão?
Retornemos à Política.

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