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CAP.

I – VISÕES GERAIS

1.1- O QUE É UMA TEORIA?

Ao descrever as origens políticas e económicas da sociedade do século


XX, Karl Polanyi pôs em destaque um facto novo na história da civilização
ocidental: uma paz centenária. Para Polanyi, a existência de um período
de paz relativa, desde a queda de Napoleão até a Primeira Guerra
Mundial, foi um acontecimento notável, decorrente de dois factores. O
primeiro foi a existência de um consenso diplomático que favorecia um
“equilíbrio de poder” entre grandes nações, o chamado “concerto
europeu”. O segundo e mais importante factor foi, na visão do autor, a
existência do interesse pela paz que era subjacente à autuação da
comunidade financeira internacional. Contudo, a observação de Polanyi
ecoa uma preocupação muito mais antiga, que perpassa o estudo da
política em geral e que está na base do estudo das Relações
Internacionais: a preocupação com o fundamento político de uma
ordem social pacífica no mundo.

Com efeito, desde o tempo da antiguidade clássica desenvolve-se a


preocupação com este tema – o do fundamento da ordem política
isenta do conflito violento. Sócrates, por exemplo, condena os
ensinamentos dos poetas, que celebram em seus cantos o
comportamento dos deuses em guerra. “Todas as batalhas dos deuses
nos poemas de Homero são histórias às quais não se deve dar acesso à
Cidade”, insiste o filósofo ao tratar do tema da política.

A aquisição da virtude e o conhecimento da ideia do bem são


apontados por Sócrates e Platão como alternativas ao que apregoavam
as narrativas mitológicas. E, com Aristóteles, o problema dos destrutivos
conflitos entre as facções torna-se um foco central de reflexão.

A partir desses autores, a determinação do fundamento político da


ordem social a salvo da decadência pela destruição violenta passa a
ser, em grande parte, o mote da Filosofia Política e da Ciência Política.
Mas, enquanto a Ciência Política focaliza as condições de exercício do
poder e dos processos políticos relativos a um ou mais tipos de
comunidade política (a democracia, a aristocracia, a monarquia, a
“constituição de Esparta”, a “constituição de Roma”, etc.), a tradição
intelectual que anima o estudo das Relações Internacionais procura
investigar a natureza das relações políticas entre comunidades distintas.
É em grande parte por isso que Tucídides (465-395 a.C.), autor da história
da Guerra do Peloponeso, é comumente invocado como o grande
precursor do estudo das Relações Internacionais.

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Não obstante a antiguidade do tema, curiosamente, a disciplina
académica conhecida como “Relações Internacionais” é a mais recente
dentre as Ciências Sociais. Sendo considerado por muitos autores uma
sub disciplina da Ciência Política, o estudo das Relações Internacionais
se desenvolveu no século XX, a partir do período entre-guerras. A primeira
cátedra de Relações Internacionais foi criada em Aberystwyth, no país
de Gales, em 1919. Outros centros se desenvolveram em seguida, na
London School of Economics, em 1923, e na Universidade de Oxford, em
1930. Mas foi nos Estados Unidos, após a Segunda Guerra Mundial, que a
disciplina realmente floresceu, a ponto de ficar conhecida como “uma
Ciência Social americana”.

De um modo geral pode dizer-se que a teoria é uma expressão, que se


pretende coerente e sistemática, do nosso conhecimento acerca do
que designamos por realidade. A teoria existe para “dizer” o que
sabemos ou julgamos saber sobre esta realidade, para reunir e
sistematizar os diversos elementos do nosso conhecimento. Como este
último é um processo caracterizado por uma dinâmica de certa forma
circular, a teoria não é apenas a conclusão deste processo, mas serve
igualmente de quadro ao seu contínuo desenvolvimento.

A função da teoria consiste na explicação da realidade, isto é, em


mostrar porque é que o objecto de que ela se ocupa é tal como é e não
de outra maneira; dar um sentido aos diversos elementos,
nomeadamente, relações de causalidade. A esta função de explicação
pode ser ligada uma função de previsão, consistindo esta em prever a
evolução futura da realidade que é o objecto da teoria.

Se não nos quisermos quedar numa concepção ingénua e simplista da


teoria, é necessário precisar que esta última não explica a realidade em
toda a sua complexidade, mas antes uma determinada abstracção
desta, isto é, certos factos e aspectos considerados importantes. Isso
significa que a teoria implica uma actividade de selecção e ordenação
de fenómenos e de dados actividade sem a qual nenhuma teoria seria
possível. Todo o conhecimento estrutura o real e implica assim uma certa
“construção” do seu objecto, porque ele não opera sobre factos brutos,
mas sobre factos escolhidos, percebidos, filtrados, ordenados através de
estruturas cognitivas e de quadros conceptuais. Todo o conhecimento
manifesta assim uma determinada dialéctica entre sujeito e objecto
(Piaget, 1970).

O carácter relativo da teoria decorre das actividades de selecção, de


ordenação e de explicação que ela implica, isto é, a teoria é
condicionada por diversos factores, tais como, o interesse gnoseológico

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do investigador (este interesse nem sempre é consciente), o quadro
sociocultural no qual o investigador e, de uma maneira geral, a
investigação se inserem, assim, como o processo, os instrumentos de
análise e os paradigmas que são adoptados (Habermas, 1973; Kuhn,
1972).

Podemos distinguir, actualmente de forma esquemática, três orientações


fundamentais da teoria que tem por objecto o estudo da realidade
social. Cada uma destas orientações baseia-se numa concepção
diferente do processo de conhecimento que convém ao estudo desta
realidade (Narr, 1969).

Em primeiro lugar, a orientação representada pelas teorias essencialistas,


cujo objectivo é a revelação da essência das diversas entidades sociais,
seja através de uma reflexão filosófica que se situa ao nível de um
conhecimento racional fundado numa racionalidade supra-empírica,
seja através de uma compreensão intuitiva. Esta revelação da essência
das entidades sociais é frequentemente acompanhada pelo evidenciar
de um dever-ser que, de resto, essa revelação por vezes fundamenta. Daí
a natureza frequentemente normativa das teorias essencialistas das
relações sociais, que indicam qual é a melhor forma de organização
social ou, pelo menos, quais os valores que devem guiar a acção.

Em segundo lugar, a orientação teórico-empírica, para a qual uma teoria


é um conjunto coerente de preposições sujeitas a verificação, pela
confrontação com os factos, sendo essa confrontação caracterizada
pelo um controlo inter subjectivo. O objectivo de tal teoria não é
descobrir a essência das coisas, mas apresentar um conjunto de
preposições gerais que permitam explicar os diversos comportamentos,
interacções e processos sociais, ou antes, explicar os dados que a eles
digam respeito. Para atingir tal objectivo, estas teorias implicam uma
descrição e uma classificação desses dados. Por outro lado, visam mais
ou menos directamente uma previsão dos fenómenos que elas explicam.

Estas teorias derivam, antes de mais, de um processo analítico hipotético-


dedutivo e procuram com isso aproximar-se das teorias das ciências
exactas ainda que encontrem enormes dificuldades no plano do
“reconhecimento”, isto é, da operação que consiste em referenciar, de
uma maneira precisa, os seus conceitos aos fenómenos estudados
(Rapoport, 1958). Algumas, de entre elas, apelam igualmente a um
processo de compreensão intuitiva ou racional da significação interna
dos comportamentos sociais (de Bruyne et al., 1974).

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Em terceiro lugar, a orientação teórica que deriva de um processo
dialéctico-histórico, que aborda a sociedade como totalidade,
procurando revelar os seus antagonismos culturais e as suas contradições
e evidenciar, através de uma hermenêutica do sentido objectivo da
história, as leis dialécticas desta última. Nesta perspectiva, a teoria não
constitui apenas um instrumento de conhecimento, mas uma
consciência crítica da realidade social, fazendo, ela mesma, parte dessa
realidade, nomeadamente porque ela é indissociável de uma prática
social.

1.2 - NATUREZA E ENQUADRAMENTO DA TEORIA DAS RELAÇÕES


INTERNACIONAIS

O estudo das Relações Internacionais adquiriu identidade própria com o


desenvolvimento da Teoria das Relações Internacionais (TRI) no século XX.
O objecto da TRI é a “política internacional”. A TRI procura descrever os
fundamentos políticos relativos à estruturação da ordem internacional.

Como indica o estudo do potlach na Antropologia, as relações entre


pessoas de comunidades distintas, envolvendo o uso da força,
presumivelmente existiram desde os primórdios da história e entre os mais
variados povos. Mas as relações entre comunidades distintas nem sempre
existiram sob a forma de relações entre “estados territoriais” que formam
um sistema de unidades concebidas como soberanas e iguais entre si.
Esta forma institucional da política é eminentemente moderna.

De facto, foi com a celebração da Paz de Westphalia, em 1648, que se


consolidou a tendência, iniciada desde os séculos XII e XIII na Europa, de
territorialização da política. Foi com a Paz de Westphalia que se cristalizou
o sistema de estados territoriais, ou “ordem westphaliana”. Tal ordem é
constituída pelas relações estabelecidas entre estados territoriais
soberanos, isto é, entre organizações políticas, cada qual com
autoridade suprema sobre um território. A Paz de Westphalia consagrou
o princípio, adoptado desde a Paz de Augsburgo (1555), conhecido sob
a fórmula cujus regio eius religio (quem tem a região tem a religião), pelo
qual os príncipes adquiriram autonomia política para adoptar um credo
religioso de sua preferência em seu território. A política – que até então
se estruturava por outros meios, essencialmente independentes do
território, tais como laços de sangue e comunhão de valores religiosos –
passa a estar determinada pelo território, e portanto institucionalizada de
forma a ser possível distinguir entre a política “interna” (ao território),
regida pelas leis e pelos princípios religiosos autonomamente adoptados
pelo príncipe local, e a anarquia “externa”, vigente nas relações entre os

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estados. O corolário é que a soberania é territorial: não há autoridade
suprema fora dos territórios, e portanto tampouco existe qualquer
autoridade superior para regulamentar as relações entre os estados
territoriais.
Esta era uma situação nova. Na Idade Média, não existia soberania
territorial e portanto não havia política “internacional”. Nas palavras de
Holzgrefe:

“Para o observador casual, as relações entre imperadores, papas, reis,


arcebispos, duques, bispos, barões, cidades, universidades, guildas e
cavaleiros andantes podem aparentar ser relações internacionais. [...]
Contudo, seria erróneo supor que essas relações eram ‘internacionais no
sentido moderno da palavra, pois elas não ocorriam entre estados
soberanos territoriais, mas sim entre pessoas e corporações.”

Na Idade Média, portanto, a presença de uma comunidade num dado


território não significava a existência de uma autoridade suprema
exercida sobre uma área geograficamente circunscrita, nem tampouco
a distinção entre autoridade “interna” e “externa” ou entre o público e o
privado. É o que explica Spruyt:

“Ocupantes de um território espacial específico estavam sujeitos a uma


multiplicidade de autoridades superiores. Dada esta lógica ou
organização, é impossível distinguir entre actores conduzindo relações
‘internacionais daqueles envolvidos na política ‘domésticas operando
sob alguma hierarquia. Bispos, reis, senhores feudais e cidades assinavam
tratados e faziam a guerra. Não havia um actor ainda com um
monopólio sobre os meios de coerção pela força. A distinção entre
actores privados e públicos estava ainda por ser articulada.”

Em resumo, até o século XVII não havia um sistema de entidades políticas


(estados) exercendo autoridade suprema sobre territórios e detentoras
do monopólio sobre assuntos de guerra, o exercício da diplomacia e a
celebração de tratados. Estas condições e práticas institucionais se
consolidam no mundo a partir da Paz de Westphalia. Segundo Spruyt, a
nova configuração institucional da política resultou de dinâmicas
políticas e económicas estabelecidas entre grupos sociais na Europa a
partir do renascimento do comércio no século XI, e da competição
política e económica que desde de então se estabelece entre diversas
possíveis trajectórias de desenvolvimento institucional, tais como as ligas
urbanas, as cidades-estado e os estados soberanos. Tal competição,
segundo o autor, resultou na predominância de uma forma institucional
específica: a do estado territorial soberano. Ora, o estudo das Relações
Internacionais, calcado na elaboração da TRI, é o estudo dos fenómenos

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da prática política sob esta nova forma institucional, a da “ordem
westphaliana” surgida na Europa – ou “sistema internacional” – e suas
posteriores transformações.

Contudo, isto não quer dizer que as relações políticas entre pessoas de
comunidades distintas deixaram de existir a partir do século XVII, nem
que, antes dessa época, tais relações não eram objecto de estudo de
outras disciplinas ou foco de formas estilizadas de prática da política. O
que antecedeu ao estudo das Relações Internacionais – como disciplina
orientada para determinar o fundamento político das relações entre
pessoas de comunidades distintas – foi o chamado “direito das gentes”
(jus gentium).

Com o surgimento da “ordem westphaliana”, o direito das gentes acaba


se transformando em “direito internacional”. Finalmente, com o fracasso
do direito internacional em evitar as duas Guerras Mundiais no século XX,
ganha impulso a formação da TRI. É o que será tratado a seguir.

Aliás, só com a afirmação das Ciências Sociais a investigação científica


das relações internacionais conhece o seu verdadeiro desenvolvimento,
pois são esses novos conhecimentos que lhe permitem ir tratando não
apenas as questões tradicionais, mas também aspectos mais recentes
das relações entre “actores internacionais” que de algum modo tivemos
a oportunidade de analisar, o aparecimento de armas nucleares, a
bipolarização do sistema político internacional, a descolonização e
consequente explosão do número de Estados e dificuldades no
relacionamento entre os novos governos e as empresas multinacionais, a
tendência para o distanciamento entre países industrializados e países
em vias de desenvolvimento, etc. Não admira, por isso, que haja quem,
como o norte-americano G. Schwarzenberger, tenha analisado as
relações internacionais sob o estrito ângulo de visão da sociologia.

Produto de muitos trabalhos elaborados durante várias dezenas de anos,


com maior ou menor recurso à análise sociológica, que foram permitindo
exprimir, de maneira coerente e sistemática, o conhecimento que ia
sendo obtido das relações internacionais, foi-se formando o que se pode
denominar Ciência das Relações Internacionais. Com a sua parcela de
teoria, esta ciência deverá idealmente estar em condições não só de
“dizer” o que sabemos ou julgamos saber sobre a realidade a que se
aplica, para reunir e sistematizar os diversos elementos do nosso
conhecimento em matéria de relações internacionais, mas também de
dar um sentido aos diversos elementos constituintes do seu objecto,
estabelecendo um certo número de relações entre esses elementos, em
particular relações de causalidade, que deverão permitir alicerçar a

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realização de previsões, ou seja, de elaboração de conjecturas sobre a
evolução futura da realidade com que se trabalha.

Antes de olharmos mais de perto ao conteúdo da teoria que nos


interessa, temos de prestar alguma atenção ao seu enquadramento, já
que a teoria em ciências sociais – e a Ciência das Relações Internacionais
é deste ramo – apresenta especificidades que importa.

É de observar, em primeiro lugar, que, precisamente por a Ciência das


Relações Internacionais pertencer ao ramo das ciências sociais, a sua
teoria encontra-se, perante a das ciências exactas, na mesma posição
de inferioridade que as suas congéneres.

Com efeito, no caso das ciências sociais, a teoria não pode assumir a
natureza de conjunto de generalizações, dedutivamente ligadas entre si,
que possam ser demonstradas ou verificadas, ou de conjunto coerente
de proposições verificáveis e deduzidas de uma série de outras
proposições (postulados ou axiomas) admitidas como hipótese, que são
o que qualifica as ciências ditas exactas.

Isso não impede, porém, de se pretender, nas ciências sociais, elaborar


conjuntos (parciais, portanto) coerentes de proposições ou de
generalizações, cada um dos quais permita explicar determinado
número de fenómenos ou, pelo menos, forneça um quadro conceptual
que faculte a organização da investigação e a formulação de hipóteses
tendentes a esclarecer os fenómenos analisados. Iremos disso ter
exemplos nos estudos específicos que apresentar no âmbito da Teoria
das Relações Internacionais.

Essas construções têm, evidentemente, que obedecer às regras de toda


a construção teórica em geral. Ora, como se sabe, qualquer dos ramos
da teoria, por implicar sempre uma actividade de selecção e ordenação
de fenómenos e dados, têm de se resignar a não poder explicar a
realidade em toda a sua extensão, antes tende de limitar-se a uma
determinada abstracção da mesma, concentrando-se em certos factos
e aspectos considerados de especial relevância. Aliás, o conhecimento
em geral tem de estruturar o real e de implicar assim uma determinada
“construção” do seu objecto, por não operar sobre factos brutos, mas sim
sobre factos seleccionados, percebidos, filtrados e ordenados através de
estruturas cognitivas e de quadros conceptuais.

Observe-se, por outro lado, que não é forçoso que os teóricos dos vários
ramos de ciência recorram aos mesmos processos e instrumentos de
análise e a idênticos paradigmas. Não é de admirar, portanto, que os

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utilizados pelos cultores das Ciências Sociais sejam especialmente
diferentes daqueles que encontramos na maioria das outras ciências. E
até entre os cultores das Ciências Sociais se encontram divergências, que
poderão resultar do diverso quadro sociocultural em que desenvolvam a
sua investigação.

Referindo-se ao que atrás ficou escrito, podemos definir a teoria das


relações internacionais como um conjunto coerente e sistemático de
proposições que tem objectivo esclarecer a esfera de relações sociais
que nós denominamos de internacionais. Uma tal teoria deve, deste
modo, representar um esquema explicativo destas relações, da sua
estrutura, da sua evolução e, nomeadamente, evidenciar os seus
factores determinantes. Ela pode também, a partir daí, contribuir para
prever a evolução futura destas relações ou, pelo menos, para esclarecer
algumas tendências dessa evolução. Ela pode ter igualmente por
objectivo, mais ou menos imediato, esclarecer a acção. Como toda a
teoria, ela implica uma escolha e ordenação dos dados, uma certa
“construção” do seu objecto e daí a sua relatividade.

1.2.1 O Objecto e o Método da Ciência das Relações Internacionais.

Feita esta rápida incursão nas especialidades da teoria no grupo de


ciências em que se integra a ciência das Relações Internacionais,
podemos mais afoitamente avançar para o estudo desta, como é nosso
propósito.

Numa expressão concisa e, talvez por isso, insuficientemente precisa,


poder-se-ia dizer que a Ciência das Relações Internacionais tem por
objecto o estudo (cientifico, naturalmente) da vida internacional. O
apuramento do trabalho que tem sido feito pelos cultores da ciência da
Relações Internacionais confirma que esta definição não é
suficientemente precisa, ou melhor, mostra que ela é muito imprecisa. Há,
portanto que procurar chegar a uma definição aceitável. Nesse sentido,
é necessário esclarecer devidamente qual é o campo das ralações
internacionais.

Das relações internacionais existe, naturalmente, um conceito clássico


dada a sua antiguidade. Tal conceito reportava-se simplesmente à
actividade exterior dos Estados, assimilando assim relações internacionais
a relações diplomáticas. Essa perspectiva tinha, evidentemente, o mérito
de sublinhar o papel privilegiado dos Estados na cena internacional e,
consequentemente a importância da diplomacia, da Paz e da guerra.
Só que ela se mostra cada vez mais inadequada para dar conta da

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realidade internacional, na medida em que não para de crescer a
relevância das relações que se desenvolvem noutros âmbitos, como
abundantemente tivemos ocasião de notar ao longo dos capítulos
anteriores. De resto, o campo das relações internacionais nunca se
limitou ao quadro estrito das chancelarias. É assim que durante séculos a
Igreja católica, as ordens religiosas e os mercadores (especialmente os
do Norte da Europa, coligados ao ponto de terem forçado a criação da
Liga Hanseatica no século XIII) desempenharam um papel importante
neste domínio.

Forçoso era, portanto alargar devidamente o conceito de relações


internacionais para ter em consideração também a intervenção de
outros actores, que já vimos quais são, e igualmente para inculcar áreas
para além da estritamente diplomática, como a económica (a que
tivemos oportunidade de dar relevo no Capitulo II da Parte – II), a
ideologia (adiante tocada ao de leve) ou a cultural (de que não vamos
poder ocupar-nos).

Só que tal alargamento não tem sido feito de maneira unificada, tendo
antes sido alvo de posições bem diferenciadas. Por um lado Roger Pinto,
com maior preocupação pela posição considera relações internacionais
todas as relações de índole social em que os participantes ou o conteúdo
estão ligados a duas ou mais sociedades estatais. Há também uma
corrente – a do americano James Rosenau e seus seguidores – que acha
simplesmente que no conceito de relações internacionais é necessário
fazer incluir quaisquer situações que exercem a sua influência para além
do âmbito do Estado. Outro norte – americano, G. Schwarzenberger, já
referido, tomando a figura da sociedade internacional (em que inclui
indivíduos e grupos não-estatais) considera que o estudo das relações
internacionais é o ramo da sociologia que dela se ocupa, traçando a sua
evolução e analisando a sua estrutura. Há ainda quem encare as
relações internacionais fazendo apelo ao fenómeno “Facto social ”, para
afirmar que, embora os Estados estejam no centro da Sociedade
Internacional, qualquer manifestação de ordem social, mesmo a mais
anódina ou mais privada, pode, em certas circunstancias, ter efeitos
internacionais. Os que pensam dessa maneira acham que, em vez de se
estabelecer a existência de relações internacionais em si, mais valeria
falar da internacionalização dos factos sociais. Desse ponto de vista, a
Ciência das Relações Internacionais seria, pois, a ciência dos factos
sociais internacionalizados. Mas já é tempo de notar nas Ciências
Sociais, ao lado da teoria há, pelo menos a componente história e a
sociologia e, num caso ou noutro, também a disciplina da Doutrina.

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Qualquer que seja o conceito adoptado para as relações internacionais
verifica-se assim que o seu estudo científico tem de receber uma
contribuição proveniente da análise histórica e outra proporcional pelas
investigações de natureza sociológica. É, alias, o que se passa também
na Ciência Política. Acrescente-se que estas abordagens têm tido um
desenvolvimento tal que foram criados como ensinos específicos a
história das Relações Internacionais e a Sociologia das Relações
Internacionais. Apesar disso, por saírem fora do objecto da nossa cadeira
e por de qualquer modo nos faltar o tempo para isso, não iremos dedicar
atenção ao tratamento sistemático das relações internacionais pelos
ângulos de visão histórico e sociológico. A deficiência não é grande no
que toca ao estudo histórico das relações das relações internacionais, na
medida em que tivemos ocasião de na descrição da realidade dessas
relações fazer várias incursões na história do fenómeno em causa.
Quanto a perspectiva sociológica, a falha é mais significativa, porque só
aqui ali teremos possibilidade de apontar materiais recolhidos na
Sociologia das Relações Internacionais.

Quanto ao tratamento teórico das relações internacionais, há que,


desde logo, reconhecer que, não obstante o apreciável trabalho feito,
ainda não saiu de um estado embrionário. Na verdade, conquanto
análise com preocupações científicas da Sociedade Internacional tenha
realizado progressos consideráveis, sobretudo até o momento elaborar
uma teoria geral aplicável às relações internacionais. As investigações
feitas com cunho científico não têm podido iluminar senão aspectos
particulares do vasto mundo das ralações internacionais. Além disso, os
seus autores não têm seguido uma via de análise uniforme. Dai que
continue a dar-se a circunstância, a todos os títulos inconvenientes, de
qualquer situação no domínio das relações internacionais poder ser
explicada por várias formas, o que, naturalmente, se traduz em falta de
visão global. Assim, por exemplo. Um conflito armado pode explicar-se
pela teoria do imperialismo (que estudaremos adiante), pela análise que
parte da ideia do carácter belicoso dos Estados ou do temperamento
agressivo dos homens de Estado (base da teoria dos conflitos) ou ainda
pelo conhecimento trabalhado entre os povos, e também pela
combinação de alguns ou mesmos de todos estes factores.

Alguns estudiosos, apesar disso, têm procurado construir os sucedâneos


mais próximos possíveis de teoria geral das relações internacionais. Para
tanto, construído orientações com recurso a critérios filosóficos. Têm
então em consideração a realização de um ideal ou aceitação de um
juízo sobre a realidade das relações internacionais em função de certos
valores que julgam detectar, alias, em organizações inter estatais, que

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são hoje em dia os fora onde os Estados mais desenvolver as suas relações
e que, na verdade, sobretudo a ONU, vão criando um ordenamento
jurídico internacional. Para esses autores é então possível construir, pelo
menos, uma teoria filosófica das relações internacionais, capaz de
formular conceitos e “sistemas conceptuais” Não deixam, contudo, de
reconhecer que desse modo acaba por ser feito um tratamento
apriorístico da natureza das instituições sociais relevantes que combina
observação e reflexão com intuição e também convicção.

1.3 - SUBJECTIVISMO E OBJECTIVISMO: QUESTÕES DE MÉTODO.

No domínio das relações internacionais, como no domínio de todas as


ciências sociais, surge o problema do subjectivismo e do objectivismo dos
investigadores, comentadores e docentes. Este problema tem dois
aspectos que convém não confundir. Em primeiro lugar, alguns como
Quincy Wright sublinham que os problemas das relações internacionais
contendem com concepção de verdade de cada uma das sociedades
em presença, cada uma reclamando uma objectividade que não
reconhece a outra. Ele próprio, defensor da concepção ocidental de
vida, não deixa de sublinhar, referindo-se à época da Guerra Fria
terminada em 1989 com a queda do Muro de Berlim, que “no mundo
comunista a objectividade é deliberadamente repudiada, mas isto é
simplesmente uma das muitas evidências de que o comunismo e a
procura da verdade são incompatíveis. Os soviéticos diziam o mesmo dos
ocidentais.

Este problema, todavia, é, apenas, um dos dados com o qual tem de


contar-se no estudo das relações internacionais. O verdadeiro problema
do objectivismo e do subjectivismo diz respeito ao observador que não
pode ele próprio alhear-se de uma certa concepção do mundo e da
vida que faz parte da sua circunstância pessoal e que condiciona
necessariamente a sua relação com os factos a observar e avaliar.

Esta é uma das razões pelas quais, na pedagogia americana, se


encontra uma tendência para despersonalizar o ensino, o que se traduz
em fornecer aos alunos os textos e os documentos sem os filtrar por uma
exegese pessoal do professor. Daqui também a importância dos métodos
quantitativos e designadamente na avaliação do poder de cada um dos
centros de relações internacionais em presença, e a atracção pela
chamada revolução behaviorista.

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Por exemplo, o professor alemão Wilhelm Fucks, publicou um livro sobre a
divisão do poder no mundo, chamado Formeln zur macht (Fórmulas do
poder, 1965) onde tentou analisar a realidade sociológica internacional
com métodos exclusivamente estatísticos. Deste modo, organizou um
certo número de índices para 1965, colocando os Estados Unidos no topo
com o valor de 1000.

Avaliando por relação aos Estados Unidos o poder dos outros grandes
países, calculou o valor 674 para a ex-URSS e 415 para a China.
Perspectivando o desenvolvimento provável até o ano 2000, conclui que
nessa data a China será a primeira potência do mundo, com um poder
duas vezes superior aos dos poderes reunidos da URSS e dos Estados
Unidos. Pensou que nessa data o Japão seria a quarta potência mundial
ultrapassando o poder reunido da Grã-Bretanha e da Alemanha.
Provocou então algumas inquietações, mas os factos inquietantes foram
progressivamente outros.

Esta tentativa corresponde à mais radical expressão da preocupação


objectivista neste domínio e não é de estranhar que tenha vindo da parte
de um físico. Todavia, não se vê como é que poderá ser eliminada a
relação pessoal do observador com os factos e, portanto, as cautelas no
sentido de garantir a objectividade devem também ter em conta a
referida inserção do observador numa certa concepção do mundo e da
vida. Por isso, convém ter sempre presente as tendências contraditórias
que animam essas concepções, pelo menos nos seus traços mais
evidentes, e naturalmente no domínio particular deste objecto de
estudo.

Talvez a exemplificação de alguns dos tópicos que interessam ao


investigador neste domínio possa ajudar a compreender melhor a
cautela metodológica que se aconselha, porque será necessário ter
opções.

É comum encontrar uma oposição na maneira de encarar os fenómenos


que se exprime pelo binómio realismo – idealismo, por muito difícil que
seja explicar o que se entende por cada uma destas coisas, embora a
diferença geral possa talvez ser encontrada dizendo-se que se trata de
resolver a hesitação entre perder a República e salvar os princípios ou
abandonar os princípios para salvar a República.

Diferente contradição é a que se exprime pela dialéctica entre


nacionalismo – internacionalismo, que pode talvez explicar-se dizendo
que se trata de resolver a hesitação entre a unidade do género humano
e os interesses de cada povo.

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Outra contradição exprime-se falando na oposição segurança nacional
– cooperação internacional, que se traduz na hesitação entre a
salvaguarda da soberania e a marcha para a criação de autoridades
supranacionais.

Existe uma contradição que se exprime pela expressão força –


consentimento, que traduz a hesitação entre organizar uma sociedade
internacional hierarquizada e uma sociedade internacional de Estados
paritários.

Estas opções inevitáveis, enriquecidas facilmente com outras de menor


expressão, vêm a reflectir-se nas orientações ou escolas de pensamento
que se organizam especialmente no meio académico onde se definiu a
autonomia das relações internacionais no âmbito das ciências sociais.

Tal facto deu-se apenas no fim da primeira conflagração mundial, tendo


por questão principal, como notou Aron (1962), a guerra. O mesmo
fenómeno que no Renascimento fizera desenvolver o direito
internacional por um lado, e a fria razão de Estado pelo outro. Ainda hoje,
as divisões paradigmáticas da literatura que se lhe refere mantêm a
referência às clássicas perspectivas realista, racionalista e universalista,
com dependência de Maquiavel, de Grotius e de Kant.

Na história curta da disciplina a nível académico é frequente


autonomizar um período idealista, entre as duas guerras mundiais, um
período realista que cobriria desde a Segunda Guerra Mundial à década
de sessenta, e depois a revolução behaviorista. Trata-se de uma divisão
indicativa, porque os pontos de vista coexistem, e o realismo é, como
nota Panebianco, sempre a corrente teórica dominante. Corresponde
mais aos factos uma clivagem teórica entre o idealismo e o realismo, uma
clivagem metodológica, e também uma clivagem derivada de padrões
culturais ou nacionais, permitindo identificar, por exemplo, uma escola
norte-americana e uma escola europeia, embora a época seja de
síntese.

Talvez esta convergência actual tenha a sua raiz no desenvolvimento


metodológico da década de sessenta, que se deu sobretudo nos Estados
Unidos, mas que envolveu também os europeus.

No caso de se admitir que é possível isolar a questão do debate,


suscitado pelos behavioristas, estes entendiam que apenas tinham
validade os estudos baseados em técnicas quantitativas, para as quais
reservavam a designação de método científico. Por isso negaram este

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carácter aos realistas anteriores da escola americana, incluindo autores
como Carr, Morgenthau, Wight, Bull e Raymond Aron.

A este muito se deve, pelo contrário, no sentido de esclarecer o equilíbrio


estatístico do behaviorismo, ao invocar a necessidade de distinguir as
perspectivas filosóficas, históricas e jurídicas que se debruçaram sobre as
relações internacionais, das relações internacionais como ciência social,
tributária de um pluralismo metodológico não absorvido pelas técnicas
estatísticas e quantitativas. Esta pretensão reduzia-se afinal a
compatibilizar o método comparativo histórico clássico e o método
estatístico, sem excluir nenhum, porque finalmente é o objecto que
determina o método.

Mais importante foi a questão, levantada por David Singer em 1961, e


conhecida como a questão do nível de análise. Em síntese, trata-se de
optar entre partir do sistema internacional para racionalizar o
desempenho dos agentes da vida internacional (holismo), ou, pelo
contrário, entender que o sistema é o resultado da agregação das
acções individualizadas dos agentes.

Pode sustentar-se que são duas perspectivas irreconciliáveis no


entendimento do que Hegel chamou “a transição da quantidade para
a qualidade”, e na convicção de que a sociedade excede os indivíduos,
porque estes recebem, da totalidade a que pertencem, parte da sua
maneira de ser, como geralmente entendem os marxistas. Mas do ponto
de vista do método, o averiguado é que algumas vezes apenas é possível
uma racionalização a partir da consideração do agregado, isolando
tendências que caracterizam o todo; os estudos numerosos de política
externa dos Estados, e dos outros agentes da vida internacional que
disfuncionam os sistemas, não podem deixar de adoptar o ponto de vista
individualista, com importante aplicação na teoria dos jogos que os trata
como actores racionais que procuram optimizar os resultados com
economia de meios (K. Waltz). Aos extremismos de Kaplan (1957) e de
Waltz (1979), que apenas consideram possível uma teoria das relações
internacionais rigorosamente dedutiva, outros como Martin Wight (1966)
responderam negando a possibilidade de qualquer teoria.

Como sempre, o notável Aron (1972) defendeu uma posição intermédia,


muito acatada nos estudos europeus, afastando das ciências sociais, e
portanto das relações internacionais, a utilização da teoria no sentido da
tradição filosófica, ou como sistema hipotético-dedutivoda orientação
positivista. No seu parecer, a teoria, nas ciências sociais, apenas pode:
fornecer a definição específica do objecto, que nas relações
internacionais se traduz na normalidade da violência; identificar as

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principais variáveis; sugerir hipóteses sobre a regularidade do
funcionamento do sistema. Por isso deve ser preservada de ideologismos
para ser submetida ao controlo empírico, ao mesmo tempo histórico-
sociológico, tornando possível a compreensão das conjunturas, mas sem
nenhuma pretensão ou possibilidade de ser uma ciência aplicada.

Esta orientação recebeu o apoio de Hoffmann, que entre uma


concepção dedutiva da teoria, e uma concepção indutiva que parte
dos comportamentos e do material histórico disponível, adopta a
segunda (Panebianco).

De facto, esta querela talvez possa ser reconduzida a uma variação


sobre a indefinível medida do realismo que as escolas adoptam, e todas
as variantes parecem opostas ao idealismo que, na sequência de
Woodrow Wilson, e depois da Primeira Guerra Mundial, pretendeu
descobrir a natural harmonia das Nações (Howard). Uma posição que
parece ter recuperado importância com a queda do muro de Berlim em
1989, a voga do fim da História de Fukuyama, e a sugestão de que o
mundo seria submetido ao modelo político democrático, ao modelo
económico do mercado, e ao modelo de segurança da paz pelo direito.

Mas a corrente realista, que conta designadamente com a herança de


Tucídides, Maquiavel, Hobbes, Espinosa, dos teóricos da razão de Estado,
Max Weber, e Aron, encontrou em Edward Carr, inspirado já pela guerra,
um defensor que manteve a perspectiva como dominante (Carr, The
Twenty Years Crisis). É claro que os idealistas dão um contributo
indispensável e basta lembrar a linha Peace Research, e a sua
contribuição na crucial década de setenta para o tema da paz. Mas a
chamada de atenção de Carr impediu esquecer o estado de natureza
da vida internacional, o poder como facto essencial da política interna
e externa, a necessidade de basear o processo decisório na percepção
dos factos. Não se trata de um conceito ao serviço da linha da Realpolitik
que Ludwig Von Rochau introduziu no debate alemão em 1853, porque
essa é uma opção dos decisores, e a metodologia em discussão ocupa-
se do conhecimento e da compreensão.

A dominante linha realista exibe hoje nomes importantes como os de


Schuman, Spykman, Niebuhr, Kennan, e, talvez acima de todos,
Morgenthau. Os conceitos que este adiantou, designadamente o de
power politics ou permanente luta pelo poder, do interesse nacional
objectivo, da proeminência do Estado como actor de um sistema de
Estados, da alternância das políticas de status quo de imperativos, ou de
prestígio, do risco permanente da guerra, dos mecanismos de equilíbrio
(balança de poderes) e do diálogo diplomático, são temas essenciais de

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referência que muitas vezes apoiam conselhos para além da descrição
e da compreensão.

É talvez desta eventual violação da neutralidade científica que partem


as críticas de Raymond Aron, ele próprio chamado por alguns um
heterodoxo realista, que pretendeu combinar o saber da sociologia com
o conhecimento histórico. O seu famoso Paz e Guerra entre as Nações
(1962) prepara a teoria dos modelos de competição internacional, a
identificação sociológica das variáveis dominantes na política
internacional e determinação das regularidades empíricas, a análise
histórica do bipolarismo, sempre na linha do Weber que não deixava
esquecer a tensão entre os factos e os valores, entre a análise e a
decisão, o que lhe fez constantemente referir o conflito entre o
maquiavelismo e as éticas da paz.

Os estudos sobre o findo conflito bipolar foram abordados pelo realismo,


podendo salientar-se Waltz e Gilping. Por vezes fala-se de realismo
estrutural para sublinhar a tentativa, que se deve sobretudo a Waltz, de
conjugar o realismo clássico com uma racionalização sistémica. Sugere
que o realismo clássico, semelhantemente à teoria de empresa da
economia, é reducionista, e útil para compreender a política dos Estados
individualmente considerados; mas a perspectiva holística, tal como a
teoria do mercado, deve desenvolver-se em termos rigorosamente
sistémicos. A estrutura do sistema internacional tem um princípio
ordenador e uma distribuição de poder como elementos essenciais do
sistema.

A crítica imediata de que não fica explicada a disfunção do sistema e a


mudança encontra acolhimento em Gilping, mais céptico sobre a
racionalização sistémica, mais próximo do realismo clássico. Um sistema
internacional mantém-se funcional e equilibrado, seja fundado no
princípio imperial, seja fundado na hegemonia ou equilíbrio de potências,
se nenhum Estado poderoso tiver interesse em modificar o status quo:
mudanças internas ou mudanças internacionais podem determinar uma
racional choice individualista baseada na avaliação dos proveitos e dos
custos. Parece impossível arbitrar a diferença, e admitir que o princípio
do equilíbrio (Waltz) ou que o princípio da hegemonia (Gilping) são
reciprocamente excludentes, e não de incidência variável com o tempo
e o lugar.

1. 4 - AS TRÊS IMAGENS DE KENNETH WALTZ:

As três imagens que vamos estudar – anarquia, sociedade e comunidade


– são, segundo o autor (Waltz), - descrições idealizadas, tipos-ideais na

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expressão de Max Weber, que não correspondem rigorosamente a
nenhuma realidade identificável. São instrumentos intelectuais que
podem ajudar-nos a reflectir melhor sobre as consequências dos nossos
pressupostos tanto por via da exploração lógica como por via da
comparação com a experiência histórica.

1.4.1 Primeira Imagem: Anarquia Internacional.

Na segunda metade do século XX a disciplina de RI foi dominada pela


escola realista, nas suas várias versões.

A ideia de vivermos num contexto de anarquia internacional é


frequentemente atribuída a Thomas Hobbes, filósofo inglês do século XVII,
que tinha uma visão profundamente pessimista da humanidade, o que
em parte reflectia a sua experiência pessoal (Hobbes viveu numa era de
grande conturbação e conflitualidade, chegando a confessar que
aquilo que principalmente o motivava era o medo de uma morte
violenta. A sua obra mais importante, Leviathan, foi publicada a meio de
uma guerra civil, dois anos depois da execução do rei Carlos I).

O raciocínio de Hobbes desenvolve-se a partir da seguinte premissa: no


“estado natural” a vida entre homens é uma permanente guerra de
todos contra todos, porque cada um de nós é incapaz de compreender
para além dos nossos próprios sentimentos, instintos e vontades (é
importante termos em mente que o “estado de natureza” é um artifício
utilizado por muitos filósofos ao longo dos tempos para especular sobre a
natureza humana e as raízes do comportamento humano em sociedade,
não correspondendo, evidentemente, a nenhum momento histórico
concreto).

Os homens, para Hobbes, são, por instinto, egoístas, têm por objectivo
apenas a procura de meios que lhes garantam a felicidade, e a estes
meios Hobbes chama “poder”.

Desde logo, portanto, a actividade mais primordial do ser humano face


aos seus semelhantes é considerada a procura do poder. A felicidade
almejada pelo ser humano começa inevitavelmente pela procura de
segurança, porque ninguém pode dar-se por satisfeito se vive sob a
ameaça de uma morte violenta. Quando não há regras, e alguém que
faça respeitar as regras, como é o caso no “estado natural”, cada pessoa
é obrigada a dedicar-se à procura de mecanismos de salvaguarda da
sua própria segurança.

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O “estado natural” de Hobbes é, portanto, um contexto de guerra de
todos contra todos. Isto não pode ser entendida de forma literal. O que
Hobbes queria sugerir é simplesmente que, perante a ausência de uma
potência que estabeleça e garanta a ordem, todos terão de
contemplar, como último recurso para a defesa dos seus interesses, a
possibilidade de utilizarem a força.

Assim, num contexto de “guerra de todos contra todos” é, na realidade


um contexto em que não pode pôr-se de parte a possibilidade do recurso
à violência, porque não existem circunstâncias que permitam eliminar a
desconfiança face às intenções do vizinho. Neste contexto não pode
haver noções de justiça ou injustiça porque onde não poder superior não
pode haver leis e onde não há leis não há injustiça. Nestas circunstâncias,
a força e a astúcia são as únicas virtudes, porque, quando ninguém
cuida da nossa segurança, são essas as qualidades que nos permitirão
sobreviver num meio hostil.

A única saída que Hobbes consegue imaginar é através da transferência


da responsabilidade pela segurança de cada um para uma autoridade
superior, a quem se dá o direito exclusivo de utilizar a força para impor a
ordem. A esta autoridade superior Hobbes chamou Leviatão. Tratava-se
do Estado moderno, cujos contornos se desenhavam no período em que
Hobbes viveu.

Ora, uma consequência lógica desta ideia de Hobbes é a criação de


uma distinção entre relações dentro de uma comunidade controlada
por um Leviatão (uma entidade soberana) e relações entre
comunidades, cada uma com o seu Leviatão. Enquanto no primeiro tipo
de circunstância a ordem pode ser imposta pelo Leviatão, no segundo
caso estamos outra vez no estado de natureza, que foi o ponto de
partida do trabalho de Hobbes. A analogia é clara: enquanto a primeira
situação retrata aquilo que se passa dentro de um país, a segunda
situação retrata aquilo que se passa entre países que não têm nenhuma
garantia de sobrevivência, excepto a sua própria força e astúcia. As
relações internacionais, que não estão sujeitas à força ordenadora e
controladora de qualquer autoridade superior, não podem ser senão
dominadas por preocupações de segurança e sobrevivência e
caracterizam-se por um estado de potencial guerra entre todas as
partes.

Para escritores como Hans Morgenthau e Raymond Aron, a política


internacional pode ser caracterizada como relações entre Estados num
clima de permanente desconfiança e reserva, sem que nunca possa
excluir-se em absoluto a possibilidade de recorrer à guerra para preservar

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interesses fundamentais. Segundo os pensadores desta escola, a
distinção fundamental entre um contexto de ordem imposta por um
Leviatão – o contexto interno dos Estados – e o contexto de convivência
entre entidades que não reconhecem nenhuma autoridade superior – o
contexto das relações internacionais – obriga-nos a descrever a política
internacional como política que opera num quadro de anarquia.
Anarquia neste caso não significa desordem generalizada ou
permanente; significa apenas que os Estados utilizarão os meios à sua
disposição para promoverem os seus interesses e que, em última análise,
nenhum Estado pode depender senão de si próprio.

Esta linha de pensamento representa uma tradição de grande influência


na disciplina de RI. Mais ainda: as premissas fundamentais do realismo
que acabamos de referir estão presentes na prática diplomática
corrente. Neste sentido, a tradição realista pode ser considerada
constitutiva da realidade, pois muitos destes participantes importantes na
vida baseiam as suas intervenções em pressupostos que se tornam
verdadeiros exactamente por estarem presentes no comportamento
desses participantes (as teorias nos ajudam a compreender o mundo; a
nossa participação no mundo baseia-se na compreensão que temos do
mundo; o mundo torna-se diferente consoante participamos nele, de
uma forma ou de outra). Não obstante as perspectivas, as perspectivas –
e as obrigações – do diplomata e do académico são distintas e a
popularidade das premissas realistas entre diplomatas (por ventura mais
acentuada no passado do que no presente) não chega como prova de
serem correctas.

Uma das consequências da imagem de anarquia internacional é que os


actores a que se acorda importância são, exclusivamente, os Estados.
Toda a imagem depende de uma antropomorfização do Estado, que é
colocado na situação do ser humano racional nas circunstâncias
(fictícias) do “estado natural”. Quem assegura a sobrevivência das
pessoas são os Estados: impõem a ordem a nível interno, desarmando e
punindo quem transgredir, e procuram defender os cidadãos de um
ataque externo, participando no sistema internacional. Esta participação
pode incluir uma política de alianças ou uma teia de acordos defensivos,
mas, fundamentalmente, os Estados dependem de si próprios para a sua
sobrevivência. Estes dois princípios essenciais (que o Estado é o único
actor importante em RI e que, em última análise, depende de si próprio)
têm consequências profundas para aqueles que baseiam as suas
análises de política internacional no pressuposto de anarquia.

1.4.2 Segunda Imagem: Comunidade Internacional.

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A expressão "comunidade internacional" invadiu o nosso quotidiano e
tornou-se um lugar-comum ao ponto de por vezes nos esquecermos de
que por detrás desta metáfora existem determinados pressupostos que
podem ou não ser válidos. Basta ligarmos a televisão ou rádio para
ouvirmos que a "comunidade internacional" decidiu fazer qualquer coisa
em relação a algo que se passa em Angola ou na Bósnia, ou em Timor,
ou em alguma outra parte do mundo. Ou ouvimos as vozes angustiadas
de pessoas que, perante alguma tragédia humana, reclamam
urgentemente a intervenção da tal comunidade internacional ou se
queixam da forma como a mesma comunidade internacional estará a
esquecer-se do drama que nesse momento se vive.

É, no entanto, necessário perguntar qual o conteúdo exacto, que pode


dar-se a esta expressão "comunidade internacional", porque na disciplina
de RI, tal como em qualquer outra disciplina académica, o rigor da
escolha dos termos é um passo obrigatório no sentido do
aprofundamento do debate e da compreensão. Quem é afinal a
"comunidade internacional", onde podemos encontrá-la, como
podemos conhecê-la?

Convenhamos que na discussão quotidiana de problemas internacionais


assistimos a uma banalização da expressão "comunidade internacional",
que fica muito aquém das propostas que na disciplina de RI existem
quanto aos possíveis conteúdos do termo. Na linguagem corrente
utilizada pela comunicação social, o termo "comunidade internacional"
tende a ser utilizado para projectar antropomorficamente uma entidade
imaginária por detrás daquilo que se pensa ser um consenso ou uma
opinião preponderante sobre um determinado problema. Por vezes,
utiliza-se o termo para referir decisões ou resoluções do conselho de
segurança das Nações Unidas. Noutros casos, iniciativas ou opiniões que
não foram sancionadas por órgãos das Nações Unidas, mas que são
aparentemente partilhadas por muitos no palco internacional, são
também atribuídas à "comunidade internacional". Ou mesmo, não
raramente, ouvimos a "comunidade internacional" a ser invocada por
não tomar uma decisão, isto é, ganha corpo e realidade perante uma
manifestação de ausência. A forma vaga, confusa e frequentemente
contraditória com que a expressão "comunidade internacional" é
utilizada não representa uma negação da eventual utilidade do termo,
mas obriga a uma definição rigorosa, que, por sua vez, passa pela
comparação com outros termos possíveis. Nomeadamente, temos de
comparar o termo "comunidade" com o termo "sociedade", antecipando
assim parte da discussão sobre a terceira imagem, baseada na noção
de "sociedade internacional".

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Na disciplina de Sociologia, a distinção entre comunidade e sociedade
é clássica, tendo as suas raízes na obra de Ferdinand Tonnies, cujo
Gemeinschaft (comunidade) und Gesellschaft (sociedade), teve a sua
primeira edição em 1887, e de Max Weber. As comunidades
caracterizam-se por laços de afectividade, enquanto nas sociedades
predominam laços baseados em interesses comuns. Tanto Tonnies como
Weber consideram que ao longo da era moderna há um processo de
transformação de comunidades em sociedades, isto é, as
transformações económicas tendem a promover regras de
racionalidade utilitária em detrimento de regras de afectividade. Em
praticamente qualquer tipo de associação diz Tonnies, podemos
encontrar laços societais que convivem com laços comunitários, mas a
predominância de um ou outro tipo de laço altera profundamente a
natureza da associação e as formas de comportamento que a
caracterizam.

Assim podemos dizer que a comunidade é uma associação espontânea


e natural, enquanto a sociedade resulta das necessidades pragmáticas
de associação ou convivência. Como diz um pensador espanhol, uma
comunidade é uma maneira de ser para o indivíduo que faz parte dela,
enquanto uma sociedade representa uma maneira de estar. Enquanto
na comunidade há uma integração dos seus membros, na sociedade há
uma agregação dos membros. A comunidade estabelece-se pela via
dos valores comuns, enquanto a sociedade se estabelece pela via das
regras de associação e resolução de conflitos. A comunidade consolida-
se por via de associações "naturais", enquanto a sociedade se consolida
por via de associações "racionais".

A economia global não implica necessariamente que haja uma


comunidade internacional no sentido que temos vindo a descrever.
Enquanto, por exemplo, alguns pensadores liberais sublinham os
interesses comuns produzidos por este aumento de interdependência,
outros, como Immanuel Wallerstein ou John Gray, por razões diferentes,
sublinham, acima de tudo, o confronto de interesses contraditórios. Uma
determinada ordem global não é sinónimo de comunidade
internacional.
1.4.3 Terceira Imagem: Sociedade Internacional

Retomamos aqui a distinção feita por Tonnies, com a diferença de


colocarmos a problemática da sociedade no plano internacional,
seguindo as pisadas de Hedley Bull:

“Uma sociedade de Estados (ou sociedade internacional) existe quando


um grupo de Estados, que tem consciência de interesses e valores

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comuns, forma uma sociedade, no sentido de se considerarem
interligados por um conjunto de regras comuns que orientam as suas
relações e que partilham no trabalho das instituições comuns. Se os
Estados hoje formam uma sociedade, é porque reconhecem certos
interesses comuns e, possivelmente, alguns valores comuns e se
consideram obrigados a cumprir certas regras, por exemplo, o respeito
mútuo pela independência de cada um, o respeito pelos compromissos
assumidos e o respeito pelas determinadas regras no uso da força entre
si. Simultaneamente, cooperam no funcionamento das instituições, por
exemplo, os processos de direito internacional, o sistema de diplomacia
e das organizações internacionais e os costumes e as convenções da
guerra”.

Esta citação, que se tornou a definição clássica da ideia de sociedade


internacional, evidencia o apego de Bull à ideia de uma sociedade
composta por Estados. A atitude de Bull não era, no entanto, dogmática.
Alguns autores, detectaram alguns indícios de uma transformação a este
respeito nas últimas obras de Bull, enquanto outros confirmam que Bull
concordava que era necessário alargar o âmbito dos estudos sobre a
sociedade internacional.

Longe de ser um domínio anárquico onde apenas a astúcia e a força


podem socorrer os Estados, únicos actores num plano jurássico de
rivalidades e traições, o meio internacional é, nesta imagem, visto como
altamente estruturado e ao mesmo tempo heterogéneo. A estrutura da
sociedade internacional resulta das regras que ao longo dos tempos
foram evoluindo, enquanto a heterogeneidade é o resultado da
diversidade de participantes.

A sociedade internacional é pluralista, no sentido de permitir a


convivência de uma pluralidade de actores, cada um com objectivos e
lógicas alicerçados em tradições históricas próprias, é diversificada, em
termos de natureza das normas que orientam a convivência social e em
termos da forma como estas normas estão implantadas nas diferentes
áreas geográficas e temáticas, e é evolutiva, porque a passagem do
tempo reflecte-se na distinção que se vai fazendo entre as normas
limitadas por lógicas particularistas ou imediatas – que acabam por cair
em desuso quando as circunstâncias se alteram – e normas que
beneficiam de algum consenso e ganham espaço e legitimidade
própria.
A ideia de sociedade internacional permite-nos pensar em termos do
pluralismo dos intervenientes, em dois sentidos. Em primeiro lugar, a
criação de normas internacionais num contexto de autoridade política

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fragmentada tem precisamente o efeito de permitir a coexistência de
uma pluralidade dos actores que se reconhecem e toleram mutuamente
entre si. Os Estados são e continuam a ser durante longos anos os mais
importantes actores do sistema internacional e, em grande medida, o
consentimento dos Estados para o desenvolvimento de normas
internacionais continua a ser uma condição sine qua non. Segundo,
importa reconhecer que actores não estatais têm vindo a ganhar
importância no palco internacional, nomeadamente organizações
intergovernamentais, não governamentais, empresas transnacionais e
indivíduos. Cada um destes actores tem vindo a exercer influência sobre
a natureza do sistema internacional contemporâneo, contribuindo para
que haja hoje uma sociedade qualitativamente diferente daquela que
existia, por exemplo, há cinquenta anos. Existem, frequentemente,
impulsos e interesse contraditórios entre estes múltiplos actores e deste
processo de confrontação sociopolítica resultam, gradualmente,
inovações no sistema internacional e na própria natureza dos
intervenientes.

A ideia de sociedade internacional não pressupõe que o mundo esteja


ordenado segundo regras codificadas, homogéneas na sua aplicação e
coerentes entre si. A “norma” é aqui utilizada para referir fenómenos
qualitativamente diferentes ente si, como por exemplo, regras de direito
internacional, regras de protocolo diplomático, ou simples práticas
correntes. O argumento que se pretende desenvolver neste momento
requer apenas que sublinhe duas qualidades que estão presentes em
normas de todos os tipos: geram expectativas quanto ao
comportamento de outros actores no sistema internacional; há custos
associados ao incumprimento das normas.

O comportamento social depende sempre, pelo menos parcialmente e


muitas vezes integralmente, das expectativas que existem quanto ao
comportamento de outros. Uma distinção entre anarquia e sociedade
reside precisamente no grau de confiança que se pode depositar na
previsibilidade do comportamento de outros actores. Neste sentido, ao
longo de séculos a sociedade internacional desenvolveu múltiplas
normas que oferecem à convivência internacional um grau de
previsibilidade que a coloca muito longe do conceito de anarquia.
Segundo, embora a obediência às normas possa ser obrigatória, o
incumprimento tem um custo que resulta do impacto negativo sobre as
expectativas de outros. Esse custo pode ser traduzido por via jurídica,
como é o caso, por exemplo, das sanções decretadas pelo conselho de
segurança da ONU por causa de um delito internacional, pode ser de
natureza política – uma queda da credibilidade ou do prestígio do
infractor, por exemplo, possivelmente com consequências práticas

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noutro momento – ou pode ainda ser um custo financeiramente
quantificável, como as penalizações impostas a certos Estados que
desobedecem às indicações económicas de instituições financeiras
internacionais ou que tomam decisões económicas que contrariam as
expectativas de investidores em bolsas ou mercados monetários
internacionais.

A diversidade das normas estruturadoras da sociedade internacional


pode ser a nível das características das normas, mas pode também ser
vista a nível da sua implantação numa determinada área geográfica ou
temática. A título de exemplo, as relações entre os países membros da
U.E têm um elevadíssimo grau de estruturação. A isto corresponde um
importante corpo de direito internacional – direito comunitário – e
fortíssimas expectativas de comportamento recíproco que vão muito
para além do âmbito do direito. Um caso interessante a este respeito
resultou da inclusão de um partido de extrema-direita na coligação de
governo da Áustria em Janeiro de 2000. Os restantes países membros da
U.E reagiram com a imposição de sanções bilaterais a nível de normas
não jurídicas: os embaixadores austríacos passaram a ser recebidos
apenas a nível técnico, e fez-se saber que os candidatos austríacos a
cargos internacionais não seriam apoiados pelos outros membros da U.E.
E, no entanto, nenhuma regra de direito comunitário havia sido
quebrada pela Áustria. O ponto a reter aqui é que a acção dos restantes
países membros comprova que existe um conjunto de normas implícitas
sobre o comportamento de países membros da U.E e que na opinião da
generalidade dos outros países membros a inclusão do FPO no governo
austríaco representava uma afronta inaceitável a uma regra implícita.

Nenhuma outra parte do mundo tem um grau de integração regional


com uma semelhante com uma densidade de normas implícitas e
explícitas, mas por todo lado os Estados e os outros actores reconhecem
a existência de normas quando participam no sistema internacional. O
grau de estruturação da participação internacional, varia muito, mas a
esmagadora maioria das intervenções internacionais confirma a
existência de normas comuns por via do comportamento repetido dos
participantes e da imposição de penalizações quando se verificam
desvios da norma.

O comércio internacional contemporâneo, por exemplo, é uma área


profundamente estruturada a nível praticamente global, primeiro através
das sucessivas rondas negociais do GATT e, desde 1995, através do
funcionamento da OMC. A par da estruturação no plano global, as
últimas décadas do século XX viram nascer vários acordos comerciais
regionais de grande importância. Um dos efeitos deste processo de

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estruturação do comércio internacional é que os Estados têm cada vez
menos possibilidades de utilizarem as suas relações comerciais como um
instrumento de política externa devido às regras que se comprometeram
a cumprir em matéria comercial.

Em algumas outras matérias verifica-se também um processo de


estruturação da convivência internacional, mas persistem determinadas
áreas onde as normas são quase inexistentes. Em certas regiões do
continente africano, por exemplo, as normas mínimas relacionadas com
o respeito pela soberania dos Estados são poucos vincados. Isto é,
embora a linguagem jurídica deste tipo de normas faça referência à
universalidade dos princípios, verifica-se que as penalizações associadas
às violações desses princípios são menores em certas partes do
continente africano do que, por exemplo, na Europa ou nas Américas.

O capítulo seguinte tratará de alguns aspectos relacionados com a


evolução das mais importantes normas da sociedade internacional
contemporânea, que deve ser entendida como dinâmica e reflexiva, isto
é, em permanente mutação, por via de um processo de constante
ajustamento recíproco entre os actores e as normas. Muitos dos
defensores da ideia de anarquia internacional partem de pressupostos
sobre a natureza humana ou sobre a natureza política, argumentando
que uma ou outra, ou ambas obedecem a princípios imutáveis. Filósofos
como Hobbes ou Rosseau desenvolveram as suas ideias a partir de
descrições sobre o «estado da natureza», isto é, as características do ser
humano pré-social. O estudo da sociedade internacional não privilegia
pressupostos sobre a natureza humana nem retira grandes benefícios de
especulações sobre o ser humano fora do enquadramento social. Pelo
contrário, aquilo que importa estudar é exactamente o ser humano
dentro de um contexto social, neste caso a sociedade internacional, e o
exercício intelectual de tentar imaginar como seria o ser humano e se a
sociedade não existisse acaba por revelar-se pouco útil para a tarefa
imediata.

Um dos aspectos mais interessantes da sociedade internacional é o seu


percurso histórico, nomeadamente a forma como algumas normas se
consolidaram ao longo dos anos, tornando-se traves essenciais da
sociedade internacional contemporânea, enquanto outras foram
caindo em desuso por se revelarem pouco consentâneas com as
realidades e necessidades da época. É a leitura deste percurso de
normas estabelecidas e normas rejeitadas que mais poderá ajudar-nos a
extrair ilações, e a primeira delas é que a sociedade internacional é

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dinâmica porque ao longo dos anos se ajusta às transformações
profundas da história.

A sociedade internacional é, na realidade, um conjunto de pressões


sociais, de intensidade e aplicabilidade variável, apoiadas em diferentes
mecanismos de coerção para se conseguirem impor. Este conjunto de
pressões exerce-se sobre os participantes na sociedade internacional
segundo uma lógica reflexiva, isto é, o contexto da sociedade
internacional exerce uma influência importante sobre a natureza dos
próprios participantes, que, por sua vez, obedecendo às pressões
internacionais e as outras que resultam de transformações sociais,
económicas ou políticas a nível local, contribuem para definir as
características da sociedade internacional a cada momento.

A sociedade internacional deve, portanto, ser entendida como dinâmica


e reflexiva, na medida em que se verifica uma influência tanto dos
actores sobre o sistema como do sistema sobre os actores.
Implicitamente, esta caracterização sugere-nos que para
compreendermos a sociedade internacional devemos ter em conta as
transformações sociais, políticas e económica que se fazem sentir tanto
junto do sistema como conjunto dos actores, umas vezes mais num
sentido e outras no outro.

As três imagens que acabámos de descrever resultam de pressupostos


diferentes e produzem visões do mundo altamente diferenciadas. Os
defensores de cada uma destas ideias observam, aparentemente, a
mesma realidade internacional, mas atribuem importância a factores
muito distintos, desvalorizando ou mesmo negando os aspectos que
outros analistas consideram relevantes. A postura adoptada neste
fascículo é que o mundo contém, visivelmente certos elementos de cada
uma destas visões da realidade, mas que nem a ideia de comunidade
nem a ideia de anarquia desempenham convincentemente o papel de
pano de fundo para compreensão da disciplina.

1.5 - A ANARQUIA E A COOPERAÇÃO.

Na terminologia política, o termo anarquia não é equivalente, ao


contrário do que acontece tantas vezes no discurso corrente, de
desordem no meio do caos, mas tão – somente de ausência de governo
efectivo. Nas situações em que a autoridade pública colapsa por
completo, como na grave da polícia de Boston em 1919, distúrbios
urbanos ou situações de conflito étnico, a sociedade pode de facto
regredir para um estado de natureza marcado por pilhagens matanças,

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violações, destruição e outros crimes. Esta não é. Porém, a situação que
caracteriza a anarquia internacional a qual os estados estão
acostumados há séculos. Este sistema é caracterizado pela «auto ajuda»,
em que os estados são obrigados a salvaguardar eles mesmos a sua
segurança e outros interesses vitais, e por guerras internacionais, umas de
grande alcance outras de pequeno alcance. Enquanto algumas das
grandes potências mantêm uma preocupação constante com a sua
segurança e estão e estão prontas a todo momento, a recorrer a força
se necessário, a maioria dos estados da sociedade anárquica prossegue
uma cooperação pacífica por largos períodos de tempo e procura
estabelecer entre si uma ordem estável e equilibrada. No seu conjunto, o
sistema internacional dos anos 1990 foi bem mais pacífico do que a
Bósnia, a Checoslováquia, Kosovo ou Timor-leste.

Posto isto, é necessário sublinhar a diferença entre a autoridade política


efectiva em exercício no interior dos estados, por um lado, e no sistema
internacional, por outro lado. Uma das definições contemporâneas de
política mais citadas pertence a David Easton que a descreveu em
termos de distribuição de valores sociais investida de autoridade
(authoritatively). Esta definição pressupõe que a sociedade se encontra
organizada sob uma autoridade efectiva que possui capacidade de
tomar decisões sobre valores e prioridades através da política
orçamental e de fazer cumprir as suas leis através da permanente
possibilidade do recurso a sanções. Deste modo, o modelo do sistema
político dos estados não pode ser alargado ao domínio internacional já
que, a este nível, não existe qualquer forma de autoridade efectiva em
exercício, o próprio Easton admitiu que «a aceitação das decisões e
práticas geradas pelos sistemas internacionais depende da coincidência
com a percepção que os elementos do sistema têm dos seus interesses
privativos». Ainda de acordo com Easton, entre os elementos do sistema
internacional há ainda extremamente limitado «o impacto do sentido de
legitimidade».

Raymond Aron, Stanley Hoffmann, Roger D. Masters, Kenneth N. Waltz e


vários outros teorizadores da escola realista têm frequentemente
chamado a atenção para a diferença crucial que existe entre as
sociedades nacionais, em que os valores, as leis e o poder se encontram
muitas vezes altamente centralizados, e o sistema internacional, em que
esses valores se encontram tão descentralizados que cada estado,
prosseguindo os seus interesses pode decidir quais as normas que vai
cumprir e quais as que vai ignorar.

Desde o começo dos anos 1980, e como já sublinhamos, vários


teorizadores internacionais têm procurado lançar pontes entre os

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sistemas nacional e internacional, entre as ordens políticas e económica,
bem como entre os realistas e os pluralistas – globalistas dando relevo aos
conceitos de interdependência e de regimes internacionais. Ambos os
conceitos serão examinados de forma mais completa nos capítulos
dedicados ao realismo e aos sistemas. Neste momento, é suficiente notar
que o conceito de interdependência traz consigo a ideia de que os
estados-nação estão a tornar-se cada vez mais sensíveis e vulneráveis as
mudanças económicas e tecnológicas em outros estados-nação e no
sistema global como um todo e de que estão pouco a pouco a adaptar
as suas políticas a esta realidade. Os regimes internacionais, são aqueles
conjuntos de disposições governativas – processos, normas regras e
ainda, em alguns casos, instituições funcionais especiais – instituídas para
regular e controlar determinados tipos de actividades transnacionais em
que esta regulação e controlo aparecem como materiais de interesse
comum (ou, pelo menos, de interesses coincidentes) a uma série de
estados. Como exemplo podemos referir os regimes internacionais
instituídos para regular as taxas de cambio (no FMI), para eliminar
obstáculos ao comércio internacional (nas varias rondas do GATT) e para
impedir a proliferação das armas nucleares através do Tratado de não –
Proliferação Nuclear, dos sistema de salvaguarda da AIEA e de vários
acordos entre estados fornecedores de tecnologia nuclear e militar para
regularem as suas exportações.

CAP. II – O IDEALISMO E O REALISMO CLÁSSICO

INTRODUÇÃO

Desde a Guerra dos Trinta Anos, que começaram a surgir propostas de


criação de estruturas de cooperação internacional capazes de constituir
a base de processos políticos mundiais para se atingir a paz duradoura:
são os chamados projectos de paz perpétua.

Entre os projectos mais conhecidos estão o do abbé de Saint-Pierre


(1658-1743) e o de Immanuel Kant (1724-1804). Em tais projectos, e nos
debates que eles suscitaram, começam-se a focalizar, ainda que de
modo especulativo, as relações entre os tipos de governo internos aos
estados (por exemplo, a república, por oposição à monarquia absoluta)
e a paz mundial. Mas, já no final do século XVIII e início do século XIX, a
Revolução Francesa e a sua exportação para outros territórios através de
guerras – e não através da cooperação pacífica – pôs em evidência a
dificuldade de se conciliar a liberdade interna (república ou
democracia) com a externa (soberania).

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Na prática, a tensão entre a promoção da liberdade dos indivíduos, de
um lado, e a paz internacional, de outro, foi inicialmente resolvida por
uma última tentativa de se dar à política como um todo um conteúdo
ideológico ligado a valores pré revolucionários incompatíveis com a
democracia. De facto, mediante um sistema de alianças evocativo do
ideal de unidade cristã europeia, o Congresso de Viena (1814-1815) e a
Santa Aliança procuraram preservar o mais possível, no plano doméstico,
o estilo de governo autocrático típico do Antigo Regime, enquanto
tentavam sustentar a moderna autonomia no âmbito da política
internacional. Mas o jogo político e económico internacional, em
interacção com as lutas internas em prol da democracia, acabou
esvaziando a política deste conteúdo ideológico, substituindo-o pelo
pragmatismo diplomático articulado através do direito internacional
positivo. Disso resultou o chamado “concerto europeu”.

Ao terminar a segunda Guerra Mundial, duas escolas de pensamento


político, em matéria de relações internacionais, tinham influência
dominante no ocidente: os “idealistas”, que davam ênfase à evolução
do Direito Internacional e ao estabelecimento de mecanismos
internacionais de conciliação de interesses e de decisão, e os “realistas”,
que se preocupavam com a operação livre e desimpedida do poder. O
pensamento político, no fundo, oscilava entre duas utopias: uma
optimista que buscava construir uma legalidade internacional capaz de
estimular a criação de instituições supranacionais e, no devido tempo, o
estabelecimento de um governo mundial; e outra pessimista, que
deixava paradoxalmente, ao emprego da força, velado ou aberto, a
tarefa de encontrar um equilíbrio internacional e evitar o flagelo da
guerra. Das duas utopias, esta última – a pessimista – teve maior curso, na
medida em que as certezas decorrentes da posse e do uso da bomba
atómica suplantaram as duvidosas aspirações pelo estabelecimento de
um governo mundial. A mensagem pessimista, apresentada sob o rótulo
de “realismo” tornou-se clássica, e sua linguagem de valorização do
poder fez-se preponderante na cena internacional.

2 - O IDEALISMO:

2.1 Kant e a Paz Perpétua

Foi a partir da Guerra dos Trinta Anos, que surgiram na literatura jurídica,
propostas de criação de estruturas de cooperação internacional

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capazes de constituir a base de processos políticos mundiais para se
atingir a paz duradoura: são os chamados projectos de paz perpétua.23
Entre os projectos mais conhecidos estão o do abbé de Saint-Pierre (1658-
1743) e o de Immanuel Kant (1724-1804). Em tais projectos, e nos debates
que eles suscitaram, começam-se a focalizar, ainda que de modo
especulativo, as relações entre os tipos de governo internos aos estados
(por exemplo, a república, por oposição à monarquia absoluta) e a paz
mundial. Mas, já no final do século XVIII e início do século XIX, a Revolução
Francesa e a sua exportação para outros territórios através de guerras –
e não através da cooperação pacífica – pôs em evidência a dificuldade
de se conciliar a liberdade interna (república ou democracia) com a
externa (soberania). Na prática, a tensão entre a promoção da
liberdade dos indivíduos, de um lado, e a paz internacional, de outro, foi
inicialmente resolvida por uma última tentativa de se dar à política como
um todo um conteúdo ideológico ligado a valores pré-revolucionários
incompatíveis com a democracia. De fato, mediante um sistema de
alianças evocativo do ideal de unidade cristã europeia, o Congresso de
Viena (1814-1815) e a Santa Aliança procuraram preservar o mais
possível, no plano doméstico, o estilo de governo autocrático típico do
Antigo Regime, enquanto tentavam sustentar a moderna autonomia no
âmbito da política internacional. Mas o jogo político e económico
internacional, em interacção com as lutas internas em prol da
democracia, acabou esvaziando a política deste conteúdo ideológico,
substituindo-o pelo pragmatismo diplomático articulado através do
direito internacional positivo. Disso resultou o chamado “concerto
europeu”.

O que se passou, portanto, foi a formação de um sistema de estados


territoriais soberanos, que deu origem à “política internacional” como
conjunto de fenómenos a partir do declínio político do Sacro Império,
documentado na celebração da Paz de Westphalia. Contudo, a política
internacional e sua dinâmica passaram a se apoiar inicialmente sobre um
direito “internacional” adaptado do jus gentium, e não ainda sobre o
estudo das Relações Internacionais calcado em uma Teoria das Relações
Internacionais.

Do ponto de vista político, o “concerto europeu” foi uma expressão do


fenómeno chamado “equilíbrio de poder” (ou “balança de poder”), que
pressupunha a “igualdade” entre estados cooperando sob o direito
internacional. Contudo, na realidade, o “equilíbrio de poder” do
concerto europeu sustentava um programa selvagem de exploração
colonial e formação de alianças secretas e acirradas rivalidades, num
complexo jogo de interesses políticos e económicos, frequentemente
destrutivo das sociedades colonizadas e instigador de tensões políticas

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entre os países europeus. Polanyi atribui, não à actuação dos chefes de
estado assistida pelo direito internacional, mas sobretudo à haute
finance, a relativa paz que marcou o período. Sendo aceitável ou não a
interpretação de Polanyi, o fato é que nada, nem mesmo a astúcia do
pragmatismo diplomático ou a actuação dos financistas na
administração do padrão ouro internacional, foram capazes de evitar a
eclosão da Primeira Guerra Mundial em 1914, o conflito mais destruidor
até a época.

A este respeito, é importante lembrar que, durante a “paz de cem anos”,


e especialmente no século XX, houve um crescimento da democracia.
Com os parlamentos introduzidos como novo ingrediente nos processos
políticos internos, a administração conservadora, seja da diplomacia,
seja das finanças internacionais, ficou mais difícil, e a tendência à
mudança inesperada, mais comum. Neste sentido, o jogo político ficou
mais errático.

No campo financeiro, “o sufrágio universal masculino e o surgimento do


sindicalismo e partidos parlamentares trabalhistas politizaram a
formulação das políticas fiscais e monetárias”. E, no campo da política
internacional, “questões diplomáticas passaram do cálculo dos poucos
às paixões dos muitos”. Em resumo, a partir do final do século XIX, a
opinião pública passa a ter um peso expressivo no processo político
interno de muitos países. E isto contribuiu para aumentar as incertezas e
os constrangimentos aos governos e diplomatas na condução dos
assuntos de interesse público.

Esperava-se que a expansão do direito internacional, inclusive com a


imensa proliferação de tratados a partir da década de 1860, fosse
suficiente para evitar uma grande conflagração. Mas este não foi o caso.

Imannuel Kant (1724-1804) escreveu relativamente pouco sobre a


política pragmática, mas a sua notável excepção foi o ensaio acerca da
Paz Perpétua (1795), quando este filósofo alemão elaborou um
consistente projecto de federalismo mundial. Neste, ademais, postulou
uma forma relativamente democrática de governo, inserida no contexto
republicano de participação política, assim como de necessidade
primordial de desenvolvimento de um novo Direito Internacional,

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fundado num conjunto de normas superiores coercivas e oponíveis aos
Estados.

Kant que viveu numa época conturbada no plano das relações entre os
Estados preocupa-se, por outro lado, com a forma de evitar os conflitos
armados. Para ele, a guerra não poderá ser ultrapassada senão pelo
reconhecimento de um direito universal incorporado numa sociedade
civil universal. A razão prática irá então obrigar os homens a esforçarem-
se por ultrapassar o estado de guerra, por organizar a paz universal. As
provas porque terão de passar levá-los-ão a tentar sair do estado de
anarquia e entrar numa sociedade de nações.

Kant, com o seu “Projecto de Paz Perpétua”, aprofunda também a ideia


da humanidade universal e condena as ideias de nacionalismo, de
defesa nacional e de equilíbrio de poderes. Advogando uma federação
universal dos povos, exprime o pensamento cosmopolita, que considera
a comunidade dos indivíduos e das relações que entre eles se
estabelecem e desenvolvem como a verdadeira comunidade
internacional. Para Kant, o homem não pode realizar-se nos limites
estreitos da sua existência individual; tem necessidade de se associar e
constituir com o seu semelhante sociedades civis, submetendo as suas
liberdades à tutela de um direito comum.

FUNDAMENTOS NEOKANTIANOS PARA UM PROJECTO FEDERALISTA DE PAZ


PERPÉTUA

Augusto Zimmermann *
1 - Considerações Iniciais
Kant escreveu relativamente pouco sobre política pragmática, mas a sua
notável excepção foi o ensaio acerca da Paz Perpétua (1795), quando
este filósofo alemão elaborou um consistente projecto de federalismo
mundial. Neste, ademais, postulou uma forma relativamente
democrática de governo, inserida no contexto republicano de
participação política, assim como de necessidade primordial do
desenvolvimento de um novo Direito Internacional, fundando em um
conjunto de normas superiores coercivas e oponíveis aos Estados.
Nos dias de hoje, observa Octávio Ianni em sua análise sobre o advento

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da nova ordem
mundial,
“ o dilema consiste em constatar se está ou não havendo
uma ruptura histórica em grandes proporções, em âmbito
global, assinalando o declínio do Estado-nação e a
emergência de novos e poderosos centros mundiais de
poder, soberania e hegemonia. Nesta hipótese, o Estado-
nação continua vigente, mas com significados diversos dos
que teve por longo tempo no pensamento liberal e no
pensamento de algumas correntes marxistas, sem esquecer
sociais-democratas, neoliberais, fascistas e nazistas”. Por isso,
o ideal da paz universal deve ser realizado mediante
processos de globalização que levem em consideração "as
conjunturas sociais e históricas de cada um dos parceiros
nacionais convocados para decidir em pseudo-igualdade
de condições".
Neste breve ensaio, nos ateremos à teorização de um novo sistema
federativo mundial que, sob o prisma liberal neokantiano, compreenda
o conjunto específico das relações pluralistas, concernentes à escala de
competências envolvidas na consecução ou busca organizada do bem
comum. Envolve-nos, a todos deste presente estágio integrativo da
humanidade, a busca da organização jurídica desta rede complexa de
relações articuladas entre unidades políticas mais distantes e aquelas
que estão melhor aproximadas do indivíduo. Assim sendo, as pessoas
jurídicas de Direito Internacional, especialmente as colectividades
estatais e as organizações de carácter regional, precisam estruturar-se,
dentro de uma funcionalidade sistémica, que permita a realização de
arranjos políticos em níveis de poder local. Há, portanto, a necessidade
de melhor eficácia das decisões tornadas inoperantes em nível do poder

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central do Estado.
2 - A Necessidade de
Redefinição da Actuação
Estatal
A globalização permitiu que houvesse melhor controlo dos governantes
pela sociedade internacional. Por outro lado, assistiu-se ao
enfraquecimento dos valores culturais e a emergência das graves crises
de moralidade. Além do mais, nós estamos sofrendo de um problema
mundial gravíssimo de desemprego, como resultado do avançado grau
de desenvolvimento tecnológico. E, ao que tudo indica, o Estado
também padece de grave crise de legitimidade, directamente
associada à profunda ineficácia das políticas públicas adoptadas.
Segundo André-Noel Roth :

“ a crise actual do Estado indica que os mecanismos


económicos, sociais e jurídicos de regulação, postos em pé
há um século, não mais funcionam. O Estado Nacional já
não está em capacidade de impor soluções, seja de um
modo autoritário ou seja em negociação com os principais
actores socio-políticos nacionais, aos problemas sociais e
económicos actuais”.
Para Roth, enfim, isso vem ocorrendo por causa da globalização que
reduz a autonomia dos estados nos aspectos jurídicos, económicos,
políticos e militares de sua soberania, criando-se uma interdependência
entre eles, que “influi sempre mais na definição das políticas públicas
internas de cada Estado”.
O resultado é que a soberania nacional vem-se esvaindo, restringida que
está pela integração económica, num mesmo momento em que os
grandes grupos económicos transferem as suas unidades de produção e

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os sistemas financeiros realizam fabulosas transferências de capital.
Com isso, as engrenagens decisórias do Estado ficam postas em xeque,
redundando na desconcentração do aparelho estatal e na ruptura do
modelo de auto-suficiência interna. Intriga-nos a presente situação,
dentre outros fatos, porque:
“nós crescemos com governos que absorveram para si todos
os monopólios do poder: não apenas o da violência física,
mas também o da capacidade de criação dos impostos e
o de imposição de suas leis. Hoje isto está mudando. A
primeira razão seria porque os Estados não estão mais
claramente definidos a respeito de suas soberanias sobre o
espaço físico e as suas capacidades militares para defendê-
lo. Através desta transformação histórica, de um sistema de
Estados governados para a guerra, a primazia de um único
nível (o nacional) desaparece, cedendo o seu lugar a
diferentes níveis de governo, do transnacional ao local, e
que podem competir por lealdade, recursos e poder. Porque
sendo significante o senso de que os Estados têm decaído
em termos de suas capacidades e competências, há razões
para que nós agora precisemos de autênticas revoluções
que coloquem estes Estados actualizados com o presente e
ajudando-os a se livrar de suas duas nítidas ´escleroses´: a
externa, de estarem retidos em grandes grupos de interesse;
e a interna de estarem retidos sobre anuladores modos
burocráticos de trabalho”.
Em face da aparente impotência do Estado, diversas actividades e
responsabilidades passaram a ser assumidas internacionalmente, para
que recebam o concurso e a colaboração de actores não nacionais. As
interacções transnacionais, neste caso, são as que mais reduzem ou

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restringem as acções governamentais nos campos das actividades
social e económica. Por isso, os Estados tiveram de aumentar o grau de
integração política com as outras colectividades estatais, buscando
arranjos e instituições multilaterais para a tentativa de controlar os efeitos
desestabilizadores que acompanham o desenvolvimento das inter
conexões globais. Através da notória existência de aproximação dos
Estados nacionais, existe uma efectiva revolução em termos de maior
eficácia jurídica do Direito Internacional, constatada pelo incremento
do poder das organizações internacionais (ONU, União Europeia, FMI...).
Além disso, é cada vez mais intensa a progressão e a multiplicação dos
tratados de cooperação económica (CEE, Mercosul, Nafta, Alça...),
reflectindo a permanente dinâmica do processo globalizador.
3 - Emanuel Kant e a sua Proposta Federalista de Paz Perpétua
O pensamento de Emanuel Kant sobre as relações internacionais age em
congruência com o restante de suas concepções liberais em matéria de
filosofia política, havendo deste modo de se realizar o embasamento na
lei natural e na esperança de progresso moral da humanidade.
Fundamentando-se em comando normativo capaz de por cobro
definitivo à desordem existente na sociedade internacional, o
posicionamento teórico kantiano entende ser necessária a intervenção
de um novo poder internacional, deliberado segundo a razão federalista
de conotação liberal, no sentido da eliminação das guerras entre os
povos de todo o mundo.
Em Paz Perpétua, breve ensaio de 1795, Kant propôs o seu clássico
modelo de Federalismo Mundial, segundo o qual buscaria alertar os
homens ilustrados de sua época para a necessidade da paz definitiva
entre os Estados. Segundo o iluminista, as colectividades estatais
deveriam pactuar o término dos conflitos, em sentido análogo ao que
faziam os indivíduos se unirem contratualmente para a constituição da

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sociedade civil.
Tratava-se, outrossim, de verdadeiro imperativo categórico estatal, a
colaboração para o grandioso projecto moral de construção jurídica da
nova comunidade
internacional, tendo por finalidade básica à visão nitidamente
hobbesiana de que “o estado de paz entre os homens vivendo lado a
lado não é o estado natural; porque o estado natural é um, estado de
guerra".
Na realidade, o tom pessimista de Paz Perpétua reflecte, em larga
medida, a situação dramática enfrentada pelos povos da Europa em
1795, combalidos pelas guerras entre as grandes nações do Velho
Continente. Neste contexto, ao estado natural de guerra se referia Kant
às reacções conflituosas entre as potências europeias, provindo
exactamente deste facto a proposta da confederação de Estados livres,
em forma de Liga das Nações para a paz mundial.
O essencial do projecto de Paz Perpétua é a postulação de conquista
da liberdade universal alcançável através de regras de Direito que
permitam a harmonização da conduta externa, de um determinado
Estado, com a das demais colectividades estatais. O que pretende Kant,
outrossim, é realizar a transplantação do ideário iluminista da lei como
geradora de liberdade individual, para a perspectiva do Direito
conquanto instrumento pacificador das relações entre os povos, por
força do desenvolvimento de uma Constituição geral dos Estados
nacionais.
Na visão kantiana, se os Estados permanecessem, no âmbito das
relações internacionais desprovidos de regras básicas, que em última
análise são as que permitem a existência de liberdade, eles
continuariam a violar os direitos dos cidadãos, em função de seus
propósitos expansionistas. Assim sendo, como os Estados podem

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escravizar as futuras gerações com dívidas de guerras e corromper a
moralidade pública, a realização de um autêntico Estado de Direito em
nível internacional minimizaria esta ameaça, mas estaria dependente da
formação de uma nova ordem federativa mundial, por Kant
denominada de foedus pacificum.
Hannah Arendt, compreendendo magnificamente o posicionamento
kantiano, observou que a preferência do filósofo alemão pelo sistema
confederativo para a sociedade internacional, se devia pelo facto dele
saber “perfeitamente bem que um governo mundial – de carácter
centralizador – seria a pior tirania imaginável”.

Por isso, Kant postulou tão-somente a formação de uma ordem


pluralista de colectividades estatais soberanas, fundamentada na
regulação jurídica das relações federativas internacionais.
Descoberta a finalidade da paz perpétua como espécie de princípio
moral apriorístico, a cessação das hostilidades requereria o êxito do
acordo real, e não de uma mera idealização desprovida de plena
eficácia jurídica. Desse modo, o desejo pacificador perpassaria a
inexorável reorganização da sociedade internacional, havendo de se
destacar a importância do Direito como instrumento concretizador do
ideário de convivência pacífica e harmoniosa entre as nações.
Sofrendo do optimismo congénito que atinge a quase totalidade dos
liberais, Kant preservou uma visão extremamente positiva da natureza
humana. Por isso, chegaria mesmo a afirmar que o povo não se
interessava pela guerra. Com este argumento tomado como apriorístico,
mas que também é bastante questionável, muito embora gostaríamos
de acreditar sê-lo verdadeiro, o filósofo então pôde associar o ideal de
paz ao processo, segundo ele natural, de constituição do poder político
internacional, de acordo com os ditames categóricos de justiça.

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Para Kant, a guerra só não representaria um dano menor do que o da
formação de uma monarquia universal, aqui tomada numa visível
conotação de surgimento do Estado Unitário Mundial. Por outro lado, a
existência da pluralidade federativa de nações, conjuntamente a todos
os conflitos positivos engendrados, redundaria em maior veículo do
progresso humano. Norberto Bobbio, por isso, atesta que a república de
Kant não apenas seria “a melhor forma de governo no que diz respeito
às relações entre o Estado e os cidadãos, mas também no que diz
respeito às relações entre os Estados”. Por que, segundo este raciocínio,
um federalismo republicano “garantiria melhor do que qualquer outro,
internamente, a liberdade, e externamente a paz”, como “condição
principal daquela coexistência pacífica na liberdade ou livre na paz, que
constitui o ideal moral da espécie humana “.
Acrescente-se que o elitismo de Kant reservaria aos filósofos um papel
de destaque na formação do processo de paz e governação
internacional. Em seu projecto confederativo esteve incluída uma
esdrúxula cláusula secreta que obrigava à consulta dos filósofos. Esta
deveria ser levada em conta pelos Estados beligerantes, sob o pretexto
de que, se o poder corromperia o livre julgamento da razão, os filósofos,
em sua “pureza de pombas”, poderiam de melhor forma se contrapor à
“astúcia das serpentes políticas”.
Ademais, se Kant foi o primeiro pensador de tipo federalista da Europa,
havendo postulado um modelo lato sensu de federalismo mundial, mais
propriamente confederativo, numa visão federativa era visivelmente
autónoma dos valores e do curso da história, a sua concepção
distorcida. Conforme expôs Lúcio Levi sobre esta questão, em
“não tendo reflectido sobre a natureza da inovação
constitucional que permitira a fundação dos Estados Unidos
da América, não conhecia o funcionamento do Estado

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federal e, portanto, não possuía os instrumentos conceptuais
para conceber, de uma forma real, a possibilidade de um
Governo democrático mundial capaz de limitar a soberania
absoluta dos Estados, mas que também por eles fosse
limitado”.
O projecto de federalismo mundial a que se referia Kant, portanto, era
na realidade
simplesmente um projecto de confederação mundial, porque os Estados
permaneciam soberanos. Em outras palavras, o filósofo não soube
diferenciar federação de confederação, que já era existente desde
1787, com a formação constitucional dos Estados Unidos da América.
De todo modo, Kant acabou se tornando uma espécie de prisioneiro
da teoria unitária do Estado, de tanto temer “que a federação mundial
pudesse degenerar em tirania”. Nesse ponto, constata Lúcio Levi,
“ todas as vezes que abordou o problema do poder político
mundial foi induzido a optar pelo seu ´sucedâneo´ negativo,
isto é, uma confederação de Estados, que, mantendo a
soberania absoluta de seus membros, perpetuaria a
anarquia internacional, que o Governo mundial teria que
eliminar ”.
O temor de Kant em relação à existência de governo mundial era
perfeitamente justificável. O iluminista almeja em seu projecto federalista
o máximo da liberdade universal, que era prejudicada pelas guerras
entre os Estados. Somente o vínculo sócio-contratual seria capaz de
retirá-los desta espécie de estado de natureza, legando à humanidade
o constitucionalismo mundial de carácter federativo. Mas a situação
anárquica, típica deste estado de natureza entre as nações, ainda seria
um mal infinitamente menor do que o da formação do governo único
mundial.

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Kant, sensatamente, receava que um Estado unitário mundial pudesse
legar o espectro do despotismo sob todos os povos. Por isso, para ao
mesmo tempo se evitar a anarquia e o despotismo, gerando a paz e a
liberdade, é que o iluminista elaborou um projecto republicano e
federalista de paz perpétua.
4 - Por um Projecto Neokantiano de Federalismo Mundial
A construção do sistema federativo mundial importaria em repartição
racional de competências, resultante em distinção e reconhecimento
jurídico de unidades políticas autónomas.

Ficaria consubstanciado, ademais, através de medidas consensuais de


diferentes partes, permitindo-se a realização criadora das bases lógico-
racionais concernentes à formação de organizações políticas supra
estatais verdadeiramente voltadas à manutenção da paz mundial e
cooperação entre os povos. Tudo isso, contudo, em havendo de se
respeitar o princípio da subsidiariedade, de tal modo que o nível inferior
de poder, aquele melhor aproximado do indivíduo, jamais viesse a ser
preterido aos níveis superiores de poder.
A contextualização da realidade poli cêntrica de transformação do
espaço público mundial indica que os Estados muito cedo se
transformarão em níveis intermediários de deliberação normativa e
actuação política. Outros níveis de poder surgirão com maior força,
competindo igualmente pela lealdade cívica dos cidadãos. E, tendo-se
em vista O ambiente de relações globais cada vez mais intensas, a teoria
federalista denota a possibl1idade integradora da política em diferentes
espaços societários da humanidade. Por isso, nós ousaríamos até mesmo
diagnosticar que o federalismo é desideratum precípuo, quando se trata
de globalizar a política. A União Europeia, outrossim, é prova mais que
contundente deste facto.
É importante atestar, ademais, que a perspectiva do federalismo

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mundial coincide
perfeitamente com os princípios básicos da filosofia política de Tomás
de Aquino, assim como a de Aristóteles. Sob este prisma, a auto-
suficiência, muito embora relativa, é como uma propriedade essencial
da sociedade perfeita, ao qual tende a humanidade inexoravelmente
em sua busca por formas políticas organizadas. Assim sendo, quando a
paz e a auto-suficiência não podem ser garantidas pela simples forma
de poder local (como, por exemplo. a Cidade-Estado) ocorre a
necessidade da criação de outra forma mais complexa (como, por
exemplo, o Estado-nação).
A questão básica, contudo, reside neste que é o problema crucial dos
novos tempos, de se saber se, dentro de sistemas globais, haverá espaço
para a pluralidade e a tolerância, alcançáveis pela composição
federalista e do Estado de Direito, ou se serão esmagadas todas as
autonomias e adoptada a forma tirânica, unitarista e homogénea de
governação mundial. Neste caso, a organização federativa da política
mundial adquire uma conotação quase salvadora, para a preservação
das liberdades fundamentais, tanto individuais quanto colectivas.
Integradas num sólido contexto jurídico de harmonização básica das
diferenças, o sistema federalista mundial respeitaria os interesses
divergentes e somaria apenas os efectivamente convergentes.
Assim sendo, o debate federalista mundial perpassa a base moral e
atinge a conjuntura jurídica em sua plenitude, onde direitos e obrigações
estatais precisam compreender os paradigmas de paz perpétua e
integração entre os povos. Os Estados, neste aspecto, se tornam partes
de um todo onde os elementos devem permanecer livres em face não
mais do jus gentium, mas de uma verdadeira Lei Fundamental, que
consagraria ao mundo o dever de se proteger os direitos fundamentais
da pessoa humana e os limites do poder político.

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5 - Considerações Finais
A procura de um super estado mundial nada mais é do que a velha e
fracassada utopia de, formação do Império universal. Esta mesma utopia
que, diga-se de passagem, foi diversas vezes almejada através do
domínio imperial de uma única Nação. Adolf Hitler tentou subjugar os
povos não arianos. Antes dele o Imperador Napoleão Bonaparte
também tentou fazer o mesmo em proveito dos franceses. A tentativa
hodierna, visivelmente pacífica, não deve ser implementada mediante o
domínio imperial, mas exactamente por força normativa de um novo
sistema federativo mundial.
É mister, portanto, que a sociedade internacional respeite as
particularidades, encontrando-se os mecanismos minimamente
necessários de superação das dificuldades ocasionadas pelo
pretensioso mito da soberania nacional, que tantos males têm causado
à Humanidade. Deve-se, ademais, persistir quanto à denúncia de todos
os desvios éticos, apresentados pelos maus governantes, bem como no
respeito às diferenças naturalmente existentes, para que estas não
resultem no egoísmo destrutível do pacto entre os povos para a
consecução da paz universal.
A aversão kantiana ao governo mundial é perfeitamente justificável em
sua magnífica sensatez, tendo-se em vista o nítido potencial arbitrário, e
até mesmo despótico, de todo o poder político. A garantia de liberdade
e justiça somente brotará quando as regras jurídicas internacionais se
revelarem seguras à promoção de certos princípios básicos de direito,
que saibam exactamente como preservar a pluralidade de interesses,
bem como instituir regras jurídicas, morais e, até mesmo, ecológicas,
através das quais seja processada a coexistência pacífica dos
fenómenos sociais infinitamente diversificados.
O que nos seduz na proposição desta ideia neokantiana de federalismo

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mundial é, conforme nós já observamos, a possibilidade do oferecimento
de políticas ao mesmo tempo justas e pragmáticas, naquilo que é
indispensável e mesmo exigível dentro do contexto inexorável da
presente globalização. Acresça-se, portanto, o fato da nova prática
política exigir a correlata transformação das bases teóricas da
modernidade, despertada para uma ordem mundial inter conectada e
alimentadora constante dos mecanismos de abordagem global.

2.2 A Primazia do Direito Internacional

Perante a existência de duas ordens jurídicas, a estadual e a


internacional, ou se entende que as duas são independentes uma da
outra e que cada uma delas precisa de ter normas específicas sobre a
sua relação recíproca, ou se pensa, ao contrário, que o Direito constitui
uma unidade, de que ambas são meras manifestações, ficando a
validade das normas interna e internacional a resultar da mesma fonte a
elas comum. No primeiro caso estamos perante o dualismo ou pluralismo;
no segundo temos o monismo.

A construção monista difere conforme a prevalência dada à norma


interna ou à norma internacional, isto é, o monismo com primado do
Direito interno e o monismo com primado do Direito internacional.

De uma maneira geral, são as três grandes concepções que


classicamente foram propostas para explicar as relações jurídicas entre o
Direito interno e o Direito Internacional.

a) Tese dualista
A concepção dualista, deriva do voluntarismo pluriestadual, devendo
sobretudo à Triepel e Anziolotti.

Segundo Triepel, o Direito Internacional e o Direito interno são


profundamente diferentes tanto no que respeita as fontes – no Direito
interno é a vontade do Estado, no Direito Internacional a vontade de
vários Estados – como aos sujeitos – os sujeitos de Direito Internacional são
os Estados, os de direito interno as pessoas singulares e colectivas. Para
além destas diferenças resta ainda referir que as duas ordens têm
características jurídicas distintas.

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Para os dualistas a norma interna vale independentemente da regra
internacional, podendo quando muito, levar à responsabilidade do
Estado; mas a norma Internacional só vale quando for recebida, isto é,
transformada em lei interna. A simples ratificação não opera essa
transformação.

Esta doutrina tem sido alvo de várias críticas pelo seguinte:

▪ Por um lado, ela tem todos os inconvenientes do voluntarismo,


como por exemplo, o de se referir aos tratados e não ao costume,
o que esquece que também o costume internacional é aplicado
pelos tribunais internos.

▪ O simples facto de uma norma interna, contrária a um tratado,


vigorar, não justifica o dualismo, já que o mesmo pode suceder
na ordem interna com os regulamentos administrativos ilegais e
as leis inconstitucionais.

▪ Por fim a diversidade de sujeitos não é também verdadeira, pois


que hoje em dia o indivíduo é sujeito tanto de Direito interno como
do Internacional.

É esta a principal crítica que se faz ao dualismo, tese que, além do


mais, é desmentida pela própria evolução do Direito Internacional.
Com efeito, o Tribunal Permanente De Justiça Internacional, que
chegou a adoptá-la oficialmente, ele mesmo proferiu muitas
decisões que só são na verdade explicáveis pelo monismo.

b) A tese monista com primado do Direito Interno

Esta tese resulta do voluntarismo uni-estadual (Zorn, Wenzel, Jellinek) não


sendo mais do que a negação do Direito Internacional.

Além das críticas de carácter doutrinal, existem as de ordem técnica, que


se opõem a esta tese: em caso de mudança interna da constituição, o
Estado continua vinculado no plano Internacional pelos tratados que
ratificou; e segundo dispõe a convenção de Viena de 1969, nenhum
Estado pode invocar as suas normas internas para se eximir ao
cumprimento das suas obrigações internacionais. Isto significa
claramente que, no estado actual do ordenamento jurídico
internacional, a validade do Direito Internacional não depende da
validade do Direito interno.
c) A tese monista com primado do Direito Internacional

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Esta tese resulta da rejeição do voluntarismo, sendo a corrente mais
satisfatória do ponto de vista intelectual e a mais consentânea com
o estado actual das relações jurídicas na Comunidade Internacional.

A ordem jurídica interna cede, cede em caso de conflito, perante a


Internacional. Esta traça os limites da competência daquela. O
legislador não pode criar regras internas contrárias ao Direito
Internacional.

A tese em causa pode, no entanto, ser radical (Kelsen) ou moderada


(Verdross). O primeiro caso, diz que em todo e qualquer caso a regra
interna contrária à Internacional é nula, levando a um paralelo
prematuro com o federalismo. A concepção Kelseniana, seria assim
correcta num Estado Federal, mas a verdade é que a Comunidade
Internacional não o é ainda.

Pelo contrário, o monismo moderado reconhece ao legislador


nacional um campo bastante amplo de liberdade de acção. Esta
tese, na prática, chega a conclusões bem próximas as do dualismo
moderado.

2.3 Wilsonismo e a Organização da Comunidade internacional

O período entre guerras correspondeu a um período das relações


internacionais para o qual os analistas não forjaram expressões uniformes,
como ocorreu com a bipolarização ou a guerra fria, entre 1947 e 1989. A
preocupação em qualificar o período está presente, todavia, nas
interpretações de conjunto e revela uma convergência de ideia nas
expressões a ele atribuídas pelos historiadores. Um período de “paz
ilusória” ou “paz frustrada”, para Jean Baptiste Durosselle; de “crises”,
para Pierre Renouvin; de “ turbulência europeia”, para René Girault e
Robert Frank; um “ arranjo de transição” entre vencedores, para Adam
Watson; uma “era da catástrofe”, para Eric Hobsbawm, ao considerar o
período de 1914-1945. A Primeira pergunta que convém formular acerca
do entre guerra nos leva pois, a questionar a maneira como foi
regulamentada a paz ao término da Primeira Guerra Mundial. A segunda,
ao modo como se dará o desmonte do mundo liberal edificado no
século XIX, enfim como irão se comportar os actores num novo contexto
internacional.

No fim da guerra, Wilson, um intelectual, filho de um ministro presbiteriano


e ex-reitor da Universidade de Princeton, patrocinou um plano para
manutenção da paz, calcado em uma visão moralista e idealista do

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direito internacional expressa nos seus famosos “Catorze Pontos”. Neste
seu plano, Wilson que sonhava com a possibilidade de uma revolução
nas concepções e nas práticas da política internacional e da
diplomacia, com intuito de inaugurar uma nova era de entendimento e
de paz entre as nações, e aproveitando a exaustão da Europa,
apresentou à conferência de Versalhes, em Janeiro de 1918, um relatório
com 14 pontos, no último dos quais se inscrevia a necessidade de criar
uma Sociedade Geral das Nações capaz de arbitrar os conflitos e
preservar a paz.

O pacto da Sociedade das Nações nasceu de uma ideia remota de


solução pacífica de controvérsias e de cooperação internacional, porém
vingou ao ser incluído nos catorze pontos e ao ser firmado, a 28 de Abril
de 1919, como anexo aos tratados de paz. Destinava-se a Sociedade das
Nações a promover o desarmamento, a paz e a segurança mútua de
seus membros, 55 países no início, correspondendo a três quartos da
população mundial. Constituía-se assim a primeira grande expressão
formal do ideal de segurança colectiva (um sistema que reage contra
qualquer agressão considerada injusta em face do Direito Internacional);
e afirmava-se novamente a tradição personalista europeia, coadjuvada
pelo universalismo wilsoniano, que aliás não triunfou na sua própria pátria,
já que o senado norte-americano rejeitou a participação dos EUA na
Sociedade das Nações.

A Primeira Guerra mundial marca o início de um novo período da


evolução da comunidade e do desenvolvimento das relações
internacionais. De facto, os efeitos e as consequências da guerra
traduzem-se, por um lado, na transformação da comunidade
internacional, e, por outro lado, no aparecimento de novas modalidades
de relacionamento entre os actores internacionais.

A criação da Liga das Nações dava realidade a algumas das ideias


veiculadas nos “projectos de paz perpétua” do século XVIII e representou
uma primeira tentativa concreta de mudança das práticas políticas
típicas do modelo Vestfaliano. A esperança de Wilson era que a
cooperação internacional através do direito internacional repassado de
um moralismo idealista pudesse oferecer os meios para a manutenção
da paz duradoura.

Deflagrada a guerra em 1914, os Estados Unidos, coerentemente com a


sua prática de “esplêndido isolamento” diante da intricada política
europeia, permaneceram inicialmente afastados do conflito. Mas os
americanos, liderados pelo presidente Woodrow Wilson, mudaram de
posição em resposta à beligerância alemã sobre o tráfego comercial de

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seu país com as Potências Aliadas. Justificando o seu pedido de
declaração de guerra formulado ao Congresso em Abril de 1917, Wilson
argumentou:

“A actual guerra submarina alemã contra o comércio é uma guerra


contra a humanidade”. As sonoras palavras de Wilson expressavam a sua
convicção de que a sua política poderia oferecer ao mundo “aquelas
inspirações morais que estão na base de toda liberdade”, e
prenunciavam como o seu estilo e pensamento iriam influenciar a prática
da política internacional no futuro próximo.

A criação da Liga das Nações dava realidade à algumas das ideias


veiculadas nos “projectos de paz perpétua” do século XVIII e representou
uma primeira tentativa concreta de mudança das práticas políticas
típicas do modelo westphaliano. A esperança de Wilson era que a
cooperação internacional através do direito internacional repassado de
um moralismo idealista pudesse oferecer os meios para a manutenção
da paz duradoura.

Do ponto de vista ideológico, o liberalismo democrático e idealista


wilsoniano contrastava com a visão leninista da política internacional,
marcada pela sua denúncia do imperialismo capitalista, sua ênfase no
internacionalismo proletário e seu desiderato de uma revolução socialista
internacional. O cenário foi assim descrito por Hoffmann: “Velhos sonhos
normativos liberais estavam sendo oferecidos pelo tratado da Liga das
Nações, enquanto ao mesmo tempo a jovem União Soviética estava
pregando o fim da própria diplomacia”. Entre esses dois pólos
posicionavam-se diversos autores como Woolf, Zimmern, Angell e Mitrany
– que acabaram rotulados de “idealistas” – impressionados com as
transformações sociais oriundas do rápido progresso industrial e convictos
da necessidade da cooperação internacional mediante instituições
supranacionais.

Porém, o advento, em 1939, de uma segunda conflagração mundial de


proporções inéditas precipitou reacções por parte de intelectuais,
condenando o “utopismo” da postura e dos meios de acção típicos do
wilsonianismo. Foi neste momento que veio a lume o livro The Twenty
Years’ Crisis, 1919-1939, de Edwad Carr.35 Esta obra tornou-se a referência
que emblematiza o começo do estudo “científico” das Relações
Internacionais, marcando assim o início da tradição da Teoria das
Relações Internacionais.

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Um dos pontos centrais da argumentação de Carr era que, embora o
conhecimento científico fosse um resultado tanto de “finalidades”
práticas quanto de “análise” abstracta, era possível se adoptar uma
postura “realista” capaz de expurgar do trabalho intelectual as ideias
visionárias de mudança da realidade.36 Portanto, a TRI surge como uma
tomada de posição “realista” diante dos fatos da política internacional e
da avaliação que diversos políticos e autores à época faziam desses
fatos. Isto significa que o primeiro “debate” do estudo das Relações
Internacionais como disciplina que se professava “científica” foi o debate
do “realismo” contra o “idealismo” do período entre guerras.

2. 2 - O REALISMO CLÁSSICO

2.2.1 Os Antecedentes Históricos (Tucídedes, Maquiavel, Hobbes e


Weber)

A teoria realista tem origens intelectuais que podemos ir buscar ao


mundo antigo.

Tucídedes, o historiador grego da época clássica alargou a sua análise


para abranger todo o sistema de relações entre as cidades-estado,
gregas, examinando as questões da diplomacia, do imperialismo, da
formação de alianças, da guerra e da paz, os motivos que determinam
a acção política (medo, honra e interesses) e o confronto dialéctico
entre poder e valores morais. Tucídedes é autor da grande obra clássica
intitulada “ A Guerra do Peloponeso”. A importância que Tucídedes
dispensou ao fenómeno do poder, a par da propensão dos Estados para
formarem alianças defensivas, fez com que este autor fosse colocado
bem no seio da escola realista. Sem nunca aprovar a forma em que os
Estados normalmente agem, este autor reconheceu no entanto os factos
da vida política. A Constatação que encontramos nos seus escritos de
que «os fortes fazem aquilo que o seu poder lhes permite fazer e os fracos
aceitam aquilo que têm que aceitar» tipifica grande parte do
pensamento realista do século XX.

Tal como Tucídedes desenvolveu um entendimento da conduta dos


Estados no mundo antigo, através da sua observação das relações entre
Atenas e Esparta, Maquiavel analisou as relações entre os Estados no
interior do sistema italiano do século XVI. O Príncipe de Maquiavel
encontra-se claramente ligado à teoria realista através: a) do destaque
que dá à necessidade de o governante adoptar padrões morais
diferentes dos do indivíduo comum com o objectivo de garantir a

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sobrevivência do Estado; b) da sua preocupação com o fenómeno do
poder; c) do seu pressuposto de que a política é caracterizada pelo
conflito de interesses; d) da sua visão pessimista acerca da natureza
humana.

Com Nicolau Maquiavel, dá-se a ruptura decisiva com a extensa


tradição da teoria política moral, pois o que este autor faz é reflectir sobre
os novos imperativos seculares e a diplomacia bizantina do sistema de
cidades-estado italianas do renascimento. O Príncipe, de Maquiavel,
esse antecedente da moderna análise realista do poder e das suas
realidades em acção no sistema de Estados, trouxe aquilo que entendia
ser a abordagem neutral às ciências do Estado.

Thomas Hobbes identificou o poder como central no comportamento


humano: o Homem é caracterizado por um «desejo perpétuo e irresistível
de poder que só cessa no momento da morte». Hobbes acreditava que
«os pactos sem a espada, são meras palavras que não dispõem de força
para proteger um único homem». Sem um soberano forte, o caos e a
violência sucedem-se: «Quando nenhum poder se ergue, ou nenhum
suficientemente forte para a sua segurança, cada homem confiará,
além do mais legitimamente, na sua própria força e cautela contra todos
os outros homens».

Hobbes também deu atenção às forças que determinam a política e à


natureza do poder nos relacionamentos políticos. Embora acreditasse na
necessidade de um soberano forte para a manutenção da ordem no
interior de um sistema político. Hobbes encontrava poucas possibilidades
para a alteração fundamental do comportamento humano ou do
carácter anárquico do panorama internacional.

Entre os antecedentes da teoria realista encontramos ainda a obra de


Max Weber, cujos escritos trataram extensamente não só da natureza da
política e do Estado mas, ainda, do poder enquanto elemento central da
política. Weber, no que concerne à teoria realista, grande parte das
formulações contidas na sua obra vieram a influenciar gerações
sucessivas de escritores e académicos. Para Weber como para os
realistas ulteriores, a característica principal da política é a luta pelo
poder e, além do mais, esse fenómeno do poder que caracteriza a vida
política é especialmente evidente a nível internacional porque «cada
estrutura política naturalmente prefere ter vizinhos fracos e vizinhos fortes.
Mais do que isso, e como cada comunidade política de grande
dimensão é um potencial aspirante ao prestígio, ela é igualmente uma
potencial ameaça para todos os seus vizinhos; daí se segue que a

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comunidade política de grande dimensão, pelo simples facto de ser
grande e poderosa, está latente e permanentemente em perigo».

2.2.2 Eduard E. Carr e a Crítica ao Idealismo

Ninguém, até a Segunda Guerra Mundial, analisou de forma tão


penetrante como Carr, as divergências filosóficas existentes entre
utópicos e realistas. A sua principal obra, embora publicada em 1939,
não conseguiu ter o impacto esperado nos EUA até o fim do conflito. Foi
neste livro que Carr utilizou a expressão “utópicos” para caracterizar um
vasto conjunto de autores idealistas que sublinhavam a importância do
direito e das organizações internacionais e da influência da ética e da
opinião pública nas questões das nações. Não terá sido, contudo, sua
intenção fazer com que esta expressão fosse conotada de forma
pejorativa, como aconteceu após a Segunda Guerra Mundial, e
associada à oposição face à política de poder defendida pelos realistas.
Com efeito, desde o fim da Guerra Fria, o conceito idealista da harmonia
dos interesses nacionais tem recebido atenção renovada à luz do
recente debate entre neoliberais e neo-realistas.

O fracasso da Sociedade das Nações colocou grandes reticências à tese


da harmonia de interesses. Esta parecia estar de acordo com os
interesses do status quo, das potências satisfeitas e do mundo
democráticos ou totalitários que procuram a redefinição das fronteiras,
reconhecimento internacional, mais poder e em especial no caso da
Alemanha nazi, a vingança pela humilhação imposta pelo tratado de
Versalhes na pós-primeira Guerra Mundial. Contrariamente às suposições
dos idealistas, a autodeterminação nacional nem sempre trouxe consigo
governos representativos. Ao contrário, a dissolução da antiga ordem dos
impérios, deu origem, em muitos lugares, incluindo a Rússia, os Estados
opressivos e totalitários. O Pacto Molotov-Ribbentrop, de Agosto de 1939,
entre a União Soviéticas e a Alemanha nazi, deu tom para a invasão da
Polónia pelas tropas de Hitler, o início da Segunda Guerra Mundial, a
partilha da polónia e a absorção dos Estados bálticos pela União
Soviética, tudo isto em flagrante violação do código de conduta
internacional avançado pela teoria utópica.

Com o livro de Carr, começa a ganhar preponderância a visão teórica


“realista” da política internacional. Se há uma característica básica do
realismo é a sua justificação do uso da força, seja como condição
inevitável da vida em sociedade, seja como meio de se atingir a paz no
mundo. Com o advento da Segunda Guerra Mundial, este argumento
típico do realismo se dirige contra as esperanças liberais idealistas, de que
a observância de princípios morais altaneiros, em nome da liberdade e

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da democracia, poderia oferecer a base do convívio internacional
pacífico. Para o realismo, as guerras não tinham sido o resultado fortuito
de algumas circunstâncias acidentais, ou do comportamento de alguns
homens maus, e sim uma consequência das condições inerentes à
política e ao sistema internacional. Neste sentido, Carr escreveu: “Não é
verdade, como o Professor Toynbee acredita, que temos vivido em uma
era excepcionalmente perversa. Não é verdade, como o Professor
Zimmermenn supõe, que temos vivido em uma era excepcionalmente
estúpida.

E é menos verdade ainda que, como o Professor Lauterpacht mais


optimisticamente sugere, o que temos experimentado é ‘um transitório
período de retrocesso [...]. Constitui um escapismo fútil alegar que temos
testemunhado, não a falência da Liga das Nações, mas apenas a falha
daqueles que se recusaram a fazê-la dar certo. A ruptura da década de
1930 foi muito perturbadora para ser explicada apenas em termos da
acção ou da inacção individuais. A sua ruína envolveu a falência dos
postulados em que estava baseada.”

Mas o grande impulso da disciplina ocorre nos Estados Unidos. Isto em


boa parte se explica porque eram os Estados Unidos que agora haviam
se tornado a potência hegemónica: à pax Britannica do século XIX
sucedia a pax Americana do século XX. Além disso, nos Estados Unidos
havia condições institucionais favoráveis ao desenvolvimento da
disciplina. Por um lado, os Estados Unidos possuíam um sistema
universitário mais flexível e variado do que os de países europeus. Dada
esta flexibilidade e variedade, diversas universidades americanas tinham
grandes departamentos de Ciência Política, com capacidade suficiente
para dedicar recursos ao estudo da política internacional. Por outro lado,
os Estados Unidos não tinham uma carreira diplomática com um
programa de treinamento fechado, que tendesse a circunscrever ao seu
âmbito institucional as discussões de política externa.

A teoria realista que floresceu nos Estados Unidos após a Segunda Guerra
em reacção ao moralismo utópico do estilo de política de Woodrow
Wilson rapidamente ganhou adeptos. O debate entre o realismo e o
idealismo ocorreu entre o final da Segunda Guerra Mundial e meados dos
anos 1950, sendo marcado pelo final da Guerra da Coreia (1953). A
resultante ascendência ganha pelo realismo influenciou homens de
estado como Dean Acheson, George Kennan e Henry Kissinger. O
realismo tornou-se assim uma importante referência teórica para a
política externa americana no período da Guerra Fria. Em outras
palavras, a teoria realista serviu para fundamentar a política externa
americana por muitos anos. Como disse Hoffmann:

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“O que os académicos ofereciam, os formuladores de política queriam.
Com efeito, há uma notável convergência cronológica entre as
necessidades deles e a performance dos académicos [...] O que os
líderes procuravam, uma vez iniciada a Guerra Fria, era alguma bússola
intelectual que servisse para múltiplas funções: exorcizar o isolacionismo
e justificar um envolvimento permanente e global na política mundial;
racionalizar a acumulação de poder, as técnicas de intervenção e os
métodos de contenção aparentemente exigidos pela Guerra Fria [...] O
‘realismo’ oferecia justamente isto.”

Foi assim que a visão teórica do “realismo” veio a praticamente dominar


as discussões sobre a política internacional após a Segunda Guerra
Mundial, tornando, inclusive, o estudo da estratégia a área
preponderante da disciplina de meados dos anos 1950 a meados dos
anos 1960. Os realistas viam o sistema internacional como “anárquico”
(não há princípios normativos superiores para ordenar o todo) e
postulavam o estado como único actor relevante, excluindo actores não
estatais do campo da política internacional.

Os realistas entendiam, ainda, que o estado é um actor “racional”, isto é,


um actor capaz de perseguir coerentemente fins escolhidos (interesse
nacional). Além disso, o processo político era visto como uma luta pelo
poder, e a primazia era dada a assuntos relacionados ao uso da
capacidade militar e sua influência sobre a estruturação da ordem
mundial. As chamadas “teorias parciais”, que investigam aspectos
delimitados dos fenómenos constitutivos da política internacional,
começaram a desenvolver-se contra esse pano de fundo. Tornou-se
comum, enfim, tratar a política internacional como um conjunto de
questões de segurança nacional relacionadas ao uso da força militar.
Contudo, no final dos anos 1960 e durante os anos 1970, a hegemonia
teórica dos realistas é posta em cheque a partir de diversas frentes. É o
que será visto abaixo.

No campo metodológico, o ataque ao realismo veio de autores adeptos


da abordagem chamada “behaviorista”. Com o desenvolvimento, após
a Segunda Guerra, de investigações típicas da Ciência Política
americana, voltadas para a formulação de explicações precisas,
empiricamente comprováveis e mensuráveis, estas foram aplicadas a
assuntos de política internacional com alguma desfasagem e adquiriram
proeminência somente na década de 1960.54 Este novo tipo de
investigação era distante dos trabalhos de autores que escreviam sobre
assuntos internacionais de maneira mais influenciada pela história
diplomática e pelo direito internacional, como era em grande parte a

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abordagem ensaística dos primeiros realistas como Carr e Morgenthau,
que acabaram assim ficando conhecidos como autores do “realismo
clássico”. O argumento de que os trabalhos produzidos não satisfaziam
os requisitos metodológicos da pesquisa científica constituíram a primeira
crítica ao realismo. Mas a utilização da nova abordagem de carácter
empirista dos assuntos internacionais gerou uma forte reacção dos
chamados “tradicionalistas”, que consideravam tal abordagem
completamente defeituosa e limitada.

Capitaneando esta reacção veio o trabalho de Hedley Bull, publicado


na revista World Politics, em 1966, com o título “International Theory: The
Case for a Classical Approach”. Neste trabalho, Bull defende o que ele
chamou de “abordagem clássica”, por oposição à abordagem que ele
designou de “científica”. Segundo Bull, na abordagem clássica, a
elaboração teórica “deriva da filosofia, da história, e do direito” e se
apoia explicitamente no julgamento, ou seja, em “um processo
cientificamente imperfeito de percepção ou intuição”. Restringir as
questões de política apenas àquelas que podem ser comprovadas e
verificadas é, para os adeptos da abordagem clássica, um reducionismo
inaceitável. Segundo Bull, os autores americanos que praticavam a
abordagem “científica”, ao pretenderem superar o tipo “tradicional” de
pesquisa, eram comparáveis aos positivistas lógicos, que tentaram
apropriar-se da filosofia inglesa nos anos 1930, ou aos “garotos espertos
do senhor McNamara, quando se mudaram para o Pentágono”. Para
Bull, a investigação “científica” era tipicamente americana, enquanto
“na comunidade académica britânica [...] não teve virtualmente
qualquer
impacto.”

Com efeito, essa tradição “clássica”, debruçada sobre discussões morais


de carácter filosófico, histórico e jurídico no tratamento da política
internacional, era a que estava na base da chamada “Escola Inglesa”
do estudo das Relações Internacionais. Esta escola tem em Martin Wight
e Hedley Bull seus principais expoentes e constitui a segunda frente de
críticas ao realismo. Os autores da escola Inglesa, por um lado, defendem
a abordagem “clássica” e por outro criticam posições dos realistas. Com
efeito, embora incorporem postulados realistas, como o da centralidade
do estado enquanto actor, e embora reconheçam a importância do
exercício do poder na política internacional, a visão dos autores da
Escola Inglesa rejeita o argumento tipicamente realista de que o sistema
internacional é necessariamente anárquico. Ao contrário, a ideia de
ordem, expressa no conceito de “sociedade internacional”, constitui o
marco essencial da teoria da Escola Inglesa. Na conhecida formulação
de Bull:

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“Uma sociedade de estados (ou sociedade internacional) existe quando
um grupo de estados, conscientes de certos interesses comuns e valores
comuns, formam uma sociedade no sentido de que eles se concebem
ligados (bound) uns aos outros por um conjunto de regras comuns e de
que eles compartilham do funcionamento de instituições comuns.”

Para Wight, “a comprovação mais essencial da existência de uma


sociedade internacional é a existência do direito internacional”. Para
este autor, a sociedade internacional tem as seguintes características:
1. Trata-se de uma sociedade peculiar, composta de outras sociedades
mais organizadas, que são os estados.
2. Por isso, o número de membros da sociedade internacional é pequeno.
3. Os membros da sociedade internacional são mais heterogéneos do
que os indivíduos (cidadãos de cada estado), que têm elementos em
comum, tais como, a nacionalidade, não havendo, neste sentido, um
“estado padrão”.
4. Os estados podem morrer ou desaparecer, mas, tomados em conjunto
enquanto membros da sociedade internacional, são imortais.

A Escola Inglesa ficou conhecida como parte da chamada “tradição


grociana” (designação derivada do nome de Hugo Grotius) da TRI, que
se caracteriza por seu apelo a autores “clássicos” do direito internacional,
à história e à filosofia política, e por dar ênfase à existência de uma ordem
internacional baseada em “direitos” e “obrigações comuns” de carácter
moral e jurídico. A cooperação através de regras e instituições do direito
internacional é portanto um tema centralmente explorado pelos autores
desta tradição teórica. Assim sendo, a Escola Inglesa tem importância
não somente por apresentar contrapontos significativos em relação à
teoria realista, mas também por alimentar a literatura sobre “regimes
internacionais” (ver abaixo), embora em uma perspectiva distinta –
inclinada ao tratamento de considerações mais históricas, filosóficas e
normativas – das que se desenvolveram com o pluralismo, o neo-realismo
e o neo-liberalismo.

Uma terceira frente de críticas ao realismo clássico veio de autores


insatisfeitos com os conceitos realistas sobre a política internacional,
porém cautelosos para não retornar ao liberalismo idealista e utópico.
Desde 1968, quando assumiram cargos editoriais na revista académica
International Organization, Robert Keohane e Joseph Nye vinham
colaborando com a finalidade de criticar a visão realista da política
internacional.63 A publicação de Transnational Relations and World
Politics, em 1970-71, e de Power and Interdependence, em 1977, que
resultaram dessa colaboração, abriu uma nova perspectiva teórica para

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o estudo das relações internacionais, com inspiração liberal e pluralista,
mas vinculada à tradição “científica” da Ciência Política americana.

As preocupações de Keohane, Nye e seu grupo em grande parte


reflectiam a importância da adopção de regras e procedimentos, não
directa ou necessariamente relacionadas ao uso da força militar, nas
relações internacionais. De fato, desde o final da Segunda Guerra
Mundial, as potências vencedoras, dando continuidade aos esforços de
institucionalização da política internacional do período entre-guerras,
desenvolveram um programa de construção de um complexo de
organizações internacionais dedicadas a promover a cooperação
multilateral em diversas áreas. As principais dessas instituições foram a
Organização das Nações Unidas (ONU) e as múltiplas organizações a ela
relacionadas, incluindo a OIT (herdada da Liga das Nações), a UNESCO,
a OMS a FAO e as agências do chamado “sistema de Bretton Woods”: o
Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial (BIRD). Foi
também instituído um mecanismo para o estabelecimento cumulativo de
uma política de cooperação multilateral na área do comércio
internacional: o chamado Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio
(conhecido como GATT – General Agreement on Tariffs and Trade),
sucedido em 1995 pela actual Organização Mundial do Comércio
(OMC). Além disso, foram sendo desenvolvidos complexos de regras e
objectivos referentes a áreas específicas de cooperação internacional,
tais como a de uso de recursos marítimos, a realização de
empreendimentos de administração de tecnologias caras como o
INTELSAT ou a cooperação para o uso de dos diversos tipos de recursos
naturais. Em consequência disso tudo, foram sendo criadas redes de
apropriação e transmissão de conhecimentos e informações que
passaram em grande parte a balizar e distribuir autoridade e estruturar
instâncias de negociação, de maneira a influenciar extensamente o jogo
da política e da economia internacionais, no que Keohane e Nye
chamaram de “tapeçaria de diversas relações.” Parecia assim oportuno
duvidar das teses dos realistas, segundo as quais a política internacional
é movida essencialmente pelo uso da força.

Mas o aparecimento da nova orientação teórica associada a Keohane,


Nye e seus colaboradores constituía também, em parte, uma meação a
circunstâncias relativas à política doméstica e à política externa dos
Estados Unidos, e a eventos políticos e económicos mundiais no final dos
anos 1960 e início de 1970, tais como: a oposição da opinião pública
americana à Guerra do Vietname; a derrota do vasto poderio militar dos
Estados Unidos diante da guerrilha dos vietnamitas; a desaceleração da
corrida armamentista nuclear em consequência da Política da Détente;

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o agudizar da competição comercial dos Estados Unidos com a Europa
e o Japão;

A presença de actores não estatais como empresas privadas, igrejas e


organizações não-governamentais (ONGs) nos processos da política e
da economia internacionais modificava mais ainda a realidade.
Os trabalhos de Keohane, Nye e seus colaboradores preocupavam-se,
de facto, com o que eles percebiam como transformações reais da
política no mundo. Tais transformações colocavam o paradoxo, não
explicável a partir da óptica realista, de que estados militarmente fracos
podem fazer prevalecer seus interesses sobre estados mais fortes, como
ocorreu claramente na Guerra do Vietname e na crise do petróleo em
1973. Para os autores citados, portanto, as transformações da política
mundial, em conjunto, tornavam a teoria realista obsoleta, ou ao menos
necessitada de um poderoso complemento teórico.
Keohane e Nye propuseram, como base de sua nova teoria, o conceito
de “interdependência”. A interdependência, refere-se a “dependência
mútua”, ou “situações caracterizadas por efeitos recíprocos entre países
ou entre actores em países diferentes.” Mas os efeitos recíprocos entre
países resultam, segundo os autores, de transacções internacionais
constituídas de “fluxos de dinheiro, pessoas e mensagens através de
fronteiras internacionais.” Assim, Keohane e Nye opõem o conceito de
“interdependência”, ao conceito realista de “poder”, essencialmente
relacionado ao uso da força.

Na visão de Keohane e Nye, existem duas dimensões da


interdependência: a “sensibilidade” e a “vulnerabilidade” a mudanças
nas relações entre actores. A “sensibilidade” à mudança diz respeito a
alterações em políticas locais, em resposta a novas condições advindas
de factores externos (por exemplo, aumentos no preço de petróleo por
parte de produtores). Por seu turno, a “vulnerabilidade” refere-se à
presença de importantes “custos” sociopolíticos ou económicos da
mudança que pode ser introduzida em políticas locais em resposta a
novas condições advindas de factores externos (por exemplo, os
prováveis “custos” da possível suspensão de contactos culturais entre os
Estados Unidos e Suécia, quando este país criticou a política americana
na Guerra do Vietname).

A partir dessa noção de “interdependência”, com as duas dimensões


referidas, Keohane e Nye propõem o conceito de “interdependência
complexa”. Segundo os autores, este conceito reflectiria uma imagem
espelhada da visão do mundo adoptada pelos realistas. Este conceito
refere-se a um conjunto de fenómenos:

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1. A existência de “múltiplos canais” de ligação entre sociedades, que
vão desde interacções informais entre autoridades e entre actores
privados até relações inter estatais formais;
2. A “ausência de hierarquia entre questões”, implicando um peso e
conexões (linkages) variáveis entre questões de segurança nacional e
outras (por exemplo, económicas ou tecnológicas) e entre questões de
política doméstica e de política externa, podendo tal variação gerar
diferentes coalizões entre, dentro e fora de governos e burocracias;
3. A irrelevância do uso da força militar em algumas situações. A
utilização desses novos conceitos por Keohane, Nye e seu grupo, nutria-
se de uma valorização das organizações internacionais, de actores
privados engajados em processo de cooperação económica, técnica
ou política e de processos políticos domésticos, que passaram a ser vistos
como relevantes para explicar as mudanças na política internacional. Em
tudo isso, a perspectiva institucionalista, também chamada de
“pluralista”, opõe-se à visão realista das relações internacionais. Como
um autor pluralista, Rossenau desenvolveu o argumento de que a política
mundial passou a estar bifurcada entre uma esfera de relações inter-
estatais – o mundo “estado cêntrico” – e outra, de relações
transnacionais, isto é, relações entre actores não-estatais
transnacionalmente articulados – o mundo “multiétnico”.

Ganharam maior atenção também estudos sobre a conflitos


interburocráticos (isto é, entre diferentes partes da burocracia estatal) e
sua importância para a formação da política externa. Dessa valorização
de actores não estatais, instituições (regras e procedimentos), coalizões
transnacionais e transgovernamentais e relações económicas, Keohane
e Nye derivaram uma ambiciosa agenda de pesquisa sobre os “regimes
internacionais” e suas transformações nas diversas áreas de políticas. Mas
a tradição de estudos dos regimes internacionais tem raízes mais antigas,
como explicitado abaixo.

3.2.3 Hans Morgenthau: a Afirmação do Paradigma Realista

A “política entre nações” de Hans Morgenthau, na qual defende que


toda a acção política se traduz na luta pela conquista e exercício do
poder, tanto em nível nacional como internacional, afirmando a
autonomia dos fenómenos políticos em relação aos fenómenos
económicos e culturais, inscreve-se como outros tantos autores nos
estudos referentes a análise do poder, nos factores que o
consubstanciam, no comportamento diplomático e estratégico, nas
situações de conflito, ou seja, em vários aspectos da política externa dos
Estados.

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O livro de Hans Morgenthau, Politics Among Nations (1947), foi a obra de
maior influência no início do debate académico sobre Relações
Internacionais entre os americanos.40 Um émigré do período da guerra,
professor de direito internacional e influenciado por conceitos sobre o
estado típicos de historiadores da Machtschule como von Treitschke e
pela sociologia de Max Weber, Morgenthau fixou-se nos Estados Unidos
imbuído da missão de erigir uma ciência com um conteúdo normativo
sobre o tipo correcto de ordem social para um mundo melhor, mas com
as proposições ancoradas em fatos reais, e não em utopias e
especulações dos advogados internacionalistas.

Para Morgenthau, a história do pensamento político resume-se ao


debate entre duas escolas:

“A primeira [escola] acredita que uma ordem política racional e moral,


derivada de princípios abstractos, válidos universalmente, pode ser
estabelecida hic et nunc. Ela pressupõe que a natureza humana é boa
e maleável sem limites [...] A outra escola acredita que o mundo,
imperfeito como é de um ponto de vista racional, é o resultado de forças
inerentes à natureza humana. Para tornar o mundo melhor, devemos agir
com estas forças e não contra elas.”

E, sobre a segunda escola (realista), Morgenthau acrescenta: “Sendo


este mundo, por inerência, um mundo de interesses opostos e de conflitos
entre estes, não podem nunca os princípios morais serem realizados, mas
devem o mais possível, serem aproximados através do equilíbrio sempre
provisório dos interesses, e da solução sempre precária dos conflitos. Esta
escola vê num sistema de restrições e de equilíbrios um princípio universal
para todas as sociedades pluralistas. Ela invoca o precedente histórico,
em vez dos princípios abstractos e tende para a realização do mal menor
em vez do bem absoluto.”

Morgentau enunciou ainda, em seu livro, os seus conhecidos “seis


princípios fundamentais” do realismo político. Tais princípios vão
resumidos a seguir:

1. A política é governada por leis objectivas com raízes na natureza


humana.
2. O marco indicador da política internacional deve ser o conceito de
interesse definido em termos de poder. A política externa deve minimizar
os riscos e maximizar os benefícios.
3. O tipo de interesse que impulsiona a acção política e o conteúdo do
conceito de poder são determinados pelo ambiente político e cultural.

Reprodução Interna Ano Lectivo 2022-2023 59


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4. O realismo político é consciente da tensão entre o imperativo moral e
as exigências da acção política. Sendo animado pelo princípio moral da
sobrevivência nacional, o estado não pode admitir que a reprovação
moral prejudique o sucesso da acção política.
5. Identificar o nacionalismo particular e as intenções da providência
divina é moralmente indefensável. O conceito de interesse definido em
termos de poder previne tal demência política.
6. A esfera política é autónoma em relação às esferas da economia, da
ética, do direito e da religião. O objectivo do realismo político é contribuir
para a autonomia da esfera política.

A formulação de Morgenthau sobre os fundamentos da política


internacional era calcada, portanto, sobre as noções de poder e de
interesse nacional objectivo. Ao mesmo tempo, era livre de maiores
subtilezas teóricas e sofisticações interpretativas, presentes em obras
como Paz e Guerra entre as
Nações, de Raymond Aron. Assim, Morgenthau polarizou o
desenvolvimento
do debate académico sobre a política internacional.

2.2.4 O Realismo do Pós-Segunda Guerra Mundial

Foi sem surpresa que a Segunda Guerra Mundial, e as suas


consequências imediatas, proporcionaram o terreno favorável para a
reafirmação e reformulação da teoria realista no contexto do
pensamento anglo-saxónico. Mesmo os autores com inclinações
idealistas – e muitos foram os que apoiaram os esforços de guerra por
razões do mais elevado idealismo moral – desenvolveram um marcado
cepticismo face aos programas utopistas e clamaram, por sua vez, pela
fusão do direito e das organizações internacionais com o poder efectivo
para garantir a paz internacional, a segurança das nações e a resolução
equitativa dos conflitos.

Ao longo da pós-Segunda Guerra Mundial, a eclosão da Guerra Fria a


par da emergência dos EUA enquanto potência com interesses e
responsabilidades globais, desencadearam um interesse renovado no
estudo das relações internacionais por parte das universidades
americanas. Os veteranos da guerra na universidade mostravam
preocupação e interesse relativamente aos negócios estrangeiros. Em
consequência dos desenvolvimentos críticos associados à Guerra Fria, o

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governo dos EUA expandiu as suas operações nas áreas da segurança
militar nacional, das alianças e outras organizações internacionais bem
como da assistência para o desenvolvimento concedida a vários
Estados. Como é óbvio, todas estas operações aumentaram a
necessidade do pessoal especializado e, pela primeira vez, muitas
empresas americanas passaram a aperceber-se das oportunidades do
comércio internacional e das possibilidades de investimento no
estrangeiro. Os cientistas, alarmados pelas implicações da nova
tecnologia nuclear que acabavam de produzir, entraram na vida política
com o espírito de cruzada para prevenir sobre os perigos que
confrontavam a humanidade. Inúmeros indivíduos de marcado espírito
cívico foram organizando grupos e associações com o objectivo de
consciencializar e mobilizar os cidadãos para os problemas
internacionais.

A teoria realista que floresceu nos Estados Unidos após a Segunda Guerra
em reacção ao moralismo utópico do estilo de política de Woodrow
Wilson rapidamente ganhou adeptos. O debate entre o realismo e o
idealismo ocorreu entre o final da Segunda Guerra Mundial e meados dos
anos 1950, sendo marcado pelo final da Guerra da Coreia (1953). A
resultante ascendência ganha pelo realismo48 influenciou homens de
estado como Dean Acheson, George Kennan e Henry Kissinger. O
realismo tornou-se assim uma importante referência teórica para a
política externa americana no período da Guerra Fria. Em outras
palavras, a teoria realista serviu para fundamentar a política externa
americana por muitos anos. Como disse Hoffmann:

“O que os académicos ofereciam, os formuladores de política queriam.


Com efeito, há uma notável convergência cronológica entre as
necessidades deles e a performance dos académicos [...] O que os
líderes procuravam, uma vez iniciada a Guerra Fria, era alguma bússola
intelectual que servisse para múltiplas funções: exorcizar o isolacionismo
e justificar um envolvimento permanente e global na política mundial;
racionalizar a acumulação de poder, as técnicas de intervenção e os
métodos de contenção aparentemente exigidos pela Guerra Fria [...] O
‘realismo’ oferecia justamente isto.”

Foi assim que a visão teórica do “realismo” veio a praticamente dominar


as discussões sobre a política internacional após a Segunda Guerra
Mundial, tornando, inclusive, o estudo da estratégia a área
preponderante da disciplina de meados dos anos 1950 a meados dos
anos 1960. Os realistas viam o sistema internacional como “anárquico”
(não há princípios normativos superiores para ordenar o todo) e

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postulavam o estado como único actor relevante, excluindo actores não
estatais do campo da política internacional.

Os realistas entendiam, ainda, que o estado é um actor “racional”, isto é,


um actor capaz de perseguir coerentemente fins escolhidos (interesse
nacional). Além disso, o processo político era visto como uma luta pelo
poder, e a primazia era dada a assuntos relacionados ao uso da
capacidade militar e sua influência sobre a estruturação da ordem
mundial. As chamadas “teorias parciais”, que investigam aspectos
delimitados dos fenómenos constitutivos da política internacional,
começaram a desenvolver-se contra esse pano de fundo. Tornou-se
comum, enfim, tratar a política internacional como um conjunto de
questões de segurança nacional relacionadas ao uso da força militar.

Contudo, no final dos anos 1960 e durante os anos 1970, a hegemonia


teórica dos realistas é posta em cheque a partir de diversas frentes. É o
que será visto abaixo.

Os manuais de relações internacionais publicados ao longo das duas


décadas posteriores à Segunda Guerra Mundial reconheciam, em geral,
o poder como conceito central deste campo de estudos. O texto que
teve maior impacto no ensino universitário de relações internacionais, o
de Hans Morgenthau, explicava a conduta dos Estados-nação com base
no interesse nacional enquanto objectivo prosseguido pelos governos
sempre que possível. A maior parte dos cientistas contemporâneos e
estudiosos de relações internacionais continua a perspectivar o poder,
concebido como uma combinação de influência persuasiva e
capacidade coerciva susceptível de ser usado para fins positivos e
negativos, como variável da maior importância.

CAP. III – O DEBATE EMTRE UTÓPICOS E REALISTAS

3.1 O Debate Entre Utópicos e Realistas

Em grande medida aquilo que ficou conhecido como a "controvérsia


entre utópicos e realistas" - um dos grandes debates no seio da teoria das
relações internacionais - concentrou-se na questão de saber até que
ponto a conduta política e a condição anárquica da política
internacional poderiam ser transformadas numa ordem mundial fundada
em padrões de cooperação e na interdependência global. Este debate
foi descrito em grande detalhe por E. H. Carr, no contexto da diplomacia
de entre as duas guerras. Para Carr, a maioria dos utópicos descendia
intelectualmente do optimismo iluminado do século XVIII, do liberalismo
do século XIX e do idealismo wilsoniano do século XX. Concentrando-se

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na questão de como os relacionamentos internacionais deveriam ser
conduzidos, os utópicos desprezavam a política da balança de poderes,
os armamentos nacionais, o uso da força nos assuntos internacionais, a
par das alianças e tratados secretos anteriores à Primeira Guerra Mundial.
Pelo contrário, destacavam as prerrogativas e as obrigações legais e
internacionais, a natural harmonia de interesses na paz – reminiscência
da mão invisível de Adam Smith – como regulador para a preservação
da paz internacional, uma confiança extrema na razão e na sua
capacidade de conduzir as questões humanas, tal como na
capacidade da opinião pública mundial para construir a paz.

No campo metodológico, o ataque ao realismo veio de autores adeptos


da abordagem chamada “behaviorista”. Com o desenvolvimento, após
a Segunda Guerra, de investigações típicas da Ciência Política
americana, voltadas para a formulação de explicações precisas,
empiricamente comprováveis e mensuráveis, estas foram aplicadas a
assuntos de política internacional com alguma desfasagem e adquiriram
proeminência somente na década de 1960. Este novo tipo de
investigação era distante dos trabalhos de autores que escreviam sobre
assuntos internacionais de maneira mais influenciada pela história
diplomática e pelo direito internacional, como era em grande parte a
abordagem ensaística dos primeiros realistas como Carr e Morgenthau,
que acabaram assim ficando conhecidos como autores do “realismo
clássico”. O argumento de que os trabalhos produzidos não satisfaziam
os requisitos metodológicos da pesquisa científica constituíram a primeira
crítica ao realismo. Mas a utilização da nova abordagem de carácter
empirista dos assuntos internacionais gerou uma forte reacção dos
chamados “tradicionalistas”, que consideravam tal abordagem
completamente defeituosa e limitada.

Capitaneando esta reacção veio o trabalho de Hedley Bull, publicado


na revista World Politics, em 1966, com o título “International Theory: The
Case for a Classical Approach”. Neste trabalho, Bull defende o que ele
chamou de “abordagem clássica”, por oposição à abordagem que ele
designou de “científica”. Segundo Bull, na abordagem clássica, a
elaboração teórica “deriva da filosofia, da história, e do direito” e se
apoia explicitamente no julgamento, ou seja, em “um processo
cientificamente imperfeito de percepção ou intuição”. Restringir as
questões de política apenas àquelas que podem ser comprovadas e
verificadas é, para os adeptos da abordagem clássica, um reducionismo
inaceitável. Segundo Bull, os autores americanos que praticavam a
abordagem “científica”, ao pretenderem superar o tipo “tradicional” de
pesquisa, eram comparáveis aos positivistas lógicos, que tentaram

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apropriar-se da filosofia inglesa nos anos 1930, ou aos “garotos espertos
do senhor McNamara, quando se mudaram para o Pentágono”.

Para Bull, a investigação “científica” era tipicamente americana,


enquanto “na comunidade académica britânica [...] não teve
virtualmente qualquer
impacto.”

Com efeito, essa tradição “clássica”, debruçada sobre discussões morais


de carácter filosófico, histórico e jurídico no tratamento da política
internacional, era a que estava na base da chamada “Escola Inglesa”
do estudo das Relações Internacionais. Esta escola tem em Martin Wight
e Hedley Bull seus principais expoentes e constitui a segunda frente de
críticas ao realismo. Os autores da escola Inglesa, por um lado, defendem
a abordagem “clássica” e por outro criticam posições dos realistas. Com
efeito, embora incorporem postulados realistas, como o da centralidade
do estado enquanto actor, e embora reconheçam a importância do
exercício do poder na política internacional, a visão dos autores da
Escola Inglesa rejeita o argumento tipicamente realista de que o sistema
internacional é necessariamente anárquico. Ao contrário, a ideia de
ordem, expressa no conceito de “sociedade internacional”, constitui o
marco essencial da teoria da Escola Inglesa. Na conhecida formulação
de Bull:

“Uma sociedade de estados (ou sociedade internacional) existe quando


um grupo de estados, conscientes de certos interesses comuns e valores
comuns, formam uma sociedade no sentido de que eles se concebem
ligados (bound) uns aos outros por um conjunto de regras comuns e de
que eles compartilham do funcionamento de instituições comuns.”

Para Wight, “a comprovação mais essencial da existência de uma


sociedade internacional é a existência do direito internacional”. Para
este autor, a sociedade internacional tem as seguintes características:
1. Trata-se de uma sociedade peculiar, composta de outras sociedades
mais organizadas, que são os estados.
2. Por isso, o número de membros da sociedade internacional é pequeno.
3. Os membros da sociedade internacional são mais heterogéneos do
que os indivíduos (cidadãos de cada estado), que têm elementos em
comum, tais como, a nacionalidade, não havendo, neste sentido, um
“estado padrão”.
4. Os estados podem morrer ou desaparecer, mas, tomados em conjunto
enquanto membros da sociedade internacional, são imortais.

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Para uso exclusivo dos Alunos Prof. Alberto Kizua,M.Sc.
A Escola Inglesa ficou conhecida como parte da chamada “tradição
grociana” (designação derivada do nome de Hugo Grotius) da TRI, que
se caracteriza por seu apelo a autores “clássicos” do direito internacional,
à história e à filosofia política, e por dar ênfase à existência de uma ordem
internacional baseada em “direitos” e “obrigações comuns” de carácter
moral e jurídico. A cooperação através de regras e instituições do direito
internacional é portanto um tema centralmente explorado pelos autores
desta tradição teórica. Assim sendo, a Escola Inglesa tem importância
não somente por apresentar contrapontos significativos em relação à
teoria realista, mas também por alimentar a literatura sobre “regimes
internacionais” , embora em uma perspectiva distinta – inclinada ao
tratamento de considerações mais históricas, filosóficas e normativas –
das que se desenvolveram com o pluralismo, o neo-realismo e o neo-
liberalismo .

Uma terceira frente de críticas ao realismo clássico veio de autores


insatisfeitos com os conceitos realistas sobre a política internacional,
porém cautelosos para não retornar ao liberalismo idealista e utópico.
Desde 1968, quando assumiram cargos editoriais na revista académica
International Organization, Robert Keohane e Joseph Nye vinham
colaborando com a finalidade de criticar a visão realista da política
internacional.63 A publicação de Transnational Relations and World
Politics, em 1970-71, e de Power and Interdependence, em 1977, que
resultaram dessa colaboração, abriu uma nova perspectiva teórica para
o estudo das relações internacionais, com inspiração liberal e pluralista,
mas vinculada à tradição “científica” da Ciência Política americana.

Mas o aparecimento da nova orientação teórica associada a Keohane,


Nye e seus colaboradores constituía também, em parte, uma meação a
circunstâncias relativas à política doméstica e à política externa dos
Estados Unidos, e a eventos políticos e económicos mundiais no final dos
anos 1960 e início de 1970, tais como: a oposição da opinião pública
americana à Guerra do Vietname; a derrota do vasto poderio militar dos
Estados Unidos diante da guerrilha dos vietnamitas; a desaceleração da
corrida armamentista nuclear em consequência da Política da Détente;
o agudizar da competição comercial dos Estados Unidos com a Europa
e o Japão;

A presença de actores não estatais como empresas privadas, igrejas e


organizações não-governamentais (ONGs) nos processos da política e
da economia internacionais modificava mais ainda a realidade.
Os trabalhos de Keohane, Nye e seus colaboradores preocupavam-se,
de facto, com o que eles percebiam como transformações reais da
política no mundo. Tais transformações colocavam o paradoxo, não

Reprodução Interna Ano Lectivo 2022-2023 65


Para uso exclusivo dos Alunos Prof. Alberto Kizua,M.Sc.
explicável a partir da óptica realista, de que estados militarmente fracos
podem fazer prevalecer seus interesses sobre estados mais fortes, como
ocorreu claramente na Guerra do Vietname e na crise do petróleo em
1973. Para os autores citados, portanto, as transformações da política
mundial, em conjunto, tornavam a teoria realista obsoleta, ou ao menos
necessitada de um poderoso complemento teórico.

Keohane e Nye propuseram, como base de sua nova teoria, o conceito


de “interdependência”. A interdependência, refere-se a “dependência
mútua”, ou “situações caracterizadas por efeitos recíprocos entre países
ou entre actores em países diferentes.” Mas os efeitos recíprocos entre
países resultam, segundo os autores, de transacções internacionais
constituídas de “fluxos de dinheiro, pessoas e mensagens através de
fronteiras internacionais.” Assim, Keohane e Nye opõem o conceito de
“interdependência”, ao conceito realista de “poder”, essencialmente
relacionado ao uso da força.

Na visão de Keohane e Nye, existem duas dimensões da


interdependência: a “sensibilidade” e a “vulnerabilidade” a mudanças
nas relações entre actores. A “sensibilidade” à mudança diz respeito a
alterações em políticas locais, em resposta a novas condições advindas
de factores externos (por exemplo, aumentos no preço de petróleo por
parte de produtores). Por seu turno, a “vulnerabilidade” refere-se à
presença de importantes “custos” sócio-políticos ou económicos da
mudança que pode ser introduzida em políticas locais em resposta a
novas condições advindas de factores externos (por exemplo, os
prováveis “custos” da possível suspensão de contactos culturais entre os
Estados Unidos e Suécia, quando este país criticou a política americana
na Guerra do Vietname).

A partir dessa noção de “interdependência”, com as duas dimensões


referidas, Keohane e Nye propõem o conceito de “interdependência
complexa”. Segundo os autores, este conceito reflectiria uma imagem
espelhada da visão do mundo adoptada pelos realistas. Este conceito
refere-se a um conjunto de fenómenos:

1. A existência de “múltiplos canais” de ligação entre sociedades, que


vão desde interacções informais entre autoridades e entre actores
privados até relações inter estatais formais;
2. A “ausência de hierarquia entre questões”, implicando um peso e
conexões (linkages) variáveis entre questões de segurança nacional e
outras (por exemplo, económicas ou tecnológicas) e entre questões de
política doméstica e de política externa, podendo tal variação gerar
diferentes coalizões entre, dentro e fora de governos e burocracias;

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Para uso exclusivo dos Alunos Prof. Alberto Kizua,M.Sc.
3. A irrelevância do uso da força militar em algumas situações. A
utilização desses novos conceitos por Keohane, Nye e seu grupo, nutria-
se de uma valorização das organizações internacionais, de actores
privados engajados em processo de cooperação económica, técnica
ou política e de processos políticos domésticos, que passaram a ser vistos
como relevantes para explicar as mudanças na política internacional. Em
tudo isso, a perspectiva institucionalista, também chamada de
“pluralista”, opõe-se à visão realista das relações internacionais. Como
um autor pluralista, Rosenau desenvolveu o argumento de que a política
mundial passou a estar bifurcada entre uma esfera de relações inter-
estatais – o mundo “estado cêntrico” – e outra, de relações
transnacionais, isto é, relações entre actores não-estatais
transnacionalmente articulados – o mundo “multiétnico”.

Ganharam maior atenção também estudos sobre a conflitos


interburocráticos (isto é, entre diferentes partes da burocracia estatal) e
sua importância para a formação da política externa. Dessa valorização
de actores não estatais, instituições (regras e procedimentos), coalizões
transnacionais e transgovernamentais e relações económicas, Keohane
e Nye derivaram uma ambiciosa agenda de pesquisa sobre os “regimes
internacionais” e suas transformações nas diversas áreas de políticas. Mas
a tradição de estudos dos regimes internacionais tem raízes mais antigas,
como explicitado abaixo.

Os utópicos no que concerne à teoria das relações internacionais


baseiam-se no pressuposto, tributário do iluminismo oitocentista, de que
certas circunstâncias determinaram o comportamento humano e que é,
portanto possível modificar esse comportamento alterando as referidas
circunstâncias.

Em clara oposição face à teoria realista, o utopismo mantém que a


humanidade é perfectível ou que, pelo menos, é susceptível de um
progresso significativo. Assim, e a nível internacional, o panorama político
pode ser transformado mediante o desenvolvimento das instituições tais
como a Sociedade das Nações e as Nações Unidas, o que significa que,
através do estabelecimento de certas normas, a conduta política pode
ser modificada.
Em contraste com os utópicos, os realistas sublinhavam o poder e os
interesses em vez dos ideais, no panorama das relações internacionais. O
realismo é essencialmente conservador, empírico, prudente,
desconfiado dos princípios idealistas e respeitador das lições da história.
Além disso, produz mais facilmente uma visão pessimista do que optimista
da política internacional. Os realistas concebem o poder como o
conceito fundamental em ciências sociais, embora admitam que as

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relações de poder são frequentemente dissimuladas em termos morais e
legais. Sublinham a segurança nacional e a necessidade das forças
militares e da balança de poderes para apoiar a diplomacia, partindo
do pressuposto de que a segurança nacional representa a mais
importante e mais imediata necessidade do Estado.

Ao analisar as relações internacionais entre as duas Guerras Mundiais,


Carr defendeu que o “significado mais profundo da crise internacional
contemporânea é o colapso de toda a estrutura do utopismo baseada
no conceito da harmonia de interesses”.

Contudo, para Carr, enquanto os utópicos ignoram as lições de história,


os realistas com frequência interpretam essa mesma história de forma
demasiado pessimista. Enquanto o idealista exagera a liberdade de
escolha, o realista exagera a causalidade rígida e cai no determinismo.
Enquanto o idealista tende a confundir o interesse nacional privativo com
princípios morais universais, o realista corre o risco de cair no cinismo e
não consegue fornecer qualquer fundamento para uma acção útil; ou
seja, o realista nega que o pensamento humano possa modificar a
acção. Na perspectiva de Carr, todas as teorias políticas válidas contêm
elementos de utopismo e de realismo, poder e valores morais.

3.2 Neo-Realismo e Neo-Liberalismo: o Debate Contemporâneo

O debate entre utópicos e realistas foi substituído por uma nova geração
intelectual que deu os seus frutos de cada lado da divisória original e sob
a forma de um debate renovado, desta feita entre neo-realistas e neo-
liberalistas. O elemento fulcral deste debate não é a discórdia acerca da
existência da anarquia, que aliás ambas reconhecem, mas antes o
significado e as implicações dessa anarquia, assim como a capacidade
de que dispõem instituições como as Nações Unidas, a Organização do
Tratado do Atlântico Norte ou a União Europeia para transcenderem as
características estruturais básicas do sistema internacional anárquico.

A) O Neo-realismo
O conjunto das críticas ao realismo, como se viu acima, é muito rico e
variado, tendo aberto o campo de estudos das Relações Internacionais
para uma ampla gama de questões. Mas, longe de significar um declínio
da visão realista da política internacional, essas críticas encorajaram um
depuramento conceptual daquela escola. Não apenas o realismo
manteve adeptos ao longo da década de 1970 (como mantém até
hoje), mas a Guerra do Afeganistão, que interrompeu o abrandamento
da Guerra Fria associado à Política da Détente, instaurou um ambiente
político propício para uma retomada dos argumentos realistas.

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Com efeito, o ano da invasão do Afeganistão por tropas soviéticas – 1979
– que motivou o presidente Jimmy Carter a suspender a tramitação
legislativa do tratado de limitação de armas estratégicas SALT II e a dar
apoio aos guerrilheiros islâmicos, coincidiu com o da publicação da obra
mais influente para a renovação do prestígio académico dos
argumentos realistas: o livro Theory of International Politics, de Kenneth
Waltz. Nesse livro, Waltz procura reabilitar a maioria das teses realistas,
mas confere maior precisão às formulações oferecidas, descartando
alguns argumentos do “realismo clássico”.

O revigoramento da teoria realista a partir da publicação do livro de


Waltz foi de enorme alcance. As ideias realistas reformuladas nos termos
propostos por Waltz ganharam o nome de “neo-realismo”, como forma
de distinguir as novas formulações das de autores mais antigos como
Morgenthau.

Morgenthau havia sido criticado desde os anos 1950 por não


conceitualizar satisfatoriamente as noções de “poder” e de “balança de
poder”. Quanto à primeira noção, o autor argumentava que os homens
de estado são movidos pelo “interesse definido como poder”. O exercício
do poder era portanto atribuído a concepções vagas sobre a “natureza
humana”. No caso da segunda noção, Morgenthau sustentava de
maneira pouco satisfatória que a “balança de poder” entre estados era
não muito mais do que um “resultado necessário” da prática da política
internacional.

Autores como Stanley Hoffmann, Morton Kaplan e Richard Rosecrance


procuraram suprir tais deficiências das formulações de Morgenthau,
concentrando seus esforços na descrição do “sistema” político
constituído pelos estados, abandonando as referências à “natureza
humana”.

Com base nisso procuraram oferecer explicações sobre as mudanças do


sistema, e não sobre sua essência, tal como fora intenção de
Morgenthau. Desde a publicação de seu livro Man, the State and War
em 1959, Waltz defendia que a política internacional deveria ser
entendida, não como uma consequência do que os homens são ou
desejam, nem como ligada a condições internas aos estados, mas
apenas como decorrente das características puramente políticas do
sistema de estados. Este, por sua vez, é visto como sendo essencialmente
“anárquico” e “conflitivo”, e portanto intrinsecamente propenso a
situações de guerra.

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Os argumentos de Waltz eram desde aquela época já na direcção de
promover um divórcio conceptual entre a política internacional, de um
lado, e, de outro, os processos políticos domésticos e a subjectividade
dos indivíduos e grupos (valores, inclinações, cultura, etc.). Este esforço
de abstracção é aperfeiçoado ao máximo em Theory of International
Politics. Em essência, Waltz pretende sustentar o argumento de que a
política internacional tem uma dinâmica própria – a do “sistema”
internacional – independente de quaisquer condicionantes sociais ou de
personalidade. Para Waltz, portanto, era necessário um esforço de
depuramento conceptual das teorias sistémicas sobre a política
internacional para além do que tinham feito os autores que o haviam
precedido, tais como Morgenthau, Kissinger, Hoffman, Rosecrance ou
Kaplan. O conteúdo de uma teoria sistémica depurada deveria ser
apenas a própria “estrutura” do sistema, concebida da maneira mais
abstracta possível. Waltz procurou assim formular uma teoria “estrutural”
do sistema internacional. Tal teoria, em suas palavras, deveria “mostrar
de que modo a política internacional pode ser concebida como um
domínio distinto do económico, social e outros domínios
internacionais.”

A tarefa de Waltz, portanto, era descrever uma estrutura sumamente


formalista do sistema internacional. E isto requeria amplas omissões,
conforme indicado pelo próprio autor: “Definições de estrutura devem
deixar de lado ou abstraírem-se das características das unidades[...]
Sabemos o que precisamos omitir de qualquer definição de estrutura,
para que tal definição seja teoricamente útil. Abstrair os atributos das
unidades significa deixar de lado questões sobre os tipos de líderes
políticos, as instituições sociais e económicas e compromissos ideológicos
que os estados podem ter. Abstrair relações significa deixar de lado
questões sobre as interacções culturais, económicas, políticas e militares
dos estados.”

Ao proceder a esta radical abstracção, Waltz não fazia mais do que


promover a assimilação da TRI à tendência, que se tornava
predominante na Ciência Política americana como um todo, de aplicar
a esta disciplina os fundamentos epistemológicos e métodos de análise
da Economia Neo-Clássica, base da teoria macroeconómica e fonte de
postulados tomados de empréstimo por cientistas políticos para a
formação da escola que recebe a denominação genérica de “escolha
racional”. De fato, a política internacional é descrita por Waltz como um
sistema de interacção estratégica entre estados. Tal sistema é visto como
sendo análogo ao sistema de interacção entre firmas, constitutivo da
imagem neo-clássica da economia de mercado. Nas palavras de Waltz:
“Sistemas políticos internacionais, como mercados económicos, são

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formados pela acção simultânea (coaction) de unidades auto-
interessadas [...] são individualistas em sua origem, espontaneamente
gerados e não intencionalmente estruturados. [...] Assim como
economistas definem mercados em termos de firmas, eu defino estruturas
políticas internacionais em termos de estados.”

Para Waltz, o sistema político internacional é movido pelo puro interesse


político das grandes potências exclusivamente, e de maneira ainda mais
incondicionada do que a acção de agentes económicos no mercado.
Esta, de todo modo, permanece sujeita a limitações legais, tais como leis
antitruste, regulamentações do mercado de capitais, etc., ao passo que
“a política internacional é mais precisamente a esfera em que tudo pode
acontecer (anything goes).” Em resumo, na visão de Waltz o sistema
internacional, sendo “regido” pelo princípio da anarquia, acaba se
estruturando de acordo com os interesses dos principais estados, sem que
seja possível se cogitar de qualquer fonte de limitação a esses ou outros
estados, que seja extrínseca ao próprio processo de seu engajamento na
acção política auto-interessada.

Além do princípio da anarquia, Waltz propôs que não há qualquer


especialização funcional das unidades do sistema (os estados) para que
cooperem na realização de fins comuns. Os estados são funcionalmente
iguais, indiferenciados. Finalmente, Waltz entende que é apenas a
distribuição de “capacidades” entre os estados que determina a
estruturação e as mudanças do sistema. A distribuição de capacidades
entre as unidades não é um atributo delas, mas do sistema. Em última
análise, “os estados são diferentemente posicionados [no sistema] por
seu poder.”

Waltz não havia propriamente inovado as principais teses do realismo,


mas havia empreendido, no dizer de Keohane, um notável esforço “para
sistematizar o realismo político em uma rigorosa e dedutiva teoria
sistémica da política internacional.” Mas, com a sua formulação, Waltz
atingia em cheio a visão pluralista da política internacional, que havia
valorizado as organizações internacionais, os regimes internacionais, a
interdependência económica e os actores transnacionais como
importantes dimensões do processo político mundial.

O argumento, reeditado por Waltz, a respeito da inevitabilidade do


conflito e da inutilidade ou impossibilidade da cooperação internacional
por meio de regimes e instituições, e as perspectivas práticas de
recrudescimento da Guerra Fria associadas à intervenção soviética no
Afeganistão e outros focos de tensão na África e na Ásia catalisaram

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energias para a formulação de consternadas críticas às posições neo-
realistas. “O sentido de insatisfação com a versão de Waltz sobre o neo-
realismo” – escreveu Keohane, em ensaio introdutório ao volume de 1986
que reuniu as principais críticas a Theory of International Politics
originalmente publicadas entre 1981 e 1984 – “tem suas raízes não apenas
na tradição crítica e idealista de comentários sobre a política mundial,
mas também na enormidade da guerra nuclear.”

As críticas a Waltz, de fato, foram variadas. Ruggie, por exemplo,


argumentou que Waltz ignorou o conceito sociológico de “densidade
dinâmica” referente à quantidade, velocidade e diversidade de
transacções ocorrentes a partir do nível das unidades e que afectam as
relações internacionais no nível sistémico. Keohane argumentou que
faltou às formulações de Waltz uma perspectiva de pesquisa sobre
proposições testáveis. Cox e Ashley criticaram a postura epistemológica
implícita no discurso de Waltz. Tais críticas prenunciavam a emergência
ou consolidação de três grandes desdobramentos de nova elaboração
teórica em reacção ao legado da TRI até então acumulado. Esses três
desdobramentos foram: (a) a corrente marxista neo-gramsciana, já
discutida acima; (b) o “institucionalismo neoliberal” (ou simplesmente
“neo-liberalismo”) e (c) o “construtivismo”. As duas últimas correntes
teóricas serão examinadas abaixo.

B) Neo-Liberal

O surgimento da corrente teórica chamada “institucionalismo neoliberal”


está directamente ligado à publicação, em 1984, do livro After
Hegemony, de Robert Keohane. Este livro consubstancia o programa
teórico delineado no artigo que o autor escreveu para o encontro anual
da Associação Americana de Ciência Política de 1982, contendo as suas
críticas parciais a Waltz. Nesse artigo, a partir de posições já elaboradas
em Power and Interdependence (1977), Keohane dirige várias críticas ao
neo-realismo de Waltz, que ele chamou de “realismo estrutural”. Segundo
Keohane, os “realistas estruturais podem ser criticados [...] por darem
insuficiente atenção para normas, instituições e mudança.” Mas
Keohane crítica sobretudo a insistência do neo-realismo na “fingibilidade
do poder”, isto é, na tese de que o poder é empregáveis igualmente em
qualquer situação de interesse prioritário para os estados mais fortes. Para
Keohane, esta tese não pôde ser empiricamente comprovada por
autores como Bueno de Mesquita, e parecia inverosímil diante de
episódios como a derrota dos Estados Unidos na Guerra do Vietname e a
impotência das forças americanas para libertar reféns mantidos pelo
regime islâmico fundamentalista do Irão entre 1979 e 1981.

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De acordo com Keohane, portanto, o neo-realismo era incapaz de gerar
um programa de pesquisa com hipóteses testáveis, perdendo o poder de
previsão e explicação. O neo-realismo, em outras palavras, não
explicava as fontes de “mudança pacífica” do sistema internacional.

Para suprir esta falha, Keohane propôs uma adaptação do neo-realismo


com o intuito de gerar um “programa de pesquisa estrutural modificado.”

Este programa deveria: (a) relaxar alguns pressupostos do realismo


estrutural (ou neo-realismo), retendo o que fosse necessário para gerar
previsões a respeito da política internacional; e (b) fornecer teorias que
preenchessem as lacunas de conhecimento sobre as “interacções
interno-externo.” Assim, o programa de pesquisa preservaria aos estados
o papel de “principais actores”, mas daria mais ênfase a actores não
estatais, organizações intergovernamentais e a relações transnacionais e
transgovernamentais. Ao mesmo tempo, o programa presumiria que os
actores agem racionalmente no sentido de maximizar os seus interesses
considerando uma gama de objectivos ordenados.

Finalmente, o programa faria a importante modificação de presumir que


o poder não é “fungível” entre questões de política internacional:
dependendo do contexto institucional, alguns, mas não todos, os
objectivos podem ser alcançados pelo uso da força. Contudo, o modelo
epistemológico geral continuaria a ser o da “teoria micro económica”

Este programa de pesquisa, delineado no artigo de 1983, foi executado


no livro After Hegemony (1984), em que o autor declara realizar uma
“síntese do Realismo e do Institucionalismo”. Keohane realiza esta síntese
apoiada em conceitos e recursos analíticos desenvolvidos por outros
autores com base em postulados epistemológicos do micro economia
para serem aplicados – muitas vezes de maneira cuidadosamente
qualificada – à política. Keohane emprega especialmente a “teoria dos
jogos” (no caso, é utilizado o jogo chamado “Dilema do Prisioneiro”) e a
“teoria da acção colectiva” de Mancur Olson. Keohane também recorre
à teoria da organização e à discussão de Oliver Williamson, ao chamado
“Teorema de Coase” e à noção de “racionalidade limitada” (bounded
rationality) de Herbert Simon. Esses apoios teóricos em seu conjunto
permitem a construção de modelos formais de comportamento e
privilegiar o foco analítico sobre os padrões de distribuição de
informações entre actores e sua capacidade de processá-las.

Com base em tais teorias e recursos analíticos oriundos da micro


economia, Keohane procura sustentar o argumento de que a
cooperação ocorre mesmo entre actores “egoístas”, e que isto é

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propiciado pela existência de regimes (especialmente aqueles
estabelecidos entre países industrializados) e suas características: número
de participantes relativamente pequeno, negociações reiteradas, longa
duração, possíveis baixos custos da verificação do cumprimento das
obrigações. Este argumento limita o alcance das explicações baseadas
na “teoria da estabilidade hegemónica”, tipicamente adoptada pelos
realistas. Uma das principais conclusões de Keohane foi que: “Os regimes
internacionais desempenham as valiosas funções de reduzir custos de
transacções legítimas, ao mesmo tempo em que aumentam os custos
das ilegítimas e reduzem a incerteza.”

Parecia, afinal, que Keohane havia conseguido ficar com o melhor dos
três mundos: manteve o pressuposto realista da racionalidade dos
estados ao mesmo tempo em que desqualificava extensamente a
“teoria da estabilidade hegemónica”; redobrou o rigor e o formalismo
analítico de suas proposições teóricas centrais, alinhando o seu discurso
com o estilo intelectual dominante na Ciência Política americana; e
confirmou orgulhosamente o argumento substantivo dos antigos
institucionalistas liberais, sem fazer concessões ao idealismo.

A principal controvérsia que restou foi a estreita discussão chamada


“debate sobre ganhos absolutos ou relativos”. Os neo-realistas
argumentavam a partir de Waltz que a cada estado interessa obter
“ganhos relativos” em sua interacção com os demais estados do sistema,
pois o ganho comparativo seria a chave para manter a superioridade de
poder. Isto confirmava a tese de que o sistema internacional é
intrinsecamente propenso ao conflito, e não à cooperação. Do lado dos
neo-liberais, o argumento enfatizava a ideia oposta: a busca de ganhos
relativos dificulta, e o interesse em maximizar ganhos absolutos propicia,
a cooperação internacional.

A controvérsia sobre os ganhos relativos/absolutos gerou uma agenda de


pesquisa que conduzia ambas correntes teóricas a uma crescente
convergência, e que se tornou, na descrição de Waever, uma atarefada
“indústria de quintal para a maioria dos modelistas matemáticos,”
permitindo que a disciplina das Relações Internacionais “finalmente
conseguisse penetrar na American Political Science Review [bastião da
predominância da teoria da ‘escolha racional’] com artigos repletos de
equações.”

Na verdade, Keohane e os institucionalistas neo-liberais haviam


percebido que o sucesso em lidar com os temas da política internacional
passava a depender cada vez mais da habilidade dos estados em
administrá-los através de sistemas de regras que afectam o

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comportamento das pessoas e oferecem critérios formais para as
decisões a serem tomadas. Afinal, desde o fracasso da Liga das Nações,
havia ficado claro que apenas a operação dos sistemas jurídicos internos
e externo e suas articulações mútuas eram insuficientes para assegurar o
sucesso na consecução de objectivos de política externa, consideradas
as suas relações com a política democrática interna, mantendo o passo
com as transformações da economia. Antes da guerra, o padrão ouro
internacional, administrado pela haute finance de que trata Polanyi,
havia sido introduzido como um conjunto de processos e controles
complementares à astúcia do pragmatismo diplomático e ao direito
internacional positivista durante as últimas décadas da “paz de cem
anos”.

O Fim da guerra fria transformou a estrutura da política internacional. Na


Europa o sistema bipolar da guerra fria foi substituído pela fragmentação
política, incluindo a ruptura ou enfraquecimento das alianças, a
dissolução de Estados e o ressurgimento dos conflitos étnicos no interior
dos Estados. Deste modo, o panorama global contemporâneo contém
elementos de cooperação e de conflito, a par de padrões de conduta
que orientam os Estados tanto para mecanismos de colaboração como
para situações de conflitos.

A verdadeira prova para os institucionalistas neo-liberais será a


capacidade de organizações como a União Europeia, a União da
Europa ocidental, a Organização para Segurança e a Cooperação na
Europa e a OTAN, para diminuírem ou eliminarem os conflitos do pós-
guerra fria. Para os neo-realistas, estes conflitos e as mudanças
dramáticas da estrutura do sistema internacional, não poderão nunca ser
geridos de forma efectiva no seio das instituições internacionais a menos
que essas instituições de alguma maneira sejam o reflexo da estrutura do
sistema internacional em que perduram. De acordo com a lógica dos
neo-realistas, a “OTAN foi basicamente uma manifestação da
distribuição bipolar na Europa durante a Guerra Fria sendo esse equilíbrio
de poder, não a OTAN em si mesma, o elemento-chave para a
manutenção da estabilidade no Continente”.

De acordo com os neo-realistas, as instituições internacionais não são


capazes de proporcionar um substituto para a confiança nas
capacidades do Estado.

Em resumo podemos concluir que, o debate entre neo-realistas e neo-


liberais desviou-se da clara demarcação de campos intelectuais,
existente na época do debate entre realistas e utópicos, em direcção a
uma tentativa de síntese. Esta evolução fornece uma base potencial

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para um progresso adicional na teoria das relações internacionais.

CAP. IV.

PARADIGMAS E PERSPECTIVAS TEÓRICAS DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

4.1 Conceito de Paradigma

Considerando que um paradigma é um sistema teórico que orienta a


investigação científica, dentro de determinados parâmetros axiológicos
e metafísicos, com respeito pelas regras metodológicas do processo
científico, e tendo em conta que uma perspectiva teórica diz respeito à
estratégia a prosseguir para analisar, compreender e explicar os
fenómenos inerentes ao objecto de estudo escolhido, é evidente que só
poderemos falar de paradigmas e de teorias das relações internacionais
se tomarmos por referência a formação e a evolução da comunidade
internacional, os factos e os acontecimentos que a caracterizam (e
caracterizaram em cada época e momento) e os condicionalismos e
contingências que suscitaram a sua formação e evolução e estão
subjacentes ao desenvolvimento das relações internacionais.

E foi com base na observação da comunidade internacional, das


relações que se desenvolveram entre os povos, entre os seus
representantes e entre as instituições por eles erigidas, que os estudiosos
reflectiram sobre a guerra e paz, sobre a cooperação, a concertação e
o conflito, sobre as relações de poder e os processos de decisão
internacionais, sobre as diversas concepções do mundo e da vida que
influenciaram, e influenciam, a manifestação e afirmação do poder em
nível nacional e internacional. Assim, desde Tucídedes até Aron, Kissinger
e Merle, passando por Santo Agostinho, São Tomás de Aquino,
Maquiavel, Vitória, Clausewitz, Marx e Lenine, entre tanto outros, todos
procuraram interpretar, compreender e explicar os fenómenos inerentes
ao desenvolvimento das relações sociais internacionais.

Uns entendem que as relações internacionais são o produto, o resultado


das relações entre Estados soberanos e independentes, os quais agem
sempre em defesa do interesse nacional; outros consideram que as
relações internacionais se processam e desenvolvem numa comunidade
universal e resultam da combinação de relações individuais e
transnacionais; e outros, ainda, acreditam que as relações internacionais
são o resultado da afirmação dos poderosos sobre os fracos, dos
exploradores sobre os explorados, num sistema mundial de dominação.

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As reflexões teóricas dos primeiros, com realce para os trabalhos de
Clausewitz, Hans Morgenthau e Raymond Aron, consubstanciam o
paradigma da comunidade interestadual e deram origem às teorias
clássicas das relações internacionais.

As reflexões teóricas dos segundos, com destaque para os trabalhos de


Vitória e Marcel Merle, deram origem à teoria do transnacionalismo e
consubstanciam o paradigma da comunidade universal.

E as reflexões teóricas dos terceiros, com relevância para os trabalhos de


Karl Marx, Lenine e Boukharine, consubstanciam o paradigma da
comunidade internacional estratificada e deram origem à teoria
Marxista-Leninista das relações internacionais e às teorias do imperialismo.

4.2 OS PARADIGMAS DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

A investigação científica destinada a interpretar, compreender e


explicar a comunidade internacional e as relações protagonizadas pelos
actores internacionais partiu de três sistemas teóricos de orientação que
constituem outros tantos paradigmas das relações internacionais: o
paradigma da comunidade interestadual, o paradigma da comunidade
universal e o paradigma da comunidade internacional estratificada.

4.2.1 – O Paradigma da Comunidade Interestadual: O Primado do Político

Muitos estudiosos das relações internacionais consideram a comunidade


internacional como uma comunidade relacional e explicam as relações
internacionais como consequência exclusiva da intervenção dos
Estados. Os seus estudos incidem na análise do poder, nos factores que o
consubstanciam, no comportamento diplomático e estratégico, nas
situações de conflito, em suma, nos vários aspectos da política externa
dos Estados. (Nesta corrente inscrevem-se os trabalhos de Tucídedes, o
“Príncipe de Maquiavel, Davi Clausewitz, Hans Morgenthau, Henry
Kissinger, Raymond Aron e outros).

Os resultados das investigações dos vários estudiosos que se inscrevem


nesta corrente de pensamento possuem um denominador comum:
atribuem ao elemento político uma importância relevante no contexto
das relações internacionais. São os objectivos políticos dos Estados,
definidos em função do interesse nacional, que moldam a sua política
externa e galvanizam os outros factores de ordem económica, social e
cultural para a acção política, diplomática e estratégica. E é na
prossecução desses objectivos que os Estados intervêm no diálogo

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internacional, tanto bilateral como multilateralmente, através de
conferências diplomáticas e das organizações internacionais.

Embora orientadas pelo paradigma da comunidade interestadual, as


reflexões interpretativas dos diversos estudiosos deram origem às teorias
clássicas das relações internacionais, com destaque para a teoria realista
e a teoria diplomático-estratégica, às quais são subjacentes a teoria dos
grandes espaços e as teses geopolíticas.

4.2.2 - O Paradigma da Comunidade Universal (ou Transnacional): O


Primado
do Social

A comunidade internacional, como espaço geográfico que alberga o


rebanho humano, não se confina apenas à coexistência de sociedades
politicamente organizadas – os Estados –; pelo contrário, comporta uma
pluralidade de actores sub-estatais, estatais, transnacionais e
supranacionais. A comunidade universal é formada por homens, os quais,
antes da constituição de sociedades politicamente organizadas, já
desfrutavam do direito de se deslocar de uns lugares para outros, de se
fixar e permanecer em determinados espaços geográficos e de
estabelecer entre si relações de cooperação e de reciprocidade com
vista a satisfazer os seus anseios e aspirações.

Nesta perspectiva, os homens são pré-existentes aos Estados, detendo e


conservando direitos e prerrogativas fundamentais, que nenhum poder
político instituído, nem mesmo aquele a que estão sujeitos, lhes pode
retirar.

A comunidade internacional assenta, desta forma, numa visão


universalista do homem e do género humano; e as relações
internacionais consubstanciam-se no conjunto de relações políticas,
ideológicas, económicas, sociais e culturais, estabelecidas entre os
homens e implementadas pelos homens, para lá das fronteiras e à
margem das diplomacias.

Assim “o comerciante, o viajante, o artista, o navegador, o industrial


criaram um tecido “transnacional” que serve de pano de fundo à
comunidade internacional e a análise das relações internacionais
privilegia as relações económicas e culturais, os actores transnacionais
(sindicatos, igrejas, firmas, indivíduos), e os fenómenos de
interdependência e de solidariedade” (Huntzinger:1991).

Reprodução Interna Ano Lectivo 2022-2023 78


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Este entendimento de comunidade internacional está subjacente ao
pensamento de numerosos autores que o expressaram através das suas
obras ao longo dos séculos. Com efeito, tanto o estoicismo clássico e o
sacerdotalismo medieval, como o jus naturalismo do século XVI, o
cosmopolitismo do século XVIII e o transnacionalismo do século XX,
exprimem um pensamento orientado pelo paradigma da comunidade
universal, no qual se consubstancia a teoria transnacionalista.

As obras destes pensadores, exprimem uma visão universalista do


homem, influenciaram o universalismo wilsoniano e o transnacionalismo-
mundialista do nosso tempo e deram azo ao desenvolvimento das teorias
do universalismo e do transnacionalismo das relações internacionais, as
quais atribuem aos elementos sociais e culturais uma importância
relevante no contexto das relações internacionais.

4.2.3 O paradigma da Comunidade Internacional Estratificada: O


Primado do Económico.

Desde os revolucionários franceses do final do século XVIII até aos


pensadores marxistas do século XX, incluindo os teóricos do nacionalismo
objectivista, foram feitas análises que demonstram que as relações
internacionais são produto das desigualdades existentes no seio da
comunidade internacional.

Para um conjunto de pensadores, o mundo está dividido entre os que


fazem a história e os que a sofrem, entre as nações da elite e as nações
e os povos dependentes, entre os capitalistas e o proletariado
internacional, entre os países desenvolvidos e pós-industrializados (o
centro) e os países subdesenvolvidos e em via de desenvolvimento (a
periferia).

Neste contexto, a comunidade internacional corresponde a um sistema


de dominações ideológica, política e económica, em que alguns
mandam (definem e impõem as regras da convivência internacional) e
os outros obedecem, assemelhando-se às sociedades nacionais
baseadas na distinção entre governantes e governados.

Os revolucionários franceses dos finais do século XVIII, ao propagarem o


“princípio de que toda a soberania reside essencialmente na nação”,
enalteceram o papel e a importância do Estado-nação encarnado na
República revolucionária. Consideram-se os patriotas que têm a missão
de propagar as ideias revolucionárias por toda a Europa, de levar aos
povos oprimidos os princípios da liberdade, da igualdade e da
fraternidade e de acabar com o antigo regime.

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Com o advento e propagação das ideias revolucionárias, constituem-se
os alicerces de um novo paradigma das relações internacionais, pois os
teóricos da revolução concebem a comunidade internacional, não
como uma comunidade universal, nem como inter estatal, mas sim como
uma comunidade onde se confrontam as forças revolucionárias,
representativas dos povos que aspiram a ser governados por regras pré-
estabelecidas, fundadas nos princípios do direito e das liberdades
democráticas e as forças conservadoras encarnadas nas monarquias
aristocráticas desejosas de conservar as prerrogativas e os privilégios
adquiridos.

As ideias revolucionárias não tiveram a força suficiente para acabar em


definitivo com as aristocracias do antigo regime; mas o princípio das
nacionalidades que lhes estava subjacente despertou a consciência
nacional e alimentou os movimentos que fizeram surgir novos Estados-
nação.

Na perspectiva dos teóricos do nacionalismo imperialista, a comunidade


internacional está estratificada em duas categorias de nações: as
nações de elite, que têm o direito e dever histórico de impor a ordem (a
ordem do mais forte) e de realizar o progresso; e as nações e povos que
têm o dever e a obrigação de se sujeitarem às imposições daquelas. A
comunidade internacional é, pois, uma comunidade desigual,
hierarquizada e conflitual.

Os trabalhos dos estudiosos que se inscrevem neste sistema teórico de


orientação das investigações atribuem relevância preponderante ao
elemento económico no contexto das relações internacionais e atentam
na estrutura mundial das relações de produção para explicar que o
desenvolvimento das relações internacionais foi sempre impulsionado
pelos interesses da classe dominante, sobretudo da classe dominante dos
países capitalistas, industrializados e desenvolvidos, dando assim, origem
às teorias do imperialismo e à teoria marxista-leninista das relações
internacionais.

CAP. V – TEORIAS DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS

5.1 INTRODUÇÃO

Subjacentes aos três paradigmas das relações internacionais estão


diversas perspectivas teóricas de abordagem dos fenómenos
internacionais. Umas, partindo de uma visão global dos fenómenos,

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procuram interpretar, compreender e explicar as relações internacionais
no seu conjunto, traduzindo-se em teorias gerais; outras, adoptando uma
visão parcial, limitam-se a explicar apenas um ou alguns aspectos dessas
relações, e não são mais do que teorias parciais.

5.2 – AS TEORIAS GERAIS

As teorias gerais abordam um conjunto das relações internacionais em


ópticas diferentes, conforme o paradigma orientador dos trabalhos
teóricos. Assim, as teorias clássicas (realista e diplomático-estratégica)
assentam no paradigma da comunidade interestadual, a teoria marxista-
leninista está subjacente ao paradigma da comunidade internacional
estratificada, e a teoria transnacionalista decorre do paradigma da
comunidade universal. Por outro lado, as teorias clássicas baseiam-se
fundamentalmente numa perspectiva funcionalista de análise dos
fenómenos internacionais, enquanto a teoria marxista-leninista assenta
numa perspectiva estruturalista e a teoria transnacionalista fundamenta-
se na perspectiva sistémica.

5.3 – AS TEORIAS CLÁSSICAS

As teorias clássicas das relações internacionais colocam o assento tónico


no papel dos Estados e das suas diplomacias e nas noções de interesse
nacional, de poder, de conflito e de equilíbrio de forças, para explicar as
relações internacionais. No entanto, enquanto alguns teóricos da escola
clássica consideram o poder como objectivo central e o único
verdadeiramente importante das relações internacionais, outras
entendem que é a conduta diplomático-estratégica dos Estados que
marca a cadência das relações internacionais, e outros ainda
consideram que a afirmação do poder e o comportamento diplomático-
estratégico dependem dos condicionalismos geográficos em que se
inscrevem e defendem que as relações internacionais dos Estados são
condicionadas (ou determinadas) pelo binómio poder político – espaço
geográfico (no caso da teoria dos “Grandes Espaços”). Os primeiros
deram origem à teoria realista, os segundos à teoria diplomático-
estratégica, os terceiros à teoria dos grandes espaços.

5.3.1 – A teoria realista

A teoria realista das relações internacionais desenvolveu-se no mundo


anglo-saxónico, particularmente nos EUA, por oposição aos idealistas
(utopistas) que acreditavam nas virtudes da Sociedade das Nações, nos

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mecanismos da arbitragem e no sistema de segurança colectiva como
instrumentos capazes de garantir a paz e a segurança internacional.

Para os realistas, como ficou demonstrado pela fraqueza da SDN, pela


agressividade hitleriana e japonesa, pela efervescência da guerra fria, a
paz mundial não pode ser assegurada pelas organizações internacionais
com base no direito internacional, mas sim pelo estabelecimento de um
equilíbrio de forças, de uma balança de poderes que evite a hegemonia
e os apetites expansionistas de qualquer potência, porque, numa
comunidade interestadual, cada um dos seus membros procura
satisfazer os seus interesses nacionais através da afirmação do poder.

A escola realista das relações internacionais foi fundada por Reinhold


Niebuhr e nela inscrevem-se autores como Hans Morgenthau, Edward
Carr, Arnold Wolfers, Kenneth Thompson e Henry Kissinger. Mas, de todos
eles, foi Morgenthau o principal teórico da escola realista que tem
influenciado muitos estudos de relações internacionais. Hans Morgenthau
sustenta, na sua obra “Politics Among Nations” que a política
internacional, como qualquer outra política, é uma luta pelo poder. Seja
qual for o objectivo final desta política, é sempre o poder que
imediatamente se deseja; todas as vezes que os homens de Estado lutam
para conseguir o que desejam no quadro da política internacional, é na
prossecução do poder que se concentram os seus esforços. “Na época
moderna” – sublinha Morgenthau – “os Estados exprimem a necessidade
de poderio em termos de interesse nacional. Entre os Estados-nacionais,
ávidos de maximizar o seu poder, estabelece-se um certo equilíbrio de
forças, que é a única forma realista de preservar a paz”. Para
Morgenthau, a diferença entre política interna e internacional, é apenas
uma diferença de grau e não de natureza, já que o comportamento
internacional dos Estados é determinado pela procura do poder, pela
aquisição, manutenção e afirmação do poder. É o poder que
fundamenta e explica toda relação política, quer interna, quer
externamente.

No domínio da política internacional, a aspiração do poder por parte de


vários Estados, cada um procurando manter ou alterar o status quo,
conduz necessariamente à configuração do equilíbrio de poderes, a um
sistema de balança de poderes, e a políticas externas que visam
preservar esse equilíbrio.

O fundamento da política externa de cada Estado é o interesse nacional


definido em termos de poder. E o interesse nacional dos Estados pode
não residir na defesa da integridade do seu território, na segurança das
pessoas e dos bens e na preservação da identidade política e cultural,

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pode traduzir-se também no exercício de uma influência internacional
necessária para garantir a melhoria das condições de vida e de trabalho
das populações de cada Estado. Logo, as relações internacionais são o
resultado do confronto dos interesses nacionais prosseguidos pelos
diversos Estados, e a política internacional traduz-se no esforço de
compatibilizações dos interesses antagónicos dos Estados, relativizando-
os no contexto de um sistema de equilíbrio de poderes.

Para fundamentar a sua teoria, Morgenthau estabeleceu os seguintes


princípios do realismo político:

a) O realismo político acredita que a política, como a sociedade em


geral, é governada por leis objectivas que têm as suas raízes na
natureza humana. Para o realismo, a teoria consiste em
compreender os factos e dar-lhes um sentido com base na razão.
Por conseguinte, existe a possibilidade de desenvolver uma teoria
racional que reflecte as leis objectivas;

b) O conceito de interesse nacional definido em termos de poder é o


principal ponto de referência que ajuda o realismo a encontrar a
sua vida no domínio da política internacional. Este conceito
permite a ligação entre a razão que preside a compreensão da
política internacional e os factos que devem ser compreendidos;

c) A ideia de interesse é a essência da política e não é afectada pelas


circunstâncias de tempo e de lugar. No entanto, o tipo de interesse
determinante da acção política num dado período da história
depende do contexto político e cultural no qual a política externa
é formulada;

d) O realismo político tem consciência da carga moral da acção


política e da tensão inelutável entre o imperativo moral e as
exigências do êxito da acção política. Mas que os princípios morais
universais não podem ser aplicados às acções dos Estados na sua
formulação abstracta e universal, devendo ser considerados em
função das circunstâncias concretas de tempo e lugar;

e) O realismo político recusa-se a identificar as aspirações morais de


uma nação particular com as leis morais que regem o universo. E,
tal como distingue a verdade da opinião, distingue a verdade da
idolatria. Saber que as nações estão sujeitas à lei moral é uma
coisa, mas pretender saber o que é bom e o que é mau nas
relações entre as nações é uma outra coisa;

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f) Por mal compreendido e interpretado que seja o realismo político,
não há contradição na sua atitude intelectual e moral face às
questões políticas. Intelectualmente, o realismo político sustenta a
autonomia da esfera política, como o economista e o jurista o
fazem na sua esfera de conhecimentos. Pensa em termos de
interesse definido como poder, tal como o economista pensa em
termos de utilidade e o jurista em conformidade da acção com as
regras de direito.

O realismo político desenvolvido por Hans Morgenthau influenciou


numerosos teóricos de relações internacionais, dos quais se destaca
Henry Kissinger. Kissinger, quer como investigador, quer como responsável
da política externa dos EUA, aderiu aos princípios do realismo político e
contribuiu para reforçar a dimensão da teoria realista das relações
internacionais. Entende que a política internacional é o campo de
confrontação dos interesses nacionais; mas, enquanto o interesse
nacional é definido em termos absolutos, a política internacional é
relativa, na medida em que a acção diplomática transforma a
incompatibilidade teórica dos interesses dos Estados na compatibilidade
prática das suas políticas externas. E é através da instauração de um
sistema de equilíbrio de forças, de uma balança de poderes, que se
garante a estabilidade internacional e a paz.

Tentando responder à questão “como instaurar uma ordem internacional


à saída de um período revolucionário?”, Kissinger desenvolveu a
investigação que conduziu à sua tese de doutoramento consagrada ao
Congresso de Viena e à Santa Aliança, tendo concluído que “a paz não
pode nascer do pacifismo, que desarma a comunidade mundial e a
submete involuntariamente aos seus membros mais impiedosos; ela só
pode ser fundada sobre a elaboração de um “consensus” internacional,
sobre a emergência de um princípio de legitimidade reconhecido por
todos, através de um acordo sobre as regras do jogo diplomático, que se
traduza no estabelecimento de um sistema de equilíbrio de poderes”.

A teoria realista concebe o estudo das relações internacionais num


contexto interestadual, atribuindo exclusivamente aos Estados a
responsabilidade pelo que ocorre na comunidade mundial. Para os
teóricos da escola realista, as relações internacionais resultam da
participação e intervenção dos Estados na cena internacional, os quais
agem em função do interesse nacional, definido em termos de poder. O
poder é entendido mais como uma finalidade do que como um meio,
um instrumento, e é concebido em termos político-militares do que em
termos económicos, sociais e culturais. De resto, a teoria realista das
relações internacionais afirma a autonomia e o primado do político em

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relação ao económico e ao social, e coloca o acento tónico no
elemento político do poder.

5.3.2 – A Teoria Diplomático-Estratégica

A teoria diplomático-estratégica das relações internacionais foi


desenvolvida por Raymond Aron e prosseguida pelo seu discípulo Stanley
Hoffmann.

Situando-se entre a História e a Sociologia, Raymond Aron procurou


estabelecer um quadro teórico geral que permita explicar as relações
internacionais no seu conjunto, baseando-se naquilo que considerou
constituir a especificidade dessas relações: a legitimidade e a legalidade
do recurso à força por parte dos actores internacionais. Concebendo o
tipo ideal de um meio internacional não integrado, Aron fundamenta a
sua teoria numa análise racional das relações internacionais, uma análise
sociológica das determinantes e dos sujeitos dessas relações, numa
análise histórica da conjuntura e numa análise normativa e filosófica,
para concluir que todo estudo concreto das relações internacionais é um
estudo sociológico e histórico, pois o cálculo das forças recorre ao
número, ao espaço, aos recursos, aos regimes (político, económico,
militar).

Inscrevendo-se na Escola Clássica, Raymond Aron identifica as relações


internacionais com as relações interestaduais, acrescentando que estas
representam um carácter original que as distingue de qualquer outra
relação social; desenrolam-se numa comunidade internacional
anárquica caracterizada pela existência de uma pluralidade de centros
de decisão e pelo recurso à força armada; e os seus elementos
constitutivos são o livre recurso à força e a possibilidade da guerra,
ligados a ausência de qualquer instância detentora do monopólio da
violência legítima de que falava Max Weber. Logo, a teoria deve permitir
mostrar em que quadro e dentro de que limites se situa a conduta
específica das relações internacionais, que é a conduta diplomático-
estratégica, na medida em que os actores são o diplomata e o soldado
e a conduta pode revestir duas formas conforme existe paz ou guerra.

Para responder à questão: “o que é uma teoria das relações


internacionais?”, Raymond Aron escreveu um artigo com este título na
“Revue Française de Science politique”, no qual critica a teoria realista e
defende a teoria diplomático-estratégica das relações internacionais,
argumentando que a natureza da comunidade internacional se
encontra nos filósofos clássicos nos juristas do Direito Internacional e nos
homens de Estado americanos, e que se caracteriza pela ausência de

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uma instância internacional que detenha o monopólio da violência
legítima. Para melhor se compreender a teoria de Raymond Aron
transcrevemos as passagens mais relevantes do texto do artigo
supracitado.

A determinação do campo teórico das relações internacionais pode ser


feita de duas maneiras: ou se escolhe a originalidade e a singularidade
deste campo entre os outros domínios sociais; ou se parte de conceitos
que também se aplicam a outros domínios.

Na primeira hipótese, procura-se distinguir o que diferencia as relações


entre as colectividades politicamente organizadas de todas as outras
relações sociais. Foi o que fizeram os autores da teoria realista. Fazer do
poder a finalidade única ou suprema dos indivíduos, dos partidos ou dos
Estados, isso não é uma teoria no sentido científico, mas uma filosofia ou
uma ideologia.

Em “Paix et Guerre entre les Nations”, escolheu-se outro termo alternativo.


Procurou-se o que constituía a especificidade das relações internacionais
ou inter estatais e encontrou-se o traço específico da legitimidade e da
legalidade do recurso à força armada por parte dos actores. Nas
civilizações superiores, estas relações são as únicas, em todas as relações
sociais, que admitem a violência como normal.

Esta definição não é de modo nenhum original: encontra-se nos filósofos


clássicos e nos juristas que definiram o direito internacional europeu (jus
gentium). Foi confirmada pela experiência do nosso século e pela acção
dos homens de Estado americanos. Estes, prisioneiros da contradição
entre uma ideologia nacional (a guerra é um crime, o reino da lei deve
impor-se aos Estados nas suas relações específicas) e a natureza da
sociedade internacional, aparecem aos olhos da opinião pública como
cínicos e hipócritas.

Nem o pacto Briand-Kellog, nem as Nações Unidas suprimiram até ao


presente o traço específico do sistema internacional que os filósofos e os
juristas dos séculos anteriores designaram pelo termo de “Estado natural”.
Este opõe-se ao Estado civil que supõe tribunal e polícia. Não há o
equivalente a um tribunal na sociedade internacional, e se as Nações
Unidas quiserem obrigar uma das grandes potências a submeter-se, a
acção da polícia degenerá em grande guerra.

Este traço específico - ausência de tribunal e de polícia, direito de recurso


à força, pluralidade de centros de decisão autónomos, alternância e
continuidade da paz e da guerra – poderá servir de fundamento de uma

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teoria científica, de forma que seja imediatamente perceptível pelos
próprios actores e integrada na sociologia ou na ciência política. Não
deverá a ciência substituir os conceitos vulgares pelos conceitos por ela
própria elaborados? Nada impede que se traduza numa palavra ou
numa fórmula mais satisfatória para os cientistas a ideia precedente.

Max Weber definiu o Estado como “o monopólio da violência legítima”.


Nós diremos que a sociedade internacional é caracterizada pela
“ausência de uma instância que detenha o monopólio da violência
legítima”.
Uma definição teórica deste género comporta múltiplas confirmações
directas ou indirectas, que resultam das respostas às questões seguintes:

1)Permite esta definição distinguir o subsistema considerado?


2) Permite deduzir ou compreender outros elementos do subsistema?
3) Permite encontrar, explicados, os dados imediatos a partir dos quais se
processa a elaboração teórica?

A resposta à primeira questão é positiva. A delimitação real é, por vezes,


mais difícil do que a delimitação conceptual. Nas sociedades arcaicas
era difícil encontrar a instância que detinha a autoridade suprema. As
lutas travavam-se entre cidades, classes ou tribos. Não existiam
sociedades políticas e territorialmente organizadas. As sociedades de
tipo feudal, em virtude da dispersão dos meios de combate, tornavam
difícil a distinção entre a violência intra-estadual e a violência inter-
estadual. E nas sociedades modernas, as guerras civis diferenciam-se mal
das guerras estrangeiras.

A resposta à segunda questão justifica o ponto de partida escolhido.


Com efeito, existindo uma sociedade sem monopólio da violência
legítima, composta por actores colectivos, cada um dos quais atribui a
uma instância, no seu interior, o monopólio da violência legítima, existem,
implicitamente, variáveis principais necessárias à explicação dos sistemas
e dos acontecimentos. A pluralidade dos actores colectivos implica uma
dupla concepção de espaço/geográfico: o espaço sobre o qual se
instala cada um dos actores colectivos; o espaço no interior do qual se
desenrolam as relações entre esses actores. Fazem parte de um mesmo
sistema os actores que têm entre si relações tais que cada um tem em
conta todos os outros nos cálculos que precedem as decisões.

Na ausência do monopólio de violência legítima, cada actor é obrigado


a velar pela sua própria segurança, através das suas próprias forças ou
combinando as suas forças com a dos seus aliados. Daí resulta que a

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configuração da relação de forças (bipolar, pluripolar) é uma das
principais variáveis de qualquer sistema internacional.
Como cada um dos actores colectivos, nas relações com os outros
actores, é dirigido pela instância que detém o monopólio da violência
legítima, os regimes internos dos actores colectivos constituem uma das
variáveis do sistema internacional, e a homogeneidade ou a
heterogeneidade do sistema depende da semelhança ou da oposição
entre os regimes internos dos diferentes actores.

À terceira questão apenas se pode dar uma resposta semi-positiva. Os


sistemas e os acontecimentos sociais são, no sentido epistemológico do
termo, indefinidos; são sempre interpretados em termos relativos.

Da definição teórica adoptada não se pode deduzir de todo ou em


parte aquilo a que se chamará de comércio pacífico entre as
colectividades, quer se trate de relações inter individuais (entre
compradores e vendedores pertencentes a duas entidades políticas) ou
de relações interestaduais (científicas, económicas, intelectuais,
turísticas, etc). Não está interdito tentar uma definição da sociedade
internacional a partir do estado de paz e não a partir do risco de guerra,
de considerar as provas de força e a competição militar como situações
de excepção e não como a essência das relações internacionais. Podem
objectar-nos que confundimos relações internacionais com relações
interestaduais e que a nossa definição se aplica exclusivamente a estas
últimas. A sociedade transnacional (ou transestadual) será a verdadeira
sociedade internacional que as organizações supranacionais
regulamentarão progressivamente.

No que concerne aos milénios de história das sociedades complexa, a


definição teórica escolhida parece ser a mais próxima da realidade, mais
conforme com a experiência, mais instrutiva e mais fecunda. Toda
definição que não reconhece o carácter específico das relações
internacionais, devido à legitimidade do recurso à força por parte dos
actores, negligencia um dado constante das civilizações e o significado
humano da actividade militar.

Embora reconhecesse a existência de fenómenos transnacionais, que a


revolução científica e tecnológica tornaram cada vez mais presentes no
contexto da comunidade internacional, Raymon Aron manteve-se
sempre fiel à sua teoria diplomático-estratégica, continuando a afirmar,
no seu livro póstumo, “Últimos anos do século” (1984), o predomínio das
relações interestaduais.
Nesta perspectiva de análise das relações internacionais situa-se Stanley
Hoffman, para quem a comunidade internacional continua a ser uma

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comunidade relacional, e as relações internacionais são
predominantemente marcadas pelas relações interestaduais, na medida
em que na sua opinião, não existe uma comunidade internacional
institucionalizada, nem regras universais, mas sim uma coexistência de
facto entre entidades independentes e soberanas. E a heterogeneidade
do sistema internacional e a coexistência política dos actores
independentes e soberanos (os Estados) são os dois traços mais
característicos da comunidade relacional de Stanley Hoffmann.

A teoria diplomático-estratégica das relações internacionais, tal como a


teoria realista, coloca o assento tónico no elemento político do poder,
atribuindo à diplomacia e à estratégia prosseguida pelos Estados
relevante importância na produção dos fenómenos que constituem o
objecto das relações internacionais. Assenta no primado do político e
reafirma a autonomia dos fenómenos políticos face aos fenómenos
económicos, sociais e culturais.

5.3.3 – A Teoria Marxista-Leninista

Na perspectiva de Morgenthau, de Raymond Aron e de outros teóricos


da escola clássica das relações internacionais, quanto à sua origem, o
poder deriva de forças inerentes à natureza humana; e, neste sentido é
um elemento permanente e necessário à todas as relações sociais.
Porém, os teóricos marxistas rejeitam esta tese, e consideram que é um
erro situar a origem do poder na natureza humana. Defendem que a
sociedade, embora inseparável dos processos biológicos sem que os
quais não poderia existir, representa um conjunto material mais complexo
do que a massa biológica e quantitativamente diferente. Na sociedade
as leis biológicas estão integradas nas relações económicas e sociais,
que são estabelecidas entre os povos, e, juntamente com as
concepções políticas e ideológicas, constituem um conjunto estrutural
regido por leis sociais que se distinguem das leis biológicas. Os indivíduos
biologicamente fortes e possuidores de todas as faculdades podem em
virtude de condições particulares inerentes à sociedade encontrar-se
socialmente desfavorecidos e materialmente pobres. Por conseguinte é
mais importante examinar o poder no contexto da sociedade do que no
sentido biológico, porque, na sociedade, o poder é mais um efeito do
que uma causa. Longe de ser a causa primeira da política internacional,
é antes o resultado da conjuntura criada pelo curso da história, que se
vai em função das condições materiais da sociedade e das
desigualdades sociais e nacionais.

Nesta linha de raciocínio, os teóricos marxistas entendem que a estrutura


socioeconómica de um país é determinante para a definição e

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implementação da sua política externa, isto é, para o seu
comportamento internacional. Quer isto dizer que a política interna de
um país decorre dos interesses de classes existentes no interior desse país
e da luta de classes que ali se manifesta: a política externa dos governos
é a continuação da sua política interna, e esta é determinada pela
classe dominante que influi de modo decisivo na formação dos interesses
que são considerados como interesses nacionais. Logo, a política
internacional é o resultado da confluência e da confrontação de
interesses nacionais definidos em termos de interesses económicos das
classes dominantes.

Na óptica dos marxistas, as relações internacionais são determinadas


pelos interesses económicos das classes dominantes dos países
capitalistas. E os interesses das classes dominantes traduzem-se em
maximizar os lucros à custa da exploração das classes dominadas. Por
conseguintes, as relações entre os diversos Estados de estrutura
socioeconómicas capitalistas são necessariamente marcadas por
situações de rivalidade e de conflito. De resto, os conflitos entre os Estados
não são mais do que a expressão e a consequência da estrutura
socioeconómica dos diversos países, nos quais uma classe minoritária
explora uma classe maioritária.

Os teóricos marxistas regem, pois, a autonomia causal dos fenómenos


políticos, fazendo-os depender das estruturas socioeconómicas das
sociedades e da dialéctica entre as forças produtivas e as relações de
produção.

Kart Marx concebeu o Estado e o poder como fenómeno de força em


perfeita interacção com as forças económica e sócias: o estudo do
Estado e do poder é orientado para a análise concreta dessas forças.
Entre essas forcas, Marx sublinhou a importância das técnicas de
produção e dos fenómenos económicos. No prólogo da “Critica da
Economia Política” (1859), faz, assim, a definição do materialismo
histórico: os homens, ao longo da vida, desenvolvem a produção, dentro
da sociedade, sob determinadas condições necessárias e
independentes da sua vontade, as condições de produção que
correspondem a uma determinada fase de desenvolvimento das suas
forças materiais de produção. A totalidade dessas condições de
produção constitui a estrutura económica da sociedade, a base real,
sobre a qual se ergue uma super estrutura jurídica e política e a que
correspondem determinadas formas de consciência social. O modo de
produção da vida material condiciona todos os processos vitais da
sociedade, a política e o espírito. Não é a consciência dos homens que
as determina, antes pelo contrário, são elas que determinam a sua

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consciência. Num certo estádio do seu desenvolvimento, as forças
materiais de produção da sociedade entram em conflito com as
condições de produção existente, ou – o que não é senão uma
expressão jurídica do mesmo com as relações de propriedade no interior
das quais se tinha contido até então. De formas evolutivas das forças
produtivas que erma, estas relações tornam-se entraves dessas forças.
Abre-se, então, uma era de revolução social, a mudança que se produziu
na base económica agita mais ou menos lentamente ou rapidamente
toda a colossal super estrutura. Quando se observam tais agitações, é
necessário distinguir sempre entre a alteração material das condições de
produção económicas que devemos verificar finalmente com a ajuda
das ciências físicas e naturais, as formas jurídicas, políticas, religiosas,
artísticas ou filosóficas, numa palavra, as formas ideológicas sob as quais
os homens se tornam conscientes deste conflito e o levam até ao fim (....)
pode conter em si, jamais novas e superiores relações de produção as
substituem antes que as condições de existência material de tais relações
tenham sido incubadas no próprio seio da velha sociedade.

A evolução histórica pode, segundo Marx, ser explicada pela


contradição entre as forças produtoras em movimento as relações de
produção, isto é, as relações jurídicas de propriedades e a distribuição
dos rendimentos entre os indivíduos e os grupos das colectividades.

As implicações deste pressuposto básico marxista desdobram-se numa


sequência que foi seriada do seguinte modo:

a) – o movimento da história apreende-se pelo exame das estruturas


das sociedades, das forças de produção e das relações que, em
decorrência causal necessária, se estabelecem entre os homens;

b) em qualquer sociedade, e em qualquer tempo, distinguem-se a


infra-estrutura económica e a super estrutura normativa-valorativa,
ideológica;
c) em momentos determinados do processo histórico, as forças de
produção, ou a capacidade que a sociedade tem de produzir,
entram em conflito com as relações de propriedades e repartição
do rendimento nacional que é função das relações de
propriedade;

d) quando surge o conflito, os homens que estão ligados aos


benefícios das relações de produção entram em luta com aqueles
que pretendem transformar essas relações em função do
desenvolvimento alcançado pelas forças produtivas, cujo

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desenvolvimento por sua vez depende do progresso técnico, do
avanço científico e da própria organização colectiva do trabalho.
Aqui surge o princípio da luta de classes;

e) as revoluções que resolvem essa contradição das classes,


brevemente identificadas como capitalistas e proletárias, porque
os primeiros são os donos dos instrumentos de produção, e os
segundos apenas dispõem do trabalho, são acontecimentos
necessários sempre que o ponto de ruptura se dá entres as forças
produtoras e as relações de produção, precisamente quando as
sociedades têm já os meios de resolver os problemas que a
evolução lhe coloca, e não antes;

f) a consciência dos homens não determina o processo social, é o


processo social que determina a consciência dos homens, pelo
que a resolução dialéctica das contradições não se dá no espírito,
mas sim na realidade social;

g) a história do género humano permitia, nessa data, distinguir quatro


modelos económicos: antigo, feudal, burguês e asiático.

O exame de todos e cada um destes modelos revelaria então:


- que o regime político, parte da super estrutura, e é reflexo da
luta de classes;

- que as classes são definidas pelo sistema de produção;

- que o sistema de produção depende essencialmente da


evolução das técnicas;

- que o fenómeno político é, portanto, uma consequência das


relações de produção, não tem autonomia no processo
causal.

Apesar do seu contributo para o desenvolvimento do método de


investigação em ciências sociais e para o alargamento do objecto da
Ciência Política, Marx negou a autonomia dos factos e dos
acontecimentos políticos, na medida em que todo o processo social
resulta do determinismo histórico: a super estrutura política é determinada
pela estrutura económica, e a intervenção das decisões humanas é
suplantada por causas materiais que excedem a sua eficácia.

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A tese marxista do determinismo histórico foi transposta para o domínio
das relações internacionais, designadamente por, Rudolf Hilferding,
Lenine, Boukharine e pelos neo-marxistas, como Samir Amin. Robert Cox
e Harold Jacobson, que fazem depender os fenómenos políticos e sociais
internacionais da estrutura das relações de produção em nível da
comunidade internacional, advogando que entre o centro e a periferia
existem relações de dependência económica e, em muitos casos, de
subordinação política.

Rudolf Hilferding e Otto Bauer, “dois economistas austríacos analisaram,


no início do século XX, a penetração do capitalismo na Europa Central e
concluíram que o “capital financeiro” exprimia o novo estádio do
capitalismo, o capitalismo monopolista de Estado. “O capital precipita-
se para as zonas onde as taxas de lucro são mais elevadas; criam-se,
então, relações de dependência que não são apenas económicas –
devido a troca desigual e a apropriação da mais valia produzida nas
regiões economicamente menos desenvolvidas – mas também políticas
e culturais. A cultura do explorador impõe-se às culturas dos países menos
desenvolvidos, de tal maneira que o imperialismo estabelece uma
dominação sem partilha sobre os povos e as regiões de que se apropria”.

Boukharine, na sua obra “A Economia Mundial e o Imperialismo”, faz uma


análise do imperialismo e do capitalismo na perspectiva da economia
mundial e da internacionalização do capital e conclui que as economias
nacionais são parte integrante de um conjunto mais vasto que é a
economia mundial. “Tal como qualquer empresa individual é uma
componente da economia nacional, também cada uma das economias
nacionais está integrada no sistema da economia mundial (...) Podemos
definir a economia mundial como um sistema de relações de produção
e de troca que se correspondem e abarcam a totalidade do mundo”. A
análise de Boukharine mostra a existência de um capitalismo
internacional decorrente da estrutura das relações de produção e de
troca consubstanciado na expansão do capital financeiro e na
internacionalização das empresas, o qual se sobrepõe ao capitalismo da
concorrência perpetrado pelos Estados-nacionais.

Mas foi Lenine o principal teórico do imperialismo como estádio supremo


do capitalismo. No seu trabalho “O Imperialismo, Estádio Supremo do
Capitalismo”, Lenine reprova a tese marxista da evolução do capitalismo
que conduziria progressivamente a uma concentração da produção, e
tentou mostrar como o capitalismo de concorrência entre as diversas
classes burguesas dominantes dará (deu) lugar ao capitalismo
monopolista e financeiro, que resulta da fusão do capital bancário e do
capital industrial, originando uma oligarquia financeira.

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Na perspectiva de Lenine, o imperialismo é o estádio monopolista do
capitalismo, que pretende continuar a partilha do globo pelas duas
grandes potências capitalistas, agravando as desigualdades de
desenvolvimento dos diferentes Estados. O desenvolvimento do
imperialismo implica novas partilhas dos recursos do globo entre os
monopólios, e isto conduzirá, inevitavelmente, a uma política agressiva e
à guerra.

Por conseguinte para Lenine, a paz só será assegurada no momento em


que se verifique uma vitória do proletariado nos diversos países, pois só o
desaparecimento da luta de classes no interior das nações, isto é, as
diversas nações é que assegurar-se-á, assim, a paz mundial.

Num texto intitulado “O Socialismo e a Guerra”, Lenine expressou do


seguinte modo a posição dos socialistas face à Primeira Guerra Mundial:

“Os socialistas têm condenado sempre as guerras entre os povos.


Mas a nossa atitude em relação à guerra é funcionalmente diferente da
dos pacifistas, burgueses e da dos anarquistas. Distinguimo-nos dos
primeiros na medida em que compreendemos o traço inevitável que liga
as guerras à luta de classes no interior do país, compreendemos que é
impossível suprimir as guerras sem suprimir as classes e sem instaurar o
socialismo. É neste sentido que nós reconhecemos perfeitamente a
legitimidade, o carácter progressista e a necessidade das guerras civis,
quer dizer, as guerras da classe oprimida contra a que oprime, dos
escravos contra os seus proprietários, dos camponeses contra os senhores
das terras, dos assalariados contra os burgueses.
Distinguimo-nos também dos anarquistas na medida em que
reconhecemos a necessidade de analisar historicamente cada guerra
em particular. A história conheceu muitas guerras, que, apesar dos seus
horrores, atrocidades e calamidades, foram progressistas, úteis ao
desenvolvimento da humanidade ajudando a destruir as instituições
particularmente nocivas e reaccionárias e os despotismos dos bárbaros
da Europa”.

Como bem evidencia este texto, Lenine considera “justa” a guerra que
visa libertar os povos oprimidos e dependentes. E declara que, tanto os
povos subjugados e oprimidos, como as classes exploradas e
dependentes, têm direito à revolta e a recorrer aos mecanismos
revolucionários para instituir sociedades socialistas e sem classes, única
forma de assegurar a paz política, económica e social entre as nações e
no interior de cada nação. Por isso se diz que Lenine inverteu o axioma

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de Clausewitz, ao proclamar que “a política é a continuação da guerra
por outros meios”.

As teses dos teóricos do imperialismo, que se fundamentam no


paradigma da comunidade internacional estratificada, inspiraram os
trabalhos dos neo-marxistas contemporâneos, que analisaram a estrutura
internacional das relações de produção e a organização dos processos
produtivos e descobriram a existência de enormes desigualdades de
desenvolvimento económico e social entre os países desenvolvidos e
pós-industrializados e os países pouco desenvolvidos, infra-industrializados
e altamente dependentes das actividades económicas primárias
(agricultura e extracção de minérios); desigualdades essas que só
poderão ser superadas mediante a instituição de uma nova ordem
económica internacional. Inscrevem-se neste contexto os trabalhos de
Samir Amin, a que já fizemos e os trabalhos de Robert Cox e Harold
Jacobson, ao analisar “o poder e a hierarquia internacional dos Estados”.

Estes autores identificam a comunidade internacional como um sistema


de dominação centro-periferia, ocupando os países altamente
desenvolvidos o centro e os países com maior atraso de desenvolvimento
a periferia do grupo dos países periféricos, que corresponde de um modo
geral ao que se convencionou chamar de “Terceiro Mundo”.

A teoria marxista-leninista das relações internacionais defende o primado


da economia, na medida em que considera que os fenómenos sociais e
políticos são determinados pela estrutura das relações de produção e
pelos processos produtivos, já que os interesses económicos estão na
base de toda a acção política e social.

As análises marxistas da comunidade internacional assentam numa


perspectiva estruturalista de observação e explicação dos fenómenos,
interpretando a violência política como uma violência estrutural gerada
pela dicotomia entre os exploradores e explorados, entre os países
avançados e desenvolvidos e os países atrasados, subdesenvolvidos ou
em vias de desenvolvimento.

5.3.4 – A Teoria do Transnacionalismo

A teoria do transnacionalismo foi desenvolvida a partir da década de


sessenta (1960) por vários analistas das relações internacionais, em
oposição às teorias da escola clássica e à sua influência no estudo das
relações internacionais nas universidades norte-americanas, os quais
fundamentam e alicerçam as suas reflexões teóricas nas obras dos

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clássicos – estoicistas, sacerdotalistas, jus naturalistas e cosmopolitanos –
que consubstanciam o paradigma da comunidade universal, ou
transnacional.

Partindo do princípio de que a comunidade internacional não se pode


confundir com uma comunidade interestadual e muito menos com uma
comunidade intergovernamental, os teóricos do transnacionalismo
situam-se numa perspectiva sistémica de análise dos fenómenos para
explicar que as relações internacionais são o resultado da intervenção
interactiva de vários actores internacionais: Estados, organizações
internacionais, empresas multinacionais, e também as internacionais
partidárias, as internacionais sindicais, as igrejas, os grupos sub estatais e
os próprios indivíduos.

De entre os trabalhos dos vários autores americanos e europeus, que se


inscrevem na escola do transnacionalismo, merecem destaque as obras
de Joseph Nye e Robert O’Keohane “Transnational Relations and World
Politics”, de James Rosenau “Linkage Politics: Essay on the convergence
of National and International System”, de Marcel Merle “Sociologie des
Relations Internationales” e de Oliver Dollfus “Geopolítica do Sistema
Mundo”. Nye e O’Keohane foram os primeiros autores a utilizar o termo
“transnacional” para se referirem a muitas das relações que se
processam na comunidade internacional. Na sua obra acima referida,
escreveram a certo passo:
“A nossa reacção quanto ao predomínio da abordagem
intergovernamental e o nosso desejo de partir das formas de interacções
internacionais levaram-nos a reflectir em termos de relações
transnacionais (...) A partir do momento em que definimos a política em
termos de utilização racional dos recursos materiais e simbólicos incluindo
a ameaça ou uso da força para levar outros actores a comportarem-se
de modo diferente, é claro que postulamos uma concepção da política
internacional na qual o fenómeno central está ligado ao da troca entre
variedade de actores autónomos e semi-autónomos.

Estes autores rejeitam a tese de que a ameaça do recurso à força ou a


utilização da força têm um peso decisivo nas relações internacionais, e
defendem a ideia de que, além dos Estados, são muitos os actores que
intervêm activamente na vida internacional.

Nesta linha de pensamento inserem-se os trabalhos de James Rosenau,


nos quais utilizou e desenvolveu a noção de “Linkage” para explicar a
ligação existente entre a vida interna de uma sociedade e a vida
internacional, ou seja, para demonstrar a pluri-interdependência dos
elementos políticos, económicos, sociais e culturais, que faz com que os

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comportamentos predominantes numa determinada sociedade se
repercutam em outras sociedades. Rosenau atribui grande importância
aos factores económicos, sociais e culturais, cuja influência se faz sentir
na conduta dos governos e no comportamento dos cidadãos.

Por seu turno, Marcel Merle, que também rejeita as teses da escola
clássica, fez uma análise sociológica das relações internacionais com
base na perspectiva sistémica, tendo concluído que, no sistema
internacional, a acção dos múltiplos actores exerce-se através das
pressões e dos limites geográficos, económicos, culturais e ideológicos.
Para Merle, as forças transnacionais constituem actualmente elementos
importantes da vida internacional, na medida em que “o Estado” –
sublinha Merle – “surge geralmente como uma máscara que dissimula a
acção de numerosos actores secundários internacionais cujos governos
estão longe de controlar a acção. Qualquer que seja o interesse que o
estudo do equilíbrio de forças apresente, este estudo só relata uma parte
da actividade internacional porque assenta no postulado de uma
competição entre os actores que se presume agirem cada um deles
como um único homem”.

O pensamento da escola contemporânea do transnacionalismo foi


magistralmente expresso por Oliver Dollfus num artigo/comunicação
intitulado “Geopolítica do Sistema Mundo”, do qual transcrevemos as
seguintes passagens:
“O sistema mundo possui uma especificidade em relação à
maioria dos sistemas que o constituem: os seus fluxos atravessam dois
campos cujas naturezas jurídicas e legibilidades são diferentes.
O campo internacional é percorrido por fluxos normalizados e
regulados pelas decisões dos Estados depois de negociações e
entendimentos. É codificado por direitos e regulamentações. Dele
decorrem as trocas contabilizadas nas balanças comerciais e de
pagamentos dos Estados e que constituem a base do estudo da
economia mundial. À do mundo, se não houvesse modos de cálculo
diferentes, discrepância nos dados, omissões, a soma desses balanços
deveria ser nula. Pertencem também ao campo do internacional as
migrações entre países que são objecto de convenções como os
acordos sobre a propriedade intelectual – diplomas e licenças. O campo
internacional é percorrido por fluxos demarcados e regulados e explica
a realidade da fronteira dos Estados ou das comunidades mais vastas e
a regulamentação da sua travessia.
O campo do transnacional desdenha as fronteiras. Os fluxos
atravessam-se sem ser verificados ou contabilizados. É o espaço das
grandes empresas, onde circulam informações ocultas às empresas rivais.
Grande parte das informações que sulcam e estruturam o mundo é

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transnacional, das emissões de televisão captadas por antenas
parabólicas via satélite às informações bolsistas da Agência Reuter.
Pertencem também ao campo do transnacional os contrabandos e as
migrações clandestinas, assim como tráficos como os da droga. Muitas
vezes o campo do transnacional não tem outras regulamentações senão
as que nascem dos acordos entre máfias para o comércio da cocaína.

No espaço mundial há com frequência imbricação dos fluxos dos


dois campos. Uma grande empresa é poderosa porque é ao mês, o
tempo internacional – com filiais em diferentes países que permitem gozar
de vantagens comparativas – e transnacional pelo seu próprio sistema
de informações. O dólar dos EUA é uma moeda, emitida pelo Banco de
Reserva, uma moeda internacional controlada, tanto quanto possível,
por acordo entre ministro das finanças e presidentes dos bancos centrais
das principais potências económicas (o G7) e, enfim, uma moeda
transnacional pelas emissões de euro dólares, que, mal controladas
podem desestabilizar os acordos financeiros internacionais. A Igreja
Católica é uma instituição internacional; o catolicismo, enquanto religião
de vocação “universal”, é transnacional.
Uma das dificuldades do estudo do sistema mundial está ligada à
imbricação desses dois campos, dos quais um é conhecido e outro é
menos. Ora, com os progressos técnicos das comunicações e das
informações, os fluxos transnacionais assumem importância cada vez
maior perante o sistema mundo e tornam mais delicada a busca dos
equilíbrios internos no seio dos Estados”.

A teoria do transnacionalismo das relações internacionais fundamenta-


se no paradigma da comunidade universal que atribui importante
relevância aos elementos sociais e culturais das relações entre os povos
em detrimento do elemento político que é preponderante nas relações
entre os governos. Para os teóricos do transnacionalismo, a vida
internacional não decorre tanto do jogo dos interesses nacionais como
dos movimentos sociais e dos fluxos económicos e financeiros; e as
relações internacionais, no seu complexo conjunto, compreendem,
felizmente maior número de elementos pacíficos do que conflituosos.
Não são apenas o soldado e o diplomata, como referiu Raymond Aron,
que desenham o visual das relações internacionais contemporâneas, são
sobretudo, os homens de negócios, os agentes culturais, os religiosos, os
grupos sociais internacionalmente organizados e o próprio indivíduo que,
sem se preocuparem com as fronteiras nacionais, movimentam os
capitais financeiros e os recursos económicos, expandem e diversificam
os talentos, a arte e os conhecimentos, divulgam e espalham a fé e os
princípios em que acreditam, coordenam a defesa dos interesses sociais,

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empenham-se na melhoria e na protecção da qualidade de vida, fixam-
se onde acham que têm melhores condições de vivência humana.

5.3.5 Apreciação Crítica das Teorias Gerais

As teorias gerais das relações internacionais que atrás foram descritas e


analisadas são passíveis de uma apreciação crítica pela simples razão de
acentuarem a preponderância de alguns factores em relação a outros,
ou pelo facto de seleccionarem apenas um factor (ou elemento)
negligenciando o papel e a importância de outros factores no
desenvolvimento das relações internacionais.

A teoria realista apenas toma em consideração o poder, ou melhor, tem


por referência o interesse nacional definido em termos de poder,
negligenciando as variáveis económicas, sociais e culturais. Por outro
lado entende o poder como uma finalidade – os Estados agem na esfera
internacional com vista a maximizar o seu poder. O poder tanto pode ser
um fim, como um meio, ou uma relação. O poder pode ser exercido para
realizar o bem-estar social, sendo um instrumento, um meio, ao serviço de
um fim. Além disso, o conceito de interesse nacional, definido em termos
de poder, presta-se a discussões e gera alguns equívocos, na medida em
que o interesse nacional não deve ter apenas uma dimensão política,
deve resultar da conjugação de variáveis políticas, económicas, sociais
e culturais. Finalmente, considera apenas os Estados como actores
internacionais, esquecendo o papel e a importância das organizações
internacionais e das sociedades multinacionais na cena internacional.
Tem uma visão limitada das relações internacionais contemporâneas, já
que toma por campo de observação uma comunidade interestadual e
um sistema internacional homogéneo próprios dos séculos XVIII e XIX. Por
isso, não parece que seja possível interpretar e compreender a complexa
realidade das relações internacionais do nosso tempo se adoptar a
perspectiva propugnada pela teoria realista, pois ficar-se-ia com uma
visão bastante limitada dessa mesma realidade.

A teoria diplomático-estratégica considera que as relações


internacionais desenvolvem-se numa comunidade internacional
anárquica – ausência de uma instância detentora do monopólio da
violência legítima – e que são o produto do comportamento diplomático
e estratégico dos Estados. Tal como a teoria realista, concebe a
comunidade internacional como uma comunidade relacional, restringe
as relações internacionais às relações interestaduais, e assenta no
primado do político, negligenciando também as variáveis económicas,
sociais e culturais. Difere da teoria realista no que concerne à essência,
ao móbil, à especificidade das relações internacionais, que não é a

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procura do poder, mas sim a legitimidade e a legalidade do recurso à
força por parte dos actores (os Estados). A teoria diplomático-estratégica
reduz as relações internacionais às relações político-militares e
diplomáticas e descura a existência de relações sociais, culturais e
económicas, promovidas e desenvolvidas tanto pelos Estados como
pelos outros actores internacionais. É uma perspectiva teórica de
observação e análise que permite interpretar e compreender apenas
uma parte da complexa realidade das relações internacionais.

A teoria marxista-leninista concebe a comunidade internacional em


termos estruturais e interpreta as relações internacionais na perspectiva
marxista de análise das relações sociais. Sendo a comunidade
internacional uma macroestratégia integrada por micro-estruturas – as
sociedades politicamente organizadas – as relações internacionais são o
reflexo das relações intra-societais, que são determinadas pela infra-
estrutura económica ao serviço das classes dominantes.

Ao transferir a análise das relações intra-societais para as relações


internacionais, a teoria marxista-leninista coloca o acento tónico na
variável sócio-económica, e considera que o comportamento
internacional dos Estados é determinado pelas estruturas sócio-
económicas desses Estados. Nega a autonomia da variável política
fazendo-a depender de variáveis económicas e sociais, advogando que
são as forças económicas em acção que determinam a complexa
realidade das relações internacionais e não às guerras, os tratados e a
acção dos diplomatas.

A interpretação e explicação marxista-leninista das relações


internacionais não deixam de ser também monoconceiptuais, tal como
o são as teorias da Escola Clássica: para estas o factor político é
determinante; para os marxistas é o factor económico que determina o
comportamento político. Minimizando e descurando outras variáveis do
sistema internacional, sobretudo variáveis culturais, e reduzindo todos os
factos e acontecimentos aos caprichos do materialismo determinista da
história, a perspectiva marxista-leninista permite-nos ter uma visão
limitada da complexa rede de relações internacionais, tecida pela mão
dos Estados, das organizações, das empresas, das igrejas, dos grupos e
dos indivíduos, e colorida de matrizes ideológicas, políticas, económicas,
sociais, religiosas e culturais.

A teoria do transnacionalismo interpreta e explica as relações


internacionais baseando-se numa perspectiva sistémica e concebendo
a comunidade internacional como uma comunidade universal integrada
por indivíduos, grupos sociedades e instituições de variada ordem e

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natureza. Para a teoria do transnacionalismo, as relações internacionais
são o produto da interacção das diversas variáveis (actores), com
capacidade para intervir na esfera internacional, sobretudo das variáveis
que intervêm à escala transnacional.

Ao contrário das outras teorias, o transnacionalismo coloca o acento


tónico nos elementos sociais e culturais, embora não descure totalmente
a importância dos elementos económicos e políticos no contexto global
das relações internacionais.

A partir de uma perspectiva sistémica de observação e análise dos


fenómenos, a teoria do transnacionalismo permite ter uma visão global e
integrada da realidade internacional do final deste século. No entanto,
os estudiosos e analistas que se inscrevem na escola universalista (ou
transnacionalista) talvez pequem por minimizar o papel dos Estados,
sobretudo das grandes potências, na condução dos destinos da
humanidade. É certo que o tráfico de drogas, o terrorismo internacional
e as migrações clandestinas e escapam ao controle dos governos e que
as grandes multinacionais definem o que produzir, onde produzir e como
produzir; mas isso só enquanto os modos e os processos de produção se
coadunarem com os interesses da política económica definida pelo
grupo dos sete, enquanto a transnacionalização clandestina servir os
interesses políticos e económicos dos Estados.

CAP. VI AS TEORIAS PARCIAIS

Além dos trabalhos teóricos de carácter global, que deram origem às


teorias das relações internacionais, muitos estudos consagrados à vida
internacional têm por objectivo a compreensão e explicação de certos
aspectos particulares das relações internacionais. E daí que os
desenvolvimentos teóricos protagonizados por estudos se revistam de
carácter parcial, e não geral, falando-se por isso, em teorias parciais das
relações internacionais.

Muitos dos estudos parciais incidem sobre os Estados, designadamente


sobre elementos constitutivos da capacidade de acção internacional
dos Estados sobre a sua conduta externa e sobre os processos de
decisão, e deram origem a teorias sobre os actores internacionais. Outros
têm por objecto o estudo das organizações internacionais e
fundamentam as teorias da organização internacional. Outros
concernem a situações conflituosas e a processos de resolução de
diferendos e dos conflitos e contribuíram para o desenvolvimento das
teorias da estratégia e das teorias dos conflitos. Outros versam a natureza
e o desenvolvimento dos processos de cooperação e de integração e

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consubstanciam as teorias de integração. E outros analisam os sistemas
políticos, económicos e sociais e perspectivam as teorias da
convergência dos sistemas.

6.1.1 AS TEORIAS DA ESTRATÉGIA E TEORIAS DOS CONFLITOS

Como escreveu Philippe Braillard, “os processos conflituosos ocupam


uma posição não negligenciável em toda a relação social. Esta situação
reveste-se de uma importância particular quando as relações sociais se
situam num meio pouco integrado, onde os actores internacionais, dada
a ausência de uma autoridade central, recorrem frequentemente à
força para alcançar os objectivos por ele fixados ou para defender o que
eles julgam ser os seus interesses” (1977, 129). Ora, como na comunidade
internacional não existe uma autoridade central dotada de bastante
poder para obrigar os diferentes actores a adoptar uma conduta
conforme as regras do direito internacional, e como os interesses dos
actores sobretudo dos Estados, são muitas vezes divergentes e até
antagónicos, é natural que as suas relações comportem elementos
conflituosos que frequentemente se sobrepõem aos elementos pacíficos
e dão origem a diferendos de vária ordem que podem traduzir-se em
conflitos armados. Assim, ao lado das relações amigáveis, existem
relações conflituosas quer entre os Estados, quer entre os Estados e os
outros actores internacionais, com capacidade para agir, decide impor
a sua vontade aos outros, recorrendo à força ou violando o direito
estabelecido e aceite pela comunidade internacional.

As condições de conflito são criadas a partir do momento em que os


outros actores internacionais não aceitam este comportamento. Por
conseguinte, no domínio das relações internacionais têm existido, e
existem, muitas situações de conflito e muitos processos conflituosos, que
suscitaram o interesse de muitos investigadores e estudiosos, cujos
trabalhos deram origem às chamadas teorias da estratégia e teorias dos
conflitos.

As teorias da estratégia e as teorias dos conflitos não analisam as


situações e os processos conflituosos com os mesmos objectivos e
finalidades.

6.1.2 Teorias da Estratégia

As teorias da estratégia procuram analisar as situações de oposição e de


conflito, não para compreender as suas causas e encontrar as soluções
mais adequadas, mas sim para descobrir a melhor forma de utilizar a
força, ou a ameaça da força, para alcançar certos objectivos

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politicamente definidos. Mais precisamente, as teorias da estratégia
procuram determinar qual é o comportamento mais adequado para
influenciar ou controlar o comportamento do adversário e impor-lhe as
condições numa situação conflituosa.

No plano internacional, uma estratégia está obviamente ligada a uma


situação conflituosa, e ao elaborar-se o plano estratégico não se pensa
em resolver a situação de conflito, mas sim em aproveitar essa situação
para satisfazer interesses da política e objectivamente definidos.

Se uma estratégia tem em vista a realização de interesses politicamente


definidos, cabe perguntar: o que caracteriza então uma estratégia? E
quais os elementos a considerar na definição e elaboração de um plano
estratégico.

Quando se fala em estratégia, pensa-se normalmente em termos militares


e ocorre a célebre frase de Clausewitz: “a guerra é a continuação da
política por outros meios”. Nesta perspectiva, a estratégia seria “a arte de
utilizar as forças militares para alcançar objectivos políticos”. Porém, a
frase de Clausewitz foi alterada e mesmo invertida por Lenine, para quem
“a política é a continuação da guerra por outros meios”, e o conceito de
estratégia aparece com outras conotações que não apenas a
conotação militar, entendo-se por estratégia “a arte que permite
escolher os meios mais adequados, incluindo as forças militares, para
alcançar os objectivos politicamente definidos”.

A definição dos objectivos, a escolha dos meios e o desenvolvimento das


acções constituem, portanto, os elementos fundamentais de todo e
qualquer plano estratégico.

A definição dos objectivos de uma estratégia resulta, antes de mais, de


considerações políticas e da equação dos interesses em jogo e das
finalidades que se pretendem alcançar. Por isso, os objectivos
estratégicos podem ser defensivos (protecção do território, das pessoas
e dos bens, ou preservação de determinados interesses), ofensivos
(conquista de espaço geográfico, ou imposição de certas condições
onerosas, como indemnizações de guerra, por exemplo), ou respeitar
apenas à manutenção do status quo político. Por outro lado, os
objectivos da estratégia podem consistir em levar o adversário a encetar
o diálogo com vista a uma solução pacífica do conflito, ou, pelo
contrário, podem visar infligir uma derrota total.

Relacionada com a definição dos objectivos está a escolha dos meios a


utilizar pela aplicação da estratégia. Os meios são diversos e

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multivariados: vão da simples propaganda à utilização de armas
nucleares, químicas e biológicas. E a sua escolha depende da
necessidade de empregar uns ou outros em função das vulnerabilidades
do adversário e dos objectivos pretendidos. Algumas vezes recorre-se a
meios de informação e de propaganda para persuadir o adversário e
intimidá-lo psicológica e moralmente. Outras vezes utilizam-se os meios
económicos, como a supressão de ajudas financeiras, o corte de
fornecimento de bens e de matérias-primas, ou a interrupção das trocas
comerciais, com vista a persuadir o adversário a alterar a sua conduta.
Outras vezes ainda accionam-se mecanismos políticos, que se traduzem
no corte de relações diplomáticas, a fim de alertar e sensibilizar a
comunidade internacional para a gravidade da situação criada pela
conduta de tal ou tal agente internacional. Por fim, também se
empregam os meios militares como último argumento para resolver a
situação conflituosa.

Qualquer um destes meios – de propaganda e informação, económicos,


políticos e militares – permite desenvolver acções diversificadas, e a
mesma acção exige, muitas vezes, a combinação de diferentes meios
(por exemplo, um ataque armado é quase sempre precedido,
acompanhado e seguido de uma propaganda informativa com a
finalidade de desmoralizar o adversário). Quer dizer que as acções a
empreender podem revestir um carácter predominantemente político,
económico ou militar, e serem acompanhadas de uma propaganda
informativa. A escolha do tipo de acção e do timing certo para realizar
a acção dependem sempre das possibilidades e disponibilidades de
uma das partes em conflito e das vulnerabilidades da outra, e vice-versa.

6.1.3 As Teorias dos Conflitos

As teorias dos conflitos, ao contrário das teorias da estratégia, foram


desenvolvidas na perspectiva de descobrir e explicar as causas das
situações e dos processos conflituosos com vista a identificar as
características dos conflitos e a encontrar as vias e os meios mais
apropriados para a sua resolução.

Apesar dos conflitos internacionais, e particularmente as lutas armadas,


“constituírem um flagelo que até hoje se encontra associado a todas as
formas de sociedades, de Estados e de organizações políticas e
ideológicas” (Bouthoul, 1966, 26), só recentemente, em virtude da
ameaça de uma guerra nuclear e da proliferação de conflitos regionais,
se desenvolveu uma investigação concernente ao estudo da natureza
dos conflitos, das suas características e das estratégias de resolução.

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As diferentes concepções que os autores têm dos conflitos podem
reduzir-se a duas categorias: a concepção objectiva e a concepção
subjectiva.

Segundo a concepção objectiva, o conflito pode ser definido como


“uma situação de competição em que as partes estão conscientes da
incompatibilidade das posições possíveis e na qual cada uma delas quer
ocupar uma posição que é incompatível com a que a outra parte quer
ocupar”. É esta a concepção de Kenneth Boulding, para quem os
conflitos são expressões das incompatibilidades de posições. E há
incompatibilidade de interesses (ou de posição) quando a realização
simultânea de dois interesses é materialmente impossível (1962).

Segundo a concepção subjectiva, o conflito é “o resultado de uma


percepção errada de uma situação objectiva”. Uma situação objectiva
é entendida em termos de situação incompatível. Por isso, no dizer de
John Burton, “o conflito é essencialmente subjectivo” (1969).

A literatura relativa aos conflitos é bastante extensa. No entanto, o estudo


científico dos conflitos internacionais teve início há relativamente pouco
tempo.

Os diversos estudos sobre os conflitos realizados na última metade do


século XX incidem sobre as causas dos conflitos e sobre os processos, os
mecanismos e os meios que podem e devem ser utilizados para os
controlar e resolver.

No que respeita à descoberta e identificação das causas dos conflitos,


os trabalhos realizados, sobretudo os que se enquadram no campo da
psicologia, da psicologia social e da sociologia, referem que as diversas
causas dos conflitos situam-se em três níveis: em nível do indivíduo, em
nível dos actores internacionais e em nível da estrutura do sistema
internacional.

Assim, uns atribuem às características da natureza humana –


agressividade, frustração, erros de percepção, etc. – a responsabilidade
pela eclosão de conflitos, desenvolvendo a interpretação sócio
psicológica, segundo a qual o ser humano é por natureza agressivo e a
agressividade individual é transferida para o grupo e manifesta-se logo
que as condições psicológicas lhe são favoráveis, e a interpretação
sócio-histórica, que aponta a violência inerente à condição da existência
humana como principal fonte dos conflitos, que contribui para o
progresso da humanidade.

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Outros consideram que são os atributos físicos, culturais e ideológicos dos
actores internacionais – militarismo, nacionalismo, regime político, etc. –
que estão na origem dos conflitos, e desenvolveram a interpretação
sociopolítica, segundo a qual a necessidade de imprimir uma certa
ordem ao sistema internacional, isto é, de preservar o equilíbrio de forças,
é a principal causa dos conflitos internacionais.

Finalmente, outros entendem que são os condicionalismos estruturais da


comunidade internacional, como a heterogeneidade do sistema e as
situações de dependência, que geram os conflitos adoptando a
interpretação sócio-económica, que atribui aos factores económicos a
responsabilidade principal pelos conflitos internacionais, como sublinhou
Galtung ao referir que a coexistência de situações de penúria com
situações de superabundância pode ser uma fonte permanente de
conflitos se não se verificarem os pressupostos do imperialismo perfeito.

Quanto à estratégia de resolução dos conflitos, os estudos realizados


identificam duas vias para a solução e controle dos conflitos: uma jurídica
e outra sociopolítica.

A primeira consiste em reduzir as manifestações de violência às regras do


direito e da moral; a segunda tem por objectivo submeter os conflitos à
estrita análise dos mecanismos sociológicos que provocaram a sua
eclosão e desenvolvimento.

Estas vias podem ser prosseguidas por intervenientes distintos –


organizações internacionais e representantes dos Estados, se a solução é
política, ou jurisdições internacionais, se a solução é jurídica – os quais
podem adoptar processos de solução diversos, que vão da aplicação
do direito até ao recurso à própria força, passando pelos vários
mecanismos de negociação (bons ofícios, mediação, conciliação) e
pela técnica da insolação.

CAP. VII AS TEORIAS SISTÉMICAS

O termo sistema é usado de forma generalizada na literatura referente às


ciências sociais e, em particular, nos discursos e nos escritos de ciência
política e relações internacionais. Assim, e em especial nas décadas da
segunda metade do século XX, a teorização dos padrões internacionais
concentrou-se nos conceitos de sistema internacional. O ponto
fundamental para este conceito, é o pressuposto de que os humanos,
quer enquanto seres individuais quer associados em grupos, agem de tal

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forma que é possível identificar padrões de conduta nas suas relações
mútuas e que podem ser descritos como sistemas. Embora o termo
sistema tenha sido fulcral para a revolução behaviorista, ele transcende
essa fase específica da teorização em relações internacionais.

O entendimento da política internacional em termos de sistema ou


sistemas é uma parte necessária da conceptualização dos níveis de
análise, na qual o sistema global contém Estados ou outras unidades,
também identificados como subsistemas, que por sua vez contêm grupos
de indivíduos. Além do mais, é possível identificar padrões interactivos de
conduta dentro de cada um dos níveis de análise, assim como entre eles.

A teoria neo-realista concede importância fundamental à estrutura do


sistema internacional (número e tipos de actores, ou agentes, e
distribuição das capacidades entre eles) ao identificar os padrões de
conduta das unidades que compõem o sistema. Deste modo, o termo
sistema descreve a forma em que as unidades umas com as outras.
Partindo do neo-realismo/realismo estruturalista examinaremos os
variados textos sobre a polaridade, ou seja, sobre como estruturas
alternativas parecem afectar os padrões de interacção e, assim, moldar
aquilo que se entende que são os sistemas internacionais. Examinaremos
também, exemplos ilustrativos de sistemas internacionais, incluindo
teorias relativas à forma em que estes se desenvolvem, sobrevivem, se
alteram, se transformam e se desagregam.

Podemos então dizer que o conceito de sistema tem sido aplicado ao


longo de todo espectro da teoria das relações internacionais. Para além
da teoria neo-realista, isto inclui teorias como as relativas à integração, a
tomada de decisões, ao conflito e aos níveis analíticos – níveis de análise
– da política internacional:

• Modelos de sistemas internacionais em que os padrões de


interacção estão especificados;

• Os processos através dos quais os decisores políticos de uma


unidade nacional, interagindo uns com os outros e
respondendo aos dados (imputes) do ambiente interno e
internacional, formulam a política externa – embora, e como
sugeriu Raymond Tanter, «a abordagem aos sistemas
internacionais pode implicar modelos de interacção,
enquanto a abordagem à política externa pode inspirar
modelos de tomada de decisões». O que ambos têm em
comum, contudo, é o facto de um modelo de sistema poder
ser usado para examinar como são formuladas as políticas

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externas e como os Estados e outras unidades interagem ou
se relacionam uns com os outros;

• Interacção entre um determinado sistema político nacional


e os seus subsistemas domésticos – opinião pública, grupos
de interesse e cultura, por exemplo – com o objectivo de
analisar padrões de interacção;

• Grupos de articulação externos – quer isto dizer, outros


sistemas políticos, actores ou estruturas do sistema
internacional com os quais o sistema nacional examinado
mantém relações directas;

• A interacção entre grupos externos de articulação e os


grupos internos mais sensíveis aos acontecimentos externos,
tais como as elites da política externa, os militares e agentes
de negócios com participação no comércio mundial.

Estes pontos analíticos não têm porque se excluir uns aos outros, até
porque a compreensão dos processos e sistemas de tomada de decisões
ao nível nacional é essencial para compreender a interacção entre as
várias unidades nacionais do sistema internacional. Os realistas estruturais
concentram a sua preocupação ao nível de análise representado pelo
sistema internacional enquanto fonte de padrões de conduta de
importância fundamental. A estrutura afecta a forma de as unidades ou
agentes se relacionarem, ou interagirem, com os outros. Privilegiar o
processo nacional de tomada de decisões significa estudar aquilo que
pode identificar-se como um subsistema do sistema internacional. Deste
modo, a nossa atenção concentra-se particularmente naqueles
teorizadores cuja abordagem inclui o sistema internacional e os seus
subsistemas regionais.

A teorização baseada nos sistemas faz aproximar duas abordagens


fundamentais na teoria das relações internacionais. A primeira delas
concentra a sua atenção nos actores e na interacção que surge entre
eles, quer esses actores sejam indivíduos, grupos de pessoas como
nações ou ainda unidades burocráticas. Esta abordagem tem sido
apelidada de reducionista, uma vez que se posiciona ao nível dos
agentes individuais ou unidades, o dos estados-nação, por exemplo, em
vez do sistema internacional. A segunda abordagem concentra-se nas
estruturas que proporcionam o contexto em que se desenvolvem as tais
interacções. A estrutura é assim vista como responsável por um impacto
decisivo sobre a interacção entre actores. De acordo com a teoria
estrutural, as acções dos indivíduos ou grupos, quando agregadas,

Reprodução Interna Ano Lectivo 2022-2023 108


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produzem padrões de conduta que podem ser radicalmente diferentes
dos padrões de conduta que se verificam caso os actores individuais
formassem parte de outras estruturas. Neste sentido, as características
comportamentais e o impacto dos padrões de conduta, ou interacções
do agregado são mais amplos e diferenciados, face aos das suas partes
individuais. Como sugere Robert W. Cox, a abordagem actor/interacção
procura explicações para as motivações e para as consequências de tais
interacções. A abordagem estrutural procura então explicar de que
forma as estruturas no interior do qual os actores existem afectam a
interacção entre esses actores, para além de como e porquê ocorrem as
mudanças na estrutura. Como referimos atrás, a abordagem estrutural foi
chamada holista ou sistémica, dado que se baseia no desenvolvimento
de explicações num nível de análise macro como é, por exemplo, o
sistema internacional, em vez de o fazer no nível correspondente aos
Estados enquanto actores.

O termo sistema tem sido utilizado de diversas maneiras nos textos de


relações internacionais. Isto inclui a análise de sistema que descreve uma
grande variedade de técnicas, como é o caso dos estudos que avaliam
comparativamente os custos e a eficácia das acções e que pretendem
orientar decisões racionais no que toca a distribuição de recursos. Na
literatura sobre ciência política, contudo, a análise de sistemas tem sido
frequentemente confundida com a teoria dos sistemas, ao ponto de ser
utilizada para descrever quadros conceptuais e metodologias destinados
à compreensão do funcionamento dos sistemas políticos.

Como sugeriu Robert J. Lieber, «a análise de sistemas é na verdade um


conjunto de técnicas destinado à análise sistemática e que facilita a
organização dos dados, mas que não possui qualquer tipo de ideal
teórico. Ao contrário, a teoria dos sistemas inclui um conjunto integrado
de conceitos, hipóteses e proposições, os quais são aplicados
(teoricamente) de forma abrangente através do espectro do
conhecimento humano». No nosso caso, definimos teoria dos sistemas em
termos de uma série de afirmações acerca dos relacionamentos entre
variáveis dependentes e independentes, nas quais as mudanças em uma
ou mais variáveis são acompanhadas, ou seguidas, de mudanças em
outras variáveis ou combinações de variáveis. Como sugeriu Anatol
Rapoport: «Um todo que funciona como tal em virtude da
interdependência das suas partes chama-se sistema, e o método que
procura descobrir como isto acontece no maior número possível de
sistemas tem sido chamado teoria geral dos sistemas».

Por sua vez, John Burton escreveu que o conceito de sistema implica
“relações entre unidades”. As unidades pertencem a mesma categoria,

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com a qual se pretende significar que partilham características comuns
que permitem um relacionamento particular». O sistema nervoso
humano, o motor do automóvel, a cadeia de hotéis Hilton, a nave
espacial Apollo, o sistema de reserva federal, um tanque para peixes num
projecto marinho de carácter experimental, a par da «balança de
poderes» - tudo isso são sistemas.

Um sistema pode ser descrito através dos seus vários possíveis estados.
Pode ser estável ou instável e pode estar organizado de forma mais ou
menos escrita. Para desequilibrar um sistema estável é necessário exercer
um poder considerável; um sistema instável é mais precário, e o seu
equilíbrio é mais facilmente perturbável. Um sistema estável é capaz de
absorver novos componentes e de processar uma grande variedade de
dados (imputes) sem deixar de funcionar normalmente, de se ajustar à
mudança e de corrigir a sua conduta através de reacções apropriadas
a qualquer feedback (retroacção) negativo (isto é, informação relativa
a um desvio de percurso, como quando vamos na estrada e
processamos mentalmente toda informação que vai aparecendo com o
objectivo de evitar o trânsito difícil).
Os sistemas de menor dimensão (ou subsistemas) podem existir dentro de
sistemas mais abrangentes. Basta pensar por exemplo, num determinado
departamento dentro de uma faculdade ou instituto superior – Ciência
política, Relações Internacionais ou História – como subsistema dessa
faculdade ou instituto superior. Por sua vez, as faculdades ou institutos
superiores podem ser considerados como subsistemas do sistema
universitário global.

De acordo com John Burton, e «enquanto um sistema é um verdadeiro


sistema que pode ser isolado (embora em isolamento a sua relevância
funcional nem sempre se torne evidente), quando nos referimos ao nível
do sistema estamos a referir-nos a um complexo de relacionamentos que
compreende todas as unidades desse nível. Para cada nível, os sistemas
dispõem de características diferentes». Demais a mais cada sistema tem
fronteiras que o distinguem do ambiente exterior e, em certo sentido,
cada sistema pode ser considerado uma rede de comunicações que
permite o fluir da informação e, consequentemente, uma constante
adaptação. Todos os sistemas contam com dados de entrada (imputes)
e respostas (outputs), sendo que um output pode reentrar no sistema na
forma de input, ou seja, através do fenómeno que é reconhecido por
retroacção (feedback). Diremos então, mais uma vez, que os sistemas
representam os padrões de interacção entre as unidades no interior de
uma estrutura.

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O termo interdependência encontra-se muito próximo e é utilizado para
caracterizar relações num sistema internacional global. A
interdependência é assim entendida como resultado da interacção
entre os componentes de um sistema. Quanto maior o nível de
interdependência entre estados, por exemplo, maior é, provavelmente,
a perda de controlo que estes experimentam sobre parte ou a totalidade
da sua capacidade de decidir de forma independente. No caso da
União Europeia, a introdução do euro como moeda comum e a
existência de um banco central que define as taxas de juro e a oferta de
dinheiro ilustram bem tanto o aumento da interdependência económica
como a perda de controlo exclusivamente nacional sobre políticas
económicas importantes nos vários países-membros.

Num nível abstracto, Wolf-Dieter Eberwein sugere que a


interdependência é uma «propriedade que resulta, por um lado, de
pormenorização das relações existentes entre os actores num ambiente
global e, por outro, da dinâmica que essas relações ocasionam».

O que é uma abordagem sistémica?

Uma forma de responder à questão é comparar as abordagens


analíticas com as abordagens sistémicas. O método analítico,
preeminentemente o método da física clássica e dado o seu imenso
sucesso, muitas vezes, considerado como o método da ciência, requer
uma redução do todo às partes componentes e um exame das suas
propriedades e conexões. O todo é entendido estudando os seus
elementos na sua relativa simplicidade e observando as relações entre
eles. Através das experiências controladas, a relação entre cada par de
variáveis é examinada separadamente. Depois de se examinarem
similarmente outros pares os factores são combinados numa equação na
qual aparecem como variáveis do enunciado de uma lei causal.

O objectivo da teoria sistémica como os dois níveis operam e interagem,


e isso requer a demarcação um do outro. Só podemos perguntar como
A e B se afectam mutuamente, e continuar para procurar uma resposta,
se A e B puderem ser mantidos distintos. Qualquer abordagem ou teoria,
se for correctamente rotulada de «sistémica», deve mostrar como o nível
sistémico, ou estrutura, é diferenciado do nível das unidades em
interacção. Se isso não for mostrado claramente, então não teremos nem
uma abordagem sistémica, nem uma teoria sistémica. As definições de
estrutura devem omitir os atributos e as relações das unidades. Só assim é
que podemos distinguir mudanças de estrutura de outras mudanças que
acontecem ao nível das suas unidades.

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O que as teorias sistémicas procuram revelar é muitas vezes
incompreendido pelos seus críticos. Alguns afirmam que a teoria
sistémica procura apenas definir condições de equilíbrio e mostrar como
elas podem ser mantidas, e que a teoria sistémica lida apenas com
sistemas como um todo. Outros afirmam que uma teoria sistémica
procura mostrar como os sistemas determinam o comportamento e a
interacção das suas unidades, como se as causas funcionassem só em
sentido descendente. Só porque alguns teóricos se limitaram ao primeiro
propósito ou adoptaram o segundo não é razão para limitar ou condenar
a teoria sistémica na globalidade.

Em relações internacionais os problemas e as virtualidades da teoria


sistémica são dualistas: primeiro, traçar a evolução esperada de
diferentes sistemas internacionais, por exemplo, indicando a sua duração
provável e o seu carácter pacífico; segundo, mostrar como a estrutura
do sistema afecta as unidades em interacção e como elas por sua vez
afectam a estrutura.

CAP VIII – AS TEORIAS DA DECISÃO

A Teoria dos Jogos e a Tomada de Decisão.

O princípio da racionalidade em que a estratégia se baseia, e o qual


permite definir o movimento a realizar para obter a vitória, tendo em
consideração o movimento que racionalmente o adversário realizará
deu origem à teoria dos jogos, que merecem especial atenção das
ciências militares e outras.

A teoria dos jogos tem sido amplamente utilizada em numerosos domínios


das relações sociais que implicam o confronto de intervenientes
(jogadores). “Ela assenta num postulado de escolha racional, segundo o
qual cada jogador (interveniente) estabelece, face às possibilidades de
escolha que se lhe oferecem, uma lista de preferências transitiva e
escolhe a possibilidade que maximize os seus interesses”(Braillard, 1977,
130). As formas desta teoria são muito variáveis e diversas, conforme ela
incide sobre os jogos de soma zero ou de soma variável, sobre os jogos

Reprodução Interna Ano Lectivo 2022-2023 112


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entre dois jogadores ou entre n jogadores, sobre os jogos de informação
perfeita ou informação imperfeita.

Numa situação de conflito (jogo), os intervenientes procuram maximizar


os ganhos e minimizar as perdas e tomam decisões que melhor
possibilitem a realização deste objectivo. Portanto, “é necessário estudar
formalmente as expectativas racionais do comportamento que será
adoptado pelo adversário, um dado que é fundamental no processo
racional de decisão.

No jogo (político), os jogadores (intervenientes) têm certos recursos


(poder) e procuram ganhar (objectivo) ” (Moreira 1979,88). Quer dizer,
num conflito (jogo), os beligerantes (jogadores) dispõem de meios
militares (recursos) e procuram obter a vitória (ganhar). Todavia, a melhor
estratégia pode não ser aquela que visa maximizar os resultados, mas sim
aquela que procura minimizar os prejuízos. Pois o plano estratégico, de
acordo com a teoria dos jogos, pode respeitar a dois ou a mais
intervenientes (jogadores) e basear-se numa informação perfeita ou
numa informação imperfeita. Normalmente, a informação nunca é
perfeita relativamente a todas as variáveis do jogo (conflito).

O que aproxima a teoria dos jogos do processo de formação de


decisões, “não é o facto de, tal como nos jogos de azar, o resultado
poder depender do acaso, que realmente não tem lugar na teoria: o
acaso é aqui representado pela impossibilidade de totalizar
antecipadamente o processo de competição, pelo simples facto de que
nunca se disporá de toda a informação, designadamente quanto à
criatividade e ao processo de formação de decisões do adversário. A
surpresa é que exprime esse espaço de indeterminação, que leva a fazer
uma utilização insuficientemente elástica da ordem de batalha”
(Moreira, 1979, 88).

O postulado do raciocínio em que se fundamenta a teoria dos jogos


encontra limites de aplicação à tomada de decisões numa situação
conflituosa, na medida em que os intervenientes num conflito, actores
internacionais não podem identificar-se com o indivíduo, não dispõem
como este da mesma capacidade racional. Numa situação de conflito
internacional, a tomada de decisões insere-se num sistema bastante
complexo e resulta da combinação de numerosos factores. Por
conseguinte, embora a teoria dos jogos possa ajudar a definir um plano
estratégico, ela não poderá identificar-se com a totalidade do plano ou
com a estratégia global.

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A Teoria dos Jogos

A Teoria dos Jogos tem merecido a especial atenção dos teóricos, uma
vez que a guerra normalmente se define e é parte integrante nos termos
do processo de decisão.

Dado que a sociedade tende actualmente para uma Comunidade


Internacional, dentro do actual sistema de globalização, a estratégia
para essa Teoria de Jogos difere das perspectivas que a história nos tem
revelado.

Enquanto no passado a estratégia ex. da I e II Guerras Mundiais) era na


perspectiva da aniquilação do adversário não atendendo aos efeitos
penosos dessa atitude, hoje em dia essa estratégia revela-nos de
razoabilidade de prevenção de danos ou seja de maiores ganhos com
menores perdas possíveis. Podemos exemplificar com a recente invasão
ao Iraque pelos EUA em que grande parte da Comunidade Internacional
revelou um certo cepticismo quanto aos resultados dessa mesma
intervenção.

É de realçar aqui que outros factores foram intervenientes no Estado


como: os factores económicos (a questão do petróleo) os factores
jurídicos (necessidade de legitimar o acto) político, social e até mesmo o
cientifico.

O princípio da racionalidade em que a estratégia se baseia, e o qual


permite definir o movimento a realizar para obter a vitória, tendo em
consideração o movimento que racionalmente o adversário realizará
deu origem à teoria dos jogos, que merecem especial atenção das
ciências militares e outras.

A teoria dos jogos tem sido amplamente utilizada em numerosos domínios


das relações sociais que implicam o confronto de intervenientes
(jogadores). “Ela assenta num postulado de escolha racional, segundo o
qual cada jogador (interveniente) estabelece, face às possibilidades de
escolha que se lhe oferecem, uma lista de preferências transitiva e
escolhe a possibilidade que maximize os seus interesses”( Brilhar, 1977,
130). As formas desta teoria são muito variáveis e diversas, conforme ela
incide sobre os jogos de soma zero ou de soma variável, sobre os jogos
entre dois jogadores ou entre n jogadores, sobre os jogos de informação
perfeita ou informação imperfeita.

Numa situação de conflito (jogo), os intervenientes procuram maximizar


os ganhos e minimizar as perdas e tomam decisões que melhor

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possibilitem a realização deste objectivo. Portanto, “é necessário estudar
formalmente as expectativas racionais do comportamento que será
adoptado pelo adversário, um dado que é fundamental no processo
racional de decisão.

No jogo (político), os jogadores (intervenientes) têm certos recursos


(poder) e procuram ganhar (objectivo) ” (Moreira 1979,88). Quer dizer,
num conflito (jogo), os beligerantes (jogadores) dispõem de meios
militares (recursos) e procuram obter a vitória (ganhar). Todavia, a melhor
estratégia pode não ser aquela que visa maximizar os resultados, mas sim
aquela que procura minimizar os prejuízos. Pois o plano estratégico, de
acordo com a teoria dos jogos, pode respeitar a dois ou mais
intervenientes (jogadores) e basear-se numa informação perfeita ou
numa informação imperfeita. Normalmente, a informação nunca é
perfeita relativamente a todas as variáveis do jogo (conflito).

O que aproxima a teoria dos jogos do processo de formação de


decisões, “não é o facto de, tal como nos jogos de azar, o resultado
poder depender do acaso, que realmente não tem lugar na teoria: o
acaso é aqui representado pela impossibilidade de totalizar
antecipadamente o processo de competição, pelo simples facto de que
nunca se disporá de toda a informação, designadamente quanto à
criatividade e ao processo de formação de decisões do adversário. A
surpresa é que exprime esse espaço de indeterminação, que leva a fazer
uma utilização insuficientemente elástica da ordem de batalha”
(Moreira, 1979, 88).

O postulado do raciocínio em que se fundamenta a teoria dos jogos


encontra limites de aplicação à tomada de decisões numa situação
conflituosa, na medida em que os intervenientes num conflito, actores
internacionais não podem identificar-se com o indivíduo, não dispõem
como este da mesma capacidade racional. Numa situação de conflito
internacional, a tomada de decisões insere-se num sistema bastante
complexo e resulta da combinação de numerosos factores. Por
conseguinte, embora a teoria dos jogos possa ajudar a definir um plano
estratégico, ela não poderá identificar-se com a totalidade do plano ou
com a estratégia global.

As Relações Internacionais enquanto Jogo.

O que tudo isto tem que ver com as relações internacionais? Em primeiro
lugar deve ficar claro que as relações internacionais – ou o
funcionamento do sistema internacional – não podem ser

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compreendidos totalmente através do recurso exclusivo ao quadro
analítico de referência de um jogo. Todavia, os padrões e os processos
de relações internacionais apresentam frequentemente características
semelhantes às dos jogos. Uma vez que a teoria dos jogos e a simulação
estão intimamente relacionadas com a tomada de decisões e com a
negociação, é necessário considerar a sua relevância para o estudo das
relações internacionais, uma área em que tantas vezes falamos das
jogadas no xadrez diplomático, de fazer bluff, de subir a parada, da
utilização de moedas de troca e das tentativas de antever as jogadas dos
adversários para lhes ganhar vantagem. A teoria dos jogos pode, por isso,
ajudar a melhorar o nosso entendimento da questão desde que seja
utilizada como mais entre uma variedade de instrumentos úteis.

As relações internacionais conceptualizadas como um jogo de soma não


zero entre vários jogadores, em que os ganhos obtidos por uma das
partes não se dão à custa das outras. Os países mais industrializados
sofrem necessariamente uma perda na sua posição económica relativa
à medida que as economias dos estados menos avançados progridem.
De facto, a expansão económica nos estados menos desenvolvidos leva
frequentemente à uma intensificação do comércio, da ajuda externa e
das relações de investimento com estados mais desenvolvidos. Diversos
escritores pioneiros no esforço de aplicação da teoria dos jogos às
ciências sociais (designadamente Okar Morgestern, Thomas C. Schelling
e Martin Shubik) dispunham já de experiência no campo económico ou
tinham já conduzido extensas pesquisas na área dos problemas da
competição económica. A competição entre empresas pode ser vista
quer como um jogo de soma zero quer como um jogo de soma não zero.
As análises económicas vêem este último como preferível e como uma
alternativa mais racional pois as duas empresas ficam a ganhar, pelo
menos a curto prazo, caso os danos provocados pelos excessos de
competição sejam evitados. Como refere Martin Shubik: «A maioria dos
fenómenos sociais corresponde a jogos de soma não constante. Por
outras palavras, a sorte e o azar das partes envolvidas podem facilmente
aumentar ou decrescer em conjunto. Não existe divisão absoluta m
posição total.»

Na perspectiva dos autores, é possível compreender melhor as relações


internacionais através do quadro de referência da teoria dos jogos e da
sua complexa e flutuante mistura de tendências para jogos de soma zero
e para jogos de soma não zero. Concordamos com joseph Frankel que
sugere a título de exemplo, que as relações da França com a Alemanha
«desenvolveram-se de um jogo de soma zero no período pós-Segunda
Guerra Mundial, quando os franceses desejaram – e esperaram conseguir
– manter os alemães numa posição de inferioridade, para um jogo de

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soma variável no seio das comunidades [europeias] em que a
cooperação mudou o carácter competitivo do jogo e aumentou
rapidamente as recompensas de cada um dos lados». John W. Burton
propôs um método de resolução de conflitos como o que opõe gregos e
turcos por causa do Chipre, em que as partes são induzidas a olharem
para a situação não como um resultado de soma fixa que exige um
compromisso na repetição do bolo, mas antes como uma situação em
que ambas as partes podem ganhar através da cooperação funcional,
processo que produzirá um bolo maior. É possível que haja uma certa
circularidade no raciocínio que prescreve a resolução de um conflito
político derivado do nacionalismo apaixonado através da transformação
dada num processo benéfico de cooperação mútua. Contudo, foi isso
que aconteceu na reaproximação franco-alemã nas décadas que se
seguiram à Segunda Guerra Mundial. Isto também era o que muitos
esperavam ver concretizado, entre Israel e Palestina, através dos acordos
de Oslo e outros e outros acordos posteriores, assim como na Irlanda do
Norte e em outros conflitos marcados por enormes dificuldades.

Anatol Rapoport aplicou o modelo do Dilema do prisioneiro ao problema


do desarmamento internacional e concluiu que embora, termos ideais,
ambas as partes numa corrida armamentista possam preferir beneficiar
economicamente com um corte nas despesas de armamento, nenhum
deles pode estar seguro das intenções dos demais prudentes manter a
dispendiosa competição armamentista.
Os confrontos críticos da Guerra Fria entre as super potências nucleares,
como a crise dos mísseis de Cuba (Outubro de 1962) e a guerra do Médio
Oriente (Outubro de 1973), foram muitas vezes associados ao jogo do
Medricas (as estruturas burocráticas da tomada de decisão dos governos
modernos são contudo muito mais racionais do que as dos jovens que
dispõem de um conjunto distorcido de valores). R. Harrison Wagner
utilizou a teoria dos jogos para investigar a relação entre o número de
intervenientes e a estabilidade do sistema, concluindo que os sistemas
com um número de jogadores de 2 a 5 podem ser mais ou menos
estáveis, e que um sistema de 3 jogadores é o mais estável.

A condução da política internacional é mais estável e controlada


quando os dirigentes das grandes potências estão convencidos de que
se trata de um jogo de soma não zero, tal como é habitualmente para a
maioria dos jogadores. Todavia, e como acontece em todas as épocas,
há sempre alguns adversários político-estratégicos que vêem a sua
confrontação como um jogo de soma zero entre duas pessoas. Se as
elites e os grupos, num país, caracterizam as relações bilaterais como um
jogo de soma zero, os seus congéneres no outro país procederão,

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provavelmente, da mesma maneira. Por vezes, pode parecer mais difícil
mudar as percepções nacionais dominantes do jogo de soma zero para
o jogo de soma não zero do que fazer a operação inversa. Ao elaborar
exemplos a partir de jogos como o Dilema do Prisioneiro, a caça ao
veado e o jogo de medricas, Kenneth Oyo tentou identificar as estratégias
que os estados podem utilizar no sentido de incrementarem a
cooperação através, por exemplo da obtenção de armas que parecem
mais defensivas do que ofensivas. O autor refere que os estados
deveriam considerar a longa sombra do futuro que condiciona o seu
relacionamento. Qualquer abandono que tenha como objectivo
alcançar um ganho imediato e isolado reduz as possibilidades da
cooperação: a preocupação com a repetição das interacções no futuro
aumenta essas possibilidades.

De acordo com o pressuposto de Oye de que os actores agem


racionalmente na procura de objectivos definidos, assentes em
interesses, a teoria dos jogos é similar à teoria realista. Por isso, pode ser
utilizado para testar os princípios essenciais em que assenta a teoria
realista/neo-realista, como sugere Robert Jervis, para avaliar de que
forma os estados podem cooperar numa situação de anarquia partindo
de interesses conflituais. As garantias do desejo de cooperar e as
ameaças de abandonar a cooperação misturam-se em todas as
negociações que envolvem dois ou mais estados. Robert Powell usou os
modelos de jogos para analisar as teorias realistas estruturalistas e as
teorias institucionalistas neoliberais do sistema internacional e conclui que
as duas teorias partilham uma base comum: ambas sustentam que as
limitações derivadas do custo económico afastam os governantes da
utilização da força e conduzem-nos à cooperação. Duncan Snidal
também empregou o modelo da teoria dos jogos para demonstrar que
o pressuposto dos ganhos relativos inerentes à teoria realista não exclui a
cooperação entre dois estados num sistema essencialmente anárquico,
que a cooperação é praticável e capaz (de acordo com o modelo dos
jogos de soma não zero) de produzir ganhos absolutos para ambos os
lados e que o multipolarismo é mais propício à cooperação do que o
bipolarismo.

Thomas C. Shelling e a Teoria da Negociação.

Em relação próxima com a teoria dos jogos está a teoria da barganha e


da negociação desenvolvida a partir do trabalho pioneiro de Thomas C.
Schelling, que combinou as abordagens sociopsicológica e lógico-
estratégica no estudo do conflito humano. Schelling «toma o conflito
como um dado garantido mas também assume que existem interesses
comuns entre os adversários [...] [e] destaca que a ‘melhor’ escolha de

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cada participante depende daquilo que espera que o adversário faça».
A sua obra principal, The Strategy of Conflict, trata sobretudo da ameaça
da utilização da forca como instrumento manutenção da credibilidade
da dissuasão, do bluff, da limitação do conflito e da elaboração de
políticas formais ou informais de controlo do armamento que possam
beneficiar a ambos os lados. A opção da guerra seria o pico da loucura
na era nuclear, mas a ameaça ou risco controlado de guerra pode ser a
jogada estrategicamente correcta em certas circunstâncias. É preciso
sermos racionais em todos os momentos mas nem sempre é desejável
parecermos racionais. Schelling demonstra alguma perplexidade com a
«teoria da parceria precária ou do [...] antagonismo incompleto» que
dizem respeito às situações em que os adversários têm a percepção de
um interesse mútuo mínimo (como a necessidade de evitar a aniquilação
mútua). Mesmo quando duas entidades não podem comunicar directa
e abertamente uma com a outra, podem sempre coordenar
tacitamente as suas jogadas através da convergência em torno de
certos aspectos importantes de expectativa recíproca como, por
exemplo seguir precedentes estabelecidos em anteriores compromissos
formais ou tácitos. Todavia, e quando se procede a ameaças, elas
devem ser feitas para que o adversário seja tentado a pensar que tudo
não passa de um bluff com que pode jogar a vontade.

De acordo com George W. Downs e David M. Rocke, autores que


partiram da obra de Schelling, a barganha tácita ocorre «sempre que um
estado tenta influenciar as escolhas políticas de outro estado através do
comportamento em vez de recorrer aos intercâmbios diplomáticos
formais ou informais». O que diferencia a barganha tácita das
negociações é o facto de no caso da barganha tácita a comunicação
estar assente em acções e não em palavras. Como sublinharam Downs
e Rocke, os exemplos de barganha tácita abundam na história da
política internacional e inclui, as acções relatoriais como a imposição de
tarifas ou quotas, em resposta de um estado que recusa liberalizar as
trocas comerciais. A barganha tácita também inclui, como no caso do
conflito coreano, decisões para limitar a utilização de certas armas ou
para excluir uma ou mais categorias de alvos no contexto da acção
militar.

O perpetuar dos acordos internacionais entre adversários após a sua


negociação e ratificação depende, em grande medida, da barganha
tácita, conceito que se encontra próximo do de dissuasão. As partes
interessadas em garantir o cumprimento de um tratado em vigor têm que
dissuadir uma nação rival de violar este tratado. A opção de um estado
signatário cumprir ou violar um tratado depende da relação entre as
vantagens derivadas do cumprimento e os ganhos potenciais derivados

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de medidas como ignorar ou revogar o tratado. Tendo, como
considerável sucesso, combinar o rigor dos modelos formais com o
realismo da experiência e dos exemplos históricos, Downs e Rocke
concluem que, «na maior parte dos casos, é possível partir do princípio
que duas nações que chegam a um acordo formal ou tácito sobre
armamento preferiam que o acordo sobrevivesse a formal que fosse
substituído por uma intensa corrida armamentista».

O Três Modelos de Allison.

Há três décadas, Graham T. Allison, escreveu que a maioria dos analistas


de política externa olham para a conduta dos governos em termos de
uma série de modelos conceptuais que moldam em grande medida, o
seu pensamento. Como observou, a maior parte desses analistas
favorecem, implícita ou explicitamente, o modelo «clássico» do actor
racional que assume que os estados unitários são os intervenientes-chave
e que agem de forma racional, calculando os custos e os benefícios
inerentes as várias escolhas políticas, na procura da escolha que
maximize a sua utilidade. Allison pretendia, na altura, chamar a atenção
para outros dois modelos conceptuais: o modelo organizacional e o
modelo da política burocrática. Numa nova edição do seu livro escrito
em parceria com Philip Zelikow e publicado em 1999, os três modelos
foram reafirmados com pequenas modificações. Os dois autores
começaram por explicar o modelo do actor racional (MAR) recorrendo
a Morgenthau, Schelling, Kennan, Waltz, Kissinger, Mesquita, Laman e
outros realistas clássicos e neo-realistas (realistas estruturalistas) como
sendo autores que, de alguma forma, utilizariam este modelo.

Em 1971, Allison pareceu inclinar-se para o campo dos liberais e pluralistas


que sustentavam que o Modelo do Actor Racional estava
desactualizado «embora o Modelo do Actor Racional tenha provado a
sua utilidade face a muitos objectivos, são fortes as provas de que tem
que ser complementado, se não mesmo substituído, por quadros de
referência centrada na máquina governativa». Todavia, na edição de
1999, a passagem «se mesmo substituída» foi omitida institucionalistas
liberais como Keohane, juntamente com teorizadores da paz
democrática como Doyle, são vistos como comungando do essencial do
modelo do actor racional.

Os dois quadros de referência alternativos são os mesmos em ambas


edições com modificações subtis justificadas pelo recurso à fontes
actualizadas. O modelo do processo organizacional, agora rebaptizado
com o nome de modelo do comportamento organizacional, parte do

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que os analistas do Modelo I (MAR) vêem como «actos» ou «escolhas» e
encaram-nos «menos como escolhas deliberadas e mais como os efeitos
de vastas organizações que funcionam de acordo com padrões de
comportamento regulamentados». Cada unidade organizacional do
governo tem responsabilidades funcionais especiais mas habitualmente,
nenhuma unidade singular tem autoridade exclusiva para lidar com
assuntos políticos de importância. Os vários departamentos e agências
necessitam de uma coordenação vinda do topo. «Os dirigentes
governativos podem perturbar substancialmente, mas raramente
conseguem controlar de forma estrita, o comportamento destas
organizações» que é determinado substancialmente por procedimentos
operacionais de rotina, comportamentos que raramente exibem desvios
que não sejam graduais e progressivos, excepto aquando da ocorrência
de grandes desastres. As organizações procuram evitar a incerteza e
operam com o objectivo de resolver problemas de urgência imediata,
no quadro de normas e rotinas conhecidas. Não desenvolvem
estratégias no sentido de enfrentarem mudanças fundamentais, originais
e aceleradas no seu ambiente.

O terceiro modelo de Allison, «Política Governativa», baseia-se no modelo


do comportamento organizacional, mas em vez de partir do controlo ou
coordenação dos dirigentes desde o topo, parte da hipótese da
existência de uma competição intensa entre as unidades de decisão e
da formulação de políticas externas resultante da barganha entre os
elementos de uma burocracia. Os jogadores não são orientados por
único actor unitário nem por qualquer grande plano estratégico, mas
antes por diversas concepções de objectivos pessoais, organizacionais
ou nacionais. Indivíduos razoáveis podem discordar sobre os problemas
de política externa. Os jogadores sentem-se obrigados a identificarem as
ramificações de assunto para o seu domínio específico e que consideram
importante. Por vezes um grupo prevalece sobre os outros. Todavia, e
frequentemente, diferentes grupos que exercem pressão em sentidos
diversos produzem uma decisão ou um resultado mistos que divergem
dos pretendidos por um indivíduo ou por um grupo específico. O
resultado não depende da justificação racional para a política
prosseguida ou dos procedimentos organizacionais de rotina mas antes
da capacidade e do poder relativos dos que levam a cabo a barganha.
Uma competição deste tipo no campo da política externa acaba por ser
«desconfortável», desencadeando a suspeita de que os agentes oficiais
estão a «fazer a política com a segurança nacional». Até aqui, tratamos
apenas dos três modelos de decisões e, ainda assim, de uma forma
esquemática que não pode fazer justiça à riqueza de exemplos
ilustrativos e da análise detalhada.

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Tal como foram estabelecidos na primeira edição do seu livro “Essence
of Decision”, e de acordo com Jonathan e Thomas H. Hamomond, os três
modelos de Allison exercem um considerável impacto na pesquisa e no
ensino da temática da burocracia. Além disso, estimularam toda uma
geração de estudantes a pensar seriamente em como são tomadas as
decisões relativas à política externa. Todavia, Bendor e Hammond
recriminam Allison por este ter interpretado de forma errada a leitura da
teoria da escolha racional, da teoria organizacional e da teoria da
política burocrática em que se baseou para elaborar o seu trabalho
pioneiro. Nomeadamente, Allison não operou a devida distinção entre o
modelo II (o processo organizacional e o Modelo III (política burocrática).
Na verdade (e como muitos leitores já notaram), estes dois modelos
tendem sobrepor-se um ao outro. Para além disso, Allison simplificou em
demasia o Modelo I (actor racional). O estado não pode ser considerado
meramente como um actor racional e singular, agindo na posse de uma
informação completa e na prossecução de um único objectivo.
Para Bendor e Hammond, este pressuposto é «deveras duvidoso» e
sugerem que Allison elaborou propositadamente o modelo I como
modelo mais fraco para que viesse a ser descartado.

Bendor e Hammond observam ainda que os decisores nas burocracias


governativas não se encontram sempre, necessariamente, em busca de
objectivos conflituais, como Allison e outros teorizadores da burocracia
parecem assumir. Levando em conta as quatros variáveis básicas – (1)
um ou vários decisores (2) actuando em busca dos mesmos objectivos
conflituais, (3) dotados de uma racionalidade perfeita ou imperfeita e (4)
na posse de informação completa ou incompleta – Bendor e Hammond
apresentam 12 modelos lógicos possíveis ou tipologias do processo
político. Admitem, por outro lado, que alguns dos erros de Allison se
devem aos avanços no conhecimento posterior à sua obra mas alguns
desses erros estavam «presentes desde o princípio». A obra Essence of
Decision merece totalmente a sua reputação, mas a sua «utilização
continuada conduzirá [...] provavelmente à perpetuação generalizada
de grandes desentendimentos acerca da natureza do processo
burocrático e governativo».

Numa outra crítica recente dos modelos de Allison, David Welch conclui
que os modelos do processo organizacional e da política burocrática
encerram princípios que se afastam dos factos da crise dos mísseis de
Cuba. Segundo Wech, a existência de rotinas organizacionais não é
suficiente para explicar o comportamento dos decisores encarregues da
imensa (e perigosa) tarefa de resolverem esta situação de crise. Na
medida em que entendem ser necessário, o presidente Kennedy e os
seus conselheiros desenvolverem respostas sem uma preocupação

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primordial quanto às rotinas estabelecidas nos procedimentos
especificados no modelo do processo organizacional. Reconhecendo
que as rotinas organizacionais podem restringir o alcance das opções
disponíveis antes da tomada de decisões, especialmente se o tempo de
acção for extremamente curto e se a resposta necessária tiver de
assentar num conjunto de factores complexos, Welch observa que
mesmo no caso das organizações militares pouco conhecidas pelas suas
inovações estratégicas em tempo de paz, as mudanças radicais nos
procedimentos operacionais estabelecidos tiveram frequentemente
lugar no calor da confrontação. Do mesmo modo, e na crise dos mísseis
de Cuba o Comité Executivo (ExComm), chefiado pelo Presidente
Kennedy, frequentemente ignorou, circundou ou modificou as rotinas
organizacionais para facilitar o processo de tomada de decisões.
Todavia, as rotinas organizacionais contribuem frequentemente para a
eficácia das decisões ao estabelecerem os procedimentos necessários.
Por isso mesmo, e como sugere Welch, é preciso questionar, em cada
caso se as rotinas organizacionais estabelecidas constituem uma ajuda
ou um impedimento para a concretização dos objectivos estabelecidos
pelos decisores. Por um lado, as rotinas organizacionais, incluindo a
compilação e análise da informação secreta, revelaram-se essenciais
para a descoberta de que a União Soviética estava a colocar mísseis em
Cuba. Por outro lado, as perspectivas de uma resolução bem sucedida
da crise podem ter sido melhoradas pela capacidade e vontade dos
decisores de superarem essas rotinas, na procura de uma estratégia de
inversões da escalada que pudesse servir os interesses nacionais.

De forma similar, Welch entende que o modelo da política burocrática


se releva deficiente ao estabelecer que a posição dos decisores é um
critério para compreender a sua acção (que é o mesmo que afirmar que
o lugar que se ocupa numa estrutura burocrática determina
necessariamente a visão de um determinado assunto). Wech refere
outros estudos que não encontram nenhuma relação entre a posição
ocupada no seio da burocracia e as preferências políticas. Para além de
que um departamento burocrático específico pode não ter uma posição
estabelecida sobre todas as questões políticas, não é inevitável que os
representantes de uma determinada burocracia se guiem por tal
perspectiva, no caso de esta existir.

De acordo com Wech, existem provas suficientes para sustentar a


proposição de que os oficiais militares profissionais (especialmente desde
a crise do Vietname) não se têm demonstrado tão adeptos como os seus
congéneres civis relativamente ao uso do poder militar como instrumento
da política nacional, e como seria do modelo da política burocrática.
Todavia, Wech sugere que, após o comando civil ter decidido o uso da

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força, é frequente os militares procurarem empregar níveis acrescidos de
força em contraste com o que defendem os seus congéneres civis.
Embora existam numerosos exemplos de políticas burocráticas como
comprovam, por exemplo, as rivalidades entre o Exército, a Marinha e a
Forca Aérea na competição pela afectação de recursos limitados,
noutras circunstâncias, o lugar ocupado no mapa burocrático
organizacional tem pouca influência na tomada de decisões. Na crise
dos mísseis de Cuba, as posições assumidas por membros do ExComm
tiveram menos que ver com a sua posição burocrática do que com
outros factores, incluindo as atitudes, disposições e valores que
evidenciaram no momento da discussão.

CAP. II – COOPERAÇÃO E REGIME INTERNACIONAL

2.1 – A questão da cooperação internacional


Segundo Keohane, cooperação tem de ser distinguindo de harmonia.
Harmonia refere-se a situação na qual as politicas dos actores (que
perseguem seus próprios interesses, independentemente dos interesses
dos outros) automaticamente facilitam atingir o objectivo do outro. Essa
é a clássica situação económica, descrita como o equilíbrio de mercado
de oferta e procura, estimulado pela mão invisível, ou seja, a busca do
interesse de cada um permite alcançar os interesses de todos. Nessa
situação, busca do interesse próprio não prejudica os interesses dos
outros. Assim, quando a harmonia, não há a necessidade de cooperar.

Por outro lado, a cooperação requer que acções de indivíduos ou


organizações sejam trazidas para alguma conformidade por um
processo de negociação que e normalmente visto como um processo
dos de “coordenação de políticas” (policy coordinations).

A cooperação acontece quando os actores ajustam seus


comportamentos as preferências dos outros por meio desse processo de
coordenação políticas. Formalmente, segundo Keohane, a cooperação
intergovernamental acontece quando as políticas perseguidas por um
governo são percebidos por outros governos como facilitadoras para
atingir os seus próprios objectos de governo, como resultado do processo
de coordenação de políticas.

Tendo essas definições em mente, podemos distinguir mais claramente


cooperação harmonia e discórdia. Assim, se as políticas dos governos
facilitam automaticamente o interesse dos outros governos, temos a
harmonia, o que é obviamente um evento raro no mundo político. Para
definir mais adequadamente o processo de cooperação, temos de
avançar um passo e perguntar: o que acontece quando não há

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cooperação? Os actores buscam adaptar suas políticas aos objectivos?
Se essa tentativa não é feita, então há discórdia, que nada mais é do
que uma situação em que os governos entendem as políticas dos outros
países como obstáculo para a obtenção dos seus próprios objectivos.

Desacordos frequentemente induzem a tentativas de ajustar as políticas.


Quando essas tentativas de ajuste encontram resistência, então há
conflito de políticas. Por outro lado, por meio de, principalmente,
processos de negociação e barganha os actores buscam ajustar sua
politicas e depois modificá-las. Cada governo continua a olhar os seus
próprios interesses, mas passa buscar alternativas que beneficiam todas
as partes, mesmo que de forma desigual.

Resumindo, graficamente, temos o seguinte esquema:

Cada política
Antes dos dos atores
ajustes Cada política
(perseguida
políticos dos actores
independente
(perseguida mente dos
independente
interesses dos
mente dos outros) é vista
interesses dos
como
outros ) é vista São feitas tentativas
obstáculo para
como de ajuste de
obtenção dos
facilitadora políticas?
Si seus Nã
para a m objectivos o
obtenção dos
seus As políticas dos atores se
tornam significativamente
objectivos
mais compatíveis?
Si Nã
m o
Depois dos Harmo Cooperaç Discórdia
ajustes nia ão
políticos

A figura elaborada por keohane, mostra exactamente que, se as políticas


dos actores não oferecem obstáculos uma das outras, isso leva

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automaticamente à harmonia. Por outro lado, se de alguma forma a
política dos actores resultar em obstáculos para a obtenção de seus
objectivos políticos, é preciso perguntar se estão a ser feitas as tentativas
de ajuste dessas políticas. Essas tentativas são o inicio do processos de
negociação entre os Estados. Assim, caso não haja negociação, haverá
discórdia. Mas, no caso se inicie um processo de negociação, é preciso
verificar se esse processo caminha para a maior coordenação de
políticas. Em caso positivo, há cooperação e, em caso negativo, as
negociações são frustradas e há discórdia.

Vejam que, ao desenho original de Keohane, acrescentamos duas setas


pontilhadas. A primeira liga a cooperação à questão da
compatibilidade de políticas. Isso porque a cooperação é um processo
contínuo que se retro-alimenta quando há constantemente mais
coordenação de políticas e, portanto, mais cooperação, porem certas
negociações podem fracassar e resultar em pontos de discórdia. Em
relação a segunda seta, vemos que discórdia esta ligada à questão da
tentativa de ajuste de políticas. Aqui, novamente introduzimos um
mecanismo de retro-alimentacão, porque raramente os processos de
negociação resultam em permanente discórdia, ou seja, os governos
tendem, em suas relações, num dado momento, a retomar as
negociações de tentativa de ajuste de políticas que podem ou não
resultar cm cooperação ou novos momentos de discórdia.

Os governos entram em negociações internacionais exactamente para


reduzir o conflito existente ou eminente. Nesse contexto, se um Estado é
muito mais forte que outro, pode haver cooperação? Ou seja, poder e
cooperação caminhar conviver juntos?

A cooperação hegemónica não é uma contradição em termos, mas


significa ajustes de políticas numa barganha desigual na qual o poder
tem um papel central. Na verdade, raramente as negociações podem
ser imaginadas como processo equitativo de distribuição entre os actores
iguais e, portanto, a inclusão do poder é fundamental em qualquer
análise de cooperação. Logicamente, se um actor, em última instância,
não negoceia, ele não modifica as suas políticas – ao contrário, as impõe
aos outros, que sistematicamente devem alterar suas políticas. Aqui,
temo uma situação imperial.

Portanto, a cooperação nunca é uma situação isenta de conflitos; ao


contrário da cooperação é repleta de conflitos e tentativas de superá-
los. Se, nesse processo de tentativa de superação de conflitos, cada vez
mais se caminhar em direcção a um acordo, haverá cooperação; mas,
se o conflito não for superado, a desentendimento prevalecerá.

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2. 2 – O Estudo dos Regimes Internacionais

O estudo dos complexos de regras, princípios e objectivos chamados


“regimes internacionais” floresceu a partir de meados da década de
1970. Diversos autores vinham desenvolvendo discussões acerca da
“interdependência” característica da política internacional em que se
misturavam questões de segurança e acção militar com temas relativos
a interacções económicas (produção, comércio, finanças) e questões
derivadas do impacto do avanço científico e tecnológico sobre as
formas de interacção entre estados e entre estes e actores não estatais.
Com os trabalhos de Keohane, Nye e outros, e com a publicação em
1983 do volume intitulado International Regimes, organizado por Stephen
Krasner, as formas institucionais da cooperação internacional e os
processos políticos, sociais e económicos que lhes são vinculados se
estabeleceram como objecto central de pesquisa no estudo das
relações internacionais.

A referência básica para a definição de regime internacional é a


formulação de Krasner: “Os regimes podem ser definidos como conjuntos
de princípios, normas, regras, implícitos ou explícitos, e procedimentos de
decisão em torno dos quais as expectativas dos actores convergem em
uma dada área de relações internacionais. Princípios são crenças sobre
factos. Normas são padrões de comportamento definidos em termos de
direitos e obrigações. Procedimentos de decisão são práticas
predominantes para se fazerem e implementarem escolhas colectivas.”

Na verdade, contudo, o interesse no aspecto institucional da política


mundial, por oposição ao aspecto do conflito militar directo e suas
condições e consequências, existia, como visto acima, desde as
formulações do período entre-guerras. A influência de autores como
Mitrany, através de Ernst Haas, que foi professor de autores da geração
de Keohane, não deve ser desprezada.

De facto, segundo Kratochwil e Ruggie, o interesse académico nos


regimes internacionais resultou de uma evolução a partir de uma
preocupação com o tema da “governanção internacional”
(international governance), correspondente a uma questão já formulada
antes da Segunda Guerra: “como a moderna Sociedade das Nações
governa a si mesma”. Numa primeira fase, o foco analítico dos trabalhos
recaia sobre as instituições formais, pressupondo que a governação
internacional é o resultado do que as organizações internacionais fazem

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com base em seus atributos formais, tais como os seus estatutos legais,
procedimentos de votação, estruturas de comités, etc.

Em seguida, os trabalhos passaram a focalizar os processos reais (e não


os formalmente descritos em regras) de tomada de decisão das
organizações internacionais. A agenda de pesquisa se expandiu então
para incluir investigações a respeito das fontes de influência sobre os
processos reais de decisão das organizações internacionais, destacando
o papel do prestígio e do poder de estados, a formação de coalizões de
estados e a política burocrática nos processos relativos à aprovação de
resoluções, orçamentos e orientação política geral das instituições
internacionais.

Um terceiro foco de análise se desenvolveu em torno do papel


organizacional das instituições, ou seja, sua capacidade de resolver
problemas em áreas específicas de política (por exemplo, nas áreas de
diplomacia preventiva, manutenção da paz, a política nuclear a cargo
da Agência Internacional de Energia Atómica – AIEA, a política de
descolonização da ONU). Este terceiro foco de análise incluiu também
trabalhos sobre as consequências da falha das organizações
internacionais em alcançar a solução de problemas através dos meios
institucionais disponíveis e trabalhos sobre como as organizações
internacionais reflectem ou modificam as características do sistema
internacional. Finalmente, o quarto foco de análise recaiu sobre os
“regimes internacionais”, entendidos como conjuntos de regras
estruturados pelos estados para coordenar as suas expectativas, ainda
que por uma duração temporal incerta.

O conceito de regimes internacionais veio assim, segundo Kratochwil e


Ruggie, preencher um vazio deixado pelo inesperado facto de que os
estados continuaram a cooperar apesar da mudança sistémica oriunda
de um declínio relativo da hegemonia americana na política mundial nos
anos 1970. Portanto, segundo estes autores, “o processo de governação
internacional veio a estar associado ao conceito de regimes
internacionais, ocupando um espaço ontológico em algum lugar entre o
nível das instituições formais, de um lado, e factores sistémicos, de outro.”

Ainda como um desdobramento ulterior ao conceito pluralista de


“regime internacional”, veio mais recentemente o de “governação
global”. Um entendimento comum é o de que, enquanto os regimes são
especializados em determinadas áreas de interesse, a governação é
mais geral. Na formulação de Rosenau, por exemplo, a “governação em

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uma ordem global” diz respeito aos “arranjos que prevalecem nas
lacunas entre regimes e, o que é talvez mais importante ainda, aos
princípios, normas, regras e procedimentos que entram em operação
quando dois ou mais regimes se sobrepõem, conflituam, ou requerem
outros arranjos que facilitem acomodação entre interesses que
competem entre si”. Formulações como essa passaram a alimentar
discussões sobre a necessidade de reformas das actuais organizações
internacionais, tais como as do relatório produzido pela “Comissão sobre
Governação Global”, com propostas para a reforma do sistema ONU.

Por outro lado, o estudo dos regimes internacionais também desenvolveu


uma vertente distinta, que não crítica, mas incorpora, as formulações
básicas da teoria realista. Segundo os autores desta vertente, tais como
Gilpin, Krasner e outros, a cooperação internacional através do
estabelecimento de regras, processos formais e instituições deriva em
última análise da presença de uma configuração de poder unipolar no
sistema internacional, tal como exemplificado pela dominância britânica
no século XIX ou a americana no século XX. A chamada teoria da
estabilidade hegemónica, derivada da discussão desenvolvida pelo
economista Charles Kindleberger a respeito da provisão de bens públicos
internacionais constitutivos de uma infraestrutura da economia mundial
(tais como liquidez, meio de troca, direitos de propriedade), ganhou a
adesão de diversos autores, que vêm no exercício do poder por uma
potência hegemónica a base das experiências de cooperação
internacional institucionalizada.

Finalmente, desenvolveu-se também uma vertente cognitiva do estudo


dos regimes internacionais, que põe ênfase no papel da formação e
transmissão do conhecimento para a constituição da cooperação
internacional mediante regras e instituições.

Nesse momento, podemos então ligar a palavra cooperação a regimes


internacionais. Segundo John Ruggie, que introduziu o termo em 1975, um
regime é “um grupo de expectativas mútuas, regras e regulamentos,
planos, energias organizacionais e compromissos financeiros que são
aceites por um grupo de estado”. Mas recentemente, uma definição
dada colectivamente após um congresso sobre o tema definiu os
regimes internacionais como “grupos de princípios implícitos ou explícitos,
normas, regras e procedimentos de decisão sobre os quais as
expectativas dos actores convergem numa determinada área de
relações internacionais. Os princípios são as crenças de factos e causas.
As normas são padrões de comportamento definidos em termos de
direitos e obrigações. As regras são prescrições proscrições para as

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acções e os procedimentos de decisões, as praticas para fazer e
implementar as escolhas colectivas.

Um dos conceitos mais ambíguos aplicados à definição de regimes é a


norma que aqui estabelecida em termos de padrões de comportamento
definidos por direito e obrigações. Outro uso do conceito de normas
poderia se diferenciar de princípios e regras ao dizermos que os actores
consideram s normas como uma pressão moral para um certo
comportamento, independente de seu próprio interesse, livre dos
princípios e regras. Por outro lado, aceitar as normas assim definidas
poderia tornar a concepção de regimes baseados em interesse próprio
uma contradição em termos. Portanto, apesar da ambiguidade do
conceito, Keohane recomenda a manutenção de definição de normas
apenas em termos de padrões de comportamento.

Os princípios dos regimes definem os propósitos que seus membros


em geral esperam seguir, como os princípios do antigo Gatt
(Acordo Gera sobre Tarifas e Comercio – General Agreemente on
Tariffs and Trade), hoje Organização Mundial do Comércio (OMC),
que não obrigam os seus membros a aderir sistematicamente ao
livre comércio e, sim, à prática de não descriminação e
reciprocidade. O mesmo pode ser dito em ralação aos acordos de
não proliferação de armamentos nucleares, em que se espera que
seus membros não favoreçam a proliferação nuclear.

As regras do regime são difíceis de distinguir das normas.


Entretanto, as regras mais particulares indicam em mais detalhes os
direitos e obrigações específicos de seus membros. As regras
poderiam ser alteradas mais facilmente que as normas e princípios,
pois poderia haver mais de um conjunto de regras possíveis para
atingir um mesmo objectivo.

Finalmente, os procedimentos de decisão do regime dão a


possibilidade de implementar os princípios e alterar as regras.

O conceito de regime internacional é complexo porque está


baseado neste quatro conceitos: princípios, normas, regras e
procedimentos de decisões. Como, por exemplo, as regras e
normas estão muito próximas, fica difícil indicar quando as
mudanças de regras são as de (of) regime ou dentro (within)
regime.

Como os regimes afectam os países? Levando em consideração


os princípios, normas, regras, procedimentos, todos afectam os

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controlos nacionais una dada área, especialmente em relação a
acordos específicos entre os Estados. No entanto, os regimes
devem ser distinguidos de acordos específicos, pois são os
facilitadores da construção destes. Por outro lado, num mundo
anárquico, os regimes vivem em constante tensão como a
soberania nacional.

No mundo anárquico em que prevalece o self-help (auto-ajuda),


os princípios e regras dos regimes internacionais são, no mínimo,
mais fracos que o elemento constitucional de um pais; portanto, na
política mundial, esses elos são necessariamente frágeis. Em última
analise, os regimes internacionais podem promover a cooperação
internacional, mas estão submetidos à anarquia e ao princípio de
self-help.

Assim, é importante notar que, mesmo num contexto realista, a


cooperação não é impossível, como em situações de alianças
militares e balanço de poder, nas quais elas são exactamente
alcançadas em termos de interesses próprios de auto-preservação,
os quais, em última instancia, aparecem como interesses mútuos.

Susan Strange sugere cinco (dragões) dignos de preocupação


relativos ao estudo dos regimes internacionais:

Coisa do passado?
O estudo de regimes, como a maior parte da literatura de Relações
Internacionais, é consideravelmente americanizado, e, num
contexto de decadência do poder norte-americano e de todas as
suas instituições, cada vez mais perde o sentido discutir os regimes
internacionais.

Imprecisão
Poucas palavras em Relações Internacionais abrigam um debate
tão importante quanto a definição de um termo. Há autores que
divergem da noção de Keohane e afirmam que os regimes se
referem ao processo de decisão em trono do qual as expectativas
dos autores convergem, ora numa definição de como esta é
possível, ora ate que haja regimes sem cooperação (como se diz
que há entre Israel e Síria).

Preconceito de valor
A palavra regime é impregnada de valor, seja o do tipo dieta, seja
o do tipo politica, o regime de Estaline, ancien regime etc. Em
todos os casos, a palavra remete a uma ordem que ascende e cai.

Reprodução Interna Ano Lectivo 2022-2023 131


Para uso exclusivo dos Alunos Prof. Alberto Kizua,M.Sc.
Como, afinal, ordens são construídas e destruídas? Assim, se a
questão é de ordem, então para que palavra (regime)?

Visão estética
Os regimes internacionais dão a impressão de ser algo, no sentido
semântico, estável, quase imutável, mas, na verdade, cooperação
e o quer que signifiquem os regimes são tudo, menos estáveis…

Estado-cêntrica
Por último e o mais importante, segundo Strange, a análise de
regimes dá demasiada ênfase aos países, ignorando as próprias
OIs, alem das ETNs, OINGs etc., o que, segundo ela, é ilógico, dado
o peso dos actores não-estatais nas relações internacionais
contemporâneas.

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